12
A rota dos entremezes: entre Portugal e Brasil Simonn Fecit. Le vray portrait de Mr. de Molière en habit de Sganarelle. Orna Messer Levin Doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Instituto de Estudos da Linguagem e do Programa de Pós-graduação em Teoria e História Literária da Unicamp. Pesquisadora do CNPq. Autora, entre outros livros, de Aluísio Azevedo. Rio de Janeiro-São Paulo: Academia Brasileira de Letras/ Imprensa Ocial, 2013. [email protected]

8.1 a Rota Das Entremezes Entre Portugal Brasil

  • Upload
    senora

  • View
    219

  • Download
    0

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Cultura

Citation preview

  • A r

    ota

    dos

    entr

    emez

    es:

    entr

    e P

    ortu

    gal

    e B

    rasi

    l

    Sim

    onn

    Feci

    t. Le

    vra

    y po

    rtra

    it d

    e Mr.

    de M

    oli

    re en

    hab

    it d

    e Sga

    nare

    lle.

    Orna Messer LevinDoutora em Teoria Literria pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Instituto de Estudos da Linguagem e do Programa de Ps-graduao em Teoria e Histria Literria da Unicamp. Pesquisadora do CNPq. Autora, entre outros livros, de Alusio Azevedo. Rio de Janeiro-So Paulo: Academia Brasileira de Letras/Imprensa Ofi cial, 2013. [email protected]

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 181-192, jul.-dez. 2013182

    1 O Teatro do Bairro Alto funci-onou no velho palcio onde exis-tira o Ptio do Conde Soure, er-guido em fins do sculo XVI, eno qual viveu, at 1699, a rai-nha D. Catarina, viva deCarlos II da Inglaterra, e poste-riormente os filhos de D. PedroII. O teatro passou por obras deconsolidao aps o terremotode Lisboa e em seu lugar foi aber-ta a Casa de pera, que funcio-nou at 1771. Cf. MACHADO,Julio Cesar. Os teatros de Lisboa.Lisboa: Editorial Notcias, 1991.

    A chegada do entremez no Brasil acompanha o florescimento dognero em Portugal, durante a segunda metade do sculo XVIII, quandoas formas cmicas oriundas do teatro popular colhiam aplausos no Teatrodo Bairro Alto, o antigo (1720) o do Ptio do Conde Soure, Rua daRosa , no Teatro da Rua dos Condes (1765) e no Teatro Salitre (1782).1

    nestas ltimas casas que o pblico da pequena e mdia burguesia urbanamisturava-se com as franjas das camadas mais populares em busca dodivertimento oferecido pela comdia nova e pelos graciosos entremezes.

    O teatro portugus sobrevivia tributrio dos modelos estrangeirosou vinha sendo preterido pela voga da pera italiana, para a qual a gentefidalga voltava suas atenes, levando o governo a destinar-lhe apoiofinanceiro em detrimento da produo nacional. Face crescente institu-cionalizao da cultura oficial, simbolizada pela inaugurao do suntuoso

    R E S U M O

    Este trabalho tenta acompanhar a pre-

    sena do entremez no Brasil, a partir

    da reconstituio histrica de sua popu-

    larizao como gnero teatral nos tea-

    tros portugueses, durante os sculos

    XVI e XVIII, e de sua disseminao

    enquanto gnero editorial como resul-

    tado do crescimento da atividade tipo-

    grfica e da leitura de folhetos impres-

    sos. O estudo assinala a presena do

    entremez no mbito dos textos publi-

    cados em folhetos de cordel e analisa

    de que modo a prtica da leitura de pe-

    as de teatro foi decisiva para a afirma-

    o do gosto pela comdia popular, da

    qual se originou o modelo da comdia

    brasileira. O caso das tradues de Mo-

    lire para o portugus exemplifica a

    fora exercida pelo entremez sobre os

    autores portugueses e brasileiros que

    consagraram o sucesso da frmula po-

    pular junto aos leitores.

    PALAVRAS-CHAVE: teatro portugus;

    teatro brasileiro; entremez; histria da

    leitura.

    A B S T R A C T

    This essay tries to follow up the presence

    of Entremez in Brasil through the recons-

    truction of its historic popularization as a

    theatrical form, in Portugal during the

    XVI-XVIII centuries, and of its dissemi-

    nation as an editorial form that has its

    origins in the growth of typographical

    activities and reading practices. This essay

    points out the presence of Entremez bet-

    ween the published brochures and analyses

    the way by which the practice of reading

    printed comedies was determinant for the

    consolidation of a popular taste, from which

    the Brazilian comedy was originated. The

    case of Molires translations to the Portu-

    guese language gives us an example of the

    influence of the Entremez upon several

    writers who have consolidated the success

    of its popular humor alongside the readers.

    KEYWORDS: Portuguese theatre; Brazilian

    theatre; entremez; history of the reading.

