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Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.1, jan./jun. 2012 47 Sambas, orixás e arranha-céus: a música de Geraldo Filme Amailton Magno Azevedo 1 Resumo: Sambista, compositor e versador. Eis o que faz de Geraldo Filme, o músico que rejeitou o rótulo de que na cidade de São Paulo não havia samba com exceção de Adoniram Barbosa. Com Geraldo devem-se rearranjar as narrativas historiográficas que trataram da História musical no Sudeste. De que há no Rio de Janeiro já sabemos; o que precisamos é observar que o mapa do samba é dilatado, fluido e multidirecional. Esse artigo destaca o universo do músico Geraldo Filme e suas relações em torno da família, escolas de samba, carnavais e bairros, configurando cartografias e memórias de uma modalidade de samba com traços da Diáspora africana em São Paulo. Palavras-chave: Geraldo Filme: sambas, memória e africanidades. Abstract: Musician of Samba, composer and verses maker. Is this what makes Geraldo Filme the musician that refused the label which said that in São Paulo city there wasn’t samba with the exception of Adoniran Barbosa. With Geraldo Filme it must be rearranged historical narratives that deal with the History of the music in Brazilian southeast. We already know what there is in Rio de Janeiro. What we need is to observe that samba map is larger, fluid and multidirectional. This article detachs the universe of the musician Geraldo Filme and its relationships around family, samba schools, carnivals and neigh- borhoods, setting cartographys and memories of a samba mode with caracters of african diaspora in Sao Paulo. Keywords : Geraldo Filme: sambas, memory and africanness 1 Pós-Doutorado pela Universidade do Texas em Austin-EUA. Professor da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP.

Geraldo Filme

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tese de mestrado sobre o Geraldo Filme

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  • Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.1, jan./jun. 2012 47

    Sambas, orixs e arranha-cus: a msica de Geraldo Filme

    Amailton Magno Azevedo1

    Resumo: Sambista, compositor e versador. Eis o que faz de Geraldo Filme, o msico que rejeitou o rtulo de que na cidade de So Paulo no havia samba com exceo de Adoniram Barbosa. Com Geraldo devem-se rearranjar as narrativas historiogrficas que trataram da Histria musical no Sudeste. De que h no Rio de Janeiro j sabemos; o que precisamos observar que o mapa do samba dilatado, fluido e multidirecional. Esse artigo destaca o universo do msico Geraldo Filme e suas relaes em torno da famlia, escolas de samba, carnavais e bairros, configurando cartografias e memrias de uma modalidade de samba com traos da Dispora africana em So Paulo.Palavras-chave: Geraldo Filme: sambas, memria e africanidades.

    Abstract: Musician of Samba, composer and verses maker. Is this what makes Geraldo Filme the musician that refused the label which said that in So Paulo city there wasnt samba with the exception of Adoniran Barbosa. With Geraldo Filme it must be rearranged historical narratives that deal with the History of the music in Brazilian southeast. We already know what there is in Rio de Janeiro. What we need is to observe that samba map is larger, fluid and multidirectional. This article detachs the universe of the musician Geraldo Filme and its relationships around family, samba schools, carnivals and neigh-borhoods, setting cartographys and memories of a samba mode with caracters of african diaspora in Sao Paulo.Keywords : Geraldo Filme: sambas, memory and africanness

    1 Ps-Doutorado pela Universidade do Texas em Austin-EUA. Professor da Faculdade de Cincias Sociais da PUC-SP.

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    A velha queria...vai ser mdico. Mas que doutor? Doutor em samba at que ainda vai2.

    No nada novo declarar que para ns a msica, o gesto, a dana so formas de comunicao, com a mesma impor-tncia que o dom do discurso3.

    Geraldo Filme viveu entre os anos de 1927 e 1995, portanto experimentou as transformaes urbanas pelas quais a cidade de So Paulo passou. Foi testemu-nha das fremncias, do frentico ritmo do urbano e suas sonoridades; dos seria-lismos e massificao da cultura moda europeia e americana que penetraram as subjetividades e alardearam novos padres de sociabilidade e civilidade. A metrpole paulistana se fez como espet-culo da tecnocincia que tentou seduzir calmamente seus habitantes como a nor-ma ser seguida4. Mas Geraldo foi tam-bm testemunha das experincias de-molidoras do normativo ou pelo menos daquelas que criaram ponto de fuga a ele. Isso no significa associar sua memria ao extico ou ao primitivismo como an-ttese Modernidade. Mas pensar em como atuou em zonas no formatadas pela serializao da cultura e da subjeti-vidade, onde os exus brincalhes e orixs

    2 GERALDO FILME Crioulo cantando samba era coisa feia. Direo: Carlos Cortez. Brasil, 52 min., cor, 35 mm, 1998.

    3 Apud: GILROY, Paul. O Atlntico Negro, Rio de Janeiro: Editora 34, Universidade Cndido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiticos, 2001, p.162.

    4 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu exttico na metrpo-le: os frementes anos 20. So Paulo: Companhia das Letras, 1992.

    da msica instituram surpresas com os pulos de gatos, pegadas de galinhas, voos de pssaros, passos de tartarugas, ras-tros de cobras como assim encontrei nas vivncias negras mestias paulistanas.

    Nas dimenses horizontais da cultura, aos ps dos arranha-cus, os sambas, carnavais, visungos e orixs se tornaram expresses culturais que nos seus primrdios foram resistncia, mas tambm se transformaram, ao longo do tempo, em experincias contnuas e re-gulares quando se trata de arte e msica popular. A cultura negra mestia tornou--se hegemnica no Brasil, pois o negro se misturou de forma plstica nesse campo das artes, msica, festa, no mundo afe-tivo-sexual, bem como na culinria, ves-turio, poesia e religio. Quanto se tra-ta apenas de msica, a presena negro africana aflora a cada passo, deixando-se flagrar do plano temtico seleo voca-bular, do destino da mensagem ao jogo das rimas, do artesanato paronomsico simplificao sinttica, enfim, da estru-turao semntica ao estrato snico5.

    Ao pai Oxal/ Ag-geg e iorub/Eparrei!/ Oi oi vem nos ajudar/Ka Ka Ka ioruba6.

    Na memria do samba em So Pau-lo, Seu Geraldo ou Geraldo da Barra Funda, como assim o chamavam, est

    5 RISRIO, Antnio. A utopia brasileira e os mo-vimentos negros. So Paulo: Editora 34, 2007. p.292.

    6 FILME, Geraldo. Que gente essa. In: Msica brasileira deste sculo por seus autores e intrpretes. So Paulo: SESC, 2000. p. 83.

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    registrado como o msico correspons-vel pela instituio do samba paulista. admirado, como assim pude perceber no ensaio do bloco de samba Quilombo do Educandrio, quando perguntei a um passista quem era Geraldo Filme. Em seu rosto abriu-se um sorriso e uma mistura de respeito e alegria que respondiam a minha pergunta. Ali percebi a importn-cia de Geraldo Filme como uma memria a ser reconstruda e preservada.

    O contato com sua obra e com sua imagem me moveu em direo aos vest-gios e rastros de memrias africanas que foram reelaboradas na vida dos negros paulistas. bom que se diga que nunca pretendi buscar uma pureza africana. No pretendi tambm com esse termo propor uma viso essencialista, racia-lista ou de busca de razes originrias e puras. Buscar uma pureza africana no tem sentido algum no mundo contempo-rneo, j que a experincia da Dispora e do Mundo Atlntico recompuseram va-lores, saberes e fazeres. A zona do Atln-tico possibilitou a formao de redes de contato entre diferentes fricas, Europas e Amricas constituindo uma teia multi-facetada onde o Atlntico Negro expan-diu-se na Modernidade7. Sua expanso pode ser considerada como dissenso, contraponto, resistncia expanso da Europa, mas tambm como uma vivn-cia mestia, dado os diferentes campos de foras nas reas Atlnticas sob a hege-monia europeia. As fricas foram pensa-

    7 GILROY, Paul. O Atlntico Negro, Rio de Janeiro: Editora 34, Universidade Cndido Mendes, Cen-tro de Estudos Afro-Asiticos, 2001.

    das desse modo, como ressignificao da Dispora e seus desdobramentos. mais uma metfora que homenageia, do que algo que busque uma memria contnua e regular. Termos como contribuio, in-fluncia e continuidade africana alm de desgastados no respondem mais nada. So verdades mortas. O que me interessa so as conexes, injunes, negociaes e misturas.

