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Revista CEJ, Brasília, n. 36, p. 59-71, jan./mar. 2007 61 NEOCONSTITUCIONALISMO E RELAÇÕES PRIVADAS: alguns parâmetros Samir José Caetano Martins RESUMO Analisa os reflexos do neoconstitucionalismo no Direito Privado, destacando a importân- cia de avaliar a extensão da aplicabilidade das normas constitucionais ao ambiente dos particulares, em que se deve considerar a tensão entre os valores patrimoniais tutela- dos pelo Direito Privado e os valores exis- tenciais consagrados pela Constituição. Entende que, embora haja consenso em torno da eleição da dignidade da pessoa humana como valor fundamental do ordenamento jurídico de qualquer Estado democrático de Direito, o mesmo não ocor- re quanto à definição dos limites e possibili- dades dessa dignidade, quer em relação ao Estado, quer em relação aos particulares. Apresenta alguns critérios para a aplicação direta dos direitos fundamentais às relações jurídicas privadas, como o seu grau de existencialismo e o grau de essencialidade do bem, entre outros. PALAVRAS-CHAVE Direito Privado; Direito Constitucional; neoconstitucionalismo; direito fundamen- tal; dignidade da pessoa humana; Constitui- ção Federal – art. 1º. Kleber Sales DIREITO CONSTITUCIONAL

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Revista CEJ, Brasília, n. 36, p. 59-71, jan./mar. 2007

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NEOCONSTITUCIONALISMOE RELAÇÕESPRIVADAS: algunsparâmetrosSamir José Caetano Martins

RESUMO

Analisa os reflexos do neoconstitucionalismo

no Direito Privado, destacando a importân-

cia de avaliar a extensão da aplicabilidade

das normas constitucionais ao ambiente dos

particulares, em que se deve considerar a

tensão entre os valores patrimoniais tutela-

dos pelo Direito Privado e os valores exis-

tenciais consagrados pela Constituição.

Entende que, embora haja consenso em

torno da eleição da dignidade da pessoa

humana como valor fundamental do

ordenamento jurídico de qualquer Estado

democrático de Direito, o mesmo não ocor-

re quanto à definição dos limites e possibili-

dades dessa dignidade, quer em relação ao

Estado, quer em relação aos particulares.

Apresenta alguns critérios para a aplicação

direta dos direitos fundamentais às relações

jurídicas privadas, como o seu grau de

existencialismo e o grau de essencialidade

do bem, entre outros.

PALAVRAS-CHAVE

Direito Privado; Direito Constitucional;

neoconstitucionalismo; direito fundamen-

tal; dignidade da pessoa humana; Constitui-

ção Federal – art. 1º.

Kleber Sales

DIREITO CONSTITUCIONAL

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1 INTRODUÇÃODe modo geral, convencionou-se ape-

lidar provisoriamente de Neoconsti-tucionalismo1 o movimento de reestru-turação da Teoria Geral do Direito a partirda promulgação de constituições de forteconteúdo garantístico (expresso em decla-rações de direitos amadurecidas e em ins-trumentos de salvaguarda diversificados,incluindo o controle de constitucionalidadepor meio de uma jurisdição constitucional)e com pretensão à efetividade (neste parti-cular, tributável muito mais ao sentimentoconstitucional nutrido pelos povos do quea uma específica característica das normasconstitucionais), verificado a partir de mea-dos do século XX, como resultado das li-ções duramente aprendidas com os hor-rores da Segunda Guerra Mundial.

Usualmente, são apontados como mar-cos normativos desta evolução a Constitui-ção Italiana (1947), a Lei Fundamental da Ale-manha (1949), a Constituição Portuguesa(1976) e a Constituição Espanhola (1978).

No Brasil, coube à vigente Constituiçãoda República (1988) o papel de referêncialegislativa dessa corrente de pensamento, quetem como um de seus principais vetores aconstitucionalização dos diversos setores doordenamento jurídico, impregnando todasas normas infraconstitucionais com o teorda outrora vagamente definida como “Car-ta Política”, fenômeno que revolucionou omodo de interpretação e aplicação de todasas normas jurídicas, trazendo a reboque es-peculações que tornaram mais complexo oraciocínio jurídico e menos evidente aracionalidade das decisões judiciais.

Duas concepções digladiam-se sobrea forma de aplicação dos direitos funda-mentais às relações privadas: a teoria daeficácia imediata (direta) e a teoria da eficá-cia mediata (indireta).

Segundo a teoria da eficácia mediata(indireta), a menos que a Constituição daRepública expressamente preveja sua apli-cação às relações privadas, deve ser respei-tada a liberdade dos particulares e a pró-pria autonomia do Direito Privado: as nor-mas constitucionais serem apenasreferencial normativo para a interpretaçãoe a aplicação das normas infraconstitu-cionais, cabendo privativamente ao legisla-dor a tarefa da ponderação entre os direi-tos fundamentais e a autonomia privada.

Segundo a teoria da eficácia imediata(direta), a Constituição se aplica diretamenteàs relações privadas, pois não há motivorazoável para colocar as relações privadasà margem da eficácia normativa da Consti-tuição, pois cabe ao juiz a tarefa de ponde-ração definitiva entre os direitos fundamen-tais e a autonomia privada (vale dizer: ojuiz não está vinculado à postura do legisla-dor, não havendo razão para conformar-se com a ponderação realizada ou paratomar a ausência de ponderação no casoespecífico como um silêncio eloqüente emfavor da autonomia privada).

Ao examinar as relações entre a nor-ma constitucional e as normas infraconstitu-cionais que regulam as relações privadas,Pietro Perlingieri faz breve referência à dis-puta entre as teorias da aplicabilidade dire-ta (imediata) e da aplicabilidade indireta(mediata) da Constituição, concluindo que

realidade socioeconômica oitocentista “oumelhor, setecentista”, impondo-se com vi-gor cada vez maior um modelo socializa-do, de matiz dirigista, que expressa a reali-dade política e socioeconômica de socie-dades marcadas por conflitos sociais e porconquistas dos setores individualmente maisfracos, mas coletivamente fortes, como odos trabalhadores3.

Poder-se-ia objetar que, embora a for-ça normativa da Constituição se irradie so-bre o Estado e sobre os particulares quenele vivem, o projeto social assumido pelaLei Maior tem como protagonista o Estado,não se podendo exigir dos particulares oesforço exigido do Estado para a constru-ção de uma sociedade livre, justa e solidária.

No terreno da filosofia política,Robert Nozick defendeu em uma obraclássica do neoliberalismo4 que nenhumpadrão de just iça distr ibut iva eralogicamente sustentável. Do ponto devista estritamente lógico, seu postulado éconvincente. Para compreender a socie-dade, não bastam argumentos lógicosque ignorem séculos de lutas sociais5.

Do mesmo modo, não se pode com-preender a vinculação direta dos particula-res à Constituição, ignorando que a socieda-de atual não é marcada por um simples diá-logo entre a sociedade civil e o Estado, massim por um complexo debate envolvendo oEstado e os diversos grupos sociais, polariza-dos por uma rede de diversos interesses, oraantagônicos, ora complementares, ora com-petitivos, no qual o Estado, não-raro, se limi-ta a proclamar com uma lei a vitória de umgrupo social sobre outro.

A profunda mutação da forma e doconteúdo do debate social se reflete namultiplicação dos palcos deste debate: osgrupos sociais não restringem o locus daconsagração de suas conquistas apenas aosparlamentos, passando a estendê-los aostribunais e aos gabinetes da administraçãopública (sobretudo em tempos dedesregulamentação, no qual proliferam asagências reguladoras de importantes ativi-dades econômicas, como a distribuição deenergia elétrica, água e o fornecimento deassistência suplementar à saúde).

O dinamismo dos debates sociais al-cança dimensão tamanha que a instabilida-de normativa não atinge apenas a legislaçãopor sucessivas revogações, algumas vezesacompanhada do reconhecimentojurisprudencial da retroatividade mínima: aprópria coisa julgada é posta em xeque e

O debate sobre a constitucionalização do Direito Privadono cenário nacional foi adiado pelos ventos autoritários

que marcaram o período de pós-guerra, entremeado pelasditaduras getulistas e militares, com algunsespasmos democráticos plasmados em um

desenvolvimentismo populista (...)

2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DODIREITO PRIVADO – EM ESPECIAL,DO DIREITO CIVIL

Com relação ao Direito Privado e,mais especificamente, ao Direito Civil, ascaracterísticas do neoconstitucionalismoque suscitam maior interesse são a inter-pretação das leis conforme a Constitui-ção e a aplicação direta da Constituição,aspectos nem sempre conjugados peladoutrina especializada.

a normativa constitucional não deve serconsiderada sempre e somente como meraregra hermenêutica, mas também comonorma de comportamento, idônea a incidirsobre o conteúdo das relações entre situa-ções subjetivas, funcionalizando-as aosnovos valores2.

Há quase meio século, MicheleGiorgiani denunciava o esgotamento domodelo individualista do Direito Privado,de matiz voluntarista, que expressava uma

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relativizada em situações de conflito comdireitos fundamentais. A trilogia da seguran-ça jurídica, caraterizada pela combinação doato jurídico perfeito, do direito adquirido eda coisa julgada não pode mais ser explicadanos termos taxativos em que tradicionalmen-te era exposta pela doutrina.

Na doutrina pátria a discussão emtorno do tema é mais recente: há apenasvinte anos e com certo pioneirismo,Orlando Gomes denunciou a crise doparadigma individualista simbolizado peloCódigo Civil de 1916, com o surgimento deum verdadeiro polissistema formado porleis especiais voltadas à regulação de seto-res expressivos da vida nacional, como oparcelamento do solo urbano, a proprie-dade industrial, o inquilinato e a situaçãojurídica da mulher casada, que rompeu como mito da unidade, generalidade e simplifi-cação que conferia o tom da legislação civile consolidou uma nova espécie de legisla-dor que os movimentos sociais reclama-ram: o legislador engajado em um projetoconstitucional (a Constituição como “cen-tro do universo jurídico”), que não se limi-tasse a criar leis repressivas, mas tambémleis promocionais6.

