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A 4° Dimensão do Direito - Renato Geraldo Mendes

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  • Renato Geraldo Mendes

    A QUARTA DIMENSO DO DIREITO

    Nova teoria sobre a norma jurdicaSuperao da viso tridimensional do Direito

    Abordagem essencial do Direito

    Curitiba 2013

  • Copyright 2013 Editora Znite

    1 edio, julho de 2013.

    Projeto Grfico Celso Bock Reviso Fabia Mariela De Biasi Mariana Bordignon Strachulski de Souza Finalizao Joelma Staviski Sanchez Gomes

    ZNITE EDITORA

    www.zenite.com.br

    [email protected]

    (41) 2109-8666

    MENDES, Renato Geraldo.

    A quarta dimenso do Direito / Renato Geraldo Mendes. Curitiba: Znite, 2013. 192 p.

    ISBN: 978-85-99369-23-4

    Todos os direitos reservados ao autor. expressamente proibida a reproduo total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem prvia autorizao do autor (Lei n 9.610, de 19.02.98, DOU 20.02.98).

    Impresso no Brasil

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 4 RENATO GERALDO MENDES

    Homenagem a um professor singular

    Nenhum ser humano nasce com um mdulo de interpretao para compreender o sentido essencial das coisas. Ao contrrio, nascemos com um mdulo que capta, com muita facilidade, as coisas apenas na sua aparncia. por isso que temos tanta facilidade de viver na (e da) superficialidade. O mdulo que permite compreender a realidade que nos cerca, na sua dimen-so literal, um item de srie que todos possuem. Dessa forma, no preciso fazer nenhum esforo para viver no mundo da aparncia, da mera percepo visual. A apa-rncia a antessala que pode (ou no) nos levar para outro mundo o da essencialidade. Estar nessa antes-sala no depende de nenhum esforo pessoal, basta estar respirando. Para ir alm dela, preciso superar um defeito original de fabricao.

    Quando entramos em uma faculdade de Direito, nin-gum se apresenta oficialmente para nos dizer isso. E per-manecemos na antessala aguardando a diplomao. Alis, essa antessala frequentada tambm pelos professores.

    Durante os cinco anos do curso de Direito, tive mais de 40 professores, e a quase totalidade deles esteve, todo o tempo, sentada na antessala, ressaltando o mundo da aparncia (que, no Direito, sinnimo de literalidade ou de apego ao enunciado prescritivo).

    No entanto, houve um que, quando nos viu senta-dos ali, perguntou: a que vocs iro passar o tempo

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 5 RENATO GERALDO MENDES

    que resta?. Em seguida, nos convidou para viajar. Con-fesso que fiquei perplexo, afinal, ir para onde, se no havia nada e nenhum outro lugar alm da antessala? E ele disse: Sim, existe um lugar, outro mundo a ser visi-tado: o mundo do fundamental.

    Ele fez o convite, mas com algumas ponderaes e uma condio.

    A primeira: todos ns estvamos dispensados da viagem. Ele nos liberou da chamada, que se faz quando a aula comea. Acredito que no queria ningum de corpo presente e de mente ausente.

    A segunda: j estvamos todos aprovados isso no primeiro dia de aula. Cada nota individual seria definida pelo prprio aluno, sendo proibido atribuir a si mesmo qualquer nota menor que 7,0 (mdia para aprovao).

    A terceira: no aceitaria ser paraninfo da turma, no adiantaria insistir, pois recusaria o convite.

    A ltima ponderao: no adotaria o livro padro da disciplina e tambm no daria o programa definido pela Faculdade. Se quisssemos aprender o referido pro-grama, deveramos estudar em casa.

    E para operar o acordo to esperado por todos ns, havia uma nica condio: estaramos obrigados a assis-tir, pelo menos, s duas primeiras aulas. E advertiu: No saiam da sala no intervalo que antecede a minha aula, acho que vocs perdero o lugar, pois os alunos da outra turma viro para c.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 6 RENATO GERALDO MENDES

    Nossa primeira impresso foi a de que ele era um grande petulante. Alguns sentenciaram que, como est-vamos aprovados, no assistiriam s aulas e ele ficaria sozinho na sala.

    Mas havia um acordo: assistir, no mnimo, a duas aulas. Foi a que ele nos pegou.

    Iniciou-se, ento, a viagem em direo a um novo mundo.

    Ele nunca deu nenhuma aula de Direito propria-mente dito, mas proporcionou as melhores lies sobre o Direito que recebi na Faculdade.

    Apesar de estarmos todos aprovados e com pre-sena garantida, no me lembro de nenhum dia em que a sala no estivesse totalmente lotada; e foi assim at o ltimo dia do ano letivo. Curiosamente, os demais pro-fessores faziam a chamada, aplicavam prova, cumpriam com o programa e supostamente ensinavam Direito, mas em nenhuma outra disciplina havia tanta presena e tanto entusiasmo com o aprender.

    Esse mestre fez a diferena ao mostrar para mim (sem que eu pedisse a ele) que h um mundo fascinante depois da antessala, e isso que um professor pode ofe-recer e ensinar a um aluno. Ou melhor, isso o pior que se pode fazer para um aluno... Nunca mais consegui me acomodar na antessala.

    Tambm aprendi com ele que uma s andorinha pode fazer um longo vero, mas nem todos podem pegar uma corzinha.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 7 RENATO GERALDO MENDES

    Este professor singular Vicente Del Prete Misu-relli, hoje Desembargador do Tribunal de Justia do Paran, a quem dedico este trabalho.

    Obrigado pela lio e pelo respeito que teve com todos ns h exatos 30 anos. Voc fez a diferena, pelo menos, para mim!

  • Pensamentos

    Escrever sempre correr o risco de devolver ao desejo sua liberdade.

    (Luis Alberto Warat)

    Com esta citao, extrada da sua obra A Cincia Jurdica e seus dois maridos, presto tambm uma homenagem ao Prof. Warat, importante filsofo e pensador do nosso tempo, que, em meados dos

    anos 80, tive a oportunidade de conhecer.

  • A lei filha da poltica, no da justia. No entanto, a norma filha da justia, no da poltica.1

    preciso sempre lembrar que a leitura da ordem jurdica feita com inmeras lentes, que tm

    graus distintos e, por isso, produzem diferentes interpretaes.

    A modernidade/atualizao do Direito depende mais do intrprete do que do legislador.

    (Renato Geraldo Mendes)

    1 Ao dizer poltica refiro-me ao Poder Legislativo e, ao falar em justia, ao Poder Judicirio.

  • Dedicatrias

    Sinara, mulher e companheira de todos os bons e difceis momentos, meu mais profundo amor,

    respeito e admirao.

    s minhas filhas.

    Agradeo aos amigos Egon Bockmann Moreira e Fbio Tokars pela leitura e consideraes feitas

    nesta obra. Dois juristas singulares, que enxergam as coisas muito alm, com os

    quais tenho a oportunidade de conversar, trocar ideias e aprender.

    Dedico tambm este livro a toda a equipe Znite diretores, gerentes, coordenadores e colaboradores pelo trabalho e esforo em

    transform-la em uma organizao respeitada em todo o Pas.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 11 RENATO GERALDO MENDES

    1. A transmisso da informao e sua compreenso Um dos problemas da humanidade .................................... 21

    2. A ordem jurdica um conjunto de dados ..........................25

    3. No existe norma em estado natural ................................. 28

    4. O que significa interpretar? ............................................... 29

    5. O processo de criao das normas ..................................... 30

    6. H uma ponte entre as duas margens do rio ...................... 31

    7. A forma e o contedo ...........................................................33

    8. O repertrio .........................................................................35

    9. O objeto da interpretao....................................................37

    10. A diferena entre dizer e falar ............................................ 38

    11. Noam Chomsky e o Direito ................................................ 40

    12. O inc. XXI do art. 37 da CF e a gramtica gerativa de Chomsky ......................................................................... 45

    13. O enunciado uma viso parcial do Direito ...................... 51

    14. O Direito e as suas dimenses (2D, 3D e 4D) ........................................................................ 51

    15. A interpretao literal ......................................................... 54

    16. A norma produto da subjetividade...................................61

    17. O enunciado esttico, e a norma dinmica .................. 62

    18. As divergncias doutrinrias e jurisprudenciais ............... 64

    19. O caso da proibio existente nos nibus ....................... 66

    20. Dados veiculam contedos em potencial .......................... 67

    21. O dado (regra) visual, a norma virtual ......................... 68

    22. Quem surgiu primeiro: o dado ou a informao? ............. 69

    Sumrio

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 12 RENATO GERALDO MENDES

    23. O grande problema do aprendizado do Direito ................ 70

    24. A essncia das coisas ............................................................75

    25. Nada absoluto no Direito ..................................................75

    26. Bagunando o coreto .......................................................... 79

    27. Um caso emblemtico: a casa em chamas ......................... 80

    28. Interpretar saber ler o que no est escrito ..................... 84

    29. A interpretao a partir do dado ........................................ 85

    30. O Direito um sistema ....................................................... 85

    31. A regra e a exceo .............................................................. 87

    32. O mundo da aparncia ....................................................... 88

    33. O processo de interpretao jurdica uma cebola .......... 93

    34. A diferena entre cultura e sabedoria ................................ 94

    35. A simplicidade e a profundidade ....................................... 95

    36. Ignorncia e frustrao ....................................................... 97

    37. A permisso e a proibio ...................................................99

    38. Quem d vida norma? ......................................................99

    39. A interpretao uma operao complexa A questo da justificao da norma ......................................100

    40. A objetividade no Direito .................................................. 103

    41. O legislador um pssimo contador de piadas ................ 105

    42. A interpretao jurdica um piquenique .......................106

    43. A trplice inteno O fundamento de validade da norma a inteno do legislador, do texto ou do intrprete? .......................................................................... 107

    44. O enunciado apenas uma escada ....................................110

    45. A questo da legalidade .......................................................111

    46. A vinculao e a discricionariedade ................................... 117

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 13 RENATO GERALDO MENDES

    47. O significado da violao do enunciado .........................118

    48. O Direito contrrio natureza humana No existe Direito natural ..........................................................119

    49. A efetividade do Direito ..................................................... 120

    50. No existem lacunas no sistema jurdico........................... 121

    51. O Direito uma cincia exata como a Matemtica? ........ 122

    52. A norma um ato (operao) de manipulao ................ 123

    53. A norma original e o enunciado ........................................ 124

    54. O que o conhecimento, afinal? Uma questo de mtodo ................................................................................ 126

    55. A questo da adequao entre a norma editada pelo legislador e a produzida pelo intrprete ....................135

    56. Diferentes interpretaes significam diferentes normas? 138

    57. O intrprete pode ser um tirano! ......................................140

    58. Fato e verso ........................................................................141

    59. O processo judicial precisa ser repensado ........................ 142

    60. Dois mitos que temos cultuado ........................................ 144

    61. A questo dos conceitos jurdicos indeterminados .........146

    62. O Direito e a hierarquia .....................................................148

    63. A questo da finalidade legal ............................................ 149

    64. O legislador e o intrprete ................................................. 150

    65. A vontade do legislador e a vontade da lei ......................... 151

    66. O intrprete est condenado a ser livre para pro-duzir a norma ..................................................................... 152

    67. CONCLUSES E PRINCIPAIS IDEIAS EXTRA-DAS DA OBRA ................................................................... 158

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 14 RENATO GERALDO MENDES

    Apresentao (1)

    Todos ns sabemos que a vida do jurista consiste em interpretar o Direito. Este o ar que respiramos: exa-minar o caso concreto, pesquisar as leis que podem (ou no) nele incidir, analisar ambos e tentar oferecer uma soluo consistente para a combinao desse conjunto heterogneo de dados. Tudo isso, de preferncia, por meio de uma resposta legvel: informao que todos pos-sam ler, transmitir e aplicar. A depender do sujeito lei-tor-aplicador, essa resposta legvel pode ser chamada de norma jurdica.

