A APLICAÇÃO DO CONCEITO DE PODER BRANDO (SOFT POWER) NA

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    FUNDAO GETULIO VARGASESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAO PBLICA E DE EMPRESASCENTRO DE FORMAO ACADMICA E PESQUISA

    CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAO PBLICA

    V ERSOPRELIMINAR DEDISSERTAO DEMESTRADO APRESENTADO POR

    R ONALDOGUIMARESGUERALDI

    TTULO

    A APLICAO DO CONCEITO DE PODER BRANDO (SOFT POWER ) NAPOLTICA EXTERNA BRASILEIRA

    PROFESSORAORIENTADORA ACADMICA

    A NALCIAGUEDES

    VERSOPRELIMINAR ACEITA, DE ACORDO COM OPROJETO APROVADO EM:

    DATA DAACEITAO: ______/_____/_____

    ________________________________________________

    ASSINATURA DA PROFESSORA ORIENTADORA ACADMICA

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    SUMRIO

    LISTA DE TABELAS 3

    Captulo 1 INTRODUO 41.1 Contextualizao do tema 41.2 Tema, Pergunta e Objetivo 71.3 Delimitao do estudo 91.4 Relevncia do estudo 10

    1.4.1 Relevncia da poltica externa no mbito das Relaes Internacionais 161.4.2 Relevncia da poltica externa no mbito da Administrao Pblica 21

    Captulo 2 REFERENCIAL TERICO 28

    2.1 Paradigmas das Relaes Internacionais 282.2 Poder e hegemonia no sistema internacional 312.3 Autoridade e legitimidade do Estado 412.4 Insero Internacional do Brasil 432.5 Agenda Internacional e Domstica 552.6 Conceito de Poder Brando 65

    2.6.1 Fontes de Poder Brando 732.6.2 O Poder Brando difundido pelo mundo 772.6.3 Fortalecimento do Poder Brando 792.6.4 Diplomacia Pblica 812.6.5 Poder Brando e Poltica Externa 82

    2.7 Critrios, Categorias e Cdigos de Anlise 84

    Captulo 3 METODOLOGIA 89

    3.1 Tipo de pesquisa 893.2 Coleta de dados 91

    3.2.1 Anlise de contedo na produo acadmica em administrao pblica 913.2.2 Anlise de discurso 923.2.3 Anlise de contedo na mdia internacional 94

    3.3 Tratamento dos dados 973.4 Desenho de pesquisa 98

    Captulo 4 DESCRIO E ANLISE DOS DADOS 99

    4.1 Resultados da anlise de discurso da poltica externa brasileira 994.1.1 Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso 1004.1.2 Discurso do Presidente Luiz Incio Lula da Silva 1044.1.3 Discurso do Ministro das Relaes Exteriores Celso Lafer 1084.1.4 Discurso do Ministro das Relaes Exteriores Celso Amorim 1114.1.5 Discurso do embaixador Osmar Vladimir Chofhi 1144.1.6 Discurso do embaixador Samuel Pinheiro Guimares 1154.1.7 Resumo do resultado da anlise de discurso 118

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    4.2 Resultados da anlise de contedo na mdia internacional 1194.2.1 The Economist 1204.2.2 The New York Times 1254.2.3 Le Monde 132

    4.2.4 Resumo das anlises de contedo 1414.3 Resumo dos resultados das anlises de discurso e de contedo 142

    Captulo 5 CONCLUSES E SUGESTES PARA FUTURAS PESQUISAS 146

    5.1 Concluses 1465.2 Sugestes para futuras pesquisas 152

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 154

    APNDICES 159

    Apndice 1 Critrios, categorias e cdigos de anlise em ingls 159Apndice 2 Critrios, categorias e cdigos de anlise em francs 160

    ANEXOS 161

    Anexo 1 - Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso na ONU, em 2001 161Anexo 2 Discurso do Presidente Luiz Incio Lula da Silva na ONU, em 2004 165Anexo 3 Discurso do Ministro das Relaes Exteriores Celso Lafer em 2001 169Anexo 4 Discurso do Secretrio-geral do Itamaraty Osmar Chohfi, em 2002 174Anexo 5 Textos para a anlise de contedo da revista britnicaThe Economist 176Anexo 6 Textos para a anlise de contedo do jornal americano New York Times 186Anexo 7 Textos para a anlise de contedo do jornal francs Le Monde 193

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    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Resultados dos levantamentos bibliogrficos 12Tabela 2 Resultados do levantamento na RAP 12Tabela 3 Relao de autores e suas definies de poder 40

    Tabela 4 Definio de autoridade de Weber 41Tabela 5 Dimenses de poder 72Tabela 6 Os trs tipos de poder 75Tabela 7 Critrios, categorias e cdigos de anlise 88Tabela 8 Total de artigos sobre o Brasil na The Economist 120Tabela 9 Anlise de contedo no primeiro artigo da The Economist 121Tabela 10 Anlise de contedo no segundo artigo da The Economist 122Tabela 11 Anlise de contedo no terceiro artigo da The Economist 122Tabela 12 Anlise de contedo no quarto artigo da The Economist 124Tabela 13 Anlise de contedo no quinto artigo da The Economist 125Tabela 14 Resumo da anlise de contedo na The Economist 125Tabela 15 Total de artigos sobre o Brasil no NYT 126Tabela 16 Brasil nas editorias do New York Times 126Tabela 17 Anlise de contedo no primeiro artigo do New York Times 128Tabela 18 Anlise de contedo no segundo artigo do New York Times 129Tabela 19 Anlise de contedo no terceiro artigo do New York Times 130Tabela 20 Anlise de contedo no quarto artigo do New York Times 131Tabela 21 Anlise de contedo no quinto artigo do New York Times 131Tabela 22 Resumo da anlise de contedo no New York Times 132Tabela 23 Artigos com Brasil no ttulo no Le Monde 132Tabela 24 Palavras mais freqentes nos textos do Le Monde sobre o Brasil 135Tabela 25 Anlise de contedo no primeiro artigo do Le Monde 136Tabela 26 Anlise de contedo no segundo artigo do Le Monde 137Tabela 27 Anlise de contedo no terceiro artigo do Le Monde 138Tabela 28 Anlise de contedo no quarto artigo do Le Monde 139Tabela 29 Anlise de contedo no quinto artigo do Le Monde 140Tabela 30 Resumo da anlise de contedo no Le Monde 140Tabela 31 Resumo da freqncia dos cdigos na mdia internacional 142Tabela 32 Critrios, categorias e cdigos de anlise em ingls 159Tabela 33 Critrios, categorias e cdigos de anlise em francs 160

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    Afastando um pouco o foco de anlise do contexto econmico possvel observarsemelhanas de outras naturezas geopolticas entre os quatro pases, sendo esse mbitoque pretendo desenvolver nessa proposta de pesquisa.

