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15 Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 Angústia e saber: reflexões sobre a inter-relação entre Psicanálise e Filosofia 1 Carlos Roberto Drawin A Angústia Resumo Pretendemos neste artigo pensar a inter-relação entre Psicanálise e Filosofia à luz de uma interpre- tação radical da modernidade, isto é, um modo de pensar que concebe a modernidade ao menos em algumas de suas correntes dominantes como um projeto de encobrimento da finitude huma- na. Nessa perspectiva o confronto entre a Psicanálise e a Filosofia possibilita resgatar um saber que não só não dissimula a angústia mas nela se sustenta. Palavras-chave Psicanálise, Filosofia, Modernidade, Ontologia, Saber, Angústia. gico como um esforço em situar as con- vergências e divergências entre dois dife- rentes regimes discursivos mas num sen- tido onto-antropológico. A expressão onto- antropológico remete à idéia de que o Ho- mem não é um ente dentre outros entes, mas por seu saber, isto é, por sua inserção na cultura, é um ente que no seu próprio ser interroga o ser e põe em questão toda realidade (Heidegger, 2001, 15-19). E já se pode antecipar que é esta idéia que apa- rece cifrada na conjugação tensa entre an- gústia e saber, ou seja, como a hiância (béan- ce, déhiscence) que torna o ser humano se- parado da natureza e lançado nas possibi- O título deste artigo pressupõe uma forte convicção: a de afirmar a irremissível e necessária pluralidade teórica que atra- vessa o campo psicanalítico, o que o torna um campo problemático que não pode prescindir de um trabalho de auto-refle- xão para o qual a filosofia oferece subsí- dios preciosos. Creio, por conseguinte, que a inter-relação ou, mesmo, a polarização entre Psicanálise e Filosofia não é tangen- cial ao que seria o núcleo teórico da psica- nálise, mas o atravessa constitutivamente em decorrência de sua própria abertura conceptual. Neste artigo esta inter-relação é abordada não num sentido epistemoló- 1. Este texto foi apresentado livremente como Aula Inaugural do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais no dia 07 de março de 2008. A informalidade da comunicação oral justifica o uso da primeira pessoa do singular em substituição do plural de modéstia. No entanto, os temas aqui abordados fazem parte de uma investigação mais ampla que tem sido parcialmente apresentada em diversas ocasiões. Estou me referindo, sobretudo, à exposição feita no VI Fórum Mineiro de Psicanálise, realizado em São João del-Rei em 2006, intitulada O declínio do Outro: ética e mal-estar na pós-modernidade e a no VII Fórum Mineiro de Psicanálise, realizado em Lavras em 2008, intitulada A pulsão na história. Freud e o enigma da cultura. Duas outras palestras, que não se inserem tão imediatamente na problemática psicanalítica, fazem parte desse conjunto de textos inter-relacionados: uma palestra proferida no Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT) da UFMG, em 2006, e publicada com o título A razão ensombrecida e uma palestra proferida no XXI Congresso Nacional da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião, em 2008, com o título A modernidade e o paradoxo da negação racional da vida.

A angustia carlos drawin

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  1. 1. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre Psicanlise e Filosofia 15Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre Psicanlise e Filosofia1 Carlos Roberto Drawin A Angstia Resumo Pretendemos neste artigo pensar a inter-relao entre Psicanlise e Filosofia luz de uma interpre- tao radical da modernidade, isto , um modo de pensar que concebe a modernidade ao menos em algumas de suas correntes dominantes como um projeto de encobrimento da finitude huma- na. Nessa perspectiva o confronto entre a Psicanlise e a Filosofia possibilita resgatar um saber que no s no dissimula a angstia mas nela se sustenta. Palavras-chave Psicanlise, Filosofia, Modernidade, Ontologia, Saber, Angstia. gico como um esforo em situar as con- vergncias e divergncias entre dois dife- rentes regimes discursivos mas num sen- tidoonto-antropolgico. A expresso onto- antropolgico remete idia de que o Ho- mem no um ente dentre outros entes, mas por seu saber, isto , por sua insero na cultura, um ente que no seu prprio ser interroga o ser e pe em questo toda realidade (Heidegger, 2001, 15-19). E j se pode antecipar que esta idia que apa- rece cifrada na conjugao tensa entre an- gstiaesaber,ouseja,comoa hincia(ban- ce, dhiscence) que torna o ser humano se- parado da natureza e lanado nas possibi- O ttulo deste artigo pressupe uma forte convico: a de afirmar a irremissvel e necessria pluralidade terica que atra- vessa o campo psicanaltico, o que o torna um campo problemtico que no pode prescindir de um trabalho de auto-refle- xo para o qual a filosofia oferece subs- dios preciosos. Creio, por conseguinte, que a inter-relao ou, mesmo, a polarizao entre Psicanlise e Filosofia no tangen- cial ao que seria o ncleo terico da psica- nlise, mas o atravessa constitutivamente em decorrncia de sua prpria abertura conceptual. Neste artigo esta inter-relao abordada no num sentido epistemol- 1. Este texto foi apresentado livremente como Aula Inaugural do Crculo Psicanaltico de Minas Gerais no dia 07 de maro de 2008. A informalidade da comunicao oral justifica o uso da primeira pessoa do singular em substituio do plural de modstia. No entanto, os temas aqui abordados fazem parte de uma investigao mais ampla que tem sido parcialmente apresentada em diversas ocasies. Estou me referindo, sobretudo, exposio feita no VI Frum Mineiro de Psicanlise, realizado em So Joo del-Rei em 2006, intitulada O declnio do Outro: tica e mal-estar na ps-modernidade e a no VII Frum Mineiro de Psicanlise, realizado em Lavras em 2008, intitulada A pulso na histria. Freud e o enigma da cultura. Duas outras palestras, que no se inserem to imediatamente na problemtica psicanaltica, fazem parte desse conjunto de textos inter-relacionados: uma palestra proferida no Instituto de Estudos Avanados Transdisciplinares (IEAT) da UFMG, em 2006, e publicada com o ttulo A razo ensombrecida e uma palestra proferida no XXI Congresso Nacional da Sociedade de Teologia e Cincias da Religio, em 2008, com o ttulo A modernidade e o paradoxo da negao racional da vida.
