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GLOBALIZAO E REGULAO SANITRIA
Os rumos da Vigilncia Sanitria no Brasil
Geraldo Lucchese
Tese de concluso Curso de Doutorado em Sade Pblica ENSP/FIOCRUZ
Orientao: Profa. Cristina Possas
agosto/2001
Ao Gino (in memorian) e Odete
Ao Gino, filho, e Patrcia
A todos os que se dedicam
Vigilncia Sanitria no Brasil
A civilizao nascida no Ocidente, soltando suas
amarras com o passado, acreditava dirigir-se para o
futuro de progresso infinito, da economia, da
democracia. Entretanto, aprendemos com Hiroshima
que a cincia era ambivalente; vimos a razo retroceder
e o delrio staliniano colocar a mscara da razo
histrica; vimos que no havia leis da Histria que
guiassem irresistivelmente em direo ao porvir
radiante; vimos que em parte alguma o triunfo da
democracia estava assegurado em definitivo; vimos que
o desenvolvimento industrial podia causar danos
cultura e poluies mortais; vimos que a civilizao do
bem-estar podia gerar ao mesmo tempo mal-estar. Se a
modernidade definida como f incondicional no
progresso, na tecnologia, na cincia, no
desenvolvimento econmico, ento esta modernidade
est morta.
EDGAR MORIN, 2001
ii
AGRADECIMENTOS
Preciso expressar minha gratido a muitas pessoas que me ajudaram neste trabalhoso
empreendimento, apesar de considerar impossvel agradecer a todos que efetivamente
contriburam:
Professora Cristina Possas, pela orientao acadmica efetiva e atitude de
incentivo, mesmo nos momentos mais crticos e improdutivos do trabalho;
Profa. Suely Rozenfeldt, pelos comentrios nos seminrios do doutorado;
aos professores examinadores do trabalho de tese, Edin Alves Costa, Jorge Antonio
Zepeda Bermudez, Maria Eliana Labra, Jos da Rocha Carvalheiro, Jeni Vaitsman e
Andr Gemal;
ao Flvio Freitas Faria, ento Diretor da Consultoria Legislativa da Cmara dos
Deputados, que aprovou o meu afastamento do trabalho para fazer o curso de
doutorado, o que foi ratificado pela Direo Geral e pela Primeira Secretaria da
mesma Casa;
ao Ricardo Rodrigues que, como novo Diretor da Consultoria, teve a mesma
compreenso;
aos meus companheiros de trabalho Mariza Lacerda Shaw, Hugo Fernandes Jnior e
Jackson Semerene Costa, que assumiram uma dolorosa sobrecarga em seu trabalho
nas minhas ausncias;
aos diretores dos rgos estaduais de vigilncia sanitria entrevistados: Marisa Lima
Carvalho (SP), Maria Ceclia Martins Brito (GO), Sirlei Famer (RS), Maria
Conceio Queiroz Oliveira Riccio (BA), Jlio Csar Martins Siqueira (MG) e
Fernando Antonio Viga Guimares (PA), bem como alguns de seus principais
assessores, dos quais no registrei todos os nomes, mas no esqueci a sua atitude
cooperativa;
aos funcionrios da ANVISA, Marta Fonseca Veloso, Ana Paula Juc da Silva e
Tas Porto, pelas entrevistas e informaes;
iii
ao Hlio Dias e ao Gonalo Vecina Neto, pelas entrevistas, mas, principalmente,
pela atitude de aberta colaborao enquanto Consultor Jurdico e Diretor-Presidente,
respectivamente, da ANVISA;
ao Lauro Moretto e ao Vicente Nogueira, do Sindicato da Indstria de Produtos
Farmacuticos no Estado de So Paulo, pela entrevista;
ao Rubens Szyszkowsky e Jos Maria Parisi, do Centro Industrial de Laboratrios
Farmacuticos Argentinos, pela entrevista;
ao Alexandre Pea Ghisleni, do Ministrio das Relaes Exteriores/Diviso do
Mercado Comum, pela entrevista;
ao Nilson do Rosrio Costa, da ENSP/FIOCRUZ, pelas sugestes bibliogrficas e
bibliografia;
Susana Machado DAvila, Ana Clia Pessoa da Silva, rsula Gottschald, Enir
Guerra Macedo de Holanda, Lgia Giovanella, Nelly Marin Jaramillo, ao Carlos
Alberto Pereira Gomes, Ricardo Luis de Melo Martins, Paulo Srgio de M. Tavares,
Luis Fernando Marques e Oviromar Flores, que, mesmo sem saberem exatamente
como, me ajudaram muito;
e, em especial, Patrcia Lucchese, por seu apoio e carinho, pela interlocuo de
idias e por me ajudar em um monte de coisas.
iv
RESUMO O estudo analisa o modelo brasileiro de regulao do risco sanitrio relativo ao campo de
atuao do setor sade no contexto de mudanas recentes no cenrio poltico e econmico de reforma
do Estado, de internacionalizao dos mercados e de acordos e regulamentaes internacionais.
Utiliza os conceitos de avaliao do risco e gerenciamento do risco para caracterizar a natureza
do trabalho de regulao do risco sanitrio e as diferenas existentes em sua execuo no mbito das
agncias regulatrias dos pases centrais e dos pases perifricos. A caracterizao do modelo brasileiro
de regulao do risco sanitrio apresentada a partir de uma anlise descritiva dos principais
componentes do Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria (SNVS) federal, estadual e municipal com
destaque criao da Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA) e o processo de
descentralizao. O estudo aponta insuficincias e precariedades do desenho do Sistema em sua
configurao poltica, jurdica e administrativa, alm de problemas estruturais dos componentes estaduais
e municipais, que comprometem a eficincia da sua ao tanto no plano nacional quanto no
internacional.
Discute ainda processos de regulamentao internacionais, atualizando, luz da literatura
relativa s relaes internacionais, o debate sobre suas implicaes para a democracia e a soberania das
decises locais para o sistema de regulao do risco sanitrio nacional. Como resultado, identifica a
fragilidade institucional nacional em especial, nas reas da poltica, da cincia e tecnologia e da
administrao como o principal constrangimento eficincia do Estado na mediao de interesses
domsticos e externos, necessria para a organizao de intervenes eficazes. Aponta ainda a
significativa ascendncia econmica na determinao dos processos regulatrios analisados, que atua na
conformao de agendas nem sempre compatveis com as necessidades sanitrias.
Por fim, sugere algumas alternativas para a implementao e aperfeioamento do Sistema
Nacional de Vigilncia Sanitria destacando a necessidade de revises em sua estrutura e doutrina de
ao e indica algumas reas para o desenvolvimento de estudos que contribuam para consolidar o
conhecimento do campo da regulao sanitria no Pas.
Palavras-chaves: vigilncia sanitria, avaliao do risco, regulamentao internacional,
globalizao, sistema nacional de vigilncia sanitria.
v
ABSTRACT This study analyzes the Brazilian health risk regulation model in relation to the health sectors
sphere of activity and within the context of recent changes in the political and economic scenario: public
sector reform, internationalization of markets, and international agreements and regulations.
The author uses the concepts of risk assessment and risk management to characterize the nature
of health risk regulation work and the existing differences in its implementation within the sphere of
regulatory agencies in the central and peripheral countries.
Characterization of the Brazilian health risk regulation model is presented through a descriptive
analysis of the creation of the National Health Surveillance Agency (ANVISA) and the main components
(federal, state, and municipal) of the National Health Surveillance System (SNVS). The study identifies
insufficiencies and gaps in both the systems design and its policy, legal, and administrative
configuration, in addition to structural problems in the state and municipal components which jeopardize
the systems efficiency at both the national and international levels.
He discusses international regulation processes and turns to the literature on international
relations to update the debate on their implications for democracy and sovereignty in local decision-
making, as well as for the national health risk regulation system. As a result, the study identifies national
institutional weaknesses, especially in the areas of policy, science and technology, and administration, as
the main constraints to state efficiency in the mediation of domestic and external interests, necessary for
the organization of effective interventions. The study further identifies a significant economic primacy in
determining the respective regulatory processes, acting to shape agendas that are not always compatible
with health needs.
Finally, the author suggests some alternatives and instruments for the implementation and
enhancement of the SNVS as well as key areas for the development of studies to help consolidate
knowledge in the field of health regulation in Brazil.
Key words: health surveillance, risk assessment, risk management, globalization, national
health surveillance systems.
