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O Fim do Império Romano
. Do Escravismo à Servidão - A transformação das condições de trabalho e do estatuto jurídico dos trabalhadores no final da antiguidade, séc. V- X (comentado por Mayte Vieira).
. Prólogo a respeito de dois conceitos muito antigos: Império universal e decadência do Estado – Nesta série de três textos do livro “O Fim do mundo antigo”, Mazzarino discute de forma brilhante a origem dos conceitos de “decadência” do mundo romano e a percepção do fim do mundo antigo (comentado por Alam Arezi)
. Final dos tempos ou crise no Império – Na continuação do 1º texto, Mazzarino coloca em questão: como o império romano percebe as crises iminentes que abalariam sua estrutura?
. "Inimigos externos" e "Inimigos internos" – Não apenas as invasões bárbaras, mas o próprio império se encontrava solapado em suas estruturas internas. Neste terceiro texto, Mazzarino desenvolve ainda mais as múltiplas possibilidades de analisarmos o mundo romano preste as ingressar na antiguidade tardia.
. Marcas da experiência romana – por Robert Lopez, este texto nos traz um panorama sobre o mundo romano antes da antiguidade tardia, suas estruturas, cultura e geografia.
. Em direção ao Abismo – neste segundo texto, Lopez analisa o impacto das invasões germânicas, e a incapacidade do mundo romano reagir. Mas não seriam estes modelos cíclicos? (Comentado por Mayte Vieira)
. As Invasões Bárbaras pelos cronistas da Época – Nesta seleção de fragmentos, Fernanda Espinosa nos apresenta as invasões bárbaras pelos olhos de cronistas de um império romano à beira da destruição.
. A Crise política no Século 3 - Publicado em 1926, o livro de Ferdinand Lot "O Fim do mundo antigo", apesar de superado, merece um olhar atento pelo modo como trata, de forma abrangente, o final da antiguidade clássica.
. A Restauração do Mundo Romano - Uma outra seção do mesmo livro de Lot.
. A Instalação dos Bárbaros - Século V - VIII - Neste texto, o consagrado historiador Jacques Le Goff apresenta sua visão sobre a queda do mundo romano, na primeira parte de sua "História do Ocidente Medieval". Comentado por Bruna Colita
Do Escravismo à Servidão
O problema das "origens" do feudalismo gerou inúmeras polêmicas
sobre o fim do Império Romano no Ocidente (século V) e o
surgimento das instituições feudais. Comumente, aceita-se a tese da
junção de formas sociais romanas e germânicas que, justapostas,
engendrariam as bases da sociedade feudal. Este ponto de vista
destaca o fato de que a Idade Média, em suas origens, assiste ao
encontro de povos e civilizações em estágios bastante desiguais de
desenvolvimento. Teríamos, por um lado, sociedades com estruturas
econômicas e sociais bastante complexas no interior do Império
Romano e, de outro, os germanos com sua organização tribal e
nômade (M. Bloch, 1947). Assim, o fim do império e a "quebra" da
economia antiga se explicariam como resultado do "assalto
germânico", que teria como conseqüência a destruição de boa parte
das forças produtivas e a regressão econômica e social (Piganiol,
1965).
Outros historiadores têm procurado ver na própria crise interna do
império, particularmente a partir do século IV, as causas da
decadência romana e sua fragilidade em face dos bárbaros (F. Lot,
1950). É ao longo das crises, e das soluções encontradas pelos
imperadores e juristas romanos, que se esboçarão as tendências que
marcam o feudalismo: ruralização/latifundização e nivelamento
social e jurídico dos trabalhadores, de um lado, e, de outro, a
decomposição do poder público, com sua efetiva distribuição entre
representantes do príncipe. De qualquer forma, a maioria dos
autores contemporâneos concordaria com a afirmação de que "o
império estava condenado" (G. Bloch, 1921), sendo que a presença
das tribos germânicas teve o papel de tornar complexa uma crise em
pleno curso. Assim, pode-se buscar no mundo romano os elementos
constitutivos fundamentais do feudalismo: os latifundia, o colonato e
a adscrição geral dos trabalhadores, enquanto os germanos
contribuiriam com a noção de fidelidade pessoal, o patrimonialismo
e a inexistência da noção de res pública (F. Lot, 1950).
Um outro aspecto da mesma polêmica, talvez mais ideologizado,
reside na dificuldade em identificar o "motor" da crise. Para
historiadores como Lot e G. Bloch, o expansionismo militar e sua
crise, com a conseqüente dificuldade de refazer os contingentes de
escravos, assim como o colapso das estruturas fiscais e financeiras e
da administração municipal, teriam um papel central na crise
romana. Já para outros, principalmente os historiadores reunidos em
tomo da revista soviética Vestnik Drevnei lstorii, o motor da crise
residiria nas sucessivas revoltas antiescravistas e camponesas (como
as bagaudes) que assolam os últimos anos do Império. Para estes
autores, as "causas" só poderiam ser internas e, sem dúvida,
relacionadas diretamente às lutas de classes que oporiam senhores
(potentiares) e a grande massa de trabalhadores rurais (humiliores).
Tanto S. L Kovaliov quanto E. M. Schtajerman, mal grado as
diferenças de ênfase, centram suas análises no que denominam a
"revolução social antiescravista" que teria marcado, com vagas de
intensidade crescente, a história romana dos séculos III, IV e V
(Schtajerman, 1955).
Mais recentemente, esta mesma tese foi retomada por vários
historiadores preocupados em demonstrar que, sob uma aparente
calma, o Império era, em verdade, varrido por uma surda vaga de
revolta social, normalmente enfrentada com incrível rigor pelas
autoridades romanas (E. A. Thompson, 1952; J. Gagé, 1964; M. E.
Mazza, 1970). Pela construção teórica mais elaborada, destacam-se
dois historiadores contemporâneos: Perry Anderson (1977) e Pierre
Dockès (1979), que denunciam a visão "de classe" da historiografia
tradicional sempre disposta a ver nos movimentos populares
manifestações de banditismo ou simples "tumultos". Dockès denuncia
estudiosos como Le Glay (1975) que, mais preocupados com "a ordem
social romana e sua manutenção" num mundo assaltado pela
barbárie, não vêem, ou não querem ver, a profunda miséria das
próprias populações romanas submetidas aos potentiares.
Para muitos destes autores, à história impunha decidir entre a
civilização, ou seja, a ordem romana, ou a "anarquia bagaudes",
como escreve Rémondon (1964). Neste sentido, parece fora de
dúvida que Dockés está correto ao denunciar grande parte da
literatura sobre a "crise" como apologética do Império e da sua
ordem social. Na verdade, esta mesma ordem social estava
seriamente abalada desde o reinado de Cômodo (180 D. C. ca*),
quando surge um profundo movimento insurrecional na Gália. Este
movimento, que se estende até o século V, parece ser conseqüência
imediata da pauperização crescente das massas trabalhadoras do
campo.
No seu conjunto, todo o Império parecia empobrecer: fora as grandes
construções de Diocleciano (284-303) em Roma e as reformas feitas,
talvez com excessivo luxo para a época, por Constantino (323-337)
em Constantinopla nada mais se faz nas províncias; as cidades
destruídas pelas primeiras invasões mal são reconstruídas; as minas
são abandonadas e (sinal máximo do empobrecimento romano) os
jogos circenses são interrompidos. Junto ao povo a situação é bem
mais dramática: nos campos, a miséria lança sobre as grandes rotas
bandos de vagabundos e desocupados que, em busca de trabalho,
dinheiro ou comida, se transformavam em bandidos (O. Bloch, 1921).
Daí era um passo para, em bandos mais ou menos armados, surgirem
como real ameaça à ordem estabelecida. Não devemos esperar
grupos organizados politicamente e agrupados em torno de uma
ideologia qualquer. Os motivos da revolta são comuns a todos, e a
organização inicialmente é acidental, fatos que talvez expliquem a
força e persistência da revolta. Na Gália estas revoltas são
denominadas bagaudes, antecessoras da tradicional jacquerie
francesa. O movimento empolga, em pouco tempo, toda a Gália,
forçando Diocleciano a enviar Maximiniano para reprimir o
movimento de forma extremamente violenta. Depois de ficar
restringido a Saint-Mar e Paris, o movimento bagaude retoma fôlego
e expande-se novamente, inclusive para a Hispânia (Península
Ibérica), e embora seja vencido não foi realmente derrotado, como
bem assinala Georges Duby.
Paralelamente, também a Africa do Norte assistia a um amplo
movimento de rebeldia social. Os camponeses pobres escudados em
movimentos religiosos, como o cisma donatista (separação do bispo
Donato, de Cartago, em 315, rompido com os cristãos que
claudicaram durante as perseguições de Diocleciano), chegaram a
contar com o apoio de 300 bispos (F. Lot) que constituíram uma seita
- milites Christi -, que assume uma feição reformista no campo.
Estes circuncelliones pedem o fim da escravidão, a divisão dos bens e
das propriedades e a abolição das dívidas, promovendo, para tal,
uma verdadeira "guerra aos ricos" (G. Bloch), só interrompida pela
invasão vândala no norte da África.
Tais revoltas, associadas à penetração, violenta ou não, dos
bárbaros, provocam uma profunda sensação de insegurança e de
crise nas autoridades da época. Como não poderia deixar de ser, esse
sentimento é expresso também pela "inteligência" da época,
normalmente cristãos, e mesmo pelos bispos. São obras como as de
Salviano ou Agostinho que se constituem em fontes para os
historiadores, que podem, assim, correr o risco de ler a história da
época através destes homens. Salviano (Do Gubernatione Dei) é
particularmente sensível às associações entre rebeldes e bárbaros,
que transformavam algumas regiões em "lugares onde se vive
freqüentemente a lei natural e onde tudo é permitido".
Devemos entretanto concordar com Duby quando escreve que tais
revoltas permanecerão sempre "mal conhecidas, deformadas". Nada
sabemos sobre as origens sociais destes movimentos; nem mesmo
sabemos se seus protagonistas eram camponeses livres associados a
escravos ou apenas homens livres. De qualquer forma, Dockès tem
razão em pedir um maior espaço para os movimentos sociais da
época (e não só as doze linhas de Lot no seu excelente livro). Mas
isso não é tudo, pois inferir daí que o Império romano sucumbiu ao
peso da revolta social, como quer, por exemplo, Kevaliev, é ir longe
demais. Na verdade, a mesma série de fenômenos que deu origem às
revoltas sociais parece ter impossibilitado, ao Império, manter a
ordem interna e a defesa dos limes contra a pressão germânica.
Desta forma, entenderíamos que um Estado forte e rico não seria
derrubado nem "por dentro" nem "por fora".
Historiadores como A. Boack, caminhando um pouco nessa linha, têm
buscado outros elementos para explicar a "queda" do Império. Surgiu,
assim, amplo debate sobre o movimento populacional do Império,
opondo, de um lado, Boack com a tese de despovoamento maciço
(em virtude das pestes e das guerras danubianas) e, de outro, M.
Finley que considerava o termo despovoamento muito forte para ser
aplicado a Roma e seu Império. Para Finley (1966) há uma extensa
inter-relação de fenômenos que abrangem da pressão bárbara nas
fronteiras à necessidade de maiores impostos e mais homens para
manter um exército contra estes mesmos bárbaros. A. Bernardi
(1965) também destaca o peso do exército no conjunto da estrutura
estatal romana, assim como da burocracia responsável por
instituições próximas de um "wellfare state" (distribuição dos
alimenta, a anona etc...). Diante de tantas necessidades, o sistema
fiscal teria falhado, permitindo que o mais rico segmento social do
Império evadisse e deixasse de pagar impostos. Excluídos os
potentiores, coube à grande massa do povo, principalmente no
campo, arcar com as despesas do Estado. Ao mesmo tempo,
anunciavam-se duas conseqüências imediatas: as revoltas (mas
também o encomendatio) e a bancarrota do Império.
Avanço social dos escravos, recuo jurídico dos homens livres.
E intensos conflitos de classe da época do Baixo Império acabam por
se condensar em torno dos séculos IV-V, quando sob efeito da
desorganização interna, gerada pelas comoções sociais, o Império
cederia sob a pressão externa. Assim, o século V marcaria o fim do
Império e o fim do escravismo, que cederiam lugar,
respectivamente, a uma constelação de reinos bárbaros mais ou
menos romanizados e ao desabrochar de relações sociais de novo tipo
como as diversas formas de servidão. Estariam se constituindo os
fundamentos da Idade Média e do regime feudal.
As revoltas sociais e a queda do Império não foram, entretanto,
suficientes para extinguir uma instituição como o escravismo que,
numa sociedade rural, garantia a mão-de-obra mínima necessária aos
grandes domínios. Afirmações como as de G. Hodgett (1971), de que
"as grandes propriedades não funcionavam bem quando trabalhadas
por escravos", daí sua substituição por colonus, padecem de excesso
de simplificação. Tanto as grandes propriedades funcionavam com
escravos que estes continuarão a aparecer nos documentos dos
domínios até quase o século XI.
Para resolver esta dificuldade, P. Dockès elaborou um sofisticado
esquema explicativo, onde mostra não o "fim" do escravismo antigo,
mas os "fins". Segundo ele, o escravismo teria ao menos três fins ou
crises: a primeira, ao longo do século III, quando se daria um
movimento de reforço do grande· domínio rural (villae) com a
montagem do sistema de colonato e o "estabelecimento dos
escravos", agora homini casati (utilizaremos, doravante, a expressão
"estabelecimento dos escravos" e "escravos estabelecidos" como
correspondentes a casati, housed, chasés, em vez de casamento ou
casado em face da óbvia confusão dos termos). Após a crise, como é
sabido, deu-se todo um movimento de reconstrução da ordem
imperial, com os governos fortes do século IV, particularmente com
Diocleciano (284-303) e Constantino (323-337), responsáveis pelo
restabelecimento das condições sociais anteriores. A escravidão volta
a avolumar-se, embora o colonato e os homini casati comecem a
representar o início das transformações em direção a relações sociais
de produção de um tipo novo, como veremos mais tarde.
Passado o período de tranqüilidade, a ordem imperial é quebrada e a
România é submergida pelas vagas germânicas que provocam a
extinção (apenas momentânea, conforme Dockès) da economia
antiga com a desaparição das villae, e conseqüentemente do
escravismo, em face das invasões, fugas maciças e revoltas como as
que anteriormente descrevemos. Desta forma, o século V assiste ao
segundo fim do escravismo antigo. A vaga germânica traria em seu
bojo formas de organização da produção estranhas ao antigo mundo
mediterrâneo, como a comuna rural. O período que se estende do
século V ao VII é visto como "terra arrasada", de onde brotam as
novas formas sociais, o que, sem dúvida, entra em choque com o
conhecimento mais aceito acerca da continuidade da economia
antiga e, em particular, das instituições latinas.
Por fim, com as guerras imperiais dos carolíngios, teríamos o último
movimento de escravização, com o restabelecimento de
fornecimentos mais ou menos regulares de escravos à Itália e ao
Reino franco, provenientes das fronteiras saxônias, da Britânia e dos
limites eslavas. Este movimento, entretanto, torna-se insignificante
com o fim do império unificado no Ocidente (e das conseqüentes
guerras), impedindo um reabastecimento regular dos mercados
escravistas. Simultaneamente, a expansão dos ideais cristãos, a
mortalidade, as fugas e o movimento geral em direção à servidão
dariam um fim definitivo ao escravismo (séculos X ou XI).
Um primeiro problema que a tese de Dockès coloca é a questão das
fontes. A afirmação do desaparecimento "momentâneo" das villae e
do escravismo, a partir do século V, parece traduzir a dificuldade
documental e não uma realidade que, de resto, permanece bastante
mal conhecida. Duby chama nossa atenção para o fato de que a
documentação mais exata sobre o problema só começa a aparecer
em termo do ano 800 e, assim mesmo, nas províncias do Império
Carolíngio, ou sob sua influência, como Lombardia, Reno, Neustria e
Austrásia. Pode-se, desta forma, tomar com alguma facilidade a
ausência de documentação como uma ausência das formas sociais
romanas no período. Por outro lado, nada parece apoiar a tese de
que a penetração germânica tenha gerado a desaparição da villae. A
grande maioria dos autores parece concordar com a relativa
continuidade entre os latifundia, ou seja, a grande propriedade
fundiária escravista, a villa e o domínio medieval. Moses Finley
descreve uma nítida tendência ao aumento do tamanho das
explorações rurais romanas ao longo do Baixo Império, chegando
alguns autores, como Clamette, a afirmar que na maior parte dos
casos é a villa da época galo-romana ou bárbara que fornece seu
quadro à senhoria, com o que concorda Duby ao dizer que o quadro
dominial é antigo embora os documentos só o revelem com clareza
no século IX.
Assim, parece ter havido uma justaposição de instituições e culturas,
com as formas germânicas convivendo, lado a lado, com as formas
latinas.
Charles Parain (C.E.R.M., 1971), retomando Marx e Engels, procura
mostrar que "sob uma camada de romanidade" sobreviviam,
particularmente na Gália, velhas estruturas herdeiras de relações
sociais de cunho tribal e coletivista e que teriam sido reativadas com
a penetração bárbara. Esta é, sem dúvida, uma proposição com a
qual M. Bloch concordaria: a velha comunidade celta - e Bloch
acreditava nela - não teria desaparecido inteiramente em face das
noções de propriedade trazidas pelos romanos. Tais "sobrevivências"
teriam adquirido importância através da recriação de um
campesinato livre a partir da população germânica. O importante é o
fato de que este novo campesinato se organizará sob formas
comunais, estendendo sua área útil, através de um continum agrário,
aos bosques e prados. Tal apropriação coletiva de bens naturais
criará uma barreira bastante eficaz à completa expropriação do
camponês, e garantirá a ele, apesar da sua pouca terra, condições de
sobrevivência.
Fustel de Coulanges e R. Latouche negam categoricamente a origem
germânica do uso comunal da terra, acusando seus oponentes de
utilizarem fontes tardias (século XI ao XV) para provar suas teses.
Para ambos os autores, as práticas comunais eram desconhecidas dos
germânicos, entre os quais já existia a propriedade privada da terra.
Obviamente, a questão assumiu um caráter "político-ideológico", já
que colocava em questão teses defendidas pelo marxismo. Marx e
Engels (particularmente este, na Origem da Família...) retomam o
erudito alemão Von Maurer, que procura, através dos poucos
documentos disponíveis (César, Tácito e Plínio, o Velho), comprovar
o caráter coletivo da exploração da terra entre os antigos germanos.
Entretanto, os historiadores, e mesmo R. Latouche (1956),
concordam em que a forma mais antiga de propriedade conhecida
entre os germanos tinha o caráter familiar e não individual.
O mais importante, porém, é que o sistema de cultivo germânico era
de caráter comunal. Junto à aldeia, cada família possuía uma faixa
de terra estreita e longa, correspondente à ação da velha charrua
germânica. Tais faixas de terra obrigavam a uma estreita
solidariedade entre os diversos vizinhos, dando origem ao sistema
denominado campo forçado, onde os diversos vizinhos possuíam
cultivos homogêneos que facilitavam o trabalho comum. Também
eram de exploração comunal os bosques e prados, sendo
completamente desconhecida a apropriação de seus recursos. Estas
práticas, apoiadas numa vigorosa tradição costumeira, parecem ter
se alastrado por toda a antiga România, ou ao menos às partes não
diretamente incluídas na economia mediterrânea. Várias tradições
célticas teriam sido reavivadas pelo costume germânico, garantindo
ao novo campesinato condições de sobrevivência como homens
livres. Mesmo com o processo de sujeição em massa à servidão, tais
práticas tornaram-se uma garantia de recursos extras aos
trabalhadores rurais.
Assim teríamos convivendo, lado a lado, o trabalho escravo e o
camponês livre com o trabalho comunal e a propriedade familiar. O
processo que deve ser aclarado é o seguinte: como é que homens
livres, com pleno acesso à terra, perderam sua liberdade e escravos
ascenderam a uma situação de semiliberdade, igualando-se aos
camponeses antes livres? Melhoria social e sujeição jurídica são
termos de uma única equação. Conforme o escravo melhorava sua
situação como "homem estabelecido", os demais segmentos sociais
de trabalhadores rurais iniciavam uma curva descendente na escala
jurídica da sociedade, perdendo sua condição de livres.
No final do Império Romano, a total liberdade poderia ser tão
desastrosa para um homem desprovido de riquezas e sem garantias
políticas quanto a escravidão completa. O ato de libertação do
escravo não lhe dava acesso imediato à cidadania (em alguns casos
tinha que esperar duas gerações) e, ao mesmo tempo, o tornava
bastante vulnerável. Um documento lombardo, datado deste
período, exemplifica esta situação: "seus filhos e filhas... não
querem os quatro caminhos (expressão que representava a completa
liberdade) e se contentam... com a tutela e proteção dos padres e
diáconos de Santa Maria Maggiore de Cremona" (M. Bloch, 1947).
Assim, podemos deduzir que havia graus diferentes de liberdade: os
documentos da época falam em manumisio cum obsequio e
manumisio sino obsequio. No primeiro caso, o ex-escravo permanecia
sob o patronato do antigo senhor, fazendo parte de sua clientela
(com uma série de obrigações estabelecidas), enquanto no último,
abriam-se para ele os "quatro caminhos do mundo", o que era
bastante raro. O mais corrente, porém, era o senhor alterar o
caráter do trabalho escravo, em vez de simplesmente extingui-lo. A
maioria dos senhores tratava de substituir as grandes equipes de
escravos, ou seja, a grande economia agrária escravista, por um
sistema mais adequado, economicamente, às novas condições. Os
grandes exércitos escravos, divididos em decúrias, não mais
compensavam. Principalmente, não compensava ajustar o
contingente escravo a partir dos momentos de "pique" da produção
cerealífera, gerando no restante do ano uma imensa capacidade
ociosa, que diminuiria os rendimentos e manteria o cálculo
econômico do domínio em permanente tensão.
Pelo exposto, não se pode deduzir que a escravidão, em geral, era
antieconômica. Afirmações como "a escravidão não compensava e
por isso morreu" (F. Engels, 1884) não devem ser levadas ao pé da
letra. Morreu a grande exploração escravista, que é substituída por
pequenas equipes de escravos cujo trabalho é complementado, nos
momentos de "pique", com trabalho remunerado e/ou compulsório. A
simples afirmação de que a escravidão era antieconômica, como já
vimos, esbarra num fato: sua continuidade ao longo da Alta Idade
Média. Alguns exemplos são esclarecedores: a Capitulare de Villis et
Curtis, no primeiro terço do século IX, afirma que " ... se devem
confiar vacas aos nossos escravos para que levem a cabo os serviços
que devem" (Ed. Boretius, 1881); já o Políptico da Abadia de Saint-
Germain-des-Prés informa que " ... a mulher escrava tece sarjas com
lã do senhor e alimenta as aves do curral ... ", e o Políptico de
Irminou enumera 220 escravos... (Nota: políptico é uma palavra
proveniente do latim e quer dizer registro das contas, bens ou
rendas). Mesmo as pequenas equipes de escravos não são mais
mantidas como na época romana. Os senhores passam a entregar a
seu escravo um pequeno lote de terra (casa) que garantiria a
reprodução da família escrava e, simultaneamente, desobrigaria o
senhor e aliviaria o cálculo econômico do domínio. Este escravo
estabelecido, agora homo casatus, deveria entregar ao seu senhor
uma renda in natura (produtos variados), possuindo uma certa
autonomia em relação a sua terra. Sob influência do cristianismo,
adquire o direito de contrair casamento, poupar um pequeno pecúlio
e mesmo comprar terras. Entretanto, fazia parte do domínio e podia
ser vendido ou doado com o mesmo. Mas, principalmente, tinha a
obrigação de fornecer trabalho gratuito ao senhor a qualquer
momento que fosse solicitado, mesmo em prejuízo do seu próprio
cultivo.
O processo de estabelecimento dos escravos não foi imediato e geral.
A própria legislação carolíngia distinguia entre os "mancipia non
casata" ou "servi manuales" e os "jam casati". Mesmo nos domínios,
onde existia um grande número de casata (escravos estabelecidos em
lotes por seus senhores), coexistiam outros escravos ainda na
situação de bens móveis, também chamados de prebendados (ou
seja, que recebiam sua manutenção diretamente do senhor), embora
seu número decresça rapidamente. Havia, ainda, escravos que
trabalhavam no campo sem casa. Na abadia de Prüm, os tenentes de
mansos livres punham seus escravos à disposição do senhor em vez
de pagarem eles mesmos as obrigações devidas. A maioria, porém -
devemos reafirmar -, era constituída de escravos estabelecidos no
interior do domínio em lotes denominados mansus servilis. O manso
era a unidade econômica e fiscal básica no interior dos domínios (um
domínio estava dividido em vários mansos livres ou servis, como
veremos proximamente).
Paralelamente ao estabelecimento dos escravos expande-se o
colonato, ou seja, a adscrição do antigo trabalhador livre à terra, o
que é definido por F. Lot (1950) como um arrendamento perpétuo e
hereditário, para quem a sujeição à terra era um direito e uma
necessidade.O colonato é, inicialmente, inaugurado pelos próprios
imperadores nos seus imensos domínios africanos, expandindo-se
mais tarde para a Itália e Gália, imitado pelos grandes senhores e,
após o século V, pela aristocracia germânica e a própria Igreja.
Visando inicialmente evitar o despovoamento do campo e a fuga ao
fisco, o colonato transforma-se de um instrumento privado em uma
prescrição de direito público, que assegurava a cobrança dos
impostos, principalmente in natura. Os colonos estavam submetidos
a dois tipos de obrigações: as prestações in natura, cujo montante
era submetido a uma convenção coletiva denominada Lex Saltus
(saltus ou fundus é um nome dado comumente ao grande domínio), e
as corvéias, ou seja, trabalho obrigatório devido ao senhor. Devemos
notar que em matéria de obrigações as diferenças entre o homo
casatus e o colono são de forma e intensidade. Enquanto o escravo
estabelecido não possui qualquer anteparo jurídico e, portanto, é
suscetível a uma exploração desenfreada, embora mantida no nível
do possível, o colono possui um texto jurídico e/ou um conjunto de
tradições que evitam uma superexploração. A generalização do
colonato parece se dever fundamentalmente à insegurança geral da
época e, fundamentalmente, à tomada de consciência por parte dos
camponeses da sua fragilidade perante o fisco.
Os camponeses livres (rusticus, vicanus ou agricola) também se
tornam objeto de exploração fiscal por parte dos curiales (indivíduos
encarregados da arrecadação dos impostos e de quem Salviano, o
bispo de Marselha no século V, dirá: "Tantos curiales, tantos
tiranos"), obrigando-os a buscar junto aos senhores (potentiores). Tal
proteção se concretizava através de um contrato denominado
precária, pelo qual o pequeno proprietário oferecia sua terra, que
lhe era devolvida como concessão vitalícia ou hereditária por uma
vida (ou seja, incluso o filho do precarista), findo o que tornava-se
necessário renovar o ritual de sujeição. Algumas vezes, o camponês
obtém o gozo de uma terra muito mais ampla do que seu antigo
alodio (palavra proveniente de alod: terra de plena propriedade do
seu ocupante), o que faz com que o contrato perca seu caráter
leonino. Quando o motivo fiscal desaparece, com o próprio fim do
Império, o contrato de precária continua sujeitando amplos
segmentos camponeses, principalmente na época merovíngia. Tal
fato se deve à preeminência, agora, de outros fatores, como: a) os
meios de subsistência restritos dos camponeses; b) a persistência das
dívidas com os senhores; e c) o clima geral de insegurança que fazia
do camponês pasto para todo o tipo de disputas. A extensão do
regime de precária, para aqueles que ainda tinham um lote de terra,
e o colonato, para aqueles que nada tinham (ao lado do movimento
do estabelecimento dos escravos), contribuíram para a sobrevivência
do grande domínio.
Os mesmos fenômenos promovem a homogeneização da condição
social – e mais tarde jurídica – dos trabalhadores rurais, camponeses
e escravos (e mesmo libertos e bárbaros), lançando as bases de um
novo tipo de relação de exploração: a dependência servil.
Todas as três categorias passam a dever ao senhor o pagamento de
rendas in natura, chamadas em latim agrarium, o trabalho gratuito
denominado corvéia. Obviamente, o grau de exploração do
trabalhador depende de sua situação anterior, o que até o século X
será mais ou menos lembrado. Desta forma, um camponês tornado
tenente de uma terra dominial, seja isoladamente ou com toda a sua
aldeia (vici), não tem as mesmas obrigações que um escravo
estabelecido. Porém, não são as rendas in natura que caracterizam
novo regime. A relação econômica fundamental que caracteriza o
regime dominial, base da sociedade feudal, são as prestações de
trabalho que garantiam o cultivo das terras do senhor: "de fato... os
donos de grandes propriedades concedem tenências, não para
receberem rendas, mas sobretudo para conseguirem serviços
regulares dos trabalhadores agrícolas" (G. Duby, 1964). Estas doações
de lotes de terras aparecem como a forma inicial de doação de um
feudo.
Vejamos como era a organização, no domínio, dos diversos mansos
(mansi). O domínio ou senhoria estava dividido em três grandes
partes: a reserva indominicata, as tenências camponesas e as terras
comuns. A reserva, terra indominicata ou manso senhorial, era a
parte do domínio pertencente diretamente ao senhor. Aí se
localizava a sede senhorial chamada curtis, em latim medieval; corte
em italiano; Hof em alemão e manoir ou manor pelos normandos
(que introduziram a expressão na Inglaterra). Sua administração era
realizada pelo senhor ou um encarregado (major ou villicus, em
latim; maire, em francês; mayer, no baixo alemão e stewart ou
bailiff em inglês). As terras dos camponeses, fossem eles homini
casati ou colonos eram denominadas mansos (mansus, em latim;
hufe, em alemão; hide, em inglês e masia, em catalão), e
correspondem a tenências (tradução de tenure, proposta por Pedra
Moacyr Campos e que mantém a fidelidade à raiz latina, tenire), ou
seja, terras em uso pelos cultivadores, doravante tenentes (do
francês tenancier), sobre as quais não possuíam a plena propriedade
(franc-alleu, alod, alódio). Estes mansos (em latim lar ou fogo, no
sentido de moradia) estavam divididos conforme a condição jurídica
de seus ocupantes. Assim, tínhamos mansos livres (mansus ingenuilis)
e mansos servis, como podemos ler no Políptico da Abadia de Saint-
Germain: “... Focaldo, escravo, e sua mulher, escrava chamada
Ragentisma, homens de Saint-Germain ocupam um manso servil...”
Dependendo da situação anterior do seu ocupante, o manso impunha
uma série de obrigações e alguns direitos que aos poucos são
confundidos, a ponto de no século XI não mais existirem diferenças
entre mansos livres ou servis. Entretanto, até esta época o manso
continuará como a unidade econômica básica e a chave para a
compreensão do funcionamento da economia dominial. Marc Bloch
(in Seigneurie Française et Manoir Anglais, Paris, A. Colin, 1960) nos
dá a mais clara descrição de um manso: prédios (no sentido de
benfeitorias), campos, prados, hortas freqüentemente dispersas
sobre uma área centralizada numa casa (lar ou fogo, donde mansus)
e que se constituía numa unidade fiscal e de administração para o
senhor, primitivamente associada a uma família – conforme era
compreendida na Idade Média.
Assim, o domínio ou senhoria aparece como "uma empresa
econômica fundada sobre a colaboração do domínio (agora no
sentido restrito do curtis) e das tenências (os mansos), tendo estas
últimas como fornecedoras de mão-de-obra" (M. Bloch), ou como
prefere R. Latouche "uma grande propriedade trabalhada por
pequenos cultivadores". A divisão da antiga Villa entre pequenos
cultivadores explicar-se-ia através da necessidade de: 1) manter o
trabalhador preso à grande propriedade, através de usufruto de uma
terra, e 2) o interesse em expulsar da empresa rural os custos de
reprodução da mão-de-obra necessária, particularmente no caso dos
escravos. Na verdade, o baixo nível técnico obrigava ao uso intensivo
de mão-de-obra (o Monastério de San Giulia de Brescia dispunha de
cerca de sessenta mil jornadas de trabalho por ano, no começo do
século X), que obviamente não podia ser mantida através de salários
ou com moradia e alimentação garantidas pelo senhor (como no caso
dos escravos). Desta forma, os mansos forneciam todo o trabalho
necessário para o senhor (que poderia ter alguns escravos e
assalariados), evitando o desembolso de numerário, seja na compra
de escravos (cada vez mais difícil), seja no assalariamento.
Inversamente, ao longo de toda a Alta Idade Média, os camponeses
tenentes de mansos estavam obrigados à entrega de ovos, galinhas,
leitões, como uma renda devida ao senhor, além do que deviam
também algumas moedas de prata, requisitadas como pagamento
pelo uso de benfeitorias senhoriais ou antigos impostos que os
senhores recolhiam. Porém, um ponto deve ficar claro: a relação
econômica fundamental era a prestação de corvéias, ou seja,
trabalho gratuito. As rendas não eram suficientes para sustentar a
classe senhorial, constituindo-se num ganho suplementar e nunca na
relação básica.
O modelo que acabamos de descrever é considerado a forma clássica
de funcionamento do regime dominial: a profunda associação entre a
reserva indominicata (a terra do senhor) e as tenências (mansos)
através da prestação de trabalho gratuito (corvéia) por parte dos
camponeses tenentes. Tal modelo foi construído a partir da
documentação francesa, particularmente de Saint-Germain próximo
a Paris, publicada por B. Guérard. Entretanto, conforme avançamos
em direção ao século X e às regiões periféricas ao Império Carolíngio,
parece-nos difícil reafirmar o modelo parisiense. Na Germânia, por
exemplo, a associação entre a curtis ou reserva senhorial e os
mansos só parece real no caso dos mansos servis, cujo trabalho é
complementado por equipes de escravos (ainda numerosos nas áreas
periféricas, como a fronteira eslava ou a Inglaterra). Na Itália, as
prestações in natura e trabalho são logo substituídas por pagamento
em dinheiro: os tenentes de San Giulia vendiam seda no mercado de
Brescia, no século X, e entregavam ao senhor cinqüenta soldos por
cada dez libras de produto vendido (G. Luzzatto, 1950). Por outro
lado, o sistema parece desabar em face da confusão entre mansos
livres e servis, com a tendência à equiparação das obrigações de
ambos em face da pressão interna causada pelo crescimento da
população e da produção agrícola.
Em suma, o modelo de funcionamento clássico do domínio tem
apresentado sérias dificuldades em face de uma documentação mais
recentemente publicada. Sobretudo a visão de uma economia
fechada ou natural parece estar sendo colocada em dúvida, já que a
publicação de novos documentos mostra a presença marcante do
comércio local e da moeda na vida camponesa durante a Alta Idade
Média. O próprio documento-base do modelo dominial francês, a
Capitulare de Villiset Curtis, já apontava para este fato. O item 28
deste documento estabelece que a cada Quaresma "no domínio do
Ramos cuidem (os camponeses) de acordo com nossas prescrições de
trazer o dinheiro proveniente dos nossos benefícios...”. Ao mesmo
tempo, pode-se constatar, através do convite à compra de melhores
sementes, a existência de um mercado local voltado para as
necessidades de uma comunidade rural. Já o Políptico da Abadia de
Irminon refere-se à distribuição diária de ao menos quatro dinheiros
aos pobres, movimentando um total de mais de mil e quinhentas
peças por ano. Sem dúvida, são sinais da reforma monetária
empreendida pela monarquia franca, no século VIII, e do
renascimento – na verdade retomada – da vida urbana e do comércio
interno entre 750 e 850, na região entre o Sena e o Reno. As listas de
ofícios existentes para os séculos IX e X mostram uma sociedade mais
diferenciada no seu aspecto profissional, menos modelisticamente
polarizada entre camponeses e senhores. Em Saint-Germaindes-Prés,
a lista de trabalhadores considerados necessários engloba as
seguintes profissões: ferreiros, prateiros ou ourives, sapateiros,
curtidores, carpinteiros, fabricantes de escudos, pescadores,
passarinheiros, roupeiros, "gentes que saibam fazer cerveja",
padeiros, "gentes que saibam fabricar redes para a caça, a pesca e a
captura de enxames”...
Parece difícil aceitar o modelo produzido a partir do conceito de
economia natural, como Dopsch, Pirenne e os historiadores
soviéticos, e mesmo o conceito de "consumo agrário direto" proposto
por Slicher Van Bath parece colocar idênticos problemas. Entretanto,
o que chamamos de "regime dominial clássico" - villa, composta pela
casa do senhor com a reserva (indominicata) mais as terras e bens
comunais rodeados pelas tenências, livres ou servis, que deviam
rendas, em dinheiro e/ou em espécie, além das corvéias que
garantiam o cultivo das terras senhoriais (a reserva indominicata) -
deve ser mantido como o melhor modelo para a compreensão da
economia da Alta Idade Média (França Carolíngia).
Reis fracos, senhores fortes num tempo de guerras.
Nos séculos IX e X a economia e a sociedade no ocidente cristão
sofrem profundas modificações. De um lado, dá-se uma
homogeneização da condição jurídica das camadas pobres da
sociedade, com a confusão entre a condição de livre e de escravo, de
colono e de homem (escravo) estabelecido. Tal confusão acabará por
nivelar as obrigações que ambas as categorias deviam aos seus
senhores. Ao mesmo tempo, os camponeses livres, proprietários
alodiais de suas terras, sofreram dura pressão objetivando sua
colocação sob "proteção" de um poderoso. Os próprios direitos que
distinguem o livre (franc) do resto da população acabarão se
tornando um fardo: a obrigação de comparecer aos tribunais e de
acompanhar o senhor nas suas expedições militares são encargos por
demais pesados para quem deve cuidar de suas próprias terras, que
ao somar-se à insegurança produzida pelas invasões húngaras e
normandas explicarão a generalização da condição servil.
Os camponeses preferiam colocar-se sob a proteção de um senhor,
ao qual entregavam seu alódio, recebendo-o de volta como uma
tenência e pagando direitos e serviços, em troca de proteção e
dispensa de uma série de dispendiosas obrigações. Em troca desta
segurança, no mais relativa, o antigo camponês alodial equiparava-se
com o antigo colono e, mesmo, com os homini casati. A desaparição
das diferenças entre livres e não-livres anuncia uma mudança
essencial na sociedade: o aumento do poder dos senhores, às
expensas do Estado.
O antigo Estado romano – o onipresente Império – foi substituído, a
partir do século V, por reinos bárbaros de estruturas diversas e
frouxas em face das instituições políticas romanas. Entretanto, as
próprias necessidades da guerra e da conquista de terras levam ao
fortalecimento dos laços que uniam o chefe do bando armado com
seu próprio povo. A base deste novo Estado é um juramento de
fidelidade pessoal entre o chefe e seus companheiros de guerra (os
comes), o que é um fato novo. Em Roma, a fidelidade era devida ao
Estado e às Instituições, e quando se desvia para o Imperador é
através do culto imperial, ou seja, a divindade que encarna o poder
do Estado. Com os bárbaros, a fidelidade é um problema pessoal, de
homem a homem. Assim, o rei manterá relações de fidelidade com
cada um de seus grandes nobres, procurando reduzir a influência da
aristocracia guerreira, sempre muito influente nos negócios do
"povo". O caminho escolhido pelo rei é a compra da fidelidade
através da doação de terras, que ademais impunha deveres aos que
as recebiam em face de quem as davam. Para os reis bárbaros, o
reino é compreendido como uma posse patrimonial que pode ser
partilhada ou dada em usufruto quando o rei deseja retribuir um
serviço ou doar condições para que um servidor se sustente e
mantenha os serviços de que a realeza necessita.
O mecanismo, desta forma, encerra em si uma profunda contradição:
permite ao rei comprar a fidelidade de seus servidores mas, a longo
prazo, fragmenta o reino. Ao mesmo tempo a nobreza guerreira
mantém uma presença importante nos conselhos que assessoram o
rei, e que representam o povo. Não é o rei que encarna o, povo, pois
esse não é um magistrado. Seu poder provém do fato de ser chefe da
guerra e da conquista. A representação popular fica a cargo do
mallus, conselhos locais que cuidam da administração e da justiça e
que, mais tarde, são reduzidos a funções judiciais e aprisionados por
um senhor que passa a presidi-Ias. Este mallus vai do nível local ao
do Reino. A assembléia geral, que se torna o mallus do palácio, é
presidida pelo chefe guerreiro (judex), inicialmente o rei e, a partir
dos últimos merovíngios, o conde (comes ou maire) do palácio.
Significativamente a extensão da noção de monarquia patrimonial às
finanças impede a existência da noção de erarium, o erário, ou seja,
o tesouro do Estado independente do tesouro do rei, o que
possibilitava – como no caso das terras – a doação pelo rei de uma
fonte fiscal sob a forma de beneficium, visando manter ou retribuir
um servidor.
Também a justiça sofre profundas mutações: o rigor romano na
punição dos crimes (particularmente com Constantino) cede lugar a
uma noção "privada" da lei. Para os germanos não há uma idéia de
que o crime fere o Estado mas, sim, a família da vítima. Assim, o
culpado é obrigado a pagar uma multa (o wergeld) à família da
vítima, sendo que o tribunal deve atuar como intermediário entre as
partes. A existência de um Estado com tais características é
fundamental para a compreensão da vassalagem e do uso do
benefício. Para a monarquia franca, particularmente sob os
merovíngios, a única forma disponível de pagar por um serviço ou de
garantir que um servidor tenha condições de cumprir com suas
obrigações foi através da doação de um benefício (beneficium,
henner), a um ponto tal que alguns autores (J. Calmette, 1947)
afirmam que a base do regime feudal é a concessão do benefício.
Mas, o que era o benefício? Na verdade, tudo poderia ser
transformado em benefício, desde uma terra até um imposto devido
ao rei, e que este cedia a um terceiro. O benefício deveria garantir a
manutenção do servidor do rei, num momento em que cargos e
serviços não podiam ser remunerados com salários. Assim, o rei
usando suas prerrogativas patrimoniais cedia um fisc (ou feudo) que
possibilitasse ao beneficiado cumprir com certas obrigações
(militares, administrativas, judiciais ou de qualquer outro tipo). Tal
prática foi continuada pelos carolíngios, embora alguns deles tenham
se esforçado para manter sob seu controle os mecanismos de
autoridade. As invasões dos séculos IX e X, porém, acabam por
pulverizar os últimos esforços nesse sentido. Ao doar um benefício, o
rei normalmente cedia com as terras os seus direitos sobre a
população local, de forma tal que o beneficiado substituía o rei em
seu domínio. O risco de autonomização dos diversos domínios era
teoricamente evitado com o juramento de vassalidade, ou seja, o
devotamento pessoal, contrato entre doador e receptor de um
benefício. Tal juramento fazia do beneficiado um homem do seu
senhor, para com quem doravante teria obrigações estipuladas
contratualmente. A quebra da lealdade devida (felonia) implicava,
automaticamente, a perda do benefício recebido. Este liame
pessoal, prática germânica que unia o chefe da guerra aos seus
guerreiros, passa a ser intimamente associado à doação de um
benefício, como garantia de lealdade.
A união entre benefício e vassalidade é considerada, pela maioria
dos historiadores, como início da época feudal. Os carolíngios vão
incentivar a doação de benefícios em plena posse mediante a
vassalagem, o que implicava o juramento de fidelidade, permitindo
que seus "fiéis" possam por sua vez fazer doações, multiplicando,
assim, a "espessura" da hierarquia feudal. Este desejo, nítido a partir
de Carlos Martel (prefeito ou judex do mallus de 715 a 741), tem
uma finalidade básica: aumentar o número de vassalos que deveriam
comparecer à guerra com seus vassalos (os chamados "vavassalos"),
ou seja, o número de vassalos pertencentes à categoria dos miles
(cavaleiros), pequena elite constituída de ginetes (nem todos os
nobilis, senhores com um benefício ou feudo, eram cavaleiros,
miles). Sob outro aspecto, o desejo do soberano, ou dos seus
prefeitos, vai de encontro ao dos senhores: a eles interessa a
vassalagem, pois, como pagamento dos serviços prestados, o
soberano entrega-lhes terras em benefício.
Havia duas formas básicas de o soberano conseguir os serviços de que
necessitava, ou ainda recompensar as pessoas de sua confiança:
mantê-los no seu palácio, sustentando-os, ou doar benefícios, com o
que eles se sustentariam (no início poderia ser dinheiro, rendas ou
terras). Logo formar-se-á uma distinção entre estas duas formas: os
primeiros vão ser considerados vassus pobres, portanto, inferiores
aos segundos, principalmente quando estes recebem terras como
benefício. A doação de benefícios (a expressão será substituída por
fief ou feudum por volta de 1080 em Francia, enquanto na Alemanha
continuará a vigorar a expressão beneficium aos poucos substituída
por Lahen), como forma de pagamento e manutenção dos laços de
fidelidade, vai ser grandemente incentivada pelos carolíngios, que
procuram utilizá-la como forma instantânea de ação, sem se
aperceberem de suas prováveis conseqüências.
A união entre benefício e vassalagem progride rapidamente com os
carolíngios (714-987), particularmente sob Pepino I (741-768), em
face das crescentes necessidades militares e políticas (a unificação
dos francos). Marc Bloch identifica este momento como sendo
fundamental para o estabelecimento da sociedade feudal: agora
temos a conjugação da grande propriedade, com uma elite militar e
o trabalho compulsório por parte dos camponeses. É interessante
notar que se esta união favorece, de imediato, a ação dos
carolíngios, a partir de um rei menos enérgico ela dará origem a
inúmeros problemas de autoridade: o surgimento de uma vassalagem
ampla e a difícil distinção de quem é senhor lígio (de lidig,
principal), ou ainda o abandono da vassalidade real pela de um nobre
mais rico em terras. Por outro lado, a identificação entre vassalidade
e benefício é tão forte que os nobres obedecem o soberano porque
são seus vassalos beneficiados e não por serem seus súditos.
por TEIXEIRA, F. C. Sociedade Feudal. São Paulo: Brasiliense, 1984.
Comentário sobre o texto, por Mayte Vieira
Neste texto o autor busca de uma forma simples e concisa expor as
origens das relações de trabalho e da sociedade feudal. Com base na
discussão de vários historiadores, com pontos de vista nem sempre
concordantes, traça as modificações destas relações e seu impacto
desde a desagregação do império romano até o império carolíngio.
Sua análise contradiz algumas idéias como a do fim do escravismo
com o fim do império romano. Na verdade, a relação entre senhor e
escravo apenas foi alterada, de escravo, visto como propriedade e
totalmente sustentado pelo senhor, passou a servo com obrigações
de busca de sustento próprio, ao mesmo tempo produzindo o
sustento do senhor em sua propriedade. Estas alterações
influenciaram também as relações com o camponês livre, que para
fugir do peso dos impostos passou a trabalhar também como servo
nas grandes propriedades.
A origem dos feudos foi baseada na junção das culturas romana e
germânica, os romanos contribuíram com suas noções de colonato e
latifúndio, enquanto os germanos com suas noções de propriedade e
fidelidade pessoal a um rei ou general. Assim estabeleceu-se o
feudo: colonos agricultores com fidelidade ao senhor proprietário
das terras então arrendadas.
Nesta nova forma de relação, o senhor beneficia com a terra
enquanto o colono fornece seu trabalho. No final tem-se a sociedade
feudal: a grande propriedade com sua elite militar e o trabalho
compulsório do camponês.
Prólogo a respeito de dois conceitos muito antigos: Império universal e decadência do Estado
Naturalmente a ruína do mundo antigo não é um fato isolado na
história: em outras ocasiões o espírito do homem se viu às voltas com
vicissitudes crepusculares - lentos desgastes de organismos estatais
ou destruições violentas. A história do Oriente antiqüíssimo pode nos
oferecer o confronto mais característico. Enquanto a crise do mundo
antigo entre os séculos V e VII d.C. levou, sobretudo no Ocidente, da
unidade imperial romana à fragmentação, uma evolução de certo
modo oposta levara - três milênios antes, e numa região de enorme
importância para a história da civilização humana (a baixa
Mesopotâmia) - da pluralidade feudal dos Estados sumérios à
monarquia universal do Estado semítico de Akkad. Em outras
palavras: da mesma forma que entre os séculos V e VII d. C. uma
parte considerável do Estado supranacional romano se dissolveu, por
volta de 2500-2300 a.c. as numerosas cidades sumérias, que nunca
tinham concebido a idéia de um império universal, entraram numa
sofrida agonia devido exatamente a essa sua incapacidade.
Acontecimentos extremamente longínquos no tempo, diferentes e
até mesmo opostos em termos de estrutura, e ainda assim
semelhantes, uma vez que em ambos os organismos novos brotavam
sobre um terreno revolto e as antigas estruturas cediam sob o peso
de sua própria antigüidade. Ninguém podia assistir sem um mínimo
de emoção ao grande ocaso que ocorreu nesses dois episódios e
ainda em outros comparáveis a eles: a vida dos contemporâneos,
quase rompida ao meio, movia-se agitada entre o velho e o novo. Por
isso, diante do fato altamente dramático que arranca os demónios do
passado à antiga veneração, a humanidade sempre se perguntou com
ansiedade se por acaso seria possível afastar a dura prova. Aqui está
a gênese do conceito de decadência, que em certo sentido coincide
com o de culpa coletiva, de "grande pecado". Entretanto no caso do
fim do mundo antigo há mais: não apenas os contemporâneos, como
também os pósteros consideraram tal crise algo exemplar e
paradigmático: uma advertência que trazia consigo a chave para a
interpretação de toda a nossa história. Por isso mesmo pode ser
interessante o confronto, ao qual já nos referimos, com a crise dos
Estados sumérios, quase três mil anos antes.
A passagem dos pequenos e decadentes Estados teocráticos dos
sumérios para o grande Estado universal de Akkad por volta de 2500-
2300 a. C. foi marcada pelos esforços dos sumérios de Uma, que,
comandados por Lugal-zage-si e prestes a desaparecer, tentaram
instaurar aquele Estado universal que apenas os semitas de Akkad em
breve criariam. Um grande contemporâneo, Urukagina, governador
da cidade suméria de Lagash, acreditara combater a decadência de
seu Estado com reformas que ao mesmo tempo constituíam um
retorno às instituições sumérias originárias; e condenara com um
protesto vigoroso a tentativa "universalista" dos sumérios de Uma.
