A Agrobiodiversidade Com Enfoque Agroecológico_ Implicações Conceituais e Jurídicas

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AGROECOLOGIA

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  • Embrapa Informao Tecnolgica

    Braslia, DF

    2008

    Altair Toledo Machado

    Juliana Santilli

    Rogrio Magalhes

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico:implicaes conceituais e jurdicas

    ISSN 1677-5473

    Texto para Discusso 34

    Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria

    Secretaria de Gesto e Estratgia

    Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento

  • Exemplares desta publicao

    podem ser solicitados na:

    Empresa Brasileira de Pesquisa

    Agropecuria (Embrapa)

    Secretaria de Gesto e Estratgia

    Parque Estao Biolgica (PqEB)

    Av. W3 Norte (final)

    70770-901 Braslia, DF

    Fone (61) 3448-4468

    Fax: (61) 3347-4480

    [email protected]

    Editor da srie

    Ivan Sergio Freire de Sousa

    Co-editor

    Vicente Galileu Ferreira Guedes

    Conselho editorial

    Antonio Flavio Dias Avila

    Antonio Jorge de Oliveira

    Antonio Raphael Teixeira Filho

    Assunta Helena Sicoli

    Ivan Sergio Freire de Sousa

    Levon Yeganiantz

    Manoel Moacir Costa Macdo

    Otavio Valentim Balsadi

    Colgio de editores associados

    Todos os direitos reservadosA reproduo no autorizada desta publicao, no todo ou em parte,

    constitui violao dos direitos autorais (Lei no 9.610).

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Embrapa Informao Tecnolgica

    Machado, Altair Toledo.A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico : implicaes conceituais

    e jurdicas / Altair Toledo Machado, Juliana Santilli, Rogrio Magalhes. Braslia, DF : Embrapa Informao Tecnolgica, 2008.

    98 p. ; 21 cm. (Texto para Discusso / Embrapa. Secretaria de Gestoe Estratgia, ISSN 1677-5473 ; 34).

    1. Agricultura sustentvel. 2. Biodiversidade. 3. Desenvolvimentosustentvel. 4. Inovao. 5. Meio ambiente. I. Santilli, Juliana. II. Magalhes,Rogrio. III. Embrapa. Secretaria de Gesto e Estratgia. IV. Ttulo. V. Srie.

    CDD 577.55

    CDD 333.9516

    Embrapa 2008

    Ademar Ribeiro Romeiro

    Altair Toledo Machado

    Antonio Csar Ortega

    Antonio Duarte Guedes Neto

    Arilson Favareto

    Carlos Eduardo de Freitas Vian

    Charles C. Mueller

    Dalva Maria da Mota

    Egidio Lessinger

    Geraldo da Silva e Souza

    Geraldo Stachetti Rodrigues

    Joo Carlos Costa Gomes

    John Wilkinson

    Jos de Souza Silva

    Jos Manuel Cabral de Sousa Dias

    Jos Norberto Muniz

    Josefa Salete Barbosa Cavalcanti

    Marcel Bursztyn

    Maria Amalia Gusmo Martins

    Maria Lucia Maciel

    Mauro Del Grossi

    Oriowaldo Queda

    Rui Albuquerque

    Sergio Schneider

    Tams Szmrecsnyi

    Tarczio Rego Quirino

    Vera L. Divan Baldani

    Superviso editorialWesley Jos da Rocha

    Reviso de textoCorina Barra Soares

    Normalizao bibliogrficaCelina Tomaz de Carvalho

    Editorao eletrnicaJlio Csar da Silva Delfino

    Projeto grficoTenisson Waldow de Souza

    1 edio1 impresso (2008): 500 exemplares

  • Apresentao

    Texto para Discusso uma srie de monogra-fias concebida pela Empresa Brasileira de PesquisaAgropecuria (Embrapa) e editada com periodicidadepor fluxo contnuo em sua Secretaria de Gesto eEstratgia (SGE). Foi criada para encorajar edinamizar a circulao de idias novas e a prtica dereflexo e debate sobre aspectos relacionados cincia, tecnologia, inovao, ao desenvolvimentorural e ao agronegcio.

    O objetivo da srie atrair uma ampla comuni-dade de extensionistas, pesquisadores, professores,gestores pblicos e privados e outros profissionais, dediferentes reas tcnicas e cientficas, para a publi-cao e o debate de trabalhos, contribuindo, assim,para o aperfeioamento e aplicao da matria.

    As contribuies so enviadas editoria poriniciativa dos autores. A prpria editoria ou o ConselhoEditorial considerando o interesse da srie e o mritodo tema podero, eventualmente, convidar autorespara artigos especficos. Todas as contribuiesrecebidas passam, necessariamente, pelo processoeditorial, inclusos um juzo de admissibilidade e aanlise por editores associados. Os autores so acolhi-dos independentemente de sua rea de conhecimento,vnculo institucional ou perspectiva metodolgica.

    Diante dos ttulos oferecidos ao pblico, comen-trios e sugestes bem como os prprios debates podem ocorrer no contexto de seminrios ou adistncia, com o emprego dos meios de comunicao.

  • Essa dinmica concorre para consolidar, legitimar ouvalidar temas nos espaos acadmicos, na pesquisa eoutros mais.

    Em 2008, a srie completa uma dcada deimportante contribuio tcnica e cientfica e inicianovo ciclo em sua trajetria. Inaugura formatoeditorial que melhor valoriza a informao e maiscompatvel com as especificaes de bases de dadosinternacionais e programas de avaliao de peridicos,ao tempo em que experimenta importante expansoqualitativa de temas e de autores.

    Endereo para submisso de originais srie:Texto para Discusso. Embrapa, Secretaria de Gestoe Estratgia, Parque Estao Biolgica (PqEB),Av. W3 Norte (final), CEP 70770-901, Braslia, DF.Fax: (61) 3347-4480.

    Os ttulos publicados podem ser acessados, nantegra, em www.embrapa.br/embrapa/publicacoes/tecnico/folderTextoDiscussao

    O Editor

  • Dez anos de discusses estratgicas

    O ano de 2008 especialmente significativo paraas publicaes da Embrapa. Comemora-se o dcimoaniversrio da srie Texto para Discusso. Essa umavitria coletiva daqueles que se interessam pelacriao, difuso e intercmbio de idias novas.

    Parabenizo os editores, autores, pareceristas,colaboradores, revisores, diagramadores, impressores,pessoal de acabamento, distribuidores, bibliotecriose leitores. dessa interao de talentos diferenciadosque resulta cada nmero da srie que trouxe umadimenso nova ao quadro das nossas publicaestcnico-cientficas.

    Felicito tambm a Secretaria de Gesto eEstratgia (SGE), que criou, cuidou e dinamizou umasrie que discute e inspira idias estratgicas relativas cincia, tecnologia, produo agropecuria,problemas sociais, ambientais e econmicos dasociedade brasileira. So monografias lidas porprofessores e estudantes, pesquisadores e tecnlogos,extensionistas, administradores, gestores, especialistase pblico em geral.

    A publicao um exemplo de parceria frutferaentre a SGE e a Embrapa Informao Tecnolgica.A srie Texto para Discusso , de fato, multiinstitu-cional; em suas pginas, esto publicadas idiasoriundas das mais diferentes instituies. Nela,encontram-se colaboradores de universidades,institutos de pesquisa, diferentes rgos do Executivoe de outros poderes pblicos, secretarias municipais eUnidades de Pesquisa da Embrapa.

  • O maior presente deste dcimo ano a decisode torn-la mais produtiva em nmero de edies. Paraa Diretoria-Executiva da Embrapa, no poderia havermelhor forma de se comemorar o aniversrio de umveculo dessa natureza.

    Silvio CrestanaDiretor-Presidente da Embrapa

  • Sumrio

    Resumo .................................................................. 11

    Abstract .................................................................. 12

    Introduo .............................................................. 13

    Contextualizao e conceituao ............................. 15

    Agrobiodiversidade e eroso gentica...................... 29

    Agrobiodiversidade, agroecologia

    e sustentabilidade .................................................... 30

    Estratgias de ao em reas com processo

    de eroso gentica .................................................. 32

    Estratgias do melhoramento participativo

    descentralizado ....................................................... 37

    Importncia das variedades locais para

    a agrobiodiversidade ............................................... 44

    A agrobiodiversidade e o sistema jurdico ................ 46

    Consideraes finais ................................................ 88

    Referncias ............................................................. 91

  • 34

    Altair Toledo Machado 2

    Juliana Santilli 3

    Rogrio Magalhes4

    A agrobiodiversidadecom enfoque agroecolgico:

    implicaes conceituais e jurdicas1

    TextOD Oiscuss

    para

    1 Original recebido em 15/5/2008 e aprovado em 27/8/2008.2 Doutor em Agrobiodiversidade e Melhoramento Gentico

    de Plantas, pesquisador A da Embrapa Cerrados, BR 020,

    Km 18, Caixa Postal 08223, CEP 73301-970, Planaltina,

    DF. E-mail: [email protected] Promotora de Justia do Ministrio Pblico do DF, doutoranda

    em Direito Socioambiental pela PUC-PR, pesquisadora

    associada ao programa "Populaes Locais, Agrobiodiversi-

    dade e Conhecimentos Tradicionais na Amaznia Brasileira",

    convnio CNPq/Unicamp/IRD. Financiamentos: IRD, CNPq,

    BRG; Agence Nationale de la Recherche; Institut Franais

    de la Biodiversit e Programme Biodivalloc.

    E-mail: [email protected] Engenheiro florestal e advogado, Doutorando em Poltica e

    Gesto Ambiental, pela Universidade de Braslia.

    E-mail: [email protected]

  • A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico:implicaes conceituais e jurdicas

    Resumo

    No presente trabalho, procura-se destacar elementos importantes

    dos sistemas agrcolas desenvolvidos por pequenos agricultores

    e do manejo da diversidade gentica por essas comunidades. So

    tratadas questes referentes segurana alimentar, biodiversi-

    dade, agrobiodiversidade e ao desenvolvimento de metodologias

    participativas, com nfase no fitomelhoramento participativo.

    O fortalecimento de polticas pblicas voltadas conservao e

    ao uso sustentvel da agrobiodiversidade e o estmulo s

    pesquisas dirigidas agricultura familiar so considerados

    fundamentais adoo de um modelo de agricultura sustentvel,

    essencial segurana alimentar das populaes humanas.

    Ao final, destaca-se a importncia estratgica do manejo da

    agrobiodiversidade para as comunidades locais e tradicionais e

    prope-se uma reflexo sobre os impactos do sistema jurdico

    sobre a diversidade de plantas cultivadas e os ecossistemas

    agrcolas.

    Termos para indexao: agrobiodiversidade, agricultura familiar,

    agroecologia.

  • 12 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    Agrobiodiversity with focus in agroecology:concepts and legal implications

    Abstract

    The goal of the present study was to highlight important elements

    of both agricultural systems developed by small farmers, and

    management of genetic diversity also carried by these

    communities. Food security, biodiversity, agrobiodiversity, and

    the development of participative methodologies, emphasizing the

    participative plant genetic research were all focus of concern.