vi
SUMRIO
LISTA DE ANEXOS ................................................................................................................................viii LISTA DE QUADROS E TABELAS.........................................................................................................ix LISTA DE SIGLAS .....................................................................................................................................x APRESENTAO ...................................................................................................................................xiv INTRODUO..........................................................................................................................................19 CAPTULO I METODOLOGIA E ARGUMENTOS DE ANLISE ....................................................26
1.1 Situao problema e principais indagaes .....................................................................................26 1.2 Conceitos e argumentos de anlise ..................................................................................................32 1.3 Consideraes metodolgicas..........................................................................................................38 1.4 Sntese histrica do objeto de anlise ..............................................................................................46
CAPTULO II VIGILNCIA SANITRIA E REGULAO DO RISCO...........................................49 2.1 Inovao tecnolgica e vigilncia sanitria .....................................................................................49 2.2 A vigilncia sanitria e o Sistema nico de Sade..........................................................................54 2.3 Risco sanitrio e sistemas regulatrios ............................................................................................56
CAPTULO III A REFORMA DO ESTADO E A CRIAO DA AGNCIA NACIONAL DE VIGILNCIA SANITRIA - ANVISA....................................................................................................78
3.1 Reforma do Estado e administrao gerencial.................................................................................80 3.2 A criao da Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria ..................................................................92 3.3 Uma anlise do processo ...............................................................................................................104 3.4 O modelo de vigilncia sanitria no final dos anos 90 ..................................................................108
CAPTULO IV O SISTEMA NACIONAL DE VIGILNCIA SANITRIA .....................................125 4.1 A vigilncia sanitria federal: nova estrutura ................................................................................129 4.2 A vigilncia sanitria estadual .......................................................................................................133 4.3 Os municpios e a vigilncia sanitria ...........................................................................................152 4.4 A descentralizao e o Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria .................................................163
CAPTULO V NEGOCIAO INTERNACIONAL DO CONTROLE SANITRIO .......................178 5.1 Soberania, democracia e controle sanitrio nos acordos do Gatt ...................................................180 5.2 Harmonizao dos regulamentos tcnicos sanitrios no Mercosul................................................205 5.3 Processo de regulamentao do Codex Alimentarius.....................................................................236 5.4 Conferncia Internacional sobre Harmonizao ............................................................................243 5.5 Harmonizao da regulamentao farmacutica na Amrica Latina .............................................249 5.6 Regulamentao reducionista ........................................................................................................253 5.7 Outros acordos e regulamentos internacionais de importncia para a sade .................................262
CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................................................265 BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................................294 ANEXOS..................................................................................................................................................308
LISTA DE ANEXOS
Anexo 1. Diagrama Elementos da avaliao do risco e gerenciamento do risco.......312 Anexo 2 Organograma do Mercosul .............................................................................313 Anexo 3 Organograma do SGT11 Sade ...................................................................314 Anexo 4 Relao das aes de vigilncia sanitria por graus de complexidade...........315 Anexo 5 Lista de entrevistas .........................................................................................316 Anexo 6 Questionrio para levantamento dos recursos dos rgos estaduais de
Vigilncia Sanitria.................................................................................................317 Anexo 7 Roteiro para grupo focal com o diretor e/ou tcnicos dos rgos estaduais de
Vigilncia Sanitria.................................................................................................326
LISTA DE QUADROS E TABELAS
Quadro 1. Existncia de rgos estaduais regionais de sade nas unidades federadas maio/2000 ......142 Quadro 2. Suporte laboratorial para aes de vigilncia sanitria nas unidades federadas pesquisadas maio/2000.................................................................................................................................................143 Tabela 1. Dotao oramentria do rgo federal de vigilncia sanitria 1995-2000 valores correntes R$ 1.000,00 ..............................................................................................................................................130 Tabela 2. Transferncias de recursos da ANVISA 1999/2000 em R$ 1.000,00.................................130 Tabela 3. ANVISA arrecadao de receita prpria 2000 em R$ 1.000,00 ......................................131 Tabela 4. Denominao dos rgos de vigilncia sanitrias nas unidades federadas pesquisadas maio/2000.................................................................................................................................................141 Tabela 5. Localizao hierrquica dos rgos de vigilncia sanitria nas unidades federadas pesquisadas maio/2000.................................................................................................................................................141 Tabela 6. Distribuio percentual de tcnicos das vigilncias estaduais, por categoria profissional maio/2000.................................................................................................................................................145 Tabela 7. Distribuio de tcnicos das vigilncias estaduais, por categoria profissional, nos estados pesquisados, exceto So Paulo maio/2000 ............................................................................................146 Tabela 8. Amplitude salarial dos servidores estaduais da vigilncia sanitria .........................................147 Tabela 9. Nmero de resolues do Mercosul aprovadas nas comisses 1992 - 2000..........................234
LISTA DE SIGLAS
ABRASCO Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva ADPIRC Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao
Comrcio Tambm referido como TRIPS (Trade Related Intelectual Property)
ALADI Associao Latino-Americana de Integrao ALALC Associao Latino-Americana de Livre Comrcio ALCA rea de Livre Comrcio das Amricas ALIFAR Associao Latino-americana de Indstrias Farmacuticas AMSF Acordo de Medidas Sanitrias e Fitossanitrias.
Tambm referido como SPS (Sanitary and Phitosanitary) ANMAT Administracin de Medicamentos, Alimentos y Tecnologia Mdica ANVISA Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria ANVS Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD Banco Internacional para a Reconstruo e o Desenvolvimento.
Mais conhecido como Banco Mundial BSE Bovine Spongiform Encephalopathy BTC Acordo sobre Barreiras Tcnicas ao Comrcio CA Comisso de Alimentos / SGT 3 Regulamentos Tcnicos e Avaliao de
Conformidade CEBES Centro Brasileiro de Estudos da Sade CF Constituio Federal CFC Cloro-flor-carbono CILFA Centro Industrial de Laboratorios Farmacuticos Argentinos CLT Consolidao das Leis do Trabalho CNI Confederao Nacional da Indstria CNS Conselho Nacional de Sade CO2 Gs carbnico ou dixido de carbono CONASS Conselho Nacional dos Secretrios Estaduais de Sade CONASSENS Conselho Nacional dos Secretrios Municipais de Sade CONMETRO Conselho Nacional de Metrologia, Normalizao e Qualidade Industrial COOPERALA Cooperativa de Laboratrios Argentinos de Especialidades
Medicinales CPI Comisso Parlamentar de Inqurito CPS Comisso de Produtos para a Sade / SGT 11 Sade / Mercosul CPSC Comisso de Segurana ao Consumidor de Produtos (Consumer Product Safety
Comission)
CRAME Comisso Tcnica de Assessoramento de Assuntos de Medicamentos e Correlatos CTNBio Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana CVS/SES/SP Centro de Vigilncia Sanitria/ Secretaria Estadual de Sade/So Paulo DATASUS Departamento de Informtica do Sistema nico de Sade DCJ Doena de Creutzfeldt-Jakob DOA Servio de Inspeo e Segurana dos Alimentos (Food Safety and Inspection
Service) DOL Administrao da Segurana e Sade nas Minas (Mine Safety and Heath
Administration) EEB Encefalopatia Espongiforme Bovina EMEA European Medicines Evaluation Agency EPA Agncia de Proteo Ambiental (Enviromental Protecting Agency) FAA Administrao Federal da Aviao (Federal Aviation Administration) FAO Organizao para a Alimentao e Agricultura (Food and Agriculture
Organization) FDA Administrao dos Alimentos e Medicamentos (Food and Drug Administration) FENAFAR Federao Nacional dos Farmacuticos FENAM Federao Nacional dos Mdicos FIFARMA Federao Latino-americana da Indstria Farmacutica FIOCRUZ Fundao Oswaldo Cruz FMI Fundo Monetrio Internacional GATT Acordo Geral de Tarifas e Comrcio (General Agreement on Tariffs and Trade)
GMC Grupo Mercado Comum IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renovveis ICDRA Conferncia Internacional de Autoridades Reguladoras ICH Conferncia Internacional de Harmonizao IDEC Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidos IFPMA International Federation of Pharmacetical Manufacturers Associations INAMPS Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social INCQS Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Sade INMETRO Instituto Nacional de Metrologia, Normalizao e Qualidade Industrial INVIMA Instituto de Vigilncia de Medicamentos e Alimentos JECFA Joint Expert Comitte on Food Additives MARE Ministrio da Administrao e Reforma do Estado Mercosul Mercado Comum do Sul MP Medida Provisria MPAS Ministrio da Previdncia e Assistncia Social MPO Ministrio do Planejamento e Oramento MS Ministrio da Sade NESCON Ncleo de Estudos de Sade Coletiva NESP/UnB Ncleo de Estudos de Sade Coletiva da Universidade de Braslia NHS National Health Service NHTSA Administrao Nacional do Trfego de Autopistas (National Highway Traffic
Safety Administration) NOB 96 Norma Operacional Bsica de 1996 NRC Comisso de Regulao Nuclear (Nuclear Regulatory Commission) OECD Organization for Economic Co-operation and Development OGMs Organismos geneticamente modificados OMC Organizao Mundial do Comrcio
xi
OMS Organizao Mundial da Sade ONG Organizao No-governamental ONGs organizaes no-governamentais ONU Organizao das Naes Unidas OPS Organizao Pan-americana da Sade OSHA Administrao da Segurana e da Sade Ocupacional (Occupacional Safety and
Health Administration) P&D Pesquisa e Desenvolvimento PAB Piso Assistencial Bsico PDAVS Programa Desconcentrado de Aes de Vigilncia Sanitria PITS Programa de Interiorizao do Trabalho em Sade PP Partido Popular PRO-LACEN Programa Nacional de Reconstruo dos Laboratrios Centrais de
Sade SAF Secretaria da Administrao Federal SES Secretaria Estadual de Sade SGT Subgrupo de Trabalho / Mercosul SIA/SUS Sistema de Informaes Ambulatoriais do Sistema nico de Sade Sindusfarma Sindicato da Indstria de Produtos Farmacuticos no Estado de So |Paulo SMS Secretaria Municipal de Sade SNVS Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria SNVS/MS Secretaria Nacional de Vigilncia Sanitria do Ministrio da Sade SOBRAVIME Sociedade Brasileira de Vigilncia de Medicamentos SPGV Solues Parenterais de Grande Volume SUS Sistema nico de Sade SVS Secretaria de Vigilncia Sanitria TBC Tecnical Barriers on Trading TRIPS Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights UNCTAD United Nations Conference on Trading and Development UNTACD Conferncia das Naes Unidas sobre o Comrcio e o Desenvolvimento (United
Nations Conference on Trading and Development) VISA Vigilncia Sanitria WHO World Health Organization
xii
APRESENTAO
Este estudo destina-se concluso do Curso de Doutorado em Sade Pblica, rea de Polticas
Pblicas, da Escola Nacional de Sade Pblica/FIOCRUZ. Ele aborda o tema da vigilncia sanitria, ou
melhor, examina o arranjo estatal encarregado de executar as aes de vigilncia sanitria no Brasil.
Durante minha trajetria profissional, uma parte dela dedicada vigilncia sanitria, percebi a
relevncia social e econmica deste importante campo de regulao estatal, que padecia de muitas falhas
de desempenho, em especial por sofrer de graves problemas estruturais de organizao. Entretanto, mais
lamentvel do que a precariedade de sua estrutura era a sua marginalidade dentro do debate da sade
pblica brasileira que, sistematicamente, sempre esteve presente na agenda pblica e dos movimentos
sociais.