  2. 2. Carlos Roberto Drawin 16 Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 lidades da ordem simblica e que o separa tambm de si mesmo, de sua prpria ima- gem, uma vez que na ordem simblica os vazios so to significativos quanto os cheios (Lacan, 1966, 392; Idem, 1985, 402-403). Somos uma ek-sistencia, estamos sempre fora do que pensamos que somos e do que pretendemos determinar como nossa es- sncia, o que nos torna um tipo de ente lanado num para alm de si mesmo, exilado das crenas e certezas absolutas. Ns somos um ente no coincidente con- sigo mesmo, repousando em sua prpria essncia pr-determinada, mas um ente que fala e o fazendo tece o seu mundo, dentro do qual nos descobrimos em nossa diferena especfica como animal portador da razo (zon lgon chon), segundo a cls- sica formulao de Aristteles2 . Ao falar, ao ser portador de um logos, esse animal que morre responde hincia que o de- vora e d um sentido sua mortalidade. Num ensaio instigante sobre a negativida- de do humano, Giorgio Agamben fil- sofo italiano, professor na Universidade de Verona inicia a sua exposio com uma citao de Heidegger colhida em A essn- cia da linguagem: Os mortais so aqueles que podem ter a experincia da morte como morte. O ani- mal no o pode. Mas o animal tampouco pode falar. A relao essencial entre mor- te e linguagem surge como um relmpa- go, mas permanece impensada3 . O que designamos como angstia no outra coisa seno esse relampear que nos surpreende ao cortar o cu simblico em que nos abrigamos, revelando a profundi- dade de sua escurido. Na angstia o saber se abisma. E ns, beira do precipcio, nos agarramos s verdades inabalveis do co- nhecimento j possudo. No h o que las- timar, pois o que ns somos como ani- mais mortais e falantes. Por outro lado, no entanto, no po- demos escamotear a significao tica des- sa nossa condio. Quando o saber no quer saber de si, quando ele recusa o mo- vimento reflexivo que traz tona as suas condies de possibilidade, ento o estrei- to vnculo entre a linguagem e a morte encoberto e mistificado. O saber que re- conhece o seu enraizamento na finitude nos coloca diante da angstia e do nada, mas essa experincia de desamparo dif- cil de ser suportada e o seu esquecimento converge facilmente com a clausura nar- csica da auto-suficincia. Tais considera- es so completamente estranhas para uma cincia comprometida com a domi- nao tcnica da natureza e a organizao funcional da sociedade. Por isso, em sua clebre conferncia sobre a metafsica Hei- degger disse que a cincia no quer saber do nada e o relega com um gesto de supe- rioridade (Heidegger, 1978, 119). Essa ne- gao da morte, esse esquecimento quase arrogante da finitude no se restringe ao prazer ldico desse modo ps-moderno de viver, que celebra o estilo light e exalta a liberao do fardo da velha metafsica. Essa , sem dvida, uma das faces do niilismo contemporneo aquele que Nietzsche, no Prlogo de Assim falou Zaratustra, atribuiu ao ltimo homem e que ocul- ta uma terrvel gravidade sob sua aparn- cia de leviana leveza. (Nietzsche,1970, 349-351). Tudo estaria correndo s mil maravi- lhas para o indivduo liberado do passado e da tradio se a histria recente de nossa civilizao no fosse to carregada de do- res e de horrores e no nosso futuro no se desenhasse um horizonte to pouco pro- missor. No fcil, portanto, calar as ad- moestaes dos pensadores radicais e, den- tre eles, a terrvel hiptese aventada por 2. Cf. ARISTTELES. Poltica. I, 2, 1253-9. 3. Cf. HEIDEGGER, Martin. Pfullingen: Verlag Gn- ther Neske, 1967, p. 03. Apud AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte. Um seminrio sobre o lugar da negatividade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.09.
  3. 3. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre Psicanlise e Filosofia 17Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 Dostoiwiski: como no possvel aos homens criar o ser, criar a vida a partir do nada, a sua atividade criadora inverte-se em destruio, como uma forma de criar s avessas (Possenti, 2004, 325-357). A vontade auto-suficiente e ilimitada exer- ce o seu poder criador como nadificao, como rejeio do ser. Talvez aqui possa- mos vislumbrar o fundo obscuro que tra- gou a expectativa ilustrada de uma racio- nalidade cujo poder seria sempre favor- vel ao progresso e emancipao do ser humano. A experincia histrica do scu- lo passado demonstrou que a violncia no provm da natureza ainda no suficiente- mente domesticada, mas habita o corao da razo (Drawin, 2007). Essa maneira de pensar que pode- mos designar como radical, porque preten- de expor as razes do mal-estar que corri o avano triunfante da racionalidade tec- nocientfica constitui o referencial te- rico de nossa abordagem da inter-relao entre Psicanlise e Filosofia. Embora exis- tam mltiplos pontos de vista a partir dos quais podemos analisar a inter-relao dos dois saberes, o que pretendemos aqui res- saltar o seu tenso entrecruzamento na mesma inteno da radicalidade. Pois, se por um lado, a filosofia herdeira e guar- di da longa histria da razo ocidental, por outro, o trabalho do filosofar consiste em escavar sempre mais profundamente o solo de onde brota essa mesma razo. Do mesmo modo, se por um lado, a psicanli- se nasce, como quis o seu fundador, sob o signo da cientificidade, por outro, a expe- rincia analtica no cessa de subverter todo esforo de estabilizao conceptual da teoria psicanaltica. Psicanlise e Filo- sofia podem se encontrar nessa ambivaln- cia em relao razo uma vez que se movem entre os parmetros da angstia e do saber, da cincia e da