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O presente artigo tem como pressuposto relacionar a micro-história, à abordagem temática que empreenderemos em nossa pesquisa do mestrado. Assim, considerando que esse fazer historiográfico torna possível a história dos esquecidos, dos anônimos, dando destaque ao particularismo em relação ao geral, tomamos como objeto de análise as mulheres do baixo meretrício da parte de baixo da rua dos Maribondos, da antiga Montes Claros. A rua descrita por Ruth Tupinambá (2010) em seu livro, Montes Claros Eternas lembranças, que, nos anos de 1920, “abrigava boêmios cachaceiros, malandros e mulheres do mais baixo nível social e econômico, mal vistas pela sociedade”.
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A ABORDAGEM MICRO NA HISTÓRIA
Márcia Valéria Soares dos Reis*
Dr Regina Célia Lima Caleiro****
Resumo: O presente artigo tem como pressuposto relacionar a micro-história, à abordagem temática que empreenderemos em nossa pesquisa do mestrado. Assim, considerando que esse fazer historiográfico torna possível a história dos esquecidos, dos anônimos, dando destaque ao particularismo em relação ao geral, tomamos como objeto de análise as mulheres do baixo meretrício da parte de baixo da rua dos Maribondos, da antiga Montes Claros. A rua descrita por Ruth Tupinambá (2010) em seu livro, Montes Claros Eternas lembranças, que, nos anos de 1920, “abrigava boêmios cachaceiros, malandros e mulheres do mais baixo nível social e econômico, mal vistas pela sociedade”.
Palavras-chave: Micro-História. Mulheres. Baixo meretrício.
1 INTRODUÇÃO
“[...] onde aparentemente nada há, não é uma revolta aberta, nem uma crise definitiva, uma heresia profunda, ou
uma inovação extraordinária, e sim a vida política, as reações sociais, as
regras econômicas e as reações psicológicas de uma cidadezinha
comum” (LEVI, 2000,p.68)
O presente artigo tem como pressuposto relacionar a micro-história,
como modelo teórico, que destaca um determinado recorte de observação em
escala mínima, à abordagem temática que empreenderemos em nossa
pesquisa do mestrado. Assim, considerando que esse fazer historiográfico
torna possível a história dos esquecidos, dos anônimos, dando destaque ao
particularismo em relação ao geral, tomamos como objeto de análise as
* * Mestranda do Programa de Mestrado em História da Unimontes. [email protected]
**** Possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP, mestrado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP e doutorado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Atualmente é professora efetiva da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES. É professora colaboradora no Programa de Mestrado em Desenvolvimento Social e professora do corpo permanente do Programa de Mestrado em História da Unimontes. Bolsista Programa Pesquisador Mineiro -FAPEMIG
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mulheres do baixo meretrício da parte de baixo da rua dos Maribondos, da
antiga Montes Claros. A rua, descrita por Ruth Tupinambá (2010) em seu livro,
Montes Claros: Eternas Lembranças, nos anos de 1920, “abrigava boêmios
cachaceiros, malandros e mulheres do mais baixo nível social e econômico,
mal vistas pela sociedade” (p, 27).
Vale destacar que a análise a que se pretende será melhor desenvolvida
no nosso trabalho final, uma vez que intencionamos aprofundar as questões
referentes à história da mulher, que raramente fora apresentada pelos
historiadores, só aparecendo de forma marginal na história. Nessa perspectiva,
as proposições de Margareth Rago (1991) serão imprescindíveis para o nosso
estudo. A autora corrobora:
todo discurso sobre temas clássicos como a abolição da escravatura, a imigração europeia para o Brasil, a industrialização, ou o movimento operário, evocava imagens da participação de homens robustos, brancos ou negros, e jamais de mulheres capazes de merecerem uma maior atenção (RAGO, 1991, p.135).