    A rota dos entremezes: entre Portugal e BrassilThe route of farce: between Portugal and Brazil

    Orna Messer Levin

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 181-192, jul.-dez. 2013 183

    His

    tr

    ia &

    Cin

    em

    aTeatro de S. Carlos, em 1793, a representao de entremezes nas casas deespetculo e sua impressionante difuso parece sinalizar para a resistn-cia de uma forma literria considerada secundria que, no entanto, orien-tou a sensibilidade e o gosto do pblico mdio, a ponto de chegar aosculo XIX ainda com grande vitalidade. Na opinio de Jos Barata, issotalvez ocorresse porque o entremez concentrava a originalidade criadorafiel tradio portuguesa pela qual foram continuamente reavivados osmodelos da escola vicentina, em sua forma tosca e contundente de exercera crtica social.2

    Na virada do sculo XIX, a crise vivida pela coroa portuguesa, cul-minando com a transferncia da corte para o Brasil em 1808, marcou o fimde uma poca de vigorosa atividade nos teatros e a criao de um cenriodesolador para os atores do teatro popular. Seria o incio de uma trajetriadescendente, tanto para o entremez, quanto para a chalaa grosseira, am-bos alvejados pelas vozes da renovao esttica e poltica lanadas peloromantismo, que se instalou a partir da dcada de 1820. Mas precisoconsiderar que a esttica romntica em nome da qual Alexandre Hercula-no anunciava o renascimento do teatro nacional s chegaria de fato aospalcos lisboetas em 1838, com o drama de Garrett. Nas dcadas iniciais dosculo XIX, a maioria das produes perseguia os mesmos caminhos doentretenimento fcil: entremezes, farsas e imitaes evidentes do teatrofrancs ou italiano.3 Algo semelhante se passava no Brasil, onde os pro-gramas teatrais chegavam pelas mos das companhias portuguesas emvisita corte. Vinham de Lisboa tanto os grupos, os figurinos, os atores,quanto as verses de comdias e tragdias adaptadas ao vernculo, cujasrepresentaes eram entremeadas pelos divertimentos ligeiros.

    No contexto posterior independncia poltica brasileira, enquantoo gosto artstico lusitano continuava a predominar, a projeo do atorJoo Caetano foi decisiva para a afirmao da nossa dramaturgia. Comoator e empresrio sujeito s restries do meio teatral portugus, JooCaetano desencadeou, em certo sentido, uma reao s diretrizes domi-nantes no mercado de trabalho dos artistas da ex-colnia. Em 1833, fun-dou a primeira companhia dramtica brasileira composta exclusivamentepor atores locais. A iniciativa contribuiu para lanar uma orientaonacionalista nos palcos, embora o repertrio luso ainda predominasse.Aos poucos, porm, os textos exclusivamente portugueses e as adaptaesforam sendo substitudos pela importao direta de dramas franceses,como os de Alexandre Dumas, pai. Curiosamente, medida que JooCaetano ascendia na carreira e conseguia conquistar o pblico da corte,os dramaturgos portugueses voltavam a compor seu repertrio, talvezcomo jogada comercial, visto que os imigrantes e seus descendentesconstituam parcela significativa da platia do Rio de Janeiro.

    Com relao aos autores nacionais, destacam-se as estrias, em 1838,da tragdia Antnio Jos, ou o poeta e a inquisio, de Gonalves de Maga-lhes, e da comdia O juiz de paz na roa, de Martins Pena, com as quais aempresa de Joo Caetano deu impulso ao romantismo no teatro brasileiro,pendendo sempre mais para o trgico do que para o cmico. A inclinaopara os papis trgicos no impediu, contudo, que o empresrio reconhe-cesse o talento de Martins Pena, a quem chamava de o Molire brasilei-ro, e seguisse o costume de representar pequenas peas cmicas ao ladodo ttulo principal da noite. A pea curta destinada a aliviar a tenso do

    2 Cf. BARATA, Jos. Histria doteatro portugus. Lisboa: Univer-sidade Aberta, 1991.

    3 Cf. REBELLO, Luis Francisco(org., seleo e notas). Teatro por-tugus de um acto (1800-1899).Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2003.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 181-192, jul.-dez. 2013184

    4 Cf. HESSEL, Lothar e RAE-DERS, Georges. O teatro no Bra-sil sob Dom Pedro II. Porto Ale-gre: Instituto Estadual do Livro/URGS, 1979.

    5 Cf. ARAS, Vilma. Na tapera deSanta Cruz. So Paulo: MartinsFontes, 1992.

    6 Idem, ibidem, p. 134.

    auditrio, aps a representao de uma tragdia ou de um drama, condu-zia o espetculo ao encerramento dentro de uma atmosfera alegre.4

    Segundo este princpio, Joo Caetano incluiu no programa apresen-tado dia 04 de outubro de 1838 no Teatro So Pedro, do Rio de Janeiro, apea annima O juiz na roa, interpretada pela atriz Estela Sezefredajunto apresentao do drama A conjurao de Veneza. A concepo de umespetculo extenso, mas subdividido em duas partes que se encerram comuma execuo musical, permitiu a estria despretensiosa de O juiz de pazna roa que viria a colher grande sucesso nos teatros do pas, apesar dopouco prestgio das formas cmicas durante o romantismo.

    Antes de Martins Pena conceber suas peas, os nmeros leves comos quais os espetculos terminavam resumiam-se aos entremezes portu-gueses: pequenos atos variados com uma linha de ao central, que seaproveitava do teatro popular de improvisao, somados s burlas, msi-cas e danas. Sabemos, graas ao estudo de Vilma Aras, que MartinsPena uniu o enredo desses entremezes ao modelo da comdia clssica deMolire e pera, que j desfrutava de certa popularidade. Ao lado dosecos de Molire, Vilma Aras chamou a ateno para o enraizamento daspeas cmicas nas diferentes formas dramticas que constituem a tradioeuropia transplantada para a colnia: a farsa rstica portuguesa, a peaprovrbio, o entremez e o teatro popular de feiras, ao qual, segundo ela,Martins Pena se referiu inmeras vezes nos folhetins sobre os espetculosde pera publicados entre 1846-1847 no Jornal do Comrcio.5

    muito provvel que Martins Pena se tenha valido da concepo doentremez portugus para criar as peas cmicas iniciais, principalmente Ojuiz de paz da roa e A famlia e a festa da roa, mantendo o esquema bsico doenredo. Com base nos tipos convencionais (o velho, a dama e o gal), oenredo centra-se nas peripcias de jovens que se amam em oposio aosvelhos que contam com a ajuda dos criados para impedir o casamento dosenamorados.