Assim, a interpretação de Urukagina para a crise que abalava de alto
a baixo o velho mundo sumério, criador de elevadíssimos valores cul-
turais e artísticos, prendia-se ao passado. Ele julgava encontrar as
causas de tal ocaso na avidez da classe dirigente, em especial dos
sacerdotes; vangloriava-se por acabar com as injustiças, adotando de
novo a ordem antiga e obrigando os sacerdotes a renunciar a seus
bens para devolvê-los ao deus Ningirsu (ou seja, no fundo, ao
Estado).
Fiel a seu deus Ningirsu, Urukagina denunciava as violências e as
ambições dos homens de Uma. No entanto a idéia do império
universal que os sumérios de Uma não puderam realizar foi mais
tarde a grande idéia que ao longo de milênios o Oriente ântero-
asiático realizou em diversas formas: do Estado de Akkad (pouco
depois de Urukagina) aos impérios da Assíria e da Babilónia e, por
fim, ao grande império persa destruído por Alexandre Magno em 334-
327 a.C. A partir de Alexandre Magno ela foi transmitida ao
Ocidente.
O império romano também se baseava nessa idéia. Depois de suas
grandes conquistas mediterrâneas, conciliou a antiga idéia de
cidade-estado com a outra - tão antiga quanto o Estado de Akkad -,
do império universal acima da cidadeestado e das "nações" que vivem
no império. Da Europa à Ásia e à África, o novo Estado renovou a vida
nas cidades antigas; novas cidades surgiram, sobretudo na Europa e
na África; o império se sobrepôs às nationes, como no Oriente os
grandes Estados universais (em especial o aquemênida) haviam se
sobreposto às diversas "línguas" dos povos acima mencionados. No
ódio ou no amor, Roma dominou as consciências. De maneira que a
crise do mundo sumério sob Urukagina apresenta-se à memória dos
homens como um episódio, "redescoberto" há cerca de cinqüenta
anos; enquanto a crise da unidade romana sempre apareceu como a
chave para entender a história do mundo, quando as antigas formas
começam a ser substituídas pelas novas. E, na verdade, com a
consideração da crise do mundo antigo (e mais exatamente do
mundo romano), o conceito de decadência atinge um conteúdo ideal
eterno.
Há nele o drama das "nações" que, através de dificuldades e
convulsões, começam a mover-se - a revelar-se, às vezes - por entre
a estrutura do grande império que desmorona; e o aparecimento de
novos povos na grande cena do mundo clássico; a passagem de uma
administração centralizada e burocrática, à qual corresponde uma
economia monetária, para uma economia que no Ocidente antecede
o feudalismo e no Oriente procura conciliar serviço militar e trabalho
nos campos; a lenta atrofia de uma agricultura que procurou
alcançar o equilíbrio entre o trabalho servil e o dos colonos ligados à
gleba. Ao mesmo tempo, o triunfo da cidade cristã de Deus, segundo
a ideologia agostiniana. Há, em suma, a morte do mundo clássico:
uma morte acompanhada pelo declínio de valores e das formas so-
ciais em seu interior, pelo aparecimento de germanos, eslavos e
árabes fora de suas fronteiras.
A crise do império romano tem ainda duas outras características,
estreitamente relacionadas. A primeira pode ser formulada da
seguinte maneira: em certo sentido, precedeu o fim do mundo antigo
a grande crise que desde a Guerra do Peloponeso (e depois ainda
mais no século IV a.C.) atormentou o mundo grego e que desde o
início foi percebida pelo maior historiador de todos os tempos:
Tucídides. A segunda é quase um corolário da primeira: a crise do
poderio romano foi temida e, dir-se-ia, diagnosticada desde o século
II a.C., ou seja, desde os tempos das grandes conquistas
mediterrâneas. No estágio atual de nossos conhecimentos podemos
dizer que o conceito de decadência se difundiu na Itália como
decorrência da crise agrária que se seguiu a tais conquistas. Marcas e
conseqüências da crise, entre o século II a.C. e os primeiros decênios
do século seguinte: a proletarização dos camponeses romanos; a con-
tração das terras cultivadas por pequenos proprietários[1]; a
presença de mão-de-obra "importada e bárbara" em regiões agrícolas
como a Etrúria[2]; a nova legislação agrária e a relativa aspiração de
camponeses itálicos à cidadania romana.
O antigo ideal etrusco dos "séculos" - cada um com aproximadamente
o tempo de vida de um homem, ou melhor, um pouco mais -
forneceu um esquema à consciência de um crepúsculo de certos
valores tradicionais. Já por volta de 100 a.C. (de acordo com alguns
estudiosos, até mesmo 200 a.C.) foi escrita na Etrúria uma página
dos livros "Vegóicos", sobre a qual pesa a previsão de uma
decadência culpada:
Quando se atribuiu a terra da Etrúria, Júpiter quis que campos e
terrenos fossem delimitados por marcos de fronteira ... No entanto,
[
[
devido à avidez do oitavo século, prestes a começar e último[3], os
homens, com aflita culpa, violarão aquelas pedras, tocando-as e
removendo-as. Porém quem as tocar e ampliar o próprio terreno e
diminuir o do outro será punido pelos deuses. Se isso ocorrer por
culpa dos servos, eles terão amos mais severos. Se for por culpa dos
amos, a estirpe do culpado será destruída, toda a sua gente morrerá,
vítima de males e feridas, debilitada em seus membros. Tempes-
tades e turbilhões arruinarão a terra; seus produtos serão atingidos
por chuva e granizo, esgotados pela canícula, destruídos pela ferru-
gem. E [haverá] muitas dissensões no meio do povo. Saibam que isso
ocorrerá caso tais delitos venham a ser cometidos.
Assim esse texto etrusco, que chegou até nós através da tradução
para um latim popular, dava por volta do ano 100 a.C. uma voz
sagrada - a da "ninfa" Vegóia - ao conceito do ocaso da "nação"
etrusca; os etruscos acreditavam que à sua nação (ou, como
costumavam dizer, ao seu "nome") estivessem destinados "ao todo
oito séculos" (yÉvYn, na formulação grega de Plutarco); e o texto
vegóico declarava que o último dos oito séculos, já próximo, teria
encerrado a história etrusca em meio à ruína da agricultura, por
culpa dos "delitos" de amos ou de servos (os "servos" etruscos tinham
juridicamente o direito de posse).
O conceito de uma decadência da terra cujos produtos já não dão
rendimento era difundido, mesmo que com um sentido diferente,
também em outras regiões da Itália. Lucrécio, contemporâneo de
Cícero, apresenta-nos o camponês de sua época atormentado pela
surda resistência que a terra opõe. No entanto a lamentação do
camponês torna-se em Lucrécio uma amarga constatação da
decadência como fato materialisticamente determinado:
Eis que já nosso tempo decaiu (fracta est aetas). A terra, cansada, a
muito custo cria pequenos animais - ela que criou todas as gerações
humanas e deu à luz gigantescos corpos de feras. - Além disso, há
[
tempos ela mesma espontaneamente criou para os mortais as
douradas colheitas e as frondosas videiras; deu doces frutos e pastos
verdes; e agora estes crescem a muito custo, com nosso esforço.
Utilizamos bois e camponeses e arado; mas os campos mal e mal nos
compensam, a tal ponto são avaros e exigem trabalho. E já,
sacudindo a cabeça, o velho lavrador suspira com freqüência;
lamenta seu vão trabalho e compara o tempo de hoje com os tempos
que passaram; muitas vezes louva a sorte de seu pai. Triste, o
plantador de uma videira envelhecida e lânguida acusa a ação do
tempo e culpa nossa época; protesta que os homens de antes, cheios
de piedade, encontravam vida fácil em pequenos campos, embora
fosse bem menor seu pedaço de terra. Com suas lamentações, não
percebe que todas as coisas apodrecem lentamente, caminhando
para a sepultura, desgastadas pelo longo caminho do tempo spatio
aetatis defessa vetusto).[4]
Não que Lucrécio negue o progresso (a experientia mentis
pedetemptim progredientis, como costumava dizer: "experiência do
espírito em marcha rumo ao progresso"); mas para ele a decadência
é um fato da natureza, que diz respeito à natureza, e não à "mente"
dos homens. O vir-a-ser leva ao que os homens chamam de morte:
trata-se de um velho conceito de Empédocles, talvez mesmo de
Leucipo (outro filósofo grego do século V), que no epicurista Lucrécio
se reveste de sofrida amargura.
Porém os fatos humanos sempre procuram uma medida humana: o
conceito de decadência não pode reduzir-se apenas ao esgotamento
do solo. O próprio Lucrécio não dizia que os homens, impulsionados
pelo falso terror da morte, derramam nas guerras civis o sangue
fraterno? E que odeiam e receiam até mesmo a mesa dos
consangüíneos? Sua época parecia-lhe dominada "pelo amor à riqueza
e pelo cego desejo de honras, que induzem os míseros mortais a
transgredir os limites do direito e muitas vezes a tornar-se cúmplices
e ministros de culpas, procurando noite e dia galgar, à custa de
[
enormes sacrifícios, os cumes do poder". Acompanhava seu
determinismo naturalístico a consciência de viver" em tempos
infelizes para Roma", patriae tempore iniquo. Esse drama humano
que o epicurista Lucrécio reduzia ao falso terror da morte era
também um drama histórico, uma conseqüência das grandes
conquistas mediterrâneas e, aos olhos dos contemporâneos, o
anúncio de uma decadência já não cósmica (como a crise da
agricultura, segundo Lucrécio), e sim política e humana.
Dentre os contemporâneos de Lucrécio, Cícero também dava essa
explicação política e humana; contudo, um século antes uma atenta
consideração do drama agitara a consciência de pensadores e
políticos no âmbito do círculo dos Cipiões. Aqui também vemos uma
característica do problema "decadência de Roma": séculos e séculos
antes de sua queda, o imperium supranacional dos romanos era
objeto de ansiedade por parte dos homens que contribuíram para sua
definitiva afirmação. Já no século II a.C. Comélio Cipião Nasica
Corculum, o cônsul do ano 155 a.C., ficou famoso por sua tese
anticatoniana, segundo a qual era preciso deixar Cartago de pé, pois
a existência desta última se fazia necessária para evitar a
decadência do Estado romano. Porém, o próprio conquistador de
Cartago, Comélio Cipião Emiliano, teve o obscuro pressentimento da
morte, próxima ou longínqua, de Roma. Na época, 146 a.C., Políbio,
o grande historiador do círculo dos Cipiões, encontrava-se perto dele
e captou o instante de tristeza do comandante. "Tomou-me a mão
direita", conta ele, "e me disse: 'Políbio, sim, isto é lindo;
entretanto, não sei como, receio e pressinto que outro venha a dar a
nossa pátria a mesma notícia' (que agora é dada a Cartago)." Nascido
na Grécia, Políbio não tinha Roma por pátria; na verdade, porém,
apaixonara-se pela cidade dominadora com a intensa alegria de
quem está consciente de assistir a um momento admirável e
grandioso. Com esse estado de espírito, ele, historiador
"pragmático", analisou as causas da futura "ruína" de Roma.[5]
[
É até por demais evidente que sobre todas as coisas pairam ruína
(rprJopa) e mudança: a necessidade natural basta para nos dar tal
convicção. Duas são as formas pelas quais cada tipo de Estado cos-
tuma perecer: uma é a ruína que vem de fora; a outra, ao contrário,
é a crise interna (ev aUToí\-); difícil de prever a primeira, deter-
minada a partir de dentro a segunda ... De fato, quando uma co-
munidade superou muitos e graves perigos e chegou a um poderio e a
um domínio indiscutíveis, fatos novos ocorrem: a felicidade nela
instala sua sede, a vida volta-se para o luxo, os homens almejam
alcançar as magistraturas e as demais distinções. Seguindo-se nesta
direção, a aspiração às magistraturas ou o protesto dos que se vêem
repelidos originará a decadência (Ti'i, E7l'l Tà XEZpOV JLETCl'-
(3011..0,); a soberba e o luxo farão o resto. As massas populares da-
rão seu nome à crise: sentir-se-ão ofendidas pelos que querem acu-
mular riquezas; outros, cobiçando magistraturas, as insuflarão e
adularão demagogicamente. Sobrevirá então a rebelião das massas;
excitadas, cheias de esperanças, não mais quererão obedecer, nem
permanecer nos limites do direito fixado pelos grandes; haverão de
querer todo o poder ou o máximo de poder. Depois a constituição
terá o nome mais belo que existe: democracia e liberdade; e na
verdade será a pior possível, o domínio da massa (bxÀOKpaTía).
Assim, o historiador tinha como certa a futura cprJop& do Estado
romano e considerava suas causas claramente previsíveis no tocante
aos conflitos de classe internos. Com relação às "causas externas"
("as migrações dos povos", cinco a seis séculos depois), não ousava
fazer previsões abertamente, ainda que tivesse muito a dizer sobre
isso. Não limitava seu olhar a Roma: a potência do imperium de Ro-
ma e, ademais, o fim previsível encaixavam-se em sua visão dos
Estados de alta cultura do Oriente: tanto dos que haviam
desaparecido muito tempo antes, como dos que em sua época caíam
sob os golpes de longínquos povos bárbaros. Políbio dizia que o
império dos romanos era infinitamente superior a todos os antigos
impérios universais:
O império dos persas foi um tempo grandioso... ; durante doze anos
(os espartanos) com muito esforço mantiveram a hegemonia sobre os
gregos... ; vencidos os persas, os macedônios acrescentaram a seu
domínio o império da Ásia; ainda assim, apesar de parecerem donos
de imensas regiões e de grande poderio, todos eles deixaram a maior
parte do mundo fora de seus domínios. Mas tal não fizeram os ro-
manos: não submeteram apenas algumas partes do mundo, e sim o
mundo quase inteiro; e deixaram seu império invencível para os que
vivem em nossos dias, insuperável para os que virão.
Políbio conhecia muito bem os Estados que a expansão da Macedônia
criara na Asia; era amigo pessoal do rei selêucida Demétrio I. Esse
decadente Estado selêucida, que já se estendera da Síria até o Irã
oriental, poderia ter sugerido à sua inteligência uma confusa imagem
do que na realidade foi a grande crise do mundo antigo:
desmembrara-se pedaço por pedaço; dele se separara o Estado grego
de Bactriana, consolidado em 206 a.C. sob o rei Eutidemo; por fim,
em 130 a.C. os povos cavaleiros nômades, provenientes da Ásia
central, aterrorizaram e "barbarizaram" a Bactriana grega, posto
avançado nevrálgico do mundo helenístico. "Barbarizado": Políbio
usava o termo. Ele refletia a respeito desses novos acontecimentos
do ano 130 a.C., que atingiram um mundo espacialmente muito
afastado do império romano, mas que, como este, expressava a
cultura clássica antiga. As invasões dos bárbaros no mundo antigo
anunciavam-se, assim, no Irã oriental, seis séculos antes da formação
dos reinos romano-bárbaros no Ocidente. Políbio compreendeu, pelo
menos em parte, a terrível lição; e numa passagem atormentada e
significativa[6] colocou na boca de Eutidemo - o criador da potência
bactriana - uma ponderada previsão da "migração de povos" novos
Estados de alta cultura.
A mim, Eutidemo, cabe o título e a dignidade de rei (independente
[
do Estado selêucida). Se Antíoco não está de acordo, nem eu, nem
ele estamos seguros do poder. [Vale dizer: a barbarização ameaça
tanto meu Estado como o dele.] De fato, não há poucas multidões de
nômades, e ambos - Antíoco e eu - corremos sério risco com sua
irrupção: se tivermos de enfrentar seu ímpeto, o país com certeza
será barbarizado. Isto disse Eutidemo... E Antíoco (III, o Grande)
compreendeu a importância dos argumentos acima mencionados e se
dobrou à proposta de Eutidemo.
Podemos a esta altura resumir. Nas Histórias de Políbio já se
encontram os dois motivos que até nossos dias sempre predominaram
na interpretação do fim do mundo antigo: de um lado, a explicação
"interna", que Políbio já aplica à estrutura constitucional do império
romano, deduzindo sua futura ruína da impossibilidade de superar os
conflitos de classe; de outro, a explicação "externa", que Políbio
aplica à "barbarização" do Estado greco-bactriano, em que uma
grande estrutura de cultura clássica, misturada à cultura iraniana,
foi submergida por uma onda de nômades iranianos, estes
impulsionados por uma vaga de hunos, encerrados em sua
cavaleiresca armadura de ferro, atraídos para o Estado bactriano
como ocorreu mais tarde (cinco a seis séculos depois) com os godos
em relação ao império de Roma.
Entre as duas interpretações opostas da crise antiga - interpretação
"interna" e interpretação "externa" - evolui no pensamento de Políbio
a reflexão sobre a grandeza e a decadência de Roma. A época
posterior à de Políbio abordou das mais variadas maneiras o tema da
decadência. "interna"; o texto vegóico - já o vimos - com tons de
comoção religiosa, relativos à Etrúria, e não a Roma; na verdade, as
condições agrícolas da Itália eram então bem diversas nas diversas
regiões (por exemplo, entre os etruscos predominava o latifúndio,
entre os mársios a pequena propriedade; e assim os primeiros foram
hostis, enquanto os segundos se mostraram favoráveis a Lívio
Druso).[7] No entanto as guerras civis e a guerra de Espártaco
revelaram a crise agrícola da Itália; Lucrécio, apesar de sua tese de
[
que a decadência era um fato natural, devido ao cansaço da terra,
não esqueceu o aspecto humano e os grandes problemas que
agitavam a vida de Roma em decorrência das conquistas. Por isso é
que ele, epicurista, não falava em "decadência", mas em "terror falso
da morte". Diferentemente de Políbio, a ênfase de Lucrécio não recai
mais sobre a rebelião das massas; o "terror da morte" atua no foro
interior das ambições insatisfeitas.
Em Cícero o conceito da decadência de Roma assume um duplo
aspecto: é decadência de costumes e falta de homens realmente
grandes (virorum penuria). "Antes de nosso tempo o costume pátrio
permitia o aparecimento de personalidades insignes, e o costume
antigo e as instituições tradicionais eram conservados por
personalidades eminentes. Em nossa época, ao contrário, o Estado é
como uma pintura excelente, só que evanescente devido à idade; e
não houve interesse nem em devolver-lhe as cores de antigamente,
nem em conservar ao menos sua forma e suas linhas externas."[8] Até
o "anticiceroniano Salústio, em suas tímidas análises,[9] volta-se para
a consideração das classes dirigentes que sonham com riqueza e
magistraturas; para ele a decadência está ligada ao desaparecimento
da virtus (um motivo que voltará a aparecer em Maquiavel). Assim,
em Salústio a crise dos costumes e o advento da luxuria têm uma
evidente conseqüência política; como mais tarde em outro
historiador, Veleio, situam-se, grosso modo, em 146 a.C. Esta era, de
resto, a doutrina de Posidônio (já Calpúrnio Pisão datava em 154 a.C.
o início da decadência moral; posteriormente Lívio afirmará que ela
remonta ao ano de 188 a.C.), acompanhada, em Salústio, de uma
participação apaixonada que mais se parece com uma polêmica. Foi
nessa época que se utilizou pela primeira vez no mundo romano a
palavra "declínio" no sentido de "declínio do Estado": inclinata res
publica é fórmula de Cícero e de Salústio. E a visão salustiana da
decadência tem um fundo de tristeza geral: a fórmula "tudo que
nasce tem um fim" (omnia orta intereunt) aparece duas vezes nesse
historiador. De resto, em seu pressentimento do fim de Roma há
[
[
muito menos resignação do que em Políbio. Ele não renuncia à
esperança; muito pelo contrário. Escreve a César:
Este é meu pensamento. Como o que nasceu morre, quando a fa-
talidade se abater sobre a cidade de Roma, os cidadãos entrarão em
conflito com os cidadãos; e só então, cansados e esgotados, cairão
nas mãos de algum rei ou de alguma nação. De outra forma, nem o
mundo inteiro, nem todos os povos juntos poderão romper ou
danificar este império de Roma. É preciso, portanto, consolidar os
bens da concórdia, destruir os males da discórdia.
A hipótese segundo a qual o fim do mundo antigo se deva somente às
guerras civis afasta, de certa maneira, o grande medo: um homem
superior poderá trazer de volta a concórdia. É bem verdade que o
reinício das guerras civis depois da morte de César reinstalou o
desespero em muitos meios: no epodo XVI, Horácio fala - e aqui
usamos termos polibianos - em "ruína interna" (suis et ipsa Roma
viribus ruit) e "ruína externa" (barbarus heu cineres insistet victor et
urbem eques sonante verberabit ungula). Entretanto a esperança no
homem que iria colocar um ponto final nas guerras civis desfazia as
ansiedades de muitos; fora a esperança de Salústio. (Um historiador
italiano, Aldo Ferrabino, disse por isso que "Roma, aquela Roma que
Salústio contempla, não tem seu fim na decadência".)
A perspectiva de um fim necessário ficou afastada até mesmo no
plano religioso. Com relação à Etrúria foram abandonadas as antigas
profecias que consideravam o oitavo saeculum como o último e
estabeleciam seu início em 88 a.C.; o arúspice Volcácio acrescentou
o século nono e o décimo, corrigindo todo o tradicional cálculo
etrusco dos saecula. No entanto, sobretudo para Roma, o otimismo
dos augúrios teve um significado profundo. A fé na vida triunfou
sobre ogrande medo da morte iminente. Na época de Varrão, um
certo Vétio chamara a atenção para o significado augural dos doze
abutres vistos por Rômulo: uma vez que - disse ele - na época Roma
tinha atravessado os primeiros 120 anos de sua fundação, lhe
estavam destinados não mais doze dezenas de anos, e sim doze
séculos, 1200 anos; para esse profeta amigo de Varrão a morte de
Roma situava-se mais ou menos ( diríamos nós) na época de Átila.
A astrologia sugeriu ainda outras especulações. Ao conceito de uma
"decadência" mais ou menos necessária e preestabelecida sobrepôs-
se o da "nova fundação" de Roma em ciclos fixos: com a introdução
do calendário cesariano de 365 dias, pensou-se em grandes ciclos de
365 anos, depois dos quais as comunidades encontram a morte ou a
renovação. Concluiu-se, portanto, que, assim como no 365ª ano de
sua fundação Roma havia "ultrapassado" o prazo de morte (o incêncio
gálico) graças à intervenção de Camilo, novo Rômulo, assim também
no final do novo ciclo de 365 anos a partir de Camilo encontrava em
Augusto - honrado com o poder tribunício no ano de 23 a.C. - seu
"novo Rômulo" .[10]
De fato, César e seu "filho" Augusto superaram o período das guerras
civis; depois deles, graças ao estabelecimento do Estado de Augusto
em 27 e em 23 a.C., o problema polibiano da decadência de Roma
colocava-se em termos diferentes. O império romano viverá ainda
cinco séculos no Ocidente (em algumas partes do próprio Ocidente,
mais sete, oito, até mesmo dez séculos, tendo continuado em sua
forma "romã" ou bizantina); no Oriente, como império "bizantino",
terá sua grande crise no século VII e, amputado em regiões vitais,
continuará até o império latino de 1204 e, mais tarde, depois do
parêntese latino, até 1453. Uma perspectiva que se prolonga
amplamente no tempo. Ainda assim o problema de Políbio continuará
a ser colocado desde os primeiros séculos do império fundado por
Augusto; ou seja, colocar-se-á o problema da morte de Roma antes
mesmo que Roma de fato pereça.
A esta altura as categorias ideais do problema já estão deslocadas no
espaço e no tempo. No espaço, porque Roma não mais se encontra
[
no centro da cidade antiga ou da própria Itália; pontilhou suas
províncias de colônias; e a partir de Trajano (98-117) poderá haver
imperadores romanos que não nasceram na Itália; desde o ano de
212 todas as pessoas livres das províncias, excetuando-se os
dediticii,[11] obtiveram a cidadania italiana. No tempo, porque a
esta altura o problema da "rebelião das massas", colocado por Po-
líbio, não pode ser apenas o das massas proletárias de Roma, nas
quais pensava o historiador, ou da Itália; é o problema das massas
camponesas sírias, ilírias, celtas, africanas, egípcias - enfim, das
"nações", 'f.l3WIJ, que vivem nas províncias do imenso império
romano. Não mais, como na época das guerras civis, a crise da classe
dominante se acrescentava à insatisfação do proletariado romano ou
italiano; no fim do mundo antigo, o império universal romano deverá
analisar o problema das massas fanáticas na África donatista, na Síria
nestoriana, no Egito monofisita; acrescente-se a isso a hostilidade
dos camponeses celtas e panânios ainda não de todo romanizados,
presos à terra por um vínculo extremamente forte. Problema,
portanto, das nações. E havia, além disso, o problema da ameaça de
"barbarização", que Políbio assinalara na longínqua Bactriana. Com o
passar dos tempos ele agora amadurecia para a própria Roma:
problema das "causas externas" de decadência, como teria dito o
próprio Políbio.
O pressentimento de um fim "cientificamente" previsível, da forma
como se encontra em Políbio (ou entendido em termos éticos, como
em Cícero e Salústio), estabelecia, já na cultura da Roma
republicana, uma estreita correlação entre o conceito da decadência
e o da previsibilidade dos fatos históricos. Por esse motivo, a
"profecia" polibiana tornou-se atual por excelência em outra época,
na qual se acreditou ser possivel prever o curso fatal da história: a
época do romantismo. Há um século, em 1858, surgiu um livro de
Lasaulx, A força profética humana nos poetas e nos pensadores, obra
romântica do início ao fim. Hoje em dia esse livro caiu em justo
esquecimento, porém na época teve considerável sucesso, pois a
tese que sustentava a da "previsibilidade da história" - contava ao
[
mesmo tempo com aguerridos defensores e com adversários combati-
vos, destacando-se entre os últimos Gervinus. Claro que Políbio era o
grande trunfo da argumentação de Lasaulx: se o historiador do
período republicano conseguira "prever" a crise do Estado romano,
todas as demais "profecias", por exemplo a de Nicola Cusano a
respeito da revolução contra os príncipes alemães, ou a de Leibniz a
respeito da grande revolução "gerada pela crítica", adquiriram
cidadania na história do espírito. Mas no fundo das hipóteses
românticas sobre a "previsibilidade" da história estava sobretudo a
teoria hegeliana dos tempos de realização e da velhice pacificadora.
Assim, com toda a certeza, o Políbio dos românticos estava muito
longe do autêntico Políbio, que preferia os fatos aos esquemas;
entretanto a época polibiana e salustiana tem em comum com o
preocupado romantismo de cem anos atrás a inquietante percepção
de uma conexão entre o conceito de decadência e a previsibilidade
da história.
Sob este aspecto Políbio está para a crise da república romana como
Burckhardt e Nietzsche estão para a crise de nosso tempo. Em ambos
os casos trata-se de homens que julgam viver numa época madura (a
fundação do máximo império do mundo, para Políbio; a cultura do
século XIX, para Burckhardt e Nietzsche), mas acreditam também
vislumbrar densas sombras nos acontecimentos futuros. Iludem-se ao
julgar que seu pessimismo tem justificativa "científica"; na verdade
forçam os fatos a caber no leito de Procusto de algumas premissas.
Já o mito da progressiva decadência, tal como se exprime (nos
albores da civilização clássica) na doutrina de Hesíodo do progressivo
afastamento da idade do ouro, tem uma origem religiosa inconfundí-
vel: é o conceito do "eterno retorno", que Mircea Eliade estudou num
livro famoso. Um ponto de vista análogo, formulado de maneira
cíclica, leva-nos ao conceito dos saecula que nascem e morrem;
como vimos, ele deu lugar, na Itália antiga, à doutrina "vegóica" que
colocava o fim da nação etrusca no oitavo saeculum e a interpretava
como um castigo do deus Tinia ("Júpiter"). Diante do empenho
histórico, o homem ainda tem outra atitude possível: julgar que a
decadência pode ser superada através de uma retomada das
organizações antigas; é - como mencionamos - a fórmula de
Urukagina, já no terceiro milênio a.C.; pode-se compará-la à
doutrina de Salústio segundo a qual "é preciso consolidar os bens da
concórdia" para afastar a morte de Roma; mesmo o conceiro da "nova
fundação" por mão de Camilo e de Augusto encaixa-se neste quadro.
A interpretação naturalística de Lucrécio, segundo o qual a deca-
dência se resolve no cansaço da terra, desloca o problema para um
plano biológico-cósmico; ao contrário, a imagem ciceroniana do
decadente Estado romano como de uma pintura envelhecida e
evanescente traz à mente a idéia de velhice num plano ético-
político. Cícero insiste na virorum penuria. No mundo antigo, como
no moderno, o conceito de decadência evolui entre perspectivas
muito diversas.
Notas[1] Recentemente Tibiletti, in "Atti del X Congresso lnternazionale di
Scienze Storiche", Rel. II (1955), 235 ss.; Kousitchin, in "Vestnik
drevnej istorii", 1957, l, 64 ss.[2] S. Mazzarino, "Historia', 1957, pp. 110 ss[3] Sobre esta tradução, in "Historia", 1957, cit., p. 112.[4] Lucrécio II, vv. 1150 ss.[5] 5. Cf. recentemente Mioni, Polibio (1949), pp. 49 ss.; Ryffel,
Mtm(3oÀ~ 7roÀLTELWV (1949),180 ss; Ziegler, R. E., XXI, 2 (1952),
1495 ss.; Sasso, in "Rivista storica italiana", 1958, 333 ss.[6] Políbio XI, 34.[7] O tribunato de Lívio Druso, em 91 a.C., tem importância capital
para o entendimento da história romana. Distribuindo terras na Itália
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aos cidadãos romanos, Lívio Druso contrariava os interesses dos
grandes proprietários de terras donos de escravos; por outro lado,
dava certa vantagem aos pequenos camponeses da Itália, aos quais
prometia a cidadania romana; dessa forma eles também poderiam
participar da distribuição de terras (assim, Bernardi in "Nuova rivista
storica" 1944-45,60 ss.; muito diferentemente Gabba, in
"Athenaeum" 1954,41 ss.) ou pelo menos não ficariam prejudicados.
Colocados diante da perspectiva aberta por Druso, os agricultores da
Itália reagiram de duas maneiras opostas. Mársios, sanitas, lucanos -
em especial os primeiros - alinharam-se com ele; viram na conquista
da cidadania romana, entre outras coisas, uma forma segura de
defender suas pequenas propriedades ou de participar - num futuro
próximo - da fundação de colônias. Ao contrário, os camponeses
etruscos, que em sua maioria eram lautni de origem estrangeira (por
exemplo, egípcia: "Historia", 1957, 110 ss.), adotaram em geral uma
posição de franca hostilidade a Druso, em obediência a seus patrões
latifundiários. Concluindo: ao latifúndio etrusco-umbro opõe-se a
pequena propriedade nas terras dos mársios, sanitas e lucanos. Esta
diferença na agronomia italiana do século I a.C. poderia ter deixado
marcas até no baixo império. De acordo com alguns estudiosos o Sul
da Itália viria a ser no baixo império a terra ideal para a "exploitation
de peu d'étendue", ou seja, o oposto da Itália setentrional. (Déléage,
La capitation du Bas·Empire, 1945,219 ss.: onde porém
erroneamente Codex theodosianus XI 12, I refere-se à Itália, e não à
Gália; além disso a diferença de denominação iugum e millena não
me parece que implica uma diferença de extensão.) De qualquer
maneira, em algumas regiões pode-se constatar certa continuidade
da agronomia italiana durante toda a época imperial (por exemplo,
os vinhos de Cesena eram procurados tanto no século I d.C. como no
IV d.C.: Codex theodosianus I, 6); houve uma cesura na Idade Média,
com o sistema longobardo das "igrejas próprias", que atingiu o
latifúndio toscano. [Observe-se, entre outras coisas, que no baixo
império a Tuscia et Umbria enquadrase, em sua acepção normal, na
jurisdição de Roma; é "Itália meridional".][8] Cícero, De re publica, V, 1,2.
[
[9] Recentemente Steidle, Sallusts Historische Monographien, in
"Historia", Einzelschr. H. 3 (1958).[10] Com esta hipótese eu explicaria o trecentesimus sexagesimus
quintus annus agitur de Lívio, no célebre discurso de Camilo, para o
qual sobretudo Hubaux chamou a atenção. Na explicação que
proponho Lívio derivaria a idéia dos círculos de Augustos; supera-se,
assim, a objeção, que sempre foi oposta a Hubaux, da
impossibilidade de um "grande ano" de 365 anos antes do calendário
de César. Cf. recentemente Hubaux, Rome et Véies (1958).[11] Sobre esta constituição, promulgada pelo imperador Caracala em
212, cf. infra, cap. II. Infelizmente não sabemos com precisão quem
eram os dediticii que Caracala excluía do benefício da cidadania. Em
termos de puro direito, chamamse dediticii todos os habitantes do
império não ligados a Roma por um tratado de aliança (foedus); mas
em 212 o termo tinha uma acepção muito mais limitada. Todavia, de
acordo com alguns estudiosos (entre eles o autor do presente volu-
me), podia abranger consideráveis massas camponesas - por
exemplo, no Egito - não assimiladas a cultura greco-romana; de
acordo com outros, referia-se tão somente a bárbaros acolhidos no
império em épocas relativamente recentes. (Outra categoria de
dediticii compunha-se de escravos libertos que, por culpas anterio-
res, não podiam obter a cidadania romana ou latina.) A fórmula
usada por Caracala que chegou até nós (Papyrus Gissensis 40) diz:
"Concedo, portanto, a cidadania dos romanos a todo[s os peregrinos
d]o orbe, cabendo [tal doação] a... exceção feita para os dediticii."
(As diversas interpretações propostas pressupõem sempre um
[/l]ÉVOVTOÇ intransitivo; eu o entendo como transitivo e, portanto,
traduzo-o "cabendo". Recente literatura e discussão: D'Ors, in
"Emerita" 1956, p. 10; Oliver, in "American Journal of Philology"
1955, p. 297.)
por MAZZARINO, S. O fim do mundo antigo. São paulo: Martins
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Fontes, 1991
Comentário por Alam Arezi
Numa minuciosa perspectiva de pesquisa, Mazzarino expõe as
diferentes visões sobre o final do mundo antigo, dando ênfase a
relatos de Historiadores que previam a queda de Roma e, o final dos
tempos.
As diferentes formas de pensamento, divididas entre paganismo e
cristianismo remontam a um cenário onde profecias providas de
fatores diversos, como as invasões bárbaras, guerras e disputas
internas pelo poder influenciam a dialética da época. O fim do
mundo antigo é alcançado pelo medo que divide o império (Estado
universal de Roma) em duas partes; a do ocidente e do oriente.
O que também exerce um enorme peso nesse pessimismo eminente
são os contatos entre diferentes povos. Esse ‘aculturamento’, além
de prejudicar a unificação do império, torna-se justificativa para
guerras civis internas, o que causa um esfacelamento maior ainda da
dignidade e vitalidade de um império que previa seu fim desde o
começo: “Omnia orta intereunt” – tudo o que nasce tem um fim,
frase dita por Salústio (século II a.C).
Assim, presume-se que foram vários os fatores que efetivaram caos
na baixa idade antiga (mais especificamente no império Romano) e,
o que Mazzarino traz com seu texto até nós, é epistemologicamente
completo, entretanto, não existe verdade total.
Final dos tempos ou crise no Império
Com o advento de Augusto, a estrutura política se transformou e os
grandes medos desapareceram: Roma e a Itália estavam salvas, as
províncias organizadas de forma definitiva.
Muitas pessoas da geração que testemunhou tal renascimento - a
segunda geração a partir de Augusto - não queriam mais ouvir falar
em decadência dos costumes e outras crendices do gênero. O poeta
Ovídio pertencia a essa geração; os antigos protestos dos
"ruminantes" como Varrão o incomodavam. O que pretendiam esses
apologistas da Antigüidade, críticos ferrenhos do luxo e da avaritia?
"Há quem goste do passado", dizia Ovídio, "mas eu me sinto feliz por
ter nascido agora; esta época convém à minha maneira de viver."
Longe de falar em decadência, ele gostava de falar em progresso
técnico (as minas, o comércio) e cultural: "Hoje, percebe-se que há
bom gosto (cultus); e nosso tempo procura escapar daquela rusticitas
que ainda se notava entre os antigos antepassados."[1]
Entretanto velhos problemas ainda se arrastavam, sobretudo de
ordem econômica. O declínio da agricultura italiana acentuou-se
diversas vezes: duramente atingida na época das guerras civis,
arruinada - já no período da revolta de Espártaco - pelo sistema das
plantações. Crises financeiras colocavam à mostra dificuldades
evidentes. Se na época de Sila o poeta Lucrécio lamentara o cansaço
da terra, procurava-se agora um remédio na sabedoria dos homens.
No tempo de Domiciano, um agrônomo célebre, Columela, voltou a
lamentar a decadência da agricultura italiana. Elogiava os velhos
tempos: a mesma antiga querela que Ovídio julgara insuportável.
Havia outro problema que o otimismo de homens como Ovídio não
conseguia resolver. A fundação do principado instaurou um regime
monárquico baseado na auctoritas do príncipe. A classe dirigente viu
esfacelar-se a antiga tradição da liberdade republicana. Foi um golpe
muito sério, sobretudo no início. A amargurada saudade da antiga
lIberdade, Juntamente com a idéia de que o novo regime monárquico
é sinal de velhice, permeia uma amarga página de Sêneca pai,
escritor que nasceu na era republicana e morreu durante o império
de Calígula. Do fundo de sua dor, o venerável ancião sem esperanças
sonhava com a antiga Roma republicana, e o olhar desiludido
reevocou o trágico episódio das guerras civis.
A primeira infância de Roma se deu sob as ordens de Rômulo seu
[
fundador e como que nutridor; depois transcorreu a adolescência sob
os demais reis; quando começava a ficar adulta, não tolerou a
servidão; e, abandonado o jugo, preferiu obedecer às ieis antes que
aos reis. Essa adolescência encerrou-se por ocasião do término da
guerra púnica; então reforçou-se o poderio de Roma e teve início sua
juventude. De fato, destruída Cartago, que durante longo tempo lhe
dificultara o caminho do império, Roma estendeu seu poder sobre
todo o mundo, por terra e por mar; até que, subjugados todos os reis
e as nações, não tendo mais preocupações com guerras, empregou
mal suas próprias forças e acabou por esgotar-se. Esta foi sua
primeira velhice; quando, dilacerada pelas guerras civis e atingida
por uma crise interna, recaiu no regime monárquico como numa
segunda infância. De fato, depois de perder a liberdade defendida
sob o comando e a iniciativa de Bruto, envelheceu assim, como se
não tivesse forças para se sustentar a não ser recorrendo ao apoio
dos monarcas.
Nesta análise biológica da história de Roma,[2] percebese um retorno
ao conceito ciceroniano do Estado romano como "pintura
evanescente devido à idade"; porém no escritor da época de Calígula
o conceito de decadência "senil" é ao mesmo tempo um grito de dor
e uma exaltação da liberdade - a liberdade como época da
juventude. Deveremos nos lembrar de Sêneca ao recordar a doutrina
humanista, segundo a qual caberia atribuir ao regime imperial a
inclinatio de Roma, mesmo a doutrina de Seeck a respeito da
"eliminação dos melhores".[3]
Não é por acaso que nos séculos I e II os próprios círculos dirigentes
do império começaram a utilizar o termo "declínio" (inclinare) para o
que diz respeito aos costumes e à literatura; em Plínio encontramos
inclinatis iam maribus e em Quintiliano inclinasse elaquentiam. Uma
transferência, portanto, do conceito de inclinare (que em Cícero se
aplica ao Estado) para a esfera da cultura; é o período em que se
[
[
fala de decadência das artes (Petrônio) e da eloqüência (Tácito e
Quintiliano). Assim, a tradição romana, representada pelas classes
senatoriais e pela alta cultura, elaborou uma espécie de humanismo
próprio: na história moderna o conceito de inclinatio será
exatamente a grande descoberta do século XV. Juvenal retomou o
velho tema da luxuria geradora de males abordado por Varrão: "Pior
que as armas, a luxuria nos oprimiu e vinga o mundo, sobre o qual
triunfamos; desde que a pobreza romana desapareceu, não há delito
que não seja cometido entre nós."
Fora do mundo da tradição, que se exprime de maneira admirável no
conceito de Sêneca de velhice-monarquia, uma profunda revolução
espiritual conferiu renovada tragicidade à crise que envenenava o
mundo clássico: a revolução cristã. Em algumas de suas
manifestações, ela pode ser comparada a certas expressões
contemporâneas do mundo judaico, humilhado e desarticulado pela
conquista romana e pela opressão resultante; por exemplo, pode-se
mencionar o Comentário de Hababuc, um dos textos que as des-
cobertas do mar Morto trouxeram à luz, no qual se denuncia o drama
espiritual do judaísmo e se atribui a culpa disso a um sacerdote
ímpio: "Aquele", identifica-o o Comentário, "que, por causa da ofensa
cometida contra o Mestre de Justiça e os membros de sua
comunidade, foi entregue por Deus às mãos de seus inimigos para
que o destruíssem de um golpe, com amargura para sua alma: tendo
agido de forma ímpia com relação a seus eleitos." O Comentário de
Hababuc, condena esse “sacedorte ímpio” e todos os “que se
calaram quando o mestre de justiça foi punido e não o ajudaram
contra o homem de mentiras que ofendeu a Lei”: à condenção do
“sacerdote ímpio” e do “homem de mentiras" o Comentário
acrescenta uma implacável aversão aos romanos (Kittim), os quais
"sacrificarão às suas insígnias, e seus instrumentos de guerra serão
por eles adorados".
Ao conceito de decadência substitui-se aqui o de "culpa" religiosa; e
os romanos, juntamente com os judeus que traíram, são os
execrados autores da ofensa a Deus. Mais tolerante para com o
império romano, o cristianismo primitivo (que se formou, ainda
assim, no mesmo âmbito do renascimento espiritual judaico)
revelou, entre outras coisas, um gravíssimo aspecto da crise do
mundo antigo: a opressão social que caracterizava o domínio romano
sobre os camponeses das províncias. São Tiago, que como Jesus
acabou condenado à morte, expressou nos primeiros tempos do
império esta sua interpretação da crise do mundo, considerada a
partir do atormentado ponto de vista do universo palestino-judaico,
onde se moviam poderosas as novas idéias que um dia fariam o
mundo clássico dobrar-se sobre si mesmo.
Ó ricos, chorai gritando sobre vossas misérias, que estão prestes a
chegar.
Vossa riqueza está apodrecida, e vossas roupas corroídas pelas tra-
ças; enferrujados vossos ouro e prata, e sua ferrugem testemunhará
contra vós e comerá vossas carnes, como fogo. Acumulastes tesouros
nos dias do fim. Eis que a paga dos que fizeram a colheita em vossas
terras, desembolsada por vós, grita; e o grito dos trabalhadores
chegou aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Vivestes na Terra em
meio ao luxo e aos banquetes, alimentastes vossos corações no dia
do sacrifício. Julgastes e matastes o justo, e ele não vos opõe
resistência.
Nessas antiqüíssimas sinagogas de cristãos sentavam-se ao lado dos
camponeses palestinos alguns cavaleiros romanos, "homens que
tinham o anel de ouro", como os designava São Tiago; uns e outros
ouviam a dramática profecia de São Tiago sobre o fim de um mundo
dominado pelo privilégio. Podemos talvez imaginar os olhares
acabrunhados dos cavaleiros romanos, a ânsia de libertação dos
camponeses palestinos, em torno dos quais o domínio dos privilegia-
dos erguera uma espécie de prisão invisível. Logo a nova fé
conquistou enormes massas de fiéis; e o conceito do fim iminente do
império romano com toda a probabilidade dominava o espírito
daqueles cristãos que, incontável massa, foram queimados como
tochas e martirizados cruelmente na Roma de Nero. Aliás, para eles
o conceito do fim de Roma estava intimamente ligado à idéia do fim
do mundo: o Anticristo chegaria em breve, o sopro do Senhor o
destruiria. Com o passar do tempo, uma vez que o fim do mundo não
parecia mais iminente (e já São Paulo advertira nesse sentido), a ati-
tude dos cristãos em relação à crise imperial diferenciou-se de forma
acentuada: alguns, exaltando a obra da Providência, conciliavam,
confiantes, império de Roma e cristianismo; outros desprezavam o
império e procuravam, com dissimulada alegria, uma explicação
satisfatória para a queda iminente devido à chegada do Anticristo,
Nero redivivo, prestes a ser derrotado pelo sopro do Senhor.
De qualquer maneira, dois textos sagrados inspiravam sua
expectativa. Um era o Livro de Daniel, escrito entre 167 e 165 a.C.
Este livro (citado também num discurso de Jesus no Evangelho de
Mateus) parecia declarar que quatro monarquias se sucedem na
história, dominando o mundo, representadas nos membros da estátua
sonhada por Nabucodonosor, respectivamente na cabeça de ouro, no
peito e nos braços de prata, no ventre de cobre, nas pernas de ferro;
os dedos dos pés da estátua, de ferro misturado com argila. Além
disso, a visão de Daniel contemplava quatro bestas - também
interpretadas como as quatro monarquias. O fim do mundo era
posterior ao desaparecimento da última monarquia: este era um
ponto em que se concentravam temores e esperanças.
O outro grande livro, o Apocalipse de São João, via a serpente dar
sua força a uma besta que emergia do mar com sete cabeças e dez
chifres, senhora de cada estirpe e povo e língua e nação, adorada
por todos os habitantes da Terra; via um anjo indicar numa mulher
triste "a cidade grande que tem o reino dos reis sobre a Terra" e
outro anunciar o fim da "cidade grande, a forte Babilônia", cuja
morte os mercadores choram... Neste simbolismo apocalíptico
numerosos exegetas viam prenunciar-se o fim do mundo, a queda de
Roma, a maior de todas as cidades. Quase um século depois de São
João, por volta do final do reinado de Marco Aurélio (morto em 180
d.C.), um poeta sibilino cristão imaginou o ocaso anticrístico de
Roma, marcado pela impiedade e pelo sofrimento, originado pela
opressão que pesa sobre os provincianos e enche de riquezas as casas
do imperador. Nesse poeta o fim do mundo romano é certeza reli-
giosa, não pressentimento comovido; as imagens apocalípticas
misturam-se com a visão da iminente carestia e da guerra civil. Ele
abomina a universalidade de um império em que, como num imenso
cadinho, obrigavam-se diversas nações a uma única têmpera. Por isso
mesmo, faiscante de ódio, sua evocação não é um exame de motivos
que levarão à morte do império: trata-se antes de uma maldição,
que com tumultuosa ansiedade invoca o esfacelamento de um Estado
injusto. No fundo, para esse poeta sibilino o César romano é o
inimigo dos provincianos: a idéia das nações oprimidas, que de algum
modo transparecera, ainda que timidamente, em escritos do período
de Augusto, adquiria sob o impulso luminoso da nova fé uma grande
força moral e combinava-se com a certeza da decadência e do
iminente fim de Roma.
Um monarca velho [Marco Aurélio] terá longo domínio: tristíssimo
rei, que encerrará todos os tesouros do mundo, conservando-os em
suas casas, para que depois, quando vier dos confins da Terra o
fugitivo matricida [o Anticristo, Nero redivivo], sejam dados a todos,
para grande riqueza da Ásia. Então chorarás, ó rainha soberba,
rebento da latina Roma: abandonado o laticlavo dos governadores,
vestirás o traje de luto; não haverá mais glória para tua soberba;
nem poderás reerguer-te, infeliz, estarás dobrada. E, de fato, cairá a
glória das legiões aquilíferas. Onde está então teu poder? Que terra,
injustamente submetida por tuas estultícies, será tua aliada? Entre
os homens de toda a Terra haverá grande confusão, quando o
Onipotente, aparecendo no Tronco, julgar as almas dos vivos e dos
mortos e o mundo inteiro. Nem então serão caros aos filhos os pais,
nem aos pais os filhos, por causa do sacrilégio e do sofrimento
desesperado. Seguir-se-ão ranger de dentes, e dispersão, e cativeiro,
quando as cidades caírem e se abrir a Terra. E quando o dragão
vermelho vier sobre as ondas, com o ventre cheio, e atormentar teus
filhos, e vierem carestia e guerra civil, será o fim do mundo e o
último dos dias, e para os gloriosos chamados o julgamento de Deus
imortal. Desapiedada ira haverá, em primeiro lugar, contra os
romanos, época sedenta de sangue e vida infeliz.
Mal para ti, itálica terra, grande estirpe bárbara: não entendeste de
onde surgiste, nua e indigna, à luz do sol, para de novo cair nua, no
mesmo lugar, e por fim vir ao Juiz, pois tu mesma injustamente
julgas... Mãos gigantescas te farão cair sozinha, pelo mundo, lá de
tua altura; e jazerás embaixo da terra; desaparecerás queimada de
nafta e asfalto e enxofre e muito fogo, e serás pó durante séculos; e
quem quer que olhar ouvirá do Hades o grande gemido de dor e o
ranger de dentes, e tu que batas no peito ateu com as mãos ...
Porque o império de Roma, num tempo florescente, antiga senhora
das cidades ao redor, desapareceu. A terra de Roma florescente não
vencerá, quando o vencedor (Anticristo) vier da Ásia com Ares.
Quando tudo isso estiver cumprido, ele virá para a Urbe que se
ergue: (ó Roma), completarás 948 anos, quando o destino de morte
se abater violento sobre ti, cumprindo o valor numeral de teu nome.