Apesar da precariedade de sua estruturao e da pouca importncia e visibilidade dentro do
espao acadmico e do debate da sade, percebi que a vigilncia sanitria era uma rea fascinante e muito
importante para: i) a sade pblica, por buscar o controle dos riscos sanitrios envolvidos na produo e
consumo de produtos e servios; ii) a reverso do modelo antigo de ateno sade, pela possibilidade de
regulamentar os servios, organizando-os segundo uma nova lgica dentro do novo sistema de sade; e
iii) para o desenvolvimento da cidadania no Pas.
Identifiquei tambm uma relao importante com muitos setores da economia, em funo de
seu potencial para implementar o valor da qualidade, no apenas nos produtos sob seu controle, mas
tambm nas relaes sociais que envolvem toda a cadeia da produo ao consumo de produtos e servios
de interesse para a sade.
Uma bela misso. Porm com escassa possibilidade de ser cumprida por sua baixa visibilidade,
precria estruturao e pouca fora poltica. A fragilidade institucional e o patrimonialismo tpico da
administrao pblica brasileira deixava-a suscetvel aos interesses polticos e econmicos mais
poderosos.
Era tambm uma rea praticamente inexplorada em termos de debates no processo da reforma
do nosso sistema de sade, intenso durante os anos oitenta, e em termos de estudos acadmicos. Toda a
literatura sobre o sistema de sade e previdncia e sobre a reforma sanitria no Brasil, at meados dos
anos noventa, praticamente no contemplava a vigilncia sanitria de forma especfica.
A reforma do Estado, promovida durante o Governo Collor, embora estivesse embalada pela
diretriz da qualidade e produtividade, no percebeu o potencial reformador da vigilncia sanitria. Em
lugar de dot-la dos recursos necessrios ao seu pleno funcionamento, realizou uma convulso gerencial
simplificadora apenas no sentido de agilizar as respostas s peties das indstrias. A situao de
precariedade estrutural da Secretaria Nacional de Vigilncia Sanitria que perdeu o Nacional no nome -
no apenas continuou, mas tornou-se maior, deixando-a mais vulnervel ainda. A vigilncia sanitria nos
estados e municpios igualmente permanecia precria.
A criao do Mercosul, por outro lado, tinha um potencial de alavancar a ao da SVS/MS pois
exigia debates, organizao e propostas, tendo em vista a necessidade de harmonizar os regulamentos
tcnicos e a perspectiva de receber produtos dos outros Estados Partes. Mas essa atividade era tambm
marginal dentro do Ministrio da Sade.
Mesmo dentro do Ministrio da Sade, percebia que poucas pessoas entendiam a importncia
da vigilncia sanitria para a sociedade. E tambm que a sua lamentvel situao trazia muitos riscos
coletividade e que incomodava at mesmo alguns agentes privados pela incerteza da ao regulatria
estatal.
Sua marginalidade parecia crnica. Era evidente que a vigilncia sanitria tinha que ser mais
conhecida, mais estudada, mais problematizada. Assim, mesmo aps ter deixado o trabalho no Ministrio
da Sade, me propus a fazer um doutorado tendo como objeto de estudo a vigilncia sanitria no Brasil.
Entretanto, a abertura econmica e a globalizao traziam novas demandas e presses como
o grande volume de importaes, os acordos internacionais e a formao do Mercosul e de outros blocos
de integrao econmica. A influncia externa parecia ser cada vez mais presente e influente nos
processos de tomada de deciso na agenda pblica.
Um dilema metodolgico logo se apresentou: estudar os processos de regulamentao sanitria
no mbito das relaes internacionais, como o do Mercosul, ou estudar a organizao da vigilncia
sanitria no Brasil?
Apesar das presses para fazer uma ou outra coisa, uma vez que requerem tratamento terico e
metodolgico distintos, decidi fazer, talvez muito ousadamente, as duas, pois entendia que, a partir da
poltica de abertura ao mercado global, elas fatalmente andariam cada vez mais juntas, interdependentes.
Em outras palavras, a organizao da vigilncia sanitria, assim como outras instituies nacionais, seria
cada vez mais entrelaada com os acordos, convenes, protocolos regulamentaes e outros processos
normativos pactuados e realizados em foros internacionais.
Problemas com a Argentina, referentes aos trabalhos de harmonizao da regulamentao no
Mercosul, em 1996, e os escndalos das falsificaes e outros problemas graves que aconteciam
principalmente na rea dos medicamentos e dos servios de sade, nos meses finais de 1997, fizeram a
sociedade, e o Estado tambm, tomar conhecimento da importncia da vigilncia sanitria. Ela saa,
finalmente, da marginalidade. Todos queriam uma agncia forte e poderosa para tratar da regulao
sanitria; algo como era a Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, citada por todos
envolvidos no assunto.
Entretanto, algo me parecia estranho: o tipo de trabalho que faz a FDA poderia ser realizado no
Brasil? Coaduna-se com o tipo de trabalho que necessitamos? Este estudo tambm buscou elucidar estas
questes.
A velocidade dos acontecimentos aps os problemas de 1996 e os escndalos de 1997, que
continuaram em 1998, atropelaram literalmente o meu estudo. A entrada da vigilncia sanitria na agenda
poltica e a segunda onda de reformas do Estado, iniciada em 1995, no Governo FHC formavam um
xiv
cenrio especialmente favorvel para a desejada reestruturao da Secretaria de Vigilncia Sanitria do
Ministrio da Sade, em cogitao desde 1994. A Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA)
foi criada no final de 1998, de forma relativamente rpida aps a posse do Ministro Jos Serra no
Ministrio da Sade. O custo deste aproveitamento do momento poltico favorvel foi a pobreza do
debate sobre o Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria (SNVS), que foi formalizado na mesma
legislao que criou a Agncia.
Como est constitudo esse Sistema? Parte considervel deste estudo buscou responder essa
pergunta. Unio, estados e municpios, principalmente, articulados de forma precria em um arranjo
extremamente diversificado, so os atores principais neste cenrio, cujo movimento segue a linha-mestra
da descentralizao.
Enquanto parte integrante do Sistema nico de Sade, o SNVS deve seguir a mesma lgica de
descentralizao desenhada para os servios assistenciais, certo? Sem estar convencido desta lgica,
empreendi um esforo para analisar a interpretao predominante do conceito de descentralizao, mais
ou menos emblematizada no jargo o nvel federal no executa nada, o estado, somente o
imprescindvel; a execuo cabe ao municpio. Essa interpretao ma parecia carente de poder
orientativo suficiente para comandar a estruturao do SNVS.
Os estados devem prestar cooperao tcnica para que os municpios assumam e executem as
aes de vigilncia sanitria que eles executavam, certo? Errado. O processo de municipalizao das
aes de vigilncia sanitria constitui um valioso potencial para a impulso da mudana do modelo
tradicional de organizao da ateno sade no nvel local. Na maioria dos municpios, que so mdios
e pequenos, no precisaria (nem) existir, necessariamente, um rgo especfico de vigilncia sanitria.
Suas aes, que no deveriam ser executadas de forma separada das outras aes de sade, poderiam
compor o conjunto de novas prticas sanitrias, como aquelas contidas na concepo de vigilncia da
sade, proposta j suficientemente tematizada por autores como Jairnilson Paim, Carmem Teixeira, Ana
Vilasbas e Eugnio Vilaa Mendes, entre outros dedicados sanitaristas brasileiros.
Em resumo, o SNVS, que no foi objeto de nenhum debate ex ante, durante o seu processo de
criao, ou formalizao, e que apresenta srios problemas estruturais, est a exigir um urgente debate
especfico ex post, que encontre alternativas para melhor orientar a sua complexa estruturao, ou melhor,
a sua existncia de fato.
Entretanto, no se podem mais conceber instituies domsticas sem entender seus vnculos
com demandas e presses oriundas de processos internacionais. Apesar de ainda se estar longe de poder
afirmar a desimportncia do estado-nao, como pregam alguns autores globalistas, foroso reconhecer
que este j no o mesmo, principalmente em autonomia e soberania, de algumas dcadas atrs. Uma
comunidade internacional vai, gradativamente se tornando mais consistente, acompanhada de uma
normatizao, tambm cada vez mais ampla, das relaes entre os estados, que limita sua ao autnoma.
Por sua vez, o processo da globalizao est gerando grandiosas corporaes empresariais, cujo
poder econmico e poltico j ultrapassa aquele de muitos estados-nao, at ento os atores principais do
sistema de relaes internacionais.
xv
Como a questo dos movimentos internacionais interagem com a institucionalidade interna dos
pases e qual a importncia desta relao para o sistema de vigilncia sanitria? Outra parte deste estudo
foi direcionada para examinar esta questo.
O SNVS faz parte desta institucionalidade, do estado-nao Brasil, no plano da regulao do
risco sanitrio. Sua fragilidade o deixar inadimplente ao mesmo tempo nos dois planos nacional e
internacional pois os problemas cada vez menos podero ser classificados como internos ou externos.
Em outras palavras, a tendncia, no contexto da abertura ao mercado global, a diminuio da quantidade
de problemas exclusivamente domsticos, sem contraface nenhuma com algum processo internacional.
Por isso, enganoso pensar que o SNVS deve preocupar-se apenas com os problemas internos.
Processos internacionais de regulamentao foram analisados no sentido crtico dos seus
objetivos. O estudo realizado na rea de relaes internacionais fundamentou minha anlise desses
processos internacionais de regulamentao e confirmou a intuio a respeito da importncia da
normatizao internacional para o Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria.
Enfim, este estudo, buscou debater a rea de vigilncia sanitria, ao mesmo tempo em que
procurou realizar uma espcie de diagnstico, o qual chamei de caracterizao do modelo brasileiro de
regulao do risco sanitrio. Esta caracterizao identificou algumas teses a respeito do SNVS que trazem
apreenso a todos aqueles preocupados com a rea de Vigilncia Sanitria no Brasil, apesar dos avanos
que vemos nela acontecendo.
xvi
INTRODUO
O objetivo deste trabalho o de analisar o modelo de vigilncia sanitria existente no Brasil,
examinando sua funo regulatria e caracterizando sua atual estrutura, tendo em conta, principalmente,
os processos da reforma do Estado e da internacionalizao da regulamentao.