    A abordagem de anlise selecionada focada no conceito terico de poder brando, cunhado pelo americano Joseph Nye no fim da dcada de 1980 e que ganhouflego e prestgio desde os atentados de 11 de setembro de 2001. O termooriginalmente em ingls soft power e j encontrei tradues dessa teoria comopoder suave (revista Veja da editora Abril), com a qual discordo. Prefiro adotar otermo poder brando pois dessa forma que se encontra no referencial tericotraduzido (Nye, 2002).

    Nye foi escolhido recentemente diretor da Escola de Governo John F.Kennedy, da Universidade de Harvard, e comps o conselho da secretaria de Defesados Estados Unidos na administrao Clinton (1993-2000). Ele tem experincia tantona vida acadmica quanto na prtica da administrao pblica e, em ambas atividades,esteve em centros de prestgio e excelncia mundial, logo, seu conceito serconsiderado para fins de anlise da insero brasileira no contexto internacionalcontemporneo. Nye ganhou notoriedade quando escreveu, em conjunto com outroterico das Relaes Internacionais, Robert Keohane, o livroPower and

    Interdependence (cuja traduo seria Poder e Interdependncia). Em posterior anliseda poltica externa dos Estados Unidos, no livro O Paradoxo do Poder Americano, Nye defende que a Casa Branca, apesar de ser uma superpotncia, no pode governaro mundo seguindo uma postura isolacionista, visto que precisa cooptar pases para baratear o custo de alianas. Ele defende o uso do que chamou de poder brando(caracterizado pelo uso de instrumentos dos mbitos da cultura, ideologia e poltica),em detrimento ao poder bruto (dos mbitos da economia e do uso ou ameaa de uso

    de fora militar), buscando atrair a cooperao de outros pases sem usar os recursosde ameaa blica, como o Big Stick, ou a cenoura, uma espcie de suborno paraconvencer aliados, numa analogia ao legume usado para incentivar o movimento deanimais de carga, como o burro. Ou seja, poder brando a habilidade de alcanarobjetivos por meio de influncia em vez da coero.

    No caso do Brasil e diante de tantas crticas ao governo Lula, como a polticamacroeconmica de juros altos e as fraudes nos programas sociais como Bolsa-

    Famlia e Fome Zero, chama a ateno a atual poltica externa, que parece terabsorvido alguns conceitos do citado poder brando, o que pretendo explorar nessa

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    pesquisa. Por exemplo, a proposta de mudar a contabilidade do supervit primrioexcluindo investimento social dos gastos; a idia de criar uma taxa sobre o comrciode armas para destinar a um fundo mundial de combate pobreza; a criao do grupodos principais pases em desenvolvimento, o G-20; na liderana e mobilizao dos pases em desenvolvimento na ltima rodada de negociaes da Organizao Mundialdo Comrcio (OMC); e a campanha por um assento permanente no Conselho deSegurana das Naes Unidas (ONU). Os reflexos so visveis na mdia internacional,como as duas reportagens de destaque no New York Times 5 e a edio especial darevistaTime que classifica Lula como uma das 100 personalidades mais influentes domundo.

    No entanto, quando se fala em poltica internacional e insero internacional doBrasil, a primeira associao freqentemente com o comrcio exterior, uma rea naqual o pas participa com cerca de 1% do comrcio internacional. Entretanto, h outrasfontes de poder nas esferas poltica, militar, tecnolgica, cultural e ideolgica. A presente pesquisa se disps a investigar uma estratgia diferente do tradicional foco naesfera econmica para consolidar a insero internacional do Brasil. Como o prprio Nye afirma, o conceito de poder brando surgiu como uma forma de ilustrar o tripdo poder dos Estados Unidos no fim da dcada de 1980: o militar, o econmico e o

    poder brando (Nye, 2004). Logo, seguindo tal raciocnio, pretendo explorar aviabilidade do poder brando para aprofundar a insero internacional do Brasil, porformas distintas da militar ou da econmica. Nesse contexto vo ser exploradosaspectos culturais, ideolgicos, ticos e morais. Por mais estranho que possa parecer, atica e a moral esto envolvidas nas questes de legitimidade no exerccio do podernas relaes internacionais (Fonseca Jr., 2004). O ministro das relaes exteriores,Celso Amorim, em uma entrevista exibida pela Globonews no dia 23 de setembro de

    2004, para o reprter William Waack, disse que a incluso do Brasil como integrante permanente do Conselho de Segurana da ONU vai aprofundar a inserointernacional do Brasil, entretanto, essa insero e influncia no se manifestamsomente pela fora da economia ou das armas, mas pela fora moral. Amorimcompletou afirmando que o presidente Lus Incio Lula da Silva tem essa fora tica emoral, comprovada pela campanha que ele comeou a favor da erradicao da fome no

    5 No dia 24/01/04, o New York Times publicou um editorial afirmando que o presidente americano George W.Bush deveria estreitar laos com Braslia para se aproximar da Amrica Latina. No dia 27/06/04, o jornal publicou uma reportagem especial sobre o presidente Lula na revista dominical afirmando que ele o ltimorepresentante do idealismo socialista no mundo.

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    mundo, na ajuda humanitria ao Haiti e em episdios de auxlio aos vizinhos daAmrica do Sul em momento de crise, como Bolvia e Venezuela.

    Ao longo da pesquisa sero explorados conceitos de uma disciplina ainda pouco difundida no Brasil e exclusiva de um seleto grupo de pesquisadores: relaesinternacionais. A justificativa para tal decorre da escolha do objeto de estudo, a poltica externa brasileira, e pela novidade de abord-la no mbito da administrao pblica. As disciplinas de relaes internacionais e administrao sointerdisciplinares.