O sibilino cristão pressentia como iminente o fim do mundo antigo
(e, em conseqüência, do mundo): estabelecia o fim dos tempos 948
anos depois da fundação de Roma, ou seja, em 195 d.C. Porém,
mesmo neste caso a ansiosa
espera apocalíptica não se concretizou. A Marco Aurélio, sob cujo
reinado o sibilino escrevia, havia sucedido Cómodo: jovem monarca
cheio de contradições, fisicamente belíssimo mas portador de uma
doença senil, orgulhoso a ponto de se apresentar como o “Hércules
romano” que sabe matar as feras e combater como um gladiador, e
não obstante apaixonado por Márcia, uma cristã a quem concedera
quase todas as honras de imperatriz. Mais uma vez, com ele, a idéia
do fim do mundo ficava afastada: era um imperador pacifista, e pós
um fim às guerras empreendidas por seu pai contra os bárbaros que
ameaçavam as fronteiras romanas. Mas o conceito da decadência do
império não chegou a ser abandonado; as antigas classes dirigentes,
pagãs e admiradoras de Marco Aurélio diziam que uma idade de ferro
tivera início com o advento de Cómodo. Para elas os bons tempos
terminaram com o falecido imperador. Cássio Dion, historiador que
foi senador nesse período, dizia: "[depois da morte de Marco], a
história passou de um império de ouro para um de ferro,
enferrujado." Herodiano, outro historiador (talvez um liberto
imperial) que viveu em Roma nesse período, também achava que a
morte de Marco Aurélio marcava o início de uma época de
decadência:
Se alguém considerar o período a partir de Augusto, desde que o
império dos romanos tomou forma monárquica, não encontrará nos
anos - cerca de dois séculos - até Marco nem sucessões tão cerradas
de reinos, nem acontecimentos de guerras civis e externas tão
variadas e movimentos de nações e ocupações de cidades em nosso
império e fora dele; e terremotos, e perturbações atmosféricas, e
vidas fora do normal de usurpadores e imperadores, como antes nãó
há lembranças a respeito, ou são muito raras.
A decadência do mundo antigo apresentava-se aos dois pagãos,
Cássio Dion e Herodiano, em termos de todo antitéticos aos
formulados nos últimos tempos de Marco pelo poeta sibilino cristão.
No entender deste último a morte de Roma coincidia com o reinado
de Marco; já os dois pagãos achavam que tal reinado fora a última
idade de ouro do Estado. Na visão do sibilino, o fim de Roma
representava a justa condenação da opressão tributária e das guerras
de Marco Aurélio; na interpretação de Herodiano, ao contrário, a
grande crise tinha início no momento em que Cômodo, o imperador
pacifista, preferira as delícias de Roma à guerra e às geleiras sobre o
Danúbio, e esta predileção por Roma inspirara sua vida "fora do
normal", "paradoxal", para usar o vocábulo grego de Herodiano.
Depois de Cômodo, o ano dos cinco imperadores (193), a guerra civil,
o império dos Severos. Continua, então, entre muitos cristãos, a
grande espera, e Montano julga iminente a queda deste mundo. No
Ponto, camponeses cristãos deixam seus campos, vendem seus bens,
esperam o dia do Juízo; e para esta espera do fim iminente, homens
e mulheres e crianças da Síria vão ao encontro do Reino de Deus no
deserto. Tertuliano reza "para que o fim seja adiado", pro mora finis.
A essa altura intervém um grande escritor cristão: Santo Hipólito.
Naturalmente, em sua indagação a respeito do fim do mundo ele
também parte do Livro de Daniel e do Apocalipse de São João. Em
seu Comentário a Daniel, Santo Hipólito exptessa de uma forma
inesquecível esse sentido do fim do mundo que coincide com o fim
do império romano. Situa-o em 500 d.C.: uma data próxima daquela
já "prevista" pelo pagão Vétio (que, como vimos, previra para Roma
doze séculos de vida). Contudo é enorme a diferença entre Vétio,
pagão da época de Varrão, e Santo Hipólito, cristão da época dos
Severos: Santo Hipólito atribui o fim de Roma ao surgimento das
"democracias”.
Os dedos dos pés (da estátua no sonho de Nabucodonosor) pretendem
mostrar as democracias vindouras, que se separarão umas das outras
como os dez dedos da estátua, nos quais o ferro será misturado com
a argila.
Estas "democracias" surgem das "nações": "enquanto dez reis", diz
Hipólito em outra parte, "dividirão entre si o império segundo as
nações". Sobre a forma e a data da morte de Roma, Hipólito previu
corretamente; de fato, o fim do mundo antigo foi em grande parte
uma vitória das partes sobre o todo, da periferia sobre o centro
enfraquecido. A perspectiva apocalíptica atraía o olhar de Hipólito
para as contradições internas e para o destino final do império do
mundo. De resto, o problema das "nações", "democracias" que um dia
dividiriam entre si o império de Roma, sempre dominou o
pensamento de Hipólito.
Uma vez que o Kyrios (Senhor) nasceu no 42º ano de Augusto, quando
começou o florescimento do império romano, o Kyrios (Senhor)
chamou, através dos Apóstolos, todas as nações e todas as línguas e
delas fez uma única nação de fiéis cristãos, que trazem, em seu
nome, o nome do Kyrios, o novo nome. O império que nos domina
segundo o poder de Satanás pretendeu imitar tudo isso; e assim
também ele, reunindo os mais fortes de todas as nações, arma-os
para a guerra, chamando-os pelo nome de romanos.
Esta visão acentuava um aspecto da crise: a condição das nações no
Estado universal de Roma. Mais tarde outro escritor cristão examinou
a crise da vida moral: um aspecto mais genérico, porém igualmente
interessante; um tema salustiano que se manifestou na dramática
atmosfera do século III d.C. Tratava-se de um insigne retórico de
Cartago: Cipriano. No grande império oficialmente pagão, os cristãos
não constituíam uma diminuta minoria, mas eram parte considerável
da população, cientes da força de sua fé; se na época de Cômodo a
própria concubina do imperador, Márcia, fora cristã[4], cinqüenta
anos depois as comunidades cristãs se fortaleceram ainda mais; o
próprio imperador Felipe, o Árabe, que governou de 244 a 249, era
considerado cristão.
Na época de Felipe, o Árabe, Cipriano converteu-se ao cristianismo.
A fúria da guerra tomara conta do império sob o antecessor de
Felipe; o novo imperador, cristão ou próximo dos cristãos,
estabelecera a paz. No entanto isso não bastava para tranqüilizar o
ânimo angustiado de Cipriano. O zeloso neófito julgava perceber um
inexorável declínio dos valores no cotidiano da sociedade romana - o
que equivalia a uma sentença de morte. Protestava contra as guer-
ras: "Se alguém comete um homicídio, este é considerado crime; se o
homícidio se realiza em nome do Estado, é considerado virtude." Na
própria administração da justiça ele via se desfazerem as esperanças
de uma sociedade melhor: "As leis estão inscritas nas doze tábuas, e
os direitos nos editais públicos - mas o juiz vende seu voto a quem
pagar melhor"; falsificam-se os testamentos; "o direito estabeleceu
uma aliança com o delito". Em 251 a tragédia se agravou: Décio, um
imperador pagão, governava desde 249. Cipriano, na época com
cinqüenta anos, voltou à luta. Contra os pagãos que atribuíam os
males do Estado à nova fé, pretendeu reafirmar, no escrito a
Demetriano, seu conceito de um decadência inexorável do mundo
envelhecido. Este era uma tema lucreciano, como vimos; Cipriano,
entretanto, retomava-o por conta própria; sentia em toda parte o
cansaço senil e o toque frio da morte.
[
Deves saber que este mundo já envelheceu. Não tem mais as forças
que antes o sustentavam; não mais o vigor e a força pelos quais
antes se sustentou. Mesmo que nós, cristãos, não falemos nem ex-
ponhamos as advertências das Sagradas Escrituras e das profecias
divinas, o mundo já fala de si e com os próprios fatos documenta seu
ocaso e sua queda. No inverno já não há abundância de chuvas para
as sementes, no verão não mais existe o costumeiro calor para
amadurecê-las, nem a primavera se mostra alegre com seu clima, e
muito menos fecundo é hoje o outono. Reduziu-se nas minas
esgotadas a produção de prata e ouro; reduziu-se a extração dos
mármores; empobrecidos, os veios a cada dia fornecem uma
produção menor. Há falta de agricultor nos campos, de marinheiro
nos mares, de soldado nas casernas, de honestidade no foro, de
justiça no tribunal, de solidariedade nas amizades, de perícia nas
artes, de disciplina nos costumes. Acreditas mesmo que um mundo
tão velho possa ter a energia que a juventude ainda fresca e nova
pode encontrar há tempos? É preciso que perca vigor tudo que, com
a aproximação do fim, se volta para o acaso e a morte. Assim como
em seu ocaso o sol envia raios menos luminosos e quentes, assim
também menos luminosa é a lua em seu declínio; e a árvore, antes
fértil e verde, à medida que os ramos secam, torna-se estéril e
disforme em função da velhice.
Culpas os cristãos, se tudo diminui com o envelhecimento do mundo.
Mas com certeza não é culpa dos cristãos se os velhos têm as forças
diminuídas, se não ouvem mais como outrora, se não têm a rapidez e
o poder visual do passado, a firmeza e a galhardia e a saúde de outra
época; antigamente os longevos chegavam a oitocentos e novecentos
anos, agora a muito custo atingem os cem. Vemos meninos
encanecidos; os cabelos desaparecem antes de crescer; a vida já não
termina, mas começa com a velhice...
Quanto à maior freqüência das guerras, ao agravamento das
preocupações com o aparecimento de carestias e esterilidade, à fú-
ria de doenças que deterioram a saúde, à devastação que a peste
opera em meio aos homens - isso também, é bom que saibas, foi
previsto: que nos últimos tempos os males se multiplicam e as ad-
versidades assumem aspectos os mais diversos, e, com a aproxima-
ção do dia do juízo, a condenação indignada de Deus decreta a ruína
dos homens. Em tua tola ignorância da verdade, erras ao declarar
que essas coisas acontecem porque não honramos os deuses;
acontecem porque não honrais a Deus.
Dois motivos se fundem em Cipriano: De um lado, a análise da crise
romana: ou seja, uma perspectiva pessimista com colorações
retóricas (sobretudo salustianas), como motivos biológicos (a velhice,
como Sêneca e em Floro; certas considerações climatológicas e
geonômicas fariam pensar em modernos, como Huntington e Liebig).
De outro lado, a idéia do iminente fim anticrístico do mundo. São as
duas expressões da angústia humana nesse atormentado período do
império romano: a observação pessimista e a apocalípitca certeza. A
primeira aplica categorias que se relacionam, mais ou menos, com o
quadro da tradição antiga: a segunda, que transforma o fim do
Estado no fim do Tempo, encerra um conteúdo de tragicidade cristã
e se lança para o futuro queimando o passado atrás de si.
Notas[1] Ovídio, Ars Amatoria III, v. 121 ss.: uma verdadeira exaltação do
progresso.[2] Sobre este texto de Sêneca pai cf. Hartke, Römische Kinderkaiser
(1950), 393 ss. A idéia da velhice de Roma encontra-se de novo em
Floro: cf. P. Zancan, Floro e Livio (1942) 13-20 (fundamental para a
história do conceito de decadência nesse período). Em geral, cf.
Pöschl, in "Gymnasium", 1956, 190 ss.[3] Com terminologia moderna, alguns diriam que para Sêneca pai a
história é "história da liberdade". Diferentemente dos antigos, os
modernos intérpretes da história como história da liberdade muitas
vezes procuram evitar formulações biológicas: basta pensar em
Croce e em Rüstow.
[
[
[
[4] Ou pelo menos muito próxima dos cristãos: o bispo Hipólito, que
exprime o mais intransigente cristianismo, chama-a 'PiÀóvos',
"piedosa"; era devota do bispo de Roma, Vítor; cf. infra, cap. 7
"Inimigos externos" e "Inimigos internos"
Na literatura mundial, outro escritor cristão do século lII d.C,
Comodiano, foi o primeiro a apresentar os germanos, mais
precisamente os godos, como protagonistas da queda de Roma. Sob o
império de Décio, violento perseguidor dos cristãos, os godos
invadiram e saquearam a península balcânica; em Abrito, numa
terrível batalha entre os pântanos, o próprio imperador morreu no
ano de 251; em 252-253 os godos foram ter à Asia Menor, chegando
até Eféso. Sob a impressão desse acontecimento e dos que se se-
guiram (até a mais recente perseguição anticristã ordenada por
Valeriano em 257-258 e à desastrosa guerra persa conduzida pelo
mesmo imperador), por volta de 260 Comodiano escreveu seu
Carmen apologeticum. Ele não conseguia aceitar que durante mais
de dois séculos grande parte do mundo romano tivesse permanecido
surda à mensagem da fé cristã; em outro escrito, perguntava
indignado: "Por que fostes crianças (afinal, só crianças podem
acreditar nos raios de Júpiter) durante duzentos anos?"[1] No Carmen
apologeticum sua indignação contra o império perseguidor trans-
borda. Uma ardorosa necessidade de vingança, um forte anseio de
justiça perpassa seus versos admiráveis: ele evoca com desprezo os
pagãos aprisionados pelos bárbaros e com implícita alegria os godos
invasores que se fraternizaram com os cristãos. Ao rei dos godos,
Kniva, dá o nome de Apolion, o "exterminador", retirado do
Apocalipse de São João; a invasão dos bárbaros entra no quadro
apocalíptico do fim do império, projetado no futuro próximo.
Evidentemente não foi Comodiano que introduziu os germanos na
literatura dos povos clássicos. Já na época de Alexandre Magno, um
viajante de Marselha, Pítea, falara desses povos do norte, e, por
[
[
volta de 200 a.C., uma coleção grega de "coisas estranhas"[2]
mencionara "germara", povos do extremo norte, "os quais não vêem o
dia", assimilados etnicamente aos celtas; Eratóstenes e Posidônio
haviam dado algumas informações sobre o mundo germânico.
César[3] distinguiu esses povos dos celtas, sublinhando, entre outras
coisas, a falta de uma classe sacerdotal entre os germanos (aspecto
realmente importante para a história de sua cultura). Tácito,[4] no
ano de 98, delineou um quadro das "virtudes" germânicas,
relacionando-as com o "costume pátrio" dos romanos, que julgava
obscurecido pelo recém-chegado "legalismo" e pelos demais efeitos
da civilização. No entanto mesmo sua avaliação do germanismo não
era lá muito nova; em diversos aspectos ligava-se à contraposição
feita por Posidônio entre natureza e cultivo, selvagens e civilização
decadente - que foi doutrina do estoicismo, expressa também na
célebre nonagésima epístola de Sêneca, o filósofo. Assim, não
podemos forçar a contraposição de Tácito entre "virtudes"
germânicas e decadência legalista dos romanos: ele teria louvado as
"virtudes" de qualquer outro povo em estado natural, como, por
exemplo, os indômitos bretões, cuja ferocidade destacou em oposi-
ção à "moleza" resultante de uma paz duradoura.
Somente o olhar dos cristãos, voltado para o futuro, como o de todas
as minorias criadoras, pôde intuir (mais de um século e meio depois
de Tácito) a posição dos germanos como povo máximo da nova
história, contraposto a Roma; percebeu-a, é bom lembrar, graças a
um poeta genial,[5] Comodiano, que via o juízo de Deus na careta
blasfema dos romanos perseguidores. O espírito revolucionário desse
intransigente cristão encontrava-se, assim, com os novos povos que
dentro de alguns séculos iriam fazer história, e já agora a faziam,
atirando-se com fúria sobre as cidades do velho império. Sob alguns
aspectos, esses povos podiam acolher a nova fé melhor que os velhos
[
[
[
[
Estados clássicos, perturbados até a medula com a grande revolução
espiritual cristã, mas ainda assim presos, na forma exterior e oficial,
a uma fortíssima tradição; de fato, a conversão dos visigodos ao
cristanismo teve início a partir das famílias cristãs que se
"confraternizaram" com eles no século III, durante a invasão. Em sua
fantasia, Comodiano transformou a invasão dos godos numa ameaça
contra "Roma", ou seja, contra todo o império; uma febril ansiedade
o levava a antecipar os tempos. Na verdade, um século e meio
depois, os godos de Alarico (a essa altura cristãos, não mais pagãos
como os descritos por Comodiano) iriam atacar de chofre o império
não mais perseguidor.
Início do fim será a sétima perseguição contra nós: eis que já bate à
porta e se reúne na espada: (por punição divina) fará atravessarem o
rio os gados que irrompem (no império). Com eles estará o rei
Apolion, terrível no nome, que pelas armas deterá a perseguição aos
cristãos. Dirige-se a Roma com muitos milhares de homens e por
decreto de Deus os subjuga e aprisiona. Muitos senadores,
prisioneiros, chorarão; blasfemam contra o Deus do céu, vencidos
pelo bárbaro.
No entanto, em toda parte estes (gados) pagãos dão alimentos aos
cristãos, que procuram alegremente como irmãos, preferindo-os aos
lascivos acloradores de ídolos falazes. De fato, os godos perseguem
os pagãos e subjugam o Senado. Esses males se abatem sobre os que
perseguiram os cristãos; dentro de cinco meses os perseguidores são
mortos pelo inimigo.
Pela maneira de encarar a posição dos germanos na história do
império, Comodiano permanece isolado no século III. Outro grande
escritor cristão, Dionísio, bispo de Alexandria, limitava-se na época a
definir a decadência do império em termos de crise demográfica e
desaparecimento apocalíptico do gênero humano.
Surpreendem-se e perguntam-se de onde vêm as pestes contínuas, as
mortes de todos os tipos, o variado e enorme despovoamento;
perguntam-se por que a cidade tem ao todo - incluídas as crianças e
os anciãos - um número de habitantes igual apenas ao dos velhos de
outros tempos. O fato é que na época o número de homens entre
quarenta e setenta anos ultrapassava o dos homens de hoje entre
catorze e oitenta anos; em nossos dias, os muito jovens são os
companheiros dos muito velhos.
Por trás de todo pessimismo cristão, violento como o de Comodiano
ou reflexivo como o de Dionísio, havia a convicção apocalíptica do
fim do mundo, mais ou menos próximo, de qualquer maneira certo.
Na verdade, os livros sagrados de certa forma pareciam garantir esse
fim: o Livro de Daniel, o Apocalipse de São João. Por isso os pagãos
procuraram atacar esses livros, quase recolhendo o sufocado pro-
testo dos seguidores de Cristo. Porfírio, que conhecia muito bem os
textos sagrados do Cristianismo, por volta de 269 levou a fundo sua
ofensiva na célebre polêmica Contra os Cristãos: seu canto de cisne.
No livro XII dessa obra; tenta demonstrar que o Livro de Daniel não
podia dar nenhuma certeza sobre a decadência e o fim iminente do
império de Roma. Com surpreendente perspicácia, que o torna o
maior orientalista da Antigüidade, observa que nesse texto a última
das "quatro monarquias" indica a monarquia selêucida, não o império
romano. O Daniel, conclui, não contém uma profecia sobre a queda
do mundo romano; mais simplesmente, exprime a tensão entre o
judaísmo e o helenismo do século II a.C. Contudo as investigações
filológicas não podem vencer as grandes revoluções espirituais. A
tradição eclesiástica da época continuou a procurar rio Livro de
Daniel a confirmação da inflexível condenação do império de Roma:
neste sentido, escreveram cristãos como Eusébio, Apolinário,
Metódio de Olimpo. Por volta do ano 407, num célebre Comentário a
Daniel, São Jerônimo retoma este ponto de vista:
Dizemos o que todos os escritores eclesiásticos nos transmitiram: no
fim do mundo, quando o reino dos romanos deverá ser destruído, dez
reis dividirão entre si o mundo romano...
Quando São Jerônimo escreveu o Comentário a Daniel, fazia quase
um século que o império era cristão. Constantino, senhor de Roma
desde outubro de 312, convertera-se ao Deus dos cristãos,
abandonando a religiosidade pagã que ainda se arrastava no aparato
jurídico. Em seu isolamento, as velhas classes tradicionalistas, que
ainda antes de Constantino atribuíam aos cristãos a crise de Roma,
continuaram a falar em decadência. Não protestavam abertamente
contra a cristianização do Estado, mas, retomando velhos cálculos
astrológicos, limitavam a vida do cristianismo a um "ano grande" de
365 anos.[6] Sobretudo protestavam contra Constantino, que
introduzira uma nova burocracia e policiais: o historiador Aurélio
Vítor atribuía a estes últimos a "ruína" do Estado romano.[7] Assim, o
conceito da decadência romana, que para os cristãos já era uma
questão de exegese bíblica, tornou-se para os pagãos o cuidado
obsessivo com um doente que precisava sarar de qualquer maneira.
Juliano, o Apóstata, dizia que o império estava "doente" e em
declínio; esforçou-se por introduzir um conteúdo novo na tradição
enferrujada. Ao mundo ideal de Juliano pertencia um crítico de
Constantino (portanto, com toda probabilidade, um pagão) que
dirigiu a um imperador desconhecido (ao que parece, Constâncio II)
um texto[8] no qual eram "lançadas" propostas de reformas
econômicas, de reforma do aparato burocrático, de novas máquinas
de guerra. Não conhecemos o nome desse escritor; mas sem dúvida
ele nos deu um interessante documento sobre a maneira como o
conceito de "decadência" era desenvolvido pelos homens mais
dedicados à conservação do Estado romano. A inteligente
consideração dos fatos reais não diminuía sua surpreendente
capacidade de sacrifício. O anônimo autor do escrito que acabamos
de citar tirava a idéia da nova conjuntura econômica e social para
dela deduzir suas propostas.
Sob Constantino teve início a emissão abundante de ouro; com isso,
mesmo para compras de pequena importância, a base da transação
passou a ser a moeda de ouro, substituindo a de bronze, antes
[
[
[
considerada de grande valor. Acredita-se que a origem dessa avidez
por riqueza seja a seguinte: tendo-se confiscado o ouro e a prata e
as muitas pedras preciosas que se encontravam nos templos,
acendeu-se em todos o desejo de dai e de ter. Infelizmente a
emissão de cobre - que, como dissemos, havia sido marcado com a
efigie dos monarcas - já era enorme e grave; ora, por não sei qual
loucura, verificou-se uma emissão de ouro ainda maior. Tão grande
circulação de ouro encheu de riquezas as casas dos poderosos, que se
tornaram assim mais ilustres, em prejuízo dos menos abastados; o
proletariado sucumbia sob a violência. Portanto, a classe dos pobres,
afligida pelas dificuldades e induzida a tentar delitos, perdeu todo o
respeito pelo direito e todo sentimento nobre; confiou sua vingança
às artes do mal; devastando os campos, abandonando-se ao
banditismo, espalhando o ódio, atingiu duramente o Estado; e,
passando de um crime a outro, encorajou usurpadores, cuja
insolência, por outro lado, em vez de exaltá-los, serviu para
enaltecer, ó excelente imperador, tua coragem.
Será, portanto, dever de tua sabedoria limitar a emissão monetária,
preocupando-se com o contribuinte, e no futuro propagar a glória de
teu nome. Reflete e muito (ó imperador) na lembrança daqueles
anos felizes: considera os reinos célebres da pobreza antiga, quando
os homens sabiam cultivar os campos e renunciar à riqueza; sua
incorrupta parcimônia os recomenda pelos séculos com louvor e
honra. Sim: chamamos áureos os tempos que não tinham ouro.
Entre os males intoleráveis que atingem o Estado está a fraude na
emissão e na circulação das moedas de ouro: ela exige nas compras a
astúcia fraudulenta do comprador, e se aproveita da dura
necessidade em que se encontra o vendedor; e tais inconvenientes
impedem um desenvolvimento normal dos negócios. Portanto, até
mesmo para isso deves encontrar remédio; reúnam-se os mestres
moedeiros, que terão de cuidar das emissões de moedas de ouro e
divisionárias numa ilha isolada, longe para sempre do contato com as
regiões vizinhas; assim não poderão causar dano ao Estado mantendo
com outras pessoas relações capazes de induzi-los à fraude. De fato,
na solidão serão fiéis a seu dever; tampouco haverá possibilidade de
fraudar onde não há oportunidade de tráfico ilícito...
A esses males que atingem as províncias pela avidez de riquezas
acrescenta-se a execrável cobiça dos governadores, desgraça do
contribuinte. Sem respeito nenhum pelo cargo que ocupam, julgam-
se enviados para a província a fim de explorar os contribuintes; tanto
mais tristes quanto a injustiça é exercida, assim, por aqueles que
deveriam reparar os males e, como se não bastasse sua iniqüidade,
cada um deles, quase que para agravar a crise, envia cobradores
destinados a esgotar os bens dos contribuintes com todo tipo de
roubo; certamente esses governadores acreditam não se istinguir o
suficiente se permanecerem sozinhos em suas culpas...
Depois de referir os males do Estado, aos quais as augustas pro-
vidências darão fim, passamos agora a tratar da enorme crise que
deriva da manutenção do exército: todo o nosso sistema tributário
sofre gravemente com isso. Para evitar uma longa discussão,
formularei em breves palavras minha solução para tão grave crise.
(Em vez de vinte ou 25 anos, como acontece normalmente), os
soldados cumpram tão-somente alguns anos de serviço, de forma que
após cinco anos ou mais não pesem para os cofres do Estado...
Assim, não apenas o Estado será aliviado de uma grave despesa,
como também se reduzirão as preocupações imperiais nesse sentido;
ademais, um maior número de homens será encorajado ao serviço
militar nas regiões onde a longa duração de tal serviço induz muitos
a evitá-lo.
Naturalmente, por trás dessas propostas e advertências (às quais se
seguiam projetas de novas máquinas bélicas) revela-se sobretudo
uma preocupação; o anônimo autor queria que o império
aproveitasse ao máximo suas energias demográficas. Elas estavam
gravemente reduzidas nos campos e, portanto, no exército (cujos
contingentes eram recrutados entre os camponeses); enquanto isso,
além do limes, os bárbaros (como dizia o anónimo) "ladravam em
volta". Se, como acreditamos, o anônimo escreveu sob Constâncio II,
pouco antes do advento de Juliano em 361, pode-se dizer que era
uma pessoa de sorte; não viu, ou ainda não tinha visto, a definitiva
investida dos bárbaros sobre a imensa presa. Mas o simples
pensamento de que o enorme desastre pudesse um dia recair sobre o
império o fazia meditar sem sossego.
Hoje em dia é fácil sorrir de propostas como a do isolamento forçado
dos moedeiros. Nossa época é por demais astuta para acreditar que
os doentes levantem da cama depois de um tratamento violento. Mas
esses homens - o anônimo que escreveu sob Constâncio II, Juliano, o
Apóstata, e muitos outros - amavam seu Estado até a loucura. Tão
loucamente quanto o tinham odiado Comodiano e Arnóbio; pois o
império de Roma podia ser objeto de ódio infinito e também de
infinito amor. E por isso as propostas desesperadas do tipo da ilha
dos moedeiros merecem nosso respeito; como o merece o desespero
de Juliano, que, na miragem de uma violenta batalha campal,
queimou sua frota do Tigre. Por outro lado, algumas propostas do
anônimo eram muito inteligentes; seu pedido de deflação foi atendi-
do por Juliano; sua proposta de um exército de camponeses antecipa
em dois séculos e meio a reforma temática de Heráclio.[9] Mas
devemos respeitar sobretudo sua previdente tristeza. Em 375 teve
início a catástrofe.
Como na época de Comodiano, os movimentos dos povos ameaçavam
o coração clássico do império. Em 375, época de guerra na Itália,
Sátira, o irmão de Santo Ambrósio, apressou-se em deixar a África,
onde estava desde algum tempo, e voltar para Milão. Do outro lado
do império, Valente acolheu os gados como mercenários; quando a
convivência com os bárbaros se revelou impossível (e a culpa com
certeza coube às classes dirigentes romanas, que odiavam os
forasteiros), não se pôde evitar o conflito entre romanos e godos; em
378, depois de uma campanha militar das mais dramáticas, Valente
acabou derrotado e morreu em Adrianópolis. Para aplacar os
vencedores, Teodósio, sucessor de Valente, teve de ceder-lhes o
comando militar da Ilíria. Sob o impacto da catástrofe, os homens se
questionaram novamente a respeito das causas do desastre. Um
panegirista, Temístio, comprazia-se em minimizar esses males; num
discurso dos primeiros dias de 381, mostrava-se satisfeito com o fato
de Teodósio ter cedido províncias da Ilíria aos bárbaros.
[
Os cristãos sempre consideraram a hipótese de que a catástrofe
indicasse não apenas decadência, como o fim do mundo. Em 386-
388, comentando a profecia de Jesus sobre a destruição do templo
de Jerusalém e a consummatio saeculi, o bispo de Milão, Santo
Ambrósio, traçou um balanço da tragédia. De um lado, sua
perspicácia política acentuava a gravidade da insurrecttio de hunos
contra alanos, de alanos contra godos, enfim da migração dos povos;
de outros, denunciava uma crise moral que em seu estilo adquiria
tonalidades bíblicas. Assim,'falava de inimigos externos e inimigos
internos, hostes extranei e hostes damestici. Por uma estranha
coincidência encontrava-se com Políbio, que também falara (num
plano exclusivamente histórico) de eventuais "causas externas" e
"causas internas" da decadência de Roma. (Ao leitor de hoje ocorre
espontaneamente a comprovação com Toynbee, com as categorias
de "proletariado externo" e "proletariado interno"; entretanto em
Toynbee estes são predicados sociológicos, e em Santo Ambrósio
trata-se de conceitos genéricos.) O bispo de Milão, cristão muito leal
ao império, chegava mesmo a considerar sacrilégio a aceitação da
moda bárbara por parte de um bispo; viu os godos representados no
povo de Magog, a respeito do qual Ezequiel falara. Eles eram os
hostes extranei; hostes domestici, ao contrário, eram as paixões,
sobretudo a ambição por dinheiro e domínio, que tinha afastado os
homens do caminho primitivo e, no fundo, do direito de
natureza.[10]
As palavras celestes têm as melhores testemunhas em nós mesmos,
sobre os quais desabou o fim do mundo. Quantas guerras e que
noticias catastróficas chegam até nós! Os hunos voltaram-se contra
os alanos; os alanos contra os gados; os godos contra taifalos e
sármatas; exilados de suas sedes, os gados fizeram de nós mesmos,
na Ilíria, os exilados na própria pátria; tampouco ainda se percebe o
fim de tudo isso. Por toda a parte há carestia; e a peste abate-se
igualmente sobre homens e bois e sobre os outros animais; de forma
que, mesmo não tendo sido diretamente atlngidos pela guerra,
[
devido à peste nos encontramos nas mesmas condições dos que
foram derrotados. Enfim, estamos no ocaso do seculo e, portanto,
alguns males do mundo nos precedem; mal do mundo é a carestia,
mal do mundo é a peste, mal do mundo é a perseguição.
Mas há também outras guerras, que o cristão deve enfrentar: as
batalhas das opostas cobiças; e os conflitos das paixões; os inimigos
internos são muito mais graves que os externos... Entretanto o forte
diz: se diante de mim se estendem os acampamentos, não deverá
temer meu coração; se contra mim se erguer a batalha, manterei
minha esperança (Salmo 26).
Na mesma época em que Santo Ambrósio escrevia essas linhas,
Amiano Marcelino trabalhava em seus Anais: o livro de história mais
insigne e ponderado que o baixo império produziu. Marcelino era um
pagão de Antioquia, mas não escreveu sua obra com uma perspectiva
confessional. Acreditava na possibilidade de uma historiografia
"objetiva". Como Santo Ambrósio, não gostava dos germanos (por
exemplo, via sob uma luz totalmente imoral, as primitivas iniciações
juvenis dos taifalos). Com uma análise do costume huno, procurou
explicar a origem da onda bárbara que arrastara tudo à sua frente; e
tinha objetividade suficiente para reconhecer que o episódio de
Adrianópolis fora de certa forma desejado pela classe dirigente
romana, que dava, aos godos carne de cão em troca de seus fIlhos
reduzidos a escravidão. Ele via a origem da decadência romana na
burocratização excessiva e na opressão tributária; por isso mesmo
sua crítica recai sobre Constancio II; sua admiraçao (na verdade
contida dentro de limites precisos) volta-se para Juliano, que, na
Gália, já com o título de César, reduzira o tributo de 25 para 7 solidi.
Esta atitude espiritual situa-se no mesmo plano dos conselhos do
anânimo, que repreendera Constantino pela emissão abundante de
ouro, e os governadores pela "cobiça execranda, ruína do
contribuinte". No fundo, a obra de Amiano foi toda uma epopéia da
res publica, que corria o risco de sufocar sob o emaranhado das
multidões bárbaras que pressionavam as fronteiras e das alistadas no
exército imperial, das deserções e das traições dos soldados, das
misérias que humilhavam a vida urbana de Roma, das lutas pelo
trono episcopal romano. Cada relato, cada página de seus Anais
parece levar de volta idealmente ao pensamento da catástrofe de
Adrianópolis (378). Amiano escreveu na época de Teodósio, o Grande
(379-395), dominada pela lembrança daquela batalha com a
horripilante cena final do imperador derrotado, queimado no
incêndio. Sob o mesmo Teodósio[11] parece ter vivido Vegécio, escri-
tor muito menos importante do que Amiano e todavia também
obcecado pela idéia de uma gravíssima decadência de Roma.
Amiano é pagão; Vegécio, pelo menos formalmente, é cristão.
Entretanto ambos escrevem como que em meio a um opressivo vazio
e à vaga sensação de que algo se perdeu em 375: Amiano com a
implacável melancolia do grande historiador; Vegécio com o
otimismo erudito de quem expõe soluções impossíveis e deteriora
termos venerandos que a essa altura já são sombras de si mesmos. O
termo venerando que nele se toma mágica panacéia é legião;
remédio para a decadência é a antiga disciplina legionária. Um re-
médio certamente tão genérico e abstrato como haviam sido vivas e
atuais, embora às vezes utopísticas, as propostas do anónimo que
escreveu sob Constâncio II. Quanto à explicação da crise, Vegécio
corretamente a procura na insensibilidade dos proprietários, que
evitam mandar para o servico militar seus melhores colonos e
oferecem elementos que "não prestam", gente que não daria nem
mesmo para o trabalho nos campos. Em última análise, um
"diagnóstico" preciso, um remédio arqueológico. Todavia, se o diag-
nóstico de Vegécio a respeito da decadência foi esquecido, algumas
de suas fórmulas militares (aliás, vegecianas até certo ponto) ainda
ressoam em nossos ouvidos, tendo agradado inclusive a Maquiavel.
Essas gastas propostas de Vegécio não constituíam, portanto,
soluções, mas argumentos para os queixumes literários a respeito da
decadência. Em alguns casos até serviam de consolo para quem
queria esquecer que no coração do império, na região da Ilíria,
Teodósio, o Grande, tivera de aquartelar os soldados godos,
vencedores em Adrianópolis. Debruçados sobre o esforço erudito de
[
Vegécio, seus leitores podiam concluir que a crise de Roma não era
um fato novo, pois já aí a época de Aníbal - dizia seu autor -
conhecera algo semelhante" em decorrência da longa paz que se
seguiu a primeira guerra púnica" . No entanto, quando o mouro
Gildão se rebelou contra Roma, mais uma vez sentiu-se profunda-
mente o perigo; até Claudiano, poeta do general Stilicon, disse que
"o próprio tamanho do império prejudica Roma'.' Gildão foi vencido.
Em 401 e 402, Stilicon venceu Alanco na ltália. Todavia os romanos
daquela época tiveram de fazer certo esforço para acreditar, por
exemplo, mais nas panegíricas efusões do paganizante Claudiano que
no pessimismo do cristão Sulpício Severo, que, por volta do ano 400,
tornou a lembrar que os pés da estátua de Nabucodonosor eram de
argila. Em 406, Stilicon venceu o ostrogodo Radagaiso, porém no
mesmo ano hordas de bárbaros caíram sobre a Gália; mais tarde
alguns chegaram à Espanha; alanos, suevos, vândalos. Uma parte do
império começou a se desintegrar.
E em 408 Stilicon foi morto; em 410 Alarico ocupou Roma. Com a
morte de Alarico, seus visigodos encaminharam-se para o norte da
Itália, rumo à Gália; mais ou menos nessa época, Oriêncio, um
homem do mundo que se tornara religioso sob o peso do drama,
escreveu seu Commonitorium: "A Gália", dizia, "é uma fogueira só."
Não era apenas a decadência do império, mas o destroçamento. O
Commonitorium de Oriêncio reduzia a origem dos males aos
primeiros pecados graves; luxúria, inveja, avareza, ira, mentira. No
final do Commonitorium, os novíssimos: a morte, o inferno, o céu, o
juízo. Com este pequeno poema estendido para o além tem início,
poder-se-ia dizer, a Idade Média (nove séculos depois, o mesmo
motivo do pecado e dos novíssimos produzirá a síntese espiritual da
Idade Média que é também a máxima obra poética dos cristãos: A
Divina Comédia). O conceito da decadência separa-se da esfera das
propostas e das previsões; em Oriêncio torna-se um assustado remor-
so diante dos pecados, uma pura espera do julgamento divino.
Por que narrar os funerais de um mundo que vem se arruinando ao
seguir a lei comum de tudo que se extingue? [Aqui também,
portanto, o eco do omnia orta interelmt de Salústio.] Por que insistir
sobre o número daqueles que morrem no mundo, enquanto tu
mesmo, ao contrário, vês teu último dia chegar depressa?" Bem-
aventurado aquele que, considerado este solene juízo, para o qual
olham as cidades e as nações, pode esperá-lo com coração firme e
expressão serena, descansando sobre a inocência de sua vida.
Em 416 outro poeta cristão da Gália escreveu o célebre Carmen de
providentia, em que o conceito de "juízo de Deus" e da "cidade
celeste" dá o tom à resignada consideração dos recentes desastres e
à condenação dos pecadores.
Esta pessoa chora as somas de ouro e prata que perdeu; aquela outra
lamenta o enfeite que lhe foi arrancado, os colares que as esposas
dos godos dividiram entre si... Mas tu, que choras por teus campos
parados, pelas casas abandonadas, pelos deambulatórios de teu
castelo incendiado, não seria melhor chorar por teu verdadeiro mal,
se conseguisses ver a devastação que há no fundo de teu coração?...
Evitemos erguer contra nós, com lamentações raivosas, a justa có-
lera divina; não acusemos o juizo de Deus, que mais que o abismo
infinito supera os meios de nossa razão e de nossa raiva.
Notas[1] Este texto é fundamental para o importante problema da datação
de Comodiano; cf., por exemplo, Courcelle, Histoire littéraire des
grandes invasions germaniques, 1948, 127 ss. (com conclusões
diferentes das nossas).[2] Trata-se de uma edição que não chegou até nós do de mirabilius
auscultatianibus do Pseudoaristóteles (outras quatro redações
chegaram até nós) e consultada por Estêvão de Bizâncio, s.v. fkpjJ-
apa (ou de sua fonte).[3] Walser, in "Historia", Einzelschr. H. 2.
[
[
[
[4] Walser, Rom, dans Reich und die fremden Völker in der
Geschichtsschreibung der frühen Kaiserzeit (1951).[5] É bom lembrar o parecer de Huysmans: "Un seul poète chrétien,
Cammodien de Gaza, représentait dans sa bibliothèque l'art de L 'an
lII.. Ces vers tendus, sombres, sentant le fauve... ".[6] Hubaux, in "Antiquité Classique", 1948, 143 ss.[7] Daqui a polaridade Diocleciano-Constantino: cf. S. Mazzarino,
Aspetti sociaciali del quarto secolo (1951); Seston, RAC IlI, 1036-1037
(1955).[8] Thompson, A Roman Reformer and lnventor (1951); cf. Andreotti,
in "Rivista di filologia classica", 1953, 164. Vale a pena reafirmar
(para o que diz respeito à datação) que tyrannus pode ser somente o
usurpador; um homem como Firmus não poderia ser indicado como
tyrannus.[9] A avaliação da reforma temática de Heráclio é de extrema
importância para a compreensão da história romana e da medieval:
Heráclio situa-se exatamente no limite entre Antigüidade e "Idade
Média bizantina". Este importante imperador bizantino, que governou
de 610 a 641, suportou o avanço árabe, que arrancou Egito e Síria ao
império; entretanto pôde rechaçar o avanço persa, que ameaçava
submergir toda a Ásia Menor. E este sucesso deveu-se, sem sombra
de dúvida, à reforma temática. Com ela, Heráclio estabeleceu
circunscrições regionais em que destinou a seus soldados, a título
hereditário, "propriedades para soldados": cada circunscrição
regional chamou-se thema, "corpo de armada". - Sobre a origem da
reforma temática de Heráclio discutiu-se muito: a opinião mais
difundida (recent. Ostrogorsky, Histoire de l'Etat byzantin, trad. fr.,
1956, 125 ss.) a reconduz ao sistema dos soldados limitanei ("dos
limites") do baixo império: neste caso a reforma de Heráclio não
[
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seria uma inovação propriamente dita, porém manteria instituições
romanas vigentes desde o século IV d.C. Na realidade, contudo, os
limitanei do baixo império a rigor nunca foram soldados-colonos. [Cf.
Seston, in "Historia", 1955, 284 ss.; Jones, in "Classical Review"
1953,114. - Diferentemente, Van Berchen, L'armée de Dioclétien et
la réforme canstantinienne, 1952). O principal argumento
apresentado por Van Berchen é, porém, um texto do historiador
bizantino Malalas que diz que Diocleciano colocou os duques "mais
para dentro dos acampamentos"; se, como acredito, a expressão de
Malalas se refere somente àqueles "limites mais internos" de que fala
Amiano XXIII 5, I, deduz-se que mesmo os duques se encontram no
limes - embora numa linha mais interna - e que portanto os limitanei
não são - como afirma o ilustre estudioso suíço - soldados-
camponeses muito distintos dos demais soldados. ][10] Para se entender toda a "apologética cristã da história", pode-se
consultar o fundamental ensaio de Straub in "Historia", 1950, 52 ss.[11] Para o que diz respeito à datação de Vegécio, cf. o que observo
em Giannelli-Mazzarino, Trattato di storia romana, II (1956), 542-
543. [= S. Mazzarino, L'impero romano. Bari 1988. pp.831-833.
N.d.R.]
MAZZARINO, S. O fim do mundo antigo. São paulo: Martins Fontes,
1991
Marcas da Experiência Romana
1. A COMUNIDADE MEDITERRÂNEA: LIMITES E VIZINHANÇAS
“Antes de mais, é preciso que se saiba que o Império Romano contém
por toda a parte a fúria das nações que uivam à sua volta, e que a
pérfida barbárie, protegida pela natureza dos lugares, cobiça de
todos os lados as nossas fronteiras.” É nestes termos que um obscuro
autor do século IV, pouco depois da conversão de Constantino ao
cristianismo, descreve o campo entrincheirado em que se convertera
[
[
a Respublica Romana, essa grande comunidade dos povos greco-
romanos.
A luta fora muito menos árdua durante o período áureo de Augusto
ou o período argênteo de Trajano. Transformara-se numa série de
combates sem quartel durante o período férreo de Galieno,
complicando-se com terríveis convulsões internas. Depois, mercê de
um esforço quase sobre-humano, o Império reerguera-se. O
Imperador recuperara autoridade sobre as tropas, o exército soubera
uma vez mais conter os Bárbaros, e a Respublica, enfraquecida mas
convalescente, conseguira um adiamento precioso. E embora a
constituição do Império, as suas leis, a economia ou a arte já não
fossem as mesmas do tempo da juventude – seria acaso possível
sobreviver quatro séculos sem transformações? – as fronteiras não se
haviam alterado.
Regiões civilizadas e mundo bárbaro
Na força da juventude, o poderio romano atingira os limites do
mundo civilizado e ultrapassara-os até para anexar as mais férteis ou
as menos atrasadas das regiões bárbaras. Na idade madura,
imobilizara-se em longo corredor que as fortificações do limes
protegiam contra os embates desordenados dos nômades e dos
seminômades a norte ou a sul: bárbaros da planície ou da floresta
onde a vinha jamais conseguia sol bastante para dar fruto, bárbaros
do deserto arenoso ou pedregoso onde a oliveira ardia sem dar flor.
A ocidente, era o oceano a abrir-se num abismo, onde seria loucura
aventurar-se alguém. A oriente, a Pérsia oferecia o espetáculo de um
Império menos poderoso e menos requintado do que o Romano, mas
governado não obstante, de acordo com princípios assás
semelhantes, um Império que se havia de tolerar provisóriamente,
visto terem fracassado as tentativas para o subjugar. Mais distante,
mal conhecida, a China – Serica, o império da seda – construía outras
muralhas contra outros bárbaros. Estes três estados tão cheios de
orgulho – Roma, a Pérsia, a China – formavam uma cadeia quase
contínua do Atlântico ao Pacífico, alternando-se, sem o saberem, na
tarefa de organizar os povos civilizados e de deter os selvagens.
É certo que nem todos os “selvagens” o eram da mesma maneira aos
olhos dos Romanos. A Etiópia perdera quase por completo o contato
com o Egito, depois de sucessivamente ter sido sua vassala e sua
soberana, mas gozava no entanto de certo crédito, sobretudo porque
se situava na origem do ouro, de especiarias variadas, e nas
nascentes do Nilo, mais precioso ainda do que o ouro. Também a
India havia deslumbrado os Gregos pelas suas riquezas e mantido
ligações comerciais e culturais com as províncias levantinas do
Império Romano. Os Arabes não se faziam notar pela riqueza nem
pela força, mas algumas tribos suas visitavam com regularidade os
postos fronteiriços romanos da Síria e da Mesopotâmia, últimos
portos das caravanas antes do “mar sem água” do deserto, e aí
haviam colhido elementos de civilização. Mesmo os Germanos, dizia-
se, apesar da ferocidade natural, lá tinham as suas virtudes. Aos
escritores forneciam por vezes modelos para o retrato ideal do
selvagem nobre; aos exércitos, corpos auxiliares aguerridos; aos
mercadores, clientes com poucas exigências e, se os deuses se
mostravam propícios, escravas loiras.
É verdade que os deuses tinham demonstrado bem a sua cólera no
século III, mas essa dura prova pertencia já ao passado. Reconstruído
militar e administrativamente por uma série de grandes chefes,
desde Cláudio II (268-270) até Diocleciano (284-305), reconciliado
com a irresistível religião de Cristo por Licínio e Constantino (306-
337), o Império considerava crise passageira essa tempestade, no
decurso da qual um imperador fora capturado pelos Persas, um outro
morto pelos Godos, enquanto as melhores províncias desertavam.
Vistas bem as coisas, os Germanos, tal como os Berberes não
submetidos, que em tantos aspectos lhes eram semelhantes, não
pareciam tão de recear como o Estado civilizado dos Persas. Na
época do texto que citamos ao abrir este capítulo, o imperador
Juliano (360-363) - último campeão dos costumes antigos - daria uma
imagem bem nítida deste ponto de vista, ao voltar as costas aos
Germanos, derrotados mas não aniquilados, a fim de tentar uma vez
mais concluir vitoriosamente o velho duelo com a Pérsia.
Assim, os limites do Império pouco se haviam deslocado no decurso
dos séculos. A sul, eram os desfiladeiros do Atlas, uma catarata do
Nilo e, nas outras partes, o deserto: alguns fortins puderam ser
abandonados sem que a situação mudasse sensivelmente. A oriente,
o deserto servia também de fronteira na Palestina e na Síria; daí até
aos desfiladeiros do Cáucaso, estendia-se uma região montanhosa
onde, sucessivamente, tanto Roma como a Pérsia se disputaram com
dureza algumas faixas de terreno sem resultado duradouro. A norte,
o Danúbio e o Reno, os grandes rios que cortam em dois aquilo a que
chamamos Europa, marcavam a fronteira entre a România e a
Barbária. Este limite prolongava-se, para lá do mar do Norte, até as
montanhas entre a Inglaterra e a Escócia. Na Escócia, na Suábia, na
Romérua e (se, em 180, Marco Aurélio não tivesse morrido cedo
demais) na Boémia, o Império concebera a ambição de proteger a
sua fronteira com uma cortina de fortificações exteriores, mas fora
obrigado a renunciar a tal. Aliás, mesmo sem essas fortificações, a
barreira continuava a aguentar-se. Era por certo uma fronteira bem
longa, mas que se justificava pelo fato de seguir, mais ou menos em
linha paralela, as margens do Mediterrâneo, de maneira a resguardar
uma faixa de profundidade quase constante, ao longo do mar.
O Império, dom do Mediterrâneo
Diz-se que o Egito é um presente do Nilo. Com quase tanta razão se
poderia afirmar que o Império Romano foi um presente do Mediterrâ-
neo. Este caráter físico, orgânico, distingue-o com nitidez dos outros
impérios da Antiguidade, que tinham por eixo um vale, e dos grandes
reinos medievais, centrados numa planície ou num planalto. Assim se
pode aplicar à comunidade greco-romana a encantadora imagem que
Platão dava dos Gregos, seus concidadãos, debruçados de perto ou
de longe sobre o mar “como rãs à volta de um charco”. Na verdade,
o Mediterrâneo mantinha unida a imensa Respublica Romana,
assegurando-lhe um clima relativamente uniforme e comunicações
relativamente fáceis. A própria Roma, ao comando: no centro,
transmitia ordens e recebia por barco o seu sustento graças a Óstia e
ao Tibre.
A rede dos cursos de água e das estradas permitiu sem dúvida aos
Romanos uma certa penetração no interior das terras. Com engenho
e persistência os colonos conseguiram aclimatar plantas e métodos
mediterrâneos a alguma distância dos seus locais de origem (como
em relação à vinha, que propagaram em direção ao norte). Contudo,
quanto mais os Romanos se afastavam do mar quente e temperado,
menos à vontade se sentiam. Tornavam-se mais complicados os
problemas “logísticos” e administrativos, atenuava-se-lhes a
faculdade de assimilação dos povos submetidos, afrouxava-se-lhes
também a vontade de dominar os orgulhosos. Embora gostando de
chamar ao seu império “universal”, tiveram geralmente o bom senso
de parar sempre que se lhes tornava difícil retemperar as forças
mediante o contacto fácil com o Mediterrâneo revivificante.
Uniformidade de clima e facilidade de comunicações tornaram possí-
vel esse dilatado milagre do Mundo Antigo: a transformação de uma
amálgama desconexa de povos em comunidade harmoniosa e
homogênea. O imperador que celebrou o primeiro milenário da
fundação de Roma, em 248, era de origem árabe; diziam mesmo que
abraçara a doutrina subversiva e baixa dos cristãos. Que importa?