    Porm, e por mais incrvel que possa parecer, a maio-ria dos livros que pretende nos habilitar a interpretar o Direito no legvel nem nos ensina a produzir solues consistentes para os desafios que habitam o nosso coti-diano. Eles so a anttese do que se poderia esperar, pois no conseguem transmitir ao leitor a informao neces-sria. Muitas vezes, tais obras voltam aos sculos XVIII e XIX para descrever as clssicas teorias de Friedrich Karl von Savigny (1779-1861) e as tcnicas de descoberta da vontade da lei ou da vontade do legislador. Isso como se o tempo no houvesse passado e no existisse nada de novo (tanto nas leis como nos desafios de apli-c-las), o que efetivamente implica a compreenso limi-tada do intrprete e sua pseudofuno declaratria do contedo esttico da lei positivada.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 15 RENATO GERALDO MENDES

    A celebrao desse caminho tradicional faz com que o jurista seja induzido a se desconectar do seu espao-tempo e a mergulhar em um mundo distante, no qual a linguagem jurdica era fechada e excludente e a lei possua um, e somente um, significado, para todo o sempre (acessvel a poucos, todavia). Constatao que pode resultar em um problema ainda mais srio: o her-metismo e a falsa cultura do complexo (como se, para ser bom, fosse necessrio ser ilegvel), a instalar novo ciclo vicioso: o dos textos fechados, das expresses antigas e respectivas frases incompreensveis. Tal como se o jurista precisasse se esconder atrs de um idioma desconhecido dos leigos, para assim assegurar a sua reserva de mer-cado.

    Mas, felizmente, de tempos em tempos surge uma boa notcia editorial, que torna a nossa tarefa diria mais leve e recompensadora. Este livro de Renato Mendes uma excelente notcia para todos aqueles que pretendem compreender, manusear e aplicar o Direito.

    A primeira lembrana que me veio mente quando li este livro foi a advertncia de Primo Levi (1919-1987) no ensaio Sobre a escrita obscura. O clebre escritor italiano (sobrevivente de Auschwitz), quem sabe devido sua formao de qumico profisso que exige a pre-ciso, sob pena de produzir desastres , criticava nega-tivamente quem no conseguia ser claro na escrita, por mais obscuro que pudesse ser o tema: no verdade que a desordem seja necessria para descrever a desordem;

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 16 RENATO GERALDO MENDES

    no verdade que o caos na pgina escrita o melhor smbolo do caos extremo a que somos submetidos: con-sidero isso um erro caracterstico de nosso sculo inse-guro. O alerta de Levi parece ter sido dirigido tambm ao mundo de desordem, insegurana e profuso legis-lativa em que hoje vivemos: vrias emendas constitu-cionais, leis, medidas provisrias, decretos, portarias, instrues normativas e decises de mltiplos tribu-nais todas a conviver com a celeridade das exigncias da vida humana.

    Nesse mundo catico, cuja realidade imprecisa, torna-se muito difcil produzir um texto claro, ordenado e consistente. A tarefa exige formao, informao, tra-balho e persistncia, pois fato que todas essas qualida-des so marcantes neste livro de Renato Mendes, desde a primeira at a ltima pgina. E nem poderia ser de outra forma, em vista do escopo da obra que foca na solu-o de alguns dos principais obstculos transmisso de informaes no mundo do Direito. um livro que efeti-vamente facilita a nossa vida, auxiliando-nos a manejar as leis a fim de transform-las em informaes teis para os casos concretos.

    Mas creio que este livro nos oferece bem mais do que as tcnicas de anlise dos dados e transmisso da infor-mao no mundo do Direito. Ele provoca e traz novas reflexes ao leitor. Como consta de seu tpico final, importante que nos conscientizemos de que o intrprete est condenado a ser livre: de preferncia, livre de suas

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 17 RENATO GERALDO MENDES

    prprias limitaes e do receio de construir, destruir e reconstruir a norma jurdica a ser aplicada. Assim, a lei-tura desta obra permite que reflitamos melhor a prop-sito dessa liberdade criativa: uma liberdade com respon-sabilidade, uma insustentvel leveza que exige preciso, simplicidade e comprometimento. Assim, tornaremos a nossa vida mais tranquila e prazerosa. Afinal, no jus-tamente a vida humana o valor essencial da nossa ordem jurdica?

    Egon Bockmann Moreira

    Advogado, Mestre e Doutor em Direito.Professor da Faculdade de Direito da UFPR.Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2011).Professor convidado do CEDIPRE, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2011).Conferencista convidado das Universidades de Nankai e JiLin, China (2012).Junho de 2013

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 18 RENATO GERALDO MENDES

    Apresentao (2)

    Nos ltimos tempos tem sido difcil encontrar tex-tos jurdicos que efetivamente nos provoquem, que nos instiguem de forma aguda, e assim nos faam reforar ou abandonar nossos conceitos.

    Renato Mendes, neste novo livro (produzido aps dcadas de intensa dedicao ao estudo e transformao do Direito Administrativo brasileiro), realiza uma densa e profunda viagem em busca da essncia do Direito. E, o que mais importante, o faz por novos caminhos, negando qualquer orientao ou mapeamento fornecido pelo tradicionalismo acadmico. Do incio ao fim, ele inova. Inova no s no estilo de sua escrita, que desafia frontalmente o academicismo, como, e principalmente, nas teses e nos questionamentos que apresenta.

    Ele apresenta um novo elemento conceitual no estudo do processo hermenutico: a imperfectibilidade da comunicao escrita. Mostra, com assombrosa pre-ciso, que os estudos tradicionais do processo de inter-pretao do Direito partem da falsa premissa de que o processo de comunicao que aproxima o legislador do intrprete perfeito e eficaz. No . No complexo per-curso da palavra no sentido da construo, transmisso e reproduo da linguagem, um texto simples pode criar uma mirade de vises distintas, cada qual vlida e cor-reta sob a tica do intrprete.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 19 RENATO GERALDO MENDES

    A partir dessa abordagem lingustica (e, por vezes, semitica) do Direito, o autor constri sua tese princi-pal: a de que os textos legais no contm, em si, a norma. Antes, so dados. Dados que sero utilizados pelo intr-prete para a produo da norma concreta. Dessa forma, a norma no seria encontrada nos textos legais, mas sim, de forma individual e nica, ao final de um processo de interpretao construdo sempre que um cidado apre-sentado ao texto produzido pelo legislador.

    Para defender essa tese, Renato Mendes no se pro-tege. No se utiliza de frmulas genricas ou fugas con-fortveis, que agradariam a todos sem nada dizer. Assume uma posio clara e aberta, que, no mnimo, nos obriga a repensar (para validar, questionar ou, eventualmente, alterar) nossas prprias convices. Se, ao final desse denso processo crtico, o leitor no concordar com suas propostas, ainda assim sair renovado pelos mltiplos e desconcertantes ataques ao paradigma dominante.

    Ao ler o texto pela primeira vez, no se deve espe-rar uma simptica concordncia com a torrente de novos conceitos que o autor apresenta. A primeira reao de surpresa. E no seria de se esperar nada de diferente, na medida em que as teses apresentadas no s esto dis-tantes do repertrio do estudioso tradicional do Direito, como se chocam (por vezes, com violncia) com esse repertrio. Somente algum cujos preceitos e funda-mentos sejam ainda muito frgeis e instveis far uma

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 20 RENATO GERALDO MENDES

    leitura linear e confortvel, absorvendo passivamente as propostas e teses.

    No espere encontrar solues fceis e inquestion-veis para os muitos problemas hermenuticos que afli-gem os estudiosos do Direito. Mas saiba que essa leitura ser uma jornada por questionamentos, crticas, propo-sies e teses de que no se pode sair inclume.

    Fbio Tokars

    Mestre e Doutor em Direito.Professor da PUC/PR.Advogado.Junho de 2013

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 21 RENATO GERALDO MENDES

    1. A transmisso da informao e sua compreenso Um dos problemas da humanidade

    Uma coisa linguagem1; outra informao.A linguagem o meio pelo qual a informao pode

    ser transmitida e partilhada. Fundamentalmente, o pro-cesso de comunicao entre pessoas s possvel em razo da linguagem, pois sem ela no podemos expres-sar ideias, impresses, sensaes, juzos, valores e pensa-mentos. Nesse sentido, razovel dizer, como j fizeram alguns pensadores, que no h nada fora da linguagem.

    H diferentes formas para transmitir informaes; elas podem ser convencionais ou no. A palavra lingua-gem pode ter um sentido amplo ou restrito. Estamos acostumados mais com o sentido restrito do termo. No seu sentido amplo, linguagem qualquer meio ou modo de informar ou expressar alguma coisa, seja pela forma convencional ou no. No sentido restrito, a linguagem se confunde com as lnguas falada ou escrita, que expres-sam formas convencionais. O sentido amplo da palavra linguagem traduz o princpio mximo da Semitica, o qual se expressa na seguinte sentena: no se pode no se comunicar. Isso equivale a dizer que transmitimos

    1 A linguagem um conjunto de signos que serve para comunicar alguma coisa, conforme observa CUTER, Joo Vergilio. In: FIGUEIREDO, Vinicius de. (Org.). Filsofos na sala de aula. So Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2008. v. 3.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 22 RENATO GERALDO MENDES

    informaes mesmo quando estamos imveis, paralisa-dos ou quando no desejamos.