    Strengthening public policies aiming at biodiversity conservation

    and sustainable use of agrobiodiversity, as well as supporting

    research applied to family farming are fundamental to adopt a

    model of sustainable agriculture. Indeed, such a model is

    considered essential to food security of the human societies.

    Finally, the strategic importance of the agrobiodiversity

    management to local and traditional communities was stressed

    out, and a reflection on the impact of the legal system to the

    diversity of cultivated plants and agricultural ecosystems was

    proposed.

    Index terms: agrobiodiversity, family farming, agroecology.

  • Texto para Discusso, 3413

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    Introduo

    s polticas de manejo dos recursos vegetais tm se alteradoacentuadamente nos ltimos anos, em decorrncia dosfortes impactos sociais e ambientais provocados pelosmodelos de desenvolvimento agrcola vinculados essen-cialmente a finalidades econmicas. Nos ltimos anos, asconseqncias desastrosas de tais modelos vm se fazendosentir sob diversas formas, como: perda acelerada dabiodiversidade, contaminao dos solos e das guas,desmatamentos e queimadas, xodo de populaes ruraise desestruturao de arranjos produtivos locais. A essesefeitos se somam a insegurana alimentar das populaeshumanas e o uso inadequado dos recursos naturais, aescassez de recursos hdricos, a eroso dos solos e aemisso de gases de efeito estufa, com o conseqenteagravamento do aquecimento global.

    Os solos so, potencialmente, imensos absorvedo-res de carbono, somente superados pelos oceanos.A manuteno da cobertura vegetal e a presena dematria orgnica nos solos permitem reduzir drasticamenteo uso de fertilizantes e tornar a gua disponvel no spara as plantas como tambm para abastecer, durante oano inteiro, todas as fontes hdricas, como lagos, rios,arroios, alm daquelas de origem subterrnea. A ausnciade cobertura vegetal e de matria orgnica nos solos fator decisivo para o agravamento das secas e dasinundaes resultantes das mudanas climticas.

    A expanso dos monocultivos o principal fatorresponsvel pela perda da agrobiodiversidade, que se

    .A

  • 14 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    manifesta sob a forma de diversidade de plantas cultivadas,de ecossistemas agrcolas e de tradies, e tambm decostumes e prticas associados, que so produzidos etransmitidos por agricultores locais e tradicionais. Porisso, os sistemas diversificados de cultivos que promo-vem o manejo da agrobiodiversidade com enfoqueagroecolgico devem ser priorizados pelas polticaspblicas agroambientais, especialmente em pases emdesenvolvimento, como o Brasil.

    Este texto analisa, criticamente, o desenvolvimentodas aes que resultaram da preocupao global com aperda da biodiversidade em distintas regies do mundo.Essas aes, realizadas no mbito de acordos internacio-nais, visavam, entre outros objetivos, ao delineamento dodesenvolvimento sob bases sustentveis.

    A perda da diversidade relaciona-se diretamentecom processos socieconmicos de queda de qualidadede vida, como fome, misria e segurana alimentar, motivopor que passou a fazer parte das agendas dos pasesmembros de acordos internacionais, tendo sempre umobjetivo em comum: a conservao e o uso sustentvelda biodiversidade em comunidades locais.

    Polticas pblicas somadas a aes efetivas dapesquisa em agrobiodiversidade e agroecologia comenfoque participativo podem contribuir para minimizar oefeito da perda da biodiversidade. A valorizao dascomunidades locais e o reconhecimento da importnciado seu papel para a conservao e o uso da biodiversi-dade devem ser, por isso, continuamente estimulados.Essas questes sero abordadas neste texto por enfoquestcnico, poltico, social e jurdico.

  • Texto para Discusso, 3415

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    Contextualizao e conceituao

    oi na dcada de 1970 que ganhou fora a discusso sobrea questo ambiental no planeta, particularmente no planointernacional, com a realizao da Conferncia de MeioAmbiente das Naes Unidas em Estocolmo (na Sucia),a primeira de uma srie de trs conferncias ambientaispromovidas pela Organizao das Naes Unidas (ONU).A Conferncia de Estocolmo reuniu representantes de113 pases e de 250 organizaes no-governamentais.Os resultados formais esto contidos no documentoDeclarao sobre o Ambiente Urbano (texto maisconhecido como Declarao de Estocolmo) e nainstaurao do Programa das Naes Unidas para o MeioAmbiente (Pnuma).

    O tema ambientalismo ganhou projeo definitivacom a divulgao, em 1987, de um relatrio das NaesUnidas intitulado Nosso Futuro Comum, coordenadopela ento primeira-ministra da Noruega, Gro Brundtland,que emprestou seu nome ao documento, popularmenteconhecido como Relatrio Brundtland. Foi esse oprimeiro relatrio internacional a utilizar e a defender oconceito de desenvolvimento sustentvel, entendido como

    [...] aquele que satisfaz as necessidades das geraes

    atuais sem comprometer a capacidade das geraes

    futuras de satisfazer as suas prprias necessidades

    (DUNHAM, 2008).

    O relatrio denuncia a rpida devastao ambientale o risco de exaurimento dos recursos ambientais do

    .F

  • 16 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    planeta, caso tal modelo de desenvolvimento persista, earrola 109 recomendaes voltadas implementao dosobjetivos estabelecidos na Declarao de Estocolmo,de 1972, prevendo que o ritmo corrente de desenvolvi-mento impediria o acesso aos recursos naturais necessriospara a sobrevivncia das futuras geraes.

    O Relatrio Brundtland destaca os trs compo-nentes fundamentais do novo modelo de desenvolvimentosustentvel: proteo ambiental, crescimento econmicoe eqidade social. Verifica-se que o conceito de desenvol-vimento sustentvel, cunhado pelo referido relatrio, jincorporava tanto o componente ambiental quanto o socialdo desenvolvimento. Ou seja, o desenvolvimento deveriaser no s ambientalmente sustentvel como tambmsocialmente justo e economicamente vivel.

    Em 1992, no Rio de Janeiro, foi realizada a2 Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambientee Desenvolvimento (conhecida como ECO-92), quetrouxe grande visibilidade pblica e fora poltica para aquesto ambiental, inserindo definitivamente o meioambiente entre os grandes temas da agenda global.A ECO-92, conferncia da maior proporo entre asrealizadas pela ONU, foi claramente um marco na histriado ambientalismo internacional. As convenesinternacionais assinadas durante a ECO-92 refernciasfundamentais para o Direito Ambiental Internacional foram a base para a formulao de polticas pblicassociais e ambientais em todo o mundo.

    A seguir, sero analisadas: a Declarao do Riode Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, aConveno sobre Diversidade Biolgica (CDB), a

  • Texto para Discusso, 3417

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    Declarao de Princpios para um Consenso Globalsobre o Manejo, a Conservao e o DesenvolvimentoSustentvel de todos os Tipos de Florestas, aConveno-Quadro sobre Mudanas Climticas e aAgenda 21.

    Declarao do Rio de Janeirosobre Meio Ambiente e Desenvolvimento

    Esse documento contm os 27 princpios quenorteiam e fundamentam toda a legislao ambiental.Destacamos, a seguir, os mais importantes:

    i) Princpio do Desenvolvimento Sustentvel, tal como jdesenvolvido no Relatrio Brundtland, e do DireitoIntergeneracional ao Meio Ambiente EcologicamenteEquilibrado.

    ii) Princpio da Precauo, segundo o qual a ausncia decerteza cientfica absoluta no pode servir de pretextopara procrastinar a adoo de medidas que visem evitardanos ambientais.

    iii) Princpio do Poluidor-Pagador, segundo o qual opoluidor deve, em princpio, assumir o custo dapoluio.

    iv)Princpios da Participao Social na Gesto Ambientale do Acesso Informao Ambiental.

    v) Princpio da Obrigatoriedade da Interveno Estatal,que atribui ao Poder Pblico a obrigao de defendero meio ambiente (MACHADO, 1994).

  • 18 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    Conveno sobreDiversidade Biolgica (CDB)

    A CDB surgiu em decorrncia da preocupao dacomunidade internacional com o acelerado desapare-cimento de vrias formas de vida terrestres. A principalcausa desse desaparecimento atribuda s atividadeshumanas sobre as comunidades biolgicas. SegundoPrimack e Rodrigues (2001), 85 espcies de mamferose 113 espcies de pssaros foram extintas desde o anode 1600, principalmente nos ltimos 150 anos, e se elevoupara a proporo de uma espcie a cada ano durante operodo de 1850 a 1950. Para os autores, muitas espciescontemporneas correm srios riscos de extino, aexemplo de 11 % de pssaros e mamferos.

    O fator fundamental para a formao de um regimede proteo da biodiversidade foi o surgimento de umnovo conceito de ambientalismo, que propunha asuperao do debate entre o conservacionismo e opreservacionismo (valores vigentes nos anos 1960), dandolugar, ento, ao novo paradigma da utilizao sustentveldo meio ambiente, segundo o qual a preocupaoprincipal deve estar na conciliao entre sociedade enatureza e na evoluo do conceito cientfico dabiodiversidade, tendo se passado, ento, da percepodas espcies como foco de anlise, para a percepo dosecossistemas (ALENCAR, 1995).

    A essa mudana conceitual seguiu-se a aprovaode tratados regionais e bilaterais que evidenciavam atendncia de abandono da proteo de espcies isoladase a busca da proteo de ecossistemas considerados

  • Texto para Discusso, 3419

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    essenciais para a vida selvagem, tais como as reservas dabiosfera e a proteo de espcies migratrias e de zonasmidas para aves aquticas. Depois da adoo desse novoparadigma, seguiu-se a aprovao das seguintesconvenes, todas de alcance global: a) de Ramsar, arespeito de Zonas midas de Importncia InternacionalEspecialmente como Habitat de Aves Aquticas (1971);b) de Paris, relativa Proteo do Patrimnio Natural eCultural Mundial (1972); c) de Washington, sobre oComrcio Internacional de Espcies da Fauna e FloraAmeaadas de Extino (1973); e d) de Bonn, para aConservao das Espcies Migratrias da Vida Selvagem(1979).

    Especialistas nessa temtica chamaram a atenosobre a necessidade de que questes ligadas proteoambiental fossem tratadas de forma consistente e inter-relacionada, diferentemente da forma fragmentada comovinham sendo exploradas. A partir da, ficou patente anecessidade de elaborao de uma conveno mundialde amplo alcance.

    Em 1987, durante a 14 Reunio do Conselho deAdministrao do Programa das Naes Unidas para oMeio Ambiente (Pnuma), ficou estabelecido que aInternational Union for Conservation of Nature and NaturalResources (IUCN) daria continuidade ao trabalho deproduo da verso preliminar da Conveno, enquantoo Pnuma constituiria um Grupo de Trabalho ad hoc deEspecialistas em Diversidade Biolgica, com o propsitode analisar a viabilidade de uma conveno sistematizadoraa respeito de conservao da biodiversidade.