Acostumados de há séculos a viver em conjunto sob um governo
único, os habitantes do Império haviam adquirido uma maneira
comum de observar e de agir. Um cidadão que se deslocasse de
Eburacum (York) a Alexandria ou de Trebizonda a Cádiz não se sentia
mais estrangeiro do que um francês de hoje que viaje de Lille a
Marselha, Genebra ou Liège. Todos os homens livres eram cidadãos,
e se é verdade que nem todos os cidadãos gozavam dos mesmos
direitos, também as desigualdades se revelavam quase constantes de
uma ponta à outra do Império. Mesmo os escravos viram imperadores
filósofos impor os primeiros limites às arbitrariedades dos seus
senhores. Bem depressa a crise econômica e demográfica
preencheria o abismo que os separava dos homens livres: a liberdade
tornar-se-ia um fardo para os pobres enquanto a rarefação da mão-
de-obra tornaria os escravos mais preciosos. Por todo o Império,
exército, administração, escolas, teatros, salões eram os cadinhos
onde, à chama do patriotismo romano, se fundiam resistências e
particularismos.
É verdade que não houve patriotismo que chegasse para eliminar por
completo as indiferenças e os descontentamentos. Contudo, a
ausência de concorrência tornava quase impossíveis as traições.
O mais ardente dos nacionalistas de hoje tem de admitir que a sua
própria nação faz parte de uma grande família onde as diferenças
culturais são pouco profundas; aos olhos dos seus cidadãos, a Roma
antiga era a única comunidade humana no meio desses seres meio-
homens que eram os Persas, ou desses semi-lobos que eram os
Bárbaros. Ponto de vista este pouco ampliado pelo universalismo de
alguns escritores cristãos.
Unidade e diversidade
Não há dúvida de que subsistiam diferenças regionais de idioma, de
leis, de instituições, de ritos, mas atenuadas, cobertas por uma
superfície homogênea, brilhante, sólida. Duas línguas eram quase
universalmente compreendidas, se não faladas com a mesma
fluência: o latim no governo e na ação, o grego no pensamento e na
elegância. Uma literatura bilingüe, mas una nos temas e no espírito,
conservava a forma primitiva dos idiomas dominantes, enquanto um
latim e um grego populares iam a pouco e pouco suplantando os
falares regionais. Artes e técnicas exprimiam-se igualmente num
idioma uniforme, apesar das variações impostas pelas disparidades
de talento e de instrução, de hábitos ou de clima. Elaborado por
juristas de gênio e enriquecido pela prática quotidiana, o direito civil
enterrava cada vez mais os costumes particularistas. A pouco e
pouco, os inúmeros cultos e deuses locais tinham-se fundido num
sincretismo nivelador. Ao mesmo tempo, as “superstições” místicas
do Oriente haviam feito recuar as “religiões” formalistas da tradição
ocidental. Por último, o cristianismo levara a melhor sobre as outras
crenças universalistas orientais. De resto, a duração e a violência da
luta não podem esconder dos nossos olhos as influências recíprocas,
as semelhanças profundas entre as deusas-mães e as trindades de
todos os tempos, as afinidades entre um Celso e um Orígenes ou
entre um Santo Agostinho e um Juliano.
Como é natural, a camada niveladora não se mostrava igualmente
espessa em todas as classes ou em todas as províncias. Dentro
daquilo a que chamamos a civilização greco-romana, o acento
colocava-se sobre o termo “romano” na parte ocidental do Império,
e sobre o termo “grego” na parte oriental. Por razões opostas, a
Inglaterra e a Palestina estavam menos profundamente
“romanizadas” do que a Hispânia e a Dalmácia. Os Judeus,
orgulhosos de um passado ilustre, não queriam deixar-se
despersonalizar por uma cultura estrangeira; a Grã-Bretanha não fora
ocupada durante tempo suficiente ou colonizada com intensidade
bastante para absorver a fundo a cultura superior dum povo mais
evoluído. Da mesma forma, se as aristocracias urbanas não achavam
extremamente difícil tomar por modelo a aristocracia da Cidade por
excelência, já os camponeses - como sempre e em toda a parte -
conservavam um culto pelo torrão natal mais ou menos marcado,
consoante a distância a que se encontravam das cidades, do mar ou
das vias de comunicação. No principio do século V, um magistrado-
bispo da Círenaica terminava o seu elogio da vida rústica do interior
com estas palavras mordazes: “Sem dúvida que sabemos continuar a
existir um Imperador vivo, porque os exactores do fisco no-lo
recordam todos os anos; mas quem ele seja, é coisa bem menos
clara. Há entre nós alguns que julgam que o nosso rei é ainda
Agamémnon, filho de Atreu”. Persiste o fato de que Agamémnon
fazia parte do patrimônio comum da cultura greco-romana e de que
a ignorância ou o descontentamento dos rústicos só raramente
causou à Respublica Romana revoltas organizadas.
2. FORÇAS TRADICIONAIS
A experiência dos tempos modernos habituou-nos a ver na centra-
lização administrativa o cimento dos impérios, e no comércio um
corretivo à ação dissolvente dos interesses agrícolas locais. Ora, a
unidade política do mundo mediterrâneo clássico assentou pelo
contrário na proteção aos governos locais, enquanto a sua unidade
econômica se construiu essencialmente sobre a uniformidade de
pequenas comunidades agrícolas.
O Império, uma república
Por muito, muito tempo, este império romano, que nunca deixou de
se querer chamar Respublica, prodigalizou esforços para suster os
corpos, organismos e comunidades particularistas que o pudessem
aliviar duma ou doutra função governamental. “Não existe paz sem
exército, exército sem soldo, soldo sem tributo; o resto é comum
entre nós”; nestas palavras, atribuídas por Tácito a um general
romano que se dirigia aos Gauleses, estão resumidos os ideais, e até
as realizações da política imperial. Mesmo os mais despóticos
imperadores do século I, os Calígulas e os Neros, pouparam em geral
aos pequenos senados das cidades provinciais, as humilhações que
gostavam de infligir ao grande Senado de Roma. Á medida que as
exigências da guerra e o peso da administração aumentavam, o
governo central viu-se evidentemente forçado a alargar as suas
atribuições e a multiplicar os seus cargos. Mas mesmo então, a
repugnância em levar a cabo uma centralizacão que não estava de
acordo nem com as tradicões nem com as possibilidades econômicas
e militares, se manifestou por uma série de medidas que conduziam
ao fracionamento. O alto comando (ou seja, o cargo de Imperador,
não o Império, que era e continuou a ser indivisível) foi partilhado
entre duas ou mesmo quatro pessoas. Cada um dos postos militares e
administrativos provinciais estava em condições de se bastar a si
próprio, tanto quanto o permitiam as situações particulares. Aos fun-
cionários municipais, presidentes dos corpos de misteres,
proprietários de grandes domínios, foram garantidos poderes
bastantes para transmitir as crescentes necessidades do governo a
quem dependesse deles.
De todas as colaborações que podia solicitar, o Império só deixou
inexplorada a dos mercadores. Quando muito, foram estes
convidados a ajudar as autoridades nas requisições, por meio das
quais se tentava abastecer o exército e a burocracia sem recorrer ao
mercado livre. Esta indiferença não deixava de ter vantagens,
poupando aos comerciantes a intervenção nos negócios de um
governo que por força não compreenderia os seus interesses. Em
contra-partida, limitava os benefícios mútuos que a comunidade
política e econômica mediterrânea e a sua classe mercantil teriam
podido obter. Tornaremos adiante ao papel do comércio na vida
econômica do Império; limitemo-nos por ora a verificar que na vida
política ele desempenhou um papel insignificante. Por um paradoxo
da história, o único Estado que controlou todo o Mediterrâneo e dele
fez o seu centro de gravidade, viveu e morreu como nação de
agricultores.
O exército camponês
Quem não conhece a história edificante de Cincinato voltando ao
arado depois de cada vitória? Essa história nunca deixou de
representar o ideal supremo de Roma, ainda que a realidade cada
vez mais se distanciasse dele. Depois de a guerra ter enriquecido ou
empobrecido quase todos os pequenos proprietários independentes
do território latino, buscaram-se mais longe os Cincinatos, no resto
da Itália, na Gália, nos Balcãs. As colônias propagaram a boa
semente, os exércitos estabeleceram viveiros em todas as
guarnições, e a árvore, sempre ameaçada mas sempre renascente,
recebeu a proteção de leis especiais. No século III, foram
camponeses ilírios que salvaram o Império da derrocada. No
desmoronamento geral do século V, as derradeiras resistências aos
Bárbaros vieram, não dos grandes, quantas vezes dispostos a
colaborar com o vencedor, mas dos soldados camponeses, únicos ou
quase únicos a conservar propriedades livres ao longo da fronteira.
Os outros camponeses proprietários tinham sido absorvidos de há
muito pelos grandes domínios, resignados e até felizes por trocar a
independência pela segurança; porque os grandes senhores, a quem
abandonavam a propriedade plena da sua parcela de terra, podiam
melhor do que eles fazer face aos flagelos reiterados das invasões, às
catástrofes mais frequentes das más colheitas, às sangrias regulares
e crescentes do fisco.
Se os pequenos proprietários (e, na sua falta, os mercenários
bárbaros) constituíam o núcleo do exército, eram os médios e os
grandes proprietários quem preenchia os quadros militares e
administrativos. Já muito anteriormente, durante as perturbações
que precederam a extinção da República, o seu monopólio fora
ameaçado por uma classe ascendente, a dos “cavaleiros”. Por
estranho que isso nos possa parecer, depois de séculos de cavalaria
feudal, o termo designava então plebeus enriquecidos pelo
comércio, pelos empréstimos e pelos fornecimentos de víveres. Pode
perguntar-se qual seria o destino do Império se estes “cavalheiros de
indústria” tivessem vencido: talvez resultasse mais vigoroso, mais
empreendedor, certamente menos estável. Mas a prudência de
Augusto e dos seus sucessores apoiou-se nas boas famílias dotadas de
bens de raiz, e naturalmente de um espírito conservador e
moderado.
Enquanto a média propriedade manteve o seu lugar ao lado do
grande domínio, o Império possuíu uma base bastante larga de
alicerces camponeses. Só começou a periclitar no momento em que a
classe média foi por sua vez engolida pela crise econômica e militar,
deixando apenas lado a lado grandes senhores e trabalhadores
esfomeados.
As células urbanas, células fundamentais
Enquanto subsistiu, foi esta classe média de proprietários que deu
alma às células fundamentais que formavam o Império: as cidades-
estados. Estas células eram anteriores ao próprio Império e mesmo à
cultura greco-romana. Ligavam-se ao tipo mais simples de
organização humana que pode resultar da fixação ao solo de uma
comunidade anteriormente seminômade ou nômade: um núcleo
fortificado, colocado no meio de uma região agrícola.
O território da cidade-estado mostrava-se de início pequeno bastante
para poder reunir facilmente, no abrigo central, homens e produtos
e protegê-los contra a inclemência da natureza, fazer frente aos
inimigos comuns, partilhar as emoções da prece ou os prazeres do
banquete. A princípio, a cerca podia limitar-se a incluir um único
edifício para os deuses e os chefes, além de um grande espaço vazio
para reuniões. A pouco e pouco foram-se multiplicando as casas e a
aldeia passou muitas vezes a cidade, povoando-se de
administradores, artífices e mercadores, como também de
proprietários rurais. Mas estes continuaram a dominar a vida política
e social da cidade, ao mesmo tempo que asseguravam a sua união
material e moral com a zona abastecedora. O termo civitas, cidade,
que hoje reservamos à capital industrial e mercantil de um vasto
território agrícola, aplicava-se sem distinção ao território e ao seu
núcleo (urbs). O carácter específico do núcleo não resultava da
profissão dos seus habitantes, mas sim do fato de que eles viviam
lado a lado, enquanto normalmente os outros “cidadãos” se achavam
dispersos.
Era quase inevitável que a cidade-estado não fosse mais do que uma
etapa no caminho do império ou da nação. Cedo ou tarde, uma
civitas mais desenvolvida do que as outras ou um chefe militar hábil
e bem secundado haviam de impor a sua força a várias cidades-
estados. Esboçaram-se unidades de maior âmbito, decalcadas muitas
vezes sobre regiões naturais: foi assim que o vale do Nilo viu os seus
“mornos” independentes apagarem-se sob o domínio dos reis-deuses
que controlavam a distribuição das águas vivificantes.
Contudo, nem sempre a geografia era favorável à integração da
cidade num império. Na maior parte da Grécia e da Península Itálica,
erigia montanhas, cavava fossos em torno de cada cidade-estado,
dando-lhe em troca uma nesga de mar como única saída para o
mundo. Por isso se achou muitas vezes retardado o desenvolvimento
do estado rnonocelular em organismo mais complexo. A célula teve
assim tempo de amadurecer dois gérmenes que, noutras partes,
englobados cedo dernais na pesada estrutura de um império, se
atrofiaram: um individualismo mais tenaz, reforçado de
solidariedade mais estreita. Os habitantes conheciam-se melhor:
para se dedicarem a uma expressão coletiva, que refletisse de perto
gostos e interesses, não tinham necessidade de recalcar as suas
personalidades. Na Grécia e na Itália, quando a cidade acabou por
sucumbir, era já tarde para apagar o patriotismo local. Mais valia
então utilizá-lo, transformar em colaboradoras as vencidas da
véspera.
Roma, ela própria cidade-estado, foi mestra nesta arte que lhe valeu
a duração do seu poderio. Mesmo que apoiada numa burocracia cada
vez mais numerosa, o seu exército incomparável jamais teria
bastado, sem o concurso das cidades, para manter a coesão de
império tão vasto e, em última análise, mediocremente povoado:
império que, além do mais, nunca conseguiu transformar-se em
verdadeira monarquia hereditária. A sua estrutura celular,
consolidada onde já existia e introduzida onde faltava, assegurou a
continuidade e a uniformidade da civilização mediterrânea. O mapa
do Império apresenta-se como um ponteado denso de cidades-esta-
dos (500 no Norte de África apenas), com manchas indecisas aqui e
além, onde tribos recentemente submetidas ou admitidas como
“aliadas” faziam a sua aprendizagem de romanização e de vida
municipal.
A crise das cidades
Graças às cidades, podia o imperador em tempo normal “governar
todo o mundo por cartas, sem se deslocar”, como o notava no fim do
século II um romano da Grécia. Infelizmente, no século III esta rotina
tornara-se a exceção. Os imperadores corriam de uma ponta à outra
das fronteiras para afirmar por toda a parte a sua presença, para
colmatar as brechas através das quais os Bárbaros se precipitavam
sobre as civitates, já esgotadas pelas contribuições extraordinárias.
Nestas condicões, era inevitável que as cidades sofressem danos
irreparáveis. Contudo, desastres desta ordem restituíram aos núcleos
urbanos das cidades-estados a funcão originária que haviam perdido
à medida que se desenvolviam e embelezavam com teatros e
ginásios, com aquedutos e com mercados, ao abrigo da muralha
contínua das fronteiras invioladas e distantes. Cada cidade recebeu
guarnições e encerrou-se de novo nas suas muralhas privativas. Roma
como as outras.
Os progressos do absolutismo e as necessidades econômicas obriga-
ram os imperadores do IV século a contar muito mais com uma
pletora de empregados do que com uma escolha de colaboradores. O
peso da sua mão aumentou sobre a população dos núcleos urbanos, a
tal ponto que ricos e pobres se esforçaram por fugir para o campo,
onde o controle era mais difícil. Seria contudo menos exato dizer que
a política imperial foi deliberadamente destrutiva: nos limites em
que o pôde, esforçou-se por manter vivas as células constitutivas do
Império. Todavia, era-lhe necessário explorar sem piedade os
cidadãos. Nos centros prósperos do Oriente, e mesmo em várias
cidades da Gália Setentrional, da Inglaterra, da África ou da planície
do Pó, a operação não impediu uma modesta recuperação
econômica. Se nas outras cidades, em que a retração das cercas
atesta a profunda decadência, a pele do paciente foi arrancada, não
constituiu isso má vontade. É que o paciente nada mais tinha para
dar!
3. TENSÕES NOVAS
Coube às cidades levar a bom termo a última grande tarefa que no
seu crepúsculo o Império do século IV veio a cumprir: a definição da
ortodoxia cristã e a sua propagação entre os “pagãos” (pagani: em
bom latim, camponeses). Porque a Igreja decalcara a sua
organização sobre a própria estrutura do Império, escolhendo para os
concílios as capitais de província e para as sés episcopais os núcleos
de cidades-estados. Era daí que um clero bem disciplinado e isento
de contribuições fiscais dirigia a evangelização do território. Aliás, o
cristianismo apresentara-se desde o início como um movimento
essencialmente urbano. Tanto os primeiros aderentes (proletários)
como os prosélitos de combate (intelectuais) recrutaram-se
sobretudo nos centros mais povoados e mais abertos a inovações.
Reforçando os núcleos urbanos numa época em que a crise
econômica e militar os atingia, a Igreja atuava portanto como fator
de equilíbrio.
Lei divina e lei humana
Os que acusam o cristianismo de ter acelerado a dissolução do
Império Romano confundem o sintoma com a causa. Não há dúvida
de que a ordem antiga havia de estar bem enfraquecida para que a
nova religião se pudesse afirmar apesar da hostilidade geral das
classes dirigentes. Mas o cristianismo ofereceu ao império cristão
uma fonte de entusiasmo mais fresca do que os velhos cultos oficiais
do politeísmo. De resto, o progresso da autocracia parecia exigir uma
religião exclusivista: os Persas tinham-na encontrado no monoteísmo
de Zoroastro; e os últimos imperadores romanos do III século haviam-
na procurado na mesma direção com o culto do Sol. No século IV, os
cristãos não passavam de uma minoria, mas o seu espírito de
disciplina podia ser útil; em 314, após os primeiros editas de
tolerância, o Concílio de Arles propunha já que fossem
excomungados todos aqueles que se recusassem ao serviço militar. É
verdade que para abraçar o cristianismo tinham os imperadores de
renunciar à deificação póstuma que o paganismo lhes concedera.
Compensaram-na, porém, tomando a direção da Igreja. Não valeria
mais refletir os raios projetados pela luz única do que dar
nascimento a estrelas medíocres, num embaciado firmamento de
deuses? Através do cristianismo, o Império alargava até ao céu as
fronteiras que tinha na Terra: a sua causa não era já apenas a dos
civilizados contra os bárbaros; era também a dos crentes contra os
infiéis.
Toda a crença que se arroga o monopólio da verdade contém um
gérmen de intolerância: se as perseguições não a sufocam, o que
fazem é torná-la muitas vezes mais intransigente ainda. Não foi
preciso um século para que o cristianismo se transformasse de
perseguido em perseguidor. Em 311, o imperador Galério abrira-lhe a
porta estreita da indulgência, “a fim de que a república goze de uma
perfeita prosperidade”; em 341, Constâncio proibia os sacrifícios
pagãos, exceto nos templos situados fora das cidades; em 392,
Teodósio colocava fora da lei toda a manifestação desses cultos, aos
quais, não obstante, permanecia ligada a maioria da população rural.
No próprio seio da Igreja, as querelas entre seitas rivais não
esperaram pelos editos de tolerância para se manifestarem. Mais
encarniçadas se tornaram quando os concílios passaram a contar com
a ajuda do Estado para dar execução às suas ordens. Mas todos esses
combates religiosos só vieram sublinhar os conflitos, inevitáveis já,
entre os aspirantes ao Império, as velhas rivalidades das províncias.
Por isso, enquanto os dissidentes tiveram esperança de converter o
Estado ao seu ponto de vista, dirigiram os seus ataques, mais do que
contra o governo, contra os governadores. “Na realidade”, dizia
Optatus, um bispo africano do século IV, “a República não está
inclusa na Igreja, mas é, sim, a Igreja que está inclusa na República,
isto é, no Império Romano, visto que acima do Imperador não há
senão Deus.”
Mais tarde, a intransigência dos “ortodoxos” contra os “heréticos”
viria fornecer uma nova base de patriotismo. Os Romanos viram nos
Arianos bárbaros inimigos tanto da fé como da nação. É sem dúvida
este sentimento que vibra na inscrição gravada por volta de 580 por
um humilde soldado balcânico, num grego mal alinhavado e tocante:
“Senhor Cristo, ajuda e protege a România!”
Porque tinha mais para oferecer do que os cultos pagãos, a Igreja
cristã não mostrou a mesma docilidade. Teodósio “o Grande”, que se
diz ter sido condenado por Santo Ambrósio de Milão a uma
penitência, depois do massacre da população de Salônica, inaugurou
em 390 a série dos imperadores que compraram a salvação da alma
com uma humilhação. Mas que na vida quotidiana não repugnavam à
Igreja os compromissos com o Estado, prová-lo-á a história milenária
de Bizâncio. Já o Evangelho separara o domínio de César do de Deus;
e o desprezo afetado por um Santo Agostinho pela Cidade terrestre
sublinhava que era impossível governá-la segundo a estrita lei da
Cidade celeste.
Por seu lado, o Império pagão nunca se preocupara com teologia. O
seu politeísmo fora prático, concreto. Idéias abstratas e princípios
morais cabiam antes no âmbito da filosofia (para os eleitos) e do
direito (para todo o povo). Eram inevitáveis divergências entre a
filosofia greco-romana e a religião judaico-cristã, ainda que a
maioria dos pensadores não julgasse difícil reconciliá-las. Mas não
havia antagonismo real entre o cristianismo e o direito que
proclamava, pela voz de um Ulpiano: “As regras do direito consistem
em viver honestamente, não lesar ninguém, dar a cada um o que lhe
é devido.”
Contudo, se os sacerdotes tivessem tomado à letra a recomendação
de Jesus de não alterar um iota à Lei mosaica, ou se os juristas
tivessem insistido demasiado na fórmula segundo a qual “a
jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas”,
conflitos de autoridade, senão de doutrina, teriam rebentado sem
demora. Felizmente que sacerdotes e juristas se mostraram
igualmente razoáveis durante os anos decisivos da adoção do
cristianismo pelos imperadores. A colaboração do Estado e da Igreja
começou com base na separação dos poderes.
Será necessário sublinhar a importância da mensagem espiritual que
a Lei de Israel, interpretada pelos cristãos, transmite à Idade Média?
No eclipse das leis e da filosofia antigas, frente aos adoradores da
força e da violência, os seus arautos nem sempre se mostraram
dignos dela. Todavia, a exaltação dos humildes, dos pobres, dos
pacíficos não deixou de permanecer a voz da bondade clamando no
deserto, uma voz que nada poderia já sufocar.
A responsabilidade dos imperadores
Os humildes necessitam da proteção do Estado, a Igreja enfileira ao
lado da ordem imperial. Estando assim o cristianismo fora de causa,
será o absolutismo dos imperadores do século IV que se deve acusar
de ter sapado a Romana Respublica? Uma vez mais, convirá não
confundir causas e sintomas. Depois das tempestades do século III,
deixou de haver corpo legislativo ou administrativo que se fizesse
respeitar pelos seus próprios meios; uma autocracia enérgica era o
único freio possível contra a anarquia. Aliás, poderá dizer-se que
Nero e Caracala, embora sem uma tão forte pressão das
circunstâncias, se importaram mais com a liberdade do que
Diocleciano e foram mais respeitadores da moral do que Constantino?
Senadores e magistrados urbanos fugiam às responsabilidades,
tornadas um peso excessivo; um número crescente de intelectuais
desesperava da Cidade dos homens e voltava-se inteiramente para
Deus. Os soberanos despóticos e brutais, que, no século IV, se
encarregaram da defesa da comunidade greco-romana, foram,
apesar dos seus erros e dos seus crimes, os melhores sustentáculos
da parte de liberdade que podia ser salva.
O que é que se podia salvar? Não por certo a realidade, ao menos
porém o princípio. Praticamente, a liberdade política morrera muito
antes do século IV. Apesar da sua preocupação pelas formas
republicanas, Augusto transmitira aos sucessores um poder ilimitado.
Se os Antoninos se obstinaram ainda em pedir conselhos ao Senado,
já não teriam aceito ordens. Os imperadores dos últimos séculos
vestiram-se de púrpura e exigiram que os súditos se prosternassem
em sua presença. Contudo, o direito romano, fiel às concepções
originárias, persistia em ver neles magistrados exercendo o imperium
(o poder de comandar e de se fazer obedecer) por delegação do
povo. Era apenas um ideal, mas bastava para colocar o imperador
num plano bem diferente do dos reis por direito de conquista ou por
investidura divina, que lhe iam suceder na Idade Média.
4. O IMPÉRIO DE PÉS DE BARRO
De todas as medidas urgentes que os imperadores tomaram para
ocorrer às necessidades extraordinárias do século IV, foram as
ordenações econômicas que pareceram na época, como ainda hoje
parecem, as mais opressivas.
Seriam as alterações e as falsificações da moeda que causavam a
subida dos preços? A lei pretendia estabilizá-los a um nível inferior e
fixo, de ponta a ponta do Império. Havia cidadãos que se mostravam
incapazes de pagar os impostos ou de prestar os serviços a que eram
obrigados? A lei impunha aos vizinhos - burgueses da mesma cidade,
camponeses da mesma aldeia, membros do mesmo corpo de ofícios
ou da mesma família - que pagassem ou servissem em seu lugar. Mas
acaso esses vizinhos tentavam subtrair-se ao fardo, mudando de
residência ou de profissão? A lei proibia-lhes deixar o seu posto, a
que acorrentava também os filhos. A única alternativa que subsistia
era a de pagar em dinheiro ou em gêneros.
Impostos sem piedade
Aplicada intermitentemente, uma legislação rigorosa como esta teria
podido arrancar um esforço supremo a uma população
sobrecarregada; mas mantida em vigor durante dois séculos, saldou-
se por desastre quando não se mostrou impotente.
Os poderosos encontraram o furo para se esquivarem às ordens; os
menos fortes foram devorados enquanto os mesquinhos
desapareciam da lista dos contribuintes. Mas o governo não largava a
presa, até quando as circunstâncias o teriam permitido. Conquanto
Constantino “Magno” tivesse eliminado os rivais, evitado as guerras
com o exterior e confiscado os tesouros dos templos pagãos, nem por
isso deixou de acorrentar como escravos os colonos fugitivos e de
impor sobre as trocas um imposto, que os exactores fiscais tinham de
extorquir à chicotada. Foi sobre estes alicerces que Constantinopla
se construiu.
Todavia, que o agravamento do fisco no crepúsculo do Império não
nos faça esquecer as próprias bases da economia mediterrânea
antiga, não bastante robustas, equilibradas e elásticas para
aguentarem o peso e os choques que tinham de sofrer. Não é sem
custo que o apreendemos: essa Respublica, cujos monumentos sem
cessar admiramos e que, durante séculos, assegurou às populações
um nível de vida mais elevado, no seu conjunto, do que tudo aquilo
que até então se conhecera ou se viria a conhecer por muito tempo
ainda - essa Respublica era, não obstante, um colosso de pés de
barro.
Agricultura sem excedentes
Com efeito, a agricultura romana - se é lícito falar em termos gené-
ricos de uma atividade tão variável de região para região, ou até de
aldeia para aldeia dentro dum mesmo termo - tendia a empregar o
maior número de braços para obter do mínimo de terreno o máximo
rendimento possível. Contudo, e excetuadas algumas províncias mais
férteis mas super-povoadas, como o Egito, esse rendimento
mantinha-se medíocre, mau grado o engenho e os esforços dos
agrônomos. Na Itália, a colheita de trigo não excedia, em média, o
quádruplo da sementeira.
Apesar de tudo a população atingira densidade considerável para a
época, visto que os camponeses viviam frugalmente dos produtos da
terra. Os animais contribuíam pouco para a alimentação e para os
trabalhos dos campos. Para lhes exigir mais, haveria que abandonar-
lhes também uma área mais extensa das terras de cultivo, o que
seria um luxo absurdo para as velhas cidades-estados mediterrâneas!
Os camponeses eram obrigados, se queriam estender as culturas, a
transformar os montes em terraços, a irrigar os terrenos áridos, a
enxugar os pântanos. Preferiam limitar-se, em matéria de animais,
ao gado miúdo, facilmente alimentado com o que era inutilizável
pelos homens, e arrancar do solo, com o suor do rosto, uma
subsistência mínima. A saúde não se ressentia, visto que o clima do
Mediterrâneo convida a uma nutrição ligeira; mas era-lhes de todo
impossível acumular excedentes.
Nas províncias conquistadas havia menos tempo, como a Grã-
Bretanha ou mesmo a Gália Cisalpina, os horizontes eram mais
vastos, o gado mais numeroso e a população mais rarefeita.
Substituindo os métodos primitivos dos indígenas pelas técnicas
mediterrâneas, os Romanos teriam podido criar aí uma agricultura de
abundância a partir de um equilíbrio feliz entre campos, pastagens e
reservas. Teriam podido aprender algumas técnicas do Norte
adaptadas ao clima, ao terreno e à riqueza em gado, tais como a
atrelagem em fila, cujo emprego na Gália Cisalpina nos é descrito
por Plínio. Infelizmente os conquistadores, habituados à falta de
espaço, não apreciaram no seu justo valor as vantagens dos sistemas
de exploração célticos ou germânicos, à base de habitações
rarefeitas e de vastas extensões de prados e de florestas. Pareciam-
lhes o produto de uma cultura atrasada e dissipadora, mais do que
de uma natureza generosa. Por isso os Romanos multiplicaram,
comprimidas em xadrez regular, as suas habituais aldeias onde os
camponeses laboriosos e parcimoniosos cultivavam à maneira de
horta a maior parte do solo.
Todavia, se é verdade que os pequenos cultivadores, que formavam a
maioria da população, não dispunham de excedentes apreciáveis, os
grandes senhores estavam em condições de os acumular pelo
trabalho dos escravos e dos camponeses dependentes. Se aplicassem
os rendimentos no comércio, na indústria e na finança, teriam
podido pôr em movimento toda a economia. Só raramente e contra
vontade o fizeram. Uns, consumiam eles próprios tudo o que podiam,
dispersando o resto em liberalidades; outros, só sonhavam em
alargar os seus domínios em terras e em escravos. Alguns iam até ao
ponto de organizar pequenas indústrias destinadas a abastecer os
seus domínios sem recorrer aos mercados urbanos, mas nenhum ou
quase nenhum queria arriscar a reputação na verdadeira manufatura,
destinada à venda pública.
Comércio sem prestígio
A usura, conquanto mais desconsiderada ainda, tentava os aristocra-
tas com a elevada taxa de juro; mas as aparências exigiam que se
servissem de homens de palha, o que impedia a transformação dos
usurários em banqueiros. Sucedia o mesmo com o comércio. Aliás,
uma lei do século V, que se ligava às tradições e às leis da época
republicana, proibia aos nobres, aos ricos e aos altos funcionários as
operações mercantis, “a fim de que os plebeus e os negociantes
possam vender e comprar mais facilmente.”
Tais eram os obstáculos que limitavam as profissões a que chamamos
urbanas, prejudicadas já pelo medíocre rendimento do trabalho e
pelo fraco poder de compra da população agrícola. Poderosos e
pequenos, capitalistas agrários e trabalhadores das cidades viviam
em assás boa harmonia, porque não colaboravam uns com os outros.
Diga-se em verdade que a aristocracia não era insensível aos serviços
que mercadores, lojistas e artífices lhe prestavam, conseguindo-lhe o
que faltava nos grandes domínios. Burocratas e militares eram os
melhores clientes destes citadinos que as autoridades tratavam com
benevolência, até porque a sua prosperidade engrossava o
rendimento líquido do fisco, enquanto a sua penúria poderia originar
levantamentos de massas. Mas uma benevolência tão desdenhosa não
podia engendrar compreensão verdadeira. A administração e os
benfeitores particulares, se não desprezaram por completo tudo o
que era de interesse público, construiram mais teatros e aquedutos
do que molhes ou moinho. As soberbas estradas militares que
sulcavam o Império quase não atendiam aos interesses da economia
mercantil: eram estreitas, rígidas, de manutenção dispendiosa. E,
embora o Estado, em princípio, não interviesse nos negócios
privados, não se preocupava quando os tinha de subordinar a
interesses políticos. O comércio com o exterior, suspeito de abrir a
porta à espionagem e ao contrabando, era fiscalizado, limitado.
Quanto ao comércio interno, não lhe davam acesso a operações tão
frutuosas como o abastecimento maciço em cereais e em sal ou a
exploração das minas; o próprio Estado as assegurava, graças aos
tributos em gêneros, ou reservava-as para monopólios. Os corpos de
ofícios só eram tolerados ou sustentados pelas suas funções de
assistência mútua e de utilidade pública.
Sem dúvida que entre a gente do comum havia quem amealhasse
dinheiro fora da agricultura. Conquanto exaltem esta última como a
única profissão susceptível de dar bem-estar sem sacrificar a
dignidade, os escritores do Império sublinham o carácter lucrativo do
empréstimo a juro e do comércio a grande distância (sem contar a
caça ao testamento, cuja importância na época imperial testemunha
que não era fácil enriquecer nos empreendimentos produtivos). As
ocasiões não podiam faltar aos usurários e aos mercadores, num
império tão extenso e povoado. O requinte da civilização greco-
romana, a moderação dos direitos aduaneiros internos, incitavam às
atividades financeiras e comerciais. Mas aqueles que faziam fortuna
por estes meios seguiam na maior parte dos casos o conselho de
Cícero, ele próprio chegado à razão: “Se o mercador, saciado ou
antes satisfeito com o seu ganho, se retira... para o campo e para os
bens fundiários, parece-me merecer todos os elogios.” Para os
usurários, este fim de carreira era quase imposto pela necessidade
de tomar o lugar dos camponeses endividados, cujas terras haviam
feito confiscar. E assim o dinheiro ganho com tanta fadiga ou com
tantos perigos no comércio ou na usura enterrava-se finalmente no
solo, em vez de fertilizar os empreendimentos que o tinham
produzido.
Artesanato sem equipamento
Era praticamente impossível amealhar no artesanato, atividade que
Cícero qualifica como sórdida e indigna de homem livre. Com efeito,
o magro rendimento do trabalho manual, que só se servia dos
instrumentos mais simples, limitava os benefícios, até porque a
concorrência de numerosos escravos interdizia aos artífices livres o
aumento de preços. Sem dúvida que a técnica greco-romana chegara
a inventar máquinas assás aperfeiçoadas, mas os trabalhadores é que
não eram suficientemente ricos para as comprarem e os capitalistas
nem de longe se preocupavam com fornecer-lhas.
Só para lembrar um exemplo, diga-se que o moinho de água surgiu no
extremo oriental do Império já no século I antes de Cristo. Um
epigrama grego, primeiro tributo da Musa ao progresso industrial,
proclamara o alívio que assim era trazido às moedoras de grão. Mas
este moinho não foi adotado em Roma antes do século IV; e fora de
Roma, só se viria a generalizar durante a Idade Média. De resto, que
fazer dos braços tornados inúteis pela introdução de uma máquina?
Só empreendedores sem coração sonhariam em engordar com a fome
dos pobres... se é que não achavam mais simples fazer trabalhar
multidões de escravos e de proletários mal alimentados. Conta-se
que o imperador Vespasiano, por muito indiferente que fosse ao mau
cheiro de certas fontes de receita[1], declinou a oferta de uma
máquina para levantar colunas com pouca despesa: “Deixai-me dar
de comer ao povo miúdo”, disse. Este povo miúdo, reduzido muitas
vezes a viver das liberalidades dos grandes, formava o elemento mais
numeroso da população das metrópoles antigas e contribuia, com os
seus protetores ricos, para tornar as cidades parasitas do campo mais
do que centros industriais e comerciais.
A mediocridade do ouro
A abastança discreta dos primeiros séculos do Império, essa aurea
mediocritas, tão cara ao mundo mediterrâneo antigo, era portanto
resultado de dois círculos viciosos. Vamos encontrá-los em quase
todas as grandes civilizações agrárias da Antiguidade, especialmente
na China onde se perpetuaram até aos tempos modernos. Em baixo,
os trabalhadores manuais eram pobres porque tinham falta de
animais e de máquinas, e tinham falta delas porque eram pobres; no
cimo, o comércio e a finança não dispunham de capitais suficientes
porque eram desprezados, e eram desprezados porque lhes faltavam
os capitais.
Assim se nos mostra esta economia de saturação, sem reservas, sem
possibilidade de progresso, mas que permitiu à aristocracia prosperar
e ao povo multiplicar-se enquanto a ordem e a paz não foram
perturbadas. Era impossível modificá-la sem a destruir, nem destrui-
[
la sem impor a todos penosos sofrimentos. Era preciso que os
trabalhadores fossem dizimados para que se poupassem as suas
forças e se melhorasse a sua retribuição. Era preciso que
mercadorias e crédito deixassem quase de se encontrar para que o
seu valor fosse reconhecido; era preciso que os núcleos urbanos
fossem cortados do seu território para que um novo casamento entre
cidade e campo se organizasse sobre bases mais equitativas.
Veremos dentro em pouco que os primeiros sintomas dessa trans-
formação se manifestaram, dolorosamente, desde o crepúsculo do
Império. Seria injusto criticar os imperadores do século IV por não
terem compreendido as possibilidades do futuro e, agarrando-se
desesperadamente ao passado que se desmoronava, tentarem
amarrar cada obreiro ao seu mister, cada empregado ao seu cargo,
cada soldado ao seu posto, e mesmo cada preço ao seu nível
anterior. A enxurrada arrastaria decretos e imperadores, mas foram
precisos vários séculos para que a Idade Média conseguisse varrer as
ruínas e construir uma economia ao mesmo tempo mais flexível e
melhor equilibrada - a economia que serviu de base à civilização
européia contemporânea.
5. EPÍLOGO
Os imperadores do século IV conseguiram, bem ou mal, resolver a
maior parte dos problemas que pareciam antes condenar a
civilização mediterrânea à destruição. Mas a longa crise e os
remédios heróicos para a superar haviam de tal forma agravado as
fraquezas constitucionais da sociedade romana que não restava já
margem bastante para fazer face à guerra. Só com uma longa paz se
teria podido reconstituir essa margem, mas tal prorrogação não foi
concedida. O verão de São Martinho terminou em novas
tempestades.
Antes de findo o século IV, os hunos de Átila subjugaram os Ger-
manos que eram seus vizinhos, e obrigaram outros a buscar a
salvação numa “fuga para a frente” no interior do território romano.
Nova série de invasões se abateu sobre o Império durante todo um
século. Não seriam elas mais irresistíveis do que as do século III, mas
o Império é que já não podia despender esforços prolongados em
todas as direções ao mesmo tempo. O Ocidente foi perdendo
província após província; o último ato representou-se em 476.
Batera-se contudo tempo bastante para conseguir ao Oriente um
prazo suplementar, que permitiu a Constantinopla seguir o seu
caminho e viver, não sem glória, mais um milênio.
Os pormenores da agonia não poderiam reter a atenção do leitor que
se apressa para a Idade Média. Todavia, para conhecer os materiais
de que a Idade Média se serviu na construção do seu próprio edifício,
temos de voltar atrás e de observar a crise mais grave e mais
prolongada, de que a queda do Império Romano não é senão um
episódio: a decadência de toda a Euro-ásia durante os primeiros
séculos da nossa era.
[1] Ao filho que lhe censurava o lançamento do imposto sobre as
latrinas públicas, Vespasiano apresentou uma moeda proveniente da
arrecadação a fim de verificar que “não cheirava”.
Por LOPEZ, R. O Nascimento da Europa. Lisboa: Cosmos, 1979.
Em Direção ao Abismo
1.TODO UM HEMISFÉRIO EM CRISE
“O mundo envelhecido já não conserva o antigo vigor... o inverno já
não tem chuva bastante para alimentar as sementes, nem o verão
sol que chegue para alourar as searas... as montanhas desventradas
oferecem menos mármore, as minas estão esgotadas, há menos
prata e ouro... os campos carecem de agricultores, o mar, de
marinheiros, os acampamentos, de soldados... já não há justiça nos
julgamentos, competência nos ofícios, disciplina nos costumes... a
epidemia dizima o gênero humano... o dia do Juízo aproxima-se.”
[
Redigida por volta de 250 por Cipriano, esta lista de desventuras
(que nós resumimos) pretende oferecer a prova científica de que as
profecias, tanto cristãs como pagãs, começavam, inexoravelmente, a
realizar-se. O “fatal VI milênio depois da Creação” acerca-se do fim.
A longa luta entre Deus e o Diabo precipita-se para a explosão final.
Que importa se a sucessão dos acontecimentos desmentiu as
previsões de Cipriano? O sentimento de que o “Dies Irae” está
iminente persistirá durante séculos, exasperando-se a cada nova
invasão, precisando-se a cada epidemia de fome, criando uma
psicose do Anticristo que todo o homem mau parece encarnar.
O medo não se dissipará senão pouco a pouco e no curso da renova-
ção da Baixa Idade Média, não se prestará ao ridículo senão no século
XVIII, para renascer, sob outra forma, na nossa época - a da loucura
racial e da ciência nuclear. Procuramos reconforto na esperança de
que, a despeito de tudo, a razão prevalecerá, o progresso
permanecerá sobre a terra; os contemporâneos de Cipriano
retomavam coragem espiando, nos sinais da Morte, o anúncio da
Ressurreição.
As trombetas do Juízo Final não se fizeram ouvir no fecho do “sexto
milênio”, mas o mundo antigo também não lhe sobreviveu. Não se
abismou de súbito nas chamas dum Apocalipse: em 476, a deposição
do último imperador romano no Ocidente, que nos habituamos a
considerar como marco inicial da Idade Média, passou quase
despercebido fora da Itália. Mas a mudança, conquanto gradual, nem
por isso foi menos radical. Se Platão ou Alexandre Magno voltassem a
terra sete ou oito séculos depois da morte, ao tempo de Juliano ou
mesmo desse infeliz Rômulo destronado em 476, teriam encontrado
sem dificuldade quem os escutasse e os admirasse; cento e cinqüenta
anos mais tarde, pareceriam estranhos e incompreensíveis aos
contemporâneos dum Dagoberto ou dum Agilulfo.
De Roma à China
A revolução foi tão extensa quão profunda. Tudo leva a crer que os
abalos se propagaram dum extremo ao outro do continente euro-
asiático, onde quer que Estados organizados e civilizados faziam
frente aos Bárbaros. Infelizmente, não temos da história persa o
conhecimento bastante para estabelecer um paralelo frutífero entre
as suas vicissitudes próprias, nos primeiros séculos da nossa era, e as
do Império Romano na época do seu declínio. Aliás, as profundas
diferenças entre as estruturas políticas, econômicas e sociais dos
dois impérios vizinhos não permitiriam uma comparação rigorosa. O
caso mostra-se bem outro no que respeita à China, cujo passado
conhecemos melhor e cuja estrutura fundamental, não obstante o
enorme afastamento material e cultural, não era muito diversa da de
Roma.
Ora, tanto na China como no mundo mediterrâneo, os sintomas de
mal-estar tinham começado a revelar-se desde o século II da nossa
era e a tornar-se alarmantes desde o III. As lutas civis, a divisão do
Império, a efêmera restauração da unidade, a conquista da capital e
duma metade do Império pelos Bárbaros do Norte que nele se haviam
infiltrado há já longo tempo - todo esse drama se desenrola no
Extremo-Oriente com o mesmo andamento e quase os mesmos
intervalos que no Extremo-Ocidente, apenas com a diferença de que
a “Bizâncio” da China não sobreviveu na metade oriental, mas sim na
metade meridional do Império. Na China, como no mundo
mediterrâneo, a crise política e militar de superfície faz-se
acompanhar por uma profunda crise econômica e religiosa. O velho
confucionismo, ressequido na repetição de fórmulas, cede o passo a
um taoísmo indígena, mas transformado pelas influências hindus, e,
sobretudo a um budismo a todos os títulos estrangeiro e místico,
ascético, monacal. A população empobrece e rarefaz-se,
especialmente nas províncias que sucumbem aos invasores; os
cidadãos procuram subtrair-se à opressão fiscal, quer emigrando quer
acolhendo-se à proteção dos poderosos.
Será preciso sublinhar que as semelhanças entre as duas revoluções,
a chinesa e a mediterrânea, perdem em nitidez logo que nos
debrucemos sobre o pormenor? Todavia, tais semelhanças
permanecem assas impressionantes para que nos perguntemos se não
terá havido uma causa comum a evoluções tão paralelas. E a esta
pergunta segue-se uma outra: as crises política e militar precederam
as crises econômica e religiosa ou sucederam-lhes? É talvez o
problema da galinha e do ovo: se é verdade que as guerras civis e as
invasões dilapidaram os recursos materiais e orientaram os espíritos
para novas crenças, também o enfraquecimento econômico e o tédio
do século suscitaram as perturbações e entregaram o país aos inva-
sores. Seja: mas entre as tensões concomitantes que conduziam à
ruptura do equilíbrio, não existirão graus ou até mesmo uma
progressão cronológica?
Exclui-se a morte violenta
A hipótese de uma morte violenta das civilizações antigas, na
seqüência de choques bélicos, não basta para explicar tudo.
Excluam-se as guerras civis: tanto a história de Roma como a da
China estão cheias delas do princípio ao fim. E então as invasões? A
verdade é que os impérios romano e chinês não foram aniquilados,
visto que mantiveram uma considerável parcela do seu território. Até
mesmo nas províncias ocupadas, os invasores não desrespeitaram
formalmente, não destruíram por sistema a autoridade do império.
Torna-se, aliás, impossível explicar as vitórias dos Bárbaros a não ser
por falhas da armadura romana e chinesa. Na verdade, a pressão dos
povos nômades e seminômades ao longo das grandes muralhas
agravou-se a partir dos meados do século II. E em breve se tornou
inevitável abrir válvulas de escape, convidando algumas dessas tribos
a emparceirarem com os defensores das muralhas: o que não
impediu a pressão de tudo subverter. Talvez que investigações
aturadas, nos setores limítrofes da história, como a arqueologia e a
lingüística, permitam um dia que o problema seja visto com mais
clareza: Mongóis, Turcos, Sármatas ou Germanos, as tribos das
estepes formavam confederações em constante mudança cuja pro-
gressão se mantém como fio condutor da história das invasões. Além
disso, julgamos entrever alguns elementos materiais do êxito dos
Bárbaros: o progresso da metalurgia, oriundo de um centro de
difusão na Ásia central, forneceu-lhes espadas mais fortes e mais
flexíveis do que as dos Chineses e as dos Romanos, os
aperfeiçoamentos representados pelo estribo, a ferradura, os jaezes,
aumentaram a sua mobilidade.
Frente a povos melhor organizados, mas enquistados nas suas
posições defensivas, dispunha de bons trunfos um inimigo que
atacava a matar em deslocações contínuas. E se bem que os Bárbaros
raramente tivessem triunfado em batalhas campais ou tomado de
assalto uma cidade, a verdade é que constituíam uma força de
desgaste seríssima com o decorrer do tempo.
Não que fossem muito poderosos nem muito encarniçados. Romanos
e Chineses recrutaram tantos Bárbaros quantos quiseram e nunca os
acharam menos fiéis do que os contingentes nacionais - pelo menos
até ao momento em que, tendo quase desaparecido tais
contingentes, os Bárbaros compreenderam que se podiam apropriar
das províncias de que eram, afinal, os únicos defensores. Mas ainda
então, bastaram muitas vezes para os reter presentes, honrarias,
outorga de naturalização e até a sua própria convicção de que eram
incapazes de tomar conta do governo. Aliás, eles próprios se
dividiam em pequenos grupos mutuamente hostis, dilacerados por
ódios implacáveis entre famílias e até entre irmãos. É fato que não
deixaram literatura que testemunhe dos seus pensamentos; mas as
lendas, reunidas muito mais tarde, concordam com as descrições dos
historiadores romanos e chineses em mostrar que o monopólio dos
vícios não era detido pelos povos civilizados nem os povos atrasados
monopolizavam as virtudes.
E depois, os Bárbaros eram tão pouco numerosos! Sorrimo-nos hoje
da historiografia romântica que pintou as invasões como uma
avalanche de massas humanas mal contidas na “estreiteza” das
vastas planícies do Norte, ao lermos que o povo ostrogodo, na sua
totalidade, guiado por Teodorico à conquista da Itália, pôde
encerrar-se durante alguns meses dentro dos muros de Pavia, sem
mesmo de lá desalojar os habitantes. Os Vândalos, ao que parece,
não ultrapassavam o número de 80.000, incluindo aliados, mulheres
e crianças. Mesmo quadro na outra extremidade do hemisfério: os
T’opa, que dominaram a China do Norte durante quase dois séculos,
não contavam, segundo se afirma, mais do que 50.000 combatentes;
toda a população de origem tátara da região em que se situava a sua
capital, contava 14.700 pessoas (ou famílias?), incluindo o resto das
invasões precedentes.
Os argumentos de São Cipriano
Reconsideremos os queixumes de São Cipriano. No meio de mani-
festos exageros, encontramos aí os dados essenciais da situação. Por
um lado, as populações dos impérios tinham diminuído; por outro
lado, haviam envelhecido moralmente, ou seja, perdido tanto a
energia necessária para sustentar o antigo equilíbrio como a
flexibilidade indispensável para o ajustar às novas exigências. A
corrupção dos costumes, provavelmente menos grave e universal do
que os moralistas de então e de hoje pretendem, há de ter
ocasionado menos estragos do que a resignação defendida pelo
cristianismo e pelo budismo. Desviadas do poder efetivo, vergadas ao
peso dos impostos, votadas à miséria, as massas deixavam andar,
mesmo quando a sua vida estava em jogo. Quanto às elites, não só se
encontravam desmoralizadas, a ponto de freqüentemente pactuarem
com os Bárbaros, como ainda tinham perdido até a faculdade de um
pensamento original.
Esta demissão do espírito, que mais adiante retomaremos, seria
apenas derivada do afrouxamento duma sociedade demasiado tempo
amolecida pelo bem-estar? Ou prender-se-ia antes à decadência
física diretamente manifestada no declínio da população?
Desse declínio não nos é permitido duvidar, apesar das numerosas
exceções locais e da dificuldade em lhe medirmos as proporções
exatas. E ele não nos surpreenderá se considerarmos que a taxa de
aumento das sociedades antigas, mesmo nas condições mais
favoráveis, estava estreitamente limitada pela insuficiência da
higiene, pelos defeitos da alimentação, pela dureza do trabalho,
pela freqüência dos casamentos precoces e pela exposição dos
recém-nascidos. Bastava uma leve deslocação de qualquer destes
fatores para criar um déficit. As guerras eram mais mortíferas pela
miséria que geravam do que pelos combates em si. Fontes
impossíveis de verificar falam-nos de uma intensificação do controle
dos nascimentos nos meios laicos; o monaquismo diminuiu
igualmente o número dos progenitores.