    Assim, tudo o que qualificamos como realidade, nas suas dimenses concreta ou abstrata, transmite algum tipo de informao. Os objetos inanimados e os animais dizem coisas e transmitem informaes, tal como as pes-soas. possvel, ento, dizer que transmitimos informa-es mesmo quando no desejamos e tambm que tais informaes so transmitidas tanto de forma consciente como inconsciente. Somos uma fonte permanente de informao sob e sem controle. Freud, o pai da Psicanlise, tem uma tima teoria para explicar por que isso ocorre. fato que dizemos sempre mais do que falamos.

    Portanto, h diferentes formas de linguagem e todas elas transmitem informaes. O problema da humani-dade no a produo ou a transmisso da informao, mas a compreenso do que transmitido ou comuni-cado. O processo de comunicao que engloba a trans-misso da informao (mensagem) por uma pessoa e a sua compreenso por outra o nosso grande desafio. Esse tambm o mais significativo de todos os proble-mas do Direito e se traduz na caracterizao e compreen-so do que se denomina norma jurdica.

    O estudo do Direito o estudo da norma jurdica, pois ela o seu objeto e a sua razo de ser.

    Entre a norma produzida pelo legislador e a defi-nida ou aplicada pelo intrprete, h uma distncia que

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 23 RENATO GERALDO MENDES

    pode ser abissal. No entanto, no essa a impresso que temos no mundo jurdico da o problema.

    Ainda no temos uma compreenso exata da dimenso desse enorme problema, que o da comunica-o. Ao contrrio, nossa sensao de que tudo muito simples e que as pessoas conseguem nos entender facil-mente quando falamos ou escrevemos. Essa concluso equivocada atinge todos ns seres humanos. A soluo para esse problema parece simples, pois acreditamos que basta perguntar ao interlocutor (ou a um grupo deles) se ele nos entendeu. Porm, mesmo que a resposta seja positiva, ainda no haver certeza alguma.

    necessrio perceber que o mundo, e tudo o que nele existe, se apresenta para todos ns criptografado. A realidade apenas um conjunto de dados que pre-cisa ou pode ser transformado em informaes. Assim, a comunicao pressupe a cifragem e a decifragem ou a codificao e a decodificao da informao. Sem a codi-ficao e a decodificao de dados, no possvel produ-zir e transmitir informao. O Direito no exceo e se submete mesma condio.

    Valdemar W. Setzer define dado como uma seqn-cia de smbolos quantificados ou quantificveis. E con-clui que um texto um dado... uma foto tambm um dado.2

    2 SETZER, Valdemar W. Meios eletrnicos e a educao Uma viso alterna-tiva. 3. ed. So Paulo: Escrituras, 2005. p. 241.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 24 RENATO GERALDO MENDES

    De minha parte, acrescento: um enunciado prescri-tivo (ou normativo) apenas um dado, e no uma norma.

    O que lemos e observamos so dados. O mundo se apresenta na forma de dados. Portanto, tudo dado. Para que um dado (texto, imagem) se transforme em informao, necessrio que ele seja decodificado. Decodificar inverter a operao: transformar os sm-bolos (dados) em informao. o dado que viabiliza a produo da informao, ou seja, por meio do dado que se produz e se transmite a informao, ele que a transporta. Para que isso se opere, preciso um decodi-ficador: o crebro humano. Sem ele, no h informao nem dado.

    No h informao sem dado, nem dado sem infor-mao, pelo menos em termos potenciais. E tanto o dado quanto a informao precisam do crebro humano.

    A realidade existe apenas dentro do crebro humano, no seu interior, e no fora dele, mesmo que os sentidos (viso, tato) possam ver e sentir as coisas tang-veis que esto sua volta. No entanto, elas s existiro se forem percebidas pelo crebro. No se est aqui dizendo que as coisas tangveis (carros, livros, rvores, etc.) no existam no mundo fsico, obviamente no isso. O que afirmamos que tais coisas no existiro para cada um de ns se no forem percebidas pelo nosso crebro. O mundo (a realidade) apenas uma perspectiva interior do sujeito, no algo exterior a ele (realidade objetiva). Essa foi uma descoberta importante que a Filosofia nos

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 25 RENATO GERALDO MENDES

    proporcionou, mas que grande parte das pessoas ainda no compreendeu.

    Sem o crebro no h como armazenar dados e, a partir deles, produzir informao. Da mesma forma, no haver como produzir normas.

    Para obter informao, preciso interpretar. Inter-pretar nada mais do que criar um contedo (informa-o) a partir de um dado. A interpretao implica uma espcie de revelao, mas no no seu sentido tradicional. O dado , por sua vez, o suporte material (o meio) que transmite (ou transporta) a informao ou, mais preci-samente, informao em potencial. A palavra um dado, ou seja, um meio de transmitir informao, da mesma forma que um enunciado prescritivo, pois este consti-tudo por palavras.

    2. A ordem jurdica um conjunto de dados

    O Direito se expressa, basicamente, por meio de linguagem escrita (palavra, texto), mas no se restringe sua dimenso textual ou escrita. Assim, possvel dizer que no existe interpretao do texto ou enunciado pres-critivo, mas interpretao a partir dele.

    Nesse sentido, a ordem jurdica se expressa por meio de um conjunto de dados, e no, necessariamente, por um conjunto de normas. Em princpio, para falar em normas, preciso antes falar em dados, pois a partir

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 26 RENATO GERALDO MENDES

    deles que criamos as normas. A norma uma criao do intrprete3 a partir de dados.

    Os dados so meras representaes simblicas que podem ou no ser associados a contedos e, por fora disso, possvel produzir informao. Normas no exis-tem antes da interpretao. E no existem porque isso simplesmente impossvel, mesmo que os positivistas venham afirmando categoricamente isso h mais de um sculo.

    Os dados transportam, veiculam e transmitem informaes. Com efeito, normas so informaes trans-mitidas por meio de dados, e tambm por meio deles so obtidas. No entanto, possvel produzir normas sem a existncia de dados (enunciados prescritivos). Os dados (enunciados), por outro lado, no limitam nem condi-cionam a produo das normas pelo intrprete.

    O legislador cria uma norma e a codifica, isto , transforma a norma (informao) em dado. Da mesma forma, para que o intrprete obtenha a norma, ser pre-ciso decodificar o dado, ou seja, transformar o dado pro-duzido pelo legislador em norma. H, pois, um processo de codificao e decodificao das normas. Esse pro-cesso simultneo e ininterrupto. Para produzir normas, preciso interpretar. Assim, a norma o que se obtm em razo do processo de interpretao. Ou, utilizando

    3 A constatao de que a norma produzida pelo intrprete foi feita por Hans-Georg Gadamer, na sua importante obra intitulada Verdade e Mtodo, no Brasil publicada pela Editora Vozes.

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    outros dados para dizer a mesma coisa: o processo de interpretao possibilita a produo de normas.

    A interpretao jurdica a operao por meio da qual se opera o milagre da transformao de dados em normas ou a decodificao de um enunciado prescritivo em uma norma de direito ou em um dever-ser.

    A razo de existir de uma faculdade de Direito ensinar, fundamentalmente, seus alunos a interpre-tar a ordem jurdica, ou seja, obter normas a partir de enunciados prescritivos (que so apenas dados). Salvo engano, elas no tm cumprido essa misso. O que as faculdades de Direito tm feito apresentar os seus alu-nos aos dados, e no, necessariamente, permitir que eles conheam as normas. No entanto, elas acreditam que o que fazem o que se diz que elas no fazem. H uma distncia enorme entre o enunciado prescritivo (ou nor-mativo) e a norma. Por isso, no incomum a frustrao do aluno no exerccio da sua atividade profissional. Claro que a frustrao tem tambm outras fontes.

    A misso dos professores propiciar condies para que os alunos apreendam a criar ou obter nor-mas. A revelao da norma um processo de constru-o. Professores no podem transmitir conhecimento, mas podem ajudar os alunos a construir, edificar o seu prprio conhecimento. A matria-prima para construir esse edifcio a informao, de preferncia, de natureza essencial.

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    3. No existe norma em estado natural

    No existem normas em estado natural. No certo afirmar que a Constituio da Repblica um conjunto de normas. mais razovel afirmar que a Constituio um conjunto de dados, a partir dos quais possvel pro-duzir normas. Por exemplo, o art. 5 e o art. 37 da Cons-tituio brasileira so apenas representaes simblicas (dados) ou um conjunto delas, e no normas. Para pro-duzir a norma, imprescindvel a atuao de um intr-prete. Assim, o intrprete que produz a norma. Por-tanto, a norma o resultado da interpretao dos dados feita pelo intrprete. A Constituio pode no ser nada como tambm pode ser alguma coisa ou muita coisa, isso depender da interpretao dada a ela.

    Em termos potenciais, possvel dizer que a Consti-tuio um conjunto de normas na forma de dados. Mas preciso ter a clareza de que s haver norma constitu-cional se houver a atuao de um intrprete. Sem a sua atuao, no temos muita coisa alm de um conjunto de dados. E veremos que dados no tm contedo; normas tm contedo. No entanto, as normas que produzimos, para serem comunicadas, precisam ser transformadas em dados. Eis o problema. Explicaremos melhor adiante a relao entre dado e contedo.

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    4. O que significa interpretar?

    Reafirmando o que j se disse: interpretar obter uma norma a partir de dados. Assim, podemos dizer que a norma nada mais do que a informao obtida por um sujeito (que chamamos de intrprete). Portanto, o que denominamos informao nas outras reas do conheci-mento, no Direito, chamamos de norma. Por ora, basta saber que a norma uma informao (do tipo dever-ser). Alis, um dever-ser transmitido por meio de um dado (ou de um conjunto deles) que precisa ser decodificado.

    A interpretao um fenmeno presente em todas as manifestaes da realidade. Todos ns interpreta-mos o tempo todo, do momento em que acordamos at o momento em que fechamos os olhos. Mas, ao fecharmos os olhos, no paramos de interpretar. Somente a morte pe fim ao processo de interpretao. Vale dizer: somos todos intrpretes durante a vida, uns bons, outros nem tanto.

    Em princpio, s o homem pode interpretar. Ou seja, somente o homem pode produzir normas. Os computa-dores (mesmo os mais sofisticados) no podem interpre-tar, pois, para tanto, preciso ter a capacidade de produ-zir informaes, e mquinas no produzem informaes, apenas processam dados. Assim, intrprete a pessoa que produz normas (informaes) a partir de dados. Mas ser possvel que um dia as mquinas tambm produzam infor-maes? Penso que sim, mas isso ainda no ocorreu. No futuro, os computadores iro pensar (raciocinar) como ns.