    1.2 Tema, Pergunta e Objetivo

    A escolha do tema dessa pesquisa atende aos critrios de originalidade,importncia e viabilidade (Castro, 1977).

    De acordo com Castro (1977), a importncia do tema decorre do fato de omesmo estar de alguma forma ligado a uma questo crucial que polariza ou afeta umsegmento substancial da sociedade, ou quando o tema est ligado a uma questoterica que merece ateno continuada da literatura especializada. Esse projeto sobrepoder brando atende s duas definies. Como Weil (2001) mostrou, o mbito

    internacional e a poltica externa de um pas tm um enorme impacto na vida da populao no cenrio domstico, mesmo que a populao no tenha conscincia disso.O outro fato corresponde lacuna que existe em administrao pblica que explore ombito internacional, como mostra um levantamento apresentado nas tabelas 1 e 2 eem outro realizado por Pacheco (2003) em que a autora enquadra o tema internacionalna categoria de temas curiosos ou isolados.

    Seguindo a definio de Castro (1977), a originalidade de um tema

    corresponde potencialidade dos resultados nos surpreenderem. Acredito que essa pesquisa se preste a esse papel. A pesquisa poderia ser dividida em duas partes cujotpico principal seria estratgia de ascenso hegemnica do Brasil. Muitosacadmicos que se dedicam a estudar hegemonias, como vai ser detalhado noreferencial terico, apontam alguns parmetros para alcanar a hegemonia, entre elas o poderio econmico, militar, poltico, tecnolgico e cultural. A estratgia coerente parao pas aprofundar sua insero internacional e atingir status de liderana hegemnica,

    mesmo que seja regional, passa por caminhos que no almejem, na primeira etapa,ascenso econmica e militar. A alternativa vivel seria o fortalecimento do poder

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    brando, que acredito que j esteja sendo aplicado pela diplomacia brasileira, com avalorizao de aspectos culturais, sociais e polticos.

    A definio de viabilidade engloba conceitos mais tangveis, dependendo dosrecursos financeiros, de prazos, da disponibilidade potencial de informao e o estadode teorizao a respeito. Como h pouco, ou quase nada, referente poltica externanas publicaes de administrao pblica, vou buscar referncias em outras reas deconhecimento, tais como relaes internacionais, sociologia e cincia poltica.Entretanto, o mais importante, que a pesquisa pretende mostrar que essa miopia uma falha do mbito da administrao pblica brasileira, haja vista que nas escolas deadministrao pblica espalhadas pelo mundo (principalmente Estados Unidos,Europa e Japo) o mbito internacional no s estudado, como valorizado(Kamarck, 2004; Eckert, 2002; Borjas, 2002; Weil, 2001). Desta forma no chega asurpreender porque as grandes potncias ditam as regras do sistema mundial, uma vezque tais governos entendem, se preocupam e estudam as instituies internacionais,suas estruturas e funcionamento.

    1.2.1 Tema:Poder brando na poltica externa brasileira

    1.2.2 Pergunta:

    Como o conceito terico de poder brando (i.e. poder de atrao), de Joseph Nye, vem sendo aplicado na poltica externa brasileira e quais so asrepercusses na mdia internacional?

    1.2.3 Objetivo:

    Identificar se o conceito de poder brando (i.e poder de atrao), de Joseph Nye, vem sendo aplicado na poltica externa brasileira e quais so asrepercusses na mdia internacional.

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    1.3 Delimitao do estudo

    O estudo pretende identificar a aplicao do conceito terico de poder brando na poltica externa brasileira. um exerccio terico-emprico ambicioso e, para execut-lo, pretendo estudar o perodo envolvendo os dois ltimos anos domandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (2001-2002) e os dois primeirosdo presidente Lus Incio Lula da Silva (2003-2004). O conceito de poder brandotem sido explorado recentemente, portanto, no necessrio recuar muito no tempo para estud-lo. Os dois primeiros anos do mandato do presidente Lula so suficientes para recolher informaes acerca de substanciais mudanas na poltica externa brasileira.

    Outra delimitao da pesquisa decorre do foco no mbito poltico e relegandoos aspectos econmicos a um segundo plano na anlise do tema. O fator econmicono ser analisado como incentivador, mas como resultante da modificao de outrasvariveis no mbito poltico. Ou seja, enxergar a economia como conseqncia dautilizao do poder brando e no como causa.

    As variveis analisadas vo ser basicamente os fatores polticos que promovam

    a insero internacional do pas, privilegiando questes culturais e iniciativas queatraiam aliados ao Brasil na esfera internacional. Questes macroeconmicas dembito domstico, como polticas cambiais, taxas de juros e polticas tributrias novo ser consideradas nessa pesquisa.

    Essa delimitao fruto do prprio conceito de poder brando cunhado por Nye (1991). Como vai ser detalhado mais adiante nessa pesquisa, o poder brando foiilustrado como a terceira vertente do trip da hegemonia americana: o poder militar, o

    poder econmico (chamados de poder bruto) e o poder brando.

    1.4 Relevncia do estudo

    A investigao sobre a aplicao do conceito de poder brando relevante pelo uso feito, no discurso e na prtica, pela potncia hegemnica nos mandatos do presidente americano Bill Clinton (1993-2000), o que resultou na recuperao da

    economia e na liderana dos Estados Unidos na dcada de 1990 (Gilpin, 2004;Ramonet, 2003; Stiglitz, 2003; Halliday, 2001). Como citado na introduo, o conceito

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    terico isoladamente j mereceria estudo. A originalidade decorre de sua anlise emtermos de aplicao na poltica externa brasileira.

    Morgenthau (2003)6, considerado um cone do realismo em RelaesInternacionais, afirmou que sua teoria aplicvel a todos os estados nacionais,entretanto, ele se concentra no mais poderoso de todos, os Estados Unidos,argumentando que s as grandes potncias determinam o carter da polticainternacional, em qualquer perodo da histria. O francs Aron (2002)7, um dos maisinfluentes acadmicos de Relaes Internacionais de nacionalidade fora do eixo anglo-americano, tambm concentra a anlise sobre o problema terico da formao daagenda internacional no comportamento poltico-diplomtico das grandes potncias.Para Aron, a ambio desses pases consiste em modelar a conjuntura internacional,enquanto os demais Estados Nacionais procuram ajustar-se a ela, ou seja, as questesinternacionais so suscitadas de acordo com os objetivos especficos das grandes potncias devido a sua capacidade de mobilizar recursos, de ameaar e persuadir osdemais atores.