existncia ou, em termos metapsicolgicos, entre pulso e representao (Ricoeur, 1965, 120-153). Como compreender a tenso interna desses dois saberes que o que acaba por alimentarasuaentrecortada,pormjamais emudecida, interlocuo? No h como responder a uma questo to difcil e in- trincada, mas podemos arriscar alguns ele- mentos que possam subsidiar a reflexo sobre o tema. Vamos faz-lo em trs tpi- cos, desenvolvendo-os de modo muito breve e superficial. No primeiro, ser feita uma rpida incurso na histria da filoso- fia moderna, de modo a indicar alguns ele- mentos que a distinguem do pensamento grego e medieval. No segundo, ser pro- posto um diagnstico bem esquemtico do que pode ser designado como crise da ra- zo moderna. No terceiro, o entrecruza- mentoentrePsicanliseeFilosofiaserilus- trado a partir da questo da angstia. I A razo clssica entendendo por essa expresso a tradio filosfica procedente de Plato e Aristteles e sua recepo pela escolstica medieval latina pode ser de- finida como aquela que se orienta por meio de um paradigma metafsico e do modo de pensar cosmocntrico4 . Definimos o para- digma metafsico como aquele que pressu- pe a existncia de uma realidade inde- pendente da conscincia humana e que cognoscvel dentro de certos limites, pois se pressupe a homologia entre o ser e o pensar. A razo possui um alcance verda- deiramente ontolgico, uma vez que o ser concebido como possuindo uma inteli- gibilidade intrnseca capaz de ser apreen- dida pelo intelecto humano. O modo de pensar cosmocntrico aquele em que o homem e a sociedade no se encontram separados, mas inseridos no cosmos, isto , na totalidade das coisas que o que cons- titui a realidade inteligvel 4. Os termos filosficos so altamente polissmicos. Um dos mais complexos , sem dvida, metafsica. Po- der-se-ia questionar se, por exemplo, os pensamentos platnico,aristotlicooutomsicopartilhariamdealgo como um carter metafsico. Mas este problema no pode ser aqui discutido, por isso vamos apenas esque- matizar o que entendemos por metafsica.
  4. 4. Carlos Roberto Drawin 18 Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 Ora, o advento do Cristianismo intro- duziu uma forte tenso estrutural nesta concepo da razo clssica. Em sntese, pode-se dizer que a doutrina da criao do mundo a partir do nada implica no aban- dono da idia de que o cosmos a fonte ltima da inteligibilidade. Ou seja, impli- ca no abandono do modo de pensar cos- mocntrico. A questo fundamental do pensamento cristo ser, ento, a seguin- te: possvel desvincular o paradigma me- tafsico do modo de pensar cosmocntri- co? Ou, possvel reconstruir o paradig- ma metafsico a partir da idia bblica de um Deus criador e transcendente? Ou seja, a partir do modo de pensar teocntri- co? Duas observaes so aqui importan- tes. Em primeiro lugar, a correspondncia, qualquer que seja a sua forma, entre a in- teligibilidade do ser e a inteligncia huma- na implica que a demanda humana de sen- tido, assim como as idias de virtude e bem, tem um fundamento objetivo. Isso signifi- ca que h uma ntima vinculao entre a ontologia, a antropologia e a tica. Assim, a pergunta pela essncia do humano (ei- dos) no pode estar dissociada da pergun- ta pelo fim ou sentido da vida humana (t- los). Por conseguinte, embora possamos falar de uma psicologia ou de uma antro- pologia enquanto cincia acerca do ho- mem, esta no tem a pretenso de alcan- ar uma objetividade neutra, mas de mos- trar por que o homem essencialmente um ser moral. A cincia no poder ser, portan- to, desvinculada da sabedoria prtica. Por isso, podemos dizer que o sbio, o que age com prudncia e segue a lei csmica, o verdadeiro psiclogo do mundo antigo, assim como o mestre espiritual, o que ori- enta o discernimento entre a carne (bsar, srx) e o esprito (rah, pneuma) na inti- midade do corao humano (leb, karda) e na perspectiva da abertura para a transcen- dncia, o verdadeiro psiclogo do mun- do medieval. Com esta observao assina- lamos que, apesar de marcantes diferenas, haveria certa continuidade na histria da razo clssica. Em segundo lugar, a dificuldade em conciliar a teologia crist com o modo de pensar cosmocntrico acabou levando a uma profunda transformao do paradig- ma metafsico. Se a verdade no provm do cosmos, pois a sua fonte ltima Deus transcendente, e se o homem enquanto imagem de Deus (imago Dei) o nico ser intra-mundano vocacionado para a transcendncia, ento a descoberta da ver- dade s possvel pelo caminho da interi- orizao, do refluxo para si mesmo, num movimento que seria ao mesmo tempo o da maior intimidade e o da mxima aber- tura para o Deus transcendente. No foi outra a intuio de Agostinho que pode ser resumida na clebre frase: a verdade reside no interior do homem. Isso significa que no podemos nem nos identificar com a ordem csmica em relao qual Deus absolutamente transcendente e nem nela encontrar uma verdadeira resposta para nossa demanda de sentido. Ora, a face negativa da vocao para a transcendn- cia o pecado, que o excesso que incli- na o homem para si mesmo e que pode ser chamado, como Kant o fez, como o mal radical (das radikale Bse). Desse modo, a nossa cura, inclusive a libertao da razo para a verdade, s pode provir do encami- nhamento do mundo ilusrio das sensa- es para interioridade, esta conversio ao mais profundo de ns mesmos que simul- taneamente intimidade e transcendncia (interior intimo meo et superior summo meo). H nessas concepes de origem teolgica um ntido distanciamento do modo de pensar cosmocntrico que caracterizava a filosofia grega. Com esta observao que- remos enfatizar que, para alm das conver- gncias, h certa descontinuidade na his- tria da razo clssica. No difcil perceber como esse dis- tanciamento teologicamente motivado ir desaguar na revoluo cartesiana, evento amplamente celebrado como sendo o mar-