    A conexo entre samba, Geraldo Filme, os negros paulistas com as fricas no automtica e nem mecnica. O que percebi na experincia social de Geraldo Filme e suas msicas foram sinais dessa conexo que se manifestaram como tra-os de uma memria africana que fora acessada e recomposta entre os negros atravs dos saberes orais-acsticos em torno das relaes de famlia, amizade, trabalho e msica, sales de dana, cor-des carnavalescos, escolas de samba, festas e religiosidades. Do lado de c do Atlntico as micro-fricas8 manifesta-vam-se nos ritmos, vocbulos, cantos, performances que foram recuperados nos fragmentos de saberes e fazeres; pos-sibilitando a reconstruo da experincia social de Geraldo e dos negros paulistas na cidade de So Paulo. Os fragmentos dessas memrias que ficaram como re-gistros das experincias, foram vividos

    8 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena frica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1983. A expresso utilizada por Roberto Moura foi pen-sar a pequena frica na cidade do Rio de Janeiro de modo singular. O que proponho no meu texto refletir sobre as fricas de modo plural a partir de So Paulo e que no estiveram circunscritas a um ou outro espao, mas espalhadas por toda a cidade.

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    em certos espaos da cidade por onde o msico circulou como o Bixiga, Barra Funda e Liberdade. Costumes e laos so-ciais construdos em torno do samba, do carnaval e da vida privada.

    Os estudos sobre as memrias ne-gras e mestias no sculo XX so uma ta-refa em construo. No que diz respeito s prticas musicais, j existem reflexes historiogrficas que se propuseram a problematizar quais foram os caminhos escolhidos, os desejos e as intenes da populao negra mestia que viveu em So Paulo nesse sculo. Tais estudos ma-pearam9, entre o ps-abolio e as dca-das de 1930 e 40, suas novas formas de sociabilidade10 como a vivncia em ro-das de sambas, a instituio de cordes e escolas carnavalescas, a frequncia de sales de dana, o que significaram estra-

    9 BRITO, Ida Marques. Samba na cidade de So Paulo (1900-1930): um exerccio de resistncia cultural. So Paulo: FFLCH/USP, 1986; VINCI, Jos Geraldo. Metrpole em sinfonia: Histria, cultura e msica popular na So Paulo dos anos 30, 2000; VINCI, Jos Geraldo. Sonoridades paulistanas. Dissertao de Mestrado em Hist-ria-PUC-SP, So Paulo, 1989; ROLNIK, Raquel. Territrios negros. Uma Histria. Comunicao apresentada no Simpsio ABA. Campinas. Mi-meo, 1998; SILVA, Jos Carlos Gomes da. Ne-gros em So Paulo: espao pblico, imagem e cidadania, 1998; SANTOS, Carlos Jos Ferreira dos. Nem tudo era italiano. So Paulo e pobreza (1890-1915), 1998; WISSEMBACH, Maria Cristi-na. Ritos de magia e sobrevivncia: sociabilidade e prticas mgico-religiosas (1890-1940), 1997; WISSENBACH, Maria Cristina. Da escravido liberdade: dimenses de uma privacidade pos-svel, 1998. Todos esses estudos apresentam as formas como os grupos negros resistiram cultu-ralmente imposio de uma urbanidade que foi sendo gestada como dominante e como projeto hegemnico que tentava apagar as dissonncias culturais ligadas s prticas populares.

    10 ROLNIK, Raquel. Territrios negros em So Pau-lo. Uma Histria. Comunicao apresentada no Simpsio ABA. Campinas. Mimeo, 1998.

    tgias para resistir, negociar e estar cul-turalmente na cidade. A partir da dcada de 1950, essas atividades culturais, so-ciais e educacionais continuaram sendo as organizaes onde os negros mestios paulistas concentraram suas atenes e aes para reivindicar direitos, igualda-de social e sua herana cultural negro brasileira.

    Reconstruir a memria musical de Geraldo Filme e suas relaes de socia-bilidade permitiu perceber uma socieda-de e uma cidade com marcas dos negros mestios paulistas apesar das polticas de higienizao do espao urbano, da industrializao, da racionalizao da governana poltica e da economia. Por entre o mapa da urbanizao e metropo-lizao emerge uma cidade com traos da vivncia desse grupo nos costumes, gestualidades, cantos e nos espaos ur-banos11.

    A memria de Geraldo Filme se in-sere nessa perspectiva de anlise para compreender suas prticas sociais em di-logo, conflito e mistura com outras ex-perincias culturais na cidade. Isto posto, o texto no se tornou prisioneiro de uma viso culturalista, que deseja encontrar em tudo uma herana africana intacta, original e autntica. Nem mesmo de uma viso materialista, onde os negros reagi-ram s formas de dominao no espao urbano, s vezes sem muita conscincia dos seus atos, o que os impedia de se tor-

    11 CAMPOS, Eudes. So Paulo na viso classi(ci)sta de Prestes Maia, In: Revista do Patrimnio Histrico. So Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, n. 4, 1996, p-43.

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    narem sujeitos de sua prpria histria. A reconstruo de sua memria se

    insere na perspectiva historiogrfica que atenta para as prticas vividas nos mi-cro-processos sociais, o que pode ilumi-nar contextos e estruturas maiores que se fizeram com as formas de viver dos grupos negros mestios na redefinio de seus valores culturais no espao urbano. Tais formas de viver desvinculam-se de dataes oficiais estabelecidas que tive-ram no movimento dos grupos polticos e na dinmica industrial, os marcos ins-titudos de compreenso das histrias da cidade. As micro-fricas paulistanas expressaram sociabilidades e sensibili-dades; estiveram inseridas tambm nos movimentos sociais que compuseram o ritmo de transformaes da cidade com suas mltiplas temporalidades e expe-rincias. A msica e a experincia de Geraldo Filme sofreram impactos, resis-tindo em certos momentos e em outros se modificando de acordo com as impo-sies polticas, econmicas, ideolgicas, urbanas e industriais da cidade.

    As micro-fricas compem um sen-tido de histria que se fez e se moveu muito em funo de um modo de pensar e estar negro mestio na cidade, que pe-netraram os diversos fazeres e saberes da vida cotidiana. Vida essa que se fez no como desenrolar dos dias, da repetio montona dos acontecimentos; ao con-trrio, como tenses e conflitos sociais. Um cotidiano que foi vivido com as cons-trues, transformaes ou demolies de culturas, sob uma multiplicidade de tempos e experincias sociais. Com o

    olhar atento aos fragmentos, pormeno-res das manifestaes negras mestias que pude observar uma temporalida-de histrica e experincias vividas. Com essa opo terica e metodolgica pude pensar a narrativa histrica de Geraldo Filme; revelar fragmentos de sua vida e alma, dos dilemas, dores, alegrias, pra-zeres, expectativas e de paixo intensa e incontida pelo samba. Revelou ser um homem sensvel s questes ligadas ex-perincia vivida pelos negros mestios.