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    5. O processo de criao das normas

    Tem sido dito sistematicamente que o legislador (Poder Legislativo) cria as normas. Isso verdade?

    certo que o legislador cria normas e as con-verte em dados, ou seja, a regra de conduta (o dever-ser) criada pelo legislador. Isso fato. Mas a norma que o legislador criou precisa ser convertida (transformada) em dados, deixando de ser norma para ser dado. Por isso dis-semos que no h norma em estado natural. Para que o intrprete possa produzir (ou reproduzir) a norma idea-lizada pelo legislador, ele precisar se valer dos dados, o que ocorre por meio da decodificao. No existe outra possibilidade que no essa, mesmo que duvidemos disso.

    Com base nos dados, o intrprete cria a norma. No entanto, a produo da norma pelo intrprete no est vinculada ou no se limita aos dados de que o legislador se valeu para transformar a norma (por ele idealizada) em dados. A atividade de interpretao (decodificao) sempre mais rica do que a de produo da norma (legis-lador).4 Mas, como dissemos, h um processo de codifi-cao e decodificao permanentemente em curso.

    Assim, preciso reiterar que o intrprete que cria a verdadeira norma.

    A norma construda pelo intrprete. Fala-se, por-tanto, em construo, e no simplesmente em aplicao.

    4 Codificao.

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    Para que possa ser aplicada, ela precisa antes ser cons-truda.

    A norma criada pelo legislador ou recriada pelo interprete produto de um universo simblico. A norma construda e reconstruda, respectivamente, pelo legis-lador e pelo intrprete, cunhada em contextos distin-tos, sejam fticos, valorativos ou ideolgicos. Vale dizer: o universo simblico (contexto) do legislador distinto do vivenciado pelo intrprete. Aqui surge um significa-tivo problema, a ser tratado no prximo tpico.

    6. H uma ponte entre as duas margens do rio

    A funo bsica de uma norma dizer como as coi-sas devem ser. Se a sua funo essa, em razo do que se afirmou at aqui, razovel supor que quem define o padro de conduta como o admissvel o intrprete, e no o legislador. Mas essa uma informao ou afir-mao com a qual o leitor tender a no concordar. Uma primeira informao que poder contribuir para a acei-tao do argumento a de que, entre a norma que o legis-lador cria e a que o intrprete produz, h uma ponte que qualificamos de dados. Sem essa ponte, no existi-ria nenhuma possibilidade de comunicao entre as pes-soas, e o Direito no seria vivel. um equvoco afirmar que a norma que regula as condutas humanas produ-zida pelo legislador. No entanto, certo dizer que a norma (ou pode ser) criada a partir de dados produzidos pelo legislador, os quais veiculam uma ou mais normas em

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    potencial. Mas as duas margens do rio no so necessa-riamente iguais. Referido fenmeno assimtrico.

    Se interpretar transformar dados em normas (infor-mao), quando o intrprete transforma o dado criado pelo legislador em norma, no estaria apenas dando vida norma que foi idealizada pelo prprio legislador? Ou, dito de outra forma, no teria ele (intrprete) de reprodu-zir, no outro lado do rio, a mesma margem idealizada pelo legislador? No seria o caso, ento, de afirmar que quem cria a norma o legislador, e no o intrprete? Ou seja, o papel do intrprete no seria o de recriar a norma tal qual foi idealizada pelo legislador? No teria ele de agir dentro de uma condio absolutamente objetiva, tal como defi-nida no enunciado prescritivo?

    A resposta a todas essas questes frustrante.Os dados so apenas uma possibilidade de roupa-

    gem que as normas podem assumir. H a roupagem que o legislador produz para embalar a norma que ele cria e tambm a roupagem que o intrprete cria para embalar a norma que ele produz a partir do dado criado pelo legis-lador. Esse um processo sem fim, pois a norma criada pelo intrprete ser transformada em dado e assim sucessivamente. possvel dizer que o Direito criado e recriado sucessivas vezes, como todas as outras coisas que expressam as relaes humanas e se traduzem em dados, ou seja, tudo.

    No entanto, no se pode dizer que, ao transformar em norma o dado criado pelo legislador, o intrprete

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    esteja dando apenas vida norma idealizada pelo legis-lador. Ou seja, no h como recriar igualmente a outra margem do rio. E no se pode por uma razo bem sim-ples: o repertrio que o intrprete utilizar para conver-ter dados em normas diferente daquele utilizado pelo legislador para criar a norma inicial. Portanto, temos dois universos simblicos distintos, cujo resultado final ser diferente. como tentar produzir a mesma receita culinria com ingredientes diferentes: o produto final no ser o mesmo. Portanto, frustrante a perspectiva da pretendida objetividade no processo de interpreta-o. Veremos o que significa a palavra repertrio ora empregada.

    7. A forma e o contedo

    Prescries normativas no tm contedo. Normas tm contedo.

    Palavras so dados, sinais, marcas. , normal-mente, de palavras que o legislador se vale para prescre-ver normas. Tambm a partir de palavras que o intr-prete produz suas normas. Palavras so representaes simblicas que podem ou no se relacionar a contedos (repertrio).

    Os dados em si (as palavras) no tm contedo, isto , as palavras ou as representaes simblicas so sintticas, ou seja, so desprovidas de contedo. Para que a palavra tenha um contedo, preciso que a mente humana atribua a ela um significado, um sentido, que

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    cunhado em um universo simblico prprio. A coisa se opera em uma relao de conexo, ou seja, um dado (palavra) tem de se ligar a um significado, sob pena de no se conseguir produzir informao. Sem informao no h norma. Assim, dados so sintticos, e informa-es so semnticas. O Cdigo Civil um conjunto de representaes simblicas (dados) a partir do qual pos-svel extrair normas (informaes). As normas extradas dos dados que integram o Cdigo Civil que vo traduzir o mundo do dever-ser, ou seja, o mundo do permitido e do proibido nas relaes privadas. Portanto, em princ-pio, o Cdigo Civil no tem contedo.

    O eventual sentido que se extrai do Cdigo Civil retirado do repertrio do intrprete, e no dos enun-ciados prescritivos que integram o referido ordena-mento jurdico. Esse um aspecto que precisa ser enten-dido, mas ainda no foi. A sua compreenso produzir mudana significativa tanto na compreenso do Direito quanto no prprio ensino jurdico.

    por meio do dado que se opera o processo de comunicao, ou seja, o vai e vem da informao. Assim, se no entendermos o dado, ou seja, se no conseguir-mos decodific-lo, no ser possvel produzir informa-o (transformar enunciado em norma). Alis, em parte, a razo da dificuldade de se apreender sobre o Direito, e a se inclui qualquer outra rea, a forma confusa que muitas pessoas disponibilizam (ou partilham) os dados. Para tanto, basta falar difcil, escrever difcil, rebuscado

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    ou de forma truncada. Existem pessoas que escrevem e falam difcil no porque so profundas, mas porque so confusas, isto , no tm contedo e convico sobre o que dizem.5 Tais pessoas so retricas, falam bonito, e algumas so oradoras que causam at entusiasmo em plateias formadas por analfabetos funcionais. Referidas pessoas (oradores) vivem da ditadura da forma, visto que lhes faltam contedo e profundidade. Essas pessoas foram rotuladas pelo Baro de Itarar como verdadei-ros tambores: fazem muito barulho para fora, mas so vazias por dentro.

    8. O repertrio

    Em princpio, para o intrprete produzir normas, so necessrias duas coisas: se valer de dados (enuncia-dos) e possuir um repertrio de contedos. O repertrio de contedos o nosso acervo pessoal, uma espcie de biblioteca individual, que consultada sempre que nos deparamos com um enunciado prescritivo (um dado). Assim, a partir dos dados (enunciado), so realizados links ou conexes com o repertrio existente e, como consequncia, so ou no produzidas as informaes (normas). Quando falamos para um alemo que no entende portugus e para um brasileiro que entende, o que acontece? Tanto o alemo quanto o brasileiro rece-bem os mesmos dados. No entanto, o brasileiro consegue

    5 Existem excees, mas no me refiro a elas.

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    decodificar os dados, e o alemo no. Esse fenmeno de decodificao possvel para um deles, em razo do repertrio que um possui e o outro no, ainda que o ale-mo possa ter muito mais acervo ou informao do que o brasileiro em questo. Um consegue interpretar e o outro no, pois um decodifica o dado e o outro no. Por isso dissemos que interpretar decodificar o dado. Mas, claro, no basta apenas conseguir decodificar os dados; preciso mais do que isso.

    O repertrio de contedos traduz um conjunto de informaes que vamos acumulando ao longo da nossa experincia pessoal. , portanto, o nosso acervo pessoal. Assim como no existe norma em estado natural, tam-bm o nosso repertrio pessoal no pode ser transferido para outras pessoas tal como ele se encontra (in natura). Vale dizer, mesmo que se desejasse realizar esse legado, isso seria impossvel.6 Assim, para transferir informaes do nosso repertrio para o de terceiros, indispensvel transformar a informao que queremos transmitir em dados. O terceiro receber a informao codificada e pre-cisar decodificar. Sem a existncia do dado (da ponte), no se pode operar a transferncia de informaes, ou seja, no h comunicao.

    A grande questo a seguinte: como garantir que na decodificao seja preservada a informao que se quis transmitir, ou seja, a informao que foi objeto de codificao? Essa uma questo capital no processo de

    6 Quem sabe um dia isso at venha a ocorrer.

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    interpretao. Vale dizer: como garantir que, na inter-pretao jurdica, o intrprete no ir desvirtuar a norma criada pelo legislador e enunciada na forma de uma prescrio?

    9. O objeto da interpretao

    A norma o produto final da interpretao, no o objeto da interpretao.7 O intrprete no est diante da norma para interpret-la, ou seja, o processo de inter-pretao no uma relao que se estabelece entre um sujeito e um objeto (norma). O processo de interpreta-o implica outra realidade, da qual fazem parte o fato, o valor, a suposta norma idealizada pelo legislador e o enunciado prescritivo (o dado) utilizado para comunicar a suposta norma. Portanto, todas essas realidades inte-gram o processo, menos a norma (o dever-ser), que ser cunhada pelo intrprete. A verdadeira norma no inte-gra o processo de interpretao porque ela o seu pro-duto final. Da mesma forma, no se pode dizer que o po o objeto da atividade do padeiro; o po o resultado da sua atividade. O que objeto da atividade do padeiro o trigo, o leite, o ovo, o fermento, a gua, etc.

    Tradicionalmente, temos alimentado a sensao de que o objeto da interpretao a prpria norma porque confundimos norma com o enunciado prescritivo. Como

    7 Mas preciso no esquecer que h tambm a norma idealizada pelo legis-lador e transformada em dado (enunciado).

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 38 RENATO GERALDO MENDES

    o processo de interpretao parte do enunciado, acredi-tamos que estamos diante da norma.