  5. 5. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre Psicanlise e Filosofia 19Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 co inaugural do pensamento moderno. Aceitando o veredicto condenatrio pro- nunciado pela nova cincia emergente, a fsica-matemtica galileana, contra a fsica aristotlica, Descartes dissolve o mundo da experincia concreta na dvida para re- encontrar apenas no cogito a fonte primei- ra de uma certeza inabalvel. Ou seja, ns devemos nos curar de uma ateno polari- zada para fora, para o mundo dos sentidos e, para isso, devemos nos submeter ao m- todo da razo pura, o mtodo desta cin- cia universal (mathesis universalis) que se pode vislumbrar na matematizao da na- tureza proposta pela cincia moderna. Assim, a inteligibilidade no provm da estrutura ontolgica do cosmos inteli- gvel e sim do cogito, da inteligncia hu- mana que, ao se submeter ascese do m- todo, apreende a verdade em sua interio- ridade. No entanto, a verdade s pode ser apreendida pelo sujeito pensante, pela res cogitans, porque o acesso ao real assegu- rado por Deus, pela Res Infinita. Essa a funo essencial do argumento ontolgi- co: assegurar a passagem da certeza do su- jeito verdade do real pela superao da diferena entre a ordem do conhecimen- to na qual o sujeito goza de primazia (ordo cognoscendi) e a ordem dos seres presidida por Deus (ordo essendi). Temos, ento, um novo modo de pensar no interior do para- digma metafsico, o modo de pensar onto- antropolgico, que pode ser designado, em contraposio metafsica do ser, como metafsicadosujeito(Vaz,1997,153-190)5 . II Essaapresentaosumriaemuitosim- plificada do sistema cartesiano tem apenas o objetivo de delinear dois impasses do pensamento moderno: Em primeiro lugar a questo acerca da verdade da realidade. A realidade verda- deira no pode ser aquela apreendida pela experincia sensvel, pois esta s pode ser fonte de erro e iluso. No mundo vazio da dvida metdica, a realidade verdadeira s podeseraquelareconstrudapelarazo,que satisfaa as exigncias da compreenso ra- cional e esta a realidade teoricamente reconstruda pela cincia, mas que deve ser efetivada pela atividade da inteligncia tcnica. Esta radical objetivao do mun- do, a incluindo o corpo humano, enquan- to objeto da anatomia e da fisiologia, sig- nifica que o homem, na ausncia de uma ordem prvia exigncia crtica do cogito, deve construir a sua prpria ordem e, por isso, a medicina e a mecnica so os frutos maduros do sistema cartesiano. Se h uma cincia do homem, ela deve se inscrever no campo da objetividade do qual o sujei- to se acha previamente excludo (Drawin, 1995, 489-511). Em segundo lugar a questo acerca da instncia normativa que orienta a cons- truo da ordem do mundo. Se o homem encontra o sentido de sua vida numa or- dem reconstruda por ele mesmo, ento esse sentido deve ser produzido no tempo, deve ser projetado no futuro. A mecnica e a medicina esto racionalmente ordena- das, mas como estabelecer uma tica tam- bm racionalmente ordenada? Ou seja, se o mtodo matemtico (more geomtrico) possibilita a ordenao cientfica do mun- do exatamente porque o mundo recons- trudo como uma estrita objetividade, como poderia possibilitar a orientao ti- ca da ao humana que deveria fundar-se na liberdade e na histria? Essa grave difi- culdade que levou Descartes proposi- o de uma moral provisria (morale par provision) e concepo de uma sabedo- ria espiritual seria genialmente enfrenta- da pela tica kantiana. O que queremos mostrar, porm, o terrvel desafio de um mundo que vai se encaminhando para a objetivao total, para se configurar como 5. Fizemos nessa interpretao da passagem do pensa- mento medieval para o moderno uma sntese muito esquemtica e superficial de diversas leituras que no poderiam ser aqui mencionadas. Privilegiamos, porm, os dois captulos do livro de Henrique Vaz indicado entre parnteses e citado na bibliografia.
  6. 6. Carlos Roberto Drawin 20 Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 um imenso sistema funcional, sem que o seu rumo possa ser orientado por uma re- ferncia normativa forte (Vaz , 1995, 53- 85). Essesdoisimpassesconvergemnoideal programtico de um mundo inteiramente administrado, transparente, limpo e feliz. Um mundo geometrizado no qual tudo estaria previsto e controlado. Qual seria o lugar de uma psicologia nessa perspectiva? Ora, a incluso da psicologia no domnio da racionalidade implica numa exigncia de objetivao que apenas uma cincia positiva como a fisiologia ou uma estrita cincia do comportamento podem respon- der sendo que o corpo inteiramente ex- teriorizado em relao ao sujeito. Da a tendncia assimilao da psicologia pela fisiologia, como ocorrer atualmente no mbitodapolmicaanticartesianadasneu- rocincias (Drawin, 2004, 28-42). No obstante, o que causa perplexidade que a modernidade tambm a poca da sub- jetividade. Como compreender este para- doxo? Denominamos como modernidade no apenas um perodo cronolgico mas uma poca na qual o presente goza de pri- mazia axiolgica em relao ao passado e tradio. Ora, ao refluir para o presente a modernidade desconstri a solidez do mundo e impe a problemtica da subjeti- vidade, isto , impe a diferenciao entre o ser humano e a totalidade das coisas e justamente essa diferenciao da consci- ncia de si em relao ao mundo que po- demos definir como subjetividade. Da a