    Reconstruir sua memria foi uma tarefa onde pouco me vali de materiais estatsticos: no h nmeros, tabelas ou dados. O que h so documentos flmi-cos, imagticos, sonoros, orais e escritos que analisados revelaram um humano com seu mundo pblico, mas tambm com seu mundo de dentro, ntimo e pri-vado. Com a documentao emergem re-talhos da sua memria que ficaram como vestgios, j que a apreenso do conjunto total e absoluto do que fora improvvel e impossvel12. Sendo assim os vestgios

    12 BOSI, Ecla. Memria e sociedade - lembranas de velhos. 3ed. So Paulo: Cia das Letras, 1994. Aqui emprego o conceito de memria elaborado por Bosi, qual seja: Na maior parte das vezes, lembrar no reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as ex-perincias do passado. A memria no sonho, trabalho. Se assim , deve-se duvidar da sobre-vivncia do passado, tal como foi, e que se da-ria no inconsciente de cada sujeito. A lembrana uma imagem construda pelos materiais que esto, agora, nossa disposio, no conjunto de representaes que povoam nossa conscincia atual. Por mais ntida que nos parea a lembran-a de um fato antigo, ela no a mesma imagem que experimentamos na infncia, porque ns no somos os mesmos de ento e porque nossa per-cepo alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juzos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identida-

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    que ficaram de sua memria sugere o menino que viveu lembranas do tem-po da escravido dado o contato com a av; o filho de Augusta e Sebastio; o marido de Alice de Souza e pai de Ail-ton de Souza; o sambista fundador de escolas de samba como o Paulistano da Glria nos anos 40; o compositor de sambas-enredo para as escolas Unidos do Peruche e Vai-Vai nos anos 50 e 70; o homem ligado ao universo do Teatro e das artes como assim ocorreu nas re-laes de amizade com Plnio Marcos e Solano Trindade; o sambista de voz grave e intimista, com sua cuspidinha de lado e seu sorriso aberto, do orgu-lho em ser negro; opositor Ditadura Militar e ligado ao Partido Comunis-ta do Brasil; aquele que brigou com a profissionalizao do carnaval paulista e a ingerncia dos poderes municipal e miditico a partir de 1968; o leitor que sempre acompanhado de uma bolsa a tira a colo guardava livros de literatu-ra brasileira e estrangeira; o sambista compositor de msicas como Silncio no Bexiga13 e Vai no Bexiga pra Ver14 que instituram um arquivo sonoro para o samba paulistano.

    Geraldo Filme pertence segunda gerao de homens livres que nasceram aps a escravido. Esteve imerso nas rupturas que o modernismo paulista imps, atravs da metropolizao, au-

    de entre as imagens de um e de outro, e prope a sua diferena em termos de ponto de vista., p.55.

    13 FILME, Geraldo. A msica brasileira deste sculo por seus autores e intrpretes. So Paulo: SESC, 2000.

    14 Idem

    tomatismos, cultura de massas moda europeia e americana que mapearam novos valores s subjetividades e corpos urbanos. Diante das novas sociabilida-des movidas pelo ideal civilizatrio de individualismo e sujeito desenraizado, os grupos negros mestios tiveram que re-arranjar os sistemas de valores, ora em consonncia com a cidade da tcnica, do urbanismo e arquitetura monumen-tal, ora com os modos de viver pauta-dos em comunitarismos, oralidade, prticas de religiosidades, musicalida-des com traos culturais herdados dos escravos. Portanto, redefinir valores e expectativas diante de uma cidade que se urbanizava e modificava rapidamen-te os padres culturais, significava im-primir marcas que se projetavam como prtica de resistncia social, j que en-contrei indcios nos documentos que revelaram estratgias para preservar suas expresses culturais. Mas tambm como norma medida que os sambas, carnavais, escolas de samba foram se tornando experincias contnuas na ci-dade. Desse modo, essas experincias podem ser compreendidas como vivn-cias dissonantes que desobedeceram a certos limites estabelecidos do que deve-ria ser a cidade; e consonantes ao impri-mir valores e normas que formataram a cultura metropolitana.

    Essas vivncias compuseram a vida de Geraldo Filme por meio de relaes familiares, de amizade, com as escolas de samba e espaos sociais onde ele es-tabeleceu uma ntima relao mediada pela vivncia da msica. Os lugares onde

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    Geraldo morou, frequentou e conviveu circunscreveram-se na Barra Funda, Campos Elseos, Bixiga, Liberdade en-tre outros, e diversas escolas de samba, entre as quais estavam o Paulistano da Glria, Colorado do Brs, Camisa Ver-de, Unidos do Peruche e Vai-Vai. Cons-tituram modos de viver que imprimiam marcas especficas de uma cultura. Es-ses lugares com vestgios da vivncia de Geraldo Filme permitiram pontos de encontro e comunicao com outras pes-soas que praticavam os sambas, congos e umbigadas. Nesses lugares percebe-se que Geraldo Filme e os grupos negros mestios flexibilizaram o espao pau-lista tornando-o um territrio por onde expressavam os seus desejos, saberes e fazeres, e que atendessem a seus projetos de vida como uma perspectiva possvel no mundo urbano.

    Isso foi possvel porque havia en-tre os negros mestios paulistas fortes laos comunitrios e a manuteno de um lastro de tradio oral. Reagruparam fragmentos das memrias dos africanos nas musicalidades15, na gestualidade do corpo, em aspectos religiosos e familia-res, em formas de lazer e organizaes culturais, polticas e educacionais. Todas essas experincias foram acessadas para recompor, naquilo que foi possvel, uma memria.

    15 Musicalidade se define aqui como uma experi-ncia rtmica-acstico-meldica que compe um universo de saberes construdos pelos negros--mestios no Brasil. Suas danas, festas, religiosi-dades, instrumentos e vocalidades.

    Sinais dessa memria na vida de Geraldo Filme se manifestam com o seu nascimento, quando relata como a fam-lia concebeu sua chegada ao mundo. Ele nasceu em 1927 na cidade de So Paulo, mas teve seu registro de nascimento efe-tivado em So Joo da Boa Vista, interior paulista:

    Minha famlia era festeira. Eu nasci aqui em So Paulo, mas fui batizado em So Joo da Boa Vista, porque a famlia de l. Foram trs dias de festa. Eu s tinha que gostar disso. Era batuque no quintal pros nego vio, pros mais novos samba na sala e vamos sembora16.

    No foi uma criana nascida em bero esplndido da repblica cafeeira. As maneiras como os acontecimentos se sucederam com e aps o seu nascimento indicam modos de viver de sua famlia com fortes indcios de memrias negro--atlnticas, dado os trs dias de festa com batuques no quintal para os mais velhos ligados s memrias rtmicas do sculo XIX e samba na sala para as ge-raes conectadas atmosfera do urba-no. As musicalidades e as gestualidades corporais movidas pelo danar sempre foram, para os grupos negros da Dispo-ra, formas de saberes que se expressaram como arte, comunicao e pensamento em substituio ao discurso e poltica de marcas ocidentais, portanto no nada novo declarar que, para ns, a msica, o gesto, a dana so formas de comuni-cao, com a mesma importncia que o

    16 FILME, Geraldo. A msica brasileira deste sculo por seus autores e intrpretes, p. 77, 2000.

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    dom do discurso17. Os grupos negros da Dispora agregaram e redimensionaram traos de memrias africanas reinventa-das no espao Atlntico; que foram em certa medida estilhaadas com o trfico, a escravizao e as prticas coloniais. Os saberes musicais e performticos permi-tiram manter uma dimenso esttica de um ser e estar negro nas urbanidades e configuraram uma filosofia da Dispora desobediente racionalidade da tcnica na cidade.

    O nascimento de Geraldo Filme re-vela a vivncia de uma frica em minia-tura, como o que ocorria nos quintais das tias e tios baianos e cariocas desde a virada do sculo XIX. Em So Paulo, o quintal ou o terreiro e a sala transfor-maram-se em territrios de construo de identificao social e continuidade de novas formas de sociabilidade pri-vadas. O ambiente cultural no qual Ge-raldo nasceu e cresceu contribuiu decisi-vamente para sua formao musical. Os batuques danados no quintal de sua casa se tratavam dos sambas-umbigadas, uma dana trazida por grupos bantos da frica Central e que fora rearranjada no interior paulista via vivncias escravas.