A vigilncia sanitria, tal como foi instituda no Brasil, abrange a regulao de um leque muito
grande de produtos e servios, de natureza diversa, agrupados nos grandes ramos: dos alimentos; dos
medicamentos; dos produtos biolgicos, tais como vacinas e derivados de sangue; dos produtos mdicos,
odontolgicos, hospitalares e laboratoriais; dos saneantes e desinfestantes1; dos produtos de higiene
pessoal, perfumes e cosmticos, alm do controle sanitrio dos portos, aeroportos e estaes de fronteiras
e da ampla gama de servios de interesse sade2.
A variedade dos tipos e de graus de complexidade das tecnologias envolvidas nesses produtos e
servios confere vigilncia sanitria uma natureza de alta especializao nesses ramos e nos sub-ramos
que eles contm. Cada um desses produtos ou grupos de produtos constitui um universo prprio, passvel
de estudo, cuja realizao exige conhecimentos de diferentes disciplinas.
Entretanto, o propsito maior deste estudo no o de examinar a forma e o contedo do
controle institudo para algum desses produtos ou grupo de produtos. Antes, a inteno empreender uma
descrio analtica do arranjo de instituies moldado historicamente, que, no Brasil, permite a
interveno do Estado no controle sanitrio de todos os principais produtos e servios que envolvem risco
sade.
Assim, importante enfatizar que o objeto deste estudo a estrutura institucional3 construda
no pas para realizar a regulamentao e o controle dos potenciais perigos decorrentes da tecnologia
incorporada nos produtos e servios includos no regime da vigilncia sanitria. Em outras palavras, o
estudo aqui mostrado no se refere vigilncia sanitria de alguns desses produtos ou grupo de produtos,
em especial, nem ao controle sanitrio nos pontos de entrada do pas. As menes feitas a eles no interior
do texto servem apenas para ilustrar as descries e exemplificar as anlises efetuadas.
No foi apenas a carncia de estudos com essa abordagem mais horizontal da rea da
vigilncia sanitria o principal incentivo para a escolha deste recorte. Outros fatores tambm contriburam
1 Desifestante o termo utilizado pela vigilncia sanitria para produtos tais como inseticidas e raticidas. Difere, pois, de desinfetante, mais utilizado para germicidas em geral. 2 A Lei n 8.080/90 tambm inclui, nas atribuies da vigilncia sanitria, o controle dos riscos sade derivados do meio ambiente. 3 O conceito de instituio aqui utilizado inclui organizaes formais, regras informais, procedimentos e prticas padronizadas que moldam as relaes na sociedade.
para essa deciso. Em primeiro lugar, a falta de clareza quanto natureza do arranjo institucional
existente e sua adequao face realidade e s necessidades nacionais. Em segundo, a ausncia de
avaliaes mais formalizadas acerca da operacionalidade desse arranjo escolhido para executar o controle
sanitrio no pas. Em terceiro talvez, com maior ponderao a existncia de um processo de reformas
ensaiado desde o incio da dcada passada no nvel federal, muito necessrio, mas que demanda
direcionamento e decises bem informadas tanto no plano analtico diagnstico das fragilidades
estruturais e organizacionais, dados e indicadores sociais e econmicos, principais riscos sanitrios e
assim por diante quanto no de polticas participao dos agentes envolvidos com o controle sanitrio.
Enfim, a questo que se impe : qual o modelo de interveno da vigilncia sanitria nacional, quais
seus problemas e suas tendncias?4
No obstante a amplitude do objeto recortado, a abordagem do estudo privilegiou uma de suas
variadas inter-relaes, ou seja, ampliou-o um pouco mais. Ateno especial foi dada dimenso da
regulamentao internacional em funo do visvel crescimento da importncia dos acordos e processos
internacionais de regulamentao ou de harmonizao de regulamentos na rea sanitria, processos esses
que influenciam a tomada de decises e a formulao das polticas nacionais.
De fato, no plano do comrcio internacional, o incremento do volume de produtos
manufaturados submetidos a controles no tarifrios menos de 1% em 1974, para cerca de 20% em
1985 (MILNER, 1997b:193) fez aumentar a importncia das instituies relacionadas com a regulao
sanitria.
Ter-se-ia intensificado a preocupao da comunidade internacional, principalmente, a dos
pases mais industrializados, com o risco sanitrio e com a sade das populaes do mundo? Ou o
crescimento da importncia das instituies regulatrias internacionais estaria relacionado, antes, no
contexto da liberao econmica mundial, possibilidade do uso de medidas sanitrias como barreiras
disfaradas ao comrcio internacional? O estudo busca oferecer algumas descries e anlises acerca
desse intrigante assunto.
Parto da constatao de que a velocidade e a intensidade das mudanas ocorridas no
funcionamento do mercado internacional trouxeram a exigncia de alteraes no desenho e nas funes
do Estado, inclusive no desenho e nas funes do aparato da vigilncia sanitria. No Brasil, no incio da
dcada de noventa, houve modificaes bastante decisivas tanto em relao estrutura e organizao do
Estado brasileiro, quanto nas concepes a respeito de suas funes na busca do desenvolvimento do pas.
No plano da economia, no que concerne aos objetivos deste trabalho, a mudana mais
importante , certamente, a derrubada das fronteiras alfandegrias atravs da extino, equiparao ou
diminuio dos impostos aduaneiros. Esta abertura vista como imperativa para estabilizar a economia e
inserir o pas na concorrncia do mercado internacional, alm de significar o cumprimento de acordos
internacionais de liberao do comrcio.
A abertura alfandegria desencadeia um processo que percebe a regulamentao sanitria como
uma barreira livre circulao de mercadorias e submete nossa legislao ao crivo de tratados
internacionais de comrcio, multi ou bilaterais, exigindo sua acomodao s regras da recm fundada
4 Emprego o termo modelo para referir-me composio e ordem dos elementos do todo, bem como as relaes que eles determinam entre si, e no no sentido de exemplo, de um arranjo exemplar que deveria
Organizao Internacional do Comrcio e s dos blocos regionais de integrao econmica, como o
Mercosul.
Nesse contexto, foros e processos de regulamentao internacionais a exemplo do Codex
Alimentarius, entre outros assumem importncia cada vez maior e suas regras so tomadas como
referncia para a avaliao e a gerncia do risco sanitrio, tal como para a arbitragem de controvrsias no
comrcio mundial. O deslocamento de decises de avaliao e gerenciamento do risco sanitrio para
espaos internacionais tem reflexos no plano da soberania e da democracia dos Estados, em particular,
nos pases perifricos ou em desenvolvimento.
No plano poltico, o novo modelo de desenvolvimento trouxe a necessidade de mudar as
funes e o aparato do Estado. Alm da consolidao das instituies e do processo de redemocratizao,
a reforma do Estado e seus corolrios, como, por exemplo, a desregulamentao, a privatizao, a
descentralizao e as novas formas de regulamentao e controle representadas pelas agncias
regulatrias e executivas introduz inovaes de igual relevncia para este estudo.
O desenvolvimento da cincia e da tecnologia, por seu lado, traz novas questes como os
organismos geneticamente modificados e as clonagens de seres vivos que significam mudanas nas
relaes humanas e com a natureza, demandando novas formas de regulao e de controle para a proteo
da sade e da vida.
Considero tambm as reiteradas manifestaes de descontentamento quanto eficcia da
vigilncia sanitria no Brasil.5 A anlise que se faz da vigilncia sanitria brasileira seja no trabalho
formal dos autores que a estudam, nas apreciaes informais dos empresrios que so seus clientes, nos
relatos dos tcnicos dos diferentes nveis de governo que nela trabalham, ou, ainda, pelos cidados e
consumidores atravs de suas representaes a de uma rea de interveno do Estado que funciona
precariamente.
Tanto a abertura da economia, que muda a estrutura do setor produtivo6 e requer maior esforo
de regulao sanitria, quanto a realizao da reforma do aparelho do Estado, que pretendeu
redimensionar seu tamanho, suas funes e seu modelo de administrao processos vistos como de
importncia estratgica para o pas , tm impactos significativos no campo da vigilncia sanitria e
questionam sua precariedade.
A relao analtica mais geral , portanto, entre o modelo de vigilncia sanitria de que
dispomos e alguns dos acontecimentos que marcaram especialmente a economia e a poltica durante a
dcada de noventa e que tm repercusses na sade coletiva em particular, a internacionalizao dos
mercados e da regulamentao sanitria e as mudanas no aparelho do Estado.
ser copiado, como a sua interpretao mais formal. 5 Ver Revista Sade em Debate n 19, 1987; ROZENFELD (1989); VAITSMAN et al (1991); Revista Sade em Debate n 7, 1992; BERMUDEZ (1995); Souto (1996); BONFIM & MERCUCCI (orgs.) (1997); COSTA (1999); a respeito de denncias de corrupo ver, por exemplo, Correio Braziliense de 28. 08.96, de 29.09.96 e de 10.05.97; Folha de So Paulo de 17.10.96; e O Estado de So Paulo de 07.10.97, entre muitas outras referncias. 6 Determina, entre outras coisas, deslocamentos da produo a outros pases, fuses de empresas, maior escala de produo, terceirizao de etapas produtivas dentro e fora do pas, aumento de competitividade em termos de qualidade e produtividade e de inovaes tecnolgicas.
Ponderando que a vigilncia sanitria e sua possibilidade de atuao so elementos ainda
pouco (re)conhecidos7 apesar de sua importncia para a sade pblica, empenho-me em contribuir para
um melhor esclarecimento da populao, dos interessados e dos profissionais da rea, buscando uma
interpretao plausvel do modelo brasileiro de vigilncia sanitria, tendo em conta os processos externos
que interceptam a ao regulatria do Estado nessa rea. Um esforo de teorizao para melhor conhecer
e entender a natureza da vigilncia sanitria e situ-la entre os temas sociais de necessidade de estudos
tambm faz parte deste empenho.