O debate sobre a constitucionalizaçãodo Direito Privado no cenário nacional foiadiado pelos ventos autoritários que mar-caram o período de pós-guerra, entremea-do pelas ditaduras getulistas e militares, comalguns espasmos democráticos plasmadosem um desenvolvimentismo populista: fa-lar em “socialização” do Direito Privadopoderia trazer ao estudioso a pecha de “co-munista” ou “subversivo”, com todas asperseguições políticas daí decorrentes.

Durante esse período, a legislação ex-travagante evoluía lentamente, trazendocertos avanços sociais, mas continuavaportadora de uma racionalidade pagã, quenão recebera o batismo da democracia.Em verdade, a legislação espelhava o perfilde uma sociedade pretensamente tuteladapelo Estado, longe de conquistar sua eman-cipação. O exame atento das leis desta épo-ca revela que, como na fábula italiana, pro-moviam-se mudanças para assegurar quetudo continuaria como antes.

Só é possível compreender a impor-tância da Constituição de 1988 para a re-construção do Direito Privado brasileiromediante o esclarecimento prévio de quese trata da única constituição verdadeira-mente democrática que a nação conhe-ceu, não tanto por suas origens (uma as-

sembléia constituinte convocada pelo Regi-me Militar), mas sim pelo ambiente demo-crático em que se desenvolveu sua paulati-na concretização.

O quanto se expôs permite compre-ender o diferencial metodológico daConstitucionalização do Direito em relaçãoao pensamento jurídico tradicional, acen-tuada por Pietro Perlingieri: A função dojurista é, portanto, complexa e a sua ati-vidade valorativa envolve um conjunto deaspectos que vão do ideológico e políticoao social, ético e religioso7.

ferem maior dinamismo à interação en-tre fatos, valores e normas.

Dentro da perspectiva de aplicaçãodireta dos direitos fundamentais às relaçõesjurídicas privadas, nem sempre esta aplica-ção se fará sentir pelo reconhecimento deum específico direito subjetivo, como ob-serva Daniel Sarmento:

Na verdade, parece-nos que não épossível resumir todas as hipóteses de apli-cação direta dos direitos individuais nasrelações privadas à moldura, por vezesespecífica, do direito subjetivo. Os direitos

Só é possível compreender a importância da Constituiçãode 1988 para a reconstrução do Direito Privadobrasileiro mediante o esclarecimento prévio de que se tratada única constituição verdadeiramente democráticaque a nação conheceu (...)

Cabe averbar que esta metodologiafortemente influenciada pelos anseios so-ciais abre um novo campo de investigaçãoaberto ao aplicador da lei, como observa omestre italiano:

Para o civilista apresenta-se um am-plo e sugestivo programa de investigaçãoque se proponha à atuação de objetivosqualificados: individuar um sistema do di-reito civil mais harmonizado aos princí-pios fundamentais e, em especial, às ne-cessidades existenciais da pessoa; redefiniro fundamento e a extensão dos institutosjurídicos e, principalmente, daquelescivilísticos, evidenciando os seus perfis fun-cionais, numa tentativa de revitalizaçãode cada normativa à luz de um renovadojuízo de valor (giudizio de meritevolezza);verificar e adaptar as técnicas e as noçõestradicionais (da situação subjetiva à rela-ção jurídica, da capacidade de exercício àlegitimação, etc.), em um esforço de mo-dernização dos instrumentos e, em espe-cial, da teoria da interpretação8.

A advertência realça que a aplica-ção das normas constitucionais às rela-ções jurídicas privadas transcende a con-sideração pura e simples do orde-namento jurídico como sistema mera-mente normativo caracterizado pela uni-dade (tendo uma norma suprema comocentro de gravidade do conjuntonormativo e tendo os elementosnormativos escalonados de forma quenão haja antinomias): exige-se um siste-ma normativo permeável a elementos po-líticos, sociológicos e filosóficos, que con-

individuais podem e devem ser aplicadosdiretamente, por exemplo, a interpretaçãode cláusulas contratuais ou de outras de-clarações de vontade, de sentido duvido-so, independentemente da invocação dequalquer conceito jurídico indeterminadoformulado pelo legislador privado. Podeme devem ser usados também como pau-tas exegéticas, ou, em casos patológicos,como limites externos para a regulaçãojurídica emanada de fontes não estataisdo Direito (estatuto da associação demoradores ou do clube, convenção docondomínio, regulamento interno da es-cola privada etc.)9.

O particular tem o dever de respeitar,tanto em suas ações quanto em suas omis-sões, os direitos fundamentais dos demaisparticulares mas, geralmente, não se lheexige que proteja o próximo das agressõesde terceiros10.

Esta ressalva, evidentemente, não seestende às hipóteses de omissão de socor-ro, que constitui crime (art. 135 do CódigoPenal: Deixar de prestar assistência, quan-do possível fazê-lo sem risco pessoal, àcriança abandonada ou extraviada, ou àpessoa inválida ou ferida, ao desamparoou em grave e iminente perigo; ou nãopedir, nesses casos, o socorro da autori-dade pública).

A propósito do tema, cabe breve refe-rência à situação corriqueira em que usuá-rio de plano de saúde, em situação de imi-nente risco de vida, tem a cobertura nega-da pela operadora de saúde.

Nesse caso, o hospital privado não se

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pode furtar a prestar socorro, mas terá o direito de efetuar acobrança da conta hospitalar diretamente ao paciente ou a quemse apresentar como responsável pela internação, devendo infor-mar previamente esta circunstância: a solidariedade social exigesomente que não se deixe ao desamparo pessoa em iminente riscode vida, não se podendo exigir a este título que o hospital privadopreste serviços gratuitos, em evidente enriquecimento sem causado paciente e do próprio Estado, a quem incumbe o dever consti-tucional de assistência gratuita à saúde.

No Brasil, como observa Daniel Sarmento, a teoria da eficáciadireta dos direitos fundamentais é amplamente dominante na dou-trina e na jurisprudência11, de modo que a questão central se colocamuito mais na extensão da aplicabilidade das normas constitucio-nais às relações privadas.

exigências do preceito são cerceadas pelas famosas “escolhas trági-cas” e pelo velho discurso da reserva do possível), quer em relaçãoaos particulares (cujas exigências do preceito são questionadas di-ante da liberdade do indivíduo, que, em princípio, não pode sercompelido a lançar-se sem reservas no projeto de construção deuma sociedade solidária).

De modo geral, a abordagem do conteúdo jurídico da digni-dade da pessoa humana assume duas vertentes: uma enumerativa,que busca pinçar os direitos fundamentais mais relevantes para apessoa e inseri-los sob a capa da dignidade, e outra ampliativa, queabarca sobre a dignidade, em certo grau a ser definido conforme ocaso concreto, todos os direitos fundamentais (individuais esociopolítico-econômicos).

Maria Celina Bodin de Moraes enfeixa, sob a capa da dignida-de da pessoa humana, a salvaguarda dos princípios da igualdade(que consiste no direito a não receber tratamento discriminatório:em ver respeitadas as suas peculiaridades – direito à diferença – eem obter o mesmo tratamento dos demais – direito à igualdadeperante a lei14) da integridade física e moral (no qual se insere odireito a não ser torturado e o direito à existência digna), da liberda-de (em que se inserem a privacidade, a intimidade e o livre exercícioda vida privada) e da solidariedade (definido como um “conjuntode instrumentos voltados para garantir uma existência digna, co-mum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre ejusta, sem excluídos ou marginalizados”, inserindo-se aí a disciplinada responsabilidade civil, especialmente nos casos de danos aosconsumidores e ao meio ambiente)15.

Antonio Junqueira de Azevedo observa que o conteúdo jurí-dico da dignidade da pessoa humana pressupõe a intangibilidadeda vida humana (de que se extraem conseqüências como a proibi-ção da eutanásia16, a proibição do abortamento do embrião17 e aimpossibilidade da introdução legislativa da pena de morte) e carreiacomo conseqüências o respeito à integridade física e psíquica dapessoa18 (por força do qual, nos casos de danos à pessoa, a respon-sabilidade civil objetiva passa a ser a regra e a responsabilidade civilsubjetiva passa a ser a exceção19 e por força do qual se exige oconsentimento informado do paciente para a realização de proce-dimentos médicos); o respeito às condições mínimas de vida (cujoexemplo de consagração mais conhecido é o regime dasimpenhorabilidades, especialmente do bem de família e cuja síntesemais eloqüente é a idéia de “mínimo existencial”) e o respeito aospressupostos mínimos de liberdade e convivência igualitária entreos homens (no qual podem ser enquadrados os chamados “direi-tos da personalidade”, à exceção dos direitos à vida e à saúde, quejá foram enquadrados nas categorias anteriores e sobre o qualpodem ser enumerados os seguintes desdobramentos, a título me-ramente exemplificativo: direito ao nome, direito à liberdade – comespecial destaque ao repúdio da prisão civil por dívidas, exceto asalimentares, direito à igualdade e direito à intimidade).

Em conclusão, observa o mestre paulista que, grosso modo,o conteúdo da dignidade da pessoa humana pode ser resumi-do no caput do art. 5° da Constituição: vida, liberdade, igualda-de, segurança e propriedade (os tradicionalmente conhecidoscomo “direitos cívicos”).

Ana Paula de Barcellos apresenta uma noção mais ampla doconteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana, identificando-ocom os direitos fundamentais: direitos individuais, direitos políticose direitos sociais (nos quais se enquadrariam os direitos sociais,

Embora haja firme consenso em torno da eleiçãoda dignidade da pessoa humana como valor

fundamental do ordenamento jurídico dequalquer Estado democrático de Direito, o mesmo

consenso não se traduz quanto à definição doslimites e possibilidades da dignidade da pessoa

humana, quer em relação ao Estado (...) quer emrelação aos particulares (...)

No atual estado dos estudos civilísticos, não parece passível dediscussão a constitucionalização do Direito Privado (aí compreen-didos o Direito do Trabalho, o Direito do Consumidor e o DireitoCivil, entre outros), tendo se tornado verdadeiro lugar comum areferência aos estudos de Gustavo Tepedino12 e Maria Celina Bodinde Moraes13 sobre o impacto da Lei Maior sobre o Direito Civil.

Feito o breve registro dessas relevantes mutações na técnicalegislativa, parece desnecessário passar em revista a trajetória doDireito Civil brasileiro desde a centralidade do Código Civil de 1916,passando pelo surgimento de leis extravagantes e pela formação demúltiplos microssistemas, até a reunificação do sistema em tornoda Constituição da República.