    O trabalho conjunto desenvolvido pelo Pnuma epela IUCN resultou na elaborao de um documento

  • 20 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    bsico, em 1991, que foi formalmente submetido negociao no mbito de um Comit de NegociaoIntergovernamental, dando-se incio ao processo oficialde negociao da CDB.

    Esse acordo propunha uma conveno-quadro(framework convention), que definiria princpios, metase compromissos globais, sem estabelecer prazos eobrigaes especficas, cabendo s partes a sua regula-mentao em mbito interno, e s Conferncias das Partesa tarefa de iniciar o processo de implementao de novosatos internacionais menos abrangentes, sob a forma deprotocolos anexados Conveno (ALENCAR, 1995).

    O processo de negociao da CDB foi consideradodifcil e, em algumas ocasies, houve at mesmo situaesde confronto, por conta dos interesses antagnicos entreas foras representadas pelos pases desenvolvidos e asrepresentadas pelos pases em desenvolvimento. Nofaltaram at mesmo posies extremadas entre osparticipantes, fato que induziu os negociadores a formularum texto final sem carter impositivo, concentrando-seapenas nos princpios a serem respeitados pelas partes.

    O presidente do Comit Intergovernamental, oembaixador chileno Vicente Sanchez, ressaltou apolarizao dessas foras e os interesses envolvidos nanegociao, que tornaram o processo mais complicadodo que inicialmente previsto, em decorrncia da inclusode aspectos da complexa interao de pasesdesenvolvidos com aqueles em desenvolvimento. Entreas questes polmicas mencionadas pelo representantediplomtico, destacaram-se: a regulamentao do acessoa recursos genticos; o acesso tecnologia e transferncia de tecnologia; e as implicaes trazidas ao

  • Texto para Discusso, 3421

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    comrcio e ao desenvolvimento em decorrncia de certostermos da Conveno (SANCHES; JUMA, 1994).

    Em razo de interesses contrrios manifestos pelaspartes nos atos de negociao, formou-se um bloco misto.De um lado, um grupo representando os pasesdesenvolvidos, liderados pelos EUA, que reivindicava amanuteno dos recursos biolgicos como patrimniocomum da humanidade, o que obrigaria os pasesdetentores de biodiversidade a submeter s diretrizes deconservao impostas pelo grupo dos desenvolvidos. Deoutro lado, um bloco formado por Brasil, China e ndia,liderando os pases em desenvolvimento, que defendiauma posio contrria, ou seja, o princpio de que osEstados membros tinham direitos soberanos sobre osprprios recursos biolgicos. A posio do bloco lideradopelos EUA era favorvel ao livre acesso aos recursosgenticos em razo do fato de suas indstrias alimentciae biotecnolgica serem extremamente dependentes dabiodiversidade mundial.

    Prevaleceu a posio dos pases do Hemisfrio Sul,que judicavam pelo livre direito de dispor sobre seusrecursos genticos, e que o acesso deveria ser definidocom base em termos mutuamente acordados entre aspartes, com a previso de partilha justa e eqitativa dosbenefcios derivados da explorao do material emquesto. Embora os pases industrializados tivessemgarantido o direito de acesso facilitado, por serem depen-dentes desses recursos, os pases em desenvolvimentocondicionaram esse acesso expressa autorizao dospases provedores. Na realidade, o que as naes emdesenvolvimento pretendiam era que a conservao dadiversidade biolgica fosse vinculada a suas demandaseconmicas e sociais.

  • 22 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    A questo do acesso tecnologia e sua transfernciafoi outro ponto que gerou bastante polmica no decorrerdas negociaes. Os pases em desenvolvimentoenxergaram na CDB uma importante oportunidade paraampliar o seu acesso a tecnologias geradas nos pasesindustrializados.

    Aps as conturbadas negociaes que a antece-deram, a CDB foi aberta adeso em 5 de junho de1992, durante a Conferncia das Naes Unidas sobreMeio Ambiente e Desenvolvimento (Cnumad), realizadana cidade do Rio de Janeiro, no perodo de 5 a 14 dejunho de 1992, tendo entrado em vigor em 29 dedezembro de 1993. Durante a Cnumad, a Convenofoi subscrita por 157 pases, estando o Brasil5 entre seussignatrios.

    Naquela oportunidade, os EUA recusaram-se aassinar o Tratado por discordarem do princpio dasoberania dos pases em relao aos prprios recursosgenticos, e por se oporem tambm transferncia detecnologia, de um pas desenvolvido para outro emdesenvolvimento, para a conservao e o aproveitamentodos recursos, temendo que a Conveno pudessesubverter o regime internacional de propriedade intelectualvigente (ALBAGLI, 1998).

    Somente em 1994, os EUA decidiram apresentarsua adeso Conveno, embora o Congresso daquelepas ainda no tenha ratificado a CDB.

    5 O Brasil depositou o instrumento de ratificao da Conveno em 28 defevereiro de 1994, que passou a vigorar no Pas a partir de 29 de maio de1994. A Conveno sobre Diversidade Biolgica foi promulgada pormeio do Decreto n 2.519, de 16 de maro de 1998.

  • Texto para Discusso, 3423

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    A CDB tem como propsito a conservao dadiversidade biolgica, a utilizao sustentvel de seuscomponentes e a repartio justa e eqitativa dosbenefcios derivados da utilizao dos recursos genticos.Nos termos da Conveno, o acesso aos recursosbiolgicos e genticos deve estar sujeito ao consenti-mento prvio informado dos pases de origem dessesrecursos e das populaes tradicionais detentoras dosconhecimentos tradicionais associados biodiversidade,e os benefcios derivados da utilizao comercial, ou dequalquer natureza, de tais recursos devem sercompartilhados de forma justa e eqitativa com essespases e essas populaes, at mesmo mediante atransferncia de biotecnologia e da participao dos pasesde origem nas atividades de pesquisa.

    O Brasil foi o primeiro pas a assinar a Conveno,seguido de mais de uma centena de pases, durante aECO-92, sendo ratificada pelo Congresso Nacional emmaio de 1994. Entre os avanos representados pelareferida Conveno, estava a adoo do princpio dasoberania dos Estados sobre os recursos biolgicos egenticos existentes em seus territrios, que prevaleceusobre o conceito anterior de que tais recursos consti-tuiriam patrimnio da humanidade. Japo e EstadosUnidos (que at hoje no ratificaram a Conveno),pases ricos em biotecnologia, pleiteavam o livre acessoa tais recursos, o que contrariaria os interesses dos pasesda chamada megadiversidade: Brasil, Mxico, China,Colmbia, Indonsia, Qunia, Peru, Venezuela, Equador,ndia, Costa Rica e frica do Sul, que, juntos,representam 70 % da diversidade biolgica do mundo(SANTILLI, 2005).

  • 24 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    Declarao de Princpios para umConsenso Global sobre o Manejo, a Conservaoe o Desenvolvimento Sustentvel de Todos os Tiposde Florestas mais conhecida como Declaraode Princpios das Florestas

    Essa Declarao contm um conjunto de 15 prin-cpios relacionados ao manejo e conservao dasflorestas e foi o primeiro documento a tratar da questoflorestal de maneira universal.

    Conveno-Quadrosobre Mudanas Climticas

    Neste acordo, a comunidade internacionalreconhece as mudanas climticas como um problemaambiental, real e global, bem como o papel das atividadeshumanas nas mudanas climticas e a necessidade decooperao internacional. Estabelece como objetivo finala estabilizao dos gases de efeito estufa em um nveldeterminado, no qual a atividade humana no interfira nosistema climtico, ou no qual as mudanas no climaocorram lentamente, de modo que permita a adaptaodos ecossistemas, alm de assegurar que a produo dealimentos e que o desenvolvimento econmico severifiquem de uma maneira sustentvel (IPHAM, 2002).A Conveno reconhece que a base econmica eprodutiva atual depende de atividades (industriais e detransportes) que emitem gases de efeito estufa. O princpiobsico da Conveno o da responsabilidade comum,

  • Texto para Discusso, 3425

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    porm diferenciada, qual seja, os pases desenvolvidosdevem assumir os primeiros compromissos de reduodas emisses de gs, uma vez que historicamente so elesos grandes emissores e apresentam maior capacidadeeconmica para suportar tais custos. Em 1997, durante a3. Conferncia das Partes da Conveno, foi elaboradoo Protocolo de Quioto, com o objetivo de alcanar metasespecficas de reduo de emisses de seis dos gases deefeito estufa.

    Agenda 21

    A Agenda 21 um amplo plano de ao voltadopara o desenvolvimento sustentvel, constitudo por quatrosees, 40 captulos, 115 programas e aproximadamente2.500 aes a serem implementadas. As quatro seesabrangem os seguintes temas:

    a) Dimenses econmicas e sociais: trata das relaesentre meio ambiente, pobreza, sade, comrcio, dvidaexterna, consumo e populao.

    b) Conservao e administrao de recursos.

    c) Fortalecimento dos grupos sociais.

    d) Meios de implementao: financiamentos e papel dasatividades governamentais e das no-governamentais.

    Dez anos aps a realizao da ECO-92, as NaesUnidas realizaram, em Johannesburgo, na frica do Sul,de 26 de agosto a 4 de setembro de 2002, a CpulaMundial sobre Desenvolvimento Sustentvel (maisconhecida como Rio +10). Os seus resultados formaisforam a Declarao de Johannesburgo para o Desenvolvi-mento Sustentvel e o Plano de Implementao, contendo

  • 26 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    metas genricas relacionadas ao acesso a gua tratada,saneamento, recuperao de estoques pesqueiros,gerenciamento de resduos txicos e uso de fontesalternativas de energia.

    Agrobiodiversidade Conceituao

    A CDB foi, provavelmente, entre os instrumentosaprovados durante a ECO-92, aquele que conquistoumaior visibilidade internacional. A conservao dadiversidade biolgica, a utilizao sustentvel de seuscomponentes e a repartio justa e eqitativa dos benef-cios derivados da utilizao dos recursos genticos soos seus principais objetivos. Tais questes foram inseridasnas agendas dos pases, que passaram a incorporar oconceito de diversidade biolgica ou biodiversidade,definido pela Conveno como

    [...] a variabilidade de organismos vivos de todas as

    origens, compreendendo, dentre outros, os ecossiste-

    mas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquti-

    cos e os complexos ecolgicos de que fazem parte;

    compreendendo ainda a diversidade dentro de espcies,

    entre espcies e de ecossistemas (BRASIL, 2006).

    A biodiversidade , em sntese, o conjunto de toda a vidaem nosso planeta.

    A diversidade biolgica refere-se multiplicidadee ao equilbrio dinmico, de acordo com as especificidadesde cada regio, de ecossistemas, de espcies vivas e desuas caractersticas genticas. Convm destacar ainda quea expresso diversidade refere-se tambm pluralidadede formas de vida, humana ou no, bem como multipli-cidade de arranjos sociais, religiosos, tecnolgicos e

  • Texto para Discusso, 3427

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    institucionais, necessrios e adequados s realidades dediferentes agrupamentos humanos e sustentabilidadeambiental da regio onde vivem.