Retomando a discussão proposta, considerando a possibilidade de uma
escrita da história alternativa àquela que via os acontecimentos sob a
perspectiva das elites, a micro-história há muito tem atraído historiadores
sedentos em ampliar os limites de sua disciplina, bem como explorar as
experiências históricas de homens e mulheres, cujas existências foram
relegadas a segundo plano ou mesmo silenciadas. A publicação de Bertold
Brecht, em 1936, do poema “Perguntas de um operário que lê”, já assinalava
essa proposição. Burke (1992), em A Escrita da História: novas perspectivas,
cita Edward Thompson (1965), que no prefácio da obra “The History from
below” assevera:
Estou procurando resgatar o pobre descalço, o agricultor ultrapassado, o tecelão do tear manual ‘obsoleto’, o artesão ‘utopista’ e até os seguidores de Joanna Southcoit, da enorme condescendência da posteridade. Suas habilidade e tradições podem ter-se tornado moribundas. Sua hostilidade ao novo industrialismo pode ter-se tornado retrógrada. Seus ideais comunitários podem ter-se tornado fantasias. Suas conspirações insurrecionais podem ter-se tornado imprudentes.
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Mas eles viveram nesses períodos de extrema perturbação social, e nós, não (p.42).
Na concepção de Thompson, defensor do ponto de vista da história
vista de baixo, a história deve ser contada, não somente levando em
consideração os “grandes fatos” da história oficial e seus heróis, mas,
sobretudo, pela observação dos fatos ocorridos com pessoas que fazem parte
da massa esquecida, entre eles: os operários, os camponeses, os artesãos.
Na década de 70, historiadores como: Carlo Ginzburg e Giovanni Levi
se interessaram pela história social, uma vez que não se pensava nesse
segmento na Itália daquele período. De tal modo, acompanhando o que se
produzia na França, os citados autores consideravam importante discutir
questões relacionadas à história social.
Ginzburg, nome de grande destaque nesse método, analisa a micro-
história observando as particularidades. O autor se difere dos demais pela
maneira como usufrui desta metodologia. Em suas principais obras, “Andarilhos
do bem” (1991), “O queijo e os vermes” (1998) e “História Noturna” (1989), o
autor empreende uma análise do particular para chegar a uma concepção do
todo. Em sua visão, não interessa aos historiadores a resposta de o caso ser
verdadeiro, mas analisar as possibilidades. Assim, entre outros, exemplos
como o método de Morelli, a psicanálise de Freud são especialmente
importantes para esta discussão.
Também Giovanni Levi, um dos pioneiros da micro-história, ao estudar
as influências micro-históricas no contexto da segunda metade do século XX,
traz ao conhecimento do público análises, com resultados interessantes, sobre
o recorte de algum tema específico. No dizer de Levi, a micro-história
funcionaria como um zoom de uma fotografia, ou seja, o pesquisador deve
analisar apenas um espaço pequeno bastante ampliado, mas sem esquecer-se
do todo que representa essa singularidade da fotografia para o entendimento
do conteúdo. Ainda, segundo Levi (1967) apud Burke (1992), a micro-história
possui um papel específico dentro da chamada nova história cultural, que é
“refutar o relativismo, o irracionalismo, o trabalho do historiador a uma atividade
puramente retórica que interprete os textos e não os próprios acontecimentos”
(p.133).
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Ambos, Ginzburg e Giovanni Levi, no final da década de 1970 e início
dos anos 1980, articulados em torno da revista Quaderni Storici,
particularmente numa coleção intitulada Microstorie, apresentavam como
proposta a análise exaustiva de documentações que revelassem casos
particulares, situações-limite, trajetórias biográficas, que poderiam esclarecer
aspectos deixados de lado pelas análises seriais. Dito de outra forma,
constituir-se-ia em uma arqueologia do cotidiano, um refinamento e depuração
do objeto de estudo analisado em casos-limite, para apreender os
comportamentos de outrora que não se revelaram através de fichas cadastrais
ou levantamentos estatísticos de documentos.