O mais importante no atual contexto brasileiro é avaliar a exten-são da aplicabilidade das normas constitucionais ao ambiente dosparticulares, em que é preciso considerar a tensão entre os valorespatrimoniais tradicionalmente tutelados pelo Direito Privado e osvalores existenciais consagrados pela Constituição da República.

3 APONTAMENTO SOBRE O CONTEÚDO NORMATIVO DADIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Para avaliar os desdobramentos da tensão normativa geradapelo impacto dos valores existenciais carreados pelaconstitucionalização sobre uma seara em que vicejava um ferre-nho patrimonialismo, é preciso tomar como ponto de partida anorma de maior densidade no sistema.

Não há dúvida de que a Constituição da República elegeu adignidade da pessoa humana como vetor normativo de máximaproeminência, como se extrai do seu art. 1º, III.

Embora haja firme consenso em torno da eleição da dignida-de da pessoa humana como valor fundamental do ordenamentojurídico de qualquer Estado democrático de Direito, o mesmo con-senso não se traduz quanto à definição dos limites e possibilidadesda dignidade da pessoa humana, quer em relação ao Estado (cujas

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econômicos e culturais)20. Detém-se na idéiado mínimo existencial como núcleosindicável do princípio da dignidade dapessoa humana, alinhavando em seu bojoa educação fundamental (incluídos tanto oensino regular de crianças e adolescentesquanto a educação de jovens e adultos – oantigo “supletivo”); a saúde básica (aí com-preendidos o saneamento básico, o atendi-mento materno-infantil, as ações de medi-cina preventiva e as ações de prevençãoepidemiológica, sustentando-se comoparâmetro o plano-referência instituído pelaLei n. 9.656/98 como cobertura mínima aser oferecida pelas operadoras de saúde);a assistência aos desamparados (observan-do-se a dificuldade de concretizar a assis-tência social sem desvirtuamentos, que aentrega de numerário aos necessitados, porexemplo, ensejaria21) e o acesso à Justiça(destacando-se neste contexto a assistênciajurídica integral confiada às defensoriaspúblicas e o benefício da gratuidade decustas e emolumentos)22.

Ingo Wolfgang Sarlet apresenta a se-guinte definição, no plano jusfilosóficouniversal:

Temos por dignidade da pessoa hu-mana a qualidade intrínseca e distintivareconhecida em cada ser humano que ofaz merecedor do mesmo respeito e con-sideração por parte do Estado e da co-munidade, implicando, neste sentido, umcomplexo de direitos e deveres fundamen-tais que assegurem a pessoa tanto con-tra todo e qualquer ato de cunho degra-dante e desumano, como venham a lhegarantir as condições existências mínimaspara uma vida saudável, além de propi-ciar e promover sua participação ativa eco-responsável nos destinos da própriaexistência e da vida em comunhão comos demais seres humanos23.

Prossegue o professor gaúcho, expon-do que a dignidade da pessoa humana,na condição de valor (e princípionormativo) fundamental que ‘atrai o con-teúdo de todos os direitos fundamentais’,exige e pressupõe o reconhecimento e pro-teção dos direitos fundamentais, de todasas dimensões (ou gerações, se assim pre-ferirmos)24, pressupondo a personalidadejurídica de todos os seres humanos e abar-cando um amplo espectro de direitos queinclui a vida, a liberdade pessoal, a identida-de pessoal (inserindo-se aqui a autonomiao direito ao nome e a proteção à privacida-de, à intimidade, à honra e à imagem), a

igualdade, a integridade, a propriedade (po-dendo-se considerar aqui o “estatuto jurídi-co do patrimônio mínimo”, de resto, hámuito tutelado pelo regime legal dasimpenhorabilidades), os direitos sociais,econômicos e culturais, tanto na sua di-mensão de defesa quanto na sua dimen-são prestacional (como o direito à mora-dia, que não significa necessariamente mo-radia própria) e os direitos políticos (emcujo espectro se inclui o acesso à Justiça,que deve ser assegurado não só aos cida-dãos, mas também aos estrangeiros resi-dentes ou não no País).

inclusive – consoante já referido relativa-mente aos assim designados direitos soci-ais – por medidas positivas não estrita-mente vinculadas ao mínimo existencial25.

Segundo essa concepção, o rol dosdireitos fundamentais reconduzíveis à dig-nidade da pessoa humana ainda pode seestender além do texto constitucional, porforça do § 2° do art. 5° da Constituição(Os direitos e garantias expressos nestaConstituição não excluem outros decor-rentes do regime e dos princípios por elasadotados, ou dos tratados internacionaisem que a República Federativa do Brasil

(...) a dignidade da pessoa humana não serve apenascomo anteparo contra ataques à pessoa, mastambém como instrumento de reclamo de providênciaspara sua plena realização.

Os exemplos de direitos fundamen-tais que podem ser associados à dignidadeda pessoa humana devem ser tomados tan-to na sua dimensão defensiva (negativa)quanto prestacional (positiva), concluindo-se daí que a dignidade da pessoa humananão serve apenas como anteparo contraataques à pessoa, mas também como ins-trumento de reclamo de providências parasua plena realização.

Serve bem ao realce deste importanteaspecto, que associa a valoração das con-dutas comissiva e omissiva, a transcriçãoda passagem:

De todos os exemplos colacionados– que de longe não esgotam o rol dosdireitos fundamentais embasados na dig-nidade da pessoa humana – játransparece a sua referida dupla funçãodefensiva e prestacional (negativa e posi-tiva), inclusive na condição de posiçõesjurídicas subjetivas. Com efeito, tal caráterdúplice manifesta-se não apenas pela cir-cunstância – já suficientemente demons-trada – de que tanto os assim denomina-dos direitos de defesa (ou direitos negati-vos), mas também os direitos a presta-ções fáticas e jurídicas (direitos positivos)correspondem, ao menos em regra, àsexigências e constituem – embora emmaior ou menor grau – concretizaçõesda dignidade da pessoa humana, mastambém pelo fato de que da dignidadedecorrem, simultaneamente, obrigações derespeito e consideração (isto é, de sua não-violação) mas também um dever de pro-moção e proteção, a ser implementado

seja parte). Uma concepção tão ampla dadignidade da pessoa humana reclama anecessidade de saber quais direitos funda-mentais efetivamente possuem um con-teúdo em dignidade da pessoa humana,em outras palavras, se podem ser tidoscomo manifestação (exigência) direta ou,pelo menos, indireta desta dignidade26.

A esta equação se adiciona o elemen-to complicador de que ainda que se partada premissa (não de todo inquestionávelno sistema jurídico-constitucional brasilei-ro) de que todos os direitos fundamentaispossuem, como elemento comum, pelomenos um conteúdo mínimo em dignida-de, remanesce a dúvida de qual é exata-mente este conteúdo em dignidade que,para além disso, poderá, ou não, coincidircom o assim denominado núcleo essenci-al do direito fundamental27.

4 O MÉTODO TÓPICO-SISTEMÁTICOAPLICADO ÀS RELAÇÕES PRIVA-DAS CONSTITUCIONALIZADAS

Ingo Wolfgang Sarlet sintetiza ametodologia a ser aplicada na perspectivaconstitucionalizada das relações privadasao afirmar que:

No âmbito da problemática davinculação dos particulares, as hipótesesde um conflito entre os direitos funda-mentais e o princípio da autonomia pri-vada pressupõem sempre uma análisetópico-sistemática, calcada nas circuns-tâncias específicas do caso concreto, de-vendo ser tratada de forma similar àshipóteses de colisão entre direitos funda-

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mentais de diversos titulares, isto é, buscando-se uma soluçãonorteada pela ponderação dos valores em pauta, almejandoobter um equilíbrio e concordância prática, caracterizada, emúltima análise, pelo não-sacrifício completo de um dos direitosfundamentais, bem como pela preservação, na medida do pos-sível, da essência de cada um28.

De fato, como se observou, a consagração da plenanormatividade dos princípios, sobretudo os de hierarquia constitu-cional, gerou a necessidade de recorrer-se a uma técnica de conju-gação, a ponderação de bens e interesses, que busca equilibrarvalores conflitantes por meio de um raciocínio interpretativo compretensão à concordância da comunidade (afinal, não se concebeque uma decisão, num Estado democrático de Direito, não tragaínsita a aspiração ao reconhecimento de sua legitimidade), o que seespelha nas teorias da argumentação.

A dificuldade na aplicação da ponderação de bens está emdefinir-se, na colisão entre dois princípios, qual deles deverá cederespaço ao outro.

Esta dificuldade metodológica não passou despercebida a LuísRoberto Barroso, que anotou: A estrutura interna do raciocínioponderativo ainda não é bem conhecida, embora esteja sempreassociada às noções difusas de balanceamento e sopesamentode interesses, bens, valores ou normas.

Para tentar eliminar o alto grau de subjetivismo que oneoconstitucionalismo enseja, com a larga aplicação de princípios,cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, é preciso com-preender as etapas de aplicação da ponderação de bens e, final-mente, buscar critérios para orientar esta aplicação.

Luís Roberto Barroso descreve três etapas pelas quais o intér-prete deve passar para realizar a ponderação: a identificação dasnormas relevantes para a solução do caso concreto, que devem seragrupadas em função da solução a que conduzam, identificando-se desde já eventuais conflitos entre as normas identificadas; oexame da interação entre os fatos deduzidos do caso concreto e asnormas, destacando-se as conseqüências práticas da incidência decada norma e confrontando-se os fatos e as normas, escolher qualdas soluções aventadas deverá prevalecer em relação às demais,determinando-se ainda o grau desse prevalecimento, tendo comonorte os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

axiológicas para a valoração a ser feita.Sem embargo da conclusão inevitável, o constitucionalista

carioca observa que a ampla margem de discricionariedade dojuiz (ensejada pela falta de critérios objetivos) deverá, como re-gra, ficar adstrita às hipóteses em que o sistema jurídico nãotenha sido capaz de oferecer uma solução em tese, elegendo umvalor ou interesse que deva prevalecer, averbando que a existên-cia de ponderação não é um convite para o exercícioindiscriminado de ativismo judicial29.