    Nesse contexto de valorizao da biodiversidade,ressurgiram, com muita fora, temas caros aos temposmodernos, como a agricultura familiar e o indgena, queincorporam valores culturais, sociais e econmicos epromovem formas de manejo sustentvel dos recursosnaturais. A CDB reconhece ainda, em seu prembulo, a[...] estreita e tradicional dependncia de recursos biol-gicos de muitas comunidades locais e populaes indge-nas com estilos de vida tradicionais (BRASIL, 2006), eo artigo 8(j) determina que os pases signatrios devem

    [...] respeitar, preservar e manter o conhecimento,

    inovaes e prticas das comunidades locais e popu-

    laes indgenas com estilos de vida tradicionais

    relevantes conservao e utilizao sustentvel da

    diversidade biolgica (BRASIL, 2006),

    bem como [...] incentivar sua mais ampla aplicao coma aprovao e participao dos detentores desses conhe-cimentos (BRASIL, 2006). Dentre esses saberes, incluem-se os sistemas de cultivo e de manejo dos agroecossis-temas. Os sistemas tradicionais de manejo dos recursosnaturais inspiraram as atuais formas de agricultura ecolgica.

    O termo agrobiodiversidade no explicitamentemencionado no texto da CDB. Foi, entretanto, definidopela Deciso V/5 da 5a Conferncia das Partes daConveno6, realizada em Nairobi, como

    6 COP5 Decision V/5 Agricultural biological diversity: review of phase Iof the programme of work and adoption of a multi-year work programme.May 2000 (CONVENO, 2008).

  • 28 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    [...] um termo amplo que inclui todos os componentes

    da biodiversidade que tm relevncia para a agricultura

    e alimentao; inclui todos os componentes da

    biodiversidade que constituem os agroecossistemas:

    a variabilidade de animais, plantas e microrganismos,

    nos nveis gentico, de espcies e de ecossistemas,

    necessrios para sustentar as funes-chave dos

    agroecossistemas, suas estruturas e processos.

    (STELLA et al., 2006, p. 42).

    A agrobiodiversidade agrega os trs nveis decomplexidade relacionados biodiversidade (diversidadeentre espcies, dentro de espcies e de ecossistemas).Entretanto, as intervenes humanas so tambmfundamentais para a compreenso da agrobiodiversidade,como as diferentes prticas de manejo dos agroecossiste-mas, os saberes e os conhecimentos agrcolas tradicionais,relacionados com o uso culinrio, em festividades, emcerimnias religiosas, etc. A agrobiodiversidade resultado da interao de quatro nveis de complexidade:a) sistemas de cultivo; b) espcies, variedades e raas;c) diversidade humana; e d) diversidade cultural.

    O conceito de agrobiodiversidade emergiu em umcontexto de crticas aos impactos negativos provocadospelos sistemas agrcolas convencionais sobre o meioambiente, tais como: o uso inadequado dos recursosnaturais, a destruio da biodiversidade e dos ecossis-temas naturais e a desestruturao cultural de populaestradicionais. A conjuno desses fatores provocou umforte processo de eroso gentica e cultural em vriospases, principalmente nos megadiversos, situadosprincipalmente entre os trpicos do planeta. A preocu-pao com a eroso gentica e cultural passou a alarmara maioria dos pases, acentuando-se a partir da dcadade 1980, ainda no auge da Revoluo Verde.

  • Texto para Discusso, 3429

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    Agrobiodiversidade e eroso gentica

    manejo da diversidade gentica de plantas requer umaconstante interao do homem com o ambiente, queinfluencia a construo dos agroecossistemas. Em reastropicais, os estresses abiticos e biticos produzem seusefeitos sobre tais prticas. Por sua vez, os mtodos ditosmodernos de manejo da diversidade gentica acabampor dilapid-la, ao promover a uniformidade gentica e odesenvolvimento de materiais genticos altamentedependentes de insumos externos.

    Os primeiros sistemas de manejo da agrobiodiver-sidade com enfoque agroecolgico surgiram nos centrosde origem da revoluo agrcola neoltica, onde teve incioa domesticao das plantas cultivadas. Muitos modelosdescritos hoje pela agroecologia baseiam-se em culturasmilenares desenvolvidas pelos povos que habitavam esseslocais. Como exemplo, podemos citar os habitantes daregio que se estende do Mxico at os Andes, na Amricado Sul, responsveis pela domesticao do feijo, dapimenta, do milho, da batata, da quinoa, do tremoo, ede outras espcies agrcolas. Em outras reas, como noCerrado brasileiro, nas Savanas africanas e em outrasfitofisionomias asiticas, ocorreu recentemente uma rupturados sistemas agrcolas tradicionais, provocada tanto porestresses ambientais quanto pela interferncia daagricultura moderna. Verificou-se uma forte eroso dabiodiversidade, que acarretou o desaparecimento desistemas de cultivo e de prticas socioculturais mantidasmilenarmente por agricultores e povos indgenas.

    .O

  • 30 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    A eroso gentica tornou-se uma preocupaomundial amplamente debatida durante a Rio-92. Em 1996,foi aprovado, em Leipzig, na Alemanha, o Plano de AoGlobal sobre Conservao e Utilizao Sustentvel deRecursos Genticos de Plantas para Alimentao eAgricultura. A questo da segurana alimentar foiintensamente investigada nesse documento, alm de temasde extrema importncia para a conservao e o usosustentvel da biodiversidade, como: a) a valorizao dosconhecimentos e saberes agrcolas desenvolvidos porpequenos agricultores e povos indgenas; b) o reconheci-mento da importncia dessas comunidades para aconservao dos recursos genticos; c) a importncia dautilizao de prticas agrcolas sustentveis; e d) avalorizao das variedades locais. O documentorecomenda tambm o uso de metodologias participativasem pesquisas agrcolas. O mundo, em geral, teve umprazo de 5 anos para adotar as recomendaes desseplano, cuja implementao no Brasil est, porm, atrasada.

    Agrobiodiversidade, agroecologia e sustentabilidade

    erminados os debates globais, a questo da sustentabi-lidade foi introduzida na agenda de todos os Estadosmembros da FAO7, com recomendao sobre anecessidade de reverso do modelo agrcola vigente, cujosefeitos perversos sobre o meio ambiente e as comunidadesagrcolas tradicionais so incontestes. A aproximaointegrada de conservao e utilizao da agrobiodiversi-

    7 Atualmente cerca de 156 pases.

    .T

  • Texto para Discusso, 3431

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    dade, com um enfoque agroecolgico, um componente-chave das polticas voltadas para a agricultura sustentvel.

    Antes que possamos desenvolver essa idia, faz-se necessrio elucidar vrios conceitos que passaram afazer parte das agendas de pesquisa, a saber: desenvolvi-mento local, desenvolvimento territorial, sustentabilidade,biodiversidade, agrobiodiversidade e agroecologia.A biodiversidade, a agrobiodiversidade e a agroecologiaso conceitos prximos e bastante interligados, porestarem relacionados a questes do meio ambiente, dosagroecossistemas e das comunidades tradicionais,formando um complexo funcional com diversas interaes,que deram origem aos sistemas agroecolgicos.

    A agrobiodiversidade pode ser entendida como oprocesso de relaes e interaes do manejo da diversidadeentre e dentro de espcies, os conhecimentos tradicionaise o manejo de mltiplos agroecossistemas, sendo um recorteda biodiversidade. J a agroecologia pode ser interpretadacomo o estudo das funes e das interaes do saber local,da biodiversidade funcional, dos recursos naturais e dosagroecossistemas. Sistemas agroecolgicos promovem ese relacionam com a agrobiodiversidade, fazendo interagirvalores socioculturais, manejo ecolgico dos recursosnaturais e manejo holstico e integrado dos agroecossis-temas. Est presente ainda a noo de sustentabilidade,baseada em aes socialmente justas, economicamenteviveis e ecologicamente corretas.

    noo de justia social corresponde a valorizaodas questes socioculturais e dos conhecimentos tradicio-nais; viabilidade econmica corresponde o manejo dadiversidade entre e dentro das espcies, com a diversi-ficao dos cultivos e o manejo ecolgico dos recursos

  • 32 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    naturais; e ao aspecto das prticas ecologicamentecorretas se relaciona o manejo holstico dos agroecossis-temas. Percebe-se, assim, a forte relao entre a agrobio-diversidade, a agroecologia e a sustentabilidade, que deveexistir de forma harmnica e contnua. Qualquer dese-quilbrio, seja decorrente de causas naturais seja deinterveno humana, pode provocar um quadro de erososistmica, cuja conseqncia, inevitavelmente, ser amisria e a fome (MACHADO, 2007a).

    A fome nos pases em desenvolvimento deve-se emgrande parte eroso gentica, ao estresse ambiental, infra-estrutura deficitria, falta de gua e a problemassocioeconmicos que afetam o desenvolvimento dasatividades agrcolas. A perda de variedades locaisaltamente adaptadas a esses agroecossistemas, associada perda de valores culturais, afetam gravemente aspopulaes que vivem nessas regies. Fala-se muito emaes contra a pobreza, mas pouco se faz em favor daagrobiodiversidade e da agricultura sustentvel nas reasmarginais, onde vive a maior parte das comunidadesagrcolas e indgenas. nas zonas rurais que vivem 70 %dos pobres (MACHADO, 2007b).

    Estratgias de ao em reascom processo de eroso gentica

    conceito de segurana alimentar orientado para polticaspblicas apareceu pela primeira vez em 1974, naConferncia Mundial de Alimentao da FAO. Estamesma instituio viria a ampliar o conceito, que passaria

    .O

  • Texto para Discusso, 3433

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    a ser entendido no sentido de [...] assegurar o acessoaos alimentos para todos e a todo o momento, emquantidade e qualidade suficientes para garantir uma vidasaudvel e ativa (CAPORAL; COSTABEBER, 2003,p. 153). Esse conceito colocou em evidncia a importnciada agricultura para a produo de alimentos com qualidadee em quantidade suficiente para alimentar as pessoas, eno somente com a inteno de produzir commodities.Valorizou tambm uma agricultura sustentvel, que respeitao meio ambiente, capaz de manter a base dos recursosnaturais por muito tempo, contrariamente quela enfatizadapela Revoluo Verde, que, apesar de intensificar aprodutividade das culturas, provoca vrios danos ao meioambiente (CAPORAL; COSTABEBER, 2003).

    Durante os anos 1990, o debate mundial em tornoda segurana alimentar colocou em evidncia outrasquestes, tais como a renda e o poder aquisitivo comodeterminantes do acesso alimentar.

    Foi a partir desse marco que os governantesbrasileiros comearam a se preocupar com as camadasda populao em situao de fome, misria e inseguranaalimentar. Essas preocupaes tomaram espao naestrutura do governo, sendo transformadas em polticaspblicas. No entanto, as solues encontradas parareverter a situao social degradante das populaesimplicadas em carncias alimentares aparecem naforma de aes fragmentadas e imediatas, sendo con-duzidas por meio de programas assistenciais pontuais eespecficos, e uma abordagem que no considerava o serhumano como o centro das atenes (GAZOLLA;SCHNEIDER, 2004).

