A África Na Sala de Aula, Mônica Lima

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Artigo "A África na sala de aula", publicado por Mônica Lima.

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  • A frica na sala de aula Obrigatoriedade de ensinar histria e cultura africanas o novo desafio dos professores brasileiros Mnica Lima No dia 9 de janeiro de 2003, foi aprovada a Lei no 10.639, tornando obrigatrio o ensino de histria e cultura afro-brasileiras nos nveis fundamental e mdio. Os currculos devero incluir "o estudo da histria da frica e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formao da sociedade nacional, resgatando a contribuio do povo negro nas reas social, econmica e poltica ()" Por que uma lei para fazer valer contedo to fundamental na histria, especialmente na histria nacional? O fato que nossos antigos historiadores trataram indevidamente, ou ignoraram, a participao africana em nossa formao, influenciados por preconceitos originrios da sociedade escravista, entre os quais os ideais de branqueamento da populao brasileira nutridos, desde meados do sculo XIX, por boa parte das elites nacionais. Essa ideologia foi to forte que mesmo a intelectualidade mais progressista custou a reconhecer a questo africana na nossa histria. Acreditava-se que a luta dos africanos deveria ser estudada dentro da "luta dos dominados", ou seja, segundo a sua condio de trabalhadores explorados.Nesta tica, a frica continuava fora da histria: na histria do Brasil, era apenas o lugar onde se buscavam os escravos; na histria geral, o cenrio da expanso colonial. Quanto aos afrodescendentes figuravam apenas como escravos que davam duro nas lavouras, na minerao ou nos servios domsticos, vtimas da explorao de fundo capitalista, ou que fugiam para os quilombos. No sculo XIX, voltam cena ao serem libertados do jugo escravista, para se tornarem, no sculo seguinte, parte da massa trabalhadora. Em alguns livros, ainda aparecem como agentes da cultura popular, o samba, a capoeira ou outra manifestao cultural mais conhecida; em outros, chegam a ser representados por personagens como Zumbi e Joo Cndido, mas, com algumas excees, em breves passagens. Imagens parciais as de oprimidos, explorados e, mesmo quando rebeldes, derrotados que inibem a construo da auto-estima. Quem gosta de se identificar com elas? Os estudos recentes mudam esta viso, mas preciso saber lev-la s salas de aula. Antes, ainda, preciso que a universidade deixe, ela tambm, de ignorar o tema. Que histria ser esta, se a maioria dos professores em atividade no a conhece? Quais sero nossos objetivos, contedos, abordagens? E se resgatar esta histria matria para a construo da identidade brasileira, estamos diante de um desafio maior: Quem somos? O que desejamos ser? No h como recuperar a africanidade sem conhecer a prpria histria da frica. Ao mesmo tempo, necessrio despirmo-nos dos preconceitos etnocntricos (olhar um povo ou etnia com valores de outro) a frica como lugar atrasado, inculto, selvagem e deixar de ou supervalorizar o papel de vtima do trfico, do capitalismo, do neocolonialismo -, atitude que alimenta sentimentos de impotncia e incapacidade. O fato objetivo de povos diversos terem sido espoliados por agentes externos, compactuados com agentes internos, no pode ser negado.Mas no dimension-lo em seu tempo e em suas implicaes dentro da prpria frica acaba por fortalecer a idia de que os africanos foram somente vtimas de um destino cruel, e no sujeitos de