Partindo do ponto em que a exposição de Barroso se encer-rou, surge uma perplexidade que não tranqüiliza o aplicador dalei em busca de segurança jurídica (e, quiçá, também de umajustiça apreensível): se a regra é que o juiz só promova a ponde-ração de bens em hipóteses de lacuna do ordenamento, quaisseriam as exceções?

Se admitirmos que a supremacia da Constituição empresta aosprincípios constitucionais a força não só de integrar o sistema jurídi-co, mas também de eliminar suas disfunções (e não pode ser diferen-te, diante da força normativa da Constituição), será forçoso admitirque o juiz é convocado a aplicar a ponderação de bens, que remontaao próprio senso de justiça – o que também é reconhecido porBarroso –, em qualquer caso em que o princípio reclame sua satisfa-ção segundo as diretrizes traçadas pela Constituição.

Pouco conforta a recondução do raciocínio ao princípio daunidade da Constituição, diante da constatação de que, emboranão haja hierarquia normativa entre as normas constitucionais, épossível reconhecer uma hierarquia axiológica entre as normas,sobretudo se tomarmos em conta o núcleo imodificável da Cons-tituição, ou seja, as “cláusulas pétreas” (§ 4° do art. 60 da Constitui-ção da República) em relação a outras normas30.

Com efeito, embora se considere que as normas constitucio-nais possuem a mesma hierarquia, quem proclamaria que a plenarealização do princípio da dignidade da pessoa humana deveriaceder passo ao princípio da livre-iniciativa, num confronto entreestas normas?

A conclusão inarredável é, respeitado o espaço dediscricionariedade legislativa e administrativa, que não há limites aoemprego da técnica de ponderação de bens e interesses: oneoconstitucionalismo consagrou a abertura da Caixa de Pandora,reconhecendo que ao Poder Judiciário cabe inescapável monopó-lio da última palavra, sendo inútil lançar mão de artifícios com aexigência de cega obediência à lei escrita e a medidos hermenêuticosprevisíveis (interpretação literal, sistemática, histórica, teleológica)para proclamar uma falsa segurança jurídica.

Na falta de elementos objetivos, o controle de legitimidade daponderação pelo juiz tem sido realizado pelo exame da argumenta-ção (ou, melhor dizendo, da fundamentação) desenvolvida31.

Sem adentrar nas (muitas) complexidades das teorias da argu-mentação, Luís Roberto Barroso oferece três parâmetros elementa-res de controle da correção da argumentação jurídica32: a capacida-de de apresentar fundamentos normativos (implícitos que sejam)que a apóiem e que lhe dêem sustentação; possibilidade deuniversalização dos critérios adotados pela decisão – o que permite aidentificação de desvios e inconsistências33 e recurso aos princípiosconstitucionais, tanto os instrumentais quanto os materiais, advertin-do que os critérios não se voltam para o problema, igualmente crucialna avaliação da legitimidade da fundamentação, do acerto na identi-ficação dos fatos relevantes e na escolha das normas aplicáveis.

Para tentar eliminar o alto grau desubjetivismo que o neoconstitucionalismo

enseja, (...) é preciso compreender as etapasde aplicação da ponderação de

bens e, finalmente, buscar critérios paraorientar esta aplicação.

A esta altura, Barroso reconhece que é certo, no entanto, quecada uma das três etapas descritas acima – identificação das nor-mas pertinentes, seleção dos fatos relevantes e atribuição geral depesos, com a produção de uma conclusão – envolve avaliações decaráter subjetivo, que poderão variar em função das circunstânciaspessoais do intérprete e de outras tantas influências.

Aponta a falta de critérios apriorísticos para o exame da regu-laridade da ponderação, ao dizer: a ponderação, embora prevejaa atribuição de pesos diversos aos fatores relevantes de umadeterminada situação, não fornece referências materiais ou

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Nesse contexto, destaco a observa-ção de Barroso: como é corrente, toda equalquer decisão judicial deve ser moti-vada quanto aos fatos e quanto ao direi-to; mas quando uma decisão judicialenvolve a técnica da ponderação, o de-ver de motivar torna-se ainda mais gra-ve. Nesses casos, como visto, o julgadorpercorre um caminho muito mais longoe acidentado para chegar à conclusão. Éseu dever constitucional guiar as partespor essa viagem, demonstrando, em cadaponto, porque decidiu por uma direçãoou sentido e não por outro.

Em sentido semelhante é o magistériodo genial Michele Taruffo, para quem amotivação da sentença judicial em um Es-tado democrático de Direito deve apresen-tar um conteúdo mínimo, que compreen-de: a enunciação das escolhas feitas paraidentificar as normas aplicáveis e para oacertamento dos fatos34, a atribuição dequalificação jurídica à fatispécie e a extra-ção das conseqüências jurídicas; o conjun-to dos nexos de implicação e coerência entreesses enunciados; a justificação de cadaenunciado com base em critérios de julga-mento segundo os quais a escolha do juizaparecem como racionalmente corretas.

Não se trata de um controle de meralogicidade ou validade formal do raciocíniodo juiz, mas principalmente de uma verifi-cação da congruência das escolhas do juizcom os valores da sociedade, ou seja deum controle essencialmente político sobreo fundamento de justiça da decisão35.

Evidentemente, para que o controleda racionalidade da motivação trabalhesobre um objeto concreto – e não sobreuma miragem – é necessário que o juizexpresse com clareza e sinceridade suasrazões. A motivação, de fato, deve descre-ver o caminho percorrido pelo juiz, entrealegações das partes e fatos julgados rele-vantes para a causa, assim como entre re-gras, princípios e os valores subjacentes aambas as espécies normativas.

Isso é aplicável a todos os ramos doDireito, mas apresenta uma conotação ex-cepcional em relação às relações jurídicasprivadas, tendo em conta que do particularnão há quem exista unicamente para pro-mover o bem-estar de seu povo, como é ocaso do Estado, e que para o particular asegurança jurídica constitui valor de enormeexpressão, até mesmo para poderdimensionar criteriosamente os custos dasobrigações assumidas. Afinal, ao particular

não é dado valer-se de moratórias como oescandaloso sistema de precatórios judiciaispara o (não) pagamento de suas dívidas.

No campo específico do Direito Pri-vado, Maria Celina Bodin de Moraes sen-tencia que ao interprete incumbirá, pois,em virtude de verdadeira cláusula geralde tutela dos direitos da pessoa huma-na privilegiar os valores existenciais sem-pre que a eles se contrapuserem os va-lores patrimoniais36.

der também se manifesta no seio da socie-dade. Assim, se o propósito dos direitosfundamentais é proteger a liberdade e adignidade humana, é preciso garantir essaproteção quando se trate de ameaças pro-vindas de poderes públicos e privados;

3) É preciso assegurar aos indivíduosuma esfera imune à ação do Estado. Osvalores assentados na constituição nãopodem servir de fundamento à interven-ção estatal em todos os setores da vida das

(...) onde estiver em jogo um direito da personalidade ou oestado civil (...) a alta densidade existencial implicará rigorosalimitação da autonomia privada e funcionalização absoluta darelação jurídica à promoção da dignidade da pessoa humanade todos os seus participantes.

Esta sentença precisa ser – muito bem– contextualizada. Seria absurdo sustentarque qualquer valor existencial deve sobre-pujar qualquer valor patrimonial e concluirque a cláusula geral dos direitos da pessoahumana significaria, por exemplo, que “ofreguês tem sempre razão” nas relações deconsumo, fazendo-se tábula rasa de con-tratos que nada têm de abusivos, apenasporque a execução forçada das obrigaçõesassumidas pelo consumidor lhe gera triste-za e, portanto, afeta sua dimensão existen-cial. Onde não houver ofensa à dignidadeda pessoa humana, o patrimônio pode – edeve – ser tutelado.

5 PARÂMETROS DE APLICAÇÃODOS DIREITOS FUNDAMENTAISNAS RELAÇÕES JURÍDICASPRIVADAS

Como observa Jane Reis GonçalvesPereira, há certas “noções-chave” geralmen-te aceitas em termos de incidência dos di-reitos fundamentais nas relações jurídicasprivadas, que convém deixar assentadaspara a boa fluência da exposição:

1) O poder do Estado não se mani-festa apenas por meio dos entes e órgãosgovernamentais. Há certas instâncias pri-vadas que atuam em áreas antes reserva-das ao poder público, por delegação, ouque recebem incentivos ou apoio do Esta-do. Nesses casos, não seria legítimo tê-lascomo imunes às limitações que seriampostas à atuação do Estado caso este de-sempenhasse as funções que incentiva outransferiu a terceiros;

2) As relações sociais não são sempreiguais ou paritárias, e o fenômeno do po-

pessoas, sendo necessário assegurar umâmbito de autonomia individual inviolável.Nessa seara particular, às pessoas deve sergarantido o poder de agir de acordo comsua vontade, mesmo que essa vontade nãoseja razoável. Trata-se de proteger, comoafirmou Louis Henkin, “the individualsfreedom to be irracional”.

4) A aplicação irrestrita dos direitosfundamentais nas relações entre particu-lares poderia implicar uma indesejadahomogeneização da sociedade, já que aobrigação de respeitá-los de forma abso-luta e incondicional aniquilaria a individu-alidade e a pluralidade37.

Portanto, atualmente existe forteconvergência na doutrina e jurisprudên-cia brasileiras quanto à vinculação diretados particulares aos direitos fundamen-tais38 e quanto à impossibilidade de exi-gir-se dos atores privados o quanto seexige dos atores públicos, embora se re-conheça uma franca carência de critéri-os mais palpáveis para a aplicação dametodologia civil-constitucional.

Neste sentido, anota DanielSarmento39: Portanto, observa-se que, deum modo geral, entre os autores que cui-daram da matéria, prevalece a tese davinculação direta dos particulares aos di-reitos constitucionais.

Já na jurisprudência brasileira ocor-re um fenômeno de certa forma curio-so. Não são tão escassas as decisõesjudiciais utilizando diretamente os direi-tos fundamentais para dirimir conflitosde caráter privado. Porém, com rarasexceções, esses julgamentos não sãoprecedidos de nenhuma fundamenta-

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ção teórica que dê lastro à aplicação do preceito constitucio-nal ao litígio entre particulares. Na verdade, somente agoravem encontrando eco nos nossos pretórios a fértil discussãosobre os condicionamentos e limites para aplicação dos direi-tos humanos na esfera privada40.