Nesse sentido, no caso de nossa pesquisa, trazer à tona a história de
mulheres de “olhos tristes e de roxas olheiras, sinais da doença e da
embriaguez” (TUPINAMBÁ, 2010, p.29) é buscar no estudo do cotidiano o lugar
privilegiado do “vivido”, onde se desdobram correspondências e rupturas com a
ordem social vigente, onde os personagens, na maior parte das vezes,
protagonizam uma história não episódica, não exemplar, mas anônima. É
também abranger qual seria a causa de tamanha polêmica gerada no seio de
uma sociedade que, nos idos de 1920, por meio de uma lei instituída pela
Câmara Municipal, “escurraça”, nas palavras de Tupinambá, as mulheres da
rua Maribondos para uma outra localidade, onde não pudessem ferir a
“sensibilidade” das famílias montes-clarenses. Outro aspecto que interessa-nos
perquirir em nossa análise é o local da cidade para onde essas mulheres e
suas figuras infelizes e indesejadas foram levadas e a nova configuração1 do
espaço antes ocupado por elas que, conforme aponta a autora: “[...] a estreita e
feia rua foi alargada, os botequins desapareceram, surgindo lanchonetes e
bares mais higiênicos” (p.30).
Nesse contexto, consoante Reis Filho (2000), a urbanização apoiada
em obras de saneamento e higienização das cidades, além de estar atrelada a
um projeto de modernização, consolidou-se também através de demolições de
habitações populares e insalubres, respaldada pelo modelo burguês de
comportamento e de disciplina moral das camadas populares. Ainda, segundo
o citado autor,
1 Aqui entendida como urbanização e higienização do espaços urbanos.
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A questão urbana ganha novas dimensões a partir de 1930. Podemos dizer que o impulso se desdobra a partir desta década, quando se implementa um padrão de produção econômica e cultural, alicerçado às bases de uma nova ordem: urbano e industrial. As bases da industrialização foram lançadas na década de 1930, durante o governo de Getúlio Vargas, processo que se consolidou nas décadas seguintes de 1950 e 60 (REIS FILHO, 2000, p. 102).
Uma peculiaridade da rua dos Maribondos deve ser ressaltada, a zona
de baixo meretrício da cidade de Montes Claros era dividida. Na intercessão
entre a parte de cima e a de baixo, segundo Tupinambá (2010), existia a
pensão de Maria do Bico Doce e o Cabaré de Lizarda, duas “simpáticas”
cafetinas, que sabiam conquistar a freguesia e os coronéis, arrebanhando
mulheres mais saudáveis, de “melhor categoria” e mais bonitas. Esses
“bordéis” (a pensão e o cabaré) eram mais cobiçados pelos coronéis e pelos
tímidos e bem nascidos rapazes da sociedade montes-clarense. Margareth
Rago (1991), em sua obra, Os Prazeres da Noite. Prostituição e códigos da
sexualidade feminina em São Paulo (1890 – 1930), corrobora:
[...] o mundo da prostituição não se resumia aos bordéis de luxo, onde as decisões políticas e econômicas importantes podiam ser tomadas. Havia um mundo da prostituição, aquele que habitava as sombras das ruas, das moradas precárias, dos cortiços e das vilas operárias (p.261).
Tupinambá (2010), em sua obra, reporta a seu tempo de menina, e narra
no capítulo intitulado “Rua dos Maribondos” a sua curiosidade, conforme a
autora, “muito natural em crianças”, que a intrigava e instigava a desvendar o
mistério que rondava aquela “tão cotada” rua. Vale destacar, segundo
ponderações da autora, que essa rua era dividida ao meio sendo a parte de
cima mais larga, mais limpa, com casas de melhor aparência, onde moravam
as famílias tradicionais. Essa parte (a de cima) era pouco movimentada, não se
viam mulheres sentadas às portas das casas ou transitando a qualquer hora,
principalmente nos horários noturnos. Diferentemente, a parte de baixo, era
suja, feia e estreita, com botequins .e camarotes (pequenos cômodos com uma
única porta para a rua). Naquele pedaço de rua, a movimentação era intensa,
conforme Tupinambá,
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Como era divertido aquele pedaço de rua! Mulheres assentadas em tamboretes do lado de fora dos camarotes, fumando enormes cigarros de palha, um copo de pinga na mão, embriagadas, tagarelando com homens de má aparência, assíduos frequentadores daqueles botequins, discutido sobre jogo de bicho (naquele tempo era franco) contando seus sonhos, procurando palpites para fazerem sua fezinha [...] Usavam vestidos bastante decotados, onde os seios pontudos pareciam querer saltar fora e o enorme rachão das saias deixando à mostra coxas grossas, com sinais de varizes, retratos dos excessos, falta de cuidado e de assistência médica. Muitas vezes usavam quimonos de fazenda fina, onde a transparência mostrava as formas e o contorno dos largos quadris (2010, p.28). [grifos meus]
De acordo com Rago (1995), a preocupação com a prostituição e com
as mulheres pobres do submundo prendeu-se muito mais à vontade de
normatizar os comportamentos femininos, em geral, e especialmente ao desejo
de definir um código moral de condutas para as mais abastadas. Assim, não
fumar na rua, não assobiar, não circular desacompanhada à noite tornaram-se
exigências para todas as mulheres, sob pena de serem identificadas como
prostitutas. Ainda, conforme a autora, a prostituta já estava “perdida”, enquanto
a “normal” podia ser preservada. Castro (1897), apud Rago (1995), afirmava :
“o estupro de uma meretriz não lhe causava tantos danos, pois esta já não
tinha mais o que perder” (p,91).