    Tais argumentos vo de encontro teoria de poder brando de Nye (1991).Samuel Huntigton, que tambm trabalha na Escola de Governo John F. Kennedy, emHarvard, questionou sutilmente o conceito de poder brando ao afirmar, no livro

    Choque de Civilizaes (2001)8, que o poder brando s seria vivel depois que oestado em questo tivesse conquistado o poder bruto. Num dilogo implcito, Nyeresponde no livro O Paradoxo do Poder Americano (2002) citando Austrlia eCanad como exemplos de eficaz utilizao do poder brando, aumentando o poderrelativo desses pases devido escassez de poder bruto. Fred Halliday (2001) afirmaque os imprios modernos tm o poder distribudo em trs pilares: a fora militar(constituda de fora econmica e coeso poltica), a influncia cultural e a

    disseminao ideolgica. Halliday reconhece as fontes de poder brando, como a mdia,o cinema, a msica pop e a lngua inglesa, mas defende que para exercer tal poder, oEstado precisa desenvolver antes fora econmica e, conseqentemente, militar. Esse um dilema que a presente pesquisa pretende problematizar: o Brasil pode usar poder brando sem possuir o poder bruto?

    6 Inicialmente o livroPolitics Among Nations foi publicado em 1948. Adoto na bibliografia a traduo de 2003 publicada pela editora UnB.7 Inicialmente o livroPaix et Guerre entre les Nations foi publicado em 1962. Adoto na bibliografia a traduode 2002 publicada pela editora UnB.8 Inicialmente o livroClash of Civilizations foi publicado em 1996. Adoto na bibliografia a traduo de 2001 publicada pela editora Objetiva.

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    Como demonstrado, a discusso sobre a natureza do poder parte do debatecorrente em relaes internacionais (RI) e seria suficiente para justificar o presenteestudo. Entretanto, proponho expandir o escopo da pesquisa identificando estratgiasde insero internacional brasileira por meio do uso do poder brando e suasrepercusses na mdia internacional, como ser desenvolvido a seguir no item 1.4.1.

    A pesquisa tambm pretende preencher uma lacuna existente no estudo daadministrao pblica no Brasil ao abordar o mbito internacional, ou seja, a polticaexterna de um pas. Isso se deve baixa freqncia com que o mbito internacional abordado nos estudos focados no Estado e governo brasileiro, como ser apresentado aseguir no item 1.4.2.

    Com base em um levantamento realizado nas dissertaes de mestrado daEscola Brasileira de Administrao Pblica e de Empresas da Fundao GetlioVargas (Ebape/FGV), no perodo de 2000 a 2004, constatei que pesquisas comreferncia a aspectos internacionais so raras. Na Revista de Administrao Pblica(RAP), editada pela Ebape/FGV, no mesmo perodo, o nmero de referncias aaspectos internacionais ainda menor, apesar do crescente interesse pela questointernacional no mbito privado da Administrao no Encontro da Associao Nacional de Pesquisa em Administrao (EnAnpad). Em 2001, a EnAnpad criou uma

    nova rea para abrigar Gesto Internacional. No entanto, a rea de administrao pblica no apresenta artigos sobre o mbito internacional e a poltica externa.

    A tabela 1, a seguir, apresenta o resumo do levantamento, cuja metodologia deanlise de contedo vai ser explicada no item 3.2.3. Cabe destacar, que os nmeroscorrespondem a uma frao, assim, o numerador representa os trabalhos com algumareferncia ao mbito internacional no ttulo e o denominador o total de trabalhosapresentados por rea naquele evento. O mesmo critrio se aplica s dissertaes

    defendidas no perodo por linha de pesquisa.

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    Tabela 1 Resultados dos Levantamentos Bibliogrficos 2000 2001 2002 2003 2004 Total

    EnANPAD 3 / 41 3 / 58 4 / 65 11 / 70 8 / 85 29 / 319Administrao Pblica (*) 3 / 41 - - - - 3 / 41Gesto Pblica e Governana - 1 / 34 2 / 38 6 / 32 3 / 45 12 / 149

    Polticas Pblicas - 2 / 24 2 / 27 5 / 38 5 / 40 14 / 129Ebape/mestrado acadmicoem Administrao Pblica

    6 / 50 7 / 49 2 / 35 4 / 38 3 / 15(**)

    22 / 187

    Organizao e Gerncia 2 / 20 1 / 11 00 / 11 00 / 15 - 3 / 60

    Polticas e Estratgias 4 / 22 4 / 26 1 / 14 1 / 15 - 10 / 77Tecnologias de Gesto 00 / 08 2 / 12 1 / 10 3 / 08 - 6 / 38

    Fonte: Anais do EnANPAD e EBAPE/FGV. Nota: (*) cabe notar que a rea de Administrao Pblica foi desmembrada em Polticas e Gesto noano de 2001.(**) as dissertaes referentes ao ano de 2004 no foram atualizadas na internet at 30 de maro de2005. Os dados foram coletados na coordenao do mestrado sem diviso por linha de pesquisa.