Apresento adiante alguns parâmetros para a aplicação diretados direitos fundamentais às relações jurídicas privadas, com aressalva de que a enumeração a seguir não se mostra exaustiva enão se pretende definitiva, considerando que o tema carece demaior reflexão pela doutrina e jurisprudência brasileiras.

intransigente de um tratamento igualitário entre os filhos, indepen-dente de sua origem (matrimonial, adulterina, incestuosa ou natu-ral) ou mesmo entre filhos da mesma origem (basta lembrar que aanulabilidade da venda de ascendente a descendente, sem o con-sentimento dos demais descendentes50), não havendo espaço paratergiversações diante dos explícitos termos do § 6° do art. 227 daConstituição da República51.

O impacto dos direitos fundamentais nas relações de paren-tesco também pode-se revelar na partilha de bens.

Imagine-se a seguinte hipótese: um casal resolve dissolver aunião estável, resultando da união um filho pequeno e havendo apartilhar uma casa modesta. A mãe, que auferia parcos rendimen-tos, recebeu a guarda do filho. O pai, que auferia rendimentos maissignificativos como trabalhador autônomo, passa a prestar modes-tos alimentos ao filho, tendo escrito estes fixados de acordo com arenda que o pai alega auferir, renda esta muito menor do que anecessária para concretizar todas as suas realizações desde a disso-lução da união estável: constituir nova família, gerar novos filhos econstruir uma nova casa.

De toda sorte, sendo o pai trabalhador autônomo e conside-rando que sua nova companheira também atua como trabalhado-ra autônoma, não há meios de apurar se o pai oculta sua verdadei-ra renda para furtar-se a prestar alimentos de maior monta ao filhoque já não lhe interessa tanto proteger.

Além disso, por qualquer razão, constata-se que a mãe nãoconsegue obter a assistência jurídica adequada para promoveruma ação revisional de alimentos, visando a obter do pai novosalimentos que se transfigurem no direito de moradia sobre aqueleimóvel de propriedade conjunta de pai e mãe, que nenhuma faltafaz ao pai ausente.

As únicas certezas são a de que há um único imóvel a partilhare a de que a sua alienação deixará ao relento mãe e filho, pois aquota-parte de cada companheiro na partilha não é suficiente paraa aquisição de novo imóvel.

Nessa hipótese, a solução a ser dada tendo em conta a digni-dade da pessoa humana e a proteção prioritária da criança e doadolescente é a decretação da partilha sob a forma de condomíniosimples, com duração mínima equivalente ao tempo que restarpara a maioridade do filho do casal, data a partir da qual é facultadoaos condôminos promover a dissolução do condomínio: nestecaso, o valor patrimonial consistente na livre disposição dos benspelo ex-companheiro pai cede passo ao valor existencial consistentena preservação da moradia da família monoparental constituídapelo filho e sua mãe.

Nesta ordem de idéias, percebe-se como visível preferênciado direito à moradia sobre a autonomia privada, no momento dapartilha de bens, a própria formulação do art. 1.831 do Código Civil(ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens,será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba naherança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel des-tinado à residência da família, desde que seja o único daquelanatureza a inventariar.).

5.2 GRAU DE ESSENCIALIDADE DO BEMO Direito não trata todos os bens objeto de relações jurídicas

da mesma forma, mesmo porque é intuitivo que os bens supérflu-os não têm o mesmo valor social que os bens essenciais: a solidari-edade humana não se volta (ao menos prioritariamente) a futilida-

Tratando-se da aplicação direta dos direitosfundamentais às relações privadas, caberá ao

juiz adotar soluções tendentes aassegurar o acesso da pessoa ao bem

essencial, sem prejuízo da justacompensação devida ao particular.

o regime de culpa na separação e divórcio (e, por extensão, nadissolução da união estável): a culpa do cônjuge (ou, mutatismutandis, do companheiro) não deve ter qualquer reflexo na dis-ciplina da guarda e visitação dos filhos, que deve ser projetada demodo a satisfazer o melhor interesse da criança ou adolescente;não deve influir na partilha de bens ou na prestação de alimentosnaturais48 e, não deverá implicar perda do nome, se este passar acompor sua identidade do cônjuge “culpado” na vida social49.

Outro reflexo muito evidente dos direitos fundamentais nasrelações privadas de denso conteúdo existencial reside na exigência

5.1 GRAU DE EXISTENCIALISMO DA RELAÇÃOO primeiro parâmetro de aplicação dos direitos fundamentais

às relações jurídicas privadas deve ser o seu grau de existencialismo,ou seja, deve-se atribuir diferente peso aos direitos fundamentaisconforme esteja em jogo uma relação jurídica de conteúdo predo-minantemente existencial ou patrimonial. E assim é porque a digni-dade da pessoa humana não se expressa prioritariamente em rela-ções de conteúdo meramente patrimonial, mas sim em questõesexistenciais, nas quais o patrimônio só adquire relevo no plano daproteção ao mínimo existencial.

Neste passo, onde estiver em jogo um direito da personalida-de41 ou o estado civil42 – seja em relações de parentesco, seja emrelações de matrimonialidade-companheirismo, seja em outra es-pécie de relação afetiva (caso dos homossexuais43 e dos heterosse-xuais impedidos de constituir união estável44 que constituem umaunião pública, duradoura e baseada no amor), a alta densidadeexistencial implicará rigorosa limitação da autonomia privada efuncionalização absoluta da relação jurídica à promoção da digni-dade da pessoa humana de todos os seus participantes45.

Esta perspectiva conduziu à equiparação da união estável aocasamento em relação aos direitos e deveres que decorrem daconsideração do casamento como espécie de família, sem que seperdesse de vista a perspectiva de que a equiparação não se podeestender em relação aos direitos e deveres que decorram do casa-mento enquanto ato jurídico solene (como a necessidade de ou-torga uxória e vênia marital para a alienação ou reivindicação dedireitos sobre bens imóveis e a prestação de fiança ou aval, salvoquando o regime de bens for o da separação absoluta) 46,47.

Na mesma linha de pensamento, pode-se considerar abolido

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des, preocupando o ser humano muitomais a sobrevivência do que o status.

Não é sem motivo, por exemplo, queo imposto sobre produtos industrializa-dos e que o imposto sobre circulação demercadorias e serviços têm suas alíquotasfixadas de acordo com a essencialidadedo produto ou serviço (art. 153, § 3°, I eart. 155, § 2°, III, da Constituição da Re-pública). E, no campo das relações jurí-dicas privadas, também não é casual aclassificação das benfeitorias em neces-sárias, úteis e voluptuárias (art. 1.219 e1.220 do Código Civil).

É que a essencialidade do bem estáligada à sua proximidade com a idéia demínimo existencial, ou seja, do conjuntode bens necessários a uma existência dig-na: quanto mais essencial o bem, maiora proteção do ordenamento jurídico àpessoa que dele necessita, porque a rela-ção jurídica de acesso ao bem sofre aincidência da tutela prioritária da digni-dade da pessoa humana52.

Com relação aos contratos, TeresaNegreiros observa:

Os contratos que versem sobre aaquisição ou a utilização de bens que,considerando a sua destinação, são ti-dos como essenciais estão sujeitos a umregime tutelar, justificado pela necessi-dade de proteção da parte vulnerável –assim entendida a parte contratante quenecessita do bem em questão –; e, vice-versa, no extremo oposto, os contratosque tenham por objeto bens supérfluosregem-se predominantemente pelos prin-cípios do direito contratual clássico, vi-gorando aqui a regra da mínima inter-venção heterônoma53.

Não existe uma rígida enumeraçãodos bens essenciais. Há valiosas balizaspara sua identificação, como as apresen-tadas por Ana Paula de Barcellos, que re-fere a saúde básica, o ensino fundamen-tal, a assistência aos desamparados e aassistência judiciária54 e as apresentadaspor Teresa Negreiros, que lembra o inc. IVdo art. 7° da Constituição (o salário míni-mo do brasileiro deve ser capaz de aten-der a suas necessidades vitais básicas eàs de sua família com moradia, alimen-tação, educação, saúde, lazer, vestuário,higiene, transporte e previdência social)e os arts. 10 e 11 da Lei n. 7.783/89 (Lei deGreve), concluindo que também aqui sefaz necessária a atividade criativa do juizno exame do caso concreto55.

O paradigma da essencialidade é ca-paz de explicar, por exemplo, a razão de oEstado intervir intensamente em determina-das atividades econômicas que, embora aber-tas à iniciativa privada, têm a liberdade decontratar e a liberdade contratual limitadasconforme regulamentações específicas, comoé o caso dos planos privados de assistência àsaúde (art. 199 da Constituição da Repúbli-ca), sujeito à Lei n. 9.656/98 e à regulamen-tação do Conselho Nacional de Saúde Su-plementar (CONSU) e da Agência Nacionalde Saúde Suplementar (ANS) e do ensino(art. 209 da Constituição da República), su-jeito à Lei n. 9.394/96 e à regulamentaçãodo Ministério da Educação e Cultura (MEC)e dos Conselhos de Educação.

Do mesmo modo, a essencialidadeexplica o regime geral de impenhora-bilidades e o regime do bem de família(que, a despeito no nome, é extensivo aoindivíduo que vive sozinho, precisamenteporque constitui reflexo da dignidade dapessoa humana).

Tratando-se da aplicação direta dosdireitos fundamentais às relações privadas,caberá ao juiz adotar soluções tendentes aassegurar o acesso da pessoa ao bem es-sencial, sem prejuízo da justa compensa-ção devida ao particular.

ção jurídica a um plano secundário (parafins de aplicação direta dois direitos funda-mentais, o objeto é analisado sob a pers-pectiva da essencialidade).

Um exemplo ilustra bem o que se pre-tende demonstrar: o fornecimento de ener-gia elétrica é um serviço público essencial(o que atrai o paradigma da essencialidade),mas o desenvolvimento da relação jurídicaentre o fornecedor e o consumidor é com-pletamente diverso se o consumidor foruma pessoa comum ou uma grande usinaprodutora de gases industriais.