relao intrnseca entre subjetividade e modernidade (Drawin, 2003, 55-72). Como, no entanto, podemos restabelecer a relao entre o sujeito e a realidade? No pensamento grego e em sua apropriao medieval havia a pressuposio de uma pertinncia intrnseca do homem ao cos- mos. Era o que definia o modo de pensar cosmocntrico. No pensamento moder- no essa relao do homem com a realida- de torna-se, pelas razes antes assinaladas, cada vez mais problemtica e, por isso, exacerba-se a solido csmica do homem e o seu sentimento de estar lanado na vacuidade infinita do tempo e do espao, comofoiformuladonoclebrepensamento pascaliano: O silncio eterno desses espaos infinitos me apavora (Pascal, 2005, 86). Por isso, ao lado da mxima objetivao e do avano triunfante da racionalidade tec- nocientfica no empenho de dominao da natureza, torna-se tambm mais dram- tica a condio humana do desamparo e ainda mais cruciante a demanda de senti- do e a necessidade da cura. Desse modo, a psicologia aqui entendida como um sa- ber que leva em considerao a subjetivi- dade uma imposio da prpria con- tradio que atravessa a modernidade. Po- deramos dizer que expulsa pela porta de frente da vigilncia epistemolgica, ela re- torna pela porta de trs da experincia antropolgica do mal-estar e da angstia. As duas vertentes do pensamento moderno, a epistemolgica e a antropol- gica, se interpenetram e se desdobram numa dialtica de grande complexidade e muito difcil de ser analisada em seus di- versos elementos. Limitamo-nos a propor a idia de que a fundao da psicanlise e o seu destino histrico devem ser compre- endidos luz desse movimento das con- tradies modernas. Se assim for, ento podemos dizer que a psicanlise oscila en- tre os parmetros da cincia e da existn- cia, entre o modelo transcendental da metapsicologia e a inesgotvel subverso da clnica, entre a objetividade da teoria e a irredutibilidade do sujeito. E justamen- te essa oscilao que nos permite compre- ender o conflito de ambivalncia de Freud em relao filosofia. A sua rejeio da filosofia se baseava na suposio de que toda filosofia possua um contedo cons- ciencialista e uma forma totalizante, pois ao identificar filosofia e viso de mundo (Weltanschauung) ele denunciava o com- promisso entre o esprito lgico dos siste- mas filosficos e a pretenso da transpa-
  7. 7. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre Psicanlise e Filosofia 21Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 rncia total da conscincia. Ou seja, foi em nome da radicalidade da psicanlise que Freud assimilando os preconceitos cientificistas de sua poca rejeitou a filo- sofia ainda que a colocando algumas vezes a servio de sua estratgia retrica (Cf. Assoun, 1978, 10-11). No entanto, o compromisso denunci- ado por Freud passa tambm por outros caminhos. Num mundo presidido pela l- gica sistmica, pela maximizao do de- sempenho e da produtividade, pelo avan- o cego e global da racionalidade tecnoci- entfica, imprescindvel sustentar o lugar de um saber da angstia. E aqui o genitivo engloba tanto o saber que intenciona a angstia quanto o que provm da experi- ncia incontornvel da angstia. Nesse sentido a psicanlise no s uma cincia sui generis mas tambm presta um inesti- mvel servio epistemolgico: o de denun- ciar que o gosto pela linguagem formal, a desmedida ambio terica, a insistncia no rigor metodolgico so freqentemen- te expedientes defensivos, meios de esca- motear a angstia (Devereux, 1987, 15- 21; 82-125; 147-153). Mas a prpria psi- canlise no est imunizada desses proce- dimentos e dentre eles no difcil encon- trar a inclinao dogmtica, a sectarizao das instituies psicanalticas, a sacraliza- o da palavra dos mestres. Pois, afinal de contas, seria mesmo um absurdo preten- der que os psicanalistas possam se autono- mear como donos incontestes do saber da angstia. Por isso, a psicanlise no deve isolar-se e pode reencontrar a si mesma, a sua vocao de radicalidade, ao se lanar num dilogo arriscado, crtico e fecundo com outras formas de conhecimento. Den- tre elas encontra-se, sem dvida, a filoso- fia que nasceu no solo grego da insurgn- cia do pensamento e do esprito de liber- dade.Noprximotpicoconcluiremoseste artigo com algumas consideraes acerca de um fragmento desse dilogo aqui tra- vado entre a psicanlise e a filosofia exis- tencial, Lacan e Kierkegaard que se d entre saberes que no se conformam em silenciar a angstia. III Certamente pode-se dizer, como o faz Jacques-Alain Miller numa exposio fei- ta em novembro de 2001, que da mesma forma que Lacan teve a audcia de negar a existncia Da mulher ... A mulher no exis- te ... (tambm) no seguro que haja existi- do para ele A filosofia. E comenta: Lacan teria podido enunciar que A filosofia no exis- te e que s existem filsofos no plural? Poder- se-ia, com efeito, defender-se a tese de que a A filosofia uma iluso universitria, o dissi- mularumacomodidadedeclassificao .No obstante, logo em seguida ele assinala que A filosofia no existiria, ento, seno em ra- zo de uma aproximao, de um mal-enten- dido o que , por outro lado, uma maneira muito digna de existir. Em Meu corao des- nudo, Charles Baudelaire o enuncia de ma- neira muito lacaniana: o mundo s anda por meio do mal-entendido; o menor debate, a menor conversao o atestam. Que pelo mal- entendido universal todo mundo se ponha de acordo tambm, de alguma maneira, uma promessa. verdade, observa Miller, que Ele,Freud, no queria tocar na filosofia. Para Freud, tudo isso [referindo-se, especialmente, a efervescncia filosfica vienense] parecia desenvolver-se em outro planeta. Em seus tex- tos, contrariamente aos de Lacan, as refern- cias filosficas so raras: algumas menes dispersas, uma delas ao Banquete, enquanto que Lacan, como sabemos, as teve muito em conta... ( Miller, 2005, 141-142). Seja como for, podemos dizer, no h como no levar em conta a filosofia, pois se no h A filosofia, tambm no h, certamente, A cincia ou A psicanli- se e nem por isso podemos nos esquivar de sua presena ou de sua ausncia inter- rogantes. Mesmo porque se verdade que vivemos no tempo do fim da filosofia como assinala Heidegger, essa ausncia ou esse fim nada tm a ver com uma morte j anunciada pelo progresso tecnocientfico,