Trs linhas de indagao orientam a anlise realizada. A primeira, busca esclarecer a natureza
bsica do trabalho da vigilncia sanitria. Para isso, estabeleo inicialmente um dilogo com os conceitos
de avaliao do risco e de gerncia do risco, fundamentais para a estruturao das intervenes do
Estado no campo da regulao do risco sanitrio, procurando caracterizar esse processo e identificar as
diferenas entre a regulao efetuada pelos pases mais desenvolvidos e os pases em desenvolvimento.
A segunda linha trata de investigar como esto institucionalizadas as aes de vigilncia
sanitria no Brasil, com nfase no estudo dos rgos estaduais de vigilncia sanitria. As respostas
orientaram-se para o desvendamento da situao legal, da estrutura organizacional e das formas de
participao ou controle da sociedade sobre o aparato administrativo que executa a regulao sanitria.
Assim, busquei identificar a organizao do modelo atual e sua funcionalidade: de quais recursos dispe,
quais as relaes entre os nveis de governo e quais suas principais deficincias.
Inspirado no uso que HOCHMAN (1998) fez dos conceitos utilizados por DE SWAAN (1988) em
sua anlise do surgimento das polticas sociais, concebo o modelo de vigilncia sanitria existente no
Brasil como uma tentativa de coletivizao da administrao dos efeitos externos, ou externalidades,
decorrentes da produo e circulao de bens e pessoas e da prestao de servios de interesse para a
sade. A conscincia da interdependncia das partes constituintes do sistema rgos federais, estaduais
e municipais vista como elemento indispensvel para a construo da administrao coletivizada,
assim como a existncia de laos de unidade nacional. A tipologia das alternativas construdas
historicamente para a superao dos problemas da interdependncia utilizada por aqueles autores
solues individuais, solues voluntrias e cuidados coletivizados (estatais) usada, em forma de
analogia, para identificar as formas possveis de organizao do sistema de vigilncia analisado.
Uma terceira linha de indagao ocupa-se em analisar os processos internacionais de
regulamentao sanitria, procurando identificar suas relaes com a nossa realidade institucional em
especial, no que se refere s tenses entre as presses externas e a formulao das polticas domsticas e
considerando as repercusses que esses processos internacionais criam com os pressupostos de
democracia e soberania da regulao estatal.
Foram as orientaes de BECKER (1996:70) que determinaram a ateno em organizar essas
linhas indagativas que contm o conjunto principal de questes que precisavam ser respondidas na
pesquisa como fundamento para a definio dos procedimentos e da metodologia que seriam adotados
para efetuar o estudo pretendido. Assim, atentando para as caractersticas dos diferentes objetos de estudo
7 No ano de 1997, a populao tomaria conhecimento da vigilncia sanitria infelizmente, de forma negativa , em funo dos escndalos com medicamentos falsificados e adulterados noticiados durante meses na televiso e outros meios de comunicao.
componentes destas linhas de indagao, fui buscando formas para perceb-los e examin-los, tendo em
conta meus objetivos e as limitaes de recursos.
As respostas primeira linha de indagao vieram do estudo terico da literatura sobre risco
sade. Aquelas da segunda linha foram obtidas por meio de grupos focais e de entrevistas, de documentos
oficiais, de levantamentos por meio de questionrios, de fontes secundrias e de observao participante.
Novamente, na terceira linha de questionamento, recorri literatura de modo mais enftico, mas tambm
utilizei a observao participante, bem como a busca de informaes na rede web e em documentos
oficiais dos organismos internacionais, principalmente para fazer descries tcnicas de seus processos de
regulamentao/harmonizao.
Desse modo, esta tese tem uma natureza mais terica, estando constituda de cinco captulos. O
primeiro, tem feio metodolgica: complementa a introduo no sentido da descrio do campo e da
importncia da vigilncia sanitria, da situao-problema que ela representa e das principais indagaes;
explicita conceitos analticos fundamentais, bem como os argumentos de anlise; e dispe sobre as
principais idias metodolgicas que serviram de orientao ao estudo. Traz ainda um breve fragmento
histrico que, a despeito de aparecer um pouco deslocado no contexto, me pareceu til para mostrar o
carter de processo que a vigilncia sanitria percorre nos diferentes momentos polticos e econmicos da
histria, at localizar o modelo atual, objeto do estudo.
O segundo captulo explicita um esforo terico para: i) caracterizar uma concepo de
vigilncia sanitria, sua importncia para o Sistema nico de Sade (SUS) e os termos de sua insero
neste mesmo Sistema; ii) identificar a natureza do processo regulatrio do risco sanitrio avaliao,
gerenciamento e comunicao do risco e o tipo de instituies que o executa; e, iii) entender as
dificuldades dos pases perifricos na execuo da regulao do risco sanitrio.
O terceiro captulo aborda o tema da reforma do Estado acontecimento que marcou a agenda
poltica da maioria dos governos nacionais, principalmente, para os latino-americanos, na dcada de 90 ,
visando contextualizar tanto os pressupostos dessas reformas e as mudanas buscadas em relao forma
e s funes do Estado, quanto a criao da agncia regulatria da vigilncia sanitria no Brasil.
O quarto captulo mostra o resultado da anlise dos trs principais componentes do Sistema
Nacional de Vigilncia Sanitria federal, estadual e municipal com destaque para o exame da esfera
estadual pela sua posio de articuladora entre os outros dois governos. Ateno especial tambm foi
dirigida diretriz da descentralizao, por sua importncia na atual poltica de sade.
O quinto captulo descreve e analisa os principais acordos (tendo em mente os objetivos deste
estudo) e processos internacionais de regulamentao sanitria, incluindo uma anlise da harmonizao
de regulamentos no Mercosul. Procuro entender a natureza desses acordos e regulamentaes, alm de
identificar o seu impacto sobre as instituies do sistema domstico de vigilncia sanitria, considerando
as dimenses da soberania e da democracia.
Nas consideraes finais, exponho algumas teses avaliativas que dizem respeito ao Sistema
Nacional de Vigilncia Sanitria, destacando a necessidade de urgentes revises em sua estrutura e a
construo de uma doutrina de ao, bem como a exigncia de constantes avaliaes da poltica em curso.
Aponto tambm algumas reas em que h necessidade de estudos, bem como fao sugestes de assuntos e
de diretrizes de ao que esto a merecer maior ateno.
CAPTULO I METODOLOGIA E ARGUMENTOS DE ANLISE
1.1 Situao problema e principais indagaes No mbito especfico da sade, as aes promocionais e preventivas ocuparam lugar de
destaque aps as descobertas que identificaram, mais especificamente, os fatores determinantes dos srios
agravos que acometeram, de modo sistemtico, as populaes ao longo da histria da humanidade.
A partir das observaes empricas a respeito da ocorrncia de doenas, as comunidades
antigas foram estabelecendo leis e outros regulamentos acerca de muitos aspectos da vida em
comunidade, visando objetivos polticos e econmicos, a proteo sade e a continuidade da vida de
seus habitantes.
Com as noes bblicas das impurezas do corpo e da alma entidades inseparveis nas culturas
pr-modernas foram institudos princpios e leis que tanto fundamentavam os rituais de diagnstico e
purificao (cura) quanto normatizavam a vida em sociedade. As unies ilcitas (entre membros da
famlia) e as doenas sexualmente transmissveis, por exemplo, eram energicamente reprovadas e
penalizadas porque ameaavam a sobrevivncia, comprometendo a vida futura, como se pode perceber
nos escritos do Levtico, no Antigo Testamento.
No mundo ocidental, a partir do sculo XIV, no incio do renascentismo europeu, quando a
civilizao medieval comeava a ser superada, buscavam-se aes mais efetivas e sistemticas para
prevenir e tratar as grandes epidemias. Posteriormente, nos sculos XVII e XVIII, estas aes foram
sendo aperfeioadas com base em novos conhecimentos que revolucionavam a cincia da poca e
acumulavam os elementos essenciais para formar o que se conhece hoje como cincia moderna.
Desde a Idade Mdia e, principalmente, nas primeiras dcadas do sculo XIX, os sanitaristas e
administradores afirmavam a necessidade da criao de leis que regulamentassem certos assuntos. Os
cdigos propostos indicavam a sua abrangncia: a higiene da habitao e do ambiente, a higiene dos
alimentos e das bebidas, a higiene do vesturio, a sade e o bem-estar das mes e das crianas, a
preveno e controle de doenas comunicveis humanas ou animais , a organizao do pessoal mdico
e das boticas e assim por diante (ROSEN, 1994:177).
Como demonstrou magistralmente FOUCAULT (1979:79) em sua conferncia sobre o
nascimento da medicina social, a interveno do Estado neste espao da sade pblica remonta ao sculo
XVIII e concretizou-se de diferentes formas na Europa: na Alemanha, absolutista e cameralista, originou-
se a medicina de Estado e o conceito de polcia sanitria; na Frana, por exigncias da unificao
territorial e urbanizao das grandes cidades, instituiu-se a medicina urbana; e na Inglaterra, a da Lei
dos Pobres, a medicina social recebeu um componente assistencial (aos pobres) e um componente
administrativo (controle geral da sade pblica).
Nos estados nacionais, tais aes foram estruturando sistemas de regulamentao e controle de
agravos sade, conformando o campo de atividades que hoje costumamos designar por sade pblica,
sade coletiva ou, ainda, medicina social conceitos que incorporaram, ao longo do tempo, diferentes
abordagens metodolgicas8.
Por sua vez, a epidemiologia como novo campo de estudo e a vigilncia epidemiolgica
rea de ao estatal constituram-se ao se procurar a elucidao dos fatores determinantes das doenas,
analisando-os em relao a formaes sociais especficas e em determinados perodos de tempo, bem
como buscando formas de interveno nos mecanismos de implantao da doena.