No primeiro caso, não há possibilida-de de escolha entre fornecedores e, comoo serviço contratado é essencial, a liberda-de de contratar é praticamente inexistente:a pessoa se vê diante de um contrato cati-vo de longa duração.

No segundo caso, existe uma efeti-va liberdade de contratar, considerandoque o consumidor pode adquirir a ener-gia elétrica de vários fornecedores, defi-nindo inclusive a quantidade a serfornecida durante cada período do ano,contratando em separado o serviço dedistribuição da energia entre o fornece-dor escolhido e o local do consumo.Nesse caso, existe um expressivo podernegocial do consumidor.

(...) o Estado observa o mais intensamente quanto possível osdireitos fundamentais dos particulares porque, (...) o simplesfato de se tratar de uma entidade custeada pelo povo a tornanecessariamente comprometida com a efetivação dos direitosfundamentais, inclusive os sociais, políticos e econômicos.

5.3 GRAU DE DESEQUILÍBRIOENTRE AS PESSOAS

O Direito Privado contemporâneonão ignora que as relações jurídicas muitasvezes são assimétricas, isto é, travam-seentre pessoas em condições desiguais, oque justifica, dentro de parâmetros razoá-veis, a adoção das “ações afirmativas” peloPoder Público. Na relação entre os particu-lares, a vulnerabilidade de um dos particu-lares em relação ao outro se mostra maisevidente no campo contratual (embora, fi-que claro desde logo, o fenômeno não serestrinja o campo dos contratos), em que adesigualdade pode se apresentar tanto naliberdade de contratar quanto na liberda-de contratual.

Sob essa perspectiva, é necessárioanalisar a específica condição do particularfrente ao outro, passando o objeto da rela-

Para evitar que se instale entre os par-ticulares uma relação de dominação, osdireitos fundamentais devem ser aplicadosdiretamente às relações jurídicas privadas,de modo a neutralizar (ou, ao menos, ate-nuar) os efeitos práticos da assimetria exis-tente entre os particulares e assegurar, oquanto possível, que a relação jurídica sedesenvolva de forma semelhante à que sedaria entre pessoas livres e iguais.

Para isso, é necessário analisar cadaespécie de relação jurídica privada e identi-ficar o aspecto que compromete aeqüidistância ideal dos particulares em re-lação ao bem jurídico considerado, paraque se criem mecanismos que impeçamum particular de explorar o ponto vulnerá-vel do outro particular, de modo a obtervantagens desarrazoadas.

No sentido do exposto é a opinião de

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Daniel Sarmento: a desigualdade material justifica a ampliaçãoda proteção dos direitos fundamentais na esfera privada, porquese parte da premissa de que a assimetria de poder prejudica oexercício da autonomia privada das partes mais débeis56,57.

Dessa forma, em relação aos contratos, afirma Teresa Negreiros:Com efeito, a constitucionalização do direito civil, institu-

indo a dignidade da pessoa humana como valor a ser res-guardado em toda e qualquer relação jurídica, repercute nodireito contratual, alterando o modo de se ver o contratante:o conceito abstrato e atomizado, próprio a uma concepçãoindividualista, é substituído por um conceito que ganha emconcretude e que põe à mostra o caráter desigual, e por issoinjusto, de certas relações contratuais58.

Cabe o esclarecimento de que a incidência dos direitos funda-mentais em relações jurídicas privadas assimétricas não significanecessariamente que o particular mais fraco deve ter acesso incon-dicional ao bem jurídico, tendo em vista que os particulares deten-tores de poderes sociais são também titulares de direitos funda-mentais, e sua autonomia privada não deixa de ser protegidaconstitucionalmente59. Ou seja: os direitos fundamentais devematuar no estrito limite da equiparação prática das partes.

5.4 GRAU DE PUBLICISMO DAS PESSOASO Estado, no exercício de suas funções públicas, está mais

fortemente vinculado do que os particulares aos direitos funda-mentais. Do mesmo modo, concessionários e permissionários deserviços públicos estão tão fortemente vinculados ao respeito e àpromoção dos direitos fundamentais quanto o Estado, ressalvadoo respeito dos direitos do particular estabelecidos na concessão oupermissão, os quais, evidentemente, também devem passar pelocrivo do controle de legalidade e de constitucionalidade.

Quando desempenha atividades tipicamente privadas, o Esta-do observa o mais intensamente quanto possível os direitos funda-mentais dos particulares porque, embora exerça atividade privada,o simples fato de se tratar de uma entidade custeada pelo povo atorna necessariamente comprometida com a efetivação dos direi-tos fundamentais, inclusive os sociais, políticos e econômicos.

Do mesmo modo, estão intensamente vinculadas à promo-ção dos direitos fundamentais as organizações sociais, disciplinadasna esfera federal pela Lei n. 9.637/98, as chamadas “entidades deapoio” previstas pela Lei n. 8.958/94 e os serviços sociais autôno-mos (Sesi, Senai, Senac).

Daniel Sarmento observa haver determinadas entidades que,embora tenham natureza jurídica privada e não exerça propriamen-te um serviço público, praticam atividades de relevante interessepúblico, por alguma espécie de permissão legal, como é o caso doEcad – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, pessoa jurí-dica de direito privado encarregada da proteção dos direitos autoraisnos termos da Lei n. 5.988/73 e, atualmente, da Lei n. 9.610/98 e dasassociações musicais que o administram (como a União Brasileira deCompositores – UBM), lembrando interessante precedente do Su-premo Tribunal Federal em que a decisão de exclusão sumária de ummúsico por parte da UBM foi declarada nula por infração à garantiafundamental do devido processo legal (Recurso Extraordinário n.201.819/RJ, Segunda Turma, Relator para o acórdão Ministro GilmarMendes, publicado no DJ em 27/10/2006, p. 64)60, 61.

Em suma, na feliz síntese de Jane dos Reis Gonçalves Pereira,outro aspecto a ser considerado é a proximidade da relação

jurídica da esfera pública (...) Quanto mais próxima à esfera priva-da revelar-se uma relação jurídica, menor a possibilidade de umdireito fundamental vir a prevalecer sobre a autonomia privada62.

5.5 GRAU DE INGERÊNCIA NA ESFERA JURÍDICAALHEIA

A proteção aos direitos fundamentais tenderá a ser mais os-tensiva nas hipóteses em que há uma decisão heterônoma sobre asituação jurídica do particular, ou seja, quando a situação jurídicado particular não foi formada com o seu concurso direto e especí-fico (como, por exemplo, na punição por falta disciplinar do em-pregado).

Na feliz síntese de Daniel Sarmento: Quando o atingido nãoparticipa do ato gerador da lesão ao seu direito fundamental,está em jogo apenas a autonomia privada de outra parte darelação jurídica. Neste caso, o peso atribuído à autonomia priva-da é menor 63.

É sob este aspecto que se pode vislumbrar a incidência dosdireitos políticos nas relações jurídicas privadas, especialmente quantoà capacidade de autodeterminação coletiva: o direito de cada umde participar da discussão e da tomada de decisões importantesque o afetem, nos espaços de vida comunitária de que participe64.

Ilustrativo dessa situação é o exemplo, desenvolvido em estu-dos anteriores65, do direito do locatário de participar de delibera-ções condominiais, apesar do silêncio do Código Civil de 2002(que não repetiu a previsão de voto do locatário prevista no § 4°do art. 24 da Lei n. 4.591/64 – previsão que enfim também nãoatendia inteiramente à posição que aqui vem defendida, porqueconferia ao locatário o poder de voto somente na ausência dolocador), especialmente em matérias atinentes às despesas ordiná-rias e aos assuntos do cotidiano da vida condominial.

Reproduzido breve passagem de estudo anterior:Estando em discussão a majoração de despesas ordinárias, o

locatário será diretamente afetado pela decisão da assembléia geralde condôminos. É evidente que o locatário poderá comparecer àassembléia, que de resto vai tratar de matéria para ele relevante,mesmo porque é assegurado a todos o acesso à informação, nostermos do art. 5°, XIV, da Constituição da República.

Mais: estará o locatário habilitado a votar e apresentar pro-postas, no que diga respeito às despesas ordinárias, pois não seconcebe numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, I, da Cons-tituição Federal) que uma pessoa seja afetada por uma decisão semque lhe tenha sido dada a oportunidade de participar do processodecisório, por si ou por seu representante regularmente constituí-do, o que, aliás, é uma decorrência lógica do princípio democrático,que se traduz na ordem jurídica atual pela democracia representa-tiva (art. 1°, caput e parágrafo único, da Constituição Federal).

Lembre-se, aliás, que toda propriedade (e o condomínio emedifícios nada mais é do que uma forma de propriedade) devecumprir sua função social, nos termos do art. 5°, XXIII, da Constitui-ção da República, sendo certo que o desempenho desta funçãosocial está intimamente atrelado aos princípios fundamentais daRepública e à promoção do pleno desenvolvimento das funçõessociais da cidade e do bem-estar de seus habitantes.

(...)No condomínio em edifício, tem-se uma autêntica zona de

intersecção entre o plano individual e o plano coletivo da cidade.A constatação disso salta aos olhos na primeira – e mais impor-

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tante – deliberação da assembléia decondôminos, que é a aprovação da con-venção de condomínio, ato-regra que tra-ça as normas básicas de convivência na-quele microcosmo social 66.

Outro campo de aplicação fértil destecritério é o da participação do particular naadministração de clubes, associações e sin-dicatos, cujo controle muitas vezes é entre-gue, pelos mais diversos artifícios, a umaparcela diminuta de pessoas, que, não-raro,adotam medidas contrárias ao interesse damaioria numérica.

Sustentar a gradação da incidênciados direitos fundamentais de acordo coma ingerência na esfera jurídica alheia nãoimplica atribuir um direito de participaçãodireta nas decisões nas hipóteses em que alei ou o ato jurídico, validamente, afastemou restrinjam esta espécie de participação.

Imagine-se, por exemplo, que um de-tentor de ações preferenciais deseje ter osmesmos direitos do detentor de ações or-dinárias (arts. 15 e ss. da Lei n. 6.404/76).Neste caso, sua pretensão deverá serrepelida porque o detentor de ações prefe-renciais tem plena ciência de que seu rela-cionamento com a sociedade por ações éapenas especulativo, ressalvadas sempre asmedidas cabíveis na esfera administrativa,criminal e civil em hipóteses de má-fé doadministrador ou de qualquer órgãosocietário.