  • 34 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    Nos ltimos 10 anos, a questo toma novasdimenses sociais e polticas no Pas, com a implantaodo Programa Comunidade Solidria, do Programa BolsaFamlia e de vrios programas de iniciativa dos governosestaduais e municipais. Com essas iniciativas, a questoda segurana alimentar alada condio de principalpoltica da rea social. Nesse escopo, os governos se viramna contingncia de agrupar uma srie de aes espalhadaspor vrios rgos pblicos que se ocupavam com essetipo de iniciativa ou aes correlatas.

    Atualmente, o Fome Zero, estratgia federal quevisa basicamente assegurar o direito humano alimentaoadequada s pessoas com dificuldades de acesso aalimentos, busca uma atuao integrada dos rgos degoverno para assegurar o acesso alimentao, aexpanso da produo e o consumo de alimentossaudveis, a gerao de ocupao e renda, a melhoria daescolarizao, das condies de sade, do acesso aoabastecimento de gua, tudo sob a tica dos direitos decidadania (BRASIL, 2008).

    O apoio agricultura familiar insere-se nessainiciativa de harmonizao das aes pblicas, particular-mente pela sua grande qualidade de fornecedor dealimentos para a populao de baixa renda. Alm dessafuno, a agricultura familiar importante para a seguranaalimentar, em razo da sua caracterstica de fonte dedistribuio de renda e de gerao de empregos, o queabre a possibilidade para que milhes de pessoas tenhamacesso a alimentos. A aquisio de alimentos deprodutores locais para a merenda escolar por meio doPrograma de Aquisio de Alimentos (PAA) um exemplode ferramenta eficiente para sanar os problemas de

  • Texto para Discusso, 3435

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    deficincia alimentar em crianas e tambm para alavancara produo familiar nos municpios.

    Grande parte da insegurana alimentar no Brasilprovm da inviabilizao da agricultura familiar (SOARES,2001). A histrica falta de apoio a esse setor vemredundando na expulso do agricultor familiar do campo,em direo periferia dos centros urbanos, engrossandoa fileira de desempregados e miserveis com acesso restritoa alimentos.

    Outros fatores concorrem para inviabilizar aagricultura familiar. A eroso gentica (reduo davariabilidade gentica), alm de diminuir a produoagrcola, aumenta a suscetibilidade das plantas a pragas edoenas. Segundo a FAO (2008), a diminuio dadiversidade gentica de plantas e animais torna maisvulnervel e insustentvel o abastecimento alimentar.

    Uma das principais causas da eroso gentica soos processos de transformao das prticas e dos sistemasagropecurios tradicionais. Essas transformaesprovocam a perda de conhecimentos sobre espciesnativas e variedades locais e sobre seus usos tradicionais.Com as mudanas, o acervo gentico mantido por essesagricultores vai se reduzindo gradualmente. Outra causabastante importante so as exigncias do mercado. comum o agricultor optar pela explorao de umacultivar comercial em virtude das exigncias de mercado,e abandonar aquelas variedades j adaptadas ao meioambiente local.

    A recuperao de reas que sofreram um forteprocesso de eroso gentica depende de vrias estratgias.O diagnstico da eroso deve, num primeiro momento,

  • 36 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    considerar aspectos ambientais, sociais, culturais,econmicos, bem como os relativos agrobiodiversidade,aos sistemas agroecolgicos e capacidade organiza-cional. Num segundo momento, devem ser determinadosos indicadores de sustentabilidade para os mesmos nveiscitados.

    Muitas aes em agrobiodiversidade e agroecologiapodem ser desenvolvidas com a participao das comuni-dades de agricultores familiares. O seu objetivo imediato assegurar a segurana alimentar e, a mdio prazo, asoberania alimentar. Para a execuo dessas aes, sonecessrias metodologias apropriadas, que podem seiniciar com a realizao de um diagnstico participativo ede seminrios de sensibilizao e de capacitao.A execuo de um projeto de pesquisa dessa naturezabusca o desenvolvimento territorial sustentvel, a partirde dois componentes fundamentais o manejo daagrobiodiversidade e o manejo ecolgico dos agroecossis-temas , que promovam o desenvolvimento das relaessociais, culturais, econmicas e ambientais, alm dosmecanismos de agregao de valor a partir de processosagroindustriais.

    As interaes das instituies com as comunidadesdevem ser feitas por metodologias participativas e ligadaspor redes. O trabalho comunitrio pode ser desenvolvidoa partir da formao de plos, que podem desempenharum papel fundamental para o empoderamento comunitrio,irradiando seus efeitos para outras comunidades dentrode um mesmo territrio ou fora dele, por meio de intercm-bios. Procura-se, portanto, estabelecer procedimentosmetodolgicos de pesquisa participativa, diversificaode cultivos, avaliao, seleo e conservao de um amplo

  • Texto para Discusso, 3437

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    germoplasma de espcies cultivadas de interesse local,promovendo a interao da agrobiodiversidade com aagroecologia.

    Estratgias do melhoramentoparticipativo descentralizado

    manejo dos recursos vegetais, incluindo o melhoramentoparticipativo, desempenha um papel relevante para osagricultores familiares, principalmente quando vivem emregies com condies ambientais, climticas e econ-micas adversas. Tais prticas contribuem para aconstruo de um ambiente agrcola sustentvel, com aelevao de renda e a agregao de valores ambientais esociais, criando as bases para a soberania alimentar dascomunidades, que passam a ter autonomia sobre aproduo das sementes (MACHADO, 2007b).

    Uma das estratgias sugeridas pelo Plano de AoGlobal para Segurana Alimentar da Organizao dasNaes Unidas para a Agricultura e Alimentao (FAO)consiste no uso e na preservao da diversidade genticade plantas dentro de comunidades agrcolas (CGIAR,1999a). O trabalho conjunto de instituies de pesquisae comunidades agrcolas, visando ao manejo da agrobiodi-versidade, em curto prazo, pode contribuir para o uso e aconservao de germoplasma adaptado aos agroecossis-temas locais (ALMEKINDERS; ELINGS, 2001;SPERLING et al., 2001). Assim, o uso de metodologiaparticipativa de crucial importncia para o desenvolvi-

    .O

  • 38 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    mento de trabalhos com pequenos agricultores (CGIAR,1999b).

    O melhoramento participativo, que um compo-nente do manejo da diversidade gentica, iniciado nos anos1980, possui como ingrediente fundamental a inclusosistemtica de conhecimentos, habilidades, experincias,prticas e saberes dos agricultores.

    Essa modalidade de melhoramento baseia-se nosconhecimentos da Gentica Vegetal Convencional, daFitopatologia e da Economia, combinando-os Antro-pologia, Sociologia, aos conhecimentos dos produtorese aos princpios da pesquisa de mercado e desenvolvi-mento de produtos (CGIAR, 1999a, 1999b). O melhora-mento participativo possui mltiplos objetivos, mais amplosdo que os do melhoramento formal ou convencional. Tempor metas o ganho de produtividade (comum ao melhora-mento convencional), a conservao e a promoo doaumento da biodiversidade (promoo da variabilidadegentica), a obteno e o uso de germoplasma de adap-tao local (variedades modernas ou locais, dependendodos objetivos), a seleo dentro de populaes, aavaliao experimental de variedades (tambm denomi-nada seleo participativa de variedades), o lanamentoe a divulgao de novas variedades, a diversificao dosistema produtivo e a produo de sementes. A organi-zao totalmente descentralizada, o trabalho desenvolvido por grupos de produtores e/ou comunidadesagrcolas, podendo ou no haver lanamento formal devariedades, e a difuso das sementes ocorre no planoformal e/ou local (CGIAR, 1999a, 1999b; MORRIS;BELLON, 2004; DAWSON; MURPHY, 2008).

  • Texto para Discusso, 3439

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    Os pequenos agricultores geralmente vivem eplantam em ambientes marginais, onde a agricultura dominada por variaes nas condies agroecolgicas esocioeconmicas, sujeitas a estresses complexos e aelevados custos e riscos de produo (ALMEKINDERS;ELINGS, 2001). O uso de insumos qumicos pode reduziros efeitos das limitaes ambientais, embora o seuemprego por pequenos produtores esteja limitado s suascondies econmicas. Portanto, o manejo da diversidadegentica de plantas por pequenos agricultores brasileiros uma importante estratgia para selecionar variedadesadaptadas sua realidade.

    Para compreender a origem do melhoramentoparticipativo, necessrio fazer uma breve abordagemdo desenvolvimento dos programas de melhoramento nomundo. Na dcada de 1960, os programas de melho-ramento de todo o mundo sofreram a influncia dosconhecimentos da Gentica Quantitativa e da EstatsticaPura. Tais conhecimentos eram utilizados para o estudoda estrutura das populaes, para a avaliao dascapacidades de combinao e para a aplicao dosprincpios experimentais, originando o desenvolvimentode novas tcnicas de experimentao, avaliao e seleo.Os objetivos dos programas de melhoramento dessapoca, segundo Lewis (1976), consistiam basicamenteem aumentar o rendimento e a qualidade do produto. Nadcada de 1970, quando ocorreu o apogeu da agriculturavoltada melhoria dos ndices de produtividade, osconceitos bsicos e aplicados do melhoramento vegetalforam utilizados para aumentar progressivamente osrendimentos das culturas. As variedades e os hbridospassaram a ser avaliados pela sua capacidade deresponder aos insumos agrcolas (MACHADO, 1998a).

  • 40 Texto para Discusso, 34

    Altair Toledo Machado et al.

    No melhoramento convencional, alm do aumentode produtividade, busca-se germoplasma baseadoexclusivamente em variedades modernas de grandeadaptabilidade ao manejo adotado, que normalmente baseado em princpios qumicos. A avaliao e a seleode germoplasma so realizadas em ambientes uniformes,nos quais os estresses biticos e abiticos so minimizados(MACHADO, 1998b).

    O melhorista quem define os objetivos e asestratgias e quem conduz todos os trabalhos de seleoe avaliao; apenas a validao do uso do material feitajunto com os produtores. A organizao totalmentecentralizada, o trabalho feito com produtores individuali-zados e o lanamento das variedades e a difuso dassementes so feitos pelo setor formal, representado pelasinstituies de pesquisa oficial e pelas empresas privadas(CGIAR, 1999a, 1999b).