    A criao de tipos brasileiros, embora fosse um desejo do autor,estava longe de ser simples. Quando no por outro motivo, porque osprprios atores eram de origem lusitana. Com isso a atuao nos palcos, apronncia lusitana, e as expresses improvisadas mantinham-se muitoprximas ao modelo praticado na metrpole. Neste particular, interes-

    sante observar, conforme ressaltou Vilma Aras, o quanto Martins Penaainda conserva os tipos rurais do entremez portugus lido e represen-tado no Brasil: figuras de camponeses que pouco se assemelham aoperfil da gente da roa daqui. Um caso ilustrativo tambm visto na

    representao do brasileiro, que no teatro luso refere-se ao portu-gus de torna-viagem, popularizado pelo entremez como uma fi-

    gura extica, rodeado de cocos, tonis de acar e falando de suasmulatinhas.6 Um exotismo, alis, que acompanharia a imagem

    do brasileiro por muito tempo na dramaturgia europia. As-sim, nos primeiros textos de Martins Pena

    possvel flagrar uma comicidade romn-tica que, embora buscasse fixar umanova caracterizao para as personagenslocais, ainda guardava inmeros sinaisdas figuras postas em circulao peloentremez lusitano distribudo no Brasil.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 181-192, jul.-dez. 2013 185

    His

    tr

    ia &

    Cin

    em

    aAs encenaes de entremezes em Portugal

    O florescimento do entremez portugus no sculo XVIII preserva oesprito das prticas festivas populares do carnaval na Idade Mdia. Aconcepo carnavalesca do mundo, captado atravs do jogo de mscaras,instaura o princpio da inverso, da transformao da ordem do mundonatural para uma outra ordem, dada pela festa. no mbito dascomemoraes que se torna possvel ultrapassar as normas e violar asregras do cotidiano, conforme nos mostrou Bakhtin em seu estudo jclssico sobre a cultura popular medieval.7 No entremez encontramos adinmica dos fingimentos e das caricaturas que derivam dosdivertimentos e jogos de mascarada pelos quais se veicula a stira social.

    O paradigma carnavalesco assenta-se no esquema bsico dacomicidade medieval e renascentista em que ocorre uma agresso inicial ordem estabelecida para que, em seguida, haja o retorno ao mundopor meio da festa. A celebrao da vida, que brota a partir da mortesimblica, instaura uma espcie de utopia e alimenta a ordem cotidiana.

    No podemos aludir a uma trajetria linear e lgica do entremezem Portugal. Tampouco h concordncia sobre a origem do teatro emPortugal no que diz respeito s prticas jogralescas.8 Contudo, os jograise segris, que prolongam a tradio dos antigos mimos e histries, foramna Idade Mdia e continuaram sendo at a inveno da imprensa e adifuso do livro, os agentes divulgadores da literatura oral, falada ecantada. A mistura de mmica e declamao encenada por estes atoresconstituiu uma manifestao dramtica rudimentar. O mesmo ocorrecom os trovadores, que se diferenciam dos jograis apenas pela condiosocial mais elevada e pelo maior grau de cultura, sobretudo se considerar-mos a quantidade de composies poticas que seguem um esquemadialgico nos cancioneiros do sculo XIII (Ajuda) e XIV (Vaticano eBiblioteca Nacional). As cantigas de amor, de amigo, de escrnio e demal-dizer contm dilogos com amigas, mes, confidentes ou mesmopolmicas, formuladas em verso, que podemos tomar como antecedentesda dramaturgia ulterior. Esta estrutura de querelas travadas entrequestes como cuidar e suspirar, desejar e bem-querer subsistem noCancioneiro geral de Garcia de Rezende e nas clogas de S de Miranda eBernardim Ribeiro. Ademais, Luiz Francisco Rebello observa, no tipo dofidalgo criado pelas cantigas de escrnio, uma relao evidente entre apoesia trovadoresca e a literatura dramtica posterior. Segundo ele, afigura do fidalgo arruinado e jactancioso que surge pela primeira veznas cantigas de escrnio e mal-dizer submetida stira pela dramaturgiade Gil Vicente e Francisco Manuel de Melo.9

    Os jograis da corte portuguesa durante os ltimos anos do reinadode D. Afonso III e os primeiros de D. Dinis extraem seus temas do cancio-neiro, bem como das novelas de cavalaria, cujos episdios e personagensforam transpostos para a cena por intermdio da ao mimada, danadaou eventualmente recitada. Os chamados momos passam a constituir osdivertimentos corteses, em que tomam parte fidalgos, pajens e at o mo-narca por ocasio das festividades rgias. A adaptao dos relatos de ca-valaria para as representaes da corte exigia um aparato cenogrfico maiscomplexo que o praticado pelos jograis. Os momos reais dos quatrocen-tos, que correspondem s faustosas momarie venezianas e aos momes fran-

    7 Cf. BAKHTIN, Mikhail, A cul-tura popular na Idade Mdia e noRenascimento: o contexto deRabelais. So Paulo/Braslia:Hucitec/Editora da Universida-de de Braslia, 1987.