    Pirapora , pirapora Bate o bumbo negoQuero ouvir o boi gemer18

    Iniciado o neguinho, num batuque de terreiro

    17 Apud: GILROY, Paul. O Atlntico Negro, Rio de Janeiro: Editora 34, Universidade Cndido Men-des, Centro de Estudos Afro-Asiticos, 2001, p.162.

    18 FILME, Geraldo. Tradies e festas de Pirapora. So Paulo: SESC, CD, 1992.

    Samba de Piracicaba, Tiet e campineiroOs bambas da Paulicia, no consigo es-quecerPedreiro ento na zabumba, fazia a terra tremerCresci na roda de bamba, no meio da alegria19.

    A letra indica memrias do samba paulista em diversas cidades interiora-nas, mas tambm na paulicia. Sendo assim, a letra desvia o olhar da cidade in-dstria-arquitetura. Ela permite encon-trar um tempo social vivido com bum-bo, zabumba, bambas, alegrias, roda, samba, nego e neguinho. As transformaes urbanas e industriais impregnaram de certa forma a percep-o sobre o sentido de modernizao em So Paulo no sculo XX. Para descobrir a msica e os seus praticantes vivendo--a, preciso outra perspectiva. So nos fragmentos e mincias de experincias sociais como as que se encontram na le-tra de Geraldo Filme que as formas de dana, instrumentos e musicalidades fo-ram sendo elaborados. Esses fragmentos de experincias sociais que permitiram, de certa forma, visualizar uma tempora-lidade da msica onde os seus pratican-tes viveram sensaes e emoes de uma vida que valeria a pena, apesar das segre-gaes scio-espaciais impostas em um contexto ps-abolio e de urbanizao acelerada da cidade.

    19 FILME, Geraldo. Batuque de Pirapora. So Paulo: SESC, CD, 1992.

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    Essas vivncias tambm se conec-tam com o mundo atlntico ligado a fri-ca atravs dos traos de memrias que fi-caram, como por exemplo, no batuque dos mais velhos, que se tratava do sam-ba-umbigada com fortes vnculos com a regio Congo-Angola dos bantos. Outro indcio dessa conexo est no samba-en-redo escrito por Geraldo Filme Tradies e Festas de Pirapora para participar do carnaval paulista na dcada de 60 com a Escola Unidos do Peruche. Geraldo Filme sugeriu para a comunidade carna-valesca e sociedade paulistana, certas razes sonoras para o samba paulistano. Sugesto essa presente tambm no sam-ba Batuque de Pirapora. Essa minha afirmao se baseia em duas questes centrais que esto nas letras. A primei-ra se refere importncia que Geraldo confere ao samba de bumbo de Pirapora, relacionada sua infncia:

    Eu era meninomame disse vamos emboravoc vai ser batizadono samba de Pirapora20.

    A segunda aos batuques paulistas das cidades de Piracicaba, Tiet e Cam-pinas. Havia em Geraldo uma afirmao da existncia desses batuques em So Paulo por meio de sua msica. Era um conhecedor de culturas musicais dos negros, dedicando-se, alm das compo-sies e participaes nos carnavais pau-listas, a pesquisas em torno da historici-

    20 FILME, Geraldo. Batuque de Pirapora. So Paulo: SESC, CD, 1992.

    dade da populao negra mestia paulista. Na sua viso, o samba em So Paulo:

    diferente no andamento, no peso do samba; o nosso vem mesmo daqueles batuques, daquelas festas... rurais, fes-tas que eram dadas aos escravos quando tinham boas colheitas, de corte de cana, boas colheitas de caf; ento era dada aquelas festas para os escravos, na qual eles se manifestavam com aquelas dan-as, com aqueles... era batuque, umbi-gada, vrios tipos de manifestao que assemelha muito ao Maranho. Como se faz em So Paulo, o batuque nosso aqui, l eu acho que eles chamam de tambor de criola, a mesma coisa... no tocar e no danar igualzinho. O batuque nosso que vira pra umbigada... o samba len-o21

    Ao imprimir uma memria ao sam-ba de So Paulo, Geraldo atribuiu uma ligao com musicalidades que se re-metiam como venho afirmando, a regis-tros de memrias dos bantos da frica central. As ligaes feitas por Geraldo coincidem com a literatura que tratou sobre o assunto22. Veremos que h pistas que oferecem uma interpretao nes-se sentido. Apontar para uma possvel permanncia/ressignificao da cultura de povos banto significa documentar vi-vncias do que ficou retido dessa cultura na prtica cotidiana dos negros mestios.

    21 FILME, Geraldo. So Paulo: Museu da Imagem e do Som .

    22 SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! frica coberta e descoberta no Brasil. In: AGUILAR, Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: negro de corpo e alma- Black in body and soul. So Paulo: Fundao Bienal de So Paulo; Associao Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p.212-220.

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    Registros que permaneceram na din-mica social como a que conferi na festa em torno de seu nascimento e que fica-ram em sua experincia como herana de africanos bantos chegados de ltima hora como escravos no sculo XIX.

    Distanciar-se de uma postura que valoriza apenas os sinais residuais po-der propiciar um alargamento de nossa percepo sobre a memria dos negros mestios em So Paulo. Os saberes ne-gros se mantiveram ao longo do tempo e expressaram marcas culturais, no como resto ou resduo, mas como vivncia, pois no ficaram isoladas do contexto social, nem mesmo folclorizaram-se de-vido ao impacto provocado pelos valores urbanos. Sendo assim, essas vivncias se transformaram definindo a cultura atravs de musicalidades, instrumentos, rezas e danas; mudaram os registros de memrias banto, inseridos no movi-mento do tempo e das transformaes sociais. Com isso, a identificao de afri-canismos puros perde fora. Isso no tem nenhum sentido, como j alertou Flvio Gomes dos Santos. Deve-se, pelo contr-rio, tentar perceber a frica reelaborada historicamente no Brasil23. Para perceber essa reelaborao tem que se dar destaque ao modo improvisador que os africanos deram recomposio de suas culturas em um contexto de desequilbrio cultural vivido nas Disporas. Foi essa habilidade de impro-visar, marca singular dos africanos, que os

    23 GOMES, Flvio dos Santos. Seguindo o mapa das minas: plantas e quilombos mineiros setecentistas. Estudos Afro-Asiticos (29): 113-142, maro de 1996.

    permitiu diante de situaes desfavorveis, elaborarem formas de existir e reter certas estruturas da cultura material e de estruturas ligadas sensibilidade, sentimentos e emo-es. Isso revela uma estratgia para manter e ressignificar os modos de ver e viver o mun-do sob um sentido histrico especfico, no mais africano, mas negro brasileiro.

    A grande maioria dos escravos que chegaram na primeira metade do sculo XIX no Brasil desembarcaram nas pro-vncias do Rio de Janeiro e So Paulo, e eram provenientes, sobretudo da frica Central onde viviam os povos de lngua banto. Dado as inmeras ramificaes do banto, chegaram no Sudeste brasilei-ro os falantes de kimbundo da regio de Luanda, o umbundu da regio de Ben-guela e o kikongo falado na rea que se estende do rio Dande (ao norte de Luan-da) at acima de Loango, e entre o mar e o rio Kwango24. Desde o sculo XVI as lnguas africanas imiscuram-se ao portugus antigo; o que provocou a alte-rao desse portugus e a subsequente participao de falantes africanos na construo da modalidade da lngua e da cultura representativas no Brasil25.

    Essa participao, ao longo de qua-tro sculos consecutivos, favoreceu a in-terferncia de lnguas africanas no Bra-

    24 SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! frica coberta e descoberta no Brasil. In: AGUILAR, Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: negro de corpo e alma- Black in body and soul. So Paulo: Fundao Bienal de So Paulo; Associao Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p. 214.

    25 CASTRO, Yeda Pessoa de. A influncia das lnguas africanas no portugus brasileiro. In: Pasta de textos da professora e do professor. Salvador: Secretaria Municipal de Educao, 2005. p 4.

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    sil. Isso se fez sentir em todos os setores: lxico, semntico, prosdico, sinttico e, de maneira rpida e profunda, na lngua falada26.