REFERÊNCIAS1 O próprio conteúdo do neoconstitu-

cionalismo é instável, como observa MiguelCarbonell: Lo que haya de ser elneoconstitucionalismo en su aplicaciónpráctica y en su dimensión teórica es algoque está por verse. No se trata, como seacaba de apuntar, de un modelo consolida-do, y quizá ni siquiera pueda llegar aestabilizarse en el corto plazo, pues contieneen su interior una serie de equilibrios quedifícilmente pueden llegar a convivir sin pro-blemas. Pensemos simplemente en la téc-nica de la ponderación de bienesconstitucionales, la cual no se presta a solu-ciones generales que sirvan para todos loscasos y para todos los países. (NuevosTiempos para el Neoconstitucionalismo.Miguel Carbonell (org.). Neoconstitu-cionalismo(s). Madrid: Editoral Trotta, 2003,p. 9-12.

2 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil.Trad. Maria Cristina De Cicco Rio de Janeiro:Renovar. 1999. p. 12.

3 BIORGIANI, Michele. O Direito Privado e suasatuais fronteiras.Trad. Maria Cristina De Cicco.Separata da Revista dos Tribunais, São Pau-lo, v. 747, n. 87, p. 35-55. jan. 1998.

4 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia.

Trad. de Ruy Jungmann, passim Rio de Janei-ro: Jorge Zahar Editor, 1991.

5 Como observa o aclamado Otfried Höffe,em aguda crítica à teoria de justiça sem pa-drão de justiça formulada por Robert Nozick(Justiça Política. Trad. Ernildo Stein, São Pau-lo: Martins Fontes, 2001, p. 423).

6 GOMES, Orlando. A agonia do Código Civil.Revista de Direito Comparado Luso-Brasilei-ro, v. 10, p. 1-9. 1986.

7 PERLINGIERI, Pietro. op. cit ., p. 3.8 Idem, p. 12.9 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais

e relações privadas. 2ª. ed. Rio de Janeiro:Lumen Júris. 2006. p. 257.

10 Idem, p. 258.11 Idem, p. 246.12 Destacam-se, em sua produção acadêmica, os

ensaios Premissas metodológicas para aconstitucionalização do Direito Civil. Temas dedireito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar,2004, p. 1-22 e, mais recentemente, Normasconstitucionais e relações de Direito Civil naexperiência brasileira. Temas de direito civil.Rio de Janeiro: Renovar, 2006, t. 2, p. 21-46.

13 Destacam-se, na sua produção acadêmica, osensaios: A caminho de um direito civil cons-titucional. Revista de Direito Civil, São Paulo,n. 65, p. 21-32, 1993, e, mais recentemente,Constituição e Direito Civil: Tendências. Di-reito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, n.15, p. 95-113, ago./dez. 1999.

14 A questão está mais associada à razoabilidadedo critério de discrímen do que à discrimina-ção em si, como teve a oportunidade dedemonstrar Celso Antônio Bandeira de Mellona clássica monografia Conteúdo jurídico doprincípio da igualdade. 3. ed. São Paulo:Malheiros, 2006.

15 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conteú-do de dignidade humana: substrato axiológicoe conteúdo normativo. Constituição, direitosfundamentais e direito privado . IngoWolfgang Sarlet (coord.) 2. ed. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2006. p. 107-149.

16 O professor paulista observa que não se deveconfundir a eutanásia com a ortotanásia. Amatéria é objeto da recente Resolução n.1.805 do Conselho Federal de Medicina(D.O.U. em 28 nov. 2006, Seção I, p. 169).

17 O aborto é um dos temas mais complexos e(insuperavelmente) controversos doBiodireito. No amplo espectro que vai daadmissão irrestrita (como ocorre na Grã-Bretanha e na França) até a criminalização(como ocorre no Brasil), há situações especí-ficas como a da chamada “antecipação tera-pêutica do parto” em casos de anomalia fetal,objeto da Ação por Descumprimento de Pre-ceito Fundamental n. 54-8/DF.

18 Discute-se, na atualidade, a admissibilidadede exceções ao preceito, sendo os mais co-nhecidos os casos de aceitação da torturasobre terroristas (uma das propostas do quese convencionou chamar “Direito Penal doInimigo” e da condução manu militari do réuem “ação de investigação de paternidade”que se recuse a fornecer seu material gené-tico para o Exame de DNA. Sobre esta últimapossibilidade, confira-se a favor, por todos:MORAES, Maria Celina Bodin de. Recusa doRéu em Submeter-se ao Exame de DNA naInvestigação de Paternidade: Conseqüênciasda Recusa. Revista do Ministério Público, Riode Janeiro, n. 10, p. 141-151, 1999) e contra,

por todos: AZEVEDO, Antônio Junqueira de.(Caracterização Jurídica da Dignidade da Pes-soa Humana. Estudos e pareceres de direitoprivado. São Paulo: Saraiva, 2004, especial-mente p. 17).

19 Nas palavras do professor paulista: Os autoresnacionais parece que ainda não seconscientizaram de que a obrigação de se-gurança, tão firmemente referida nos arts.8°, 9° e 10 do Código de Defesa do Consu-midor (Seção: ‘Da proteção à saúde e segu-rança’), tem sede constitucional, seja comodecorrência do princípio da dignidade, sejapor força do caput do art. 5° da CR. (...) Éimportante dizer: em matéria de danos àpessoa, a regra é hoje a responsabilidadeobjetiva. A responsabilidade subjetiva, nes-se campo, atualmente é a exceção. A res-ponsabilidade objetiva, na obrigação de se-gurança, surge agora diretamente da Cons-tituição (não é da lei ou jurisprudência);somente haverá responsabilidade subjetivaquando houver lei expressa (p. ex., na res-ponsabilidade médica – na qual, assimmesmo, há inversão do ônus da prova, por-que a prova deve ser feita por quem temmelhores condições para fazê-la). A admis-são da responsabilidade subjetiva comoexceção á responsabilidade objetiva consti-tucional é admissível, porque os preceitosdecorrentes dos princípios jurídicos não sãoabsolutos.” (AZEVEDO, op. cit., p. 18).

20 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídicados princípios constitucionais: o princípio dadignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro:Renovar, 2002. p. 110 e 112.

21 Interessante: em matéria publicada no jornalO Globo, de 10 de dezembro de 2006, fez-se referência a casos de pessoas beneficia-das com o bolsa-família que simplesmentenão buscavam emprego, porque receberiamapós um mês de trabalho árduo algo próxi-mo ao que já recebiam sem fazer esforço.

22 Com efeito, educação e saúde formam umprimeiro momento da dignidade humana,no qual se procuram assegurar condiçõesiniciais tais que o indivíduo seja capaz deconstruir, a partir delas, sua própria dignida-de autonomamente. Observe-se que, em-bora se faça referência a um momento ini-cial, essas prestações não se concentramnecessariamente na infância e na juventu-de: a saúde básica será um elemento queacompanhará a pessoa por toda a sua exis-tência e a educação fundamental poderávir a ser prestada em qualquer fase da vida,caso não o tenha sido na infância.

A assistência aos desamparados, por sua vez,identifica um conjunto de pretensões cujoobjetivo é evitar a indignidade em termosabsolutos, envolvendo particularmente a ali-mentação, o vestuário e o abrigo. É o direitode não “cair abaixo de um determinado pata-mar mínimo”, independentemente de qual-quer coisa.

Como se pode intuir, a assistência aos desam-parados poderá ser prestada simultanea-mente à educação e à saúde, de formacomplementar a estes dois elementos. (...)A assistência aos desamparados poderátambém, em outros casos, sinalizar o fra-casso daquela primeira fase, isto é: nadaobstante a prestação de saúde e educação,aquele indivíduo não foi capaz de se desen-volver sozinho, necessitando de assistência.

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O acesso à justiça, por fim, é o elementoinstrumental e indispensável da eficáciapositiva ou simétrica reconhecida aos ele-mentos matertiais do mínimo existencial.(BARCELLOS, op. cit., p. 259-260).

23 SARLET, Ingo Wolf. Dignidade da pessoahumana e direitos fundamentais na Consti-tuição federal de 1988. 4. ed. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2006, p. 60.

24 Dignidade da pessoa humana e direitos fun-damentais na Constituição federal de 1988,op cit ., p. 84-85.

25 Idem. p. 97-98.26 Idem. p. 124.27 Idem. p. 125.28 SARLET, Ingo Wolf. A eficácia dos direitos

fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livrariado Advogado, 2006, p. 401.

29 BARROSO, Luís Roberto. O Começo da His-tória. A Nova Interpretação Constitucional e oPapel dos Princípios no Direito Brasileiro.Temas de Direito Constitucional. Rio de Ja-neiro: Renovar, 2005. t. 3, p. 3-59, especial-mente p. 22 a 24.

30 A tese da hierarquia axiológica é sustentada,entre outros, por BARROSO, Luís Roberto.Interpretação e Aplicação da Constituição:fundamentos de uma dogmática constituci-onal transformadora. 2. ed. São Paulo: Sarai-va, 1988. p. 187 e 188.

31 A encruzilhada dogmática não é casual, segun-do o ensinamento de Margarida MariaLacombe Camargo: O direito, apesar de todasua carga dogmática, faz parte de uma tradi-ção filosófica cuja base reside na tópica e naretórica; o que nos leva a acreditar que o seuconhecimento, como criação humana, histó-rica e social, comporta uma dimensãohermenêutica. Voltamos, assim, à nossa po-sição inicial, afirmando que o direito consistena realização de uma prática que envolve ométodo hermenêutico e a técnicaargumentativa. (CAMARGO, Margarida MariaLacombe de. Hermenêutica e Argumentação:Uma contribuição ao Estudo do Direito. 3. ed.Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 259).

32 BARROSO, O começo da história..., op. cit.,p. 27 a 33.

33 Tem-se, aqui, uma interessante variação doimperativo categórico kantiano: onde se lê:age sempre em conformidade com umamáxima que desejarias que pudesse ser aomesmo tempo uma lei universal (KANT,Immanuel. Introdução à Metafísica dos Cos-tumes. Trad. de Edson Bini A Metafísica dosCostumes. São Paulo: Edipro, 2003, p. 67 e68), leia-se: Decide sempre em conformida-de com uma máxima que poderias aplicar atodos os casos semelhantes.