    Por outro lado, preciso perceber que, para produ-zir a norma, ser preciso interpretar o fato e todas as suas circunstncias, o valor ou os valores envolvidos, imagi-nar o que pretendeu o legislador regular e o que ele regu-lou, e muito mais. A operao ou o processo de produo da norma complexo e dependente, fundamentalmente, de uma srie de reflexes e ponderaes. O fato e o valor so duas dimenses importantes desse complexo pro-cesso. Trata-se de um processo eminentemente intelec-tual, ou seja, ele depende do intelecto humano para ser viabilizado. O intelecto humano depende do crebro, e este ainda no foi totalmente compreendido; existem zonas negras no crebro que ainda no conhecemos. A neurocincia est trabalhando para mudar esse cenrio.

    10. A diferena entre dizer e falar

    A palavra no o nico modo de transmitir infor-maes. Existem muitas outras formas, tais como sons, sinais e gestos. Tambm no se deve pensar que para transmitir informao preciso realizar aes ou movi-mentos. Dissemos que o princpio maior da Semitica o de que no se pode no se comunicar. Assim, ainda que imveis, estamos nos comunicando, isto , transmitindo informaes para outras pessoas. H algumas dcadas, era comum o filho dizer: meu pai nem precisava falar; era s ele me olhar, que eu j entendia tudo. Como ele

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 39 RENATO GERALDO MENDES

    podia entender se no era dito nada? O fato de o pai no falar nada no significa que algo no foi dito. Claro que foi dito. Dizer uma coisa, falar outra. A interpreta-o pressupe a clareza entre dizer e falar. Podemos falar muito e no dizer nada; e no falar nada e dizer muito.

    Muitas das coisas que esto ditas nos enunciados prescritivos no esto escritas, ou seja, no so visuais. Veremos isso quando interpretarmos o inc. XXI do art. 37 da Constituio Federal e abordarmos a gramtica gerativa de Noam Chomsky.

    A informao sempre maior do que a dimenso do dado (enunciado) que a transporta. Por isso, pre-ciso reconhecer que o Direito no se reduz ao enunciado prescritivo ou ao texto da lei. Ou seja, o enunciado prescritivo (o texto, o dado) tem uma dimenso menor do que as prprias normas que a partir dele possam ser produzidas.

    Como o Direito se expressa, normalmente, por meio de palavras, mais adequado colocarmos a questo do seguinte modo: dizer uma coisa e escrever outra. Com isso, possvel afirmar que nem tudo o que est dito na ordem jurdica est escrito. possvel dizer que a dimen-so do contedo de uma norma no se reduz dimen-so dos dados que a traduzem (enunciado prescritivo). O volume de informao (ou o contedo da norma) ser sempre maior do que o volume das suas representaes simblicas.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 40 RENATO GERALDO MENDES

    Em interpretao, a criao sempre maior que a criatura.

    Os dados (textos) estaro sempre em falta com as normas. Jamais podemos dizer que uma obra (livro) tem 200 pginas de informaes. O que podemos dizer apenas que os dados a partir dos quais sero produzidas as informaes foram registrados ou materializados em 200 pginas. Da mesma forma, no se pode dizer que uma lei tem 100 artigos tampouco que em cada artigo existe uma norma. Uma lei com 100 artigos ter, poten-cialmente, milhares de normas (para no dizer que tem uma quantidade infinita de normas). O dado (o enun-ciado prescritivo) passvel de quantificao, a norma no. A produo de normas determinada por uma pro-gresso infinita. Isso pode parecer absurdo, mas no ! a mais pura verdade e vamos demonstrar.

    11. Noam Chomsky e o Direito

    Steven Pinker8 adverte que falar em linguagem lembrar duas personalidades marcantes nesse campo do conhecimento: Ferdinand de Saussure e Noam Chomsky. O primeiro estabeleceu uma mxima, qual seja, a arbi-trariedade do signo. O segundo consolidou a ideia de que a lngua faz uso infinito de meios finitos.

    Falar em arbitrariedade do signo reconhecer que a combinao de um som com um significado totalmente

    8 PINKER, Steven. O instinto da linguagem. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 96.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 41 RENATO GERALDO MENDES

    convencional. Assim, como pondera Pinker, a palavra cachorro no se parece com um cachorro, no anda como um cachorro, nem late como um cachorro, mas mesmo assim significa cachorro. Ele explica que isso acontece porque vivemos um processo de aprendizagem mecnica na infncia, que liga o som ao significado. Pinker observa que ao preo dessa memorizao padronizada, os mem-bros de uma comunidade lingustica desfrutam de um enorme benefcio: a possibilidade de transmitir um con-ceito de mente para mente de modo praticamente ins-tantneo.

    Ao se referir a Chomsky e sua deduo de que a lngua faz uso infinito de meios finitos, Pinker pondera que:

    utilizamos um cdigo para traduzir ordens de pala-vras em combinaes de ideias e vice-versa. Esse cdigo, ou conjunto de regras, chama-se gram-tica gerativa; como j afirmei, no se deve confun-di-la com as gramticas pedaggicas e estilsticas que aprendemos na escola. O princpio que subjaz gramtica no muito comum no mundo natural. A gramtica um exemplo de sistema combinat-rio discreto. Um nmero finito de elementos discre-tos (nesse caso, as palavras) selecionado, com-binado e permutado para criar estruturas maiores (nesse caso, sentenas) com propriedades bastante distintas das de seus elementos. Por exemplo, o sig-nificado de Homem morde cachorro diferente do

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 42 RENATO GERALDO MENDES

    significado de qualquer uma das trs palavras que a compem, e diferente do significado das mesmas palavras combinadas na ordem inversa. Num sis-tema combinatrio discreto como a lngua, pode haver um nmero ilimitado de combinaes comple-tamente distintas com um leque infinito de proprie-dades. Outro sistema combinatrio discreto digno de nota encontrado no mundo natural o cdigo gentico do DNA, em que quatro tipos de nucleo-tdeos combinam-se em sessenta e quatro tipos de cdons, e os cdons podem se ligar formando um nmero ilimitado de genes diferentes. (...) Portanto, a lngua funciona da seguinte maneira: o crebro de cada pessoa contm um lxico de palavras e os con-ceitos que elas representam (um dicionrio mental), e um conjunto de regras que combina as palavras para transmitir relaes entre conceitos (uma gra-mtica mental).

    Enquanto lia o texto de Steven Pinker e os exem-plos apresentados sobre sistemas combinatrios dis-cretos (gramtica e DNA), ocorreu-me outra hiptese muito significativa: as notas musicais. Com base em sete notas bsicas (d, r, mi, f, sol, l e si), possvel realizar infinitas combinaes e produzir msicas em quantidade tambm infinita. Notas significam sons (tal como as palavras), nada mais do que isso. Assim, as sete notas musicais representam uma realidade finita. Ape-sar de finita, possvel produzir um resultado infinito.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 43 RENATO GERALDO MENDES

    Portanto, possvel dizer que a msica faz uso infinito de meios finitos (as sete notas).

    O que aconteceria se fosse aplicada a concluso de Chomsky na rea do Direito?

    Em primeiro lugar, seria possvel reconhecer que a ordem jurdica potencialmente infinita.

    O Direito se vale das palavras, ou seja, a ordem jurdica utiliza um sistema combinatrio discreto para enunciar (estabelecer) suas prescries. Esse sistema o gramatical, ou seja, um nmero finito de elementos dis-cretos (palavras) selecionado, combinado e permutado para criar estruturas maiores (sentenas ou enunciados prescritivos), com propriedades bastante distintas das de seus elementos. preciso no esquecer que o nosso sis-tema gramatical tem apenas 26 letras, a partir das quais se formam as palavras e com elas as sentenas (frases, enunciados). Os enunciados, por sua vez, transportam ou contm normas em estado potencial.

    Qualquer enunciado prescritivo, por exemplo, o inc. XXI do art. 37 da Constituio Federal, uma reali-dade finita, ou seja, tem comeo, meio e fim. Todo enun-ciado prescritivo acaba com um ponto final, que indica que a enunciao acabou. No entanto, com base em um enunciado prescritivo (estrutura finita), possvel criar uma grande quantidade de normas, inclusive de conte-dos diferentes, ou seja, de uma norma que probe pos-svel produzir uma norma que permite e vice-versa.

  • um equvoco afirmar que a norma que regula as condutas humanas produzida (criada) pelo

    legislador.

    A norma uma criao do intrprete a partir de dados produzidos pelo legislador.

    Um enunciado prescritivo (ou normativo) apenas um dado, e no uma norma.

    O Direito no um fenmeno exclusivamente tridimensional (3D), mas quadrimensional (4D),

    ou seja, ele constitudo por quatro diferentes dimenses, a saber: FATO, VALOR, NORMA E

    DADO.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 45 RENATO GERALDO MENDES

    12. O inc. XXI do art. 37 da CF e a gramtica gerativa de Chomsky

    Vamos utilizar o inc. XXI do art. 37 da Constituio Federal brasileira para demonstrar a veracidade do que constatou Noam Chomsky. A partir do enunciado nor-mativo (dado) referido, vamos colocar para funcionar a fbrica de produo de normas e verificar o que poss-vel realizar a partir de uma estrutura finita e aparente-mente limitada.

    A estrutura finita (o inc. XXI do art. 37 da CF) tem os seguintes termos:

    ressalvados os casos especificados na legislao, as obras, servios, compras e alienaes sero con-tratados mediante processo de licitao pblica que assegure igualdade de condies a todos os concor-rentes, com clusulas que estabeleam obrigaes de pagamento, mantidas as condies efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permi-tir as exigncias de qualificao tcnica e econ-mica indispensveis garantia do cumprimento das obrigaes.

    Portanto, como fcil perceber, ela tem comeo, meio e fim.