    8 Tefilo Braga v no arreme-dilho a clula originria do tea-tro portugus, a partir do qualse formou o fio da tradio dra-mtica, enquanto Luciana Ste-gagno Picchio no o aceita comoum gnero dramtico portugu-s especfico, sendo, na opinioda estudiosa, equivalente sprticas jograis europias. Cf.REBELLO, Luiz Francisco. Oprimitivo teatro portugus. Lis-boa: Instituto de Cultura Portu-guesa, 1977.

    9 Cf. idem, ibidem.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 181-192, jul.-dez. 2013186

    10 Cf. PINA, Rui de. Crnicas deRui de Pina. Porto: Lello & Irmo,1977.

    11 Cf. CORVIN, Michel.Dicionnaire encyclopdique dutheater. Paris: Bordas, 1995, eGASSNER, John e QUINN,Edward (eds.). The readersenciclopedia or world drama.London: Methuen & Co, 1970.

    ceses, preencheram esses requisitos, alcanando grande sucesso, confor-me documentam as crnicas escritas sobre as festas e banquetes no pero-do que engloba os descobrimentos martimos, quando o esprito aventu-reiro da cavalaria , em certo sentido, reanimado.

    Por ocasio dos festejos rgios, os momos incluam representaesde episdios em forma de entremezes galantes. Rui de Pina, na Crnica aD. Afonso V, alude presena de entremezes nas festas de npciaspromovidas entre 13 e 25 de outubro de 1451, por ocasio da partida aoestrangeiro da Infanta D. Leonor, irm de D. Afonso V, que se casaracom Frederico III, Imperador da Alemanha. D. Joo II, o PrncipePerfeito , determinou a realizao de uma grande festividade por ocasiodo casamento de seu filho Afonso com a princesa D. Isabel de Castela,em 1490. Rui de Pina, em sua Crnica de D. Joo II, refere-se aos festejosde npcias, cujos ecos esto disseminados no Cancioneiro geral, no qualh meno a entremezes e divertimentos, como a mourisca, isto , afesta de mouros10.

    Essa trajetria pouco linear, que tem incio nos arremedilhosjogralescos e passa pelos entremezes intercalados aos momos palacianos,nos conduz aos autos e comdias de Gil Vicente, nos quais se identificamo nascimento do teatro nacional portugus e o pleno uso da fala emcena. No se trata de aprofundar o estudo sobre o uso satrico que GilVicente efetuou das tradies populares e dos costumes palacianos, masregistrar, na medida do possvel, a presena do entremez entre as formasde divertimento praticadas na transio do mundo medieval para omundo burgus, seu vigor e sua capacidade de adaptao aos contedose formas novas. A comicidade do entremez que tem, conforme se disse,razes carnavalescas, opera a fuso de vrios elementos, apropriando-sede motivos e modalidades cnicas, conforme podemos notar no aprovei-tamento das formas dramticas vicentinas efetuado pelos entremezes dosculo XVIII.

    No sculo XVIII, a fama adquirida pelo entremez em Portugal, edepois no Brasil, retoma em parte o molde das formas breves do teatrobarroco espanhol, consolidado nos sculos XVI e XVII.11 Na Espanhados seiscentos, os espetculos teatrais seguiam um esquema geral maisou menos na seguinte seqncia:

    Preliminares (msica) Loa ou prlogo Comdia: primeira parte Entremez Comdia: segunda parte Baile (bal mmico) Comdia: terceira parte Mascarada; fim da festa.

    Com o passar do tempo, o espetculo restringiu-se unicamente comdia, ao entremez e msica. Assim entendido, ele terminava sempreem festa, e, dependendo da combinao dos temas, derivam-se as diferen-tes concepes da festa, que podia ser: sacramental, mitolgica ou burlesca.No entremez reside o derivativo burlesco indispensvel representaoda comdia, de que ele inicialmente apenas um episdio intervalar, at

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 181-192, jul.-dez. 2013 187

    His

    tr

    ia &

    Cin

    em

    aconstituir-se em um gnero autnomo, na segunda metade do sculo XVI,com as criaes de Lope de Rueda (denominadas pasos) e afirmar-se comopea de um ato (o sainete do sculo XX).12 Vale observar que a introduodo baile e da mascarada no espetculo teatral assinala a influncia da che-gada dos cmicos italianos, que trouxeram a Commedia dellarte para a pe-nnsula ibrica, sendo de fundamental importncia para a formao dosentremezes de Lope de Rueda.

    Mas, diferentemente dos entremezes barrocos representados nassofisticadas festas teatrais dos castelos espanhis, os entremezes portu-gueses de inspirao castelhana do sculo XVIII compem o teatro popu-lar apresentado no Bairro Alto, na Rua dos Condes, no Salitre, ou simples-mente lido em forma de cordel nos seres particulares. O que evidenciaseu aspecto popular, segundo Daisy Sardinha Ribeiro da Silva, o fato deextrair os temas principalmente da realidade local e situar suas aes emambientes conhecidos pela audincia, como praas, ruas, mercados e lu-gares pblicos.13 Tambm as aes que compem as pequenas intrigaspermitem a compreenso imediata, garantindo o riso fcil dos especta-dores:

    teatro do cotidiano, e por isso popular, os entremezes oferecem ao espectador o dia-a-dia da vida real: as discusses em famlia, os namoricos, as declaraes de amor, asconquistas, os cimes, a astcia feminina, a guerra conjugal, os preparativos dasfestas e seres, as dificuldades financeiras, as cobranas, os imperativos da moda, asbrigas entre vizinhos, as intrigas, os problemas com os criados, as touradas, as aulasde dana e canto, as festas, a venda de entremezes pelos cegos, etc.14

    Na mesma medida, popular o modo ingnuo com que as situaesconvencionais so apresentadas, as figuras tpicas so tratadas e amoralidade transmitida.