Dada a diversidade da condição social das mulheres e à sua trajetória
marcada por inúmeras diferenças, cabia abordar a “história das mulheres”.
Todavia, segundo Rachel Soihet (1997), na perspectiva da micro-histórica, a
história das mulheres, articulada a esse terreno historiográfico contribui para o
desenvolvimento de estudos “sobre as mulheres”, possibilitando a abordagem
de diversos temas e, mais precisamente em 1970, com a terceira geração dos
Annales, as mulheres são incluídas como campo de estudo. Pluralizam-se os
objetos da investigação histórica, e, nesse bojo, as mulheres são alçadas à
condição de objeto e sujeito da história.
Ainda, segundo Soihet , não mais apenas focalizam-se as mulheres no
exercício do trabalho, da política, no terreno da educação, ou dos direitos civis,
mas também introduzem-se novos temas na análise, como a família, a
maternidade, os gestos, os sentimentos, a sexualidade e o corpo, entre outros.
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2. CONCLUSÃO
Para além das elucubrações apresentadas neste estudo, havemos de
considerar que a diferença entre uma abordagem macro e micro do cotidiano
não se revela apenas em um recorte temático e cronológico reduzido, mas
reside no tratamento dispensado ao objeto de estudo. Pois a abordagem micro
reverte os indivíduos de números em protagonistas. Esses “protagonistas
anônimos”, como o moleiro Menochio estudado por Ginzburg (2006) que não
se somam ao numerário estatístico, mas revelam aspectos descontínuos da
história, “extratos obscuros” e que, segundo o autor, não são perceptíveis
numa lógica generalizante.
Assim, aferimos que analisar as mulheres prostitutas da parte baixa da
rua dos Maribondos na perspectiva da micro-história, como paradigma que
destaca um determinado recorte de observação em escala mínima, pode
revelar particularismos que ganharão destaque em relação ao geral,
possibilitando a análise de aspectos diferentes e inesperados de certa
realidade social. Haja vista que interessa-nos os aspectos que serão
percebidos através do exame micro-localizado da vida dessas mulheres.
Um recorte temático e cronológico reduzido não significa uma
abordagem superficial, mas, como já aludido, pode dar um “zoom” na história
dessas mulheres de “olhos tristes e olheiras roxas”, que desnudas sentavam-se
nas portas de seus camorotes na parte de baixo de uma rua, e que foram
transferidas para outra localidade da cidade, longe das vistas das famílias
tradicionais. Não nos cabe, pois, no campo historiográfico da micro-história a
atividade puramente retórica de interpretar os textos, mas sim os
acontecimentos.
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REFERÊNCIAS:
CASTRO, Viveiros d. Os delitos contra a honra da mulher. Rio de Janeiro: Ed. João Lopes da Cunha, 1897.
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.).Domínios da história : ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro, Campus, 1997.
GINZBURG, Carlo. A micro história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1990.
RAGO, Margaret. Os Prazeres da Noite. Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890 – 1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
REIS Filho, Nestor Goulart. Urbanização e modernidade: entre o passado e o futuro ( 1808-1945) . In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: SENAC São Paulo, 2000.
LEVI, Giovanni. Herança Imaterial. RJ: Civilização Brasileira, 2000.
TUPINAMBÁ, Ruth. Montes Claros Eternas lembranças. Montes Claros:. Millennium, 2010