Uma explicação cíclica?
Mas os fatores mais interessantes são talvez os de caráter cíclico. Se
bem que a história médica da humanidade não tenha sido escrita,
sabe-se que os grandes flagelos endêmicos e epidêmicos estão
submetidos a flutuações de longa duração, que mais não fosse pelas
altas e baixas das imunizações coletivas. Ora, parece que a mais
terrível das moléstias contagiosas, a peste, entrara numa fase de
extrema virulência a partir da grande epidemia de 180, que vitimou
Marco Aurélio, o último dos “bons imperadores” romanos, e minou o
poder dos imperadores Han em benefício dum médico-taumaturgo.
Desde então, as assolações do flagelo repetiram-se com intervalos
cada vez mais próximos até cerca dos meados do século VI,
conhecendo nova recrudescência no VIII, para depois passar a
segundo plano até a Grande Peste de 1348. Da mesma maneira,
durante os últimos séculos do Império e os primeiros da Idade Média,
a malária (cuja evolução nos escapa fora do Ocidente) tornou
inabitáveis vastas regiões que se repovoariam na Baixa Idade Média
para se esvaziarem de novo a partir do século XIV. E uma vez que
esta doença se relaciona com o escoamento das águas, somos
levados a reler as afirmações de São Cipriano que tão ridículas
pareceram: “O inverno já não tem chuva bastante...”
Os homens de ciência começam justamente a prestar atenção a
certas flutuações do clima que se apresentam como periódicas:
variações do limite meridional dos glaciares e dos gelos flutuantes,
mudança de nível dos lagos, diferença nos anéis de engrossamento
anual das árvores, avanços e recuos na área da vinha ou da oliveira.
A estes dados, que se podem ler no livro objetivo da natureza,
convém acrescentar os informes, quantas vezes suspeitos, dos
cronistas acerca de inundações, secas e fomes. Nada disto foi ainda
catalogado sistematicamente nem interpretado com a prudência e a
sutileza indispensáveis. Mas não reste dúvida de que o estudo do
clima nos poderia ajudar a compreender a aparente simultaneidade
das principais flutuações demográficas e econômicas de longa
duração, através da Euro - ásia.
Ficaria por determinar se tais fenômenos de decadência física e
moral afetaram tanto bárbaros como civilizados: problema quase
insolúvel, uma vez que nos falta todo e qualquer testemunho escrito.
Todavia, alguns indícios arqueológicos e geológicos, o fato de o clima
e a doença não conhecerem fronteiras, e, sobretudo o
comportamento dos Bárbaros depois que entraram no círculo das
grandes civilizações sedentárias, tudo nos leva a crer que a sua
condição não foi radicalmente diversa.
Não se tome turbulência por vigor, nem imaturidade por juventude.
É fato que a sua organização, bastante frouxa e rudimentar, se
acomodava melhor à diminuição dos homens e ao delíquio do
pensamento. Mas o seu triunfo não constituiu o dote de uma força
fresca, capaz de provocar uma reação salutar. Limitou-se, sim, a
acelerar a decadência já decidida dos decrépitos povos dos impérios.
2. OS ESTADOS BÁRBAROS NO OCIDENTE
No Ocidente, a dissolução do Império no século V deu lugar à eclosão
de numerosos Estados bárbaros de grandeza medíocre, talhados ao
acaso das conquistas e dos mútuos empurrões, mas freqüentemente
decalcados sobre unidades geográficas (tal como o Vale do Ródano
para os Burgúndios), econômicas (as regiões ricas em trigo para os
Vândalos), ou administrativas (a prefeitura da Itália para os
Ostrogodos). Alguns desses estados, notoriamente o dos Francos,
cobriam a fronteira desaparecida. Outros, um tudo nada mais
primitivos, organizaram-se no coração da Germânia, que a
germanização do mundo mediterrâneo aproximava de certo modo
deste. Da mesma maneira se esbatia a linha de demarcação entre os
Celtas independentes da Irlanda e da Escócia e os seus primos
romanizados, os Bretões, que as invasões a pouco e pouco
comprimiam nos redutos da Grã-Bretanha ocidental e da Bretanha.
Por seu lado, os Bascos mantinham a independência, embora,
colocados num outro reduto, perdessem o verniz romano.
Difícil aproximação entre Bárbaros e Romanos
Amputação do Oriente, inclusão de uma parte do Norte, substituição
da unidade pela pluralidade: eis os compassos iniciais da sinfonia
européia que havia de suceder à harmonia greco-romana. Mas faltava
ainda muito para que os instrumentistas estivessem prontos. Por toda
a parte, salvo na Grã-Bretanha, que os Anglo-Saxões arrancaram aos
seus habitantes através de uma luta prolongada e sem quartel, de
bom grado permitiram os Bárbaros aos seus súditos romanos que os
desembaraçassem dos cuidados de uma administração cujas leis e
engrenagens se revelavam demasiado complexos para a sua
mentalidade. Por toda a parte, menos em Itália onde os Ostrogodos
se esforçaram um tanto por assimilar o direito e as instituições dos
seus súditos, os Bárbaros transportaram consigo o seu mundo,
mantendo os costumes nacionais e uma estrutura política pouco mais
evoluída do que a de um bando armado. Fora neste estádio que
Roma os admitira no território, ao tempo do seu poderio, esperando
que aprendessem as regras da vida civil e se incorporassem nas
cidades. Mas agora as cidades-estados desmoronam-se e os
aprendizes, tornados patrões, são incapazes de conceber uma
organização que permita às duas sociedades justapostas harmonizar-
se e fundir-se.
A harmonia não teria sido tão difícil de realizar com uma
aproximação ao nível mais abaixo. Os Bárbaros, soldados por
profissão ou por vocação, mas também camponeses nos intervalos
das migrações ter-se-iam podido entender com os simples aldeões do
mundo mediterrâneo mais ràpidamente do que com os senhores ou
com os intelectuais que os serviam por interesse ou resignação. As
massas estavam preparadas para acolher bem quem quer que
aliviasse a opressão fiscal e senhorial que os tornara indiferentes à
ruína do Império. Mas os Bárbaros não tinham conquistado o poder
para se confundirem com os humildes. Foi precisa a invasão bizantina
e a defecção maciça do clero e da aristocracia italiana para que
Tótila (541-552), o mais generoso dos reis germânicos, emancipasse
em grande número escravos e colonos e os convidasse a unirem-se a
ele - tarde demais, uma vez que ele próprio chegara ao último
extremo. Contudo este caso mantém-se isolado. Em geral, a
aproximação processou-se no escalão de cima, entre os antigos e
novos senhores, reunidos pelo desejo de conservar tanto quanto
possível a organização fiscal e senhorial romana cujos frutos
compartilhavam. Mas este acordo só podia fazer·se plenamente
quando o lento progresso da elite bárbara se encontrasse com a
rápida decadência da elite romana. E isso exigiu tempo.
Na primeira linha: Godos e Francos
Desde o princípio, à sinfonia européia faltou também um chefe de
orquestra. Os Godos dos dois nomes (“Brilhantes” ou Ostrogodos e
“Sabedores” ou Visigodos) eram os mais evoluídos dos Bárbaros, os
únicos dotados duma concepção imperial, embora muito vaga.
Destroçados pelo imperador Cláudio II em 269, reconstruíram com
Ermanarico uma vasta confederação que os Hunos vieram a esmagar
no século IV. No século V, o rei dos “Godos Sabedores”, Ataúlfo,
acariciou por um instante a idéia de “transformar o Império Romano
em Império Gótico” (se é que os seus propósitos não foram mal
compreendidos pelo limitado historiador que no-los refere).
Finalmente, o rei dos “Godos Brilhantes”, Teodorico, senhor da Itália
e das províncias circunvizinhas (493-526), esforçou-se por organizar
sob os seus auspícios uma liga de reis bárbaros que se estenderia da
Alemanha à África. Contudo estes reis não mostraram qualquer
entusiasmo por essa primeira tentativa pacífica de concerto europeu,
e os Godos, enfraquecidos já pelas suas antigas lutas, não se
firmavam com muita solidez nos seus domínios. Paradoxalmente, era
a sua conversão ao cristianismo, anterior à de todos os outros
Germanos, que mais os prejudicava, visto terem aceitado a nova
religião numa época em que a doutrina ariana não havia perdido
ainda as últimas batalhas no Império. Arianos e propagadores do
arianismo junto dos seus vizinhos bárbaros, os Godos inspiravam aos
seus súditos católicos mais aversão do que se fossem pagãos.
Antagonismo religioso, desconfiança entre Romanos e Germanos
encurtaram os dias da “renascença” prematura que se esboçou em
Itália com Teodorico. Não bastava que a aristocracia italiana se
tivesse habituado à dominação estrangeira no tempo do seu
predecessor, Odoacro (“homem de boa vontade”, no dizer de um
cronista condescendente), nem que Teodorico tivesse sido legitimado
por uma espécie de investidura concedida pelo imperador de
Constantinopla e que se tivesse desembaraçado de Odoacro pela
guerra e pela traição. Não bastou igualmente que Cassiodoro,
ministro romano do rei ostrogodo, organizasse a administração e
redigisse a correspondência oficial segundo todas as formas usuais no
defunto Império, nem que ao povo se oferecessem novamente jogos
de circo e que as vitórias do rei sobre outros Bárbaros trouxessem de
novo à Itália alguns reflexos do antigo esplendor.
Não fora preciso que Teodorico se romanizasse inteiramente, sem
com isso perder o ascendente sobre os Ostrogodos; coisa impossível,
ainda que a desejasse. Mas que pretendia ele afinal? As pomposas
cartas de Cassiodoro, a história compilada pelo godo Jordanes, a
lenda romana que nos pinta um Teodorico diabólico, engolido por um
vulcão em castigo dos seus pecados, a lenda germânica que dele faz
um herói sem mácula, devolvem-nos quatro imagens bem diferentes.
Concordam apenas em sublinhar-lhe a grandeza. O seu reinado
assinala-se à posteridade pelos mosaicos bizantinos e pelo túmulo
bárbaro de Ravenna, e pelas obras filosóficas de Boécio, o último dos
Romanos antigos, o primeiro dos escritores medievais. Mas Boécio,
depois de longamente servir Teodorico, foi acusado de ter cons-
pirado com o imperador de Constantinopla, e executado. O reino
sobreviveu alguns anos a Teodorico, mas a verdade é que os seus dias
estavam contados.
Antes mesmo de se ter desmoronado o entendimento romano-gótico,
já os votos da Igreja e a lei da selva se haviam encontrado para
eleger um povo mais evoluído, mas mais novo do que os Godos: os
Francos de Clóvis.
Aos embustes que lhe permitiram anexar aos seus os outros pequenos
reinos francos, por onde se espalhava um povo relativamente
obscuro, às vitórias externas que lhe entregaram a maior parte da
Gália e fragmentos da Germânia, ao faro que o levou a escolher Paris
como capital, Clóvis (481-511) acrescentou a decisão que devia fazer
dos Francos, pagãos havia pouco, os paladinos do catolicismo
ameaçado pelos Arianos. Era armar-se de argumentos mais
convincentes do que a devoção cristã, mas herética dos Godos e do
que os seus esforços para se entenderem com os Romanos.
Será preciso acrescentar um fato de ordem material? Dado que as
fontes não mencionam uma distribuição geral de terras como foi
feita aos outros povos bárbaros, pretendeu-se deduzir daí (talvez
erradamente) que os Francos não perturbaram de modo algum a
aristocracia local no gozo dos seus bens. Seja como for - e não
obstante o fato de os usos codificados na lei sálica serem muito mais
impermeáveis ao direito romano do que as outras leis bárbaras da
época - a colaboração da elite franca com a elite galo-romana foi
particularmente íntima. Ajudou os filhos e os netos de Clóvis a
alargar as conquistas do fundador do Estado.
Senhores da mais vasta e fértil região do Ocidente, os Francos eram
de longe os mais poderosos entre os povos bárbaros -
demasiadamente poderosos para não comprometerem toda e
qualquer possibilidade de confederação de Estados como a que
Teodorico havia esboçado, demasiado belicosos para deixarem em
paz por muito tempo os seus fracos vizinhos. Iriam eles reconstituir
em seu proveito a unidade de um Ocidente alargado pela acessão da
Alemanha? Se os seus reis se compraziam na guerra, sobretudo como
desporto e processo de enriquecimento, não faltavam, todavia vozes
a inspirarem-lhes ambições imperiais. Essas ambições, ostentavam-
nas, desde antes da primeira metade do século VI, nas moedas de
ouro com a efígie coroada de Teodeberto I (534-547), uma das quais
atribui ao neto de Clóvis o título de Augusto.
ÚLTIMO REGRESSO DA ROMA LAICA, PRIMEIRO ÊXITO DA ROMA
ECLESIÁSTICA
Se freqüentemente os reis bárbaros se emplumaram com títulos
romanos, como as dignidades concedidas pelos imperadores do
Oriente ou a bizarra justaposição do atributo "Flavius" a um nome
teutônico, quer isso significar que Roma e só Roma lhes oferecia a
idéia dum Estado que ultrapassava a conglomeração de tribos e
transcendia a força material.
Nada mais os poderia reunir além desta uniformidade de costumes -
interdições e apetites (hesitamos em dizer «ideais») - que toda a
sociedade proto-histórica adquire a certo nível de vida, e o fundo
comum de tradições, de artes e de técnicas que haviam assimilado
na estepe asiática quando da alvorada das suas migrações.
Porque falavam, quase todos, dialetos germânicos sensivelmente
aparentados, compreendiam-se uns aos outros, embora a raça
estivesse longe de ser una. Até os povos mais ciosos de antepassados
haviam acolhido no seu seio os salvados de todos os grupos nômades
ou seminômades da Euro-Ásia do Norte que, num momento ou
noutro, ficaram colhidos nos seus redemoinhos: Báltico-Eslavos,
Iranianos, Turcos, Mongóis. Alguns desses restos chegaram mesmo a
conservar a sua identidade no momento da vaga final, como os
Alanos (Iranianos) associados aos Vândalos, ou os Esciros e
Turcilingos (Huno-Turcos?) de Odoacro, o obscuro protagonista de
476. Casamentos e ritos de iniciação acabaram por dissolver essas
minorias: elas, porém deixaram vestígios.
Modelo huno, modelo bizantino
A epopéia germânica e a poesia escandinava iam colocar em lugar de
primeiro plano Atila, rei dos Hunos, embora marido duma germana
(Íldico na história, Kriemhild na lenda)... Aliás, para bárbaros em
movimento, a confederação de hordas controladas por um grande
guerreiro, de que o Estado huno constituía o mais terrível, mas
também o mais poderoso dos exemplos que os Germanos
conheceriam, era indubitavelmente o modelo de organização política
mais fácil de copiar.
Num meio sedentário e cultivado, este modelo tornava-se inutilizá-
vel. Por isso os Germanos ficaram fascinados pela idéia imperial
romana, presente a todos os espíritos. Mas é claro que não podiam
fazer do império sua propriedade absoluta enquanto um imperador
dos Romanos reinasse em Constantinopla e se proclamasse
igualmente soberano do Ocidente, com a aprovação unânime da
Igreja católica. Longe de o discutir, a maior parte dos reis
germânicos reconheceram de bom grado esse direito eminente, com
a condição de lhes não serem exigidas nem tropas, nem dinheiro,
nem obediência. Era-Ihes indiferente que as suas próprias moedas
fossem cunhadas com o nome e a efígie dos imperadores e os seus
documentos datados segundo os cônsules nomeados em
Constantinopla. Isso vinha mesmo escorar o seu crédito
internacional, até maior afirmação de prestígio.
O novo rosto do Império
Constantinopla não o entendeu, porém, do mesmo modo. O que ela
fazia era preparar em silêncio o momento em que pudesse
reivindicar toda a herança romana do Ocidente. E em 533 - meio
século antes de os imperadores chineses do Sul expulsarem, por sua
vez, os Bárbaros para lá da Grande Muralha - os exércitos do
imperador Justiniano puseram-se em movimento. Em menos de um
ano, Belisário conquistou o reino Vândalo, mas já foram precisos
dezoito anos de encarniçadas lutas para dominar o reino ostrogodo.
Narsés, o eunuco, conseguiu-o em 553, conquanto prosseguissem
resistências isoladas até 563. E ainda as tropas “romanas” (cujo
grosso, aliás, consistia em mercenários bárbaros) tomaram a Anda-
luzia aos Visigodos e varreram para lá dos Alpes os Francos que,
aproveitando-se da confusão, se tinham apossado da Itália do Norte.
É certo que a Itália fora devastada de lés a lés, e que as praças
fortes avançadas do reino vândalo em África foram submersas pelos
Berberes; mas as cicatrizes teriam desaparecido se uma paz
duradoura tivesse sucedido à guerra prolongada.
Num quarto de século, a quase metade do antigo Ocidente será recu-
perada e quase todo o Mediterrâneo voltará a ser um lago romano:
“Nunca Deus permitiu aos Romanos tais conquistas, salvo no nosso
reinado”, exclama Justiniano na sua primeira Novela.
Contudo, e se bem que uma outra das suas leis exprimisse “a espe-
rança de que o Senhor nos concederá o restante deste império que os
Romanos... perderam por indolência”, Justiniano não tentou
consumar o projeto perseguindo até ao fim Francos e Visigodos.
Extenuado pelo esforço, o Império tinha necessidade de quanto lhe
restava em exército e em dinheiro para conter os Persas, que
cobiçavam um corredor até ao mar Negro, e os Bárbaros (antigos e
novos) que, na sua totalidade, ameaçavam os Bálcãs.
Conseguiu vencer tais dificuldades, mas não mais encontrou a
tranqüilidade precisa para completar as conquistas de Justiniano.
Precárias conquistas tem-se dito: de fato, em 568 os Lombardos
invadiram a Itália; entre 571 e 624 os Visigodos retomaram a
Andaluzia; a partir de 670 os Árabes darão assalto à África do Norte.
Seja. A verdade, porém é que já não era pouco ter readquirido a
África por século e meio; quanto à Itália, o que não soçobrou nos
primeiros desastres foi defendido palmo a palmo. Ravenna, só a
abandonaram em 751, Siracusa em 876, Bari em 1071 e ninguém
poderá dizer em que momento Veneza se desligou de Bizâncio.
Sobretudo, pelo fato do seu regresso belicoso ao coração do
Ocidente, o Império surgia aos olhos dos Bárbaros com um rosto
totalmente diverso do que mostrara a sua aparente agonia no século
V. Sobreposta à Roma defunta, Constantinopla viva oferecia-lhes um
modelo menos majestoso, mas mais atraente e melhor adaptado à
época.
É claro que a sua influência foi mais incisiva sobre os Lombardos,
rudes sucessores dos Ostrogodos num território reduzido e que os
domínios bizantinos cortavam ou bordejavam a todo comprimento.
Mas exerceu-se sobre os Visigodos e mesmo sobre os Anglo-Saxões
que, de tempos a tempos, nele hauriram regras de cerimonial,
princípios de administração e elementos de cultura. Quanto aos
Francos, viram a sua carreira imperial retardada de dois séculos pela
contra-ofensiva do único império legítimo: será, pois de espantar
que, geralmente, se mostrassem hostis, não obstante várias
tentativas de aliança em que a boa fé faltava a ambas as partes?
O papa, soberano contra vontade
A velha Roma do Tibre, destronada pelos Bárbaros, desvalorizada
pelos Bizantinos, abandonada pelos burgueses e pelos nobres,
encontrou na sua miséria uma nova razão de grandeza. As bases da
sua carreira medieval vieram-lhe do passado antigo. A doutrina da
supremacia do Bispo de Roma sobre os colegas tinha-se desenvolvido
lentamente, no tempo em que a cidade era a capital dum imperador
pagão; mais rápidos foram os seus progressos com os imperadores
cristãos ali não residentes. Em 445, um dos últimos Augustos do
Ocidente, Valentiniano III, ordena ao episcopado das suas províncias
que aceite como lei “tudo quanto for sancionado pela autoridade da
Sé apostólica”. Todavia, esta autoridade choca ainda com tenazes
resistências interiores e exteriores.
Por um lado, o clero africano e oriental, incitado pelos patriarcas
"das grandes metrópoles como Constantinopla e Alexandria, teimava
em favor da doutrina da igualdade básica de todos os bispos. Por
outro lado, o imperador, chefe laico da Igreja, reservava-se o direito
de convocar os concílios, vigiar-lhes as deliberações, fazer cumprir
as decisões e, devido a isso, exercer um controle discreto, mas
efetivo sobre toda a matéria de fé.
Estas pressões diminuíram desde que o Ocidente foi arrancado ao
Império por Bárbaros indiferentes (porque arianos) ou deferentes
(porque recém-católicos). O papa não tinha concorrentes sérios
entre os bispos da Europa ocidental e encontrava-se desobrigado do
poder político do imperador. Foi assim que em 494 Gelásio I,
retomando com mais ousadia as teses enunciadas pelos seus
predecessores e por Ambrósio de Milão, pôde escrever ao imperador
residente em Constantinopla que “o império do mundo se reparte
principalmente por dois poderes: a autoridade sagrada dos pontífices
e o poder real; o encargo dos sacerdotes é tanto mais pesado quanto
no juízo divino deverão prestar contas pelos próprios reis”. Não era
ainda a teoria, mas já o prelúdio da subordinação de César a Pedro:
como chefe da Igreja, o papa afirmava o seu direito de julgar o
imperador no tribunal da penitência.
Programa quimérico, visto que o clero era indócil, o rei, ariano, e
lmperador, freqüentemente heterodoxo! O sucessor de Gelásio,
acusado por uma parte do clero, teve de se remeter ao julgamento
dum concílio de bispos italianos, convocado por Teodorico. A
reconquista imperial da Itália permitiu a Justiniano extorquir à força
a dois papas concessões às idéias teológicas do clero oriental.
O que libertou o papado e lhe permitiu estabelecer definitivamente
a supremacia sobre todo o Ocidente foi a invasão lombarda. Sustida
durante dois séculos às portas de Roma, fez do território romano
zona de fronteira nominalmente bizantina, mas obrigada a contar
com os seus próprios meios. Assim o bispo de Roma torna-se a pouco
e pouco num soberano temporal, independente contra vontade.
Não é de admirar que o papa, absorvido pelos problemas imediatos
deste equilíbrio precário, não tivesse compreendido logo as suas
vantagens a longo prazo. Mas Gregório I procede já como mediador
entre Bizantinos e Lombardos, reúne as províncias destituídas de
governo eficiente e organiza a primeira dessas grandes missões que,
partidas de Roma, hão-de converter todo um povo bárbaro ao
cristianismo e, do mesmo passo, à autoridade romana: a missão do
monge Agostinho - Santo Agostinho de Canterbury - junto dos Anglo-
Saxões. Os progressos da evangelização foram, evidentemente,
lentos e sofreram numerosos recuos temporários antes de toda a
Inglaterra estar cristianizada, pelo menos superficialmente, por fins
do século VII. Enquanto se afadigavam com os pagãos, os missionários
de obediência romana tinham de enfrentar a onda co-beligerante, e
não necessàriamente aliada, dos missionários celtas, cuja
organização e observância se tinham desenvolvido no isolamento e
não se conformavam por completo com a norma romana. Mas aqueles
triunfaram no Sínodo de Whitby (664), e a Inglaterra tornou-se a
ovelha mais conformista do redil de Roma.
As Igrejas fundadas até então aceitavam, é fato, a preeminência
papal, mas estavam organizadas no quadro dos diferentes Estados.
Até mesmo no Estado ostrogodo, aliás, a jurisdição de Milão assumia
atitudes de autonomia para com Roma. Mas as Igrejas instituídas por
Gregório e seus sucessores - Igrejas anglo-saxônicas a partir de 597,
lombarda e frísia no decurso do século VII, alemã no século seguinte
- submetem-se já a uma disciplina mais “católica”, isto é,
“universal” ou supranacional... Esse exemplo havia de incitar as
Igrejas do Ocidente mais antigas a cerrar fileiras em volta do papa e
a lançar as bases dessa união de católicos romanos que, à falta de
unidade política, antecipará, sob o aspecto religioso, a formação da
comunidade européia.
A POBREZA DO ESPÍRITO
Os progressos incessantes da organização da Igreja católica romana,
na época em que os reinos e o Império estavam por assim dizer
atolados, não se explicam com certeza pela sua força material,
quase insignificante, nem mesmo pelas riquezas temporais,
consideráveis já, se bem que inferiores àquelas que haveria de
acumular mais tarde.
Como sempre, os seus verdadeiros tesouros estavam no céu. Mais do
que nunca a sua intimidade com a Cidade de Deus impunha-a aos
grandes e tocava os vencidos, os insatisfeitos, os desesperados da
Cidade dos homens.
Em nada amesquinhamos a glória dos que escolheram Deus se
observarmos, todavia que, em dadas circunstâncias, pode ser mais
difícil permanecer no século do que dele desertar.
A vida eclesiástica podia responder a todas as vocações. Alguns mer-
gulhavam nas querelas teológicas, tanto mais animadas quanto iam
constituir daí em diante a principal manifestação do que subsistia em
matéria de atividade intelectual. Outros votavam-se aos labores
quotidianos da administração, aumentados pelo desfalecimento do
Estado ou pela confiança dos governos que transferiam para o clero
algumas responsabilidades do abastecimento, da justiça e até mesmo
da defesa, asseguradas até então pela administração laica.
Consagravam-se outros ainda à conversão dos heréticos e dos pagãos,
sabendo, além disso, que freqüentemente se tornaria necessário
ensinar aos convertidos os rudimentos da vida civil. Por último, e
eram estes os mais numerosos talvez, havia os que entreviam na paz
do claustro o único meio de resolver individualmente os problemas
que, numa sociedade corrompida e ensangüentada, lhes pareciam
sem saída.
Os mosteiros: um êxito
Os mosteiros constituíram o maior êxito da Alta Idade Média. Que
exemplo o de um Cassiodoro, ministro romano de quatro reis
ostrogodos, escritor adestrado em todas as sutilezas da retórica e da
erudição, que, uma vez dissipados os seus sonhos terrestres, acaba
os dias ditando as regras da instituição monástica que ele próprio
fundara!
No entanto, não é ele, mas sim um homem mais modesto, Bento de
Núrcia, quem transmite às gerações futuras a fórmula em que a
longa experiência do monaquismo oriental, destilada, se adapta às
aspirações do Ocidente. É verdade que, recentemente, se pôs em
questão a originalidade da regra que leva o seu nome: ela derivaria
em grande parte de um modelo anterior. Como quer que seja, foi o
seu texto que se afirmou e assegurou nos conventos beneditinos o
triunfo do bom senso, do equilíbrio entre os rigores do ascetismo e os
imperativos da saúde mental e física. “Escuta meu filho, os preceitos
do mestre... Quem quer que tu sejas, renuncia ao teu querer para
cingires as armas poderosas e esplêndidas da obediência e militares
sob as ordens do verdadeiro rei, Cristo Senhor.”
Em breve o apelo ressoou do Monte Cassino a Roma, à Inglaterra, à
Espanha, à Gália, à Alemanha. E, a pouco e pouco, suplantou as
regras que outros venerados homens, como Cesário de Arles e
Columbano de Irlanda, haviam difundido. Voltadas ao trabalho
manual ou intelectual, do mesmo modo que à oração, as
comunidades monásticas constituíram durante longo tempo os únicos
herdeiros do espírito de ordem e de organização latino, as únicas
aglomerações capazes de aumentarem e de se multiplicarem no seio
da dispersão e da desorientação geral.
Estas comunidades reassumiram em parte as funções de focos
culturais e de centros econômicos que os núcleos urbanos deixavam
escapar. Nas regiões que ainda não possuíam cidades, como a
Irlanda, desempenharam esse papel na medida das suas
possibilidades. Não obstante isso foi na Irlanda que o individualismo
sem compromisso, o desejo de se subtrair completamente à
convivência dos homens para se entregar ao diálogo frente a frente
com Deus, se mantiveram durante mais tempo. Em 891, a Crônica
Anglo-Saxônica relata-nos a história de três monges “que se
evadiram da Irlanda num barco sem remos porque aspiravam a viver
como peregrinos pelo amor de Deus”. Com mais utilidade para a
salvação de seus irmãos, outros monges, em busca de isolamento,
aventuraram-se junto dos pagãos para lhes conquistar a alma. Outros
ainda encerravam-se nas celas a fim de estudar e transcrever os
textos clássicos que a sociedade caída na barbárie deixara de
compreender.
A Igreja: uma potência
Já não é preciso fazer o elogio da Igreja da Alta Idade Média: os
escritores da época, quase todos eclesiásticos, dele se
encarregaram. Sem o propósito de os criticar, notemos, contudo que
esses altos feitos constituíram o rédito dum enorme investimento. E,
muito embora não exista nenhum recenseamento digno de fé, não
há, sem dúvida, exagero na avaliação de que pelo menos uma pessoa
em cada vinte pertencia ao clero e que a proporção era ainda mais
forte entre os homens de talento e de boa vontade. Tais homens não
tinham o direito de prestar à Terra um cuidado que não fosse
subordinado aos seus deveres para com o Céu. Era-lhes interdito
combater e ter filhos. Deviam consagrar ao serviço divino uma parte
considerável dos recursos que acumulavam pelo próprio trabalho e
pelo dos fiéis. Numa época em que o rendimento do trabalho e o
excedente dos nascimentos sobre os óbitos dificilmente
ultrapassavam o mínimo indispensável à sobrevivência da sociedade,
a Igreja recebia, pois do mundo laico muito mais do que o supérfluo.
A despeito das aparências, os Estados bárbaros eram demasiado
fracos para se medirem com ela. A sua hostilidade acabou por
quebrar o reino lombardo, os seus amplexos por atrofiar o reino
visigodo, a sua prosperidade por enfraquecer os reinos anglo-saxões.
E foi necessário todo o prestígio dos Carolíngios para restabelecer um
certo equilíbrio em benefício dos Francos.
No seu conjunto, e não obstante as inevitáveis irregularidades numa
comunidade tão numerosa, a Igreja da Alta Idade Média era mais
culta e benéfica do que a média dos fiéis. Embora não estivesse de
todo isenta do abatimento geral.
Não esqueçamos que, desde o seu começo, o cristianismo se depa-
rava aos melhores representantes da civilização clássica como “uma
superstição insensata e excessiva” na medida em que apelava para a
sensibilidade e para a fé mais do que para o senso comum e para a
razão. Contudo, antes do eclipse da cultura greco-latina, uma
plêiade houve de pensadores originais que consorciou a nova religião
e a filosofia. Os grandes heterodoxos do princípio do século III
racionalizaram, através duma interpretação alegórica, os mistérios
das Escrituras (Orígenes) ou celebraram com ousadia até mesmo os
seus aparentes absurdos (Tertuliano). Os concílios do século IV e da
primeira metade do V definiram a profissão de fé, não sem dilacera-
ções, contudo, dado que o triunfo da cristologia grata aos Ocidentais
provocou no Oriente revolta atrás de revolta: alünos, nestorianos,
monofisitas.
O pensamento cristão atingiu a sua cumeada com os padres que
assistiram à agonia da Roma Imperial: Ambrósio, Jerônimo, Agostinho
de Hipone. Depois, e subitamente, houve um retrocesso. As disputas
teológicas que antes haviam conduzido à sutil definição dum
problema tão capital, como era a inserção de Cristo na Trindade e
sua encarnação “consubstancial ao Pai segundo a divindade e a nós
segundo a humanidade (...) em duas naturezas sem mistura, sem
transformação, sem divisão e sem separação” (Concilio de
Calcedónia, 451), girarão daqui em diante, no Ocidente, à volta de
questões tão modestas como a forma da tonsura e a data da festa da
Páscoa. Entre os três doutores anteriores a 476 e o quarto, Gregório
Magno, que a tradição coloca no mesmo plano, existe um abismo.
Este último condena o estudo da literatura clássica, interpreta as
Escrituras como um ramo de moralidades que é preciso descobrir sob
o véu da alegoria e demonstra a doutrina através duma florescência
de milagres em que Deus e o Diabo, igualmente humanizados, se
afrontam. O ciclo fechou-se; razão e senso comum parecem ceder o
passo à sensibilidade e a fé.
Mas teremos o direito de nos escandalizar? Homem de Estado, admi-
nistrador, propagandista, Gregório I dirige-se às massas, deixando
aos seus predecessores mais eruditos o cuidado de satisfazer os raros
espíritos que os compreendem. Recomenda aos missionários que
prestem atenção aos ritos e aos sentimentos dos pagãos, de modo a
conduzi-las gradualmente à verdade; é o primeiro a chamar aos
Lombardos «inomináveis» e o primeiro a estender-lhes os braços;
resigna-se a que um imperador de talento lhe chame néscio e adula o
seu ignóbil sucessor. E sempre e sem esforço, coloca-se ao nível das
suas ovelhas mais ingênuas porque, a par de ser o herdeiro da
Antiguidade como governador de Estado, é um homem do seu tempo
no que respeita ao ensino da palavra de Deus. Tal a razão do seu
imenso sucesso.
IMATURIDADE GERMÂNICA
Os círculos dirigentes laicos dos tempos bárbaros, entre os séculos VI
e IX, eram, tanto quanto os círculos religiosos, ingênuos e dominados
pelas emoções. Mas o que pode ser considerado, sob certos aspectos,
como uma virtude para os homens da Igreja, raramente o é para os
homens de Estado. O cognome de "pio" ou "clemente", atribuído
pelas crônicas da Idade Média a alguns soberanos, designa
geralmente um néscio ou um fraco. A natureza essencialmente
militar da autoridade exigia que os chefes se inspirassem, não no
cordeiro, mas no lobo ou na raposa.
O soberano
Com efeito, o ideal clássico do imperador magistrado, exercendo o
imperium exclusivamente por delegação do povo e para satisfazer
aspirações, expressas ou tácitas, da comunidade, era demasiado
abstrato para uma época grosseiramente realista e destituída de
massas populares atuantes. A idéia do soberano detentor do mandato
divino, familiar entre os povos orientais e já enxertada na tradição
da Cidade-Estado pelos últimos imperadores romanos, mostrava-se
mais acessível aos Germanos. As suas lendas ligavam por vezes as
famílias reais aos deuses ou aos feiticeiros, a Igreja Católica pregava
a estes bárbaros a missão sagrada da monarquia, Bizâncio sugeria-
lhes o exemplo dum imperador coroado pelo patriarca (desde 457) e
que se proclamava “igual aos Apóstolos”. Mas a coloração religiosa
permanecia superficial. No fundo, o rei mantinha-se o que havia sido
na época das migrações: o general do exército, o juiz das partilhas e
da fruição das conquistas. Isto torna-lhe mais difícil preservar o
poder se cessou a sua ação conquistadora e aumentar as suas rique-
zas a fim de as redistribuir entre os que o seguem.
Em princípio, o rei detinha a autoridade por delegação, da mesma
maneira que o magistrado e o vigário celeste. Tal como o magistrado
corrupto e o vigário ímpio, o general incapaz perdia a coroa. Um
intervalo de paz permitia, por vezes, às tribos confederadas que
retomassem a sua autonomia: os Lombardos passaram sem rei
durante dez anos; os Anglo-Saxões, se de onde em onde
reconheceram um rei federal (Bretwalda), a maior parte do tempo
contentaram-se com “reinos” tão pequenos como um ducado
lombardo ou um condado franco, dado que os seus inimigos, os
Celtas, estavam ainda mais parcelados. Por outro lado, o extraor-
dinário êxito militar dos primeiros Merovíngios permitiu a Clóvis
fundar uma dinastia, e aos seus sucessores repartir o reino como se
se tratasse duma herança privada. A partir do século VII, as disputas
e a incapacidade dos reis permitiram à aristocracia franca cercear o
patrimônio real, fazendo-se comprar por distribuições de terras em
plena propriedade. Mas mais de um século decorreu até que
prefeitos do palácio, aristocratas e intendentes da Coroa se
atrevessem a ocupar o trono à sombra do qual tinham feito fortuna.
Em contrapartida, a aristocracia visigoda e lombarda resistiu com
êxito aos esforços de vários reis enérgicos no sentido de
estabelecerem dinastias próprias. Foi em vão que alguns deles
tentaram consolidar o poder com arremedos do cerimonial bizantino:
só à força havia respeito e ela embotava-se à menor sutileza.
Nenhum dos reis relativamente civilizados da baixa época lombarda
igualou o prestigio do primeiro conquistador, Alboino. Este, depois
de ter esmagado os Gépidas na região danubiana, assassinado o rei e
desposado a sua filha, viu-se forçado a abandonar aos Avaros o seu
reino transalpino para conseguir um maior na Itália (568-572). Teria
talvez chegado a ser um outro Clóvis se não tivesse cometido o erro
de, num momento de embriaguez, oferecer à mulher de beber pelo
crânio do pai transformado em taça. Ela não apreciou a brincadeira e
mandou-o assassinar. Tal é a história que nos é contada, duzentos
anos mais tarde, por Paulo Diácono, historiador piedoso, mas
patriota: sem uma palavra de censura a respeito de Alboino, infamou
a «leviana» que imolara o herói a rancores pessoais.
Fraqueza das instituições
Das capacidades do rei dependia a solidez do reino, porque as
instituições estavam apodrecidas ou eram rudimentares. Não bastava
ter conservado as peças do maquinismo e o pessoal romano; fora
preciso reformá-los para travar a sua dissolução. Bizâncio oferecia o
exemplo de reforma moderada, mas as influências bizantinas
mostraram-se demasiado tardias e demasiado superficiais para se
implantarem vigorosamente, salvo em alguns sectores da
administração lombarda (casas da moeda, policia e alfândegas) e,
num grau menor, em outras administrações bárbaras.
Quanto às instituições germânicas, adaptadas a pequenos grupos em
constante deambulação e ao combate, enfraqueceram com as
tarefas mais pesadas que lhes impunha a fixação num território
extenso. A assembléia popular foi-se reunindo cada vez mais
raramente e perdeu a autoridade política, salvo em Espanha onde se
achou reforçada pela estranha fusão com os concílios da Igreja. Os
bandos de “companheiros” e de “fiéis” que rodeavam os chefes nas
batalhas e nos banquetes mostraram mais perseverança à mesa do
que no campo da honra. As organizações de tribo, de aldeia e de
família perderam coesão, e os seus vínculos com o governo central
debilitaram-se.
No entanto, as instituições germânicas sobreviveram melhor do que
as romanas, porque melhor adaptadas à contração do Estado. A
pouco e pouco este renunciou ao imposto direto, com grande alívio
da população. Reconstruiu-se sobre o rendimento dum patrimônio
público, cada vez mais estreito, e criou inúmeras peagens nas
estradas quase desertadas pelo tráfego ou arruinadas por falta de
conservação. Em contrapartida, o Estado deixava de prestar serviços,
mesmo aqueles que poderiam ser rendáveis. A guerra, só a fazia com
intermitência, e só muito irregularmente prestava uma justiça
assente em multas.
Haveria, é claro, que matizar este quadro. Os reis lombardos soube-
ram aumentar as terras da Coroa e os régulos ingleses estabelecer
cadastros vigorosos. Em contrapartida, na França - e só ai - houve
bispos que persuadiam os reis a queimar os registros do fisco para
salvarem a alma. Impostos sem a compensação de serviços pareciam-
lhes puras extorsões. Mas a desordem e a regressão, se bem que não
fossem uniformes, não deixaram de ser menos gerais.
Ruína da cultura
A cultura não escapou a esta decadência. À fonte artística da Ásia
Central, tinham os Germanos ido buscar alguns motivos: entrelaçados
geométricos, animais estilizados, predileção pelos vidrilhos, pelos
esmaltes compartimentados e as pedras preciosas coloridas. Esta
expressão de um espírito pouco inclinado a observar o real e o
humano chegou a marcar as artes dos povos orientais muito
civilizados (Chineses, Persas, Bizantinos) e conjugou-se facilmente
com a arte dos Celtas, igualmente bárbara e ainda mais próxima do
zoomorfismo. Se bem que pudesse atingir a beleza, nomeadamente
na ourivesaria, faltavam-lhe, contudo as possibilidades infinitas de
renovação, de aprofundamento e de requinte que oferecem os
estilos mais intelectualizados.
As raras obras-primas germânicas são quase todas dos primeiros
séculos ou devidas aos povos mais primitivos; o resto não passa de
repetição dum pequeno número de fórmulas, que uma ornamentação
excessiva ou uma simplificação exagerada desfiguraram finalmente.
Passemos em silêncio as raras tentativas de representar a figura
humana. Houve acaso uma arquitetura germânica em madeira, digna
desse nome? Nada chegou até nós e aquilo que conhecemos de
séculos mais recentes não leva de modo algum a supor que ela se
tenha desenvolvido paralelamente à arquitetura de pedra ou de
tijolos que continuou sendo a especialidade dos vencidos.
É igualmente difícil pronunciarmo-nos sobre as lendas épicas cujo
eco nos foi transmitido pela tradição oral. Nos poemas da idade
feudal que mais tarde as utilizaram, só a estrutura tem antiguidade
garantida, e ela compõe-se em regra duma série bastante curta de
façanhas atribuídas a um grande número de guerreiros de copadas
genealogias. Só os Anglo-Saxões escreveram as suas lendas desde a
época bárbara, misturando com as narrativas sobre os seus próprios
tempos, as recordações da sua pré-história no continente europeu.
Em tão vasta literatura há uma obra de valor: Beowulf. O verso não
deleita o ouvido acostumado às harmonias clássicas; as aliterações
formam um desenho que lembra os entrelaçados dos iluminadores,
mas a luta do herói contra as vagas, os monstros marinhos e a
cobardia dos homens reveste-se de sombria grandeza. Esta é
interrompida no final do poema por uma nota de bondade desen-
corajada onde os críticos viram a mão de um homem da Igreja
guiando a do bardo, como na Chanson de Roland. Ao lado desta
poesia, os exercícios em latim de alguns reis e dignitários bárbaros
fazem uma triste figura.
Pobreza de direito
De gustibus non est disputandum. É plenamente legítimo que alguns
estetas contemporâneos se extasiem perante a arte dos Bárbaros,
com a condição de não lhe concederem profundidade de pensamento
ou de inspiração, que lhe foi estranha. O mito do “bom selvagem”
mostra-se difícil de morrer! Todavia, já não se confunde, como
outrora, a anarquia ou a impotência do Estado bárbaro com o
espírito de liberdade. Sucederá o mesmo quanto às suas formas
jurídicas?
Nos numerosos textos que chegaram até nós, quase não se encon-
tram esforço de síntese, definições teóricas, separação nítida entre
direito dos particulares e direito da comunidade ou do Estado. O
direito de obrigações por assim dizer não existe: troca-se objeto por
objeto, ou então, se o escambo não se pode fazer in loco, o devedor
entrega ao credor um penhor, real ou simbólico. Os processos não se
julgam em função dos fatos ou das provas sobre as quais o
julgamento há-de ser proferido, mas segundo a credibilidade geral
do acusado, que se defende graças ao juramento e ao de seus
íntimos, quando não apela para o juízo de Deus através do duelo ou
dos ordálios. A pena raramente castiga a pessoa do culpado como
violador da segurança pública; consiste normalmente em multas,
fixadas segundo uma tabela - tanto por um braço cortado, tanto por
um dente partido e que devem ser pagas ao ofendido ou ao Estado,
em geral sem atender às circunstâncias ou à vontade daquele que
ofendeu.
É claro que se notam diferenças de código para código, sobretudo
por influência do direito romano e da religião, fatores de ordem, de
piedade e de clarividência. Mas uma tal influência nunca foi
constante nem progressiva. Já no século V Godos e Burgúndios
acolhiam o direito romano do tempo no seu direito nacional. Os
Bárbaros dos dois séculos seguintes nada aproveitaram do
monumento jurídico de Justiniano. Foi com dificuldade que a Igreja
lhes ensinou alguns princípios do seu próprio direito e, a partir dele,
do direito romano. Em última análise, a imaturidade dos Germanos
mostrou-se menos nociva quando do choque inicial do que durante a
longa inação que se seguiu. Os frutos estragaram-se antes de terem
amadurecido.
DECREPITUDE ROMANA
“A Grécia conquistada conquistou o seu orgulhoso vencedor”: tantas
vezes verificado, o adágio não se aplica muito bem aos primeiros
séculos da Idade Média. É verdade que os Bárbaros adaptaram a
religião dos Romanos vencidos, exatamente como os Romanos tinham
adaptado a da Palestina submetida. Serviram-se em regra do latim
como língua escrita. Apropriaram-se de não poucas instituições e
idéias greco-romanas, não sem transmitirem por sua vez algumas das
suas às populações dominadas; e se não substituíram a manteiga pelo
azeite, não tardaram a apreciar os méritos do vinho. Não obstante, a
romanização da cultura germânica atrasou-se até a assimilação física
das minorias conquistadoras pela massa romana, geradora do
primeiro renascimento neolatino. Foram precisos aos Francos pelo
menos quatrocentos anos para se tornarem franceses; mais tarde
cem anos haviam de bastar aos Normandos, cuja origem não era
menos germânica. Isto levar-nos-ia a pensar que a Alta Idade Média
se estiolou numa dupla inércia: se os alunos eram refratários, aos
professores faltava zelo.
Um historiador da economia e da sociedade hesita em dar opinião
sobre problemas que historiadores da arte, da literatura e das idéias
dominam com a sua erudição e as suas preferências - estas últimas,
naturalmente, influenciadas pelas flutuações do gosto
contemporâneo. Não será melhor consultá-los a eles? Dir-nos-ão, sem
dúvida, que as idéias da época bárbara, mesmo entre os “Romanos”,
foram desprovidas de originalidade; que a literatura latina, depois de
ter produzido até meados do século VI certas obras de mérito,
algumas mesmo notáveis, se afundou por muito tempo; que a arte,
em contrapartida, conseguiu vencer uma grande crise para atingir
novas alturas, muito afastadas dos cumes da arte clássica, mas de
singular beleza, pelo menos nas regiões acessíveis às influências
bizantinas. Nomes de autores que hoje só eruditos lêem, mas que
durante muito tempo foram célebres - Orósio, Boécio, Fortunato -
ocorrem-nos à memória. Mais familiares, as imagens dos mosaicos de
Ravenna e de Roma, dos frescos de Castelseprio, da ourivesaria, das
miniaturas e dos esmaltes, reunidas em centenas de coleções,
enchem-nos de encanto as recordações. Sem nos determos nos
pormenores, assinalemos alguns dados essenciais que os monumentos
artísticos e as obras literárias oferecem para interpretar a sociedade
que os produziu.
Arte rígida, arte anônima
O que nos impressiona em primeiro lugar é a dissolução gradual da
personalidade. A figura humana não se elimina como na arte
bárbara, mas a atenção desvia-se cada vez mais dela para se
consagrar ao vestuário e às insígnias do poder e do oficio. O retrato
individualizado e realista converte-se numa efígie estereotipada, de
olhos esbugalhados para o vazio, de traços simplificados, de gestos
contidos, sempre vista de frente. O mesmo sucede nas letras, onde a
biografia não é abandonada, mas se confina, sobretudo às vidas
estereotipadas de santos, verdadeiras máquinas de fazer milagres,
desprovidos das dúvidas, das imperfeições e das tonalidades que
caracterizam qualquer criatura de carne e osso. No século V já, a
história não procurava outra explicação para os reveses do Império
Romano para além da cólera dos deuses abandonados ou do
descontentamento do Deus novo. Com Gregório de Tours, converte-
se numa amálgama de anedotas comuns, de pecados e de
intervenções divinas anunciadas por aparições de meteoros, tudo
justaposto com a mesma despreocupação de perspectiva que vemos
nos monumentos figurados do tempo.
A história desce mais baixo ainda na coleção de crônicas conhecida
pelo nome errôneo de “Fredegário”; os seus próprios compiladores,
aliás, deram-se conta desta mediocridade. Quando um deles se
queixa de que “o mundo envelhece, o gume da sabedoria embota-se,
ninguém é igual aos oradores do passado nem ousa pretender sê-lo”,
só lhe podemos é dar razão. Regressão da cultura e da técnica? Sem
dúvida alguma: já no século IV, quando Constantino “o Grande” quis
decorar o seu arco de triunfo com a delicadeza da arte que lhe
parecia ser a época da perfeição, mandou arrancar medalhões ao
arco de Adriano. Quanto ao resto, teve de se contentar com uma
decoração mais rude, que, aliás, nos agrada da mesma forma. Mais
irremediável ainda do que a crise técnica (que podia resolver-se com
uma mudança de fórmula) é a crise do homem: o abaixamento da
força e da dignidade individuais.
Como é que a personalidade humana teria podido inspirar aos
artistas da Alta Idade Média o interesse ou a confiança de que gozava
nas antigas cidades romanas? Os cidadãos tinham-se visto privados de
iniciativa própria pelo poder imperial; depois, quando este se
desmoronou, caíram na insegurança. Os Bárbaros calcaram-nos aos
pés, enquanto por seu lado o cristianismo os exortava à humildade e
lhes lembrava a iminência do Juízo Final. Roídos pela miséria,
dizimavam-nos as epidemias. Para sobreviver, a arte tornou-se
anônima e coletiva.
O seu triunfo mais esplendoroso encontra-se no canto litúrgico. Tal
como o cristianismo, fora importado do Oriente para o Ocidente
muito antes de findo o Império. Mas foi somente na obscuridade da
era bárbara que tomaram em definitivo forma as salmodias severas e
solenes, os diálogos entre o narrador e o coro, o canto alternado dos
grupos corais que se respondem na antífona, os hinos em que as
inflexões e o ritmo populares substituem a prosódia quantitativa da
Antiguidade. Passando em silêncio os nomes dos compositores, a
tradição exalta dois organizadores: Ambrósio, amigo e antagonista de
Teodósio “o Grande”, no canto que ressoa ainda nas igrejas da
diocese de Milão, e Gregório I, Magno, no canto que domina todo o
resto do mundo católico. É provável que os respectivos méritos
estejam engrandecidos pela ignorância de inúmeros colaboradores e
continuadores; porém, quanto ao fundo, a tradição parece incon-
testável.