    Nas dcadas de 1960 e 1970, quando se desenvol-veu a Revoluo Verde, com a ampla adoo da agriculturaindustrializada, os pases desenvolvidos viam os fertilizantescomo insumos de custo inexpressivo para a produo, eas pesquisas enfatizavam a mxima produo por unidadede fertilizante adicionado (GABELMAN; GERLOFF,1983). Os programas de melhoramento genticotornaram-se bastante seletivos e o processo de seleopassou a incorporar conhecimentos de Fitopatologia,Entomologia, Fisiologia, alm de mecanizao agrcola,irrigao, herbicidas e fertilidade dos solos, para formarvariedades e hbridos altamente responsivos aos insumosagrcolas e com elevada produtividade (MACHADO,1998a). Os progressos decorrentes desses programasforam enormes, com os pacotes tecnolgicos baseados

  • Texto para Discusso, 3441

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    em hbridos e variedades de alto rendimento, que inegavel-mente ocasionaram um grande aumento de produo dasculturas.

    Em meados da dcada de 1970, quando, emdecorrncia da crise energtica, foi preciso reavaliar ealterar os princpios e as prticas que constituam osfundamentos da agricultura industrializada, percebeu-seque a mudana fundamental seria representada pelaevidncia crescente de que o germoplasma vegetal poderiaser selecionado e que as cultivares superiores poderiamser desenvolvidas para adaptar-se aos chamados solos-problema.

    Essa idia serviu de base s discusses de umaconferncia realizada em 1976, sobre plant adaptationto mineral stress in problem soils (WRIGHT; FERRARI,1976), que foi um marco para a abordagem nutricionalno melhoramento de plantas. Foram, ento, apresentadasduas opes: a primeira era promover o crescimento deplantas em solos deficientes em nutrientes, utilizando-se otradicional ajuste do suprimento destes s necessidadesdas culturas, via fertilizao e calagem, e pela seleo deespcies vegetais adaptadas e de eficincia superior emcondies de deficincias especficas (GERLOFF, 1976).A segunda foi interpretada como uma promessa para areduo dos custos energticos de produo e para oaumento da segurana quanto obteno de rendimentodas culturas, tanto nos pases desenvolvidos quantonaqueles em desenvolvimento.

    Nesse simpsio, foram discutidas as conseqnciasdos estresses minerais sobre a produo das culturas, asreservas mundiais de fertilizantes em relao demandafutura, o potencial gentico para solucionar problemas de

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    Altair Toledo Machado et al.

    estresses minerais, a eficincia das plantas no uso doselementos essenciais e os mtodos de avaliao e seleode plantas quanto a tolerncia aos estresses minerais.Observou-se, entretanto, no decorrer dos trabalhosapresentados, objetivos muito mais centrados nasvantagens econmicas do que nos aspectos ecolgicos ede preservao dos recursos naturais (STANGEL, 1976).

    O surgimento do melhoramento voltado para atolerncia a estresses ambientais passou a representar umamudana nas tendncias do melhoramento e da seleovegetal. Isso comeou a ocorrer, efetivamente, na dcadade 1980, quando, apesar de serem ainda fortementeinfluenciados pela filosofia da Revoluo Verde, osprogramas de melhoramento foram direcionados para aobteno de materiais mais adaptados s terras marginaisdas reas de expanso agrcola, entre as quais sedestacam, no Brasil, as reas de Cerrado do Centro-Oeste(MACHADO, 1998a).

    Quando essa nova tendncia comeou a se delinear,com a pesquisa multidisciplinar unindo conhecimentos doscientistas de solo, dos fisiologistas vegetais e dos geneti-cistas, tornou-se necessria elaborao de programasde melhoramento mais eficientes.

    A consolidao do melhoramento voltado paraestresses ambientais e a incorporao de princpiosecolgicos surgiram somente na dcada de 1990, com acrescente preocupao com o meio ambiente e com asustentabilidade da agricultura. Por uma nova perspectiva,a agricultura deveria ser um empreendimento lucrativo,no qual o uso de insumos e energia deveria ser minimizado,os alimentos deveriam ser produzidos com qualidade eisentos de agentes contaminantes ou txicos e o equilbrio

  • Texto para Discusso, 3443

    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    do meio ambiente deveria ser preservado (MACHADO,1998a).

    O melhoramento participativo vincula-se ao manejoda agrobiodiversidade, e o seu enfoque estruturante deveser descentralizado. As comunidades de agricultoresfamiliares devem participar de todas as etapas do processode melhoramento, a fim de garantir a sua autonomia e asua soberania alimentar. Em sistemas agroecolgicos,torna-se fundamental o desenvolvimento de variedadesadaptadas aos ambientes locais. Essas variedades, quandoassociadas a um agroecossistema funcional, tm umalgica prpria impossvel de ser reproduzida em um centrode pesquisa. Por essa razo, h uma considervel carnciade variedades de muitas espcies adaptadas a sistemasagroecolgicos. Essa carncia torna a produo ecolgicaonerosa tanto para o produtor quanto para o consumidor.

    O melhoramento participativo descentralizado peem questo a soberania e a autonomia das comunidades.Cabe s instituies fornecer o aporte tcnico e estratgicopara que as comunidades possam reproduzir, com compe-tncia, todo o processo de manejo da agrobiodiversidade,incluindo a seleo de plantas.

    Uma sugesto importante a de que o melhora-mento de variedades locais seja feito diretamente com osagricultores, a fim de que possam ser discutidas com eles,e repassadas as tcnicas de seleo gentica, habilitando-os, assim, a selecion-las eficientemente, ou seja, semcometer erros de manejo que possam provocar erosogentica nas variedades locais. Nesse sentido, necessrioque projetos com essa finalidade incluam projetos decapacitao de tcnicos e agricultores, utilizando os plos

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    Altair Toledo Machado et al.

    comunitrios para proceder capacitao em melhora-mento participativo e em manejo agroecolgico e daagrobiodiversidade.

    Importncia das variedadeslocais para a agrobiodiversidade

    omo resultado do manejo da agrobiodiversidade, podemosmencionar o equilbrio dos cultivos diversificados dentrodos mltiplos agroecossistemas, a conservao dos valoresculturais e tradicionais e a conservao e o uso de varieda-des locais e/ou tradicionais. Essas variedades so a baseda agricultura familiar e da indgena e constituem umaimportante fonte gentica de tolerncia e resistncia paradiferentes tipos de estresse e de adaptao aos variadosambientes e manejos locais. Dessa forma, tm uminestimvel valor para a humanidade, constituindo a basede sua soberania alimentar.

    Essas variedades so altamente adaptadas aoslocais onde so conservadas e manejadas e fazem parteda autonomia familiar, constituindo um fator preponderantepara a segurana alimentar dos povos. Definimosvariedades tradicionais e locais da seguinte maneira:

    Variedades tradicionais: so populaesvariveis de plantas cultivadas (FRANKEL, 1971;FRANKEL; BROWN, 1984). Thurston et al. (1999)ampliam a definio de variedades tradicionais,entendendo como populaes ou raas que se tornaramadaptadas pelos agricultores por meio de condiesnaturais ou por seleo artificial. Essas variedades

    .C

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    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    contrastam com as variedades modernas que tm sidomelhoradas ou selecionadas com a utilizao de mtodoscientficos para certos caracteres, como alta produo,baixa estatura, resposta a fertilizantes, entre outros. Pormeio de processos de seleo natural e humana,variedades tradicionais so adaptadas ao ambiente no qualelas tm sido cultivadas e tambm aos sistemas de cultivoadotados pelos agricultores, que incorporam valoressociais e culturais a partir da sua percepo. Compreende-se como variedade tradicional aquela que vem sendomanejada em um mesmo ecossistema, por pelo menostrs geraes familiares (av, pai e filho), perodo no qualso incorporados valores histricos, que passam a fazerparte das tradies locais. Esse processo no representauma hereditariedade direta por via familiar, podendo serpela hereditariedade da comunidade (dentro de umprocesso coletivo).

    Variedades tradicionais antigas: a mesmadefinio anterior, com a particularidade de que, nestecaso, so variedades, principalmente de centros primriose secundrios de origem, selecionadas por um perodomais longo, que abrange mais de dez geraes familiares.

    Variedades locais: so variedades ou populaesque esto sob contnuo manejo pelos agricultores, a partirde ciclos dinmicos de cultivo e seleo (no necessaria-mente) dentro de ambientes agroecolgicos e socioecon-micos especficos (HARDON; BOEF, 1993). Sonecessrios pelo menos cinco ciclos de cultivo para queuma variedade torne-se local.

    Variedades modernas: so variedades que tmsido melhoradas ou selecionadas utilizando-se mtodosconsiderados cientficos, para produzir caractersticas

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    Altair Toledo Machado et al.

    como alta produo, baixa estatura, resposta a fertilizantes,entre outras (THURSTON et al., 1999).

    Variedades crioulas: termo utilizado principal-mente em pases de lngua espanhola para variedadestradicionais, mas pode ser adotado para variedades locaisem determinadas situaes, como para aquelas variedadesintroduzidas em comunidades por menos de 20 anos.

    A agrobiodiversidade e o sistema jurdico

    A apropriao privada dos componentes dabiodiversidade por meio da propriedade intelectual

    os ltimos anos, uma questo jurdica associada agrobiodiversidade vem provocando discusses acaloradasnos foros internacionais: trata-se da apropriao privadados recursos genticos por meio da propriedade intelectual.Desde o momento em que os direitos de propriedadeintelectual passaram a ser tratados como uma questocomercial, sendo ento discutidos na Organizao Mundialdo Comrcio (OMC)8, e no mais exclusivamente nombito da Organizao Mundial da Propriedade Intelectual(Ompi), como vinha sendo feito, a privatizao dos recursosgenticos passou a ser uma questo controvertida, que levoua uma polarizao mundial: de um lado os pases do Sul,ricos em biodiversidade e provedores de seus componentes,e de outro, os pases do Norte, industrializados e usuriosdesses recursos.

    .N

    8 World Trade Organization (WTO).

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    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    Para que possamos esclarecer melhor a questomencionada, temos que fazer uma remisso aos principaisaspectos histricos e jurdicos da proteo internacionalda propriedade intelectual, que levaram os pases ao atualposicionamento divergente. Importante tambm contextualizar a legislao brasileira sobre o assunto, paraque possamos compreender o posicionamento do Pascontra o patenteamento da vida, o que o transformou emlder dos pases considerados megadiversos9 nas nego-ciaes que envolviam a conservao e o uso sustentvelda diversidade biolgica.

    A proteo patentria da biodiversidade

    A propriedade intelectual, tambm denominadapropriedade imaterial, abrange os direitos relativos sprodues intelectuais dos domnios literrio, cientfico eartstico, como aqueles que tm por objeto as invenese os desenhos e modelos industriais, pertencentes aocampo industrial (CERQUEIRA, 1946).

    A patente um direito de carter patrimonialtutelado pelo Estado, constituindo-se num ttulo. Pode serdefinida como um [...] ato pelo qual o Estado atribuidireito ao inventor, assegurando-lhe a propriedade e ouso exclusivo da inveno pelo prazo da lei(CERQUEIRA, 1946, p. 57).

    No campo das cincias, as patentes so vistas comouma forma de incentivo produo cientfica, valorizandoo pesquisador e premiando-o por suas descobertas. Essa

    9 Grupo dos 17 pases que concentram a riqueza de biodiversidade. Soeles: frica do Sul, Bolvia, Brasil, China, Colmbia, Congo, Costa Rica,Equador, Filipinas, ndia, Indonsia, Madagascar, Malsia, Mxico, Peru,Qunia e Venezuela.