    Alm do aspecto lingustico, outros aspectos dessa cultura banto resistiram e se tornaram prticas recorrentes entre os negros paulistas que lidaram, sobretudo, com as dimenses estticas como a dan-a e a msica. H que se considerar que muito das relaes familiares e formas de religiosidade e crenas tambm contribu-ram para a permanncia de um modo de viver com registros banto. Mas a preocu-pao maior focalizar e analisar os traos da cultura banto a partir das dimenses estticas como a dana e a msica.

    Em relao frica Central, h cer-ta homogeneidade de costumes entre os povos dessa regio, o que pode ser nota-do na importncia do:

    complexo cultural ventura-desventura, ou seja, da ideia de que o universo ca-racterizado em seu estado normal pela harmonia, o bem estar, a sade, e que o desequlibrio, o infortnio, a doena so causados pela ao malvola de espritos ou de pessoas, frequentemente atravs de bruxaria ou da feitiaria27.

    Para realizar esses valores e metas culturais relacionados fecundidade,

    26 CASTRO, Yeda Pessoa de. A influncia das lnguas africanas no portugus brasileiro. In: Pasta de textos da professora e do professor. Salvador: Secretaria Municipal de Educao, 2005, p.4.

    27 SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! frica coberta e descoberta no Brasil. In: AGUILAR, Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: ne-gro de corpo e alma- Black in body and soul. So Paulo: Fundao Bienal de So Paulo; Associao Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p. 214.

    invulnerabilidade/vulnerabilidade e sta-tus/prosperidade, depende, sobretudo de um estado de pureza ritual.

    As cerimnias e os tabus observados para atingir esse estado de pureza - associa-do especialmente dana, msica e ao transe geralmente so feitos em torno de um fetiche (charm), que um objeto feito sob inspirao, incorporando os smbolos mais poderosos do movimento religioso28.

    H que se observar que essas pr-ticas culturais acompanham a historici-dade da experincia social, sendo assim modificadas conforme os novos proces-sos de criao de novos smbolos ou rein-terpretao de smbolos estrangeiros de acordo com a dinmica interna da cultura.

    Ora, o depoimento de Geraldo no traz reprodues intactas com os nar-rados da cultura dos povos bantos. Mas revela vinculaes com os princpios e as dimenses estticas, que foram o que melhor resistiram ao impacto da dispora e escravizao nas Disporas. Assim como as formas de religiosidade eram o centro vital na vida africana, as expresses estticas tambm estavam intimamente ligadas ao sentido de exis-tncia, pois no h separao, ao cultu-ar os ancestrais, entre religio, corpo, dana e msica. Em outras palavras, cultuam-se os espritos ancestrais dan-

    28 SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! frica coberta e descoberta no Brasil. In: AGUILAR, Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: ne-gro de corpo e alma- Black in body and soul. So Paulo: Fundao Bienal de So Paulo; Associao Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p. 216.

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    ando e cantando. So esses elementos que possibilitam a comunicao com o mundo espiritual.

    Mesmo com o impacto provocado nas lnguas, os princpios estticos, e aqui eu diria que os religiosos tambm foram conservados num processo de em-prstimos e ressignificaes culturais. Isso traduzido revela certa maleabilidade de comportamento que os povos bantos tiveram que assumir para recompor as experincias de vida em novo contexto.

    As musicalidades negras ligadas re-ligio e que se processaram em So Paulo, como o samba de Pirapora e os batuques de Tiet, Piracicaba e Campinas cantados por Geraldo, so a msica e a dana de um-bigada. Outras expresses musicais como Jongo e as congadas paulistas tambm carregam fortes traos da cultura banto, pois possuem vinculaes com o mundo da espiritualidade e com instrumentaes her-dadas da frica, como os tambores de tronco (no Jongo) e as marimbas (nas congadas).

    Essas novas formas de sociabilidade musical e religiosa se fizeram no processo de imbricamento cultural, como o caso do samba de Pirapora e as congadas, que possuem marcas de um catolicismo po-pular em coexistncia com aquele siste-ma religioso banto discutido por Robert Slenes29. H outros registros dessas vin-culaes dos sambas e danas dos negros paulistas com a cultura dos povos bantos

    29 SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! frica coberta e descoberta no Brasil. In: AGUILAR, Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: ne-gro de corpo e alma- Black in body and soul. So Paulo: Fundao Bienal de So Paulo; Associao Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p.212-220.

    como bem cantadas por Geraldo:Eunice puxava o pontoDona Olmpia respondiaSinh caia na rodaGastando sua sandliaE a poeira levantavaCom o vento das sete saiasL no terreiro tudo era alegriaNego batia na zabumba e o boi gemia30

    Expresses culturais como danar em roda, responder o ponto, execu-tar um instrumento percussivo so ex-perincias sociais que se encontram na regio da frica Central e que so ressig-nificados nos ncleos de samba liderados por Madrinha Eunice e Dona Olm-pia em suas residncias.

    dison Carneiro, ao descrever e analisar relatos de viajantes portugueses na regio de Luanda, em Angola, no fi-nal do sculo XIX, cita que o samba de umbigada, chamado de batuques pelos viajantes, consistia:

    num crculo formado pelos danadores indo para o meio um preto ou preta que, depois de executar vrios passos, vai dar uma umbigada, a que chamam semba, na pessoa que escolhe, a qual vai para o meio do crculo, substitu-lo31.Dos grupos, em redor, saem alternada-mente indivduos, que no amplo espao exibem os seus conhecimentos coreo-grficos, tomando atitudes grotescas. Por via de regra so essas representadas por mmica ertica, que as damas, so-bretudo, se esforam por tornar obsce-

    30 FILME,Geraldo. Batuque de Pirapora. So Paulo: SESC, CD, 1992.

    31 CARNEIRO, dison. Samba de Umbigada, Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Cultura, 1961. p. 10.

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    na... aps trs ou quatro voltas perante os espectadores, termina o danarino por dar com o prprio ventre na primei-ra ninfa que lhe parece, saindo esta a re-petir cenas idnticas32

    Sobre os instrumentos dison Car-neiro, ao citar os viajantes, revela:

    Os instrumentos musicais que acom-panhavam o batuque, so os bumbos e palmas das mos. Alm desses havia quianjes e marimbas. Ao danar nor-malmente noite as gomas, que pos-suem o desenho de um tambor, eram esquentados por fogo no terreiro em que se dana33.

    Os relatos dos viajantes portugue-ses indicam quanto esforo faziam para tornar o africano um ser primitivo. As atitudes grotescas como assim os via-jantes diziam, significavam na verdade a importncia que o corpo, a dana e a msica possuam para imprimir um sen-tido de experincia social. Razo e sensi-bilidade no se separavam para construir uma percepo da realidade vivida. Ape-sar das avaliaes racistas dos viajantes ao relatar o que viram, elas so indicado-ras de como as expresses dos africanos bantos esto presentes na letra Batuque de Pirapora de Geraldo Filme.

    Assim como danar em roda, Ge-raldo canta na letra puxar o ponto. O ponto, uma espcie de canto enigmti-

    32 CARNEIRO, dison. Samba de Umbigada, Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Cultura, 1961. p.11.

    33 CARNEIRO, dison. Samba de Umbigada, Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Cultura, 1961. p. 13.

    co era versado em forma de desafio por um cantor mestre e reproduzido pelos demais da roda. O segredo lanado teria que ser decifrado por outro cantor mes-tre de alguma turma vizinha de escravos nas plantaes de caf. E assim se fazia o Jongo, pergunta e resposta, ritmos e per-formance, saberes e fazeres.

    O desenho coreogrfico desse canto que tambm inclua dana era chamado de quizumba, que em Angola uma dana de namoro feita em roda. medi-da que as lnguas africanas foram se imis-cuindo lngua portuguesa, bem como o seu contrrio34, esses Jongos foram se transformando em visarias, certa rein-terpretao daquelas expresses sonoras africanas cantadas em portugus.