  8. 8. Carlos Roberto Drawin 22 Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 no se trata de um cadver j enterrado pela histria e do qual ns podemos nos esquecer rapidamente para festejar, com alegria leviana, as formas de conhecimen- to que se tornaram efetivas por sobrevive- rem prova do tempo e presso seletiva da sociedade. Numa poca em que o bio- poder simultaneamente realidade socio- poltica e ideologia, pode nos parecer ten- tador recorrer a esse darwinismo epistemo- lgico segundo o qual a racionalidade apenas o modo como nomeamos os conhe- cimentos que resistem aos critrios da uti- lidade e do consenso. Ao contrrio, se h algo como um fim da filosofia este no se confunde com a sua superao positivista e nem com a sua realizao histrica. A tradio filosfica, cujo ncleo encontra- se na metafsica, certamente intil, mas tambm necessria e, portanto, no pode se dissolver numa simples superao (berwindung) como gostariam os arautos do cientificismo. No mundo da tcnica uma ausncia carregada de presena, uma evocao, um luto, uma exigncia de tra- balho que efetua uma verdadeira toro do pensamento (Verwindung). Desse modo, a filosofia est viva aps o seu fim, talvez em sua pluralidade e em sua perplexidade metafilosfica, mas tambm, com certeza, em sua fora de questionamento e em sua capacidade de produzir o efeito de colocar tudo s avessas (Heidegger, 1976, 112-139 e Idem, 1994, 14). O fim da filosofia uma evocao no simplesmente no sentido de uma re- miniscncia, essa palavra essencial da me- tafsica platnica (Anamnse) ou to cara fenomenologia hegeliana (Erinnerung), mas tambm se pe como uma abertura ao que ainda no est dado e determinado (Erschlossenheit). Vamos agora ilustrar essa outra interpretao por meio de uma nova citao. Desta vez retirada do Seminrio II de Lacan quando, na sesso de 19 de ja- neiro de 1955, ele contrape a teoria pla- tnica do conhecimento, marcada pela reminiscncia, pelo voltar-se para o passa- do e para o encontro daquilo que j est l, com a ironia de Kierkegaard que justamente um no estar l, um distancia- mento do dado, uma irrupo do sujeito quando faz a experincia da repetio. Diz, ento, Lacan: Mas, por determinadas ra- zes operou-se uma reviravolta. H, de ora em diante, o pecado como terceiro termo, e no mais na vida da reminiscncia, mas na da repetio, que o homem encontra seu ca- minho. Eis o que pe, justamente, Kierkega- ard na pista de nossas intuies freudianas, num livrinho que se denomina a Repetio. Aconselho sua leitura s pessoas j um pouco adiantadas. Aqueles que no tiverem muito tempo leiam ao menos a primeira parte (La- can, 1885, 116). Pode parecer enigmtica a referncia ao pecado como terceiro termo, mas pode- mos deixar o esclarecimento pormenori- zado desse ponto de lado nos restringindo apenas a uma indicao: a experincia do pecado tem um papel central num peque- no livro, a que Lacan j aludiu rapidamen- te, desde 1948, no final de A agressividade em psicanlise e que o acompanha por um bom tempo, trata-se de O conceito de an- gstia de Kierkegaard. Essa breve indica- o nos ajuda a compreender um aspecto da citao anterior. Lacan se apropria iro- nicamente da ironia kierkegaardiana e convida os seus ouvintes a ler o ensaio A repetio do pensador dinamarqus, nem que seja apenas a primeira parte, pois a sua leitura nos coloca na via de nossas intuies freudianas. Bem, a obra, A repetio, de Constantin Constantius, um dos pseu- dnimos de Kierkegaard, uma de suas ms- caras, um de seus eus dentre muitos outros tais como Victor Eremita, Johannes de Si- lentio (autor de Temor e tremor), Vigilius Haufniensis (autor de O conceito de an- gstia), Frater Taciturnus, Hilarius, Johan- nes Climacus, Anti-Climacus (autor do Ps-escrito escrito s Migalhas Filosfi- cas), Nicolaus Notabene, dentre outros. Ora, sabemos, com a ajuda dos preci- osos comentrios de Yves Depelsenaire,
  9. 9. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre Psicanlise e Filosofia 23Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 que justamente nessa primeira parte da obra aquela que Lacan recomenda que, ao menos esta parte, seja lida que Cons- tantin Constantius, fazendo jus ao seu nome, faz a experincia da repetio im- possvel, ou seja, a repetio no registro do imaginrio. No obstante, a insistncia no mesmo no esgota as possibilidades da re- petio. Pois, pode-se vislumbrar no fra- casso da experincia de Constantius a ir- rupo da diferena no tempo, no acon- tecimento, no instante. Uma repetio que produz o novo, que impulsiona para o no sabido (Depelsenaire, 2005, 35-60). Ora, alguns anos mais tarde, Lacan retoma o texto kierkegaardiano ao discutir, no Se- minrio XI, na sesso de 12 de fevereiro de 1964, o tema crucial da relao da pulso (Trieb) com a representao (Vorstellung) e nos diz o seguinte: Assim Freud consegue dar soluo ao problema que, para o mais agudo dos questionadores da alma antes dele Kierkegaard j estava centrado na repeti- o( ...) No