    A tabela 2, a seguir, apresenta os resultados do levantamento na RAP. Cabenotar que a revista tem periodicidade bimestral e que o total de artigos analisados emcada ano, correspondente s seis edies, apresentado na ltima coluna de cada linhada tabela. O total de artigos, com referncia a temas ou aspectos internacionais nottulo, corresponde a 8,2% dos artigos no perodo, ou seja, 25 em 305 totais:

    Tabela 2 Resultados do Levantamento na RAP Edio 1 Edio 2 Edio 3 Edio 4 Edio 5 Edio 6 Total

    2000 1 / 15 0 / 12 1 / 11 2 / 14 0 / 14 0 / 14 4 / 802001 1 / 10 2 / 12 2 / 12 1 / 10 1 / 9 0 / 12 7 / 652002 2 / 10 1 / 9 1 / 8 0 / 8 1 / 7 0 / 7 5 / 492003 1 / 7 0 / 17 2 / 11 0 / 10 2 / 7 0 / 9 5 / 61

    2004 0 / 9 0 / 8 1 / 6 0 / 7 30 / 10 0 / 10 4 / 50Total 25 / 305

    Cabe ressaltar que em 2004, dois artigos na rea de Polticas Pblicas doEnAnpad trataram do tema de poltica externa. Cassano (2004) tratou da postura dealinhamento e autonomia da poltica externa brasileira e sua influncia na captao derecursos externos e provedor de desenvolvimento econmico e Guedes (2004)destacou a insero do Brasil no contexto internacional contemporneo com a

    recuperao do papel de governana do Estado. Guedes sugere a adoo do modelo dadiplomacia triangular, envolvendo negociaes entre governo e empresas, e a

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    internacionalizao de empresas brasileiras pelo governo como estratgia dedesenvolvimento. Com exceo desses dois artigos, nenhum outro abordaespecificamente o papel da poltica externa como fator relevante da gesto pblica.

    Um estudo realizado por Pacheco (2003) chega a uma concluso semelhante. A proposta dela era analisar a recente produo brasileira na rea de pesquisa emadministrao pblica, utilizando como base os artigos publicados entre 1995 e 2002nas revistas especializadas RAP e RAE (Revista de Administrao de Empresas), almdos trabalhos apresentados durante os EnAnpads. Os resultados da autora confirmam agrande lacuna existente sobre temas internacionais na rea de administrao pblica.Pacheco dividiu os trabalhos encontrados em categorias e aqueles com referncia aombito internacional foram includos em temas curiosos ou isolados, como umartigo sobre o feudo japons do sculo XIII e outro sobre tica e o regime eleitoralno Chile.

    Pacheco (2003) aponta tambm a fragilidade do carter propositivo da produo em administrao pblica, que pode ser considerado inerente rea deadministrao pblica devido natureza do objeto de estudo, essencialmente aplicado.Alm disso, a autora reconhece as tendncias de pesquisadores se auto-referirem e adoo acrtica de teorias desenvolvidas em outras disciplinas.

    Com relao ao foco da presente pesquisa, a aplicao do poder brando na poltica externa brasileira, reconheo argumentos da autora que, a princpio,contribuiriam para a fragilidade da rea de pesquisa em administrao pblica.Entretanto, a presente pesquisa ajuda a romper tal barreira, contribuindo para amelhoria da qualidade dos trabalhos realizados na rea, porque vai corroborar a teoriaelaborada no exterior com a anlise de especialistas brasileiros em administrao pblica e relaes internacionais, ou seja, no vai ser uma transio acrtica.

    Pacheco apresenta um diagnstico sombrio de outros autores (Souza, 1998;Machado-da-Silva, Ambroni e Cunha, 1989) que identificam a fragilidade dostrabalhos na rea de administrao pblica. Entre os motivos citados esto: (1) aocorrncia de baixa utilizao da literatura estrangeira mais recente e (2) a prevalnciade produo acadmica mais prescritiva do que analtica, mais dirigida para questes prticas do que para o desenvolvimento terico-emprico da disciplina.

    Sob tais aspectos, o foco do presente projeto no conceito de poder brando se

    destaca, haja vista que um referencial terico estrangeiro extremamente recente, cujoltimo livro de Nye sobre o tema foi lanado em 2004. O conceito de poder brando

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    extremamente analtico, fruto de estudo da poltica externa dos Estados Unidos,Inglaterra, Austrlia e at mesmo do Brasil. O conceito terico de poder brando poderia at ser identificado como um tema da moda, para usar a terminologia dePacheco, mas no ser investigado de forma acrtica, visto que o projeto prev pesquisa emprica. Outro fator relevante do poder brando que ele foi desenvolvidona escola de governo da universidade de Harvard, nos Estados Unidos, o que, deacordo com o argumento apresentado por Pacheco (2003) pode ser uma vantagem porque escapa da preponderncia de uma matriz nica da escolha racional e suasderivaes como exclusivo referencial terico da administrao pblica.

    Aqui fao um paralelo entre administrao pblica e relaes internacionais,cujos paradigmas e conceitos pretendo utilizar na pesquisa. A partir da anlise doartigo de Pacheco, acredito que ambas as reas de conhecimento padecem do mesmomal. Tanto administrao pblica quanto relaes internacionais se proclamamindependentes, como um campo de pesquisa autnomo, sem que sejam reconhecidascomo tais. Conforme a proposta de Pacheco (2003), administrao pblica deveria secomunicar de forma mais direta e ostensiva com a cincia poltica, o que legitima autilizao de teorias e paradigmas de relaes internacionais no mbito daadministrao pblica. Uma crtica de Pacheco a apropriao acrtica de termos da

    cincia poltica e da economia, por exemplo, pela administrao pblica sem umavalidao de seus pares. Por isso a autora prope que artigos de administrao pblicatransitem mais nos fruns de cincia poltica.

    Pacheco (2003) afirma a tendncia brasileira de seguir o comportamento daacademia americana em que se isola a rea de administrao. Nos Estados Unidos, area da administrao pode at estar isolada de outros campos de conhecimento,entretanto, os mbitos internacional e de poltica pblica esto localizados e so

    estudados no mesmo departamento nas principais universidades americanas, como porexemplo: a Escola de Governo John F. Kennedy, da universidade de Harvard9; aEscola Goldman de Polticas Pblicas da universidade de Berkeley, na Califrnia10; ea Escola Woodrow Wilson de Assuntos Pblicos e Internacionais, na universidade dePrinceton11.

    9 Acesso em 19 de agosto de 2004.10 Acesso em 19 de agosto de 2004.

    11 Acesso em 19 de agosto de 2004.

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    Bingham e Bolwen (1994) traaram um perfil da academia de administrao pblica americana analisando 50 anos de publicaes daPublic Administration Review . Eles classificaram os artigos em 14 categorias de anlise e esperavam refletira preocupao da academia americana de administrao pblica com a freqncia dosartigos nas categorias estabelecidas. A categoria tica, por exemplo, surgiu nadcada de 1970 depois dos escndalos polticos de Watergate.