    As visarias aparecem na trajetria de Geraldo Filme na cidade de So Pau-lo. Elas so citadas pelo sambista Osval-dinho da Cuca em depoimento feito para um documentrio do ano de 2000 que tratou da biografia de Geraldo Filme35. Outras indicaes de registros bantos aparecem tambm nas anotaes etno-grficas de Mrio de Andrade, quando em 1937, acompanhou a festa e o samba de Pirapora na cidade de Bom Jesus do Pirapora, lugar aonde Geraldo ia desde menino. Em uma das suas andanas por So Paulo, testemunhou a festa e relatou as sociabilidades que eram vividas pelos

    34 CASTRO, Yeda Pessoa de. A influncia das lnguas africanas no portugus brasileiro. In: Pasta de textos da professora e do professor. Salvador: Secretaria Municipal de Educao, 2005, p.8.

    35 GERALDO FILME Crioulo cantando samba era coisa feia. Direo: Carlos Cortez. Brasil, 52 min., cor, 35 mm, 1998.

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    negros mestios paulistas ao praticar o samba de bumbo.

    Renem-se um grupo de indivduos, na enorme maioria, negros e seus des-cendentes, pra danarem o samba. Fre-quentemente esse ajuntamento mantm uma noo de coletividade, quero dizer, forma realmente um grupo, um ran-cho, cordo, uma associao enfim cuja entidade definida pela escolha ou im-posio dum chefe, o dono do samba. Esse chefe quem toma determinaes gerais e manda em todos. Manda sem muita fora, obedecido sem muita obri-gao36...

    Renem-se para comungar. Co-mungar de uma msica que os tornam parceiros de uma sociabilidade. Se o samba era a fonte da alegria, ento se deve imaginar que o sorriso, a bebida, o prazer vinham tornar menos sofrida a exatido dos dias. Naquele momento nada mais importava, a no ser sambar. Festa que projetava um presente repleto de possibilidades, onde a msica sina-lizava para um futuro em perspectiva. Mrio de Andrade narra um evento que relampeja aos nossos olhos como um momento promissor. H a organizao de uma forma de sociabilidade festiva que passaria a ser vivida como um costu-me entre os participantes. Construo de laos de identificao que se faziam com a msica. Desse modo, no seria exagero ver nessa experincia social particular, a prtica de um conjunto de costumes

    36 ANDRADE, Mrio de. Aspectos da msica bra-sileira, 2. ed., So Paulo: Martins, Braslia, INL, 1975. p. 148.

    sendo expostos e vivenciados a partir de determinados cdigos como a dana, a msica, o sentimento de grupo e de uma liderana que compartilha poder. Mas o relato mais extenso, permitindo notar como os modos de relao interpessoal so constitudos a partir da msica:

    Na noite de 14 de fevereiro de 1931, foi mesmo sublime de coreografia sexual o par que se formou de repente no centro da dana coletiva. O tocador do bumbo era um negro esplndido, camisa-de--meia azul-marinho, maravilhosa mus-culatura envernizada, com seus 35 anos de valor. Nisso vem pela primeira vez sambando em frente dele uma pretinha nova, de boa doura, que entusiasmou o negro. Comeou danando com despu-dorada eloquncia e encostou o bumbo com afago bruto na negrinha. O par fi-cou admirvel. A graa da pretinha se esgueirando ante o bumbo avanando com violncia, se aproximando quan-do ele se retirava no avano e recuo de obrigao, era mesmo uma graa domi-nadora37.

    Mas o que h ali entre essas duas pessoas seno a felicidade, comandada pelo corao? Tudo o que era razo, com-postura, formalidade e rigidez nos movi-mentos do corpo, ia para o ralo. O que fica um jeito singular de estabelecer relaes amorosas que envolvia o casal. Uma inclinao afetuosa. Mas no essa a graa da vida? Afago, chamego, doura e conquista. E para acabar com a razo

    37 ANDRADE, Mrio de. Aspectos da msica bra-sileira, 2. ed., So Paulo: Martins, Braslia, INL, 1975, p.148.

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    dominadora, branca e masculina, o que acontece entre o casal a completa cons-cincia daquela menina que controla o rapaz e a situao. H que se considerar que um controle dotado de sensibili-dade, de jogo de cintura. Uma cintura que dana, que conquista pela sensao e pela imaginao. Foi a cintura, centro modulador da dana na frica Central, que possibilitou a elaborao de uma corporalidade38 negra sendo vivida pela danarina e pelo tocador de bumbo. O re-lato nos leva inclusive dimenso noturna daquela sociabilidade: na noite de 14 de fevereiro de 1931, foi mesmo sublime.... noite os sistemas de controle sobre a vida ficavam de certa forma, mais frouxos. Devia-se explorar esse horrio como forma de aproveitar os momentos sublimes dedi-cados ao samba de bumbo. O relato revela o jogo de conquista entre o par. Aos olhos dos viajantes e cronistas, nas palavras de Mrio, o samba e o desenrolar da vida em torno dele era tido como algo indecente.

    H explicitamente, no modo dos negros mestios paulistas danarem, um comportamento corporal africano. Pois se percebe que a cintura o princpio que norteia o modo de danar, muito comum nas rodas de dana da frica Central. A cintura das mulheres negras danan-

    38 TAVARES, Julio. Educao atravs do corpo: a representao do corpo nas populaes afro-ame-ricanas. In: AGUILAR, Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: negro de corpo e alma- Black in body and soul. So Paulo: Fundao Bienal de So Paulo de So Paulo; Associao Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p.476. Tavares afirma que o corpo negro coexiste como dispositivo de poder, de identidade e linguagem transparente em seu cotidiano.

    do sinalizam para essa corporalidade. O corpo o lugar por onde se inscreve um modo de se divertir, de alegrar-se e expressar valores. O corpo aparece aqui como a marca simblica de um grupo, no como depsito, mas como espao de construo de memria39.

    O bumbo nas mos dos tocadores merece destaque. Qualquer tentativa de buscar um uso exclusivamente paulista para esse tambor, corre-se o perigo de cometer falha. Pois ele est presente em festas do Nordeste com os maracatus, nas bandas militares imperiais, no Rio de Janeiro com as bandas do Z Pereira no sculo XIX, bandas de carnaval como O Malho no incio do sculo XX e no prprio samba de bumbo de Pirapora.

    Antes da adoo do bumbo pelos negros mestios de So Paulo que iam para a procisso em Pirapora, o samba era feito a partir de um tambor chamado de tambu. Um tambor feito de tronco de rvore, to importante que corrente-mente chamavam de dana do tambu. Affonso A. de Freitas, no livro de Wilson R. de Moraes40, afirma haver a presena do tambu no samba de Pirapora onde iam grupos procedentes de diversas ci-dades do interior e da capital paulista e de outros estados vizinhos:

    39 TAVARES, Jlio. Educao atravs do corpo: a representao do corpo nas populaes afro-ame-ricanas. In: AGUILAR, Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: negro de corpo e alma- Black in body and soul. So Paulo: Fundao Bienal de So Paulo de So Paulo; Associao Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000, p.476.

    40 MORAES, Wilson Rodrigues de. Escolas de samba de So Paulo, capital. So Paulo: Conselho Estadual de Artes e Cincias Humanas, 1978.

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    No centro das rodas, quatro ou seis figu-rantes, quantos comportasse o estreito crculo formado pelos terceiros, dan-avam e cantavam acompanhados em grito pelos da roda... O bombo (sic!) cor-riqueiro e prosaico substitua em todos os grupos de danadores o primitivo e caracterstico tambu41.

    O relato oferece pistas de que o tambu existiu no samba de Pirapora. Mas no suficiente para identificarmos quando se d a passagem do tambu para o bumbo. Provavelmente o modo de se fazer o tambor tambu tenha alguma relao com os povos da frica Central, pois a Ngoma, um nome universal para os tambores nessa regio, est presente em todas as dimenses da vida social, sobretudo a religiosa, onde a Ngoma meio de comunicao entre o mundo dos vivos e o mundo dos ancestrais. O tam-bu e o bumbo, como seu substituto, nas mos dos negros mestios paulistas nas cidades de Pirapora e So Paulo, foram transformados em provedores e moti-vadores de uma sociabilidade sonora, obedecendo ao sentido que os tocadores atribuam.