mais que em Kierkegaard, no se trata em Freud de nenhuma repetio que se assente no natural, de nenhum retorno da necessidade. O retorno da necessidade visa o consumo posto a servio do apetite. A repeti- o demanda o novo. Ela se volta para o l- dico que faz, desse novo, sua dimenso... (Lacan, 1990, 62). A repetio produz um saber, mas esse saber j no est l, como na reminiscn- cia, mas o que eclode como no sabido, a testemunhar um alm que logo asso- ciamos introduo da pulso de morte umalm,umalgoquebrotaemnscomo um excesso, como uma irrupo inovado- ra no tempo (kairs) e no mera sucesso linear dos acontecimentos (kronos). Mas no se trata da instaurao de um inteira- mente outro, como na criao a partir do nada a que antes aludimos. Atravessado pelo excesso, pelo que rompe com o con- trole metodolgico, o saber que se produz est atravessado pela angstia. E a est o ponto de contato, a que antes nos referi- mos, entre os textos A repetio e O con- ceito de angstia. A repetio produz ao mesmo tempo, na ambigidade do instan- te, o saber e a angstia, um saber que s advm com a angstia e na angstia. Tra- ta-se mesmo de ambigidade, pois o ins- tante da irrupo est no tempo e fora do tempo, pois marca a quebra do tempo li- near que o fio condutor da narrao his- trica do indivduo e faz advir o que esca- pa, o que no se integra consistncia da narrao. Portanto, combater a angstia por todos os meios, submet-la ao imprio da sedao, tambm perder esse saber, anul-lo na reiterao do j sabido. O que seria, ento, a angstia para Kierkegaard? Todos sabemos de sua raiz etimolgi- ca latina, o angere, o que aperta, o que estreito e estrangula, o que nos possui e nos corta a respirao. Sabemos tambm da clebre definio da angstia como um afeto sem objeto, ao contrrio do medo. Mas bom insistir que Kierkegaard no se atm a definies simples, embora no possamos acompanhar o enovelamento de suas sutis distines. A experincia para- digmtica da angstia a do pecado origi- nal. Ado no paraso podia tudo, uma vez que tinha todas as coisas sua disposio, mas sobre isso ele nada sabia. A interdio de Deus o No comers os frutos da rvo- re do bem e do mal o coloca diante do seu poder, desse poder ser que antes da lei, da interdio divina, no existia. A lei ins- taura a possibilidade, a sua condio de li- berdade e, portanto, de transgresso da prpria lei e, assim, faz dele um ser huma- no. Mas se, por um lado, a liberdade ins- taurada pela lei o arranca da necessidade, da naturalidade feliz do no saber, por ou- tro, tambm no absoluta uma vez que a liberdade absoluta seria a outra face da necessidade, seria a criao do mundo, da totalidade dos entes o que apenas um atributo de Deus. A lei instaura, por con- seguinte, o instante no qual Ado decide por se submeter ou por transgredir a lei, mas agora a inocncia j est perdida, pois
  10. 10. Carlos Roberto Drawin 24 Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 ele sabe algo acerca do saber e mergulha na angstia, pois a angstia a vertigem da liberdade. mesmo uma vertigem pois a liberdade no sendo absoluta o poder ser na contingncia, no risco, no salto so- bre o vazio. Compreende-se, ento, o an- gere, o caminho estreito da deciso que contrasta com a amplido do paraso onde todas as coisas esto disponveis. Essa a experincia crucial de Ado: ao saber ele se descobre separado das coisas, ele torna- se sujeito como estas tornam-se objetos. Nesse sentido, a angstia sem objeto por- que essa ciso de sujeito e objeto irrepa- rvel e no pode ser cimentada pelo co- nhecimento. Ou diramos, no h rem- dio epistemolgico ou tecnolgico para a angstia, pois na separao de sujeito e objeto que a condio de todo conhe- cimento cientfico insinua-se o nada. Talvez possamos aqui com todos esses ma- tizes reformular a frase num sentido mais autenticamente kierkegaardiano do se- guinte modo: A angstia no sem objeto. Por qu? Porque de um lado ela consiste em estar mergulhado no mundo dos obje- tos, reconhecendo, porm, a sua contin- gncia, por outro lado, ela remete a um poder-ser absoluto, tentao de cruzar a linha da interdio divina e retornar ou regredir ao paraso anobjetal das coisas in- teiramente disponveis. No h angstia sem objeto, mas ela no possui um objeto, ela prefigura um absoluto impossvel para o homem e que estaria para alm da lei, da interdio divina (Hohlenberg, 1960, 48- 115). Visivelmente influenciado por Kierke- gaard, mas interpretando o seu pensamen- to luz da questo do sentido do ser (Seins- frage), Heidegger, no 40 de Ser e tempo, toma a angstia no como um afeto vin- culado s perturbaes do corpo, mas como uma afeco/disposio fundamen- tal (Grundbefinflichkeit), como um exis- tencial, como uma disposio estrutural do existente humano (Dasein). Enquanto tal a angstia no pode ser eliminada e, mais do que isso, ela possui nela mesma, en- quanto afeco, um saber, um poder de revelao. Por um lado, ela revela a insufi- cincia de nossa relao instrumental ou utilitria com o mundo. Por outro lado, a angstia nos revela como cuidado, como cura (Sorge), ou seja, que a relao do homem com a realidade no primordial- mentetericae,portanto,searazoiden- tificada com a cincia, ento a ela escapa a prpria essncia da verdade (Altheia) como desvelamento e encontro com um real que no dominamos e que reluz na fugacidade de nossas idias e dores, de nos- sos sentimentos e atos. Nesse sentido, no podemos e no devemos curar a angstia, porque a an- gstia que abre a possibilidade da cura. Um mundo medicalizado e sedado, no esforo absurdo de suprimir a angstia tratando-a como um distrbio afetivo, s poderia ser