Depois das descobertas bacteriolgicas nas ltimas dcadas do sculo XIX, as aes de sade
pblica ancoradas no desenvolvimento dos registros estatsticos j existentes desde o sculo XIV nas
cidades mais importantes do perodo mercantilista , foram gradativamente instituindo princpios e aes
mais sofisticados de controle, como os conceitos de portador e de contato, de hospedeiro e de vetor, o
rastreamento de focos e o clculo do nmero de casos esperados. Mais adiante, buscando superar a
concepo estritamente biologicista, tpica da era bacteriolgica, a epidemiologia avanou para o
estudo da diversidade dos fatores predisponentes s doenas.
Paralelamente s descobertas relativas s causas e s formas de interveno nas epidemias, o
avano espetacular da cincia e da tecnologia impulsionava a industrializao e ensejava a produo, em
grande escala, de amplo leque de produtos e de servios, dirigidos a satisfazer as exigncias e
necessidades da populao.
Contudo, numerosos casos de graves prejuzos sade coletiva e verdadeiras catstrofes na
sociedade moderna, com elevados nmeros de mortes ou seqelas relacionadas ao consumo de muitos
produtos e servios, foram sendo identificados como novas fontes de risco sade e, como tal, tornados
objetos de regulamentao e controle sanitrio.
Dentre os casos mais conhecidos, originados pelo uso em larga escala de produtos
industrializados, pode-se citar, pela sua importncia para a conformao desta rea de regulamentao e
controle sanitrio, o do Elixir de Sulfanilamida, que teve lugar em 1937, nos Estados Unidos. Este
produto, lanado com um componente txico em sua frmula, matou mais de uma centena de pessoas em
poucos dias. Outro caso que comoveu o mundo pela sua dramaticidade, ocorrido inclusive em pases
europeus, foi o das vtimas da talidomida, no final dos anos 50.
As economias mais desenvolvidas desde o sculo passado, mas, principalmente, nas
primeiras dcadas do sculo XX estabeleceram leis, criando rgos e outros mecanismos para
implement-las e para controlar a produo e a comercializao de bens e servios com potencial de risco
sade pblica. Frutos de construes sociais especficas de cada pas, estas instituies modelaram-se ao
longo da histria em funo de adequaes aos sistemas produtivos, realidade social e s culturas.
Alm da regulamentao das categorias profissionais que trabalhavam na rea da sade, foram
enquadrados em legislao especial, de cunho sanitrio, a produo e distribuio de medicamentos,
alimentos, cosmticos, produtos de higiene pessoal, perfumes, saneantes domiciliares, dispositivos e
8 Sobre o debate destes conceitos, consultar a reviso bibliogrfica de SCHRAMM (1996:103).
aparelhos de uso mdico, odontolgico, hospitalar e laboratorial, bem como os servios que interferem
com a sade das pessoas.
Nascia, assim, outro campo de promoo e preveno dentro do espao da sade pblica, o
qual cuidaria da regulamentao e controle sanitrios de produtos e servios, correspondendo ao que
chamamos de vigilncia sanitria. Desse modo, embora a regulamentao sanitria tenha origens remotas,
pode-se afirmar que a vigilncia sanitria filha da revoluo industrial e assume diferentes
conformaes em cada lugar, em funo de valores culturais, polticos e econmicos, bastante
relacionados com a diviso internacional do trabalho, pois o grau de desenvolvimento tecnolgico da
produo determina funes diferenciadas para a regulao nessa rea.
Os pases menos desenvolvidos buscaram seguir os modelos das economias mais
desenvolvidas, tentando adapt-los sua realidade. Em funo disso, a ao da vigilncia sanitria nos
pases de menor desenvolvimento parece ter sido sempre problemtica. Segundo diagnstico do Programa
Regional de Medicamentos da Organizao Mundial da Sade, as entidades reguladoras de medicamentos
por exemplo, na Amrica Latina tm baixa capacidade operacional, pouco apoio poltico e operam
sem os recursos adequados (OMS, 1996).
No Brasil, o termo vigilncia sanitria foi empregado para demarcar esse campo da sade
pblica, que tem como finalidade maior a proteo da sade por meio da eliminao ou da reduo do
risco envolvido no uso e consumo de tecnologias produtos e servios e nas condies ambientais.
A conformao do campo da vigilncia sanitria no Pas, sua institucionalizao e
desenvolvimento, ainda no foi objeto de muitos estudos. Tal carncia apontada em trabalhos de alguns
autores, como DUARTE (1990), LUCCHESI (1992) e SOUTO (1996) , comea a ser superada, em especial,
depois dos acontecimentos relacionados falsificao de medicamentos e da criao da Agncia Nacional
de Vigilncia Sanitria, deram destaque social rea. No tocante compreenso das origens e
desenvolvimento da vigilncia sanitria no Brasil, saliento o trabalho pioneiro e exaustivo de Edin
COSTA (1999).
De acordo com COSTA (1994), apesar dos avanos em termos de ordenamento jurdico, a
vigilncia sanitria no Brasil tem apresentado, na prtica, uma atuao frgil, isolada e marcadamente
cartorial.9
Tudo indica que, ao longo de sua histria, a Secretaria Nacional de Vigilncia Sanitria do
Ministrio da Sade, criada em 1976, assim como os rgos que a antecederam, no contaram com a
infra-estrutura necessria para o cumprimento dos seus objetivos finais e, no raramente, foram
manipulados pelos interesses polticos e empresariais da rea. Cronicamente deficiente de recursos e
meios, a Secretaria viveu sempre um conflito de identidade: dar respostas mais rpidas s demandas
empresariais ou zelar pela sade da populao mediante a realizao de estudos e anlises cuidadosas
daquelas demandas. Sem estrutura de pessoal, normativa, operacional, tcnico-cientfica e de suporte
poltico, as duas alternativas mostraram-se quase excludentes (LUCCHESI, 1992).
9 Com controles baseados em papis e em processos burocrticos que no tm correspondncia com a verificao emprica.
Embora a rea de abrangncia da vigilncia sanitria tenha sido ampliada ao longo dos anos, a
legislao sanitria brasileira, bem como a estrutura organizacional dos rgos de atuao na rea, no
acompanhou esse avano (DUARTE, 1990:64).
Segundo SOUTO (1996:133), apesar de seu objetivo ser o de contribuir na proteo sade da
populao, a vigilncia sanitria, desde a sua conformao enquanto espao institucional, na dcada de
70, sempre se destacou mais como instncia burocrtica que responde aos interesses do setor produtivo do
que finalidade para a qual foi criada. Os interesses polticos e econmicos se evidenciaram como fortes
definidores das polticas de vigilncia sanitria, e a produo de seu saber voltou-se prioritariamente para
atend-los.
Desprovida de consistncia tcnica, por no possuir um quadro de pessoal qualificado e
suficiente; frgil em sua ao administrativa, por no contar com os mais elementares instrumentos de
gesto eficaz, a exemplo de um sistema moderno de informtica ou uma organizao administrativa
mnima; sem fora poltica para constituir-se em interlocutor firme em defesa da sade pblica frente a
outras instncias do prprio Estado, como a agricultura, indstria e comrcio, fazenda, congresso e
judicirio, bem como frente s instituies da sociedade que representam interesses especficos; sem
legitimidade frente sociedade, por sua expressa ineficincia ao longo de sua histria, a Secretaria
Nacional de Vigilncia Sanitria transformou-se em alvo fcil de denncias de corrupo, srias ou
levianas, graves ou leves; em palco de personalismos e de oportunismos, alm de conformar uma arena
para mesquinhas barganhas polticas (LUCCHESI, 1997:99).10
A partir de 1999, este quadro tem mudado, em especial, porque houve crescente interesse
poltico em reverter a situao crtica dessa rea no contexto da internacionalizao dos mercados e das
mudanas necessrias no padro de interveno estatal. A criao da Agncia Nacional de Vigilncia
Sanitria pode ser vista como o emblema de tal preocupao.
Hoje, o amadurecimento e a consolidao de nosso processo democrtico e da formao da
cidadania demandam instituies de regulao bem estruturadas. Por sua vez, o acirramento da
competio pelos mercados mundiais transforma a vigilncia sanitria em rea estratgica, enquanto
vantagem diferencial que um pas pode oferecer para receber investimentos das grandes empresas.
Um sistema de vigilncia sanitria sem regulamentos claros e efetivos, sem administrao
racional e gil, sem canais bem delimitados de participao social, sem corpo suficiente de funcionrios
qualificados e sem estrutura condizente com a demanda de um parque produtor como o brasileiro,
certamente ser incapaz de sinalizar claramente as regras nesta rea sanitria e de garantir a sua
observao por todos os agentes envolvidos.
10 Ver, por exemplo, Correio Braziliense de 29.09.96, sobre esquema de corrupo na Secretaria de Vigilncia Sanitria - SVS/MS engendrado por polticos do extinto Partido Popular (PP); Correio Braziliense de 21.08.96, sobre denncias do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) de testes de gravidez sem qualidade; Folha de So Paulo de 17.10.96 sobre preservativos masculinos sem qualidade; Correio Baraziliense de 10.05.97, sobre associaes de antibiticos que foram proscritas mas no proibidas pela SVS em 96; Jornal do Brasil de 19.03.97, sobre graves problemas com kits para identificao do HIV; O Estado de So Paulo de 07.10.97 sobre a qualidade dos hemoderivados Fator VIII e IX, sobre o sangue contaminado e sobre a qualidade dos kits de diagnstico sorolgico e, ainda denncias de chantagem que a Fundao Pr-sangue/Hemocentro de So Paulo estaria fazendo com os empresrios e favorecimentos da SVS/MS a esta Fundao.
Sob o ponto de vista sanitrio, a necessidade de se pensar melhor a reestruturao da vigilncia
sanitria brasileira reconhecida pelo simples acompanhamento de fatos ocorridos durante os ltimos
anos no Brasil, que envolvem falta de qualidade e de legitimidade de produtos e servios11, uma vez que,
no cenrio do comrcio mundial, os produtos e servios originrios de um pas que tem um sistema de
regulamentao e controle reconhecido pela sua eficcia, agrega naturalmente um valor s mercadorias ali
produzidas, contribuindo para sua melhor aceitao em mercados estrangeiros.