    As concluses, ou seja, uma parte das normas que podem ser produzidas a partir do referido enunciado, so as seguintes:

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 46 RENATO GERALDO MENDES

    a) A seleo do parceiro da Administrao no feita apenas por meio da licitao;

    b) A licitao tem como pressuposto o tratamento isonmico;

    c) Para assegurar tratamento isonmico, preciso tambm que o critrio de julgamento seja obje-tivo, sob pena de a igualdade ser violada por pre-ferncia de ordem pessoal (subjetiva);

    d) Existem situaes nas quais no podero ser asse-gurados tratamento isonmico e critrio objetivo de julgamento, ainda que se deseje;

    e) Se no for possvel garantir igualdade e critrio objetivo de julgamento, a competio deve ser considerada invivel;

    f) Sempre que a competio for invivel, a licitao no poder ser exigida (realizada);

    g) Sempre que a competio for vivel, a licitao dever ser realizada obrigatoriamente, salvo se houver alguma situao ou valor que possa afas-tar (dispensar) a licitao;

    h) O que pode dar fundamento de validade para uma hiptese de dispensa de licitao outro valor de natureza constitucional, e no apenas uma pura e simples deciso legislativa no plano ordinrio;

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 47 RENATO GERALDO MENDES

    i) A inexigibilidade traduz as hipteses nas quais a competio invivel. No podem ser confun-didas com as de dispensa, pois estas tratam de situaes em que a competio vivel;

    j) Se for vivel a competio, o afastamento da lici-tao deve ser indicado taxativamente pelo legis-lador ordinrio;

    k) Se invivel a competio, no se faz necessria a indicao taxativa das hipteses que iro deter-minar o afastamento da licitao, basta relao meramente exemplificativa;

    l) Fundamentalmente, invivel o pressuposto da licitao, no necessariamente a disputa entre possveis competidores;

    m) No se deve confundir inviabilidade de compe-tio com impossibilidade de disputa, pois so realidades distintas;

    n) O fato de haver possibilidade real de disputa no afasta a inviabilidade de competio, ou seja, no precisamente isso que torna a competio vivel;

    o) A ideia em torno da viabilidade de competio condio importante para o regime jurdico da contratao pblica, pois determina se a compe-tio ou no vivel: se a licitao ou no obri-gatria;

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 48 RENATO GERALDO MENDES

    p) A Administrao tem o dever constitucional de pagar pelo encargo que contratou e deve dei-xar isso bem definido no edital, isto , no s as condies de pagamento devem ser fixadas, mas tambm as fontes dos recursos que suportaro a despesa a ser realizada;

    q) a indicao da fonte de recursos que confere legitimidade e garante o dever de pagamento; portanto, ela deve ser indicada obrigatoriamente entre as condies do negcio;

    r) A aceitao da proposta pela Administrao cria o dever de respeitar os seus termos e as suas con-dies efetivas;

    s) O encargo definido pela Administrao e pre-visto no edital tem dimenso econmica, e a remunerao definida pelo licitante na sua pro-posta, dimenso financeira; a relao de equiva-lncia jurdica entre ambas intangvel da a expresso equilbrio ou equao econmico-financeira;

    t) A Administrao poder alterar unilateralmente o encargo por ela definido (o objeto da contrata-o), mas dever manter a relao de equivaln-cia entre o encargo e a remunerao prevista na proposta, ou seja, a equao econmico-finan-ceira;

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 49 RENATO GERALDO MENDES

    u) A lei ordinria regular a relao entre a Admi-nistrao e o contratado, mas no poder des-respeitar a relao de equilbrio ou equivalncia entre o encargo e a remunerao, sob pena de ser declarada inconstitucional e implicar nulidade de pleno direito;

    v) As exigncias de qualificaes tcnica e finan-ceira devem ser suficientes para garantir o cum-primento das obrigaes relativas ao encargo a ser contratado;

    w) A necessidade da Administrao calibra o encargo, o qual d fundamento de validade para as exigncias tcnicas e financeiras;

    x) Tudo o que for indispensvel para garantir a plena necessidade da Administrao e eliminar a potencialidade de risco em torno da no obten-o do efetivo encargo pode ser exigido do lici-tante;

    y) A Administrao est obrigada a justificar as suas exigncias e decises, sob pena de violao de dever constitucional;

    z) O valor mais importante para a contratao pblica no a igualdade, mas a ideia em torno da plena satisfao da necessidade, pois ela aparta os dois procedimentos que caracterizam a

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 50 RENATO GERALDO MENDES

    fase externa da contratao, ou seja, a licitao e a contratao direta.9

    Cada afirmao acima uma norma, pois repre-senta contedo prprio e expressa valor jurdico espe-cfico. Indicamos 26 concluses (normas) no porque apenas 26 podem ser extradas do referido enunciado prescritivo, mas porque 26 o nmero de letras do alfa-beto portugus-brasileiro e quisemos fazer uma home-nagem a esse nmero; apenas por isso. Em verdade, possvel extrair do inc. XXI do art. 37 da CF centenas de normas.

    Todas as concluses acima decorrem do inc. XXI do art. 37 da Constituio. O leitor pode at no encon-trar todas de forma literal nesse preceito, mas poss-vel assegurar que elas esto, todas, l. O exato contedo do inc. XXI do art. 37 da CF possibilitar a compreenso da verdadeira essncia do regime jurdico da contratao pblica que temos de aplicar e observar no desempenho da atividade profissional.

    A interpretao do inc. XXI do art. 37 da CF um exemplo concreto da teoria de Noam Chomsky, ou seja, a partir de uma estrutura finita (os termos do prprio inc. XXI), possvel o intrprete produzir inmeras normas. Vale dizer: no campo da interpretao jurdica, a possi-bilidade normativa sempre muito maior do que a enun-ciativa. Vale repetir: a criao sempre maior do que a criatura.

    9 Sem licitao, ou seja, por dispensa ou inexigibilidade de licitao.

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    O que dissemos em relao ao inc. XXI do art. 37 possvel realizar em qualquer outro preceito da Consti-tuio, do Cdigo Civil, Penal, CLT, Cdigo Tributrio, Lei das S.As., Cdigo de Regras do Futebol, etc.

    13. O enunciado uma viso parcial do Direito

    O dado (enunciado normativo) sempre uma viso parcial do Direito ou, se preferir, da norma em potencial. impossvel haver coincidncia entre o dado e a norma, ou entre o dado e as normas que a partir dele podem ser produzidas. Uma nica informao traduzida ou repre-sentada em um dado pode produzir dezenas e dezenas de normas. assim porque o Direito sistmico. No h nenhuma possibilidade de exigir que, ao produzir a norma, o intrprete respeite a letra da lei, uma vez que a norma no tem letra, o que tem letra o dado (o enun-ciado). bom no confundir esses dois mundos. Reco-nheo que no to simples aceitar tudo isso. Estou certo de que depende de tempo e de mudana de paradigma.

    14. O Direito e as suas dimenses (2D, 3D e 4D)

    At pouco mais da metade do sculo passado, o Direito era visto sob uma perspectiva do tipo 2D, ou seja, reconhecia-se que o fenmeno jurdico era consti-tudo fundamentalmente por duas dimenses: o FATO e

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    a NORMA. De acordo com essa perspectiva, tomava-se determinado fato e este era regulado. Assim, produzia-se uma norma jurdica.

    Nos anos 60, no entanto, o jurista brasileiro Miguel Reale formulou uma teoria que ficou conhecida como teoria tridimensional do Direito. Com ela, o Direito passa a ser visto sob uma perspectiva do tipo 3D. O que o Prof. Miguel Reale faz agregar viso tradicional a ideia de valor. Assim, o Direito passa a ser visto ou constitudo por trs distintas dimenses: FATO, VALOR e NORMA. Essa a viso atual que temos sobre o fenmeno jurdico no Brasil e no resto do mundo.

    O Direito, no entanto, no um fenmeno tridi-mensional (3D), mas sim uma realidade do tipo 4D, ou seja, ele constitudo por quatro diferentes dimenses, a saber: FATO, VALOR, NORMA e DADO. Assim como o Prof. Miguel Reale acrescentou a dimenso VALOR teoria tradicional, estou incluindo o dado (enunciado) viso tridimensional. Na viso tridimensional, a norma equivale ao enunciado, ou seja, no h uma distino entre norma e enunciado, pois este a prpria expresso daquela. A teoria tradicional (viso dual ou tridimensio-nal) acredita que existe norma em estado natural, o que , segundo pensamos, um engano. Portanto, o Direito um fenmeno quadrimensional. Mas preciso que se diga que no se trata de um fenmeno quadrimensional simples, mas do tipo reverso, o que lhe confere especial complexidade. Vamos explicar a afirmao.

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    O legislador valora um fato e cria uma norma para regular a realidade (um dever-ser). Se o fenmeno parasse por a, tudo estaria resolvido e teramos o que o Prof. Miguel Reale denominou de tridimensionalidade do Direito. No entanto, a suposta norma (dever-ser) pre-cisa ser convertida em dado (dimenso enunciativa) pelo legislador, pois essa a nica forma de enunci-la, de comunic-la ou, exagerando um pouco mais, de dar vida a ela. Com a transformao ou materializao da norma em dado, encerra a misso do legislador e comea o pro-blema.

    A partir desse ato, o legislador sai do palco e entra em cena o intrprete, isto , quem tem de aplic-la.10 Para que ele possa chegar at a norma, preciso primeiro decodificar o dado. Sem decodificar o dado, ou seja, inter-pret-lo, impossvel chegar norma, pois ela no um simples enunciado nem existe em estado natural. Cabe ao intrprete transformar o dado em norma (realizar a decodificao) e, para comunicar qual a norma que ele identificou (produziu), precisar codific-la novamente, transformando-a em dado. Outra pessoa precisar tomar o dado que expressa a referida norma produzida pelo intrprete e realizar a mesma operao. Essa uma ati-vidade progressiva e potencialmente infinita. Portanto, a norma uma realidade do tipo progressiva, sujeita a sucessivas codificaes e decodificaes.

    10 Ou cri-la.

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    Portanto, o Direito no um fenmeno exclusiva-mente tridimensional (3D), mas quadrimensional (4D). Penso que deveria dizer: quadrimensional do tipo rever-so-progressivo. Mas no farei isso. Essa viso sobre a estrutura normativa inova profundamente a compreen-so que temos sobre o fenmeno jurdico, isto , sobre o Direito.

    15. A interpretao literal

    A maior de todas as falcias no Direito a chamada interpretao literal. Querer reduzir a interpretao do Direito ou da ordem jurdica literalidade do seu texto , para utilizar uma palavra amena, inaceitvel. Como inaceitvel falar em mtodo de interpretao literal ou gramatical, como se fosse possvel existir um mtodo literal. A palavra no mtodo de interpretao, mat-ria-prima da interpretao. Se tomarmos, no entanto, a ideia de mtodo como o meio pelo qual possvel obter alguma coisa, a sim seria possvel dizer que a palavra (dado) o meio pelo qual se pode obter uma norma. No entanto, se reconhecermos que o termo mtodo tem o sentido apontado acima, teramos de reconhecer, tam-bm, que praticamente s h um nico mtodo poss-vel: o literal. Assim, o que se rotulam de mtodos siste-mtico, lgico e teleolgico no poderiam ser mtodos, mas qualquer outra coisa.