Arte envolta em símbolos
Não é possível exagerar o poder sugestivo da linguagem, ao, mesmo
tempo abstrata e direta, da música sobre os corações simples: Ario,
no dizer dos inimigos, arrastou para a heresia almas ingênua ensinan-
do-lhes melodias tiradas dos cantos de soldados e de marinheiros.
Mas a música representou bem o domínio único da abstração. No
geral, a era bárbara viu as idéias abstratas concretizarem-se em
símbolos materiais e as explicações teóricas enrouparam-se nos véus
da alegoria.
Por certo que não há aqui novidade. Se a arte clássica glorificava os
seus ideais sob os traços humanos dos deuses, a arte orientalizante
do Baixo Império envolvia-os já num simbolismo animal, vegetal ou
inanimado, cada vez mais vicejante e emaranhado. A alegoria
ocupara sempre um lugar importante no arsenal da literatura, tanto
greco-romana como hebraica; mas a era bárbara distingue-se pela
exaltação da alegoria e pela preponderância do símbolo. Não basta
que o culto hebreu, sem imagens, ceda lugar ao antropomorfismo
tradicional; é preciso ainda que o Filho do Homem seja representado
como pavão, peixe, cordeiro ou monograma. Não basta que a
alegoria escore e complete o raciocínio; sufoca-o também.
Podemos ainda sorrir quando um Africano do V século, Marciano
Capella, imagina um Casamento da Filologia e de Mercúrio, a guisa
de título e prelúdio dum tratado sobre as sete disciplinas que
formarão a base do ensino medieval. Mas já nos alarmamos quando
um francês do século VII, que pretende chamar-se Vergílio Maron,
decompõe o latim numa série de línguas herméticas e aconselha a
escrevê-lo em forma de enigmas figurados, para afastar os profanos.
De igual modo, na Filosofia personificada que consola Boécio na
prisão, nos princípios do século VI, ainda ecoa algo do pensamento
antigo; mas já cem anos mais tarde, Isidoro de Sevilha irá buscar
sobretudo os seus erros aos autores antigos que guarnecem as quinze
secções da sua biblioteca. A sua enciclopédia, cuja fama duradoura
contribuiu poderosamente para baixar o nível intelectual da Idade
Média, esforça-se por explicar “tudo o que é preciso conhecer”, a
partir da etimologia: declara que formiga (formica) vem de “levar
migalhas” (feret micas), e que noite (nox) vem de “tornar nocivo” (a
nocendo), porque faz mal aos olhos...
Contudo, note-se uma diferença importante entre estes dois
escritores do século VII, Isidoro e Vergílio. O último agarra-se ao
latim como a um título de nobreza. Era um desses romanos cultos
que afetavam o mesmo desprezo, fosse pelos bárbaros mal-cheirosos
e vestidos de peles, fosse pelos rústicos atolados na ignorância, na
superstição e no servilismo. Abrigados atrás das defesas duma
retórica caduca, de temas frustes e de linguagem arcaica -
linguagem que se tornava cada vez mais incompreensível, não só
para os ocupantes, mas também para a maioria dos vencidos - estes
romanos eram destroços condenados a desaparecer. Dentro do
mesmo espírito, no século VI o historiador da Reconquista bizantina,
Procópio, insistia em chamar Italianos apenas aos grandes
proprietários e em ignorar os autóctones mais pobres e os seus
patrões ostrogodos. Isto ajuda-nos a compreender os motivos por que
não persistiram na Itália as vitórias de Justiniano.
Não sejamos, todavia excessivamente severos para com estes
teimosos defensores do passado: apesar de tudo, o latim era a única
língua que o escol de todo o Ocidente ainda compreendia. Mesmo um
Gregório I, que se gabava de ter “desprezado a arte do discurso
inculcada pelas regras do ensino mundano”, via-se forçado a
empregar o latim para se fazer entender pelos quadros eclesiásticos.
Recomendava, é certo, que a religião falasse aos iletrados na língua
das imagens – o que prova não ter muita confiança na instrução
latina que, por ordem dos concilias, os padres deviam ministrar às
crianças das paróquias.
Isidoro e o princípio da nova Espanha
Isidoro (aprox. 560-637) escrevia também em latim, língua dos seus
antepassados, mas nem por isso deixou de celebrar a rendição das
derradeiras fortalezas bizantinas ao seu rei: “Finalmente, a raça
valente dos Godos... arrancou-te, Espanha, aos Romanos... hoje o
soldado romano é servidor dos Godos”. Melhor poderia dizer que era
já Espanhol? A erudição que ostenta nem sempre é mais segura do
que a de Vergílio, o gramática, embora seja menos caduca; muitas
vezes, pertence ao domínio eterno do folclore- o mundo de Esopo e
do Romance da Raposa. O processus de involução aproximava-se do
fim; no fundo do abismo, a decadência romana iria em breve juntar-
se à imaturidade germânica. A medida que as idéias se embrumavam
na alegoria, que a arte se imobilizava no símbolo, que a língua se
maculava de vulgarismo e que a clareza do direito romano se perdia
nos usos do direito popular, mais compatível com os costumes
bárbaros, aproximava-se o dia em que vencedores e vencidos,
poderosos e pobres, mutuamente se haviam de compreender.
Uns cinqüenta anos depois da morte de Isidoro, era a Espanha que
parecia preceder os outros Estados bárbaros no caminho dessa
metamorfose. As suas leis abastardadas aplicavam-se tanto aos
Visigodos como aos Romanos. A sua assembléia de nobres e de
prelados funcionava como um parlamento embrionário. Certas
instituições feudais parece terem aí encontrado o berço. Um
dos seus reis, Vamba, julgou mesmo possível estabelecer o
recenseamento militar universal - pedra de toque da unificação
nacional - e submeter-lhe até os eclesiásticos e parte dos escravos. E
certo que fracassou.
A Espanha achava-se dilacerada, tanto pelo desacordo profundo
entre o rei e os grandes senhores, como pelo seu acordo específico
em dois pontos: perseguir os Judeus (isto é, o núcleo da burguesia) e
opor-se à libertação das classes servis. Quando os Árabes a
invadiram, em 711, bastou uma batalha para que o reino se
desmoronasse. Outros reinos tomaram então a dianteira, mas a
Europa nova não tinha possibilidade de se edificar enquanto os
próprios fundamentos da sociedade não fossem renovados e
consolidados.
AS INCÓGNITAS
É sempre difícil ao historiador compreender o que se passa por baixo
das camadas superiores da população e fora dos centros urbanos;
porque os camponeses são uma gente lenta e silenciosa, e o seu
sulco, tão profundo quão obscuro, só à escala de séculos é que
modifica sensivelmente a paisagem. Os raros escritores da era
bárbara não se debruçam sobre a vida quotidiana. E a custo que às
vezes nos informam das bruscas calamidades que vêm transformar
em desespero a miséria apática das multidões anônimas.
Vejam-se três exemplos tomados ao acaso: “Quando Chilperico
encontrou a morte... os de Orléans e os de Blese, reunidos, caíram
sobre as gentes de Châteaudun e massacraram-nas de improviso;
incendiaram as casas, as provisões e tudo o que lhes era difícil
transportar; apoderaram-se dos rebanhos e pilharam tudo o que
puderam levar. Mas durante a retirada, os habitantes de Châteaudun
e de Chartres... fizeram-lhes, sofrer o mesmo tratamento que
tinham recebido” (Gregório de Tours). “A Córsega está tão oprimida
pela tirania dos exactores e pelo peso das exacções que os
habitantes só a custo lhes podem prover, vendendo os seus próprios
filhos. É por isso que são obrigados a deixar a república [o território
bizantino] e a fugir para junto dos inomináveis Lombardos. Que
teriam eles a recear demais grave ou demais cruel por parte dos
Bárbaros?” (Gregório I). Depois de três anos de seca, “uma terrível
fome espalhou-se pelo povo e destruiu-o... Diz-se que era freqüente
grupos de quarenta e cinqüenta pessoas, esgotadas pela fome,
encaminharem-se para o abismo ou para o mar, e aí se precipitarem
todas ao mesmo tempo, de mãos dadas” (Beda).
Nível de vida miserável
É claro que não devemos imaginar as condições normais da vida a
partir destas catástrofes. Aliás, as desordens locais reduziam as
possibilidades de guerras generalizadas. A enormidade do sacrifício
exigido pelos impostos resultava numa fuga regular perante os
encargos mais pesados. A mortalidade suscitada por uma fome
eliminava os excedentes de população e tornava menos vulneráveis
os sobreviventes. Mas se é verdade que cada mal traz consigo o seu
próprio remédio, esse remédio, durante a era bárbara, traduz-se
sempre por uma amputação.
Documentos legislativos, arqueológicos ou lingüísticos, tudo enfim
que nos ajuda a descobrir qualquer coisa na neblina dessa época nos
leva a concluir que as grandes personagens temporais e espirituais só
vestígios conservam do antigo luxo e que a massa foi obrigada pouco
a pouco a renunciar a todo o conforto material. E preciso que a Itália
lombarda esteja bem pobre para que o furto de quatro cachos de
uvas retenha a atenção do legislador; é preciso que o trem de vida
dos Anglo-Saxões tenha baixado muito para que a palavra lord
(originàriamente “guarda do pão”) se imponha como a mais usada
entre os trinta e seis sinônimos que exprimem, no Beowulf, a idéia
de “chefe” ou de “senhor”; é preciso que as compras dos pobres
tenham diminuído muito para que a moeda de bronze, instrumento
habitual das transações miúdas durante o Império, cesse de ser
cunhada no Ocidente. Em contrapartida, a moeda de ouro continua a
circular para as trocas internacionais e o entesouramento dos ricos;
conquista mesmo regiões que a não tinham conhecido antes da era
bárbara, como a Escandinávia ou a Irlanda. É, sem dúvida, um
sintoma de progresso dessas regiões, mas, sobretudo do nivelamento
gradual da Europa inteira numa economia que faz da moeda o
depósito da riqueza mais do que o instrumento quotidiano do
consumo.
População rarefeita
Como vimos, profunda e prolongada crise demográfica acompanhou
esta contração econômica. Essa crise, se não apagou o contraste
entre o mundo mediterrâneo, sedentário e relativamente compacto;
e o mundo nórdico, de população dispersa e flutuante, tornou-o,
contudo menos nítido.
É verdade que, em vastas extensões da Europa setentrional e
oriental, a emigração dos Germanos e seus aliados agravou a
regressão demográfica. No entanto, o vazio atraiu novas tribos
nômades: Eslavos, Baltas, Avaros, Búlgaros... Eram porventura menos
numerosos e mais primitivos do que os antigos ocupantes? Talvez,
mas a sua intervenção não conseguiu alterar sensivelmente uma
paisagem que nunca os homens tinham remodelado à sua
semelhança.
Finalmente, foi o antigo território romano que sofreu a
transformação mais profunda, ainda que as suas vicissitudes não
sejam mais do que a conclusão de tendências já pronunciadas muito
antes da queda do Império. Havia muito que os grandes latifundiários
desertavam os centros urbanos para se instalarem nos seus solares
rústicos (villae, os futuros “castelos”). Por seu turno, os camponeses
abandonavam as aldeias devassadas, buscando o abrigo dos grandes
domínios. Florestas, pântanos e charnecas invadiam as terras
abandonadas. Esta evolução, que tendia a destruir o quadriculado
uniforme das culturas mediterrâneas, foi acelerada pela influência
dos hábitos rurais dos Bárbaros e da regressão demográfica. Quase
por toda a parte se foi desfiando a rede das cidades e baralhando o
xadrez dos campos cultivados; e entre as aglomerações alastravam
grandes espaços desabitados.
Presenças romanas na geografia agrária e urbana
Todavia, o cunho da romanidade clássica era tão profundo que seria
preciso um esforço muito decidido para o aniquilar. Ninguém o
desejava. E certo que os Bárbaros não se inclinavam para a
civilização das cidades: a tendência que tinham para a agricultura e
para a caça, a antipatia que professavam pelo acanhado da rua e do
campo fechado são disso testemunho. Mas alguns tomaram gosto
pela vida urbana, sobretudo entre os Lombardos. Outros fundaram
aldeias de pequenos proprietários, a imagem das do Norte primitivo.
Por outro lado, a inércia das tradições agrícolas mediterrâneas
demorou o progresso inevitável do grande domínio e impediu muitas
vezes os camponeses de aproveitarem o despovoamento para
arredondar os seus campos.
Ainda hoje se encontra, aqui e além, o quadriculado regular dos
agrônomos romanos, desenhando os limites imutáveis que
contiveram inúmeras gerações de camponeses. E é com espanto que
se reconhece também, no coração de várias cidades modernas, que a
Idade Média despovoou e reconstruiu alternadamente, o
quadriculado mais cerrado dos urbanistas romanos. As cidades são
sempre menos conservadoras do que o campo e foram atingidas mais
duramente. Mas a Igreja não se podia desinteressar delas, porque nas
cidades colocara o eixo das dioceses episcopais. Fez mais:
exatamente como a colonização romana quando se apoiara sobre os
municípios, a propagação da fé implicou a fundação de novas
dioceses, cuja sede central se tornou a origem de uma cidade
localizada em territórios que nunca as haviam conhecido. Também o
comércio, embora enfraquecido, agüentou vários núcleos urbanos e
criou muitas vezes outros novos. Apesar da sua decadência física e
moral, as cidades da era bárbara continuaram, portanto a
desempenhar um papel não de desprezar.
Revolução sem abalos: chegada da servidão
Tenhamos cuidado em não menosprezar estas sobrevivências que
transmitiram à Europa medieval fagulhas da grande luz clássica. Mas
a época bárbara conta mais por aquilo que transformou do que por
aquilo que conservou. Se nenhuma das transformações veio
embelezar a face do mundo, mais do que uma preparou o terreno
para dias melhores. Aquela que toca de perto o maior número – o
desenvolvimento da servidão – realizou-se quase sem abalos, por uma
miríade de fraquezas ou de iniciativas privadas, sancionadas de
tempos a tempos por uma medida legislativa. Como a maior parte
das revoluções da Alta Idade Média, esboçou-se muito antes do fim
do Império e só atingiu o termo na época dos Carolíngios; no entanto
o seu progresso, quase ignorado pelas fontes, preenche a história das
multidões desconhecidas do período bárbaro. Pouco a pouco, os
homens livres das classes inferiores e a maioria dos escravos
fundiram-se numa classe nova: os servos.
Se só ao de leve mencionamos os escravos da Roma antiga é que a
historiografia quase não se ocupa dos animais domésticos. Ora, leis e
costumes da Antiguidade classificavam os escravos com o gado. Este
princípio não era invalidado nem sequer minorado pelo fato de
algumas almas meigas se afeiçoarem por um “bicho” favorito ou de
almas nobres se devotarem a proteger os animais falantes contra a
crueldade dos donos. A natureza oferecia, contudo aos escravos um
remédio inacessível ao cão de luxo ou ao cavalo de corrida; podiam
ser libertos e reivindicar a qualidade de homens, de cidadãos,
“porque, segundo o direito natural, todos os homens são iguais”. O
direito civil clássico, com o seu espírito lúcido, não admite quaisquer
condições intermédias entre escravidão e liberdade, nem tonalidades
no seio destas categorias. Mas já o direito da Roma decadente dis-
tingue vários subgrupos, tais como os “poderosos” e os “humildes”
entre os cidadãos, os “idôneos” e os “rústicos” entre os escravos. O
direito dos Bárbaros e o da Igreja viriam multiplicar estes escalões;
só o mais alto assegurava a totalidade dos privilégios; o mais baixo
impunha a servidão total, enquanto os outros percorriam todos os
graus imagináveis de semiliberdade e de semi-servidão. Por último,
destes limbos do pensamento jurídico saiu a figura do servo, adscrito
ao solo ou ligado ao seu senhor por obrigações indignas de um
homem livre, mas livre (ou quase) nas relações com terceiros.
Esta evolução legal não deve talvez muito às transformações do
pensamento religioso e político com as quais se tem querido muitas
vezes ligá-la. Não há dúvida de que a Igreja veio insistir nas
afirmações dos filósofos pagãos quanto à igualdade natural de todos
os homens, mas não sonhou, mais do que eles, em deitar por terra a
instituição imperfeita que parecia indispensável neste mundo
imperfeito. Por um lado, recomenda que não se maltratem os
escravos e louva os fiéis que, levados por uma caridade excepcional
ou pelo desprezo das riquezas, vão ao ponto de libertá-los. Mas, por
outro lado, opôs-se muitas vezes a que eclesiásticos utópicos ou
pródigos comprometessem a estabilidade econômica de uma casa
religiosa, emancipando os seus escravos. Aliás, à defesa, por razões
religiosas, da igualdade humana contra o sistema medieval de escra-
vidão e servidão não poderíamos pedir eficácia maior do que viriam a
ter os protestos contra o racismo moderno, quaisquer que fossem a
sinceridade e o poder de convencer dos seus paladinos. Quanto aos
Bárbaros, se julgaram vantajoso deixar uma vaga semi-liberdade,
compatível com a imprecisão dos seus costumes, às nações vencidas
que seria pouco prático reduzir à escravidão coletiva, não foi
certamente por respeito da igualdade natural dos homens. Todos os
povos bárbaros possuíam já escravos antes das migrações.
Continuaram a recrutá-las depois da conquista e pelos mesmos meios
que Roma: nascimento, guerra, tráfico, condenações penais, dívidas,
compra de filhos aos pais e, às vezes, consenso voluntário.
Avanço dos escravos, recuo dos homens livres
Somente - e aí reside a explicação fundamental da evolução jurídica
- a crise demográfica atingiu os não-livres ainda mais duramente do
que os outros. Como já se observou o rebanho humano é o mais deli-
cado, o que se reproduz mais dificilmente. Desde o primeiro século
do Império que se levantavam queixas quanto à sua insuficiência;
apesar de subidas temporárias, o declínio numérico dos escravos
tornou-se cada vez mais grave durante a decadência romana e a era
bárbara. Um rebanho que diminui deve ser poupado. Foi preciso
melhorar o tratamento do escravo, conceder-lhe uma quase
capacidade jurídica, encorajá-lo a constituir família fornecendo-lhe
uma casa rústica (casa) e assegurando-lhe a perpetuidade da gleba
que cultivava. Se era artífice, fixava-se-lhe o salário e conferia-se-
lhe proteção legal bem definida. Eram apenas expedientes de
criadores de gado ameaçados nos seus bens, mas as “bestas”
aproveitaram-nos, com grande vantagem para aquilo a que
chamamos civilização.
Se os ganhos dos escravos poderiam levar a crer num certo progresso
dos sentimentos humanitários, para nos desenganar bastaria que nos
debruçássemos sobre a sorte dos homens livres. Com exceção da
classe dominante e de uma classe média cada vez mais exígua, foram
escorregando, de degrau em degrau, até ao ponto em que o
camponês (colonus) se tornou igual ao escravo provido de casa
(servus casatus), e o nascimento livre nada acrescentou às vantagens
do artífice.
Na raiz destes males, como na da fortuna dos escravos, encontramos
a crise demográfica. Vimos que, quando o Império teve de exigir
sacrifícios crescentes em impostos e em corvéias a uma população
decrescente, aplicou aos corpos de ofícios, às comunidades aldeãs e
a outros agrupamentos, o princípio da responsabilidade solidária. Os
vivos e os que podiam pagar ficaram com o fardo de se desobrigar
em vez dos que desapareciam e dos insolventes. O trabalho deixou
de ser uma profissão livremente escolhida para se converter em
officium, em cargo público irrevogável. Quem não queria carregar
com o fardo tinha a possibilidade de se “encomendar” a um
poderoso, isto é, de lhe subordinar a liberdade (a plena propriedade
dos bens e o direito de trabalhar para outros além dele) a troco da
transferência das responsabilidades.
Mas seria esta verdadeiramente uma salvação? O poderoso, premido
pelo fisco e ainda mais pela falta de mão-de-obra, só restituía aos
encomendados bens e iniciativa em troca de obrigações pouco menos
pesadas do que aquelas a que fugiam.
A era bárbara prosseguiu nesta evolução. Vimos que o Estado se tor-
nou menos exigente, mas mais fraco, em proveito exclusivo dos
poderosos. Já não bastava ser rico para permanecer independente;
era preciso estar bem armado. A maioria dos homens livres que não
se tinham ainda “encomendado” viram-se entregues à arbitrariedade
de um senhor. A pouco e pouco, mesmo a recordação da antiga
liberdade se perdeu: os corpos de oficias e as comunidades aldeãs
converteram-se em simples equipes servas, e as leis puniram como
“sediciosas” as raras tentativas dos desclassificados livres para forçar
a mão aos senhores. Seja dito que esses entes semi-livres, à maneira
dos semi-escravos, encontraram certa proteção no fato de a raridade
da mão-de-obra obrigar todo o administrador cuidadoso a tratá-los
bem.
Falência ou promessa?
Seguramente que a era bárbara não foi no todo e em toda a parte
Império das trevas. Basta que nos situemos no ponto de vista da
Alemanha, em vez de conservar os olhos fixos no mundo greco-
romano, para que a relação entre Antiguidade e Alta Idade Média se
ponha ao contrário.
Para os Germanos, os primeiros séculos da Idade Média marcaram a
ruptura das barreiras que, durante a Antiguidade, os tinham mantido
à margem dos grandes focos da civilização mediterrânea e da religião
cristã, e haviam retardado os seus primeiros passos para uma vida
política estável e organizada. Os Romanos, esses, só aprenderam dos
Germanos técnicas secundárias como o uso dos esquis e o fabrico do
feltro. Contudo, entraram em contacto com uma sociedade que,
vivendo sob outro clima e noutro n1vel intelectual, tinha encontrado
soluções diferentes para certos problemas comuns. Algumas dessas
soluções continham gérmenes que, embora não pudessem produzir
grande coisa na Europa estéril da era bárbara, haviam de frutificar
na aurora européia da Baixa Idade Média. Disso falaremos a seu
tempo.
Em suma, as invasões deram o golpe de misericórdia a uma cultura
que se petrificara depois de haver atingido o apogeu, e que parecia
condenada a morrer. Pensa-se nesses cruéis bombardeamentos da
nossa época que, destruindo velhos e abalados edifícios, tornaram
possível a reconstrução de um bairro segundo critérios mais
modernos. Mas se nos lembrarmos de que a reconstrução, depois da
avalanche dos Bárbaros, se fez esperar quatro ou cinco séculos,
hesitaremos em conceder a honra aos responsáveis pela destruição.
A voz de Pangloss[1] sopra-nos ao ouvido que, se a civilização antiga
não tivesse sido expulsa do seu belo castelo a grandes pontapés, a
civilização moderna não teria podido florescer. Que se teria passado,
na verdade, se o castelo não tivesse sido abandonado? Para esboçar
uma resposta, voltemo-nos para a ala que não mudou de proprietário
– o Império Bizantino.
Comentário sobre o texto, por Mayte Vieira
[
De uma forma detalhada, pontual e com linguagem simples, Robert
S. Lopez, apresenta o mapeamento do nascimento da Europa. Com
suas origens na decadência de Roma, período da Antiguidade Tardia,
que descreve ponto a ponto, com cada uma de suas mudanças e suas
conseqüências no mundo e na sociedade romana.
Segundo o autor, estas modificações não ocorrem somente em
Roma, às margens do mar Mediterrâneo, mas também em toda a
Asia. Ele traça um paralelo entre Roma e China, buscando
apresentar as semelhanças entre as duas civilizações neste mesmo
período. Ambas lutam contra invasões bárbaras externas, mudanças
de costumes, mudanças religiosas, mudanças que alteram todo o seu
quadro social e cultural.
Quanto ao declínio e a “queda” do Império Romano, são analisadas
todos os fatos que levaram, em conjunto, a ruína de todo o sistema.
As influências bárbaras nas fronteiras, a crise das cidades, as
tensões novas geradas com o cristianismo, o absolutismo e ao mesmo
tempo, a fraqueza dos imperadores, as altas taxações de impostos,
a agricultura arcaica somente para subsistência, o preconceito
cultural com o comércio e os trabalhos manuais, as tensões internas
causadas com as pressões externas das invasões bárbaras, as
mudanças impostas pelos novos governantes bárbaros, a perda da
identidade cultural e social romana, que passou a uma mescla com a
germânica.
Um quadro sombrio de todas as modificações que, juntas – o autor
nos mostra que não foram problemas isolados, mas toda uma
associação deles que colaborou para a decadência romana –
modificaram toda uma civilização e prepararam o caminho para o
nascimento da Europa e do sistema feudal.
[1] O preceptor de Candide, no romance de Voltaire, ensina que "as
coisas não podem ser diferentes do que são: como tudo é feito para
[
um fim, tudo existe necessàriamente para o melhor fim.” Através do
seu otimismo que nenhum desastre desmente (tudo vai pelo melhor
no melhor dos mundos possíveis) é a filosofia de Leibniz que o
pensador francês pretende atingir. (V. M. G.)
Por LOPEZ, R. O Nascimento da Europa. Lisboa: Cosmos, 1979.
As Invasões Bárbaras pelos cronistas da Época
LAMENTAÇÕES DE S. JERÓNIMO SOBRE O SAQUE DE ROMA (410)
«Quem acreditaria que Roma, edificada pelas vitórias sobre todo o
universo, viesse a cair (1); que tivesse sido simultâneamente a mãe
das nações e o seu sepulcro; que as costas do Oriente, do Egipto e da
África, outrora pertencentes à cidade dominadora, fossem ocupadas
pelas hastes dos seus servos e servas; que em cada qia a santa Belém
(2) recebesse como mendigos pessoas de um e outro sexo que haviam
sido nobres e possuidoras de grandes riquezas?»
(S. Eusebii Hieronymi, Commentariorum in Ezechielem Prophetam,
lib. iii, in J. P. Migne, Patrologiae Cursus Completus, Series Latina, t.
xxv, Paris, 1884, col. 75.]
(1) S. Jeronimo refere-se ao saque de Roma pelos Visigodos em 410.
(2) Tendo morrido o papa Dâmaso I e sido eleito o papa Sirício (384),
adversário de S. Jeronimo, este, que havia passado três anos em
Roma, retirou-se para Belém na Palestina, onde edificou um
convento e um hospício.
1. AS GRANDES INVASÕES DOS SÉCULOS IV E V
QUANDO, no fim do século IV, nas regiões do mar Negro, os Hunos se
precipitaram sobre os Godos, desencadeou-se a primeira grande
invasão, a qual lançou sobre o Império Romano, ainda intacto, uma
avalanche de povos de raças e proveniências variadas.
Se os Alanos e sobretudo os Hunos causaram grandes devastações na
sua rápida investida, a importância política desta passagem foi, no
entanto, quase nula. Perdendo a unidade, ambos os povos se
fundiram com as populações locais, passando a desempenhar um
papel secundário.
Outro tanto se não pode dizer dos Gados, que, deixando o local onde
estacionavam no vale do Dniepre, vieram a fundar no seio da
romanidade estados duradouros e com certa originalidade cultural.
Como repercussão destas grandes migrações vindas do Oriente,
outras tribos, abandonando a Germânia, irromperam no Império. De
entre estas, os Vândalos, os Suevos e os Burgúndios conseguiram
fundar reinos autónomos, cuja independência foi todavia de curta
duração.
O ASPECTOS E OS COSTUMES DOS HUNOS
Para um romano civilizado como Amiano Marcelino (c. 330-391) os
Hunos revelavam-se de um primitivismo difícil de conceber e
ameaçador.
[ ... ] O povo dos Hunos, pouco conhecido pelos antigos
monumentos, vivendo por trás da lago Meótis.(1), perto do oceano
Glacial, excede todos os modos de ferocidade. [ ... ]
Todos eles têm membros completos e firmes, pescoços grossos, e são
tão prodigiosamente disformes e feios que os poderíamos tomar por
animais bípedes ou pelos toros desbastados em figuras que se usam
nos lados das pontes.
Tendo porém o aspecto de homens, embora desagradáveis, são rudes
no seu modo de vida, de tal maneira que não têm necessidade nem
de fogo nem de comida saborosa; comem as raízes das plantas
selvagens e a carne semicrua de qualquer espécie de animal que
colocam entre as suas coxas e os dorsos dos cavalos para as aquecer
um pouco.
Vestem-se com tecidos de linho ou com as peles de ratos-silvestres
cozidas umas às outras, e esta veste serve tanto para uso doméstico
como de fora. Mas uma vez que meteram o pescoço numa túnica
desbotada, não a tiram ou mudam até que pelo uso quotidiano se
faça em tiras e caia aos pedaços.
Cobrem as cabeças com barretes redondos e protegem as pernas
hirsutas com peles de cabra; os seus sapatos não têm forma nenhuma
e por isso impedem-nos de caminhar livremente. Por esta razão não
estão nada adaptados a lutas pedestres, vivendo quase fixados aos
cavalos, que são fortes, mas disformes e por vezes sentam-se à
amazona e assim exercitam as suas tarefas habituais. É nos seus
cavalos que de dia e de noite aqueles que vivem nesta nação
compram e vendem, comem e bebem e, inclinados sobre o estreito
pescoço do animal, descansam num sono tão profundo que pode ser
acompanhado de sonhos variados.
Ninguém entre eles lavra a terra ou toca num arado. Todos vivem
sem um lugar fixo, sem lar nem lei ou uma forma de vida
estabilizada, parecendo sempre fugitivos nos carros onde habitam; aí
as mulheres lhes tecem as horríveis vestimentas, aí elas coabitam
com os seus maridos, dão à luz os filhos e criam as crianças até à
puberdade. Nenhum deles se for interrogado poderá dizer donde é
natural,. porque, concebido num lugar, nasceu já noutro ponto e foi
educado ainda mais longe.
[Ammianus Marcellinus. com trad. inglesa de John C. Rolfe, liv. XXXI
2, 1 a 11, Harvard University Press, 1939, pp. 381 a 387.] ,
1. Mar de Azov
CARACTERISTICAS DOS ALANOS
Como em relação aos Hunos, o nomadismo e o espírito guerreiro dos
Alanos foram as características que mais impressionaram o autor
romano Amiano Marcelino (c. 330-391).
Quase todos os Alanos são altos e formosos, com os cabelos quase
louros, um olhar terrível e perturbado , ligeiros e velozes no uso das
armas. Em tudo são semelhantes aos Hunos, mas na maneira de viver
e nos costumes, menos selvagens. Roubando e caçando, andam de
um lado para o outro, até sítios tão distantes como a lagoa Meótis (1)
e o Bósforo Cimério (2) e também até à Arménia e Média.
Assim como para os homens sossegados e plácidos o repouso é
agradável, assim eles encontram prazer no perigo ena guerra: É
considerado feliz aquele que sacrificou a sua vida na batalha,
enquanto que àqueles que envelheceram e deixaram o mundo por
uma morte fortuita atacam com terríveis censuras de degenerados e
cobardes; e não existe nada de que mais se orgulhem do que de
matar um homem, qualquer que ele seja: como glorioso despojo do
assassinato, cortam-lhe a cabeça, arrancam-lhe a pele e colocam-na
sobre os seus cavalos de guerra como jaez.
Não se vê entre eles nem um templo, nem um lugar sagrado, nem
mesmo se pode discernir um tugúrio com um tecto de colmo, mas
com um ritual bárbaro enterram no chão uma espada desembainhada
e adoram-na reverentemente, como ao seu Marte, a divindade
principal destas terras por onde vagueiam.
Ignoram o que seja a servidão, tendo nascido todos de sangue nobre,
e mesmo agora escolhem como chefes aqueles que se distinguem na
experiência quotidiana da guerra.
[Ammianus Marcellinus, com trad. inglesa de John C. Rolfe, Iiv. XXXI,
2, 17 a 25, Harvard University Press, 1939, pp. 390 a 395.]
1. mar de azov.
2. atual estreito de kertch, ligando o mar negro ao mar de azov.
A INSTALAÇÃO DOS VISIGODOS NO IMPÉRIO (SÉCULO IV)
O historiador godo Jordanes (século VI) relata-nos a razão da
entrada dos Visigodos em terras romanas (376) e da sua conversão
ao arianismo.
Os Visigodos, ou seja aqueles outros aliados e cultivadores do solo
ocupado, estavam aterrados [como o haviam estado os seus]
parentes e não sabiam que fazer, por causa do povo dos Hunos.
Porém, depois de longas deliberações, de comum acordo, enviaram
embaixadores à România, ao imperador Valente (1), irmão de
Valentiniano I (2), o imperador mais velho, para dizer que se ele lhes
desse, a fim de a cultivarem, uma parte da Trácia (3) ou da Mésia
(4), se submeteriam às suas leis e decisões. Para que pudesse ter
maior confiança neles, prometeram tornar-se cristãos, se lhes
dessem professores [que falassem] a sua língua.
Quando Valente ouviu isto, concedeu alegre e prontamente o que ele
próprio havia tencionado pedir. Recebeu os Getas (5) na região da
Mésia e colocou-os aí como uma muralha [de defesa] para o seu reino
contra outras tribos (6). E como naquele tempo o imperador Valente,
contaminado pela perfídia ariana, tivesse fechado todas as igrejas do
nosso partido, enviou-lhes como pregadores os que favoreciam a sua
seita (7). Eles foram e imediatamente infundiram nesse povo rude e
ignorante o veneno da sua perfídia. Assim os Visigodos foram feitos,
pelo imperador Valente, arianos em vez de cristãos. Além disto, por
afeição, pregaram o Evangelho tanto aos Ostrogodos como aos seus
parentes Gépidas, ensinando-os a reverenciar esta perfídia, e
convidaram todos o povos da sua língua, de onde quer que fossem, a
ligarem-se à mesma seita. Eles próprios, como dissemos,
atravessaram o Danúbio e estabeleceram-se na Dácia Ripense (8), na
Mésia e na Trácia, com autorização do príncipe.
Em breve a fome e a indigência caiu sobre eles, como muitas vezes
acontece a um povo que ainda não está bem estabelecido numa
região.· [Os abusos e as traições dos chefes romanos provocaram
uma revolta dos Godos, que acabaram por dominar a situação.] [ ... ]
Assim este dia pôs fim à fome dos Godos e à segurança dos Romanos,
porque os Godos, não mais como estrangeiros e peregrinos, mas sim
como cidadãos e senhores, começaram a governar os habitantes e a
dominar, sob o seu próprio senhorio, todas as regiões do Norte até ao
Danúbio.
Quando o imperador Valente soube disto em Antioquia, aprestou
imediatamente um exército e partiu para a região da Trácia. Aí deu-
se uma terrível batalha (9) e os Godos venceram. O próprio
imperador ficou ferido e fugiu para uma herdade perto de
Hadrianópolis (10). Os Godos, não sabendo que um imperador estava
escondido numa tão pobre cabana, lançaram-lhe fogo (como é
habitual proceder com um inimigo cruel), e assim ele foi cremado
em esplendor real. [...]
[Jordanes, Romana et Getica, in Monumenta Germaniae Historica-
Auctorum Antiquissimorum, t. v, pars prior, Berlim, 1882, p. 92.]
(1) Imperador do Oriente de 364 a 378. (2) Imperador do Ocidente de
364 a 375. (3) Na actual Bulgária. (4) Na actual Bulgária. (5) Jordanes
confunde os Getas, povo da Trácia com os Godos. (6) Em 376. (7) Na
realidade a arianização dos Visigodos iniciara-se alguns anos antes,
mercê da pregação do bispo godo Ulfila. (8) Ainda na actual Bulgária.
(9) A batalha de Andrinopla (9 de Agosto de 378). (10) Ou Andrinopla.
Ê hoje a cidade turca de Edime.
O SAQUE DE ROMA POR ALARICO (410) E AS INCURSÕES BÁRBARAS NA
GÁLIA E NA ESPANHA
Em 410, Roma foi pela primeira vez saqueada por povos germanos,
os Visigodos, chefiados por Alarico. Se materialmente os estragos
não foram desmedidos, o acontecimento foi no entanto
profundamente sentido pelos Romanos. Pela mesma época, outras
hordas bárbaras atravessaram a Gália e a Península Ibérica. O texto
que se segue é de um contemporâneo destes acontecimentos, Paulo
Orósio.
E assim, no ano 1164 depois da fundação da cidade (1), foi-lhe feito
um ataque por Alarico (2): embora a memória deste facto ainda seja
recente, nenhuma pessoa que veja a multidão dos Romanos e que os
oiça falar admitirá, como eles próprios dizem, que alguma coisa
tenha acontecido, .salvo se, por acaso, tomar conhecimento do fogo
pelas ruínas que ainda existem. Nesta invasão, Placídia, filha do
príncipe Teodósio (3) e irmã dos imperadores Arcádio (4) e Honório
(5), foi capturada e tomada como mulher por Ataulfo (6), parente de
Alarico, como se, de.vido a um juízo divino, Roma a tivesse entregue
à maneira de refém e penhor especial. Com efeito, unida pelo
casamento ao mais poderoso rei bárbaro, ela foi de grande utilidade
para a república. Entretanto, dois anos antes do ataque a Roma,
excitados por Estilicão (7), como já disse, os povos dos Alanos, dos
Suevos, dos Vândalos, e muitos outros com eles, esmagaram os
Francos, atravessaram o Reno, invadiram as Gálias e com um rápido
ímpeto chegaram até aos Pirenéus: retidos durante um tempo par
esta barreira, disseminaram-se pelas províncias vizinhas (8).
[Pauli Orosii, Historiarum adversus Paganos. in J. P. Migne,
Patrologiae Cursus Completus, Series Prima. t. XXXI, Paris, 1846,
cols. 1166-1167.]
(1) Em 410. O saque durou apenas três dias: de 24 a 27 de Agosto. (2)
Governou os Visigodos até à sua morte, em 410. (3) O imperador
Teod6sio I (379-395). (4) Imperador do Oriente (395-408). (5)
Imperador do Ocidente (395-423). (6) Governou os Godos de 410 a
415. (7) General de origem vândala, que serviu o imperador Honorio
na luta contra às incursões germanas e foi pelo mesmo imperador
mandado assassinar em 408. (8) A invasão da Espanha deu-se no final
de 409.
A INVASÃO DA PENÍNSULA IBÉRICA PELOS VÂNDALOS, ALANOS E
SUEVOS
A Península Ibérica, desarmada e enfraquecida por lutas internas,
não ofereceu qualquer resistência aos bárbaros que a invadiram.
Muito ràpidamente os invasores dividiram entre si as terras
conquistadas. Santo Isidoro de Sevilha (c. 560-636) relata-nos esse
episódio.
Na era de 446 (1), os Vândalos, os Alanos e os Suevos ocuparam a
Espanha, mataram e destruíram muitos nas suas sangrentas
incursões, incendiaram cidades e saquearam as propriedades
assaltadas, de forma que a carne humana era devorada pelo povo na
violência da fome. As mães comiam os filhos; e também os animais,
que se haviam acostumado aos cadáveres dos que morriam pela
espada, de fome ou de peste, eram mesmo levados a destroçar os
vivos; desta maneira quatro pragas dizimaram toda a Espanha, sendo
cumprida a predição divina que há muito tinha sido escrita pelos
profetas.
Na era de 449 (2), depois da terrível devastação das pragas pela qual
a Espanha foi destruída, os Bárbaros, decididos finalmente pela graça
de Deus a fazer a paz, sortearam as províncias para as ocupar. Os
Vândalos (3) e os Suevos ocuparam a Galécia(4); os Alanos, a
província da Lusitânia(5) e a Cartaginense (6); porém os Vândalos,
cognominados Silingos, abandonada a Galécia e depois de terem
devastado as ilhas da província Tarraconense (7), voltando a trás
tiraram à sorte a Bética (8). [ ... ]
[Sancti Isidori, Hispalensis Episcopi, Historia de Regibus Gothorum.
Wandalorum et Suevorum. in J. P. Migne, Patrologiae Cursus
Completus. Series Latina, t. LXXXIII, Paris, 1862, cols. 1076 e 1077].
1) Era de César, ou Hispânica, correspondente a 408 da Era Cristã.
(2) Em 411. (3) O grupo dos vândalos Asdingos. (4) Ou seja, a actual
Galiza espanhola e o território português até ao rio Douro. (5) Grosso
modo correspondente ao território português. (6) Abrangendo uma
grande parte do Centro e Sueste da actual Espanha. (7) Norte e
Nordeste da Espanha. (8) Correspondente à actual Andaluzia
espanhola.
Depois de uma estadia de vinte anos em Espanha, os Vândalos
(divididos em dois grupos, Asdingos e Silingos), perseguidos pelos
Visigodos, que lhes haviam cortado a retirada. por terra,
atravessaram o Mediterrâneo e ocuparam parte da província da
África, única do Ocidente até então poupada às incursões germanas.
É de Santo Isidoro de Sevilha (c. 560-636) o texto que se transcreve.
Na era de 467 (1) Genserico, irmão de Gunderico, sucedeu-lhe no
reino por quarenta anos. Este, que de católico se havia tornado
apóstata, foi o primeiro levado a transitar para a perfídia ariana.
Tendo abandonado a Espanha, atravessou com todos os vândalos e as
suas famílias (2), desde o litoral da província da Bética até à
Mauritânia e África. Valentiniano Júnior (3), imperador do Ocidente,
não se lhe podendo opor, fez a paz (4) e concedeu pacificamente a
parte da África que os Vândalos possuíam, aceites por um juramento
as condições de que nada mais invadiriam. [Genserico] porém, sobre
cuja amizade ninguém duvidava, profanada a inviolabilidade do
juramento, invadiu Cartago (5) com o engano da paz e transferiu em
seu próprio proveito todos os poderes depois de ter afligido os
cidadãos com diversos géneros de tormentos. Em seguida devastou a
Sicília (6), cercou Panormo (7), introduziu a pestilença ariana por
toda a África, afastou os sacerdotes das igrejas, fez muitos mártires
e, de acordo com a profecia de Daniel.
transmutados os mistérios, entregou as igrejas dos santos aos
inimigos de Cristo. [ ... ]
[ ... ] Genserico, nãó' contente com as devastações da terra de
África, passou a Roma (8), transportado por navios, destruiu os bens
dos Romanos durante catorze dias e trouxe consigo a viúva de
Valentiniano, as suas filhas e muitas mulheres de cativos; e pedida a
paz, por meio de enviados, ao imperador (9), remeteu a viúva de
Valentiniano para Constantinopla e uniu pelo matrimónio uma das
filhas [de Valentiniano] com o seu filho Huguerico.
[Sancti Isidori, Hispalensis Episcopi, Historia de Regibus Gothorum,
Wandalorum et Suevorum, in J. P. Migne, Patrologiae Cursus
Completus, Series Latina, t. LXXXIII, Paris, 1862, cols. 1077 e 1078.]
(1) 429. (2) Nesta migração (429) parece terem-se incluido tanto
Vândalos Asdingos e Silingos como alguns alanos e hispano-romanos.
(3) Valentiniano lU (423-455). (4) O acordo foi assmado em Bona a 11
de Fevereiro de 435. (5) Em Outubro de 439. (6) Em 440. (7) A actual
Palermo. (8) No ano 455. (9) O imperador do Oriente, Marciano (450-
457).
A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE (476)
Com a deposição de Rómulo Augústulo em 476 pelo bárbaro
Odoacro, desapareceu o Império Romano do Ocidente. Jordanes
(século VI) narra-nos sinteticamente este episódio.
Oreste (1), tendo tomado o comando do exército, partiu de Roma ao
encontro dos inimigos e chegou a Ravena, onde parou para fazer
imperador seu filho Augústulo (2). [ ... ]
Porém, pouco depois de Augústulo ter sido estabelecido imperador
em Ravena, por seu pai Oreste, Odoacro, rei dos Turcilingos (3),
tendo consigo ciros (4), hérulos (5) e auxiliares de diversas tribos,
ocupou a Itália. Oreste foi morto e o seu filho Augústulo expulso do
reino e condenado à pena de exílio no Castelo Luculano, na
Campânia.
Assim, o Império do Ocidente do povo romano, que o primeiro dos
Augustos, Octaviano Augusto, tinha começado a dirigir no ano 709 da
fundação da cidade de Roma, pereceu com este Augústulo no ano
quinhentos e vinte e dois (6) do reinado dos seus antecessores e
predecessores. Desde aí Roma e a Itália são governadas pelos reis dos
Godos.
Entretanto, dominada toda a Itália, Odoacro rei destas tribos, para
estabelecer o terror entre os Romanos, matou no início do seu
reinado o conde Bracila junto de Ravena e conseguiu dominar o seu
reino durante quase treze anos, até ao aparecimento de Teodorico,
por quem subsequentemente temos sido dirigidos.
[Jordanes, Romana et Getica in Monumenta Germaniae Historica
Auctorum Antiquissimorum, t. v, pars prior, Berlim, 1882, pp. 119-
120.]
(1) Romano nascido na Panónia, foi secretário do rei huno Átila. (2)
Rómulo Augústulo, imperador de 475 a 476. (3) Odoacro,
possivelmente um rúgio (lat. Rugii), tornou-se chefe dos exércitos
mercenários no Norte da Itália. Se alguns autores o cognominaram
Rei dos Rúgios, outros chamam-lhe Príncipe dos Ciros. Os Turcilingos
são um povo de origem obscura, arrastado para ocidente pela
invasão huna. (4) Ou esciros (lat. Scri), tribo germânica do Baixo
Vístula. (5) Os Hérulos (lat. Aeruli), outra tribo germânica que surgiu
à luz da História no século III, na região ao norte do mar Negro, junto
do Dniestre. (6) Rómulo Augústulo foi deposto em 4 de Setembro de
476.
por Espinosa, F. Antologia de textos históricos medievais, Lisboa, Sá
da Costa, 1972
A Crise política no Século 3
O poder do imperador romano, não obstante ser um dos mais
absolutos que o mundo jamais conheceu, não era de essência
monárquica. O príncipe não é todo-poderoso por ser tido como
descendendo dos deuses, tal como sucede no caso dos monarcas do
Oriente e dos reis de certos povos germânicos. É todo-poderoso
porque encarna na sua pessoa a Respublica, a autoridade do povo
romano, a qual é absoluta. O seu poder não é, pois, um poder de
índole pessoal, e ainda menos de ordem hereditária, é, sim, uma
delegação.
O poder baseia-se, antes de mais, nas forças armadas. O imperador é
quem detém, por delegação, o comando do exército, comando esse
de carácter absoluto como todo o verdadeiro comando. A este
comando chama-se imperium. Durante o período republicano,
inúmeros personagens vieram a deter o imperium, sendo então
investidos no cargo de generais-em-chefe, de procônsules. Tais per-
sonagens vieram a ser imperatores, nas só. durante o tempo de dura-
ção de uma campanha; um dia apos o triunfo, esse poder absoluto
expirava. A institucionalização do Império constituía em limitar a um
só o número de pessoas ao qual era conferido o imperium, e em lhe
conferir uma tal dignidade para toda a vida.
Na sua essência, o império não deixa de ser igualmente uma
magistratura. A idéia da soberania do Estado continua teoricamente
a planar sobre o imperador, encarnação da Respublica. E se este
recebe o título de Augusto, isto é, de santo, de sagrado, tal é, sem
dúvida, por ele ser o símbolo vivo da Dea Roma. Aquando da sua
morte, decide-se se deve ou não ser deificado, ou, diríamos nós,
santificado, se o seu numen ou génio irá ou não receber as honras
divinas.
Será que o imperium proconsular não possui mais do que este
aspecto militar? Ou será que também reveste uma faceta civil,
judicial? Tal aspecto é ainda, hoje em dia, objecto de discussão.
Parece evidente que o imperium, ainda que constituindo o elemento
estável, sólido, do poder do príncipe, não bastava para conferir à sua
autoridade uma real plenitude jurídica, pela boa razão de que o
poder proconsular só pode exercer-se fora de Roma (até Séptimo
Severo) e da Itália. Assim, o imperador auto-investe-se do poder
tribUnicio em vida, o qual lhe confere o direito de intercersio ou de
protecção global do povo romano, tornando a sua pessoa sagrada,
inviolável. Mas só vem a tomá-lo após o precedente, pois este é,
verosimilmente, fundamental.
Em torno deste núcleo, foi possível virem a congregar-se outras
funções: o imperador é pontifex maximus, censor, princeps senatus;
e detém ainda, de quando em quando, o consulado, se bem que tais
títulos não lhe proporcionem qualquer aumento considerável de
poder. Talvez a partir de Vespasiano, o conjunto dos direitos, de que
o fasces representava o poder imperial, passa a ser concedido em
bloco por um senatusconsulto, que é, ao mesmo tempo, uma lei (a
lex regia) proclamada no campo de Marte. Esta lei confere o
imperium, mas de modo algum o poder tribunicio.
A magistratura imperial não tem por objecto substituir a república
pela realeza. Inicialmente, o império apresenta-se como um
expediente. Um poder ditatorial permanente, a fim de poder
solucionar as convulsões sociais e politicas que ameaçam a existência
da república romana, é confiado ao primeiro cidadão do Estado: tal é
o significado de princeps. Mas os órgãos legais do Estado, o Senado e
os comidos, subsistem nos primeiros tempos do Império. O poder
legislativo não constitui um atributo exclusivo do imperador: ele
detém a iniciativa das leis, mas tal como qualquer outro magistrado,
e assim que as suas constituições, as suas acta, passarem a ter força
de lei, a sua base jurídica residirá provavelmente no poder tribunicio
de que está investido.
Por outro lado, na capital, o imperador também não dispõe, nos
inicios do principado, de verdadeiros funcionários de administração
central; até Adriano, vai ter de ir buscar ao seu núcleo de «amigos»
os elementos conscltutivos do conselho indispensável a qualquer
chefe de Estado.
Mas a antiga máquina subsiste. Tendo os comícios morrido de
velhice, a administração e as finanças, assim como a legislação,
vieram a concentrar-se nas mãos do Senado.
Se o conjunto do território tivesse continuado a ser governado por
este, o Império teria vindo a ser uma aristocracia, encabeçada por
um ditador militar. Na realidade, tal nunca veio a suceder. a papel
do imperador nunca cessou de aumentar a expensas do papel do
Senado. Na prática real dos factos, o imperador não só chamou a si o
comando do exército e o poder de decisão quanto à guerra e à paz,
como também veio a apoderar-se de todo o poder do Estado, criando
inclusive uma administração própria. De facto, logo desde o inicio, o
principe e o Senado repartiram entre si as diferentes provincias. A
fim de administrar aquelas que a si mesmo reservara, o imperador
teve necessariamente de arranjar os seus governadores, as suas
finanças-(o seu fiscus oposição ao aerarium); e como era ele quem
dispunha da força, os seus abusos relativamente a todos os dominios
possuídos pelo Senado foram constantes.