    Os entremezes utilizam, na sua maioria, elementos pertencentes tradio cmica, misturando diversas heranas ibricas. Os tipos quedesfilam, por exemplo, so aqueles estabelecidos pela comdia nova ovelho, o mdico, o estudante, o sacristo, o galego, o marujo, o taberneiro,o cego etc. Os problemas que mobilizam a ao dramtica esto longe dagravidade, girando em torno de peripcias para obter o consentimentopaterno para o namoro ou para conseguir a autorizao do marido paraa ida ao teatro de cavalinhos, por exemplo.15 Assim, as solues encami-nham o encerramento dramtico para a celebrao alegre do casamento,do banquete ou, em alguns casos, para o castigo do vilo. Contribuempara essa atmosfera risvel, que dissolve as pequenas tenses em movi-mentos cantantes, os recursos gestuais da mmica e o uso de uma lingua-gem conhecida pela audincia, com base em trocadilhos, provrbios, fra-ses feitas e piadas. Dilogos cheios de colorido e intensidade, pautados nalinguagem simples e usual do dia-a-dia, oferecem sustentao aos tiposcaricaturais que veiculam sua stira social. Mas, longe de pretender mora-lizar ou alterar os costumes representados, os entremezes destinavam-sea rir e fazer rir destes, assinalando a desordem com auxlio do jogo demscaras, sem buscar conseqncias imediatas.

    O carter episdico do entremez, surgindo como diverso no meiode uma pea concebida com princpio, meio e fim, veio trazer-lhe umaespontaneidade que o levou a aceitar os eventos do mundo, relatando-os

    12 Para a configurao poticados pasos de Rueda, consultarASENSIO, Eugenio. Itinerariodel entrems. Madrid: EditorialGredos, s/d, e CALVO, JavierHeurta (ed.). Teatro breve de lossiglos XVI y XVII. Madrid:Taurus Ediciones, 1985.

    13 Cf. SILVA, Daisy SardinhaRibeiro da. Apresentao doteatro colorido e folgazo contidonos entremezes de cordel do sculoXVIII. Dissertao (Mestradoem Letras) FFLCH-USP, SoPaulo, 1979.

    14 Idem, ibidem.

    15 Cf. COSTA, Jos DanielRodrigues da. Seis entremezesde cordel. Lisboa: EditorialEstampa/Seara Nova, 1973.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 181-192, jul.-dez. 2013188

    sem, todavia, procurar orden-los ou dar-lhes unidade filosfica ou mo-ral.16 A moralidade, se acaso existe, nunca explcita: o entremez dema-siado breve para comportar uma estrutura acabada, visando a fins didti-cos.17 Em contraste com certa viso idealista da comdia, no entremez huma contemplao realista das desgraas do mundo, permitindo sempreao espectador popular uma maior identificao com os seus representan-tes no palco. A linguagem tosca, os gestos marcados, os movimentos can-tantes e as danas populares tomam o lugar da palavra potica por exce-lncia, conferindo naturalidade aos acontecimentos humanos por meio deefeitos cmicos. Esse esprito agudo de observao e a mordacidade lin-gstica que lhe so caractersticos, na opinio de Barata, acabaram poraproximar o gnero menor, inicialmente parasitrio da comdia, aos pro-cessos realistas da comdia de costumes, o que lhe conferiu autonomia esobrevida.

    Barata lembra que no tocante difuso do gnero em Portugal, asntese estabelecida por Tefilo Braga, em torno de trs grandes momen-tos, permanece vlida: o primeiro momento, no sculo XVI, assegurou apersistncia da literatura de cordel nas obras de Balthazar Dias e na vitali-dade da escola vicentina, que continuava a germinar. O segundo, marcadopela influncia do teatro espanhol, em funo do poderio filipino, fazendoa censura contra a comdia, orientou o povo para as leituras msticas ehagiogrficas. Por fim, o ltimo perodo assinala o estmulo impresso eao comrcio de folhetos graas ao benefcio concedido Irmandade doMenino Jesus. Com o incremento da estrutura lucrativa, surgem os auto-res que fixaram a forma mais acabada do entremez. Alexandre Antnio deLima, Jos da Silva e Jos Daniel Rodrigues da Costa so alguns dos auto-res que adotaram e cultivaram o gnero, aproveitando a demanda cres-cente pela leitura de folhetos de cordel, que os papelistas distribuam, edando-lhe flego prprio.18 Paralelamente, o despotismo iluminado da cortede D. Joo V difundiu e apostou no culto ao teatro italiano, na tentativa decompetir com o gosto francs pela pera, que substitura a influncia es-panhola na transio para o sculo XVIII. Este o momento em que che-gam a Portugal os libretos de Metastsio, as comdias de Goldoni, e asobras de Molire, todos comercializados popularmente em formato decordel.