    H vrias impropriedades em relao ao que dito e ensinado sobre os mtodos de interpretao. Por ora,

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    vamos reconhecer apenas que a palavra (ou o enunciado) matria-prima da interpretao. Ou poderamos dizer que o enunciado a antessala mais comum para chegar norma. Assim, o dado a condio comum para produ-zir a norma. Mas possvel produzir norma sem a exis-tncia de dados. Vale dizer: a produo da norma no depende da existncia de um enunciado prescritivo. Por isso possvel falar em princpios implcitos; mas no s por isso.

    impossvel reduzir a interpretao do Direito lite-ralidade do texto, pois, como observamos, em princpio, para interpretar preciso reunir o dado11 e o repertrio pessoal. O dado sinttico, e o repertrio,12 semntico. O dado no tem contedo, o repertrio sim. Se nos limi-tarmos apenas ao dado, no haver nenhum contedo como resultado da interpretao, ou seja, no haver interpretao. E para no haver interpretao, bastar no conseguirmos decodificar os dados (dar sentido, significao a eles). No exemplo indicado, o alemo que no conhece a lngua portuguesa no conseguir inter-pretar um dado em razo da impossibilidade de deco-dificao. Como no consegue decodificar, ele no pode produzir a norma (informao). Portanto, no razovel falar em interpretao reduzida ao texto (dado). Isso simplesmente impossvel. Alis, mais fcil resolver o

    11 Condio objetiva.

    12 Repertrio pode ser entendido como as preconcepes, os preconceitos, etc.

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    mistrio da Santssima Trindade. Mas o impossvel que vem sendo afirmado ao longo dos tempos por importan-tes juristas.

    Vamos apresentar um exemplo de dado e repertrio para que o leitor entenda mais facilmente como ocorre a produo da informao ou, no plano jurdico, como produzida a norma. Imagine a cruz o smbolo do cris-tianismo. A cruz apenas um dado, uma representa-o simblica, um sinal, uma marca. A cruz, enquanto representao simblica, no tem nenhum contedo. Se apresentarmos a cruz para uma tribo selvagem e que nunca teve contato com outros seres humanos, ela no significar para eles o que significa para ns. No entanto, quando vemos uma cruz, imediatamente nossa mente a associa a uma srie de valores positivos, tais como per-do, amor ao prximo, compaixo, salvao e fraterni-dade. Todos esses conceitos integram o nosso repertrio pessoal, ou seja, nossa mente associa o dado (representa-o simblica) cruz a um conjunto de significados (valo-res).13 H, pois, para todos ns, um sentido para aquele dado (cruz). Alis, a cruz a marca, o sinal, o dado e a representao simblica mais importante e poderosa na histria da humanidade ocidental. A marca mais pode-rosa para ns, ocidentais, no a Coca-Cola, a Microsoft ou o Google. A marca mais poderosa dos dias atuais e dos vrios sculos que nos precederam a cruz.

    13 Esse fenmeno foi estudado por Charles Peirce.

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    Por outro lado, se nos for mostrada a sustica, isto , a representao simblica utilizada pelos nazis-tas durante a II Guerra Mundial, imediatamente nossa mente a associa a coisas e valores negativos, tais como guerra, extermnio, morte, sofrimento, tortura, perse-guio e destruio. A sensao que temos com a cruz completamente diversa da que temos com a sustica. No entanto, se observarmos cuidadosamente a sustica, constataremos que ela uma cruz estilizada, ou seja, com as extremidades alongadas para cima, para baixo e para o lado. A forma mais fcil para desenhar a sustica antes fazer uma cruz.

    A sustica, como representao simblica, muito antiga e est presente em diferentes povos. O significado que a sustica representa para ns, ocidentais, com-pletamente diferente do seu significado para os chine-ses e indianos. Quando o chins v a sustica, lembra-se de outras coisas: infinito, sade, felicidade e perfeio. Para o indiano, a sustica pode representar o sinal da sal-vao, de fertilidade, etc. Para os indianos e chineses, a cruz no tem nenhuma relao com o cristianismo, nem veem nela uma pessoa (Cristo) crucificada, como ns, ocidentais. Com base nos exemplos apresentados, pos-svel perceber que o dado (representao simblica) no tem contedo, uma vez que sinttico. O que tem con-tedo outra coisa, que se relaciona com os repertrios cultural e pessoal de cada indivduo. O significado que atribumos ao dado depende do nosso acervo pessoal e

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    este, de padres culturais. Assim, o sentido da norma no est no enunciado que a veicula, mas no contedo que podemos associar a ele.

    Temos confiado demasiadamente na literalidade para definir a norma. No entanto, a literalidade no confivel, ela enganosa. A literalidade apenas uma bssola, e no o destino. Estamos confundindo coisas distintas.

    A literalidade do enunciado uma bssola com diversos polos magnticos. Portanto, o destino incerto.

    A literalidade confortante; , para os menos avi-sados, um seguro referencial objetivo, capaz de condu-zir at o destino final. Mas a literalidade14 no capaz de possibilitar a segurana que esperamos dela.

    Dizer que a norma no um postulado objetivo edificar o caos. Isso desesperador para todos ns, pois abominamos o caos, a incerteza. No Direito, gostamos de clareza, objetividade e segurana. Por isso, o positivismo fez do Direito a sua morada. Perder a objetividade per-der o cho. Para muitos, o Direito precisa ter, necessaria-mente, uma objetividade, ainda que meramente literal. A literalidade no nada objetiva; no entanto, ela cria na mente humana essa sensao. A sensao nos conforta e dela nos nutrimos e nos alimentamos. Mas certo que ela no resolve o problema. Por isso, vivemos uma farsa:

    14 Leia-se tambm a objetividade do enunciado.

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    a da objetividade que a literalidade proporciona ordem jurdica. No Direito, a subjetividade desfila na passarela vestida de objetividade, e todos ns aplaudimos por-que amamos a aparncia e cultuamos a farsa.

    No h um padro objetivo que possa proporcio-nar a desejada segurana. A nica coisa que se pode dizer que objetiva no processo de interpretao o dado (smbolo) que enuncia a prescrio potencialmente nor-mativa produzida pelo sujeito que qualificamos como legislador e tambm a enunciao de que o intrprete se valer para comunicar a norma que ele produziu. A obje-tividade, se que ela existe, isso, e nada mais.

    No existe nenhuma possibilidade de conferir qualquer objetividade razovel para a realidade jur-dica. Razovel estabelecer um novo paradigma refe-rencial para ela, o qual implica, necessariamente, uma viso essencial sobre o Direito ou sobre o dever-ser. Pre-tendo contribuir no lanamento da pedra fundamental de um novo edifcio para abrigar o Direito, pois estamos em profunda crise. Penso que no futuro todos seremos essencialistas, mas antes iremos resistir muito. Afinal, tambm abominamos o novo. Fomos treinados para no mudar e resistir. Tambm, por outro lado, como disse Caetano Veloso na msica Sampa: Narciso acha feio o que no espelho.

  • No existe interpretao do texto ou enunciado prescritivo, mas interpretao a partir dele.

    A nica coisa que se pode dizer que objetiva no processo de interpretao o dado (smbolo) que enuncia a prescrio potencialmente normativa.

    Normas no existem antes da interpretao.

    A literalidade do enunciado uma bssola com diversos polos magnticos. Portanto, o destino

    incerto.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 61 RENATO GERALDO MENDES

    16. A norma produto da subjetividade

    Dizer que o significado que atribumos ao dado depende do nosso acervo pessoal implica afirmar que a informao obtida em razo da interpretao cultural. Aplicar essa concluso no mundo do Direito significa: a norma fruto da cultura do intrprete. Ora, se para interpretar preciso um dado e um repertrio e, ainda, se o repertrio so os acervos cultural e pessoal de cada um de ns, a concluso no pode ser outra: a norma a minha representao do dever-ser, parafraseando Schopenhauer.

    Vale reiterar: a norma , em princpio, uma criao pessoal, um dever-ser definido pelo intrprete, com base no seu acervo pessoal, tendo o enunciado como parme-tro e a sua cultura (ideologia, valores) como amlgama.

    Portanto, a norma no um fenmeno que resulta da objetividade, e sim da subjetividade. O que obje-tivo , em princpio, o dado. Da a confuso que se faz quando se diz que a norma objetiva (ou que o Direito objetivo), pois se confunde norma com enunciado pres-critivo, ou seja, norma com dado. Foi nesse ponto que os positivistas liderados por Kelsen tropearam. Mas essa apenas uma concluso parcial. Ademais, o fato de ter havido um tropeo no retira, necessariamente, a beleza da caminhada. Kelsen teve papel e importncia indiscu-tveis na histria do Direito. bom nunca esquecermos isso. Mas as coisas precisam evoluir. Estamos vivendo

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 62 RENATO GERALDO MENDES

    o comeo de uma nova fase: a da viso essencialista do Direito. E esse edifcio tem, por enquanto, apenas um terreno e um esboo do projeto bsico.

    Vimos que a comunicao ocorre em razo da exis-tncia de um dado que remete para um repertrio. O repertrio um conjunto de informaes de que nos valemos para produzir outras informaes. O repertrio traduz um conjunto de valores. Sem a existncia desses valores, no possvel viabilizar informao, isto , pro-duzir normas.

    17. O enunciado esttico, e a norma dinmica

    A leitura (decodificao) de um texto nunca a mesma. Se lermos um texto em determinada fase da nossa vida e, anos depois, revisitarmos o mesmo texto, ele revelar para ns um novo sentido, um novo con-tedo. Mas preciso perceber que o texto o mesmo, isto , os dados so os mesmos, mas no o repertrio. A sensao que temos de que o texto revela coisas novas ocorre em razo das mudanas operadas no nosso reper-trio, no nosso interior. Com isso, possvel concluir que o Direito pode ser dinmico mesmo que os dados sejam estticos. O conjunto de dados que integra a ordem jur-dica pode permanecer igual por anos, dcadas ou sculos (como a Constituio americana), sem que isso impea que o Direito seja sempre moderno e atual. Com efeito, a questo central do Direito no o dado que o enunciado

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 63 RENATO GERALDO MENDES

    prescreve, mas a qualidade do repertrio que o intr-prete possui.

    So o repertrio e a capacidade do intrprete que tornam (ou podem tornar) o Direito dinmico, e no necessariamente a alterao do enunciado normativo. A modernidade/atualidade do Direito depende mais do intrprete do que do legislador.

    O enunciado esttico, e a norma dinmica. O enunciado, por ser mero dado, um s; , em princpio, invarivel enquanto realidade sinttica. As normas que podem decorrer de um s enunciado que so muitas. Uma situao concreta, salvo raras excees, nunca a mesma, pois a configurao ftica ou outras condies especficas no so replicadas identicamente. Portanto, vale aqui a ponderao de que um grau de latitude pode revogar toda uma jurisprudncia. Muito embora a frase tenha sido dita para se referir a uma questo geogrfica, possvel dizer que a alterao dos pressupostos fti-cos, por exemplo, podem alterar a perspectiva da soluo adotada anteriormente. aqui que mora toda a geniali-dade de alguns criminalistas.