Não iremos aqui voltar a traçar um esboço da evolução, lenta mas
continua, que veio a transformar o principado num regime
monárquico ou quase. No século III, uma tal evolução estava ainda
longe de ter terminado. Sob o principado de um jovem bastante
novo, Alexandre Severo (12 de Março de 222 - Fevereiro-Março de
235), o Senado parece estar em vias de retomar um papel de
primeiro plano adentro do Estado romano:
«Ele fornece o conselho de regência e secunda a imperatriz (mãe)
Mammora. Atingida a maioridade, Alexandre não toma qualquer
decisão sem ouvir a opinião do Senado; remete para este a escolha
dos seus principais funcionários, dos prefeitos do pretório e da
cidade, assim como dos governadores a destacar para as províncias
proconsulares; e pede-lhe ainda frequentemente que escolha
candidatos para as restantes provindas. Em Roma, põe à disposição
do prefeito uma comissão de catorze personagens consulares encar-
regadas de o ajudarem a prestar justiça e de repartirem entre si a
tarefa de vigiar cada um dos quarteirões da cidade. Concede aos
prefeitos do pretória a dignidade senatorial, a fim de que um
senador romano só possa ser julgado por um outro senador. Não
envia qualquer rescrito, não emite qualquer constituição sem antes
ter ouvido o seu conselho, onde predominam os senadores. É ele
próprio quem nomeia os cônsules, mas encarrega o Senado da sua
designação. Restringe a autoridade dos procuradores imperiais e
submete a sua eleição à aprovação popular; restabelece o aerarium a
par do fisco ... Nada vem perturbar este acordo entre os dois
poderes, reunidos no âmbito dessa nova forma de governo a que
Herodiano chama aristocracia (VI, I). “A idéia do império senatorial é
já quase uma realidade; alguns há que sonham mesmo em
restabelecer a República, e tais esperanças podem detecetar-se
inclusive nos discursos feitos por Dione Cássio a Mecenas e a
Augusto”.
E é precisamente no termo deste reinado, com o assassinio de
Alexandre Severo e de sua mãe, que rebenta a tremenda crise que
esteve a ponto de levar à total desagregação do mundo romano e a
pôr, assim, termo à sua dvilização, a qual, nos principios do século
lil, era ainda tão notavelmente brilhante.
Vem, então, à luz do dia, sem quaisquer dissimulações, o vicio
fundamental do Império. a Império Romano, a despeito das apa-
rências, não possui uma constituição. Baseia-se apenas na força,
numa força bruta desencadeada pelos mais baixos desejos.
Este poder absoluto do primeiro cidadão, concentrando e resumindo
em si a majutas do povo romano, quem é que o confere? Não assenta
em qualquer base sólida, legal. Quem designava o ditador militar, o
imperador? O Senado, e sobretudo o exército, força guerreira do
povo romano, ao sabor das circunstâncias, na persecução de um
objectivo de interesse geral. Mas, mesmo após se ter dissociado do
povo romano, o exército continua a exercer uma acção
preponderante na escolha do senhor do Estado. Parece que o poder
do imperador só passa a usufruir de uma total plenitude legal quando
o princeps pôde obter ao mesmo tempo a concordância do exército e
a concordância do Senado. Mas a qual dos dois poderes cabe a
iniciativa legal? Ninguém o sabe. A designação pelo Senado seria mais
tranquilizadora, mas não é a mais legitima. Na realidade, é o
exército quem designa o imperador, pois é ele quem detém a força.
Por vezes, chegou a acontecer ter tomado a iniciativa de pedir ao
Senado para ser este a escolher, mas um tal pedido ocultou sempre
uma ordem ou uma armadilha.
Na época antiga da história de Roma, o exército é pouco numeroso,
formando um só corpo: pode acontecer que venha a designar
espontaneamente o homem de quem espera a salvação. Mas desde o
século I antes da nossa era, desde o nascimento da instituição do
exército permanente remunerado, já não há um exército, mas sim
exércitos. O imperador é o chefe a quem obedecem e de quem
esperam a vitória e o saque. Quando há só um chefe, um só
imperador, o exército dispersa-se, passando as legiões (24, 30, 32,
etc.) a acampar nas diversas fronteiras do Império, junto ao Reno, ao
Danúbio ou ao Eufrates. Este afastamento de Roma e da Itália
começa por beneficiar a guarda imperial, inicialmente constituída
por nove e mais tarde por dez das coortes pretorianas aquarteladas
em Roma. Não obstante, a partir da segunda metade do século I é já
patente a participação das legiões fronteiriças na eleição do
imperador; e, desde os fins do século II, tal vem mesmo a ser de
regra, já que o predomínio dos pretorianos fora quebrado por
Séptimo Severo (I93-ZII).
Os motivos de intervenção do exército, ou melhor, dos exércitos, não
são dos mais altruístas: põem-se e depõem-se imperadores por
dinheiro ou por razões de amor-próprio. As legiões chegam, por
vezes, a apoiar um personagem militarmente incapaz quando este é
rico (Didius Julianus). Mais tarde; cansam-se dele e acabam por o
matar. E matam-no também no caso de o imperador ser demasiado
rígido com a disciplina. Matam por capricho, matam por prazer, ou
até mesmo, por vezes, por motivos já relativamente plausíveis, tal
como no caso de o eleito se revelar incapaz de vencer os Bárbaros.
Como é natural, estes exércitos lutam entre si, já que cada um deles
pretende impor o eleito da sua escolha. No século li, estes exércitos
já nem sequer precisam de ser excitados por ambiciosos. A sua
agitação parece ser espontânea; repentinamente. de um dia para o
outro, um dado exército decide dar o poder a pessoas que tremem
de medo em aceitá-la. No período de cerca de meio século posterior
à. morte de Alexandre Severo, ser eleito imperador é um trágico
destino. Os eleitos (tais como Gordiano, Decius, Satuminus, Tetticus)
aceitam o principado como quem aceita uma sentença de morte. A
doença que não cessou de acometer o mundo romano durante os dois
primeiros séculos do Império, e até mesmo após Macius e Sylla, vem
a eclodir num acesso de febre convulsiva. Já não há povo romano. O
Senado não passa de uma sombra; o representante da Respublica, o
chefe do Estado, déspota todo-poderoso e temível, torna-se no
escravo submisso de um monstro de cem cabeças, qual Calibão sem
ideal, sem fé e sem lei: o exército dito «romano». E a história do
Império passa a ser, e sê-lo-á para todo o sempre, apenas uma série
ininterrupta de pronunciamentos militares.
O homem que atrasou em meio século a catástrofe, Séptimo Severo,
pôs de lado toda a hipocrisia; não se prestou a comédias, tal como os
seus predecessores. Consta que teria dado aos seus filhos, no seu
leito de morte, na Bretanha, o seguinte conselho: «Enriqueçam a
soldadesca e marimbem-se para o resto». Caracala veio a agir
conformemente a este conselho cínico.
Não nos seria possível voltar a traçar aqui um esboço da história do
período dito dos Trinta Tiranos. Eis apenas um quadro genérico do
Império na altura em que alguns soldados simples e rudes
conseguiram pôr um travão à anarquia reinante.
A indisciplina dos exércitos coincide com um aumento de actividade
dos Bárbaros junto às fronteiras do Reno e do Danúbio. Na Mésia, os
Gados franqueiam o Danúbio. O imperador Decius é vencido e morto
(Nov. de 251); e nem sequer foi possível encontrar o seu corpo. No
Oriente, o perigo é ainda mais grave. A velha monarquia dos Partos.
que por muito tempo fora funesta aos Gregos e aos Romanos,
acabava de se desmoronar. Um novo império persa veio a ser
instituído por Arquedir em ZZ6-227. Os Arsácidas tinham conservado
algo do helenismo; em matéria de religião, eram indiferentes. Com o
persa, vem a triunfar uma nova religião, o masdeismo, a qual é
sustentada e propagada por uma poderosa organização sacerdotal, a
dos magos.
Os Persas são autênticos fanáticos. Nos países conquistados, deitam
por terra todos os templos e impõem o masdeismo: assim aconteceu
na Arménia quando Sapor (Shapour) a subjugou. O parsismo é
incompativel com a cultura greco-latina. São duas civilizações em
confronto. O choque foi extremamente violento e desastroso para os
Romanos. O imperador Valeriano foi feito prisioneiro (260) pelo rei
dos Persas, Sapor, o qual lhe teria infligido tratamentos dos mais
humilhantes, tal como servir-se do seu cativo como estribo para
montar a cavalo.Um baixo-relevo gigantesco, o de Nakesh-i-Roustem,
perto de Persépolis, mostra Valeriano de joelhos diante do rei persa,
a cavalo. Segundo afirma a lenda, aquando da morte do cativo, a sua
pele, depois de curtida, tingida de vermelho e empalhada, esteve
durante vários séculos dependurada num templo persa.
Galieno, filho e sucessor de Valeriano, foi incapaz de resgatar ou de
libertar o pai. Tudo o que pôde fazer foi entregar o comando das
forças militares, dando-lhe o titulo de dux e, mais tarde, de
imperator (mas não de Augusto), a Septimius Odenath, o qual, de
origem árabe, reinava como senhor todo-poderoso no oásis de
Palmira, a meio caminho entre a Siria e o Eufrates. Odenath
conseguiu vir a conter o inimigo com tropas sirias e árabes, equi-
padas à romana.
Este Galieno, sob cujo reinado trinta tiranos - na realidade, dezoito
competidores - vieram a dilacerar o Império, tem uma muito má
reputação. Mas não nos devemos esquecer de que só o conhecemos
através de um testemunho tardio e hostil, o do pretenso Trebonius
Pollion. Sucede que foi sob o seu principado que rebentaram as
revoltas que acabaram por vir a dividir o Império em vinte parcelas
distintas. Como estas foram simultâneas, Galieno só conseguiu
conservar a Itália. A Panónia elegeu sucessivamente Ingenuus,
Regalianus, Aureolus; o Egipto, Macrianus, Aemilianus; a Grécia,
Valens; a Tessália, Pison; a Isáuria, Trebolliamus; a Africa, Celsus. Os
Gálios obedeceram, durante cerca de vinte anos (257-274) a
imperadores privados, tais como Posthumus, Victorinus, Tetricus.
Existem em tal facto indícios de um particularismo, senão nacional,
pelo menos regional. Nenhum destes imperadores deseja realmente
separar-se de Roma, constituir um Estado à parte. Não se trata de
separatismo (excepto em Pai mira, sob o reinado de Zenóbia). Todos
ou quase todos combatem os Bárbaros, tal como no caso de
Posthumus, o qual, tendo derrotado os Francos, manda cunhar
moedas com a inscrição: salus provinciarum. Mas, se uma tal
situação se tivesse mantido por longo tempo, o Império ter-se-ia
fragmentado em seis, oito ou dez parcelas. A cabeça de cada pro-
vincia ou grupo de provincias teria reinado um imperador demasiado
fraco para triunfar sobre os outros. Com o tempo, o particularismo
provincial teria acabado por vir a engendrar as nacionalidades. A
situação na segunda metade do século liI teria vindo a ser a dos
séculos V e VI. Só que, em vez dos reinos romano-germânicos dos
Ostrogodos na Itália, dos Visigodos na Espanha, dos Francos e dos
Burgúndios na Gália, ou dos Vândalos em Africa, teríamos tido
Estados de cultura romana, facto que talvez tivesse tido o seu
interesse, na condição de tais parcelas do Império terem estado à
altura de resistir à pressão das forças bárbaras. O aumento de uma
tal pressão, a partir do século III, é tão forte que as perdas da
Romania em prol do germanismo ter-se-iam revelado ainda mais
graves. Fosse como fosse, é a uma série de imperadores iliricos que
ficou a dever-se, em 274, a partir de Aureliano, o restabelecimento
da unidade imperial, a expulsão dos Bárbaros, o esmagamento do
particularismo oriental, gaulês, etc., assim como a ruína definitiva
do poder do Senado.
Infelizmente, este restabelecimento quase milagroso da unidade
imperial em nada alterou o vicio fundamental do Império. Pelo
contrário, o frenesi febril do exército vem a exasperar-se. Os
imperadores acabam todos por perecer às mãos dos seus próprios
soldados. Galieno, o qual tinha, contudo, conseguido proteger a
Itália contra os Alamanos, após ter derrubado diversos usurpadores e
reconquistado a Panónia, vem a ser morto por ser tido como
demasiado brando (268). Tácito, velho senador aceite pelo exército
apenas por ser rico, é morto ao fim de seis meses sob a acusação de
fraqueza: mas, na realidade, a verdade é que, como já não tem
nada, visto ter distribuído toda a sua fortuna pelos soldados, estes
optam por suprimi-la (275). Homens dos mais notáveis, velhos
soldados saldos das fieiras, tais como Aureliano e Probus, vêm a ser
assassinados pelos seus companheiros de armas a pretexto de serem
demasiado exigentes com a disciplina. Por maiores que tenham sido
os serviços prestados ao Estado, ou ao próprio exército, isso em nada
conta. No dia seguinte, após o crime, é possível que os soldados
lamentem a loucura cometida, mas tal não os impede de recomeçar
na primeira ocasião.
É preciso descobrir qualquer coisa, seja o que for, desde que seja
diferente.
LOT, Ferdinand O Fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média.
Lisboa: Ed.70, 1985 (original, 1926)
A Restauração do Mundo Romano
O grande mérito do novo eleito dos soldados, o dálmata Diocles, que
veio a mudar o nome para Diocletianus, denotando ser de origem
bastante humilde, consistiu em ter posto de lado toda a ficção.
Desde há vários séculos que o «povo romano» não era mais do que
um fantasma. Mas o Senado mantinha ainda uns restos do seu antigo
prestígio. A ilusão de uma república romana por si dirigida viera a
renascer no século III. Mas a história dos imperadores caros ao
Senado, como Alexandre Severo, os Gordianos, ou Tácito, pusera a
nu toda a impotência deste corpo decrépito. Diocleciano pô-lo
deliberadamente de lado: mesmo em relação à elaboração das leis e
dos regulamentos administrativos, este não mais voltou a ser
consultado. Mas aonde buscar então um apoio?
No dia seguinte ao da sua vitória sobre Carino (284), Diocleciano
compreendeu que, tal como vinha sucedendo aos seus predecessores
desde há quase meio século, não lhe seria possível conservar só para
si a totalidade do poder; sabia perfeitamente que doravante o
Império já não poderia continuar a ser dirigido por um só senhor. A
sabedoria recomendava-lhe, pois, que se adiantasse ao inevitável,
associando-se a um companheiro e escolhendo-o de modo a que mais
tarde não corresse o risco de este se vir a tornar num seu rival e
inimigo. Diocleciano optou por escolher um companheiro de armas,
Maximiano, ao qual o uniam laços de amizade. Este, homem rude e
sem instrução, possuía pelo menos os talentos militares que parecem
ter faltado ao imperador, e respeitava em Diocleciano a
superioridade intelectual: consentiu, assim, em ser a força ao serviço
da inteligência. Os cognomes de Iovius e de Herculius oficialmente
adaptados pelos dois amigos, foram uma ostensiva manifestação da
existência deste conceito. E a escolha foi feliz: Hércules nunca traiu
Júpiter. Nomeado César e, mais tarde, pouco tempo decorrido (a
partir de 286), “Augusto”, Maximiano foi realmente o braço direito
de Diocleciano.
Mas mesmo esta medida foi insuficiente. Os ataques dos Persas na
Ásia e dos Germanos na Europa, a par das constantes perturbações e
revoltas na Bretanba, no Egipto e na Mauritânia, acabaram por
exceder as forças dos dois «augustos». Em 293, Diocleciano deu mais
um passo no sentido do desmembramento do poder. Ambos os
imperadores passaram a ter um lugar-tenente, o qual recebeu o
imperium o poder tribunicio, o diadema, logo, o exercicio efectivo
do poder, mas apenas o título de «César», facto que o mantinha
numa posição de subordinação relativamente ao respectivo
«Augusto». Diocleciano tomou por colaborador Galério, um dácio
inculto, mas bom soldado; Maximiano um ilirico de origem distinta e
de trato agradável, Constâncio Cloro. Cada um dos Césares
proporcionava assim ao seu «Augusto» as qualidades que a este
faltavam. Por outro lado, as alianças familiares vieram a estreitar os
laços politicos: os dois Césares, já casados, tiveram de repudiar as
respectivas mulheres a fim de desposarem, um deles, Galério, a filha
de Diocleciano, e o outro, Constâncio, a enteada de Maximiano.
Finalmente, estes genros tornaram-se artificialmente, por
«adopção», nos filhos dos seus sogros. Diocleciano reservou para si o
Oriente, encarregando Galério da vigilância das provincias
danubianas; ao outro César couberam os dominios da Gália e da
Bretanha. Se de facto houve partilha do poder, não chegou a haver
desmembramento do Império: cada «Augusto» dispunha do direito de
vistoriar todo o território confiado ao seu “César”. A unidade de
legislação e de administração subsistiu, teoricamente indivisa, entre
os dois «Augustos», ainda que, na prática, tal tivesse sido atributo
exclusivo do qual Diocleciano permaneceu sempre como a mola
impulsionadora de toda a máquina.
A partir de 293, segundo consta, Diocleciano fixou a data limite no
termo da qual, considerando ter cumprido a sua missão, renunciaria
voluntariamente ao poder. Para prevenir qualquer conflito futuro,
exigiu de Maximiano, no templo de Júpiter Capitolino, o juramento
de que abdicaria ao mesmo tempo que ele.
Pela força das coisas, o “império” viera a tornar-se de uma
magistratura num poder monárquico. E tentou-se rodeá-lo de um
brilho, de um prestigio ficticio.
De origem humilde, tal como todos os seus predecessores (depois de
Galieno), Diocleciano julgou poder patentear uma tal transformação
rodeando a pessoa do imperador com todo um cerimonial à moda
oriental. Retomou o uso do diadema mistico, símbolo de eternidade,
que Aureliano fora buscar aos Sassânidas. Permitiu que o
qualificassem de senhor (dominus), mas urna tal qualificação nunca
foi oficial. Sob o seu principado, os cargos de cortesão continuam a
ser reputados como inferiores aos cargos públicos. Foi apenas na
segunda metade do século IV que os primeiros vieram a subir na
hierarquia em detrimento dos segundos, à medida que se ia
obscurecendo a ideia de serviço público.
A organização do exército, centro nervoso do poder, foi certamente
objecto de preocupações muito especiais da parte do imperador.
Infelizmente, no respeitante a este período, a história do exército
romano é das mais obscuras. Eis aquilo que parece ser mais ou menos
certo:
Os «pretorianos», tão perigosos um século antes, assistem a uma
diminuição progressiva e continua das suas prerrogativas. Já Séptimo
Severo expulsara das suas coortes os itálicos, homens turbulentos e
enfatuados, vaidosos da sua origem, para nelas dar lugar aos
soldados mais distintos das legiões pr07inciais. Diocleciano
reformula-as essencialmente à base dos seus compatriotas iliricos,
homens rudes e dedicados. Sob o seu sucessor Constantino, o próprio
nome de pretoriano, mal afamado, vem a desaparecer. As «coortes
urbanas», da responsabilidade do prefeito da cidade, são reduzidas a
um número limite.
O chefe do pretório, o prefeito do pretório, que já foi comparado
com o grão-vizir dos Estados muçulmanos, fora uma personagem
temivel nos séculos II e III: por mais de uma vez, mandara massacrar
o imperador para tomar o seu lugar. O desdobramento da prefeitura
irá diminuir a área geográfica do seu poder. Posteriormente, antes
do termo do reinado de Constantino, o Império será dividido em
quatro prefeituras. Mas a medida de principal eficácia consistirá em
reduzir o prefeito do pretório a funções quase exclusivamente civis,
confiando o comando efectivo a «senhores da milicia»,
transformação essa que será levada a cabo por Constantino. Um
certo número de legiões, deslocadas da província para a Itália e
qualificadas de «palatinas», constituem uma segunda guarda, rival e
contrapeso da primeira.
Uma importante medida, o fraccionamento da legião em seis
destacamentos, tantos como o número de tribunos existentes, e
provavelmente iniciado antes de Diocleciano, vem a ter continuidade
sob o seu reinado. Cada um destes destacamentos tem vida
autónoma, estando aquartelados, já não apenas nas fronteiras, mas
também nas praças fortes em que, por volta dos anos 260-270, as
cidades vieram a transformar-se.
A distinção entre «legiões» e «auxiliares» tende a esbater-se. A
cavalaria, indispensável para lutar contra os Godos, os Persas, etc.,
vem a adquirir uma importância crescente, particularmente no seio
da guarda imperial, a Schola.
No respeitante ao comando, Diocleciano prossegue igualmente uma
prática anterior. Assim, já em 261 Galieno (morto em 268) afastara a
ordem senatorial do comando das legiões. Por inveja, por receio,
sem dúvida, mas também por necessidade. Para os homens desta
classe, o exército não era uma carreira, mas antes um estágio pre-
paratório de futuras funções civis. Ora, este tipo de vagabundagem
já não era compativel com as necessidades do século. Os seis filhos-
familia no comando de cada uma das legiões não passavam
fatalmente de simples amaci0res; quanto aos jovens pertencentes à
ordem, muitas vezes bem modesta, dos senados provinciais, os
decuriões, careciam de experiência e prestigio. Deste modo,
Diocleciano veio também a afastá-los do exército. Os tempos eram
duros. Para lutar contra os Bárbaros e os Persas eram precisos
profissionais. A decisão de atribuir o alto comando a oficiais oriundos
da ordem equestre ou, pior ainda, saidos das próprias fileiras, foi
bem mais uma imperiosa necessidade do que um simples capricho de
tirano. Após Galieno, todos os imperadores pertencem a esta última
categoria: foram subindo lentamente, grau após grau, partindo do
mais baixo, até alcançarem o trono imperial, que surge como sendo
o termo normal de uma carreira militar.
A tendência mais corrente consiste em confiar os grandes comandos
fronteiriços, ou até mesmo internos, a cortesãos que ao seu novo
titulo de duques acrescentam a qualificação de comes} isto é, de
amigo do príncipe. O comitatus que durante longo tempo não passou
de um simples elemento decorativo, virá, mais tarde, a tornar-se
numa função.
Se é verdade que os homens de elevada e de média origem se
encontram afastados do exército, facto que trará graves
conseqüências, pelo menos sob o reinado de Diocleciano, também é
verdade que o comando não parece ter sido entregue a bárbaros
recentemente naturalizados, o que, pouco tempo volvido, virá a
tornar-se num hábito.
Seria temerário pretender precisar qual o alcance das alterações
introduzidas no armamento e na táctica. Contudo, é inegável haver
uma certa influência oriental iraniana. Tendo de lutar contra cava-
leiros, a infantaria passa a usar um armamento mais leve e maleável.
O archeiro, um asiático, adquire uma importância como até então
nunca conhecera no mundo romano. Uma parte da cavalaria,
bastante aumentada numericamente, passa a ser couraçada, reves-
tindo-se de uma cota de malha da cabeça aos pés: o «cavaleiro»
medieval surge, assim, a partir dos fins do século ITI. Quanto ao
moral do exército, a única coisa realmente importante, parece ter
voltado a ser, mais uma vez, bastante bom. O Império, não só não
correu nenhum perigo sério, como também pareceu retomar uma
maior unidade no estreitamento dos laços territoriais de dominação;
os Bárbaros da Europa e da África foram contidos e a Pérsia recuou:
viu-se obrigada a ceder cinco provincias no alto vale do Tigre e a
permitir o restabelecimento do reino da Arménia sob o protectorado
de Roma (297) Estes sucessos são ind1cio de um restabelecimento
social não negligenciável: «o exército, em muitos aspectos, resume
em si a civilização de um povo», observou Victor Duruy.
Depois da força, o exército, vem o seu alimento, o imposto. O
imperador deu-o clara e energicamente a entender. Necessitava de
dinheiro para aumentar o fausto imperial, talvez não tanto por gosto
pessoal como por necessidade politica, a fim de deslumbrar as
populações. Atribui-se a este reinado uma célebre inovação fiscal, a
avaliação da contribuição fundiária em caput ou jugum. Na sequên-
cia de cada operação cadastral (revista, em principio, de quinze em
quinze anos), as forças contributivas de cada circunscrição financeira
são contadas relativamente a um número determinado de caput.
Este caput ou jugum não é uma unidade real, geométrica, mas sim
uma unidade fiscal, estabelecida mediante grosseiras aproximações:
na Siria, cada caput é constituido por cinco arpents de vinhas
(Arpent: antiga medida agrária francesa que valia 50 a 51 ares
conforme as regiões), ou então por vinte arpents de boa terra de
cultivo ou por quarenta de terras de média valia ou ainda por
sessenta de terras de qualidade inferior; pode ainda ser constituído
por duzentos e vinte e cinco pés de oliveiras em pleno rendimento ou
por quatrocentos e cinquenta de oliveiras de segunda categoria.
Noutros lados, o jugum parece ser a «charruada» de terra, a quanti-
dade necessária à subsistência de uma familia de camponeses.
A repartição operava-se seguidamente por «cidades» e em cada
cidade por dominios; cada proprietário devia um certo número de
caput ou de fracções de caput consoante a importância da sua
fortuna territorial.
Uma tal reforma patenteava inúmeras vantagens. Durante muito
tempo, as provincias tinham pago o seu «tributo» ora em espécies
amoedáveis, ora em géneros, ora de ambas as maneiras, em virtude
de antigas convenções que, se eram vantajosas para determinadas
parcelas do Império pouco sobrecarregadas, já eram bastante
onerosas para outras. Doravante, cada circunscrição passou a pagar
em função da sua riqueza fundiária; a própria Itália passou a estar
também submetida ao imposto fundiário em géneros.
Sobretaxas e reduções de impostos passaram a ser facilitadas. O
indice de cada caput parece ter sido de uma real estabilidade: o
número de sete soldos de ouro, digamos vinte francos de 1913, valor
intrinseco, como principal caput, parece ser de regra nos séculos IV e
V. Os contribuintes das civitates, conhecendo o número dos juga do
seu pequeno Estado e o número de impostos que este era
regularmente obrigado a suportar, encontraram neste sistema certas
garantias, ainda que relativas, ao mesmo tempo que o poder,
podendo conhecer com bastante exactidão qual a vastidão dos seus
recursos, estava, do mesmo modo, em melhores condições de
estabelecer o seu orçamento.
Como complemento às medidas fiscais, devemos assinalar uma
tentativa no intuito de dar remédio à grande crise economica que
assolava o mundo romano. Diocleciano veio a ser bem sucedido
precisamente aonde Aureliano fracassara. Em 296, restabelece uma
moeda forte. Volta a pôr em circulação o verdadeiro denário de
prata, moldado à razão de 96 por libra e com 3.41 g. de peso, tal
como no reinado de Nero, sob o nome de argenteus minutulus ou
argenteolus; o antoninianus, depreciado em último grau, desaparece
ou só continua a circular enquanto moeda de bilhão. A moeda de
ouro, o aureus, foi moldada à razão de 60 por libra e passou, por
consequência, a pesar 5.45 g. Em 301, no intuito de fazer baixar os
preços, o imperador lembrou-se de criar uma moeda câmbio corrente
em bronze argentado, o denarius communis, representando 1/50000
da libra de ouro, e passando assim a libra de ouro de 327 gramas a
valer 240.000 gramas de bronze.
Neste mesmo ano, a fim de pôr cobro às desastrosas especulações
originadas pelas perturbações monetárias, o imperador, num Edictum
de pretiis rerum venalium, julgou possível fixar, não o preço dos
géneros alirnenticios, do vestuário, dos objectos de uso corrente, dos
salários, das compensações, etc., mas sim o limite máximo a poder
ser exigido. O édito parece ter de facto visado, muito em particular,
a Pars Orientis. O insucesso foi total: os mercadores esconderam os
seus produtos, os preços subiram e houve tumultos. O édito teve,
mais tarde, de vir a ser revogado.
Não será decerto inútil assinalar que o número das provincias foi
elevado para uma centena. As vantagens decorrentes de uma tal
medida eram de dupla ordem: sendo menos alargadas - algumas
delas desmesuradamente vastas- as provincias passaram a poder ser
melhor administradas e o poder passou a não ter tanto a temer dos
governadores, já que os seus recursos tinham sido, assim,
razoavelmente diminuidos. De resto, houve uma tendência para
exagerar as inovações de Diocleciano neste campo: ele só aumentou
em catorze unidades o número de províncias, e doze delas no
Oriente. Facto infinitamente mais importante, o Senado foi des-
pojado da administração das provincias que, durante vários séculos,
lhe tinham sido reservadas: todas passaram a estar doravante à
disposição do imperador.
Por outro lado, surge um novo agrupamento, a diocese, englobando
em si diversas provincias. A cabeça de cada uma delas (chegaram a
haver doze) está um vigário, intermediário entre o praeses,
governador da provinda, e o prefeito do pretório; com esta medida,
a autoridade deste último vem a ser ainda mais circunscrita.
Na capital, Diocleciano prossegue muito mais na senda das
transformações anteriormente iniciadas e inova muito menos. Desde
o inicio do século III que os escravos libertos tinham sido afastados.
Os funcionários administrativos, mesmo os subalternos, tinham sido
militarizados; estes empregados, ditos officiales, possuem titulos que
lembram os diversos graus do exército: centuriões, corniculários,
optiões, etc. Tornam-se em ajudantes dos altos funcionários, tais
como os Caesariani, que têm por missão executar as decisões dos
agentes do fisco. O serviço de escritório é qualificado de «milicia».
O corpo que impulsiona toda a vida politica e administrativa é o
conselho do principe, o Consistório. Este vem, assim, a completar a
lenta evolução que, em três séculos, transformou o círculo de amigos
do pr1ncipe num órgão de Estado, num «Conselho de Estado». O
imperador exige dele um árduo trabalho.
A atividade legislativa de Diocleciano foi, com efeito, considerável.
Nenhum outro imperador nos legou um tão grande número de
rescritos ou de éditos: duzentos ao todo. A intenção que lhe preside
é das mais louváveis. O príncipe procura reprimir as fraudes,
proteger os fracos, o escravo, a mulher, o devedor, o homem livre
pobre contra o rico, o colono contra o seu «dominus», o pai contra a
ingratidão dos filhos.
A reforma do foro judicial prossegue e completa-se. No foro civil, a
dupla instância, in jure perante o pretor, in judicio perante o jurado
designado pelo primeiro, vem a simplificar-se: é apenas ao
magistrado, detentor do conhecimento de fundo, que compete
decidir. É certo que o magistrado não passa de um funcionário, mas
também a extrema complexidade do sistema antigo podia vir a
acarretar inconvenientes. No foro criminal, a cognitio extraordinaria
vem a substituir-se ao procedimento formalista: quem toma em mão
o inquisitio é o magistrado e não o acusador. O imperador é
desfavorável ao emprego da tortura. Desconfia da policia mili-
tarizada e licencia os «frumentários», espiões e agentes provoca-
dores que infestam a capital e as províncias.
Mas não nos devemos deixar enganar pelas aparências. Esta
abundante legislação, cheia de boas intenções, não tem, contudo,
qualquer originalidade. O conselho, que fala em nome do principe,
limita-se a repetir decisões já antigas. Quando Lactâncio, um seu
malevolente contemporâneo, declara que neste reinado a ciência
juridica deixara de existir, não deixa de ter uma certa razão. Na
opinião de um bom juiz, e tendo em conta a simplicidade das
questões relativamente às quais o imperador é consultado, parece já
não haver advocacia forense, já não haver magistratura. A ignorância
é tal que o príncipe vê-se constantemente obrigado a intervir para
indicar quais as regras de direito que os governadores de províncias
devem aplicar. Mas, pelo menos, deve reconhecer-se a este filho de
escravos dálmatas o mérito de ter favorecido os estudos de direito
(nomeadamente em Beirute) e de ter sentido a necessidade da
formação de um grande corpo, o Conselho do príncipe, onde viriam a
concentrar-se os parcos conhecimentos jurídicos da época.
«E depois, deve dizer-se, em defesa dos magistrados desse tempo,
que a sua ignorância era, por vezes, desculpável e que a sua tarefa,
nessa época, era bem mais difícil do que no passado. Tinham de
aplicar leis romanas a povos que até então tinham usufruído de uma
quase total autonomia. Já vimos que os predecessores de Diocleciano
trabalharam no sentido da romanização do Império do ponto de vista
legislativo. Muito estava ainda por fazer, e Diocleciano foi um dos
que mais eficazmente contribuíram para generalizar o uso do direito
romano. É certo que a unidade legislativa ainda não é uma realidade.
Diocleciano permite que se invoquem os regulamentos municipais e
os costumes locais, ainda que só em casos de menor importância ...
É sob o reinado de Diocleciano que começam a surgir as expressões
jus romanorum, leges romanae em vez de jus civile Romanorum, jus
nostrom, jus gentium. O direito romano conservara até então, em
certa medida, um caráter de direito municipal. Criado para suprir as
necessidades de uma cidade, não tinham sabido, pelo menos no'
respeitante aos actos que apresentavam um caráeter religioso, dar-
lhe a necessária maleabilidade que permitisse torná-lo num direito
nacional.»
A bem dizer, a Cidade antiga era um cadinho bastante acanhado para
nele refundir o mundo. Sem qualquer tipo de atividade, de ordem
material ou espiritual, Roma tornara-se num obstáculo à expansão da
Romania. Enquanto Aureliano a tinha feito rodear de uma nova
muralha, bem mais espaçosa, como se visse nela o palladium do
Império, como se lhe desejasse uma nova vida, Diocleciano
abandonou-a deliberadamente e de seguida. A partir de 284, Roma
cessa de ser realmente a capital do Império. É antes um santuário
onde têm lugar certas cerimónias rituais, os vicennalia, os «triunfos»
- e estes vão tornar-se extremamente raros; é um museu
incomparável; é uma cidade morta. O imperador reside no Oriente,
de preferência em Nicomédia, nos confins da Europa e da Asia. O seu
colega estabelece-se em Milão, para melhor poder vigiar os Bárbaros
que ameaçam os Alpes. Os seus lugar-tenentes, os «Césares»,
acampam em Treves e em Sírmio, espiando o ataque dos Germanos
ou dos Iranianos europeus (Sármatas, Roxolanos, Iáziges). Doravante,
o principe só em raras ocasiões virá a Roma e sempre por pouco
tempo; sente-se aí deslocado, como um provinciano e, por outro
lado, os assuntos do Império bem depressa dela o afastam. É
flagrante o contraste entre a existência dos imperadores dos fins do
século TIl e IV e a dos seus predecessores que nunca deixavam a
«Cidade» e nela dissipavam a saúde, a razão e a vida em orgias
estúpidas ou dementes.
Em resumo, a acção de Diocleciano, tanto quanto nos é possível
julgar, dada a extrema escassez das fontes disponíveis, surge-nos
como bem sucedida e de grande alcance. Conseguiu voltar e dar ao
Império, se não a prosperidade, pelo menos uma sua imagem. E é
Lactâncio, um cristão, seu inimigo, quem no-lo atesta. E o mesmo no
caso dos monumentos: termas das mais famosas, o palácio de Salona
(Split) na Dalmácia, basllicas, pórticos, e inúmeras construções civis
e militares, em Roma, em Milão, em Antioquia, em Edessa. Sem ser
propriamente um letrado, o imperador favorece os estudos: cria a
escola de Nicomédia, enquanto Constância Cloro reconstrói as
escolas de Autun. As artes e as letras também tiveram, pois, a sua
parte nesta restauração do mundo romano.
Vinte anos passaram após a morte de Caros, sendo os mais felizes
que o mundo romano conheceu desde Séptimo Severo. Depois de ter
ido a Roma celebrar os seus vicennalia e «triunfado» em companhia
do seu colega (Novembro de 304), Diocleciano julgou ser chegado o
momento de dar lugar aos novos. A sua obra parecia-lhe já
suficientemente sólida e sentia chegar a velhice - estava perto dos
sessenta anos - e os efeitos da doença. Abdicou solenemente perto
de Nicomédia, diante do templo de Júpiter, a I de Maio de 305. No
mesmo dia, no Ocidente, o Hercúlio, obrigado pelo seu juramento,
renunciava, tremendo, ao manto púrpura. Sem dúvida que o sistema
da tetrarquia virá a desagregar-se um dia após esta dupla cerimónia.
Mas, na realidade, tal era mais um expediente do que um sistema
propriamente dito. E quanto a ser cura para os males de que o
Império enfermava, isso, de modo algum. Já não era pouco ter
sabido inventar um remédio de acaso que permitisse ao paciente
retomar forças contra os futuros assaltos do destino.
Diocleciano e o Cristianismo
O fim do reinado de Diocleciano vem a ser marcado por uma medida
que deixou uma mancha indelével na memória do grande político: o
retomar da perseguição contra os cristãos. Mas convém que nos
detenhamos um pouco em tal facto.
Há já cerca de dois séculos e meio que o Império sofria de um mal
interno. o cristianismo. O antagonismo entre o Estado romano e a
Nova Lei. letargicamente adormecido durante intervalos mais ou
menos longos, renascia periodicamente com inconcebível furor. O
poder pretendia exterminar a seita; os cristãos não lhe opunham
mais do que a força da inércia, mas uma tal força era invencível.
É necessário esforçarmo-nos por manter um certo distanciamento a
fim de podermos compreender quais os motivos da violência deste
antagonismo, ou até mesmo qual a sua razão de ser. A tolerância de
Roma para com as religiões estrangeiras é um facto bem conhecido.
A única religião que, a par do cristianismo foi objecto de
perseguições. O judaísmo, deve-o às imprudências e às fanáticas
provocações dos seus adeptos. Mais ainda, após a destruição de
Jerusalém, instalou-se um modus vivendi que deu aos judeus toda a
liberdade de consciência e até mesmo de práticas, ainda que estas
(tal como a circuncisão) fossem interditas aos restantes habitantes
do Império.
É digno de nota assinalar que as perseguições são retomadas em
momentos críticos da história do Império, tal como no caso dos
trágicos reinados de Décio e de Valéria, em alturas em que a opinião
popular, inquieta, procura uma causa para as desgraças públicas. Os
cristãos, reputados como maus cidadãos, sendo inimigos dos deuses
cujas iras desencadeiam, eram os “traidores” predestinados para
servirem de bodes expiatórios.
Mas nada de semelhante consegue discernir-se no termo do
principado de Diocleciano, o qual, pelo contrário, vem a findar num
ambiente de prosperidade. O imperador só se decidiu a retomar as
perseguições após longas hesitações que duraram vários anos (de 299
a 303). A razão que o terá levado a decidir-se por uma política de
repressão permanece envolta em mistério. Houve quem se
interrogasse sobre se tal não teria sido fruto dos lamentáveis
incidentes ocorridos no seio do exército. Os cristãos eram tidos por
pouco dotados para carreiras militares. Certas seitas, como por
exemplo os montanistas, declaravam o serviço militar incompativel
com o cristianismo. Mas o montanismo fora condenado e a Igreja
«católica» não era tão pragmática. A pouco e pouco, o
cristianismo conseguira mesmo insinuar-se no exército, onde já
dispunha de adeptos. Será que houve quebras de disciplina, recusas
de cumprir ordens para efetuar sacrifícios? É possível. Mas tal não
passa de simples suposição.
Deve assinalar-se que, nessa época, Diocleciano estava sob a
influência de Galério, cuja mãe era uma fervorosa pagã, e que
transmitira ao filho o seu ódio pelo cristianismo. A verdade é que
entre a Igreja cristã e o Estado, mesmo nos periodos de acalmia,
nunca houve mais do que uma trégua tácita, precária, à mercê do
menor incidente. O pretexto para a ruptura parece ter sido o
incêndio do palácio de Nicomédia. Tratava-se da cidade favorita de
Diocleciano: em alguns anos, transformara-a na mais bela cidade do
Oriente depois de Antioquia e de Alexandria.
Assim, tanto a última perseguição como a primeira, ordenada por
Nero, foram desencadeadas pela crença na mania incendiária dos
cristãos.
Esta última perseguição foi a mais longa: durou, pelo menos, cerca
de oito anos (303-311). A despeito da tradição, não é seguro que
tenha sido das mais cruéis, pelo menos durante o reinado de
Diocleciano. Atacou-se mais as coisas do que as pessoas. As igrejas
foram fechadas ou destruídas e os livros santos queimados. O número
de vítimas não parece ter sido muito elevado. Os magistrados
revelaram-se de uma extrema complacência, fatigados e entediados,
tal como era seu hábito neste tipo de assuntos.
O próprio Lactâncio, o adversário cristão de Diocleciano, ao
escarnecer das suas precauções, das suas longas hesitações. da
facilidade com que os romanos se contentavam com uma retratação
simulada, dá-nos assim testemunho da relativa moderação da
repressão.
Mesmo assim, é certo que os cristãos acusaram o golpe, sem que.
contudo. nada permitisse pressagiar a sua longa resistência. e muito
menos o seu triunfo final.
Foi precisamente no ano imediato ao início das perseguições que
Diocleciano julgou chegado o momento de abdicar, considerando que
a sua obra já fora levada a bom termo. No grandioso retiro que
desde há muito mandara preparar nos confins do seu pais natal, em
Salona, nunca foi perturbado, disso podemos estar certos. por
quaisquer escrúpulos relativos à legitimidade do seu édito. ou por
quaisquer inquietações quanto à sua eficácia. A abolição do
cristianismo representava o coroamento da sua obra de restauração
do Império, há tanto tempo disperso, dilacerado, fragmentado:
doravante não haveria mais do que um rebanho sob a autoridade de
um pastor de várias cabeças.
A sucessão de Diocleciano
Será que Diocleciano chegara a regulamentar detalhadamente o
sistema daquilo a que se chamou a tetrarquia? Talvez não, e de
qualquer modo não importa. Este sistema tinha a sua lógica interna.
Determinava que os «Césares» se sucedessem aos «Augustos» e
tomassem por seu turno, outros «Césares» como adjuntos. Era da
tradição que um dos Augustos tivesse uma espécie de preponderância
sobre o outro. Galério seguiu, pois, as vias traçadas pelo seu
antecessor ao designar os dois novos Césares, Severo e Maximiano
Daia. É certo que eram assim afastados do trono os filhos de
Maximiano e de Constância, Maxêncio e Constantino; mas também
isso era conforme ao espirito da tetrarquia, em que a escolha do
senhor e o parentesco fictício se sobrepõem aos pretensos direitos do
sangue. Só que aqui veio a esbarrar-se na força das circunstâncias.
Os príncipes desapossados rebelaram-se e a confusão recomeçou.
Após sete anos de lutas, o poder veio a tombar, a Ocidente, nas
mãos de Constantino, vencedor de Maxêncio na Pons Milvius, perto
de Roma (28 de Outubro de 312). Mas foram ainda precisos mais doze
anos para que o filho de Constância Cloro (falecido em 306)
conseguisse tornar-se senhor de todo o Império. Inicialmente,
tentou-se prolongar o sistema de Diocleciano. Constantino deu a sua
irmã em casamento a Licinius, sucessor de Galério; vencedor do seu
colega por várias vezes, decidiu poupá-la e deixou-lhe o Oriente. Foi
apenas em 323 que Constantino se decidiu a assumir a sós o governo
do Império e a suprimir o seu rival. A tetrarquia, tal como a diarquia,
já não tinha futuro; o seu tempo passara. Quando chegar a altura de
tomar as suas últimas disposições (337), Constantino dividirá o
Império pelos seus filhos e pelos seus netos, tal como se de um
património se tratasse. Ora, isso é já uma partilha à carolingia ou à
merovingia, unicamente fundamentada nos direitos do sangue.
Restavam-lhe três filhos, todos sucessivamente proclamados Césares.
O Império foi, assim, dividido em três partes. Constantino ficou com
o Ocidente (Gália, Bretanha, Espanha) Constâncio com o Oriente,
incluindo, o Egipto, e Constante com a Itália, incluindo o Illyricum e
a Africa. Mas os netos também não foram esquecidos. Um deles,
Dalmácio, devia ficar no seu lote com a Trácia, a Macedónia e a
Acaia, e um outro, Anibaliano, com uma parte da Arménia e do
Ponto, recebendo o titulo oriental de «rei dos reis».
A unidade do Império foi restabelecida em proveito de Constância
com a supressão dos sobrinhos, massacrados pelo exército (337), com
a vitória de Constante sobre o seu irmão Constantino II em Aquileia,
o qual foi morto (340), e com o assassinato do primeiro, do
vencedor, vitima do «magister militum», Magnus Magnentius (350).
Com efeito, a sucessão por filiação não pusera termo às revoltas dos
generais e às suas tentativas de usurpação do Império. Contudo,
deve reconhecer-se que a partir de Diocleciano passaram a ser mais
raras e nunca foram bem sucedidas. Em 353 Constâncio, tendo
derrotado e morto Magnêncio, fica senhor de todo o Império. Mas, a
partir de 361, vê-se a braços com a revolta do seu primo Juliano
(filho de Júlio Constâncio, irmão de Constantino o Grande), que
nomeara César com a missão de defender a Gália contra os Bárbaros.
Depois dos curtos reinados de Juliano (+ 26 de Junho de 361) e de
Joviano (+ 17 de Fevereiro de 364), uma nova dinastia instala-se no
trono, na pessoa de um soldado intrépido e cruel, Valentiniano. Mas
no próprio dia da sua eleição pelo exército, reunido na planície de
Dadastania, a 26 de Fevereiro de 364, os soldados, aclamando-o,
exigiram que se associasse a um companheiro de armas. Valentiniano
escolheu o seu irmão, Flavius Valens, e confiou-lhe o Oriente com a
Peuinsula Balcânica. A efectiva separação do Império em dois
grandes blocos tornara-se numa necessidade imperiosa. Desde esta
época, estas duas metades não mais voltaram a unir-se, salvo por um
lapso de tempo perfeitamente insignificante, sob o reinado de
Teodósio (três meses: fins de Setembro de 394 a Janeiro de 395).
LOT, Ferdinand O Fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média.
Lisboa: Ed.70, 1985 (original, 1926).
A Instalação dos Bárbaros - Século V - VIII
O Ocidente medieval nasceu sobre as ruínas do mundo romano. Nelas
encontrou, ao mesmo tempo, apoios e desvantagens. Roma foi o seu
alimento e foi a sua paralisia.
Antes do mais, Roma legou à Europa medieval a dramática
alternativa que a lenda das suas origens simboliza: a Roma fechada,
do pomerium e do templum, que triunfa da Roma sem limites, sem
muralhas, em vão planeada pelo infeliz Remo.
Posta por Rômulo sob o signo do fechado, a história romana, mesmo
nos seus êxitos, é apenas a história de uma grandiosa clausura. A
Cidade reuniu em seu redor um espaço, dilatado pelas conquistas até
ao perímetro ótimo de defesa, que a si própria se impôs no século I
encerrar atrás do limes - verdadeira muralha da China do mundo
ocidental. E, no interior desses muros, explorou sem criar: não houve
nenhuma inovação técnica depois da época helenística, a economia
era alimentada pela pilhagem, as guerras vitoriosas forneciam a
mão-de-obra servil e os metais preciosos recolhidos nos tesouros
acumulados pelo Oriente. Roma foi inexcedível nas artes
conservadoras: a guerra, que foi sempre defensiva apesar das
aparências da conquista; o direito, construído sobre a infra-estrutura
dos precedentes, que precavia contra as inovações; o sentido do
Estado, que assegurava a estabilidade das instituições; a arquitetura,
que por excelência era a arte da habitação e da permanência.
Essa obra-prima de imobilismo que foi a civilização romana sofreu na
segunda metade do século II a erosão de forças destrutivas e
renovadoras.
A grande crise do século III minou o edifício. A unidade do mundo
romano desfez-se e o seu coração - Roma e a Itália deixou de irrigar
os membros, que procuraram viver com vida própria as províncias
emanciparam-se e passaram a ser, por sua vez, conquistadoras.
Espanhóis, gauleses e orientais invadiram o Senado. Os imperadores
Trajano e Adriano eram de origem espanhola e Antonino de
ascendência gaulesa; na dinastia dos Severos, os imperadores foram
africanos e as imperatrizes sírias. O édito de Caracalla, em 212, deu
direitos de cidadania romana a todos os habitantes do Império. Esta
ascensão das províncias manifesta em igual medida o êxito da
romanização e o aumento das forças centrífugas. O Ocidente
medieval vai herdar dessa luta: unidade ou diversidade, cristandade
ou nações?
Outro desequilíbrio, mais profundo: o Ocidente perde substância em
proveito do Oriente. O ouro que paga as importações de luxo foge
para o Leste, produtor e intermediário, cujos mercadores judeus e
sírios monopolizam o grande comércio. As cidades do Ocidente
entram em anemia e as do Oriente prosperam.
A fundação de Constantinopla - a nova Roma – por Constantino (324-
330) materializa esta inclinação do mundo romano para o Oriente. E
esta clivagem vai marcar também o mundo medieval: os esforços
para a união entre o Ocidente e o Oriente não resistirão a uma
evolução definitivamente divergente. O cisma está inscrito nas
realidades do século IV. Bizâncio continuará Roma e, sob as
aparências da prosperidade e do prestígio, prolongará até 1453, por
trás das suas muralhas, a agonia romana. O Ocidente empobrecido e
barbarizado terá de repetir todas as fases de um levantar vôo que no
fim da Idade Média lhe abrirá os caminhos de todo o mundo.
Ainda mais grave: a fortaleza romana, de onde as legiões partiam
para a captura dos prisioneiros e para a pilhagem, está, ela própria,
cercada; e dentro em breve cederá ao assalto. A última grande
guerra vitoriosa data de Trajano e o ouro dos Dácios, em 107, foi o
último grande repasto da prosperidade romana. Ao esgotamento do
exterior vem somar-se a estagnação interior - em primeiro lugar, a
crise demográfica, que agudiza a penúria de mão-de-obra servil. No
século lI, Marco Aurélio contém o assalto bárbaro no Danúbio, onde
morre em 180; o século III vê um assalto geral às fronteiras do limes,
assalto que amaina menos por efeito dos êxitos militares dos
imperadores ilíricos de fins do século e dos seus sucessores que
devido à acalmia obtida com a aceitação, como federados, aliados,
dos Bárbaros - admitidos no exército ou nas margens interiores do
Império: primeiro esboço de uma fusão que vai caracterizar a Idade
Média.