Frente a esta situao, algumas indagaes fazem-se pertinentes para o maior conhecimento
dessa rea no Brasil: qual o arranjo da vigilncia sanitria vigente e qual sua perspectiva de
reestruturao dentro do SUS? Como se realiza sua funo regulatria? De que maneira os processos
internacionais de regulamentao repercutem nessa funo? Com quais mecanismos opera o controle
social sobre o Estado nesta rea? Como se d a participao social?
Tais questes conformam um quadro que demanda, para a vigilncia sanitria no Brasil,
urgente debate prprio, fundamentado em estudos que ajudem a identificar suas fragilidades, iluminar as
causas de sua acanhada eficcia e que apontem possibilidades futuras e de sua reestruturao na medida
da importncia econmica e social do Brasil.
Sob outra perspectiva tem-se que os cenrios do final e do incio de sculo apresentam
enfticas mudanas em alguns planos da vida no planeta, as quais se refletem, com maior ou menor
intensidade, na rea da sade e, dentro dela, nos sistemas de regulamentao e controle sanitrio de
produtos, servios e ambientes. Entre elas destacam-se as atividades de biologia celular, que deriva
organismos geneticamente modificados, clonagens, fertilizao artificial e medicamentos, vacinas e
mtodos de diagnstico cujas formas de ao diferem completamente das tradicionais farmacocintica,
farmacodinmica e farmacologia.
Todos esses processos de mudana na natureza das relaes humanas remetem tambm
necessidade de igual mudana na tica no somente devido aos novos objetos, como a clonagem e a
engenharia gentica, que exigem novas regras de conduta, mas porque se abriu uma dimenso
inteiramente nova do significado da tica, para o qual no existem precedentes nos modelos e princpios
da tica tradicional (JONAS, 1994:27).
Em face deste cenrio, outro questionamento coloca-se como necessidade: o sistema brasileiro
de vigilncia sanitria est preparado para enfrentar tais desafios?
Este estudo buscou avanar o exame das questes aqui levantadas, contribuindo para a
reflexo, o debate e a construo de conhecimentos nessa rea pouco conhecida da sade coletiva.
Pretendeu tambm contribuir para que a vigilncia sanitria ocupe o lugar de sua importncia como
componente crtico da regulao estatal tanto no aspecto sanitrio da reforma setorial por sua
potencialidade na reorientao do antigo modelo assistencial que se pretende superar por meio da plena
implantao do SUS quanto no aspecto econmico, como potencializador da qualidade dos produtos,
processos e relaes sociais.
11 Com destaque para o acidente radiativo em Goinia (1988); a intoxicao fatal em um servio de hemodilise em Caruaru (1996); diagnsticos errados por falta de preciso dos testes de HIV; alimentos como sal, leite, acar, gua sanitria e gua mineral que no obedecem aos requisitos de qualidade (IDEC, 1997); falsificaes de medicamentos crticos na teraputica de doenas graves (1997 e 1998) e
1.2 Conceitos e argumentos de anlise Apoiando-se nas idias de DE SWAAN (1988) para a anlise do aparecimento das polticas
sociais, HOCHMAN (1998) destaca o conceito de interdependncia social como o fundamento das
respostas aos problemas gerados no processo social em dada sociedade. Para esses autores, os efeitos
indiretos das deficincias e adversidades de uns indivduos atingem imediatamente outros, apesar de estes
no sofrerem das mesmas deficincias ou adversidades. Tais conseqncias so identificadas como efeitos
externos ou externalidades, formadores dos elos de interdependncia que fundam a necessidade da
coletivizao do cuidado com os indivduos.
No campo da sade, por exemplo, um indivduo infectado com doena contagiosa tem um
potencial de externalidades que ameaa os no portadores daquela doena. O mesmo raciocnio vale para
a ameaa de violncia causada pela pobreza e pela destituio de alguns em relao aos demais membros
da comunidade.
Encaminhando o tema para a vigilncia sanitria, pode-se afirmar que um medicamento, uma
vacina ou um alimento, produzido e distribudo sem a observncia de todos os requisitos que garantem
sua qualidade, segurana e eficcia, representa uma potencial externalidade. Ou seja, este medicamento,
vacina ou alimento, ao circular no mercado, pe em risco no apenas a comunidade que pertence ao
municpio ou unidade federada onde esses bens so produzidos e consumidos, mas constitui perigo para
todas as comunidades por onde aqueles bens circulam e so consumidos.
Tome-se um exemplo relacionado ao meio ambiente: a atividade de garimpo existente em
algumas unidades federadas contamina os rios do lugar com grande quantidade de mercrio, causando
prejuzo substancial flora e fauna de todos os cursos dgua em contato com os rios contaminados,
inclusive por intoxicar os peixes que servem de fonte alimentar s populaes ribeirinhas ou a outras mais
distantes. A externalidade produzida no afetar apenas o municpio ou o estado onde a atividade
garimpeira realizada, mas, sim, todos os estados e municpios percorridos pelos rios e cursos dgua
prejudicados, alm da populao de todos os estados e municpios que consumirem o peixe intoxicado.
No campo da vigilncia epidemiolgica possvel fazer raciocnio idntico: um municpio ou
um estado realiza cuidadoso trabalho de controle do Aedes aegypti, mosquito vetor da dengue. Um estado
ou municpio vizinho, por inpcia, inao ou absoluta falta de recursos, no providencia o mesmo
controle e, em decorrncia disso, sua populao sofre a presena endmica ou epidmica da doena.
Tanto os doentes de dengue que circulam por outros municpios e estados, quanto as populaes de
mosquitos aedes que se reproduzem e aumentam em tamanho populacional e so transportados, de
vrias maneiras, para outros estados e municpios representam efeitos externos negativos para os outros
municpios ou estados unidades do sistema.
Existe, portanto, no campo da sade pblica, uma interdependncia social entre as unidades
federadas e entre os municpios gestores do SUS e executores de aes de preservao ou recuperao da
sade, na medida em que as externalidades de uns provocam riscos e danos sade de outros. Desse
modo, os problemas sanitrios devem ser tratados como importantes elos de interdependncia entre os
estados ou municpios sejam eles produtores e consumidores ou apenas consumidores de bens, processos
empresas clandestinas, entre muitos outros casos, alguns dos quais recentemente reanalisados pela CPI
e servios em regime de vigilncia sanitria. A externalidade negativa, nesse caso, pode ser entendida
como risco sanitrio.
Ao se conceber os estados e municpios como unidades da comunidade nacional, torna-se claro
que o controle que uma unidade faz, ou deixa de fazer, repercute de forma imediata ou mediata nas
outras. Se uma unidade tem grandes deficincias para a produo de aes de vigilncia sanitria, ou
apresenta um nvel muito baixo de conscincia dos efeitos externos, ou, ainda, uma frgil percepo da
unidade nacional, estar atingindo negativamente as outras unidades que no contribuem para a existncia
de externalidades.
Dito de outra forma, os problemas sanitrios de uma localidade podem produzir efeitos
externos negativos sobre outras localidades, independentemente de qualquer ao ou desgnio destas
(HOCHMAN, 1998:161).
Ainda de acordo com esses autores, as tentativas de superao dos problemas da
interdependncia humana ou social transitam em trs principais formas: a) solues individuais isolar-se
do contato com destitudos, e/ou deix-los entregues prpria sorte e/ou a uma soluo via mercado; b)
solues voluntrias como as organizaes filantrpicas, de caridade ou auxlio mtuo, de carter
comunitrio e societrio; e, c) cuidados estatais atravs da coletivizao dos cuidados por meio de
polticas de Estado.
Ante a ineficcia das duas primeiras alternativas, as sociedades urbanas e industriais do
ocidente acabaram por coletivizar a administrao da interdependncia social como resultado histrico de
seus conflitos sociais, produzindo as polticas dos estados de bem-estar social (HOCHMAN, 1998:26). Esta
ltima forma se d por meio da obrigatoriedade da contribuio e da produo da proteo via autoridade
pblica. Segundo BODSTEIN (2000:78), a coletivizao aparece como contrapartida ao processo de
individualizao, como necessidade de tornar viveis aes coletivamente coordenadas tanto para evitar
riscos e perdas socialmente relevantes, quanto para a obteno de bens pblicos.
No entanto, para que tal poltica de coletivizao se concretize, haveria a necessidade de
existir, ou de se criar, uma conscincia social que constitua uma identidade coletiva e nacional capaz de
contribuir para remediar os progressivos efeitos externos da destituio e das adversidades.
Considerando esses conceitos de interdependncia social e de efeitos externos como
bastante pertinentes para o estudo do modelo de vigilncia sanitria e tomando emprestado ainda algo do
esquema analtico de HOCHMAN (1998:38) com certas adaptaes necessrias anlise do objeto do
presente estudo, aponto alguns pressupostos como base para a investigao aqui proposta:
a) a simples existncia de externalidades no suficiente para a constituio de um modelo eficaz de
coletivizao da vigilncia sanitria; a conscincia e a percepo da interdependncia e a existncia
de interesses comuns e de laos com uma comunidade nacional, bem como a compulsoriedade da
contribuio, so elementos cruciais;
b) as aes capazes de eliminar, diminuir ou prevenir riscos sade e de intervir nos problemas
sanitrios decorrentes do meio ambiente, da produo e circulao de bens e da prestao de servios
de interesse da sade carecem de cooperao e de ao coletiva por parte de todas as unidades sociais
sejam pessoas ou unidades poltico-administrativas;
dos Medicamentos realizada pela Cmara dos Deputados (BRASIL, 2000b).
c) a formulao das polticas pblicas e nacionais de vigilncia sanitria, por meio das aes da
vigilncia sanitria estatal, resulta da formao da conscincia da interdependncia ou da conscincia
dos efeitos externos dos problemas causados pela produo e circulao de bens e servios de sade;
d) a conscincia da interdependncia social elemento indispensvel constituio de um modelo de
coletivizao da administrao da vigilncia sanitria, que somente plausvel enquanto resultado da
percepo de uma identidade nacional;
e) essas aes estatais significam tambm a conscincia das oportunidades de obteno de benefcios
com a regulao e controle estatais, ou seja, do benefcio da coletivizao da administrao das
externalidades prprias do campo da vigilncia sanitria;
f) o desenho institucional-legal da coletivizao aqui entendido como o sistema de vigilncia sanitria
depende da combinao de interesses, da conscincia social da interdependncia, tal como da
existncia de laos da unidade nacional e dos clculos dos custos impostos pelo modelo s unidades
participantes.