    A questo da dinmica que envolve a norma uma perspectiva de anlise muito interessante em razo da ideia de smula vinculante, por exemplo.

    Assim, possvel dizer que existe uma nica ordem enunciativa; mas no possvel afirmar que existe uma nica ordem normativa. Eis o problema.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 64 RENATO GERALDO MENDES

    18. As divergncias doutrinrias e jurisprudenciais

    O mesmo dado pode produzir diferentes informa-es, isto , a partir de um mesmo dado, possvel obter normas diferentes. Como isso ocorre? A resposta sim-ples: o dado o mesmo, no o repertrio utilizado para produzir a norma. Duas pessoas no possuem o mesmo repertrio, ou seja, o mesmo acervo de informaes a partir do qual ir produzir novas informaes (ou novas normas), nem tampouco a mesma forma de raciocinar (modo especfico de manipular as informaes).

    Isso explica as divergncias doutrinrias e jurispru-denciais. Divergncias existem em razo da produo de normas distintas por diferentes intrpretes. A existncia de divergncias no significa que todas as normas pro-duzidas so vlidas. A validade implica uma possibili-dade de aceitao. A produo de diferentes normas a partir de um mesmo enunciado prescritivo no impede o reconhecimento de apenas uma delas ser tida como ade-quada, correta. Ser correta ou no uma questo contex-tual (no textual), ou seja, em razo da ponderao entre o fato concreto e o valor que se toma para, com base nele, produzir a norma. Em termos relativos, possvel dizer que a norma o resultado final da ponderao entre fato, valor e enunciado. relativa porque no implica opera-o mecnica e automtica como pressupem alguns, inclusive os que no poderiam pressupor.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 65 RENATO GERALDO MENDES

    A norma produto de um universo simblico de natureza essencial. Mas preciso no esquecer que o universo simblico de natureza essencial pode ser tam-bm uma arena onde a luta por poder poder travar sua implacvel batalha.

    Uma norma pode ser codificada de diferentes for-mas, ou seja, existem diferentes formas de enunciar uma norma. Enunciar significa embalar, escrever ou repre-sentar. O mesmo dado pode possibilitar a produo de diferentes normas, normas com contedos totalmente distintos. Mas preciso que o leitor perceba que os dados so exatamente os mesmos, e no o sentido que pode-mos atribuir a eles em razo da ponderao entre o fato e o valor que consideramos, bem como de outras coisas. Na interpretao, opera-se o seguinte fenmeno: o dado (representao simblica) sempre o mesmo, isto , ele no se altera na percepo visual dos diferentes intrpre-tes. As diferentes interpretaes que so produzidas a partir dos dados no decorrem deles, mas do repertrio pessoal de cada intrprete e do significado que se pode fixar em razo da manipulao de informaes (ingre-dientes) diversas.

    preciso ter a clareza de que no h diferentes entendimentos sobre uma mesma norma; o que temos so diferentes normas a partir do mesmo dado (enun-ciado prescritivo). Essa outra confuso histrica que precisa ser compreendida.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 66 RENATO GERALDO MENDES

    por meio da capacidade de interpretar que eviden-ciamos a existncia de uma caracterstica do ser humano: a inteligncia ou a sua mais profunda limitao.

    19. O caso da proibio existente nos nibus

    Quando entramos em um nibus, de imediato nos deparamos com uma prescrio (dado, regra), cuja enunciao comumente apresentada de duas formas diferentes, a saber: a) fale com o motorista somente o indispensvel ou b) expressamente proibido falar com o motorista.

    H alguns anos perguntei a um grupo de advogados se as duas regras tinham o mesmo contedo ou no. A minha inteno era saber se eles tinham clareza em torno da distino entre enunciado (regra) e norma. A resposta da quase totalidade (95%) foi a de que eram duas nor-mas distintas, ou seja, uma permitia que se pudesse falar com o motorista, e a outra no. Respondi a eles que no eram duas normas distintas, mas apenas uma, cuja enunciao estava prescrita de duas formas diferentes. Em verdade, temos dois dados diferentes, mas uma s norma. Os dois dados so duas formas de enunciao de uma mesma norma. Nas duas enunciaes, a norma : fale com o motorista apenas o indispensvel. Primeiro, preciso perceber que a finalidade da norma garantir a segurana dos passageiros, por isso h a proibio de falar com o motorista. Com a proibio, o que se pretende

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 67 RENATO GERALDO MENDES

    evitar que o motorista possa se distrair e venha a per-der o controle do veculo. Mas se um passageiro tem o conhecimento de um fato capaz de colocar em risco a vida dos passageiros, bvio que ele poder falar com o motorista, mesmo diante da regra que diz expressa-mente proibido falar com o motorista. Mas, nesse caso, a permisso para falar se restringe ao indispensvel. nesse sentido que se opera a interpretao da ordem jur-dica na viso essencialista.

    20. Dados veiculam contedos em potencial

    Dados existem para veicular contedos, mas nem sempre a partir deles possvel apurar um contedo. Os dados sempre comunicam alguma coisa. Toda norma tem contedo. A enunciao prescritiva traduz poten-cialmente uma norma. Assim, possvel afirmar que a norma o prprio contedo do dado na viso do intr-prete, mesmo que no haja coincidncia aparente entre o que o dado enuncia e o que a norma prescreve. A norma o dado decodificado. No h, pois, norma sem contedo. da natureza da norma ter contedo. Os dados que podem no implicar contedo, quando eles no tm cor-respondente semntico no repertrio do intrprete, por exemplo. At Jean-Franois Champollion decifrar total-mente a Pedra de Roseta, o que havia era apenas dado, e no informao.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 68 RENATO GERALDO MENDES

    21. O dado (regra) visual, a norma virtual

    O dado visual; a norma no visual, ela virtual. Tudo o que o sentido da viso v (ou capaz de perceber) dado, e no norma. A norma no pode ser captada pela viso. Por isso, cdigos materializam dados, e no nor-mas. A norma no tem existncia no mundo fsico. Por isso dissemos que a Constituio ou o Cdigo Civil mate-rializam dados, e no normas. Portanto, quando abri-mos o documento (livro) que qualificamos como Cons-tituio, tudo o que vemos so dados, e no normas. O mximo que se pode dizer (ou reafirmar) que existem normas em estado latente ou potencial, mas no norma em estado natural. Ao visualizar o enunciado prescritivo, a sensao que temos de estar vendo a norma, no ape-nas um dado. assim porque, como temos um reper-trio, o crebro, ao se deparar com o enunciado, deflagra uma decodificao imediata (automtica), que propor-ciona uma informao, no necessariamente a norma. Foi por isso que ponderamos que interpretar no ape-nas realizar uma simples decodificao, preciso mais do que isso.

    Por exemplo, ao visualizar o enunciado constitu-cional que prescreve que todos so iguais perante a lei, temos uma primeira dimenso normativa que a decodi-ficao proporciona. No entanto, tal dimenso apenas uma viso (compreenso) parcial da potencialidade do mundo normativo. Nesse momento, em alguma medida,

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 69 RENATO GERALDO MENDES

    podemos dizer que no estamos mais no mundo enun-ciativo, pois j colocamos os ps no universo normativo. A quantidade de normas que pode ser sacada do referido enunciado todos so iguais perante a lei enorme (ili-mitada) e no pode ser captada em uma primeira decodi-ficao. preciso muito raciocnio, reflexo e ponderao, pois somente isso poder ampliar e revelar o verdadeiro horizonte normativo. s vezes, inclusive, a primeira com-preenso ou impresso que o contato com o enunciado proporciona se revelar depois imprestvel, quando a melhor anlise dos fatos e valores for realizada.

    22. Quem surgiu primeiro: o dado ou a informao?

    possvel formular a questo acima em outros ter-mos mais populares, ou seja, quem surgiu primeiro: o ovo ou a galinha? Essencialmente o mesmo problema que se pretende enfrentar agora.

    O dado (enunciado) nasce de uma norma (infor-mao relativa a um dever-ser). Mas tambm certo dizer que a norma nasce do dado, mesmo que seja pos-svel haver norma sem dado. assim porque a norma se transforma em dado, e o dado, em norma. o ciclo natural da norma ou do Direito enquanto realidade nor-mativa. Sem entender a referida metamorfose, no ser possvel compreender o fenmeno jurdico. Por isso afir-mamos que o Direito uma realidade quadrimensional, e no tridimensional.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 70 RENATO GERALDO MENDES

    23. O grande problema do aprendizado do Direito

    O problema central do estudo do Direito no est na identificao dos dados (parte visual), mas na apu-rao do seu contedo, o que ocorre por meio do reper-trio, do qual emanam as informaes (ingredientes) com as quais as normas so elaboradas (fabricadas/produzidas). o repertrio, aliado tcnica, que faz a diferena e torna uns bons intrpretes e outros no. nesse ponto que as faculdades de Direito erram, nota-damente quando se satisfazem em apresentar os alunos aos dados.15 Para conhecer os dados, no preciso ser jurista, basta ser alfabetizado. Dados no so informa-es, mas informaes podem ser obtidas a partir deles. nesse ponto que o ensino jurdico se perde. Alis, no s o ensino jurdico.16

    O ensino do Direito deve se voltar para a forma-o do repertrio, e no para a apresentao de dados. Conheci um profissional que tinha decorado (memo-rizado) todo o Cdigo Penal. Era um advogado de uma pequena cidade do interior que visitei. Ele foi me apre-sentado como o profissional que mais conhecia o Direito Penal. Durante a nossa conversa, pude perceber que ele, em verdade, sabia muito pouco sobre o Direito Penal.

    15 Existem excees pontuais. Mas, de modo geral, tudo muito ruim ainda.

    16 Por isso gastamos tanto dinheiro com educao para colher to pouco. A relao entre o que se gasta e o que se colhe beira o ridculo.

  • A QUARTA DIMENSO DO DIREITO 71 RENATO GERALDO MENDES

    O que ele conhecia eram os dados que integram o Cdigo Penal, mas o repertrio dele era lastimvel. Logo, ele no conseguia produzir normas, apenas recitar dados (pala-vras). No entanto, era tido como um gnio. A genialidade dele decorria da sua capacidade de decorar, memorizar. Alis, ela era extraordinria ele sabia o Cdigo Penal brasileiro de cor. No entanto, no conseguia desenvolver raciocnios lgicos nem interpretar.

    Um profissional somente ser um jurista se possuir um adequado repertrio. Mas como se forma um reper-trio? O repertrio que precisamos para atuar na rea jurdica vem de diferentes fontes, menos diretamente do texto da Constituio ou dos Cdigos (Civil, Penal, Tributrio, Processual, etc.). Os enunciados normativos que se podem encontrar nos Cdigos, em