34 Não é demais registrar que “acertar os fatos”é definir os fatos: trata-se da noção proces-sual de acertamento.

35 GRECO, Leonardo. Resenha do Livro deMichele Taruffo. La Motivazione dellasentenza civile (Padova: CEDAM, 1975),mimeografado.

36 MORAES, Maria Celina Bodin de. “A caminhode um direito civil constitucional”. Revista deDireito Civil, São Paulo, n. 65, p. 21-32, 1993.

37 PEREIRA, Jane Reis de. Apontamentos sobrea Aplicação das Normas de Direito Funda-mental nas Relações Jurídicas entre Particu-lares. A nova interpretação constitucional:ponderação, direitos fundamentais e relaçõesprivadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,

p. 119-192, especialmente p. 187-188.38 Em atenção ao consenso formado na doutri-

na brasileira, este estudo se dispensa deanalisar, embora caiba referir, que no planoestrangeiro há amplo debate em torno daeficácia dos direitos fundamentais nas rela-ções privadas, como mostra a resenha deSARMENTO, op. cit ., 2006, p. 185-233.

39 Nas palavras de Daniel Sarmento: De fato,se, por um lado, a jurisprudência pátria vemcaminhando para o reconhecimento de umaampla eficácia dos direitos fundamentaisna esfera privada, por outro, ela o tem feitopraticamente sem qualquer fundamenta-ção jurídica. As decisões parecem basear-semais numa intuição de justiça dos juízes doque numa argumentação dogmática sólida.É preciso avançar neste ponto, para cons-truir alicerces mais firmes na nossa maté-ria, tornando a aplicação dos direitos funda-mentais no âmbito privado intersubje-tivamente controlável, e, na medida do pos-sível, relativamente independente dos hu-mores e das inclinações espirituais e ideoló-gicas dos magistrados. Afinal, se há muitosjuízes bons, justos e equilibrados, há outrostantos que não o são, e os direitos funda-mentais não podem ficar à mercê dopsiquismo e da formação moral de quemquer que seja. (SARMENTO, op. cit ., p. 261)

40 Idem, p. 250.41 Não é o caso, nesta sede, de passar em

revista às teorias monista e pluralista sobreos direitos da personalidade, que, de resto,nada contribuem para o debate central sobreo tema. Como observa Gustavo Tepedino:Nesta direção, não se trataria de enunciarum único direito subjetivo ou classificarmúltiplos direitos da personalidade, senão,mais tecnicamente, de salvaguardar a pes-soa humana em qualquer momento da ati-vidade econômica, quer mediante os espe-cíficos direitos subjetivos (previstos pelaConstituição e pelo legislador especial –saúde, imagem, nome, etc.), quer comoinibidor de tutela jurídica de qualquer atojurídico patrimonial ou extrapatrimonial quenão atenda à realização da personalidade.(ATutela da Personalidade no Ordenamento Ci-vil-constitucional Brasileiro. In Temas de di-reito civil, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar,2004, p. 23-58, especialmente p. 49.

42 Aspecto interessante, relacionado ao estadocivil, é a situação dos transexuais, para quema (re)definição do sexo masculino ou femini-no implica a própria integridade psicofísicada pessoa. Lamentavelmente, a incom-preensão do diferente ainda cerca o tema depreconceitos jocosos no Brasil.

43 No Direito Civil brasileiro, a união homosse-xual ainda não é reconhecida como espéciede família, embora se reconheçam os efei-tos patrimoniais da sociedade de fato. Mascabe o registro de que a legislaçãoprevidenciária já permite que o segurado ins-creva como beneficiário de sua pensão pormorte o companheiro homossexual, o quesinaliza uma tendência para o reconhecimen-to, dependente de uma melhor aceitaçãosocial das relações sexuais entre pessoas domesmo sexo, de uma espécie de famíliahomoafetiva.

44 Como se sabe, o ordenamento jurídico bra-sileiro exige, para a caracterização da uniãoestável, que as pessoas não sejam impedi-

das de casar-se, ressalvado o caso do separa-do de fato ou judicialmente (art. 1.723, § 1°,do Código Civil).

45 Em sentido aparentemente diverso, DanielSarmento pondera que de qualquer forma,esta seara de relações intersubjetivas quese revela mais refratária à incidência diretados direitos fundamentais não é a dos con-tratos e negócios jurídicos de conteúdoeminentemente patrimonial, mas a dasvivências afetivas, quando envolverem op-ções existenciais e personalíssimas da pes-soa humana, que não podem serheteronomamente ditadas, sob pena desacrifício do sagrado espaço de autodeter-minação individual abrigado sob o pálio doprincípio da dignidade da pessoa humana.(Direitos fundamentais e relações privadas,op cit ., p. 269).

46 Conforme o art. 1.647 do Código Civil.47 Neste sentido, TEPEDINO Gustavo. Novas Formas

de Entidades Familiares: efeitos do casamen-to e da família não fundada no matrimônio.Temas de direito civil, op. cit., p. 371-394.

48 Nos termos do § 2° do art. 1.694 do CódigoCivil, que, apesar de manter um resquício do“estatuto da culpa”, parece ter se orientadode modo muito plausível: seria odioso que ocônjuge traído ou ludibriado pelo ex-consorteainda fosse obrigado a custear não só o ne-cessário para sua sobrevivência, mas tam-bém o necessário para a manutenção de seustatus. Imagine-se a possível situação emque parte dos alimentos fossem comparti-lhados entre o cônjuge “culpado” e o cúm-plice da infidelidade, em jantares e motéis.

49 Na linha do que vem afirmado, TEPEDINO,Gustavo. O Papel da Culpa na Separação e noDivórcio. Temas de direito civil, op. cit ., p.417-441.

50 Conforme o art. 496 do Código Civil.51 Neste sentido, cabe a referência a TEPEDINO,

Gustavo (A Disciplina Jurídica da Filiação naPerspectiva Civil-constitucional. Temas dedireito civil, op. cit ., p. 443-488.

52 Em sentido semelhante: SARMENTO, Daniel.Direitos fundamentais, op. cit ., p. 267.

53 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: no-vos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Reno-var, 2006, p. 463.

54 BARCELLOS, op. cit.55 NEGREIROS. op. cit ., p. 473.56 SARMENTO. op. cit., p. 262.57 Observa Teresa Negreiros: De fato, parece

inegável a tendência do direito contratualcontemporâneo em considerar cada vezmais relevantes certos dados pessoais docontratante, como sejam a inexperiência, aleviandade, a pobreza, a doença, a velhice:o que não passa de um desenvolvimentodo princípio segundo o qual um certo nívelde desequilíbrio de poder negocial entre oscontratantes é capaz de legitimar a inter-venção no sentido de reequilibrar a relaçãocontratual (NEGREIROS. op. cit ., p. 328).

58 Idem, p. 337.59 Sarmento. op. cit., p. 266. O autor invoca em

abono da sua conclusão a opinião de IngoWolfgang Sarlet.

60 Idem, p. 251.61 Colhe-se do voto condutor do acórdão que

afigura-se-me decisiva no caso em apreço,tal como destacada, a singular situação daentidade associativa, integrante do sistemaECAD que, como se viu na ADI n° 2.054-DF,

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exerce uma atividade essencial na cobran-ça de direitos autorais, que poderia até con-figurar um serviço público por delegaçãolegislativa.

62 PEREIRA, op. cit., p. 188.63 SARMENTO, op. cit., p. 270.64 Idem, p. 315. O referido autor sustenta a

vinculação dos particulares a direitos políti-cos, sociais não-trabalhistas (ao menos osautônomos) e mesmo aos direi tostransindividuais (onde insere o meio ambi-ente e o patrimônio histórico e cultural). Pa-rece mais adequado, entretanto, respeitar osdireitos políticos na estrita medida apontadana seqüência deste trabalho e os direitossociais nos limites do respeito ao mínimoexistencial, sem considerações sobre a pro-moção dos direitos sociais independente delei, porque tal implicaria em inaceitável afrontaao princípio da legalidade, direito fundamen-tal do cidadão. Do mesmo modo, parecemais adequado exigir o respeito ao meioambiente e ao patrimônio histórico-culturalnos limites da lei, sob pena de instaurar-seinaceitável insegurança jurídica, implicando-se em conseqüências graves o particular queseguiu escrupulosamente as determinaçõesdos órgãos de fiscalização competentes, ob-tendo as autorizações legalmente devidas.

65 Sobre o debate acerca da revogação total ouparcial da primeira parte da Lei de Condomí-nio e Incorporações pelo Código Civil de2002, e os efeitos daí decorrentes (especial-mente o direito do locatário de participar dedeliberações em assembléia), seja consenti-do remeter aos estudos de nossa autoria,intitulados “Condomínio em Edifícios: o pro-blema de sua atual regulamentação na pers-pectiva civil-constitucional”. Revista dos Tri-bunais. São Paulo, v. 841, ano 94, p. 77-86,nov. 2005 e “Direito do Locatário de Partici-par nas Assembléias Condominiais”. Boletimde Direito Imobiliário, São Paulo, v. 24, n. 17,jun. 2004.

66 MARTINS, Condomínio em edifícios, op. cit .,p. 83.

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Artigo recebido em 08/01/2007.

ABSTRACTThe author analyses the effects of

neoconstitutionalism on Private Law,highlighting the importance of evaluatingto which extent constitutional norms applyto the personal sphere, where conflictbetween patrimonial values protected byPrivate Law and existential values set forthin the Brazilian Constitution should betaken into consideration.

As far as he understands it, althoughthere is a general consensus about humanperson’s dignity being a fundamental valuewithin the legal system of any democraticRule of Law, it cannot be said the sameregarding definition of limits and

Samir José Caetano Martins é professorda UBM e advogado no Rio de Janeiro.

possibilities of that dignity, either in relationto the state, or in relation to individuals.

He presents some criteria for thedirect application of fundamental rights toprivate jural relations, such as their level ofexistentialism as well as asset importance,among others.

KEYWORDSPrivate Law; Constitucional Law;

neoconstitutionalism; fundamental right;human person’s dignity; Brazilian FederalConstitution – 1st. article.