    Ao longo do perodo, trs categorias dominaram 60% dos artigos:comportamento governamental e organizacional, public management e recursoshumanos. Curiosamente, no h uma categoria especfica que trata do mbitointernacional. Isso indica que a rea de administrao pblica nos Estados Unidos notrata do mbito internacional, ou da poltica externa, assim como no Brasil, apesar deas escolas americanas de polticas pblicas estudarem o impacto do mbito externo naadministrao pblica e vice-versa (Allison, 1999). De acordo com as categoriasdescritas por Bingham e Bowen (1994), a que abordaria o internacional seria acategoria de anlise de polticas pblicas, que estuda as vantagens e desvantagens das polticas pblicas em geral. Essa categoria tambm existe na rea de administrao pblica no Brasil, como consta nas reas temticas do EnAnpad. Entretanto, so poucos os artigos que fazem referncia ao mbito internacional, como mostra os

    resultados do levantamento da tabela 1.Um dos argumentos de Pacheco (2003) para a fragilidade da administrao

    pblica no Brasil o fato de a comunidade de pesquisadores ser pequena, correndo orisco de se isolar, ser auto-referida e de identidade difusa. Outras causas so o usoexcessivo de estudo de caso, a tendncia generalizao, sem rigor metodolgico, oque leva uma crtica de postura normativa e acientfica. Desta forma, o presenteestudo promove a seguir uma ruptura no isolamento da disciplina de administrao

    pblica ao destacar a relevncia da poltica externa e promover o dilogo da rea comrelaes internacionais.

    1.4.1 Relevncia da poltica externa no mbito das RelaesInternacionais

    Conhecer o estrangeiro, ou o inimigo em potencial, uma regra antiga, que

    data de mais de dois mil anos com os escritos do general chins Sun Tzu (Clavell,2002). Muitos estudiosos das reas funcionais de administrao chamam a ateno

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    para a relevncia de conhecer o ambiente externo, mas a rea de administrao pblica parece no considerar o contexto internacional como parte do ambiente externo.

    De fato, a discusso acerca da poltica externa dos pases e do cenriointernacional ficou, durante muito tempo, restrito ao mbito da diplomacia e dosdiplomatas. No incio da dcada de vinte, depois da Primeira Guerra Mundial, essarea do conhecimento, sob o rtulo de relaes internacionais, passou a ser lecionadaem universidades britnicas (Sarfati, 2005; Halliday, 1999), numa tentativa deestimular estudos acadmicos que pudessem compreender as causas e evitar aocorrncia de novas guerras. Naturalmente, essa rea do conhecimento interdisciplinarcomeou a ser desenvolvida na Inglaterra e nos Estados Unidos (EUA), poisrepresentava os interesses hegemnicos do Imprio Britnico no sculo XIX e asaspiraes de poder dos EUA no sculo XX, respectivamente.

    No Brasil, os cursos de ps-graduao em Relaes Internacionais surgiram nofim da dcada de 1980 com cursos de mestrado (ver Myamoto, 1999 e Hertz, 2002).Os recentes programas de doutorado ainda no formaram as primeiras turmas, apesarde o Instituto de Relaes Internacionais da Pontifcia Universidade Catlica do Riode Janeiro e o Departamento de Relaes Internacionais da Universidade de Brasliaserem referncias nacionais, com projeo internacional na rea.

    Desta forma, as investigaes do mbito internacional permanecem restritas aum pequeno grupo de pesquisadores. Em paralelo, o excessivo enfoque da mdia nadivulgao acerca dos recentes recordes de arrecadao com o supervit da balanacomercial ajuda a legitimar o mito de que a poltica externa de um pas se resume emestratgias de negcios, como reduo de barreiras alfandegrias, discusses sobreacordos comerciais bilaterais e construo de reas de livre comrcio. Entretanto, a poltica externa no se resume economia, envolvendo tambm fatores militares,

    tecnolgicos, cientficos, culturais, ideolgicos e jurdicos entre outros. De fato, poltica externa apenas uma das formas mais limitadas de a poltica internacional deum pas se manifestar e ampliar sua insero no sistema mundial, por meio daformao da agenda diplomtica, por exemplo. Para o diplomata Jos GuilhermeMerquior (1993), a poltica internacional equivaleria ao somatrio das polticasexternas. Na anlise de outro diplomata, Georges Lamazire, a poltica externa teriamaior afinidade com a diplomacia bilateral, que trata da conjuntura e das aes a que

    procede ao pas para se aproximar deste ou daquele parceiro, ou para opor-se a umcompetidor em funo de seus interesses mais concretos.

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    Por outro lado, a poltica internacional tem maior identificao com adiplomacia multilateral, em referncia viso do mundo e das regras que devem reg-lo e que, portanto, adquire caractersticas de maior durabilidade (Lamazire,1998:140). Singer (1969) ao tentar promover uma moldura de anlise ao que chamoude anarquia epistemolgica das relaes internacionais, sugeriu trs nveis de estudona rea: o individual, o estatal (ou dos subsistemas nacionais) e o global (ou dosistema internacional) (Lopes e Vellozo Jr, 2004:330). possvel traar um paraleloentre a poltica internacional e o sistema internacional e entre a poltica externa e ossubsistemas nacionais. Ou seja, a poltica externa corresponde ao nvel estatal deSinger e a poltica internacional, ao nvel global. Em suma, poltica internacional doBrasil a norma de conduta brasileira no mbito do sistema internacional, cujosobjetivos envolvem a neutralizao de todos os fatores externos que possam contribuir para limitar o poder nacional (Lopes e Velloso Jr, 2004).

    No contexto da Guerra Fria, fora militar, tecnologia nuclear e poltica externaeram inseridos no mbito denominado dehigh politics. A economia, o direitointernacional e os aspectos culturais estavam num plano secundrio, chamado delow

    politics. Esse cenrio comeou a se modificar lentamente a partir da dcada de 1970 efoi consolidada com o fim da Unio Sovitica, quando a economia foi promovida

    para o mbito dehigh politics. Entretanto, a poltica externa causa impactos na polticadomstica e vice-versa (ver Allison, 1981).