um mundo de horror dominado pela mais terrvel violncia, aquela que nem mais conseguimos perceber e combater. Elimi- nar a angstia seria como querer coisificar o vazio que nos constitui como humanos, negar a contingncia do sujeito no mun- do dos objetos. Desse modo, uma raciona- lidade que pretendesse tudo prever e con- trolar, inclusive eliminando a imprevisibi- lidade angustiante da vida, teria como efei- to destruir o seu prprio sentido antropo- lgico e, como aludimos no incio dessa exposio, produziria, como resultado, um mundo imaginrio de animais calados e felizes, privados da pujana metafrica da linguagem. O filsofo, dizia Husserl com lucidez, sempre um iniciante. Tambm o analista sempre um iniciante, pois cada anlise Unheimliche, repetio e estranheza e, portanto, um convite para a criao con- ceitual que justamente a repetio dife- rencial dos conceitos j concebidos. Con- frontar o destino. Talvez seja esta a tarefa sempre retomada do analista. Se verda- de, como disse Hegel, que o destino foi a tragdia do homem grego e que a poltica
  11. 11. Angstia e saber: reflexes sobre a inter-relao entre Psicanlise e Filosofia 25Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 havia se transformado na tragdia do ho- mem moderno, ento podemos dizer que a despolitizao da sociedade, na esteira do desencanto ps-moderno, a fora do destino que reaparece sob a mscara de nossa impotncia diante do curso das coi- sas. Mas hoje a indiferena e o niilismo substituram a conscincia trgica. Na au- sncia do antigo heri trgico, a consci- ncia cnica convive com o horror, o que nos leva a pensar que a inatualidade da psicanlise, a sua vocao extempornea, o seu maior elogio, pois como Walter Benjamin soube expressar com dura con- ciso: Que as coisas sigam o seu curso, eis a catstrofe6 . j ANXIETY AND KNOWLEGE: REFLECTIONS ON THE INTER-RELATION BETWEEN PSYCHOANALYSIS AND PHILOSOPHY Abstract In this article, we intend to analyze the inter- relationship between Psychoanalysis and Phi- losophy considering the radical interpretation of modernity , or, in other words, a form of thought that conceives modernity at least some of its dominating tendencies as a pro- ject of camouflaging human finitude. In this perspective, a confrontation between Psycho- analysis and Philosphy pemits one to salvage knowlege that not only dissimulates anxiety, but that can also be sustained by it. Keywords Psychoanalysis, Philosophy, Modernity, On- tology, Knowlege, Anxiety. Bibliografia AGAMBEN,Giorgio. A linguagem e a morte. Um se- minrio sobre o lugar da negatividade. Belo Horizonte: EditoraUFMG,2006. ASSOUN, Paul-Laurent. Freud, a filosofia e os fil- sofos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. DEPELSENAIRE, Yves. Ls migajas antifilosficas de Kierkegaard. In: MILLER, J.A. et alii. Filosofia ? Psicoanlisis. Buenos Aires: Trs Haches, 2005. DEVEREUX,Georges.Delangoissealamthodedans lessciencesducomportement.Paris:Flammarion,1987. DRAWIN, Carlos R.. O destino do sujeito na dial- tica da modernidade. Sntese. V. XXII, n.71, 1995, 489-511. DRAWIN, Carlos R.. O futuro da psicologia: com- promissoticonopluralismoterico.In:BOCK,Ana M. Bahia (org.). Psicologia e o compromisso social. So Paulo: Cortez, 2003. DRAWIN, Carlos R.. A recusa da subjetividade: idias preliminares para uma crtica do naturalismo. Psicologia em Revista, v. X, n. 15, 2004, 28-42. DRAWIN, Carlos R..Arazoensombrecida(IEAT. Noprelo.) HEIDEGGER, Martin. La fin de la philosophie et la tche de la pense. In: IDEM. Questions IV. Paris: Gallimard,1976. HEIDEGGER, Martin. Was ist Metaphysik? In: IDEM. Wegmarken. Frankfurt AM Main: Vittorio Klostermann,1978. HEIDEGGER, Martin. Beitrge zur Philosophie (vom Ereignis).FrankfurtamMain:VittorioKlostermann, 1994. HEIDEGGER,Martin.SeinundZeit.(AchzehnteAu- flage). Tbingen: Max Niemeyer Verlag, 2001. HOHLENBERG,Johannes.LoeuvredeSrenKierke- gaard.Lechemindusolitaire.Paris:AlbinMichel,1960. LACAN, Jacques. La chose freudienne ou sens du retour Freud en psychanalyse. In: IDEM. crits. Paris: du Seuil, 1966. LACAN, Jacques. O seminrio, livro 2: o eu na teoria de Freud e na tcnica da psicanlise. Rio de Janeiro: JorgeZahar,1985. LACAN, Jacques. O seminrio, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanlise. Rio de Janeiro: JorgeZahar,1990. MILLER,J.A..Filosofia?Psicanlise.MILLER,J.A.. et alii.. Filosofia ? psicoanlisis. Buenos Aires: Trs Haches,2005. 6. A frase de Benjamin citada como epgrafe do primei- ro captulo do ensaio de Paul Valadier citado na bibli- ografia.
  12. 12. Carlos Roberto Drawin 26 Reverso Belo Horizonte ano 30 n. 56 p. 15 - 26 Out. 2008 NIETZSCHE, Friedrich. Asi habl Zaratustra. In: IDEM. Obras completas. Buenos Aires: Ediciones Prestigio,1970. PASCAL, Blaise. Pensamentos. So Paulo: Martins Fontes,2005. POSSENTI, Vittorio. Essere e libert. Catanzaro: RubbettinoEditore,2004. RICOEUR, Paul. De linterprtation. Essai sur Freud. Paris, du Seuil, 1965. VALADIER, Paul. Moral em desordem. Um discurso em defesa do ser humano. So Paulo: Loyola, 2003. VAZ, Henrique C. de Lima. tica e razo moderna. Sntese.V.XXII,n.68,1995,53-85. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia III: Filosofia e cultura. So Paulo: Loyola, 1997. RECEBIDO EM: 04/08/2008 APROVADO EM: 11/08/2008 SOBRE O AUTOR Carlos Roberto Drawin Psiclogo.Psicanalista.Professor do Departamento de Filosofia da UFMG. Professor do Curso de especializao em Teoria Psicanaltica do Departamento de Psicologia da UFMG. Endereo para correspondncia: Av. Antnio Carlos, 6627 - Pampulha 31270-901-BELOHORIZONTE/MG E-mail: [email protected]