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    Altair Toledo Machado et al.

    proteo atua como uma forma de exerccio da proprie-dade e pode ser entendida como um elemento essencialda estrutura econmica e social de qualquer Estado(VARELLA, 1996).

    No entanto, h autores que consideram a proteoconcedida a esses direitos como uma restrio ao avanotecnolgico, uma vez que seus detentores (as grandescorporaes multinacionais na maioria dos casos) nopermitem que os processos patenteados sejam transferidos(CIEL, 1998). Por esse aspecto, figuraria como o principalmecanismo de que dispe a sociedade para a proteo eo controle da informao (HOBBELINK, 1990).

    Particularmente, a informao contida nos genesaumentou significativamente de valor, por apresentar-secomo uma fonte de novos produtos agrcolas, variedadesde plantas, frmacos, herbicidas, pesticidas, bem comonovos produtos e processos derivados da biotecnologia(CIEL, 2001).

    Os meios jurdicos de proteo patentria de seres vivos

    A rigor, podemos dizer que h duas formas deconcesso de patentes: para o produto, no se conside-rando o processo por meio do qual foi obtido, e para oproduto juntamente com o processo especfico, por meiodo qual foi obtido.

    Nas ltimas dcadas, essa possibilidade foi ampliadacom a concesso de patentes para organismos utilizadosno processo de obteno do produto. Sendo assim, muitasempresas que atuam na rea reivindicam a proteo deseres vivos ou partes de seres vivos, sejam animais, plantas

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    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    ou microorganismos, modificados geneticamente ou no,assim como para genes ou apenas para partes desses.

    A primeira concesso de patente de ser vivo deque se tem notcia ocorreu nos Estados Unidos da Amrica,em 1980, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos,ao julgar o caso Diamond Comissioner of Patents andTrademarks vs. Chackrabarty por meio de decisobastante controvertida , concedeu a Ananda Chakrabartyo direito sobre a bactria do gnero Pseudomonas,modificada geneticamente e tendo como aplicao adegradao de leo cru, contrariando deciso anteriordo Escritrio de Patentes e Marcas Registrveis dosEstados Unidos10, rgo encarregado do registro dapropriedade industrial, que no admitia o patenteamentode seres vivos.

    Segundo Furtado (1996), os EUA tm admitido opatenteamento de qualquer processo ou produto inventivoque resulte da interferncia humana, mesmo animaistransgnicos, genes e produtos da biodiversidade. O autorcita que a Suprema Corte daquele pas emitiu a seguintedeciso no caso anteriormente mencionado: everythimgunder the sun made by man is patenteable (Certiorarito the United States Court of Customs and Patent

    Appels n 79-136, Argued March 17, 1980 Decided

    June 16, 1980 Diamond vs. Chackrabarty).

    Atualmente, vrios pases, entre os quais Inglaterra,Estados Unidos, Canad, Mxico, Chile, China e Rssia,admitem o patenteamento de microorganismos, por meiode sua seqncia de cido desoxirribonuclico (ADN)ou como um todo (per se), desde que as descries sejam

    10 United States Patents and Tradmark Office (USPTO).

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    Altair Toledo Machado et al.

    suficientes para identific-los e estejam associados a umprocesso determinado que resulte num produto especfico(VARELLA, 1996). Diferentemente das duas formasmencionadas, a Lei n 9.279/96 (BRASIL, 1996), quetrata da propriedade industrial no Brasil, somente autorizaa concesso de patentes para microorganismo transgnico,e desde que atenda aos requisitos de novidade, atividadeinventiva e aplicao industrial.

    Inglaterra e EUA so exemplos de pases onde permitido o patenteamento de animais transgnicos, como o caso do rato de Harvard, que consiste em um animalalterado geneticamente com o propsito de estimular ocncer, possibilitando o teste de vacinas e tratamentosvariados. Essa concesso foi outorgada Universidadede Harvard pelo prprio United States Patents andTradmark Office (USPTO), em 1988, seguindo aorientao anterior da Suprema Corte daquele pas.

    So trs os meios jurdicos de proteo de proces-sos e produtos biotecnolgicos obtidos com a utilizaode plantas: a) a patente de seqncias de ADN; b) apatente de cultivares; e c) os direitos de melhorista oulegislao sui generis de proteo de cultivares(VARELLA, 1996).

    Na primeira forma de proteo, o bem tuteladoseria a seqncia de um genoma responsvel pordeterminada caracterstica de um vegetal. Para que sealcance essa proteo, necessrio o registro de todasas bases nitrogenadas existentes naquela determinadaseqncia. Cada seqncia registrada fornece umacaracterstica independente, o que abre a possibilidadede uma planta possuir diversas patentes, uma para cadacaracterstica especfica. O autor do pedido somente

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    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    poder patentear a caracterstica descoberta, e asvantagens que obter sero aquelas relacionadas suadescoberta.

    Para Varella (1996) essa forma de proteo trazuma realidade perversa para a rea agrcola: a cadacaracterstica patenteada, o agricultor que adquire asemente ter que pagar determinado royalty. Se naquelaplanta existir mais de uma caracterstica patenteada (vriasseqncias de ADN), ser pago royalty a cada titular deregistro. O Brasil no admite essa forma de proteo.

    Para pesquisas sem fins lucrativos, desenvolvidas apartir daquele bem protegido por patente, no havernecessidade de pagamento de royalty ao titular. Noentanto, se o trabalho tiver fins comerciais, devero sersolicitadas tantas autorizaes quantas forem necessrias.Se houver mais de um titular, dever ser obtida autorizaode todos.

    Embora alguns pases admitam o patenteamento deseres vivos como um todo ou por caracterstica, nessecaso, por meio de seqncia do ADN, a grande maioriadas naes ainda no previu essa espcie de proteo noseu ordenamento jurdico.

    Na patente de cultivares, a planta protegida comoum todo, no se admitindo a concesso de patentes paracaractersticas independentes. Para a obteno deproteo, devero ser atendidos os mesmos requisitospara invenes industriais, como novidade, originalidade,aplicao industrial e distinguibilidade.

    Tanto nessa forma de proteo quanto na proteo seqncia de ADN, todos os efeitos decorrentes do

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    Altair Toledo Machado et al.

    direito concedido devem ser observados, como opagamento de royalty a cada comercializao, a conces-so para venda das sementes, a proibio dos camposde replantio para formao de sementes11 e a necessidadede obteno de autorizao para o desenvolvimento depesquisas (VARELLA, 1996).

    Proteo patentria de seres vivos no Direito Brasileiro

    O Direito de Propriedade Intelectual no Brasilabrange os seguintes ramos: a) Direito de PropriedadeIndustrial, que concede ao titular os direitos sobre patentede inveno, patente de modelos de utilidade, registro dedesenho industrial, registro de marca e registro deindicao geogrfica; b) Direito Autoral; c) Direito sobreCultivar (ou Obtenes Vegetais ou Variedades Vegetais);e d) Direito sobre Topografia de Circuitos Integrados.

    No Pas, os direitos de propriedade industrial soconsiderados bens mveis12. um direito de propriedade,tendo por objeto bens imateriais. Decorre do potencialcriativo do homem no campo das invenes. Sendo assim,a obra, fruto do seu trabalho intelectual, lhe pertenceoriginalmente pelo prprio processo de criao. A elecompete decidir revel-la ao mundo, sem que sejadestruda a ligao original entre obra e autor (SILVEIRA,1996).

    Essa matria disciplinada pela Lei de PropriedadeIndustrial (BRASIL, 1996), que estabelece que a proteo

    11 Campos de replantio so reas cuidadosamente preparadas para plantiode culturas que fornecero sementes para a safra seguinte.

    12 Segundo o art. 5 da Lei n. 9.279/96, [...] consideram-se bens mveis,para os efeitos legais, os direitos de propriedade industrial (BRASIL,1996).

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    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    dos direitos relativos propriedade industrial efetua-semediante a concesso de patentes de invenes. Dessemodo, assegura ao autor da inveno o direito de obter apatente que lhe garanta a propriedade. A concesso depatente, no entanto, condicionada ao atendimento aosrequisitos de novidade, atividade inventiva e aplicaoindustrial.

    As descobertas no so protegidas pelo direito deproteo intelectual, pelo fato de serem consideradasrevelaes de fenmenos ou identificao de matriapreexistente na natureza. A inveno difere da descobertapor constituir a criao de uma coisa at ento inexistente,apresentando-se como soluo de um problema tcnico,de ordem prtica, enquanto aquela a revelao de umacoisa existente na natureza, no podendo ser objeto deprivilgio (LOBO, 1997). Nesse contexto, o rato deHarvard, criado para ser utilizado em pesquisas sobrecncer humano, no poderia ser patenteado no Brasil,assim como nos EUA, uma vez que no seria consideradoinveno, mas uma descoberta.

    Com base nesse princpio, o legislador brasileiroexcluiu da proteo os materiais biolgicos ou organismosvivos, no os enquadrando no conceito de inveno. NaLei de Propriedade Industrial, o legislador nega apossibilidade de patenteamento

    [...] ao todo ou parte dos seres vivos, exceto os micro-

    organismos transgnicos que atendam aos trs requisitos

    de patenteabilidade novidade, atividade inventiva e

    aplicao industrial (BRASIL, 1996, Art. 10).

    Desse modo, fundamental, para a concesso dapatente, que esteja claro o propsito industrial do pedido.No basta definir, dentro de um procedimento de pesquisa,

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    Altair Toledo Machado et al.

    um conjunto novo de objetos ou informaes, resultanteda atividade humana. preciso especificar qual oproblema tcnico a ser resolvido pela definio, sob penade no ser patentevel (MITTELBACH, 1992).

    No mbito interno, o Instituto Nacional de Proprie-dade Intelectual (Inpi) tem negado proteo para o genomade seres vivos, em conformidade com o estabelecido nalei. Esse posicionamento gerou discusses em face do fatode que, nos EUA, os pedidos de patente para genes humanosso depositados no escritrio de patentes daquele pas.Alguns setores da indstria brasileira defendem amodificao da lei nacional, de modo que permita aproteo patentria do genoma das espcies nacionais.

    Ao aplicar a interpretao sistemtica do texto daLei de Propriedade Industrial, Di Blasi (1999) entendeque a inteno do legislador seria permitir o patenteamentode princpios ativos derivados ou obtidos de seres vivos.Segundo o seu raciocnio, a partir do momento em que asubstncia ativa extrada de um ser vivo, ela deixaria deexistir como parte integrante desse ser e passaria a terpropriedades e caractersticas prprias. Desse modo,aquela substncia extrada de um ser vivo ou de partedele, que necessite passar por diversos estgios depurificao e por testes laboratoriais para a identificaodo princpio ativo, poder ser considerada como umainveno, portanto, passvel de patenteamento.