    A circulao impressa

    Lado a lado com o fenmeno dos palcos, a atividade tipogrficadas pequenas oficinas e a autorizao para o comrcio de folhetos foramresponsveis pela divulgao, em escala mais larga, do modelo de humorcrtico e zombeteiro encontrado nos entremezes. O modelo popularizadopelos programas teatrais recebeu um novo impulso a partir de sua maiordisseminao enquanto gnero editorial, medida que passou a circularem folhetos impressos.

    Toda a vasta produo de peas teatrais que divertiu os habitantesdas cidades e vilarejos da pennsula, nos sculos XVII e XVIII, a despeitodas tentativas empreendidas por parte dos membros da Arcdia Lusitanae, depois, pelos iniciadores do movimento romntico, no sentido dereformar a literatura dramtica, conservou-se no apenas por conta dasrepresentaes cnicas improvisadas nas ruas, praas e casas de teatro,

    16 Cf. BARATA, Jos Oliveira.Entremez sobre o entremez.Separata de Biblos, homenagema Vitor Matos e S, LIII, Coimbra,1977.

    17 Cf. idem, ibidem.

    18 Cf. BRAGA, Tefilo. O povoportugus nos seus costumes,crenas e tradies. Lisboa: Livra-ria Ferreira Editora, 1885.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 181-192, jul.-dez. 2013 189

    His

    tr

    ia &

    Cin

    em

    amas devido s incontveis verses reproduzidas, exausto, nos folhetosde cordel. Aquilo que erroneamente se designa por teatro de cordel narealidade identifica um conjunto de textos impressos em folhas volantesque os cegos comercializavam, segundo consta nos exemplares quetematizam o gosto pela leitura de folhetos. Sampaio Forjaz afirma queessa designao nasceu dos cegos ou papelistas vendedores das folhasimpressas pendente[s] dum barbante pregado nas paredes ou nas portas,conforme elucidam os versos do Bilhar de Tolentino, citados por Costa eSilva:

    Todos os versos leu da Esttua Eqestre,E todos os famosos entremezes,Que no Arsenal ao vago caminhanteSe vendem a cavalo num barbante19

    A venda de folhetos no deixava de ser rendosa, a tal ponto quemotivou a criao de uma irmandade sob a invocao do Menino Jesus,exclusivamente composta de cegos, com sede na freguesia de S. Jorge edepois na de S. Martinho. Esta irmandade, pelo captulo 2o do seu com-promisso, tinha a prerrogativa exclusiva da venda de folhinhas, histrias, rela-es, repertrios, comdias portuguesas e castelhanas, autos e livros usados. Ain-da em 1820, uma resoluo do Desembargo do Pao mantinha tal privil-gio. A comercializao ocorreu em vrios locais. O seu principal assentofoi, em certa poca, nas escadas do antigo Hospital de Todos-os-Santos,no Rossio. Passou para o Arsenal. Por ltimo, a venda realizava-se naArcada Norte do Terreiro do Pao.20

    Na opinio de Sampaio Forjaz, a expresso teatro de cordel noindica um gnero teatral e sim uma forma bibliogrfica por meio da qualse preservaram inmeras verses de peas populares, que hoje constituemuma documentao preciosa do lxico e da etnografia do perodo. Pontode vista semelhante manifesta Roger Chartier em relao aos impressosda Bibliotque Bleue, na Frana do XVII, os quais define como uma frmulaeditorial inventada pelos Oudot de Troyes com o intuito de atender a umpblico leitor em expanso, cujas experincias e aptides nocorrespondiam s formas literrias ento disponveis.21 A nova forma deimpresso, em brochuras de capas azuis, mais barata e popular, baseou-se na adaptao de obras que j circulavam nos moldes editoriais tradicio-nais. Chartier assinala que os textos da Bibliotque Bleue, na realidade, nointroduziram outros contedos; adaptaram ttulos consagrados, por meiode interferncias no plano da linguagem e da organizao interna dasobras, de modo a torn-las acessveis para leitores desacostumados aoscdigos da escrita. Nesse sentido, no se poderia pensar em textos criadospara uma finalidade editorial e sim em textos ajustados ao formato decordel, por razes comerciais, como ocorreu com os contos de fadas dosculo XVI e XVII, produzidos no mbito da cultura feminina dos salese da corte, e que foram adaptados pelas editoras Oudot e Garnier.22

    Os estudos recentes indicam que na Europa o repertrio das ediesde cordel diversificado, misturando vrios gneros pertencentes cultura erudita. No rol dos impressos de cordel constam textos literrios,como romances e narrativas de aventuras, textos religiosos, que serviramde apoio contra-reforma (vidas de santos, oraes, livros de horas),

    19 Ver SAMPAIO FORJAZ,Albino de. Teatro de cordel: sub-sdios para a histria do teatroportugus, Lisboa: ImprensaNacional, 1922 (catlogo).

    20 Cf. SILVA, Inocncia Francis-co da. Dicionrio bibliogrficoportugus, v. VI (p. 275-288) eXVII (p. 91-93 e 324-328).Lisboa: Imprensa Nacional,1838-1923.

    21 Cf. CHARTIER, Roger. Textose edies: a literatura de cordel.In: A histria cultural: entre pr-ticas e representaes. Difel: Lis-boa, 1990.