    Tal influncia tambm se reflete no Brasil, com o uso da poltica externa paraalterar sua insero internacional e, conseqentemente, conseguir benefcios para sua populao. Paulo Vizentini (2003) mostra o desenvolvimento da poltica externa brasileira desde a era Vargas at o incio do mandato de Lus Incio Lula da Silva.Segundo o autor, durante quatro sculos, a insero internacional do Brasil processou-

    se por meio das potncias europias, primeiro Portugal e depois pela Inglaterra. Na passagem do sculo XIX para o XX, contudo, os esforos da diplomacia poltica eeconmica do Brasil foram direcionados para os Estados Unidos.

    Desde o incio dos anos 1960, na esteira do desenvolvimento industrial, a poltica externa brasileira buscou novos espaos, por meio da mundializao e damultilateralizao. Na primeira metade do sculo XX, a insero do Brasil estavafocada no contexto hemisfrico por meio do estreitamento dos laos com os Estados

    Unidos objetivando a condio de aliado privilegiado. Durante a Segunda GuerraMundial, Getlio Vargas buscou a autonomia na dependncia e utilizou a

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    diplomacia pendular entre Washington e Berlim como instrumento de barganha emdefesa dos interesses brasileiros. Jnio Quadros e Joo Goulart promoveram a PolticaExterna Independente (PEI), que buscava questionar ostatus quo mundial e negociaruma nova forma de insero internacional do pas, ou seja, nas palavras de Vizentini(2003), renegociar o perfil de sua dependncia.

    Os governos militares tambm se preocuparam com a poltica internacional e buscaram uma maior insero internacional do Brasil por meio de acordos decooperao tecnolgico-militar nuclear, aprofundando relaes comerciais com pasessocialistas, estreitando o relacionamento com outros plos capitalistas, como Japo eEuropa ocidental, promovendo convnios culturais, tecnolgicos e comerciais com pas sul-americanos, centro-americanos, africanos e rabes.

    O presidente Costa e Silva promoveu a diplomacia da prosperidade, privilegiando o desenvolvimento e a soberania nacional, quando o Brasil liderou ogrupo dos 77, que representava o movimento dos pases do Terceiro Mundo, umaespcie de verso econmica dos pases No-Alinhados, que no pretendiam sesujeitar esfera de influncia capitalista, dos Estados Unidos, ou socialista, da UnioSovitica.

    Mdici exerceu a diplomacia do interesse nacional e estreitou laos com os

    Estados Unidos em busca de financiamento para a construo de uma indstriaarmamentista brasileira. O fortalecimento militar estava em consonncia com o idealde Brasil potncia, assim como o perodo do milagre econmico, quando o pascresceu em mdia 10% ao ano, de 1970 a 1973.

    Com a crise do petrleo e o fim do milagre econmico, Geisel promoveu opragmatismo responsvel e ecumnico na poltica externa brasileira, quando houveuma aproximao dos pases exportadores de petrleo na frica e Oriente Mdio, com

    acordos visando o desenvolvimento tecnolgico e industrial-militar. Tambm houvenesse perodo acordos estratgicos com China e leste europeu quando, de acordo comVizentini (2003), ocorreu o perodo de maior protagonismo e autonomia do Brasil nocenrio internacional.

    A atual administrao do presidente Lula est concentrando esforos na poltica externa que, a princpio, tem demonstrado resultados mais positivos do que a poltica domstica. Iniciativas como a proposta de mudar a contabilidade do supervit

    primrio excluindo investimento em infra-estrutura dos gastos; a idia de criar umataxa sobre o comrcio de armas para destinar a um fundo mundial de combate

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    pobreza; a criao do G-20 (os grupos dos principais pases em desenvolvimento); aliderana e mobilizao dos pases em desenvolvimento na ltima rodada denegociaes da Organizao Mundial do Comrcio; a participao do presidente doSuperior Tribunal Eleitoral, Seplveda Pertence, como observador internacional daseleies para a Autoridade Nacional Palestina (em janeiro de 2005); a criao dogrupo Amigos da Venezuela e o envio de funcionrios da Petrobrs para ajudar naatividade petrolfera do pas durante a greve geral que tentou derrubar o presidenteHugo Chavez; a intermediao para solucionar a tenso diplomtica entre Colmbia eVenezuela desencadeada pela priso de um lder, em janeiro de 2005, das ForasArmadas Revolucionrias da Colmbia (FARC) em Caracas; a doao de bilhes dedlares para ajudar a Bolvia depois das manifestaes que culminaram na queda do presidente Sanchez de Losada (em outubro de 2003); a liderana das tropas de paz daOrganizao das Naes Unidas (ONU) no Haiti e a campanha mais agressiva por umassento permanente no Conselho de Segurana da ONU tm repercutidoconstantemente na mdia internacional.

    No dia 24 de janeiro de 2004, o jornal americanoThe New York Times publicou um editorial afirmando que o presidente americano George W. Bush deveriaestreitar laos com Braslia para se aproximar da Amrica Latina e, no dia 27 de junho

    de 2004, publicou uma reportagem especial, sobre o presidente Lula, na revistadominical afirmando que ele o ltimo representante do idealismo socialista nomundo.

    Uma edio especial da revistaTime , publicada no dia 19 de abril de 2004,classificou Lula como uma das cem personalidades mais influentes do mundo e oeditorial do jornal britnicoFinancial Times destacou o estratgico estreitamento derelaes entre as duas maiores economias em desenvolvimento do mundo, durante a

    visita, em junho de 2004, de Lula China. A poltica externa do governo Lula tambmestabeleceu convnios culturais (com pases da Amrica Latina e frica) etecnolgicos (com China e Ucrnia, por exemplo), expandindo a abordagemmultilateral da atual diplomacia brasileira, reforando sua liderana na Amrica do Sule fortalecendo sua posio como porta-voz dos pases em desenvolvimento dohemisfrio sul.

    Abdenur (1997) afirma que inmeros fatores conjunturais podem contribuir

    para influenciar as anlises sobre o peso especfico de um pas: prestgio pessoal deseus lderes, momento econmico, situao poltica, competncia da atuao

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    diplomtica, entre outros. Para ele, os aspectos mais permanentes da presena externa brasileira so credibilidade poltica, expresso econmica, atrao cultural, massaterritorial e demogrfica.