Os imperadores julgam conjurar o destino ao abandonar os deuses
tutelares, que falharam, pelo Deus novo dos cristãos. A renovação
constantiniana parece justificar todas as esperanças: a paz e a
prosperidade parecem estar de volta sob a égide de Cristo. Mas é
apenas uma curta recuperação. De resto, o cristianismo é um falso
alíado de Roma. Para a Igreja, as estruturas romanas são
simplesmente um quadro onde tomar forma, um alicerce em que
apoiar-se um instrumento para se afirmar. O cristianismo, religião de
vocação universal, hesita em fechar-se nos limites de uma única
civilização. Será, sem dúvida, o principal agente de transmissão da
cultura romana ao Ocidente medieval. Herdará sem dúvida de Roma
e das suas origens históricas, a tendência para dobrar-se só a si
próprio. Mas, além dessa religião fechada, a Idade Média ocidental
conhecerá também uma religião aberta; e o diálogo entre estas duas
faces do cristianismo dominará essa idade intermédia.
Economia fechada ou economia aberta, mundo rural ou mundo
urbano, fortaleza única ou casas diversas - o Ocidente medieval
levará dez séculos a resolver tais alternativas.
Podendo-se encontrar na crise do mundo romano do século III o início
da profunda perturbação de que sairá o Ocidente medieval, é
legítimo considerar as invasões bárbaras do século V como o
acontecimento que precipita as transformações, que lhes dá um
aspecto catastrófico e que lhes modifica profundamente a aparência.
As invasões germânicas do século V não foram novidade para o
mundo romano. Sem recuar até aos Cimbros e aos Teutões, vencidos
por Mário no princípio do século II a. c., convém recordar que a
ameaça germânica pesava permanentemente sobre o Império desde
o reinado de Marco Aurélio (161-180). As invasões bárbaras foram um
dos elementos essenciais da crise do século III. Os imperadores
gauleses e ilírios do fim. desse século afastaram o perigo durante
algum tempo. Mas - para ficar apenas na parte ocidental do Império -
a grande incursão dos Alamanos, dos Francos e de outros povos
germânicos que em 276 devastaram a Gália, a Espanha e o Norte da
Itália prefiguravam já a grande cavalgada do século V deixou feridas
mal cicatrizadas - campos devastados, cidades em ruínas -,
precipitou a evolução econômica - declínio da agricultura, recuo
urbano -, a recessão demográfica e as transformações sociais: os
camponeses tiveram cada vez mais de colocar-se sob a proteção,
gradualmente agravada, dos grandes proprietários, que assim
passavam a ser chefes de bandos militares, e a situação do colono
estava cada vez mais próxima da do escravo. E a miséria dos
camponeses transformou-se, por vezes, em jacquerie e recordemos
os vagabundos africanos e os bagaldos gauleses e espanhóis, cuja
revolta, nos séculos IV e V, foi endémica.
E também no Oriente aparecem bárbaros que hão de abrir caminho e
que virão a desempenhar papel de capital importância no Ocidente:
os Gados. Em 269 são contidos em Nisch pelo imperador Cláudio lI,
mas ocupam a Dácia e a sua estrondosa vitória em Andrinopla sobre o
imperador Graciano, a 9 de Agosto de 378, se não é aquele
acontecimento decisivo, descrito com terror por tantos historiadores
«romanófilos» (Poderíamos ficar por aqui escreve Victor Duruy -, pois
de Roma nada ficou: crenças, instituições, cúrias, organização
militar, artes, literatura, tudo desapareceu), nem por isso deixa de
ser o trovão anunciador da tempestade que está a submergir o
Ocidente romano. Estamos mais bem informados a respeito dos
Godos que da maioria dos outros invasores graças à história de
Jordanes, tendenciosa, é fato, visto que é de origem bárbara, e
tardia, já que o autor escrevia em meados do século VI mas utiliza
uma documentação, escrita e oral, séria, especialmente a História
dos Godos, perdida, de Cassiodoro. Historiadores e arqueólogos con-
firmam, grosso modo, as Wanderungen dos Godos descritas por
Jordanes, da Escandinávia ao Mar de Azov através do Mecklemburg,
da Pomerânia e dos pântanos do Pripet. Foi da ilha de Scanzia
(Suécia), que é uma espécie de fábrica de povos, ou, se preferirem,
de matriz de nações - escreve Jordanes -, que os Godos saíram com
seu rei, chamado Berg. Depois de avançar até à morada dos
Ulmerugos (Pomerânia Oriental), com a população a crescer,
resolveram, no reinado do quinto rei a seguir a Berg levar para
diante o exército, com as famílias dos Godos, para procurar morada
mais vasta e territórios mais convenientes, e foi assim que os Godos
chegaram à Chia; a grande fertilidade desta região agradou à hoste;
mas, depois de metade ter passado, a ponte que atravessava o rio
desmantelou-se e não se podia andar para diante nem para trás, pois
a região estava rodeada de pântanos movediços que a cercavam à
maneira de abismo.
As causas das invasões importam-nos pouco. Crescimento
demográfico ou atração por territórios mais ricos, como Jordanes
invoca, foram motivos que provavelmente só atuaram na seqüência
de um impulso inicial que poderia muito bem ter sido uma
modificação do clima, um arrefecimento que, da Sibéria à Escan-
dinávia, teria feito diminuir as terras de cultivo e de criação de gado
dos povos bárbaros e os teria posto em movimento, empurrando-se
uns aos outros, para sul e para oeste até as Finisterras ocidentais: a
Bretanha, que iria ser a Inglaterra, a Gália, que seria a França, a
Espanha, em que só o sul tomaria o nome dos Vândalos (Andaluzia) e
a Itália, que só no norte, na Lombardia, conservaria o nome dos seus
tardios invasores.
Maior importância têm certos aspectos dessas invasões. Em primeiro
lugar, elas foram, quase sempre, uma fuga para diante. Os invasores
eram fugitivos pressionados por outros, mais fortes ou mais cruéis
que eles. A sua crueldade era muitas vezes a crueldade do
desespero, em especial quando os Romanos lhes recusavam o abrigo
que eles tantas vezes pacificamente lhes pediam. No fim do século
IV, Santo Ambrósio compreende bem estas invasões em cadeia: Os
Hunos precipitaram-se sobre os Alanos, os Alanos sobre os Godos, os
Gados sobre os Taifalas e os Sármatas; os Gados, expulsos da sua
pátria, expulsaram-nos a nós para o Ilírico. E ainda não acabou.
Quanto a Jordanes, acentua que, se os Godos pegaram em armas
contra os Romanos em 378, foi porque tinham sido confinados num
território exíguo e sem recursos, onde os Romanos lhes vendiam a
peso de ouro carne de cão e de animais repugnantes exigindo-lhes os
filhos como escravos em troca de uma escassez alimento. Foi à fome
que os armou contra os Romanos. De fato, há duas atitudes romanas
tradicionais perante os Bárbaros. A princípio, conforme as
circunstâncias e os homens dispunham-se a acolher os povos que se
lhes apinhavam à porta e, mediante o estatuto de federados,
respeitavam-lhes as leis os costumes e a originalidade; desse modo
lhes moderavam a agressividade e faziam deles, em seu proveito,
soldados e camponeses - minorando a crise de mão-de-obra militar e
rural.
Os imperadores que praticaram esta política não ficaram com boa
reputação junto dos tradicionalistas, para quem os Bárbaros eram
mais bestas que seres humanos - e esta segunda atitude foi mais
freqüente.
Constantino - diz o historiador grego Zózimo - abriu a porta aos
Bárbaros foi ele a causa da ruína do Império.
Amiano Marcelino denuncia a cegueira de Valens, que em 376
organizou a travessia do Danúbio pelos Godos. Foram enviados
muitos agentes com o encargo de arranjar meios de transporte para
aquele povo selvagem. Tomou-se todos os cuidados para que nenhum
dos futuros destruidores do Império Romano, mesmo que sofresse de
doença mortal, não ficasse na outra margem . E tanto zelo, tanto
barulho, para acabar na ruína do mundo romano E o mesmo quanto a
Teodósio, grande amigo dos Godos, amator generis Gothorum
segundo Jordanes.
De entre esses Bárbaros, alguns ganharam especial fama de fieldade
e brutalidade. Eis os Hunos na descrição célebre de Amiano
Marcelino: A sua ferocidade ultrapassa tudo sulcam de profundas
cicatrizes, com um ferro, as faces dos recém-nascidos para lhes
destruir as raízes dos pêlos; e desse modo crescem e envelhecem
imberbes e sem graça, como eunucos. Têm o corpo atarracado, os
membros robustos e a nuca grossa; a largura das costas grandes
assustadores. Dir-se-ia que são animais de duas patas ou então
daquelas figuras mal desbastadas, em forma de troncos de árvores,
que ornamentam os parapeitos das pontes. Os Hunos não cozinham
nem temperam aquilo que comem; alimentam-se de raízes selvagens
ou de carne crua do primeiro animal que apanham e que aquecem
por algum tempo na garupa do cavalo, entre as coxas. Não têm
abrigos. Não usam casas nem túmulos. Cobrem-se com um tecido
grosseiro ou com peles de ratos do campo, cozidas umas às outras;
não têm uma roupa para estar em casa e outra para sair; desde que
enfiam aquelas túnicas de cor desbotada, só as tiram quando elas
estão a cair aos bocados. Não põem pé em terra nem para comer
nem para dormir e dormem deitados sobre o magro pescoço da
montada, onde sonham à sua vontade.
E os Lombardos, no século VI, conseguirão - depois de tantas
atrocidades que cometeram - fazer-se notar pela ferocidade:
selvagens de uma selvajaria pior que a habitual selvajaria germânica.
Claro que os autores destes textos são, principalmente, pagãos,
animados, como herdeiros da cultura greco-romana, de ódio ao
Bárbaro, que, destruindo-a ou aviltando-a, aniquila por fora e por
dentro essa civilização. Mas muitos cristãos, para quem o Império
Romano é o berço providencial do cristianismo, sentem pelos
invasores a mesma repulsa.
Santo Ambrósio vê nos Bárbaros inimigos destituídos de humanidade
e exorta os cristãos a defender com as armas “a pátria contra a
invasão bárbara”. O bispo Synesius de Cirene chama Citas - sinônimo
de barbárie - a todos os invasores e aplica-lhes o verso da Ilíada em
que Homero aconselha a “expulsar esses cães malditos trazidos pelo
Destino”.
Mas em outros textos o sino toca de outro modo. Santo Agostinho,
embora deplorando as infelicidades dos Romanos, recusa-se a ver na
tomada de Roma por Alarico, em 410, mais que um facto corrente,
doloroso como tantos outros que a história romana conheceu; e
acentua que, ao contrário da maioria dos generais romanos
vitoriosos, que se distinguiram pelo saque das cidades que
conquistavam e pelo extermínio dos seus habitantes, Alarico acedeu
a considerar as igrejas cristãs como locais de asilo e respeitou-as.
Tudo o que de devastações, morticínios, pilhagens, incêndios e maus
tratos se cometeu neste recente desastre de Roma foi obra dos
costumes da guerra. Mas aquilo que sucedeu de maneira nova, essa
selvajaria bárbara que, por prodigiosa mudança da face das coisas,
se mostrou tão suave a ponto de escolher e indicar, para as encher
de povo, as mais vastas basílicas, nas quais ninguém seria tocado,
das quais ninguém seria retirado, às quais muitos foram levados por
inimigos compadecidos para que fossem libertados e das quais
ninguém seria levado em cativeiro nem por cruéis inimigos: isso foi
em nome de Cristo, é aos tempos cristãos que deve ser atribuído.
Mas o texto mais extraordinário vem de um simples monge, que não
tem as mesmas razões que os bispos aristocráticos para poupar a
ordem social romana. Cerca de 440, Salviano, que se intitula padre
de Marselha e é monge na ilha de Lérins, escreve um tratado, Do
Governo de Deus, que é uma apologia da Providência e uma tentativa
de explicação das grandes invasões.
A causa da catástrofe é interna. São os pecados dos Romanos
incluindo os cristãos - que destroem o Império, entregue pelos seus
vícios aos Bárbaros. Os Romanos eram contra si próprios, inimigos
ainda piores que os inimigos do exterior, pois, embora os Bárbaros já
os tivessem quebrado, eles ainda se destruíam mais por si próprios.
De resto, que havia a reprovar a esses Bárbaros? Ignoravam a religião
e, se pecavam, era inconscientemente. A sua moral e sua cultura
eram outras. Porque condenar aquilo que era diferente?
O povo saxônico é cruel, os Francos são pérfidos, os Gépidas são
desumanos e os Hunos são impudicos. Mas os seus vícios serão tão
culposos como os nossos? A impudicícia dos Hunos será tão criminosa
como a nossa? A perfídia dos Francos será tão digna de censura como
a nossa? Um alamano embriagado será tão digno de repreensão como
um cristão embriagado? Um alano rapaz será tão condenável como
um cristão rapaz? A impostura do huno ou do gépida será de admirar
quando eles não sabem que a impostura é um pecado? O perjúrio de
um franco será algo de inaudito quando ele pensa que o perjúrio é
uma vulgar maneira de falar e não um crime? Acima de tudo - além
das suas opções pessoais, que podem ser discutidas - Salviano dá-nos
as razões profundas do êxito dos Bárbaros. Sem dúvida que houve
superioridade militar. A superioridade da cavalaria bárbara dá à
superioridade do armamento todo o seu valor. A arma das invasões é
a espada comprida, cortante e ponte aguda, uma arma de corte cuja
terrível eficácia é a fonte real dos exageros literários da Idade
Média: capacetes abertos, cabeças e corpos fendidos a meio,
incluindo por vezes o cavalo. Amiano Marcelino anota com horror um
feito de armas deste gênero e desconhecido dos Romanos. Mas
haviam bárbaros nos exércitos romanos; e, passada a surpresa dos
primeiros embates, uma superioridade militar depressa é assimilada
e compartilhada pelo adversário.
A verdade é que os Bárbaros beneficiaram da cumplicidade ativa ou
passiva da massa da população romana. A estrutura social do Império
Romano, em que as camadas populares eram cada vez mais
esmagadas por uma minoria de ricos e poderosos, explica o êxito das
invasões bárbaras. Ouçamos Salviano: Os pobres estão despojados, as
viúvas gemem e os órfãos são pisados a pés, a tal ponto que muitos,
incluindo gente de bom nascimento e que recebeu educação
superior, se refugiam junto dos inimigos. Para não perecer à
perseguição pública, vão procurar entre os Bárbaros a humanidade
dos Romanos, pois não podem suportar mais, entre os Romanos, a
desumanidade dos Bárbaros. São diferentes dos povos onde buscam
refúgio; nada têm das suas maneiras, nada têm da sua língua e, seja-
me permitido dizer, também nada têm do odor fétido dos corpos e
das vestes dos Bárbaros; mas preferem sujeitar-se a essa
dissemelhança de costumes a sofrer, entre Romanos, a injustiça e a
crueldade. Assim, emigram para os Godos ou para os Bagaldos, ou
para os outros bárbaros que em toda a parte dominam, e não têm de
que arrepender-se com o auxílio. Pois gostam mais de viver livres sob
a aparência da escravidão que de serem escravos sob a aparência da
liberdade. O nome do cidadão romano, que outrora não só era muito
apreciado, mas comprado por alto preço, é hoje em dia repudiado e
evitado, já não, é apenas considerado pouco valioso mas mesmo
abominável. Daí que mesmo aqueles que não fogem para os Bárbaros
se vejam também forçados a fazerem-se bárbaros, como sucede à
maioria dos espanhóis e a uma notável parte dos gauleses e a todos
os que, em toda a extensão do mundo romano, a iniqüidade romana
obriga a já não ser romanos. Falamos agora dos Bagaldos, que,
desapossados por juízes mals e sanguinários, feridos, mortos e tendo
perdido o direito da liberdade romana, perderam também a honra do
nome romano. E chamamos-lhes rebeldes e homens perdidos quando
fomos nós que os obrigamos a serem criminosos.
Tudo fica dito nestas frases: a conivência entre o bárbaro e o
revoltado, o godo e o bagaldo, e a evolução das massas populares
romanas antes da chegada dos Bárbaros. O erudito que disse que a
civilização romana não morreu de morte natural mas que foi
assassinada disse três contra verdades, pois a civilização romana, na
realidade, suicidou-se e este suicídio nada teve de natural nem de
belo; e não está morta, pois as civilizações não são mortais. A
civilização romana sobreviveu, mediante os Bárbaros, ao longo de
toda a Idade Média e para além dela.
A bem dizer, a instalação de muito bárbaro em solo romano fez-se a
contento de todos. Cloro, panegirista de Constança, declarava no
princípio do século IV: «O chamava trabalha para nós; ele, que
durante tanto tempo nos arruinou com as suas pilhagens, trata agora
de nos enriquecer ei-lo vestido de camponês, ei-lo que se mata a
trabalhar, que freqüenta os nossos mercados ei-lo leva a vender os
seus animais. Grandes espaços ocultos dos territórios de Amiens, de
Beauvais, de Troyes, de Langres verdejam agora por obra dos
Bárbaros. E o tom é o mesmo noutro gaulês, o retórico Pacatus, que
em 389 foi a Roma fazer o pânico de Teodósio. Felicitou o imperador
por ter feito dos Godos Inimigos de Roma, camponeses e soldados ao
seu serviço.
No meio das provações, há espíritos clarividentes que percebem a
solução do futuro: a fusão entre Bárbaros e Romanos. O retórico
Themistius predizia, no fim do século IV de momento as feridas que
os Godos nos fizeram ainda estão frescas; mas bem depressa teremos
neles ,companheiros de mesa e de combate, participantes das
funções públicas.
Afirmações demasiado otimista, pois, se, a longo prazo, a realidade
se assemelhou ao quadro um tanto ou quanto de Themistius, foi com
a notável diferença de que foram os Bárbaros, vencedores, quem
admitiu a seu lado os Romanos vencidos.
Mas a aculturação dos dois grupos foi desde o início facilitado por
determinadas circunstâncias.
Os Bárbaros que se instalaram no século V no Império Romano não
eram aqueles povos jovens mas selvagens, ainda há pouco saídos das
florestas ou das estepes, que foram descontos pelos seus detratores
da época ou pelos admiradores modernos destes. Embora não
fossem, como Fustel de Coulanges exageradamente pretendeu restos
de uma raça enfraquecida, despedaçada pelas suas lutas internas,
enervada por uma série de evoluções sociais e que perdeu as suas
instituições, tinham já evoluído bastante durante as deslocações, em
vários casos seculares, que por fim os lançaram sobre o mundo
romano. Tinham visto muito, tinham aprendido muito e não tinham
deixado de o fixar. Os caminhos percorridos tinham-nos levado a
constatar com culturas e civilizações em que recolheram costumes,
artes e técnicas. A maior parte deles tinha sofrido, direta ou
indiretamente, a influência das culturas asiáticas, do mundo iraniano
e do próprio mundo greco-romano especialmente da região oriental
deste, que, enquanto se ia fazendo bizantina, continuava a ser a
mais rica e mais esplendorosa.
Traziam consigo técnicas metalúrgicas muito evoluídas, as
incrustações, as técnicas da ourivesaria, a arte do couro e a admi-
rável arte das estepes, com os seus motivos animalescos estilizados.
Tinham sido em muitos casos, seduzidos pela cultura de impérios
vizinhos e criara-se neles uma admiração pelo seu saber e pelo seu
luxo, sem dúvida desajeitada e superficial mas não isenta de
respeito.
Os Hunos de Átila não eram, de maneira alguma, os selvagens
descritos por Amiano Marcelino. Se bem que seja lendária a imagem
de uma corte de Átila aberta aos filósofos, é notável que em 448 um
médico gaulês de nomeada, Eudóxio, comprometido por ligações com
os Bagaldos, se tenha refugiado junto dos Hunos. Nesse mesmo ano,
um embaixador romano de Constantinopla junto de Átila, Prisco,
encontra um romano da Mésia, ex-prisioneiro que se deixou ficar com
os novos senhores, casado com uma mulher bárbara, que lhe gabou a
organização social dos Hunos em comparação com a do mundo
romano.
Jordanes, que, na verdade, é parcial e escreve no século VI, diz dos
Godos o seguinte esta nação teve um rei, Zalmóxis, que foi filósofo e
cuja ciência prodigiosa é atestada pela maioria dos cronistas; já
antes tinha tido homens de grande sabedoria:
Zeutas, e depois dele Dicineu. Os Godos não tiveram, portanto, falta
de professores para aprender filosofia e sempre foram mais
ilustrados que a maior parte dos Bárbaros; quase igualaram os
Gregos, como no caso de Dion, que escreveu em língua grega a
história dos Godos.
Outro fato de capital importância transformara a face dos invasores
bárbaros. Embora uma parte deles se tivesse mantido pagã, outra, e
não pequena, cristianizara-se. Mas, por um curioso acaso que viria a
mostrar-se carregado de conseqüências, esses Bárbaros convertidos -
Ostrogodos, Visigodos, Burgúndios, Vândalos e, mais tarde,
Lombardos - tinham sido convertidos ao arianismo, que, depois do
concílio de Niceia, era uma heresia. De facto, tinham sido
cristianizados pelo apóstolo dos godos, Ulfila, neto de capadócios
cristãos aprisionados pelos Godos em 264. A criança, “gotizada”,
fora enviada, ainda jovem, para Constantinopla, onde fora ganha
para o arianismo. Voltando para os Godos como bispo missionário,
traduziu a Bíblia para o gótico a fim de edificá-los e assim os fez
heréticos. De modo que aquilo que poderia ter sido um laço religioso
foi, pelo contrário, um tema de discórdia e gerou ásperas lutas entre
os Bárbaros, arianos, e os Romanos, católicos.
Havia ainda a atração exercida pela civilização romana sobre os
Bárbaros. Os chefes bárbaros não só chamaram romanos para seus
conselheiros como muitas vezes procuraram macaquear os costumes
romanos e ornar-se com títulos romanos: cônsules, patrícios, etc.
Não se apresentavam como inimigos das instituições romanas mas
como seus admiradores. Quando muito, podiam ser tomados por
usurpadores eram, simplesmente, a última geração daqueles
estrangeiros, Espanhóis, Gauleses, Africanos, Ilírios e Orientais, que
aos poucos tinham chegado às mais altas magistraturas e ao Império.
Melhor ainda: nenhum soberano bárbaro ousou fazer-se imperador
por si. Quando, em 476, Odoacro depôs o imperador do Ocidente
Rômulo Augústulo, enviou as insígnias imperiais ao imperador Zenão
de Constantinopla dizendo-lhe que um só imperador bastava.
Admiramos mais os títulos conferidos pelos imperadores que os
nossos, escreve um rei bárbaro a um imperador. O mais poderoso de
todos, Teodorico, tomou o nome romano de Flavius e escreveu ao
imperador: ego qui sum servus vester et filius, (eu, que sou vosso
escravo e vosso filho), declarando-lhe que a sua única ambição era
fazer, do seu reino uma imitação do vosso, uma copia do vosso filho
apenas sem rival). Foi preciso esperar pelo ano 800 e por Carlos
Magno para que um chefe bárbaro ousasse fazer-se imperador.
Deste modo, cada um dos dois campos parecia ter caminhado ao
encontro do outro. Os Romanos, decadentes, barbarizados por
dentro, rebaixavam-se ao nível dos Bárbaros, ainda mal talhados, só
polidos por fora.
Mas ver nas invasões bárbaras um episódio de instalação pacífica e,
como já foi dito jocosamente, um fenômeno de “deslocações
turística”, estaria longe da realidade.
Aqueles tempos foram, sem dúvida, e antes do mais, tempos de
confusão. Confusão devida, em primeiro lugar, à própria mistura dos
invasores. No caminho, as tribos e os povos tinham-se combatido,
tinham-se subjugado uns aos outros, tinham-se misturado. Alguns
deles formaram confederações efêmeras, como os Hunos, que
englobaram no seu exército os restos de Ostrogodos, Alanos e
Sármatas vencidos. Roma tentou romanizar a pressa os primeiros
recém-chegados para deles fazer seu instrumento contra os
seguintes, ainda mais bárbaros. O vândalo Stilicon, tutor do
imperador Honório, utilizou contra o usurpador Eugénio e o seu
aliado franco Arbogast um exército de Godos, Alanos e Caucasianos.
Acontecimentos menores, mas significativos numa frente essencial -
a frente do Danúbio médio, de Passau a Klosterneuburg -, enchem
essa história exemplar que é a Vida de S. Severino, da segunda
metade do século V, tal como foi contada pelo seu discípulo
Eugippius. Severino, vindo do Oriente mas latino, tenta organizar em
redor dos restos das populações romanas do Nórico ribeirinho, com o
auxílio da tribo germânica dos Rúgios e dos seus «reis», a resistência
à pressão de outros invasores prestes a forçar a travessia do rio -
Alamanos, Gados, Hérulos, Turíngios. O monge-eremita percorre as
praças fortificadas onde se refugiou a população romano-rúgia,
lutando contra a heresia, o paganismo e a fome, e opõe às investidas
dos Bárbaros, na falta de armas materiais, as armas espirituais.
Previne os habitantes contra as ações imprudentes: sair dos
acampamentos para apanhar frutos ou para as colheitas é expor-se a
ser morto ou feito prisioneiro pelo inimigo. Intimida ou faz vergar os
Bárbaros com a palavra, os milagres, o poder das relíquias dos
santos. Mas não tem ilusões. Quando algum otimista ou inconsciente
lhe pede que obtenha do chefe rúgio o direito de fazer comércio,
responde: para quê pensar em mercadorias em lugares onde não
poderão vir mercadores? Eugippius descreve maravilhosamente a
confusão dos acontecimentos ao dizer que a fronteira do Danúbio
está permanentemente perturbada e em situações ambíguas:
utraque Pannonia ceteraque confinia Danuvii rebus turbabantur
ambiguis. Toda a organização militar, administrativa e econômica se
esboroava. A fome instalava-se. As mentalidades e as sensibilidades
estavam cada vez mais embotadas e supersticiosas. E, pouco a
pouco, o inelutável ia chegando. As praças caíram umas a seguir às
outras em mãos de bárbaros e, por fim, depois da morte do homem
de Deus, que fora chefe para todos os fins daqueles grupos de gente
desamparada, Odoacro resolveu deportar para Itália os que ainda
subsistiam. Os deportados levaram consigo os restos mortais de
Severino e colocaram a relíquia num mosteiro próximo de Nápoles.
Assim foi e assim seria durante dezenas de anos o desenlace
freqüente das res ambiguce das invasões.
A confusão aumentava com o terror. E, mesmo que descontemos os
exageros, as narrativas de morticínios e de devastações que enchem
toda a literatura do século V não nos deixam dúvidas acerca das
atrocidades e destruições que acompanharam os “passeios” dos
povos bárbaros.
Eis, segundo Oriênsio, bispo de Auch, a Gália depois da grande
invasão de 417: Vê com que rapidez a morte pesou sobre todo o
mundo, como a violência da guerra atingiu tantos povos. Nem o chão
acidentado dos bosques espessos ou das altas montanhas, nem a
corrente das ribeiras de rápidos remoinhos, nem o abrigo das
cidadelas e dos muros das cidades, nem a barreira do mar, nem as
tristes solidões do deserto, nem os desfiladeiros, nem as cavernas
encimadas de sombrios rochedos puderam escapar às mãos dos
Bárbaros. Muita gente pereceu vitimada pela má fé, pelo perjúrio,
pela denúncia dos seus concidadãos. As emboscadas fizeram muito
mal, mas também fez muito mal a violência popular. Quem não foi
dominado pela força foi dominado pela fome. A mãe sucumbiu
tristemente com os filhos e seu esposo, o senhor, caiu em servidão
com os seus escravos. Alguns foram pasto dos cães; a muitos, as
casas incendiadas lhes tiraram a vida e lhes serviram depois de pira
mortuária. Nos burgos, nas propriedades, nos campos, nas
encruzilhadas, em todos os sítios, aqui e além ao longo dos
caminhos, se vê morte, sofrimento, destruição, fogo e luto. Uma
enorme fogueira desfez em fumo toda a Gália.
E a Espanha segundo, o bispo Idácio:
Os Bárbaros espalham-se pelas Espanhas; o flagelo da epidemia é
também violento, a tirania dos exatores pilha recursos e fortunas
escondidas nas cidades e a soldadesca esgota o resto. Reina tão atroz
penúria que, sob o império da fome, os homens comeram carne
humana; houve mães que degolaram os filhos para os cozinhar e com
eles se saciar. Os animais, habituados aos cadáveres dos que tinham
morrido de fome, das vítimas do ferro e dos que sucumbiram à
doença, já matam homens em plena saúde; não contentes de
alimentar-se com a carne dos cadáveres, atacam a espécie humana.
Assim, os quatro flagelos do ferro, da fome, das epidemias e dos
animais devastam tudo em todo o mundo e as predições do Senhor
através dos seus profetas realizaram-se.
Eis a macabra abertura com que começa a história do Ocidente
medieval. Continuará a dar o tom durante dez longos séculos. O
ferro, a fome, as doenças, as feras serão os sinistros protagonistas
desta história. Claro que não foram só os Bárbaros que os trouxeram
consigo. O mundo antigo tinha já tomado conhecimento deles; e, no
momento em que os Bárbaros os desencadearam, tendiam já a voltar
em força. Mas os Bárbaros deram uma violência inaudita a este
vendaval de violência. O gládio, a espada comprida das grandes
invasões, que depois será a arma dos cavaleiros, estende doravante a
sua sombra mortífera sobre o Ocidente. Antes que lentamente se
reate o trabalho construtivo, um frenesi de destruição se apodera
durante muito tempo do Ocidente. Os homens do Ocidente medieval
são bem os filhos desses Bárbaros, semelhantes aos Alanos descritos
por Amiano Marcelino: “O prazer que os espíritos amáveis e pacíficos
encontram no lazer estudioso encontram-no eles nos perigos e na
guerra. A seus olhos, a suprema felicidade é perder a vida no campo
de batalha; morrer de velho ou de acidente é um opróbrio e uma
cobardia que eles cobrem de horríveis injúrias; matar um homem é
um heroísmo para o qual não têm elogios que cheguem. O troféu
mais glorioso é a cabeleira de um inimigo escalpado; serve de
enfeite aos cavalos de guerra. Entre eles não se vê templo nem
santuário, nem sequer um nicho coberto de colmo. Uma espada nua,
espetada na terra segundo o ritual bárbaro, é o emblema de Marte;
honram-no devotadamente como soberana das regiões que
percorrem.
Paixão de destruição que o cronista Fredegário expõe e no século VII
pela boca da mãe de um rei bárbaro ao exortar o filho: “Se queres
realizar uma· façanha e ganhar nome, destrói tudo o que os outros
tiverem construído e mata todo o povo que venceres; pois não és
capaz de construir um edifício superior ao que os teus antecessores
fizeram e não há mais bela façanha com que possas erguer o teu
nome.”
Ora ao ritmo de lentas infiltrações e de avançadas mais ou menos
pacíficas ora ao ritmo de bruscas arremetidas acompanhadas de lutas
e morticínios, a invasão dos Bárbaros modificou profundamente entre
o início do século V e o fim do século VII, o mapa político do
Ocidente, que estava sob a autoridade nominal do imperador
bizantino.
De 407 a 429, uma sucessão de investidas devastou a Itália, a Gália,
a Espanha. O episódio mais espetacular foi o cerco, conquista e
pilhagem de Roma por Alanco e os Visigodos no ano de 410. Muitos
ficaram estupefato com a queda da Cidade Eterna. “A voz fica-me na
garganta e os soluços interrompem-me ao ditar estas palavras - geme
S. Jerónimo na Palestina. - Foi conquistada a cidade que conquistou
o universo.” Os pagãos acusam os cristãos de terem sido causa do
desastre ao expulsar de Roma os deuses tutelares. Santo Agostinho
encontra no acontecimento pretexto para na Cidade de Deus definir
as relações entre a sociedade terrestre e a sociedade divina.
Desculpa os cristãos e reduz o caso às suas proporções: um fato
vulgar, trágico, que se repetirá - dessa vez sem efusão de sangue,
sine ferro et igne em 455 com Genserico e os seus vândalos.
Vândalos, Alanos, Suevos devastam a Península Ibérica.
A instalação dos Vândalos no Sul de Espanha, embora breve, batiza a
Andaluzia. Em 429, os Vândalos - os únicos bárbaros que possuíam
frota - passaram à África do Norte e conquistaram a província
romana de África, ou seja, as atuais Tunísia e Argélia oriental.
Depois da morte de Alarico, os Visigodos refluíram de Itália para a
Gália em 412 e depois, em 414, para a Espanha, de onde em 418
retiraram para se instalar na Aquitânia. De resto, a diplomacia
romana atuou em cada uma destas fases·. Foi o imperador Honório
quem desviou para a Gália o rei visigodo Ataulfo, e este casou em
Narbonne, a 1 de Janeiro de 414, com uma irmã do imperador, Galla
Placidia. Foi ainda ele que, depois do assassínio de Ataulfo, em 415,
incitou os Visigodos a ir disputar a Espanha aos Vândalos e aos Suevos
e depois os chamou novamente para a Aquitânia.
A segunda metade do século V assistiu a mudanças decisivas. A
norte, bárbaros escandinavos - Anglos, Jutas e Saxões-, depois de
uma série de investidas na Bretanha (a Grã-Bretanha), acabaram por
ocupá-la entre 441 e 443. Uma parte dos Bretões vencidos atravessou
o canal e instalou-se na Armórica, que passou a chamar-se Bretanha.
Entretanto, porém, o acontecimento mais importante, apesar de
efêmero, foi a formação do Império Huno de Átíla. De fato, fez
tremer tudo. Em primeiro lugar, como oito séculos mais tarde faria
também Gengis-Khan, Átila unificou, por volta de 434, às tribos
mongóis que tinham passado ao Ocidente e bateu e absorveu outros
bárbaros; durante algum tempo manteve com Bizâncio relações
ambíguas, roçando-se pela sua civilização mas espreitando-a, ao
mesmo tempo, como a uma presa - tal como Gengis-Khan faria
depois com a China - para finalmente se deixar persuadir, depois de
uma tentativa nos Bálcãs em 448, a precipitar-se sobre a Gália, onde
o romano Etius, graças principalmente aos contingentes visigóticos
de que dispunha, o deteve em 451 nos campos cataláunicos. O
Império Huno desfez-se e as hordas arrepiaram caminho para leste
quando, em 453, morreu aquele que ficaria na história, nas palavras
de um obscuro cronista do século IX, como o “flagelo de Deus”.
Tempos confusos, com estranhas figuras e estranhas situações. Uma
irmã do imperador Valentiniano II, Honória, toma por amante o seu
intendente. O augusto irmão irrita-se e castiga-a exilando-a para
Constantinopla. A princesa, já por temperamento já por despeito,
faz chegar um anel às mãos de Átila, que fascina as mulheres.
Valentiniano apressa-se a casar a irmã antes que o huno exija a noiva
e, com ela, em dote, metade do Império.
Átila, ao voltar da Gália, precipitou-se em 452 sobre o Norte de
Itália, tomou Aquileia e levou parte da população sob cativeiro. Seis
anos depois, os prisioneiros, que todos julgavam mortos, voltaram.
Muitos deles encontraram as mulheres novamente casadas. O bispo,
embaraçado, consultou o papa, Leão o Grande, e este pronunciou a
sentença: os repatriados tinham direito às mulheres, aos escravos,
aos bens. Mas as mulheres casadas segunda vez não seriam
castigadas a não ser que recusassem os antigos maridos: neste caso,
seriam excomungadas.
Entretanto, o imperador instalou no Império um novo povo: os
Burgúndios, que por algum tempo tinham estado em Worms, de onde
tinham tentado invadir a Gália, mas que tinham sofrido sangrenta
derrota às mãos de Jétius e dos seus mercenários hunos. O episódio
de 436, em que o seu rei Gunther encontrou a morte, será o ponto
de partida da epopéia dos Niebelungen. Em 443, os Romanos
concederam-lhes a ocupação da Sabóia.
Em 468, os Visigodos de Eurico lançam-se de novo à conquista da
Espanha, que concluem em dois anos.
Surgem então Clóvis e Teodorico.
Clóvis é o chefe da tribo franca dos Sábios, que, durante o século V,
se deslocou primeiro à Bélgica e depois para o Norte da Gália. Junta
em sua volta a maior parte das tribos francas, submete a Gália do
Norte vencendo o romano Siágrio em 486 em Soissons, que passa a
ser a sua capital, repele na batalha de Tolbiac uma invasão dos
Alamanos e conquista finalmente em 507 a Aquitânia aos Visigodos,
cujo rei, Alarico II, é vencido e morto em Vouillé. Quando Clóvis
morre, em 511, os Francos são senhores da Gália com excepção da
Provença.
Os Ostrogodos tinham finalmente caído sobre o Império.
Conduzidos por Teodorico, atacaram Constantinopla em 487, foram
desviados para Itália e conquistaram-na em 493. Teodorico, instalado
em Ravena, ali reinou durante trinta anos e, se os panegiristas não
exageraram muito, deu a conhecer à Itália, que governou com
conselheiros romanos - Libério, Cassiodoro, Símaco e Boécio -, uma
nova idade de ouro. Ele próprio, que tinha vivido como refém na
corte de Constantinopla dos oito aos dezoito anos, era o mais
completo e o mais fascinante de todos os bárbaros romanizados.
Restaurador da pax romana na Itália, só em 507 interveio contra
Clóvis, a quem proibiu que juntasse a Provença à Aquitânia tomada
aos Visigodos. Não tinha interesse em ver os Francos chegar ao
Mediterrâneo.
No início do século VI, a partilha do Ocidente parece estar garantida
entre os Anglo-Saxões, numa Grã-Bretanha completamente isolada
do continente, os Francos, que têm a Gália, os Burgúndios, limitados
à Sabóia, os Visigodos, senhores da Espanha, os Vândalos, instalados
em África, e os Ostrogodos, que dominam a Itália.
Em 476, um fato menor passa quase despercebido. Um romano da
Panónia, Orestes, que fora secretário de Átila, reúne a seguir à
morte do seu senhor, alguns restos do exército: Escires, Hérulos,
Turcilingos e Rúgios, e põe-nos ao serviço do Império em Itália.
Senhor da milícia, aproveita-se deste fato para depor o imperador
Júlio Nepos e fazer proclamar em 475 o seu jovem filho Rómulo. Mas,
no ano seguinte, o filho de outro favorito de Átila, o esciro Odoacro,
levanta-se contra Orestes à frente de outro grupo de bárbaros, mata-
o, depõe o jovem Rómulo e envia as insígnias do imperador do
Ocidente ao imperador Zenão de Constantinopla. Este acontecimento
parece não ter afetado muito os contemporâneos. Cinqüenta anos
depois, um ilírio ao serviço do imperador de Bizâncio, o. conde
Marcelino, escrevia na sua crónica: “Odoacro, rei dos Godos, obteve
Roma. O Império Romano do Ocidente, que Octávio Augusto, o
primeiro Imperador, começara a reger no ano 709 de Roma, acabou
com o pequeno imperador Rômulo.”
O século V viu o desaparecimento das últimas grandes personagens
que estavam ao serviço do Império do Ocidente: Jétius, o “último
romano”, assassinado em 454; Siágrio, entregue pelos Visigodos a
Clóvis, que o mandou decapitar em 486; e os bárbaros Estilicão,
patrício e tutor vândalo do imperador Honório, executado por ordem
do pupilo em 408, Rimicer, suevo que tinha também o título de
patrícia e que foi senhor do Império do Ocidente até morrer em 472,
e Odoacro, atraído por Teodorico a uma cilada e morto pelo próprio
ostrogodo em 493.
Até então, a política dos imperadores do Oriente procurara limitar os
estragos: impedir que os bárbaros tomassem Constantinopla
comprando a peso de ouro o seu recuo, desviá-los para a parte
ocidental do Império, contentar-se com uma vaga submissão dos reis
bárbaros, a quem eram prodigamente concedidos títulos de patrício
ou de cônsul, tentar afastar do Mediterrâneo os invasores.
Paz romana, a tranqüilidade que Roma impunha no seu Império pela
força.
amare nostrum não era apenas o centro do mundo romano: era a
artéria essencial do seu comércio e dos seus abastecimentos. Em
419, uma lei promulgada em Constantinopla punia com a morte
quem ensinasse aos Bárbaros as coisas do mar. Teodorico, como já
vimos, retomou essa tradição e impediu Clóvis de chegar ao
Mediterrâneo por meio da tomada da Provença. Mas os Vândalos
tinham ultrapassado essas pretensões ao construir a frota que lhes
permitiu conquistar a África e devastar Roma em 455.
A política bizantina modificou-se com o advento de Justiniano em
527, um ano depois da morte de Teodorico em Ravena. A política
imperial abandonou a passividade e passou à ofensiva. Justiniano
queria reconquistar, senão a parte ocidental do Império Romano por
completo, pelo menos o essencial do seu domínio mediterrânico.
Pareceu conseguir esse intento. Os generais bizantinos liquidaram o
reino: vândalo em África (533-534); depois, com maior dificuldade,
puderam pôr fim à dominação gótica em Itália (entre 536 e 555); em
554 arrancaram a Bética aos Visigodos de Espanha. Efémeros êxitos
que enfraqueceram ainda mais um pouco Bizâncio perante os perigos
orientais e esgotaram ainda mais o Ocidente, tanto mais que, a
partir de 543, a peste negra viera juntar os seus danos aos da guerra
e da fome. A maior parte de Itália, com exceção do exarado de
Ravena, de Roma e dos seu arredores, bem como do extremo sul da
península, foi perdida entre 568 e 572 a favor de novos invasores, os
Lombardos, empurrados para sul por nova invasão asiática - a dos Á
varas. Os Visigodos reconquistaram a Bética no fim do século VI. E a
África do Norte foi conquistada pelos Árabes depois de 660.
O grande acontecimento do século VII - até para o Ocidente - foi à
aparição do Islão, com a subseqüente conquista árabe. Veremos mais
adiante qual o alcance que para a cristandade teve a formação do
mundo muçulmano. De momento, examinaremos apenas o impacto
exercido pelo Islão no mapa político do Ocidente.
A conquista árabe começou por arrancar o Maghreb à Cristandade
ocidental; depois submergiu a Espanha, facilmente conquistada aos
Visigodos entre 711 e 719, exceptuando-se o Noroeste da península,
onde os cristãos se mantiveram independentes. Dominou por algum
tempo a Aquitânia e, principalmente, a Provença, até que Carlos
Martel a deteve em 732 em Poitiers e os Francos a repeliram para sul
dos Pireneus, atrás dos quais teve de limitar-se ao perder Narbonne
em 759.
De fato, o século VIII foi o século dos Francos. A ascensão dos
Francos no Ocidente, apesar de alguns desaires - por exemplo,
perante Teodorico -, foi, depois de Clóvis, bastante regular. A
grande esperteza de Clóvis esteve na conversão, dele e de todo o seu
povo, não ao arianismo, como no caso dos outros reis bárbaros, mas
ao catolicismo. Pôde com isso jogar a cartada religiosa e beneficiar
de apoio, senão do papado - que era ainda fraco-, pelo menos da
poderosa hierarquia católica e do não menos poderoso monarquismo.
Logo no século VI, os Francos conquistaram, entre 523 e 534, o reino
dos Burgúndios e, em 536, a Provença.
As partilhas e rivalidades entre os descendentes de Clóvis atrasaram
o desenvolvimento dos Francos, que no início do século VIII pareceu
mesmo comprometido pela decadência da dinastia merovíngia - que
passou à lenda na imagem dos «reis preguiçosos» - e do clero franco.
Nessa altura, os Francos já não eram os únicos ortodoxos da
Cristandade ocidental. Os Visigodos e os Lombardos tinham
abandonado o arianismo pelo catolicismo; o papa Gregório Magno
(590-604) iniciou a conversão dos Anglo-Saxões, que confiou ao
monge Agostinho e seus companheiros; e, graças a Willibrod e
Bonifácio, a primeira metade do século VIII viu o cristianismo
penetrar na Frisia e na Germânia.
Mas, ao mesmo tempo, os Francos estavam já a aproveitar
novamente de todas as suas possibilidades. O clero reformava-se sob
a direção de Bonifácio e a jovem e empreendedora dinastia dos
carolíngios substituía a desvitalizada dinastia merovíngia.
Os mordomos do palácio carolíngios dominavam, sem dúvida, as
rédeas reais do poder havia decénios; mas Pepino o Breve, filho de
Carlos Martel, deu um passo em frente ao conferir todo o alcance
possível à chefia católica dos Francos. Concluiu com o papa uma
aliança favorável a ambas as partes. Apoiado numa falsificação
forjada entre 756 e 760 pela chancelaria pontifical - a pretensa
Doação de Constantino -, nasceu o Estado pontifical, ou Patrimônio
de S. Pedro, fundando o poder temporal do papado, que viria a
desempenhar tão importante papel na história política e moral do
Ocidente medieval. Em contrapartida, o papa reconhecia a Pepino o
título de rei (751) e sagrava-o (754) no próprio ano em que surgia o
Estado pontifical. Estavam lançadas as bases que, em meio século,
iriam permitir à monarquia carolíngia reunir sob o seu domínio a
maior parte do Ocidente cristão e, a seguir, restaurar em seu
proveito o império do Ocidente.
Mas, durante os quatro séculos que mediaram entre a morte de
Teodósio (395) e a coroação de Carlos Magno (800), nascera no
Ocidente um mundo novo, lentamente surgido da fusão do mundo
romano com o mundo bárbaro. Tomara corpo a Idade Média
ocidental.
LEGOFF, J. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Estampa,
1983.
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COMENTÁRIO POR BRUNA LETÍCIA COLITA
Le Goff apresenta uma fase das transformações na Idade Média, ou
melhor, no resultado do que aconteceu na Antiguidade Tardia, às
modificações do Império romano com as influências do cristianismo
onde ele mesmo coloca “o principal agente de transmissão da
cultura romana ao Ocidente medieval”.
Segundo Le Goff, a Idade Média apresentou muitas contradições as
quais demoraram dez séculos para serem esclarecidas, e tudo está
de certo modo incluído para este caos que se apresenta na Idade
Média, tudo é conseqüência desde as invasões e crises no Império
Romano.
Os bárbaros afetam o mundo romano, até os camponeses sentiam-se
constantemente ameaçados e sua situação estava cada vez mais
próxima da dos escravos.
As causas das invasões segundo Le Goff, não são de tanta
importância, de modo geral as cita como necessidade, e a crueldade
dos bárbaros talvez se explique pelo desespero em que
encontravam. Por exemplo, os germânicos viviam numa fria região,
com solo ruim, e a eles foi recusado abrigo, que pacificamente
alguns povos solicitavam aos romanos e lhes era negada.
Muito interessante, nas palavras de Le Goff, é a noção dos bárbaros,
que traz a idéia não somente de povos sanguinários como é comum
na noção geral, mas também de povos que sofreram nas “garras” do
Império romano, passando fome se tornando escravos e perdendo
sua cultura, seus valores.
Os Hunos são descritos por Amiano Marcelino numa visão
praticamente de monstros, animais de duas patas, selvagens e
grotescos, assim como os Lombardos também são definidos.
Destaca-se as fontes destas definições, a maioria das descrições
destes povos é cristã, ou pagã, ou seja: ódio aos bárbaros. Santo
Ambrósio, é citado como grande inimigo dos bárbaros, e os vê como
cães malditos trazidos pelo destino.
Mas surge um texto, citado por Le Goff extraordinário de Salviano
um monge em 440, que contesta pelo pensamento dos bárbaros, o
qual é de certa forma ingênuo, pois eles não eram cristãos e as
invasões e saques era algo comum, não havendo pecado nem
maldade ( do ponto de vista religioso) nenhum. E ainda comenta que
os próprios romanos foram destruindo seu grande Império.
Segundo uma narrativa de Oriênsio, bispo de Auch a Gália depois da
invasão de 417, ficou em ruínas, nada nem ninguém escapou ileso da
grande invasão, “quem não foi dominado pela força, foi dominado
pela fome”.
Os bárbaros em sua grande maioria admiravam segundo Le Goff, a
cultura e civilização romana adotando em seus reinos o modo de
vida e conduta romano.
Várias características foram sendo adotadas conforme influências de
outros povos, outras regiões, mas podemos citar que o cristianismo
esteve sempre presente e influenciando muitos
reinos,principalmente com armas espirituais.
Os Bagaldos foram expulsos e julgados, desapossados, feridos; e
ainda os julgam “bárbaros”, mas Le Goff cita que: “E chamamo-lhes
de rebeldes homens perdidos quando fomos nós que os obrigamos a
ser criminosos”.
O certo segundo Le Goff é que Roma não foi assassinada, nem morta
naturalmente, através dos bárbaros ela sobreviveu e ainda está
presente, não desapareceu e os bárbaros são responsáveis por essa
continuidade.
Em alguns momentos a frieza de Roma era esmagadora ao ponto dos
próprios romanos se juntarem a civilização dos bárbaros para se
refugiarem devido à grande perseguição que ocorria.
Certamente os bárbaros são grandes responsáveis pelas mudanças da
Europa, grandes invasões e investidas marcam principalmente de
407 a 429.
Grandes e inúmeras invasões ocorrem nos seguintes séculos, grandes
dominações no início do século VI, parece estar garantida a partilha
do Ocidente: Anglo-saxões numa Grã Bretanha, os Francos: Gália,
Burgúndios: Sabóia, Visigodos: Espanha, Vândalos:África,
Ostrogodos: Itália.
O século VIII é destacado pelos Francos, que se aliaram as forças
cristãs e com isso se fortaleceram e conquistaram entre 523-534 o
reino dos Burgundiose em 536 a Provença.
Podemos então perceber o apanhado geral aos reinos bárbaros que
Le Goff expõe na sua obra, e principalmente a idéia de ligação e
importância desses reinos a história da antiguidade tardia numa
transição a Idade Média, onde tudo está sendo moldado e preparado
para as grandes modificações do poder em que o cristianismo, e
tudo que este representa como resposta, apareceria nas realizações
dos séculos seguintes.