    22 Chartier chama a ateno paraa importncia de se avaliar opapel dos tipgrafos e editores,responsveis pela manufaturado livro ou das publicaes, namaneira com que se passou a lerdeterminadas obras. Os proces-sos editoriais interferiram dire-tamente no status da obra e namaneira como ela se tornou le-gvel ao novo pblico leitor, in-dependente da inteno autoral.Cf. CHARTIER, Roger. Textos,impresses, leituras. In: HUNT,Lynn. A nova histria cultural.So Paulo: Martins Fontes, 1995.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 181-192, jul.-dez. 2013190

    23 MCKENZIE, D. F., apudCHARTIER, Roger. Do palco pgina: publicar teatro e ler ro-mances na poca moderna sculos XVI-XVIII. Rio de Janei-ro: Casa da Palavra, 2002, p. 52.

    24 CHARTIER, Roger. Do palco pgina, op. cit., p. 53.

    obras de aplicao prtica como aquelas destinadas culinria e educa-o feminina, e peas de teatro, bem menos freqentes antes do sc. XVIII.Nessa tipologia editorial, em que elementos da cultura popular se mes-clam s fontes impressas da tradio, ganham destaque folhetos contendoobras teatrais. Em Portugal h uma proliferao da literatura dramticadentro desta designao geral de literatura de cordel. A essa proliferaosetecentista corresponde uma proliferao da designao dos contedosdos folhetos: autos, entremezes, farsas, loas, comdias, dramas, dramasjocosos, pequenos dramas, peras, divertimentos musicais, serenatas etragdias. A designao ampla das obras repercute o movimento editorialintenso do perodo e permite acompanhar o processo de acomodao dasnormas de impresso de textos teatrais da tradio e de textos associadosaos novos espetculos musicais.

    No decorrer do sculo XVIII, a publicao de dramaturgia, em versoou em prosa, sofreu modificaes e interferncias semelhantes s que seprocessaram nas edies de literatura ficcional. Em estudo pioneiro sobrea impresso das peas de Congreve, Donald Mckenzie destacou as inter-ferncias que ajustaram os originais da representao cnica s normas dapublicao teatral. Nas edies de Congreve, o uso de ornamentos paraseparar as cenas, a introduo de algarismos romanos para a enumeraode episdios, a indicao destacada das falas e entradas das personagens,assim como a listagem de seus nomes na pgina de abertura, so algunsdos expedientes que modificaram a forma pela qual as peas vieram a serlidas, instaurando uma dinmica de recepo dos textos pautada pelo for-mato impresso e no pela encenao. Nas Panizzi lectures, Mckenzie reite-rou que um texto impresso muda radicalmente de sentido dependendo da apre-sentao tipogrfica, do formato, da paginao, das ilustraes, da organizao ede sua segmentao.23

    Seguindo a mesma linha de reflexo, Chartier demonstrou que mo-dos diferentes de transmisso das peas de Molire resultaram em cons-trues de significados diversos, dependendo do contexto das representa-es ou das formas de impresso, numa relao direta entre a composiosocial do pblico (nobreza ou burguesia), as categorias estticas e as per-cepes sociais que moldam as diferentes apropriaes da pea, e as diversasmodalidades cnicas e performticas do texto.24 As formas impressas so consi-deradas, nesse sentido, tambm como um tipo de performance na medidaem que registram a passagem daquilo que fora concebido como represen-tao cnica para uma situao de leitura, que procura reproduzir o con-junto dos elementos em cena.

    As condies de publicao das comdias de Molire, no entenderde Chartier, so ilustrativas dos aspectos objetivos envolvidos na transiodos palcos para o formato impresso, sendo o principal deles a prticacomum da pirataria editorial, que deu origem a reconstituies incorretasdas peas, feitas a partir da memria de um ouvinte, de um roteiro oumesmo de uma cpia estenografada. A fim de diminuir os danos e preju-zos trazidos pela comercializao de verses incorretas, Molire, apesarda relutncia em publicar suas peas, viu-se obrigado a solicitar ao rei oprivilge de publicao de suas obras. Em 06 de julho de 1661 recebeu oprivilgio para impresso de Lecole de maris (A escola de maridos), depoisde j t-lo obtido na disputa pela publicao de Les prcieuses ridicules (Aspreciosas ridculas) e Sganarelle ou le cocu imaginaire (Sganarello, o corno imagi-

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 181-192, jul.-dez. 2013 191

    His

    tr

    ia &

    Cin

    em

    anrio), em 1660. A concesso do privilgio nem sempre era um impedi-mento para a circulao de impressos no autorizados. O livreiro e im-pressor Jean Ribou, por exemplo, favorecido por um privilgio de publi-cao datado de maro de 1660, divulgou uma verso pirateada de Aspreciosas ridculas, cuja origem no se pode precisar.25

    Muitas vezes, tratava-se de um processo de reproduo das peasde Molire por meio da atribuio de autoria a terceiros, para cujos ttuloso tipgrafo recebia o privilgio necessrio. Esse foi claramente o caso dapea La comdie sganarelle avec des arguments sur chaque scne, atribuda aum certo sieur de la Neuf-Villenaine, para a qual Jean Ribou obteve, emjulho de 1660, o privilgio de publicao por dez anos. Protegido dessamaneira publicou duas edies pirateadas do Sganarelle de Molire, atque o benefcio fosse anulado, em novembro, e as cpias confiscadas, comoresultado das denncias encaminhadas ao Conselho pelo verdadeiro au-tor. No entender de Chartier, esse meio especfico de transmisso textualdeixou marcas em certas edies que, quando confrontadas com as publi-caes autorizadas de Molire, conforme se v no cotejo das edies deGeorge Dandin, revelam as omisses, substituies e acrscimos caracters-ticos da relao estabelecida entre as publicaes impressas e suas prpri-as formas de transmisso e representao. A anlise das edies defeituo-sas, incorretas ou no autorizadas, feitas provavelmente a partir da audi-o dos espetculos (memorizao, transcrio, impresso) permite ob-servar diferenas entre textos roubados, que reproduzem o espritofarsesco das encenaes, e textos autorizados e corrigidos pelo prprioMolire, talvez com a preocupao em eliminar as marcas de linguagemconsideradas imprprias para a forma impressa da pea. No confrontodas edies francesas, evidencia-se um processo de construo de autoria,pelo qual emergem as marcas textuais distintivas da consolidao do lu-gar social conquistado pelo autor e diretor de uma companhia de teatro.