    Outra questo importante saber por que os negros mestios iam para a procisso em Pirapora. Buscar a respos-ta para essa questo pode oferecer vn-culos entre a frica Central e So Paulo do ponto de vista religioso e musical. As imagens e santos catlicos adorados pe-los africanos no Brasil foram, s vezes,

    41 MORAES, Wilson Rodrigues de. Escolas de sam-ba de So Paulo, capital. So Paulo: Conselho Es-tadual de Artes e Cincias Humanas, 1978. p. 12.

    apropriao dos smbolos cristos, mas tambm uma reinterpretao das prti-cas religiosas africanas como o culto dos Minkisi. Os Minkisi eram amuletos feitos de madeira por povos da regio do Congo, onde se depositavam substncias do mundo natural (folhas) e mineral (pe-dras) para ritualizar crenas nos poderes sobrenaturais. As congadas no Brasil Colnia e Imprio revelam que essa for-ma de religiosidade fora reinterpretada, onde os escravos se apropriaram de figu-ras religiosas do catolicismo, como nossa Senhora da Aparecida, Nossa Senhora do Rosrio e So Joo, atribuindo-lhes sig-nificados semelhantes aos Minkisi42.

    Outra relao o modo como se constitui a crena nessas imagens de santos e santas. Essas figuras religio-sas foram todas resgatadas ou achadas dentro ou beira de rios. A gua para o povo bacongo da frica central o ele-mento de ligao entre o mundo dos vi-vos e dos mortos. A gua representa essa ligao por possuir o poder da purifica-o. Sendo assim, h fortes indcios de uma estrutura de sensibilidade africana que emerge em torno da religiosidade tomando novas formas e configurando um modo de crer que se fez em um novo contexto. Diante dessa experincia que se alterou no seria exagero sugerir que a imagem de Bom Jesus do Pirapora tam-bm assumisse uma identificao como a dos amuletos. Santo esse que foi achado s beiras do rio, na cidade de Bom Jesus

    42 SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista. Histria da festa de coroao de rei congo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

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    de Pirapora, nas primeiras dcadas do sculo XVIII.

    Em funo da historicidade do Bom Jesus, os negros mestios que para aque-la cidade iam, inclusive os da capital, construram uma forma de crena que lembra maneiras africanas de religio-sidade. Bom Jesus, ao ser encontrado e resgatado das guas cumpre a funo de mediador entre o mundo do sagrado e do profano.

    A relao com o sagrado mediada pela indisposio a modos de vida dita-dos pelos formalismos. A relao vivida pelo tocador de bumbo e pela danarina e a relao com figuras religiosas so si-nais concretos da disposio em se entre-gar para um viver tangenciado por tradi-es festivas que tinha como motivo a ida procisso. o que se verifica na relao de romance entre os danarinos presen-tes na festa. A troca afetiva que ali se es-tabelece entre o casal tem no corao o pulso determinante de uma experincia social que, na dcada de 1930, j come-aria a ser sufocada pelo processo mais acentuado de urbanizao. O processo de sufocamento deveu-se s prticas de in-tolerncia por parte dos poderes estabe-lecidos como a Igreja Catlica e a polcia, o que provocou um desnimo entre os participantes; para detrimento do samba vivido em Pirapora do Bom Jesus.

    J educado nesses costumes de tra-os bantu, Geraldo Filme mudou-se com a famlia, por volta de 1933, para a cidade de So Paulo passando a ter residncia no bairro dos Campos Elseos e frequen-tando um dos redutos de sambistas ne-

    gros paulistas nos anos de 1930: o bairro da Barra Funda.

    A me, que se chamava Augusta, desejou uma carreira de mdico. Sonho improvvel para um menino que nos anos de 1930 j frequentava as rodas de samba da Barra Funda, no Largo da Banana. Nesse ambiente comporia, por volta dos dez anos de idade, seu primei-ro samba e aos vinte e dois anos, isso em 1949, j estava cantando na Rdio Am-rica, revelando uma postura decidida do que queria para sua vida. Vivendo uma temporalidade que se movia pelo fazer musical e que daria o rumo de suas es-colhas pessoais, Geraldo Filme foi te-cendo sua histria. Exemplo disso a desobedincia ao projeto de sua me que o queria como mdico. Seu projeto, como ele mesmo disse, era ser Doutor em samba. Geraldo contrariou durante quase sete dcadas a ideia de que a cida-de de So Paulo seria tmulo, ou coisa parecida, do samba. Ele e suas msicas alargaram as fronteiras da cartografia e da memria musical paulistana.

    Nada de romntico ou glamour na escolha de Geraldo. Mesmo porque sua me sabia da vida bomia de seu pai Se-bastio, que tambm foi msico e das diversas vezes que levou amigos alco-olizados para jantar. Apesar de seu pai no beber, aquilo que fazia desagradava profundamente sua me. Tambm sabia o quo difcil era a vida dos negros mes-tios na cidade nas dcadas posteriores escravido, onde sobraram apenas os parcos e inglrios trabalhos como, por exemplo, o domstico. Sua me viveu

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    essa dificuldade como mulher viva que educou sozinha o filho aps a morte do marido, quando Geraldo ainda era crian-a. Portanto, viver de msica seria optar por um caminho difcil. Talvez a esteja o desejo de ver o filho mdico.

    No entanto, os caminhos de Geraldo Filme foram outros. Durante a infncia e adolescncia teve que conciliar seu entu-siasmo junto ao samba com o trabalho de entregador de marmitas. Essa relao e opo pela msica se devem quilo que Geraldo viveu no ambiente familiar, o qual ele chamava de musicalidade, atribuda sua me, sua av e seu pai to-cador de violino.

    O registro da musicalidade na sua memria fez-se, sobretudo, pela oralidade e musicalidade herdadas das geraes anteriores a sua. Foram essas relaes ntimas e familiares que pro-porcionavam a continuao de prticas musicais marcadamente orais, servin-do como elo de ligao, contato e trocas entre geraes distintas. Para Geraldo, a oralidade permitiu a transmisso dos sambas e choros. Ao lembrar-se de sua av que viveu durante as dcadas finais do sculo XIX e as dcadas iniciais do sculo XX, Geraldo oferece pistas dessa relao familiar que se dava atravs da tradio oral nas relaes privadas.

    Oi ti, ti, tioi ti de junqueira, timoa bonita, delrio tiveja que coisa indecente, tideita sem estar casada, tifazendo vergonha pra gente, oi ti.

    Havia por parte de sua av a prtica de cantar msicas que situa a importn-cia da tradio oral entre sua famlia e, como a partir dela se criavam relaes concretas de sociabilidade onde se arti-culavam novos saberes e fazeres musi-cais. Ao atualizar as recordaes sobre a histria da famlia, a presena feminina tem destaque no depoimento. Atravs de sua msica, o trabalho de sua memria deixa evidncias sobre o papel social vi-vido pela me e pela av. So as mulhe-res de sua vida. So heranas femininas que ajudaram a definir o seu modo de ser e estar masculino na cidade. Geraldo refaz na lembrana certas sociabilidades vividas ainda em tempos de escravido. Primeiro a av que vivera os anos de ca-tiveiro, e depois a me que nasceu em 1901, onde sobrevivia ainda uma menta-lidade escravista na sociedade brasileira e paulistana no incio do sculo XX. Lem-brar da av significou reatualizar para sua poca essa memria da escravido. A av busca atravs da prtica musical, construir uma relao com o neto. Por isso, quando Geraldo recorda de sua me e de sua av, nota-se nos seus gestos, na sua vocalidade e no seu olhar uma admi-rao. Geraldo atualizou essa memria musical atravs de uma dimenso afeti-va. no mundo sensvel que essas mu-lheres contriburam para a formao de sua humanidade.