Neste estudo, o sistema de vigilncia sanitria percebido como uma forma de coletivizao
da administrao das externalidades prprias do campo da vigilncia sanitria, ou seja, da administrao
dos riscos sade decorrentes do meio ambiente, da produo e circulao de bens e da prestao de
servios de sade. Para anlise do modelo brasileiro de vigilncia sanitria, considero que a
interdependncia existe no somente em sua dimenso horizontal, entre as unidades federadas ou entre os
municpios, mas tambm em sua dimenso vertical, entre as trs esferas de governo que compem, com
autonomia, as instncias gestoras do modelo. Assim, essa interdependncia administrativa assume
centralidade na argumentao desenvolvida.
Ao analisar o modelo de vigilncia sanitria mediante essa argumentao e os conceitos
analticos que a sustentam, tenho que considerar tambm que: a) a coletivizao sua forma e qualidade
de ao funo do amadurecimento e da consolidao do processo democrtico e do desenvolvimento
econmico; e, b) o Brasil atravessa um momento de particular importncia para suas instituies polticas
e administrativas, as quais podem ou no alterar a forma de coletivizao dos problemas inerentes
vigilncia sanitria.
Dentre os processos importantes relacionados aos pontos acima indicados, destaco:
a) a proposta governamental de Reforma do Estado, que pretende redimensionar seu tamanho e suas
funes face ao crescimento da internacionalizao da economia e o esgotamento do modelo de
substituio de importaes;
b) o processo de abertura da economia, visando o aumento do poder competitivo do parque produtivo
nacional, principalmente, em termos de qualidade e produtividade;
c) os processos internacionais de regulamentao e de harmonizao de regulamentos tcnicos na rea
sanitria;
d) dentro desse processo de abertura econmica, a construo de um mercado comum regional o
Mercosul que necessita, para seu funcionamento, da eliminao das barreiras no alfandegrias para
a livre circulao de produtos em seu mbito e, para isso, tem como pr-requisito imprescindvel a
harmonizao dos regulamentos sanitrios e dos procedimentos de vigilncia sanitria a curto prazo
entre os Estados Partes.
No interior de tais processos, vistos como de importncia estratgica para o Pas no panorama
atual, a vigilncia sanitria exerce funo particular, especfica de sua rea de atuao: a funo
regulatria, aqui entendida como a competncia de definir e estabelecer regulamentos prprios ao
controle do risco sanitrio, bem como a de atuar para o seu cumprimento. Esta funo, ao mesmo tempo
em que tem potencial para contribuir com a reforma do Estado, com a organizao do Sistema nico de
Sade e com a implementao do poder competitivo do parque produtivo e a construo do Mercosul,
atingida por estes processos de reformas, pela internacionalizao da economia e, dentro desta, pela
formao do Mercosul.
O modelo de vigilncia sanitria atual constitudo pela diviso de atribuies entre os trs
nveis de governo, com nfase no poder estadual e no poder federal. A funo regulatria, atravessada
pelos processos acima referidos, percebida com nveis diferentes de conscincia pelos gestores da sade
e pela sociedade. A reforma do Estado, a implementao do SUS e a construo do Mercosul podem
contribuir para um maior grau de conscincia das partes e de laos de unidade na administrao coletiva
das externalidades sanitrias.
Ao considerar aqui a questo da interdependncia entre esferas de governo, possvel
identificar o nvel federal como o mais interessado nesses processos, por ser aquele que desempenha o
papel coordenador da coletivizao. Os processos de internacionalizao tambm necessitam do nvel
federal como interlocutor, pois outras unidades do sistema internacional no podem estabelecer conexo
com 27 (estados) ou 5.625 (municpios) interlocutores.
Porm, esses processos de internacionalizao, de reformas e de construo da administrao
coletiva repercutem tambm nas outras unidades poltico-administrativas estados e municpios que
estabelecem suas estratgias de presso no sentido de contratualizar arranjos mais benficos a suas
realidades. Em sntese, a busca de um arranjo cooperativo certamente influenciada por esses processos
de internacionalizao e de reforma, e o estabelecimento de incentivos ganhos materiais e polticos
decorrentes da reforma torna-se o ponto crtico para que o modelo ganhe em eficincia.
O sistema de vigilncia sanitria, enquanto fruto da coletivizao da administrao das
externalidades potenciais das mercadorias, ambientes e servios, no tem seus efeitos limitados aos
benefcios sociais decorrentes da profilaxia das externalidades neles envolvidos riscos que tm origem
na maior ou menor eficcia das unidades poltico-administrativas (estados e municpios) em realizar as
funes da vigilncia sanitria. Existe, claramente, um benefcio comum, de cunho econmico, decorrente
da coletivizao da administrao dos riscos sanitrios relacionados s externalidades potenciais das
mercadorias, servios de sade e ambientes, quando a regulao de seus processos de produo e
distribuio estabelecida de maneira transparente e sinaliza coerentemente a qualidade que deve ser
buscada.
Assim, a ineficcia do modelo causa prejuzos sociais principalmente, os de natureza
sanitria e prejuzos econmicos, por falta de confiana na qualidade dos produtos e servios e das
relaes de troca estabelecidas entre os diferentes agentes da cadeia, que vai da produo ao consumo de
bens e servios.
O modelo de coletivizao dos cuidados s externalidades geradas em cada unidade federada
ou municipal somente completo se abarcar todo o nvel nacional. Embora o nvel federal coordene as
polticas nacionais e as relaes com outros pases, quanto menos o modelo for assimilado pelos outros
nveis de governo que operam a coletivizao, maior dificuldade haver para uma ao cooperativa e
coordenada. Como essa composio no mecnica ao contrrio, poltica , h permanente tenso
entre esses nveis de governo, pois eles tendero a maximizar sua importncia e barganhar incentivos a
sua ao.
Tais reflexes reforam o entendimento da vigilncia sanitria como um dos campos de ao
da sade pblica que envolvem complexas relaes entre o Estado desde os poderes federais at os
locais e a Sociedade desde os grandes produtores transnacionais at o mais simples consumidor.
Essas relaes necessitam de pressupostos minimamente pactuados com base na conscincia da
interdependncia social e dos efeitos externos da carncia de qualidade, de segurana e de eficcia dos
produtos e servios com risco sanitrio, como tambm na existncia de laos de unidade nacional.
1.3 Consideraes metodolgicas O espao que abarca desde a produo de um bem ou servio at o seu consumo ou uso por
parte da populao, constitui um mbito complexo, onde se cruzam direitos e interesses de uma srie de
agentes sociais. A vigilncia sanitria que a atua, conforma um campo eminentemente intersetorial, cujo
estudo, alm dos conhecimentos tcnicos especficos acerca dos objetos em que age medicina, farmcia,
enfermagem, nutrio, epidemiologia e direito sanitrio, entre outros , requer a contribuio de
disciplinas que no pertencem ao campo da sade, como, por exemplo, o direito administrativo, o direito
comercial, civil e penal, as relaes internacionais, os direitos difusos (consumidor), a poltica tributria, a
poltica industrial, o planejamento, a matemtica probabilstica, as cincias sociais e assim por diante.
At o momento, no entanto, a vigilncia sanitria no chegou a derivar uma disciplina prpria
de estudo que recorresse s inter-relaes entre estas outras disciplinas, afora ser alvo de poucos estudos
especficos. Isso acontece no obstante o fato de ser possvel perceber que, na literatura que aborda
aspectos da histria da sade pblica, alguns dos temas da vigilncia sanitria constituem antigos objetos
de estudo em termos de problemas sanitrios de uma sociedade e que sua normatizao remonta aos
primrdios das aglomeraes humanas.
A busca de bibliografia concernente vigilncia sanitria no Brasil revela a escassez de
trabalhos sobre este tema. Evidencia igualmente a sua marginalidade enquanto objeto de estudo na
abundante literatura voltada ao nosso sistema de sade, produzida principalmente a partir de meados dos
anos setenta, quando melhor se delineou o campo de pesquisas em sade coletiva no Pas.
COSTA (1999) fez um trabalho pioneiro de anlise da conformao do campo da vigilncia
sanitria no Brasil, no qual partiu das leis e de outros ordenamentos jurdicos e identificou os conceitos
orientadores das diferentes concepes e conjunturas histricas relativas ao tema. Desenvolveu tambm
um esforo de tematizao a respeito da vigilncia sanitria, buscando destacar os principais elementos
tericos oriundos de diferentes campos do conhecimento que se entrecruzam para formar a base da ao
nessa rea. Assim, estudou os temas das relaes produo / consumo / ideologia do consumo, controle
sanitrio / ordenao normativa, administrao pblica / burocracia / poder normativo / poder de polcia e
interesse pblico / interesse difuso / responsabilidade, entre outros. A autora percebe as aes de
vigilncia sanitria como componente imprescindvel do direito sade, que deve ser assegurado pelo
Estado.
SOUTO (1996) construiu uma histria dos ltimos tempos da vigilncia sanitria no Brasil de
1976 a 1994 com base em documentos e depoimentos de pessoas vinculadas a essa rea em seus
distintos contextos. Como caractersticas do arranjo vigente que teria sido implantado no perodo
compreendido entre 1976 e 1980 , ela apontou a distino entre vigilncia sanitria e epidemiolgica, da
mesma forma que a ausncia de um marco conceitual para a primeira.
PILATI (1995), em sua tese