    A problemtica da construo autoral mediada pelos princpios queregem a publicao de textos teatrais tem especial interesse no caso dastradues impressas em Portugal. Os pareceres emitidos pelos membrosda Real Mesa do Desembargo do Pao, em resposta aos requerimentos delicena para impresso, atestam as vrias maneiras pelas quais os ttulosde Molire se apresentaram ao pblico leitor. Em 15 de maro de 1798, ocensor Muler autorizou a impresso do entremez O alarve zeloso, do pro-ponente Henrique Souza, por reconhecer que se tratava de uma boa tra-duo da comdia de Molire, Sganarelle ou le cocu imaginaire, j publicadaduas vezes em 1771, pela oficina de Jos da Silva Nazar, com o ttulo deOs amantes zelosos.26 Assinando parecer contrrio ao pedido de publicaode O mdico por fora, Frei Joaquim de Santa Ana censurou a traduo de Lemdecin malgr lui, em 22 de setembro 1769, com os seguintes comentrios:A comdia, em sua traduo, est inteiramente desfigurada, sem gosto, e parece-me mais uma entremezada que uma comdia para instruir. Eu a julgo indigna daluz pblica.27 A m vontade da Mesa em relao popularidade dosentremezes se faz notar nas observaes dirigidas ao tipo de traduorealizada, que explicita a descaracterizao do original francs ao empres-tar-lhe uma tonalidade cmica local, mais grosseira e vulgar.

    Alm da absoro das caractersticas do teatro de cordel, os textosde Molire foram alvo de uma forte censura moral, causa maior das proi-bies e cortes que anularam seu sentido crtico e inovador. Os expedien-

    25 Cf. idem, ibidem, p. 47.

    26 Cf. CARREIRA, Laureano.O teatro e a censura em Portugalda segunda metade do sculoXVIII. Lisboa: Imprensa Nacio-nal/Casa da Moeda, 1988.

    27 Idem, ibidem, p. 223.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 181-192, jul.-dez. 2013192

    28 Cf. idem.

    29 Cf. CANDIDO, Antonio. Doslivros s pessoas. In: O albatroz eo chins. Rio de Janeiro: Ourosobre Azul, 2004, p. 69.

    tes utilizados para atender aos imperativos da censura, dependendo dafase de maior ou menor tolerncia da Mesa, deram origem a ediesexpurgadas ou em parte modificadas, como os impressos de Lecole desfemmes, pela oficina Francisco Borges de Souza, que havia sido representa-da em 1769 no teatro do Bairro Alto e circulou em 1789 e 1782 com asupresso de um quarto do texto.

    Avanando pelo sculo XIX, uma verso manuscrita de Le mdecinmalgr lui, datada de 1818, sob o ttulo de O mdico por fora ou o Rachadorilustra um outro aspecto da adaptao livre das peas de Molire para oportugus. O tradutor Alexandre Jos Vitor da Costa Sequeira, apoiando-se no impresso de 1789, transfere a ao para Portugal e inclui mudanasnos nomes das personagens. Alm disso, insere marcaes cnicas, tre-chos musicais e apartes cmicos que indicam a provvel destinao dotexto para os palcos.28 A ampliao do original, nesse particular, registra oprocesso muito recorrente de deslizamento da comdia para a farsa, ouseja, para a linguagem do entremez, servindo de exemplo da trajetriapercorrida pelas peas de Molire representadas nos teatros populares deLisboa e mais tarde impressas em folhetos de cordel. A contaminao pelacomicidade popular do entremez transformou Molire numa das princi-pais fontes de inspirao dos teatros portugus e brasileiro, haja vista ainfluncia que exerceu sobre Martins Pena, acima mencionado.

    O gosto pela leitura de folhetos teatrais expandiu o consumo daliteratura de cordel tambm no Brasil e incentivou editores e livreiros ase lanarem na disputa pelo pblico consumidor de entremezes, vidopor divertimentos cmicos. Em pleno sculo XIX, seletas e colees deentremezes passaram a ser vendidas em encadernaes luxuosas com achancela dos selos Quaresma e Garnier. A tal ponto se popularizaram asverses lusitanas do teatro de Molire, que a divertida cantiga de Sganarelo,em O mdico fora,

    Vem, lindinha garrafinha,deixa ouvir o teu glu-glu;doce encanto sem quebranto vinho e bacalhau cru;toca a beber, toca a viver,que a vida glu-glu-glu!

    hoje lembrada por Antonio Candido como uma das experincias iniciaisde sua formao juvenil como leitor.29 Mas a histria detalhada desse trans-plante dos entremezes portugueses para o Brasil ainda est para ser con-tada.

    Artigo recebido em outubro de 2005. Aprovado em novembro de 2005.Artigo publicado originalmente em

    ArtCultura: Revista de Histria, Cultura e Arte, v. 7, n. 11, jul.-dez. 2005.