    Junto me e av, seu pai, tam-bm interferiu na formao musical, pois em sua memria h presena do violino, cavaquinho, flauta e os choros no qual o pai participava. Seu pai foi um daqueles

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    chores que contribuiu na formao da msica popular urbana. Durante os anos 30, a cidade de So Paulo passou a ser um espao no qual se multiplicaram os chores que durante o dia ocupavam-se de um trabalho modesto e a noite trans-formavam em msicos nos mais variados lugares da cidade como a rua, cinema, festas e serestas, em troca, muitas vezes, de uma mesa farta e, principalmente be-bida.

    Mas a relao com o pai foi vivida tambm a partir de conflitos e divergn-cias quanto ao modo de conceber o sam-ba feito em So Paulo e no Rio de Janeiro. Seu pai durante a dcada de 1930 viajou para a cidade do Rio de Janeiro, obser-vando como os msicos faziam o samba e concluiu que havia execuo mais apura-da em funo da qualidade e quantidade dos instrumentos que saiam na Avenida. Para o seu pai, os sambistas no Rio esta-vam melhores equipados, em termos de instrumentos que possibilitava uma me-lhor qualidade sonora para o samba, j que os de So Paulo tinham muitas vezes que produzir o prprio instrumento de forma caseira e artesanal. Essa experin-cia vivida pelo pai de Geraldo foi tambm vivida por Dionsio Barboza, que tam-bm esteve no Rio de Janeiro e incorpo-rou elementos do carnaval carioca para fundar o primeiro cordo carnavalesco em So Paulo no ano de 1914. Isso signi-fica que os msicos de So Paulo e Rio de Janeiro j trocavam informaes desde o incio do sculo XX diluindo fronteiras e estabelecendo dilogos.

    Indignado com a ideia de que So Paulo no era o lugar do samba, Geraldo chega a compor uma msica para mos-trar a sua insatisfao e dar uma resposta ao pai por tal afirmao:

    Eu vou mostrar, eu vou mostrarQue o povo paulista tambm sabe sam-barEu sou paulistaGosto de sambaA Barra Funda tambm tem gente bam-baSomos paulistas e sambamos pra ca-chorroPra ser sambista no precisa ser do mor-ro43.

    Demarca uma cartografia para o

    samba paulista, realando espaos da cidade como a Barra Funda. Busca cons-truir uma territorialidade que se situa nos aspectos geofsicos para afirmar uma diferena. No o morro e sim a plancie.

    Geraldo Filme narra a forma como faziam instrumentos - eu e o Zeca da Casa Verde esfolava uns bichaninho para empachar tamborim... ento eram aqueles tamborins quadrados. No ti-nha tarraxa, era tachinha e fogo e d-lhe jornal...44.

    Esses processos artesanais na fa-bricao de instrumentos musicais eram uma prtica rotineira entre os sambistas e um atraso aos olhos das classes domi-nantes que desejavam apagar aquilo que no representasse modernidade. Peles

    43 FILME, Geraldo. A msica brasileira deste sculo por seus autores e intrpretes, p. 78.

    44 FILME, Geraldo. A msica brasileira deste sculo por seus autores e intrpretes. So Paulo: SESC, 2000.

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    de carneiro e cabrito, latas de gordura animal, barricas de madeira eram os ma-teriais utilizados para fabricar bumbos, tamborins quadrados e surdos. Normal-mente as peles de animais eram conse-guidas em curtumes ou ento se compra-vam em lojas de artigos de umbanda. Era no entre-lugar das grandes transforma-es determinadas pela urbanizao em So Paulo que iriam emergir culturas e tempos sociais ditados pela msica configurando as fricas em miniatura; nos interstcios da cultura dominante. A produo artesanal de instrumentos expressava rupturas, alternativas e um contraponto poca impregnada pela urbanizao. A produo de um tamborim era feito manualmente, pois no havia a fabricao manufatura da-quele tipo de instrumento at os idos de 1958/1959 como revela o sambista Os-valdinho da Cuca45.

    No carnaval de 1960, componentes da escola de samba Leandro de Itaque-ra aparecem posando com fantasias e instrumentos percussivos. Trs rapazes, uma moa e um menino seguram bum-bo, agog e tamborim. Especificamente o bumbo possui moldes de fabricao j manufaturados. Os dois processos de fabricao de instrumentos, o artesanal e o manufaturado passaram a coexistir numa mesma atividade ligada msica e ao carnaval. O que se verifica uma mul-

    45 URBANO, Maria Aparecida. Sampa, samba, sambista- Oswaldinho da Cuca, So Paulo: Edi-o do autor, 2004. p.41.

    tiplicidade de intenes, tenses, desejos ocupando um mesmo espao cultural. Aquelas experincias, de Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Osvaldinho da Cu-ca na fabricao artesanal, do domnio da tcnica de execuo dos instrumen-tos, do canto e da dana nos carnavais como se percebe com os componentes da escola de samba Leandro de Itaque-ra, tambm iro fazer parte daquela So Paulo que elaborava seu samba.

    Entre as dcadas de 30 e 50 os ne-gros mestios de So Paulo praticavam o samba e o carnaval como forma de di-verso e como modo de viver. No havia ainda nessas dcadas uma intenciona-lidade voltada para a organizao sis-temtica do carnaval com competies, fantasias e sambas-enredo. Reuniam-se na regio da Praa da S entre as ruas Joo Mendes, Direita e Quintino Bo-caiva apenas para brincar o carnaval. Vinham de diferentes partes da cidade e juntavam entre 20 e 30 ritmistas, que improvisavam tambores com latas de lixo, cavaquinhos e sanfonas, e mais os brincantes que ao todo chegavam a 40 ou 50 pessoas. Mesmo de maneira improvi-sada, esses grupos danavam os sambas e jogavam a tiririca ou pernada paulista.

    Geraldo esteve submerso nessa am-pla gama de prticas musicais, religiosas e festivas como os carnavais, congos, choros, marchas, caterets, catira ou cururu, samba de bumbo, de roda, leno, tambu (a umbigada) e toda uma rede de associaes negras em torno de cordes carnavalescos que j existiam desde as primeiras dcadas do sculo XX e que,

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    direta ou indiretamente, foram incorpo-rados por ele e passaram a constituir um repertrio de saberes e fazeres que com-pusessem a sua memria.

    Geraldo Filme demoliu o clich que afirma ser So Paulo o tmulo do samba ao se negar ilustrao como sua me desejou ao quer-lo mdico; foi a mem-ria surpresa no arquivo sonoro da cidade para alm de Adoniram Barbosa. Sendo assim, ele foi o ponto de fuga, a desobe-dincia, o inusitado, a surpresa suspeita diante do mpeto sedutor da civilizao urbana e metropolitana; percorreu o caminho mido e quente no capturado pela impermeabilizao do espao e da alma; driblou o ambiente cinzento das fbricas, da disciplina performtica dos negcios e servios, da irrealidade tecno-lgica. Viu no samba, a dana da alma. Fez do samba, o antdoto ao enlouqueci-mento lento institudo pela modernida-de paulista. Recusou o nada, preferiu o tudo. Driblou a narrativa piv que insiste em silenciar as memrias sonoras pau-listas e faz triunfar apenas os rudos de fbricas, automveis e outros sons urba-nos. Com ele se v encerrado esse chavo esquemtico. Liberta a cidade da morte fria enclausurada no tmulo e no silncio inventado. Instituiu o lugar mpar para esse samba com memrias rurais e reli-giosas dos tambores de Pirapora do Bom Jesus. Nunca mais So Paulo e os negros e mestios que aqui vivem sero taxados de no musicais.

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    Documentrio

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    Livro

    A MSICA BRASILEIRA DESTE S-CULO POR SEUS AUTORES E INTR-PRETES. GERALDO FILME. So Paulo: SESC, 2000.

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