    Nesse sentido, prope que o citado inciso IX daLPI seja interpretado de maneira que no seja consideradoinveno o todo ou parte dos seres vivos ou materiaisbiolgicos quando isolados da natureza, por possuremcaractersticas e propriedades decorrentes de seres vivos,ou seja, desde que o resultado final obtido no processo

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    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    de extrao de um princpio ativo venha a conter, pelomenos, a menor parte de um ser vivo, que a clula.

    O autor conclui que, mesmo se aquele princpioativo fosse originrio de um genoma de qualquer ser vivonatural, ele no poderia ser considerado um ser vivo, masuma substncia qumica como qualquer outra. Portanto,desde que preencha os requisitos de privilegiabilidade daLei n 9.279/96, poder ser patentevel como qualqueroutra substncia qumica nova com atividade inventiva eaplicao industrial.

    Conveno sobre Diversidade Biolgica (CDB), direitosde propriedade intelectual e Acordo Trips13: conflito em tornodo patenteamento de componentes da biodiversidade

    A CDB e o Acordo sobre Aspectos dos Direitos dePropriedade Intelectual Relacionados ao Comrcio (AcordoTrips) no pactuam do mesmo juzo sobre os direitos queincidem sobre os recursos genticos. Segundo a CDB, poruma questo de soberania, os direitos aos recursos genticosdevem ser conferidos aos pases detentores desse bem,enquanto, pelo Acordo Trips, os direitos sobre invenesde produto ou de processo obtidos a partir de componentesdos recursos genticos so direitos privados, que devemser conferidos ao seu titular, identificado como pessoa fsica(inventor ou detentor da patente), ou pessoa jurdica(empresa, associao, federao, etc.), mas no a um pas.

    No campo do comrcio internacional, esse conflitosurgiu em decorrncia da posio favorvel dos EUA emrelao ao patenteamento das diversas formas de vida.

    13 Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights (Trips).

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    Altair Toledo Machado et al.

    A partir da histrica deciso da Suprema Corte Ameri-cana, no caso Diamond vs. Chakrabarty, abriu-se amplapossibilidade para a indstria biotecnolgica americana,cujo desenvolvimento gera capital e empregos e, principal-mente, proporciona benefcios no campo da agricultura eda medicina (WTO, 1999).

    Pases desenvolvidos e em desenvolvimento, entreeles o Brasil, tm manifestado a sua preocupao acercados impactos econmicos, sociais, ambientais, culturais eticos das patentes sobre formas de vida (patenteamentode plantas e animais). Receiam que o controle dessainformao por parte de multinacionais possa afetar seusprojetos de desenvolvimento e segurana alimentar (CIEL,1998). Os EUA, por sua vez, vem, nas restries dessespases, risco de danos comerciais aos interesses dasempresas dos Estados Unidos.

    No entanto, o palco das discusses a respeito dosdireitos de propriedade intelectual que incidem sobre osrecursos genticos sofreu mudanas quando os EUApropuseram que essas questes fossem tratadas doravanteno mbito da Organizao Mundial do Comrcio (OMC),e no mais exclusivamente no mbito da OrganizaoMundial da Propriedade Intelectual (Ompi), como vinhasendo feito at a entrada em vigor do Acordo Trips.

    Essa mudana resultou da reao dos EUA a umincidente durante a conferncia para alterao daConveno de Paris14, em Genebra, em 1981, quando o

    14 A Conveno da Unio de Paris para a Proteo da PropriedadeIntelectual surgiu em decorrncia da necessidade de se criar uminstrumento internacional que garantisse aos detentores dos direitos depropriedade intelectual de determinado pas uma proteo contra aapropriao indevida da sua criao por outros pases.

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    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    Brasil, aps uma manobra diplomtica, conseguiu queesse documento fosse modificado por maioria simples eno por unanimidade, como era de praxe. A propostaapresentada foi aprovada por 113 votos a favor e apenas1 contra, dos EUA.

    Barbosa (1998) relata que, durante a votao dessaproposta de mudana do sistema de propriedadeintelectual em todo o mundo, o representante dos EUAapresentou a seguinte objeo, encerrando a Conferncia:

    Est tudo muito bom, est tudo muito bem, vocs esto

    falando em interesses dos pases em desenvolvimento,

    em transferncia de tecnologia, em eqidade

    econmica, mas o que me interessa o interesse das

    minhas empresas. Aqui no estamos falando de

    cooperao entre pessoas, estamos falando de

    interesse entre empresas. E assim que essa

    conferncia no vai continuar. (BARBOSA, 1998, p. 33).

    Imediatamente aps o incidente, os EUA requererama incluso do tema propriedade intelectual nas novasrodadas do Acordo Geral sobre Tarifas e Comrcio(Gatt)15, ento denominadas Rodada Uruguai.

    A presso exercida pelos EUA decorreu do fatode que grande nmero de patentes outorgadas a empresasamericanas era utilizado arbitrariamente por outros pases,isto , sem pagamento dos direitos correspondentes.

    A partir desse momento, as questes referentes propriedade intelectual deixaram de ser discutidas pelaOmpi e passaram a compor a agenda da Rodada Uruguai.A questo recuperou o seu sentido original ao trazer asdiscusses do tema para um contexto puramente comercial.

    15 General Agreement on Tariffs and Trade (Gatt).

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    Altair Toledo Machado et al.

    Por esse raciocnio, a propriedade intelectual no setraduziria mais em problemas de criao, cogitao,criatividade, mas apenas de comrcio. Em outras palavras,a lei deveria regulamentar o comrcio, e no a criatividade(BARBOSA, 1998).

    Em seguida, traa-se um panorama do conflito,abordando a clivagem do mundo em economias favorveisao patenteamento de qualquer forma de vida e aquelasque se posicionam contra a sua aprovao, e os reflexosdessa discusso sobre negociaes no mbito de outrosacordos internacionais, principalmente daquelesrelacionados proteo de variedades vegetais e segurana alimentar.

    O Acordo Trips

    consenso geral que avanos tecnolgicosrepresentam uma ferramenta indispensvel competitividade comercial, uma vez que os novosprocessos industriais reduzem os custos de produo.Sabe-se, tambm, que um produto largamente consumidoest sujeito a ser descartado quando superado por novastecnologias. A capacidade de inovao, portanto, tendea ser fomentada e cada vez mais protegida como fontevaliosa de informao.

    Autoridades de vrios pases partilham do juzo deque, para no se correr o risco de ser excludo do comrciointernacional, preciso desenvolver um sistema efetivode proteo s inovaes. Desse modo, esses pasesdevero ajustar continuamente sua legislao depropriedade industrial, visando a dar estmulo s criaestecnolgicas e remoo de barreiras ao livre fluxo de

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    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    comrcio, ou mesmo cedendo a presses de outros pasesdos quais dependem comercialmente (VARELLA, 1996).

    O Acordo Gatt, de 1947, contribuiu decisivamentepara a evoluo do tema, atuando como importanteinstrumento internacional de negociaes comerciaismultilaterais. As negociaes efetuadas nesse mbito foramrealizadas em rodadas multilaterais, sendo a RodadaUruguai a de durao mais prolongada, estendendo-sedo perodo de 1986 a 1994 (GRAIN, 2000).

    Os resultados dessas negociaes foramconsubstanciados na Ata Final dos Resultados da RodadaUruguai de Negociaes Comerciais Multilaterais do Gatt,assinada em Marraqueche, Marrocos, em 12 de abril de1994. Esse documento traz o texto do Acordo Trips.

    A incluso, na agenda da Rodada Uruguai do Gatt,da discusso sobre propriedade intelectual resultou depresses por parte dos pases do Primeiro Mundo, comdestaque para os EUA, os quais tentavam vincular asobrigaes dos pases em desenvolvimento nessa matria liberao do comrcio internacional de bens(VARELLA, 1996).

    Houve, em contrapartida, forte oposio dos pasesem desenvolvimento introduo dos Direitos dePropriedade Intelectual (DPI) na agenda da rodada denegociaes sobre comrcio mundial. Prevaleceram,porm, os interesses dos EUA, que conseguiram a inclusodo Acordo Trips no mbito do Gatt, no qual foramestabelecidos padres relativos existncia, abrangnciae ao exerccio de DPI, aplicao de normas de proteoa esses direitos, a procedimentos penais, preveno e asolues de controvrsia, entre outros temas, a serem

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    Altair Toledo Machado et al.

    observados pelos pases membros. O documento tambmcontm, em sua abertura, as disposies relativas aoAcordo para o Estabelecimento da Organizao Mundialdo Comrcio, sob o nome de Acordo Constitutivo daOMC. Esse rgo vem a ser o quadro institucional comumpara a conduo das relaes comerciais entre os pasesmembros nos assuntos relacionados a acordos einstrumentos praticados entre seus signatrios (VARELLA,1996).

    Como princpio bsico, os pases membrosconcedero s pessoas fsicas e jurdicas de outrosmembros o mesmo tratamento dado aos seus nacionais.Em outras palavras, toda inovao de produto ouprocesso poder ser patentevel em qualquer dos pasesmembros, independentemente do pas onde foidesenvolvida a inveno.

    O Acordo Trips abrange algumas formas depropriedade intelectual, com implicaes na conservaoda biodiversidade, como patentes e sistemas sui generisde proteo de variedade de plantas, importantes para aimplementao da CDB, porque indicaro quem teracesso informao sobre recursos genticos e como osbenefcios decorrentes da sua explorao sero repartidos(CIEL, 2001).

    Todos os seus membros podem oferecer proteopatentria para invenes em todos os setorestecnolgicos, para produtos ou processos, desde queatendam aos requisitos de novidade, atividade inventiva eaplicao industrial (art. 27.1). Tal possibilidade, noentanto, est sujeita a algumas excees, a saber: primeira:consideram-se como no patenteveis as invenes cujaexplorao no pas sirva para proteger a ordem pblica

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    A agrobiodiversidade com enfoque agroecolgico: implicaes...

    ou a moralidade, inclusive a vida ou a sade humana, animalou vegetal, ou para evitar srios prejuzos ao meioambiente, desde que essa determinao no seja feitaapenas por ser a explorao proibida na respectivalegislao (art. 27.2); segunda: embora se permitampatentes sobre microorganismos e processosessencialmente biolgicos para produo de plantas eanimais, no permitido o patenteamento de plantas eanimais e processos no biolgicos e microbiolgicos (art.27.3 (b)); terceira: permitem que os membros concedamexcees limitadas aos direitos exclusivos conferidos pelapatente, sujeitas a determinadas qualificaes (art. 30);quarta: os membros podem permitir o uso do objeto depatente sem autorizao do seu titular em determinadascircunstncias (art. 31). (INPI, 2008).

    A Repblica Federativa do Brasil depositou oInstrumento de Ratificao da referida Ata Final junto aodiretor-geral do Gatt, em 21 de dezembro de 1994. A atafinal foi promulgada no Brasil por meio do Decreton 1.355, de 30 de dezembro de 1994. Governantes e asociedade civil dos pases membros da CDB receiam,porm, que o Acordo Trips promova interesses comerciaisprivados em detrimento de importantes objet