  • processos histricos complexos em que desempenharam outros papis. Superar essa construo simplificada requer muito estudo, alm de ampla divulgao do conhecimento. Quanto mais gente souber, melhor! Como diz a cano de Chico Csar: "Mais forte que o aoite dos feitores/ So os tambores". De outra parte, cabe lembrar que quase impossvel falar da frica no singular, de uma s frica no Brasil: so muitas as origens, as trajetrias, as culturas. A prpria noo de "africano" no existia entre os escravos at o sculo XIX. A identidade de cada povo, que o mundo escravocrata dissolvia, ainda assim prevalecia sobre a idia da identidade africana, da frica como terra de todos. Esta s se desenvolveria na prpria frica nos sculos XIX e XX, a partir das lutas de independncia, que, por sua vez, culminariam, mais adiante, em iderios como os da negritude e do pan-africanismo. No podemos perder de vista essas histrias compartilhadas em longos perodos. Nas grandes reas geoculturais e lingsticas, h africanidades profundas, da mesma forma que, no Brasil, povos diferentes criaram vocabulrios e formas prprias de comunicao. Somente novas pesquisas podem revelar essas mltiplas fricas no Brasil.Mas h tambm que despertar curiosidade e admirao, trazer essas fricas para os espaos culturais e educativos, como j se tem feito, alis. Ler, mas tambm escutar, ver, participar e perceber o quanto as trazemos dentro de ns. Despertar o orgulho da africanidade, de nossos heris, no apenas os famosos Zumbi, os Rebouas, Joo Cndido -, mas tambm os pouco conhecidos Manuel Congo, Luza Mahin e os desconhecidos os Antnios Minas, as Marias Cabindas, as Joanas Crioulas. Tambm no podemos mais repassar em nossas aulas informaes folclorizadas ou idealizadas. Nem repetir modelos a frica apenas como a terra da macumba, da capoeira, do tambor. O que est em jogo, mais do que a competncia, o nosso compromisso. Alm de nos atualizarmos, vamos tambm cobrar das autoridades: foi estabelecida uma obrigatoriedade, mas isso no basta. Estudantes universitrios, militem pela incluso efetiva desses assuntos nos currculos de suas faculdades: professores, solicitem da rede de ensino a realizao de cursos isto j realidade em alguns municpios. Busquem e criem novos espaos de estudos e pesquisas. Muito j pode ser feito na sala de aula, independentemente de decises institucionais. No ensino fundamental, trabalhar com lendas, contos, cantigas, brincadeiras. Nas aulas de Integrao Social, falar da presena africana na msica, nas festas, no vocabulrio, na alimentao.No segundo segmento do primeiro grau, trabalhar a "Pr-Histria" sem deixar de questionar o termo, pois no a escrita que cria a histria como o tempo do processo de hominizao, que se deu primeiro na frica. No deixar passar o esplendor do Antigo Egito, sem lembrar que este fica na frica, algo bvio, mas que acaba esquecido. Falar tambm dos grandes reinos africanos que, no perodo correspondente Idade Mdia europia, ergueram cidades, com universidades, bibliotecas, contatos com o Oriente e Europa e que tanto encantaram viajantes como despertaram a cobia de outros povos com suas minas de ouro: "Falar em ouro na Europa medieval era falar da frica", escreveu o historiador francs Pierre Vilar. E ao tratar do trfico de escravos, mercadoria que fazia a riqueza de comerciantes, no esquecer da outra riqueza, a espiritual, que no se mede em ouro, trazida "l de longe". No ensino mdio, situar o surgimento do racismo como projeto cientfico e poltico, utilizando estratgias que permitam aos alunos desconstruir e reconstruir idias mediante pesquisas orientadas, jris simulados, dramatizaes. Debater as formas do colonialismo europeu na frica, as transformaes que operou discutir fronteiras,

  • territrios e conflitos, temas da histria contempornea. E, articulando com a nossa histria, assinalar a fratura exposta da desigualdade racial brasileira.Nunca demais repetir: nossa pobreza tem cor, nossa excluso tem cor. Outro ponto fundamental destacar aspectos da afro-americanidade, introduzindo elementos que aproximam e diferenciam a histria dos afrodescendentes em todo o continente. Temos uma histria comum no apenas entre frica e Brasil, como entre os africanos e seus descendentes no Novo Mundo. Mas tambm nos unem as reflexes necessrias sobre os projetos de identidades nacionais no continente. Os currculos devem aprofundar a percepo destes processos na histria da Amrica. Trata-se, enfim, de resgatar a frica e africanizar a histria do Brasil: alm do sentimento de um passado comum, consolidar um conhecimento libertador. Pois, como ensinam os versos de Antnio Jacinto, poeta e militante angolano, "O ritmo do tant no tenho no sangue nem na pele tenho o ritmo do tant sobretudo mais no que pensa" ("O Ritmo do Tant") Mnica Lima professora de Histria do Colgio de Aplicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutoranda em Histria na Universidade Federal Fluminense.