    Na obra Quinhentos Anos de Periferia, Guimares (2002) detalha asestratgias de poltica externa que os pases, da chamada estrutura hegemnica,usaram para proporcionar benefcios de concentrao de poder, seja no mbitoeconmico, poltico, militar, tecnolgico, cultural e ideolgico. Uma dessas estratgias a formao de elites, onde Estados centrais promovem programas de difusocultural, de bolsas de estudo, de pesquisadores visitantes, de visitas de personalidades polticas e de formadores de opinio para promover a formao de uma elite nos pases perifricos, que formam quadros simpticos e admiradores das estruturashegemnicas. Indivduos que participam de tais programas desenvolvem sentimentosde simpatia em relao ao estilo de vida, ao modo de ver o mundo e as relaes entreaquelas estruturas e a periferia, se tornando elementos de grande importnciaestratgica de preservao das estruturas hegemnicas de poder na medida em quevm a ocupar posies de destaque na vida pblica e privada dos pases perifricos.

    Borjas (2002) lembra que logo depois dos atentados terroristas de 11 desetembro de 2001, o presidente americano George W. Bush quis suspender o programa

    de bolsas acadmicas para estudantes estrangeiros nos EUA. Logo foi desaconselhado pelas prprias universidades porque iria representar um duro golpe num dos principais produtos de exportao dos americanos, seus ex-alunos que se transformaram emlderes polticos, como o ex-primeiro-ministro israelense Ehud Barak, e os ex- presidentes do Mxico, Carlos Salinas, e do Paquisto, Benazir Bhutto. Nye (2004)aponta esse fator de atrao, o poder brando que foco desse estudo, como um dosmais importantes poderes de influncia da cultura americana, que d legitimidade s

    diversas aes da poltica externa dos EUA. Nye (2004) alerta que ignorar tais valores,como democracia e liberdades individuais, pode comprometer a eficincia da polticaexterna do pas e levar ao seu isolacionismo.

    Guimares (2002) enfatiza o erro das universidades latino-americanas de nodesenvolverem centros de pesquisas sobre seus vizinhos e estarem, assim, sujeitos savaliaes e estudos dos pases do centro hegemnico, que ditam regras, tradies ediretrizes sobre pases prximos. Ou seja, pases perifricos fronteirios acabam por se

    doutrinarem sobre seus vizinhos em aspectos culturais, econmicos e geopolticos sobo olhar de pases hegemnicos. A maioria das universidades americanas tem um

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    departamento de estudos para a Amrica Latina e outras culturas, como a francesa, achinesa e a rabe. Na Europa a tendncia se repete. Entretanto, no Brasil no h umcentro especfico sobre estudos da Argentina, por exemplo. Para Guimares (2002),esse um erro estratgico que mostra a vulnerabilidade das polticas externas dos pases perifricos.

    1.4.2 Relevncia da poltica externa no mbito da Administrao Pblica

    Chega a ser incompreensvel imaginar o mbito internacional e, maisespecificamente a poltica externa, separado da administrao pblica. Historicamente,o Estado surgiu para controlar, principalmente, as relaes internacionais entregovernos. O Estado Nacional foi criado em 1648, na Paz de Westflia, determinando asoberania e a autonomia de gerncia dentro do seu territrio (Sarfati, 2005). Ou seja,impedindo que Estados Nacionais interferissem na poltica domstica de outros pases.A relevncia do poder executivo com relao ao exterior j estava presente noraciocnio de Locke em 1690 (Chevallier, 1982), quando definiu como poderconfederativo aquele, normalmente vinculado ao executivo, que se responsabiliza pelas questes exteriores, como tratados, paz e guerra.

    A questo do exterior e de poltica externa era determinada pela geopoltica e por determinismos geogrficos, ou seja, o pas tem o limite de suas fronteiras e sua preocupao maior era com seus vizinhos, a ameaa mais prxima. Entretanto, taisteorias, como as de Friedrich Ratzel e Nicholas Spykman, por exemplo, que tiveramimpacto nas polticas do imprio britnico e da Alemanha, em que pregavam agressivaexpanso territorial e aumento substancial de colnias e domnios, no tm maisrelevncia nos dias de hoje. Antes, a premissa geopoltica era de que espao territorial,

    recursos naturais e volume demogrfico eram sinnimos de poder. Com o avanotecnolgico, tais paradigmas mudaram. Ramonet (2003) afirma que no contexto atual,as antigas fontes de poder no representam mais trunfos, pelo contrrio, so onerosasdesvantagens na era ps-industrial, na qual a nova riqueza est na capacidadeintelectual, que promove o saber, a pesquisa e a habilidade de inovar, e no mais na produo de matrias-primas. Para ilustrar seu argumento, Ramonet aponta comoEstados extensos, com grande populao e ricos em recursos naturais que esto em

    posio de desvantagem na distribuio de poder, a Rssia, ndia, China, Brasil,

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    Indonsia, Mxico e Nigria. Os Estados Unidos constitui-se como exceoreconhecida pelo prprio Ramonet.

    Na dcada de 1920, uma tendncia, que ficou conhecida como escolafrancesa afirmou que a geografia importante, mas pode ser moldada segundo osinteresses e convenincias do homem. O maior expoente dessa escola foi Vidal de laBlanche, dando exemplo da construo de usinas e barragens hidroeltricas para essesfins. Outro francs, Alexis de Tocqueville, escreveu que os americanos lutaram contraobstculos que a natureza lhes opunha para construir um extenso pas (Miyamoto,2004). Miyamoto (2004:88) tambm condena o determinismo geogrfico afirmandoque a geografia possibilita, mas no determina os destinos de uma nao. Para ele, aao humana, bem como de suas instituies, e as polticas pblicas que,efetivamente, levam o Estado e a sociedade a ocuparem papel importante ou no,dependendo das prioridades adotadas e implementadas por seus dirigentes, projetandoo pas no quadro mundial.

    Duroselle (2000) afirma que existem numerosos atos de poltica interna pura,sem nenhum aspecto exterior, e que a poltica interna pura um fenmeno perfeitamente isolvel. Entretanto, alerta que ao blindar o interno das influncias doexterno, o Estado faz vista grossa dinmica das foras interiores a um pas que to

    claramente incidem sobre a vida internacional.Halliday (1999) prope uma concepo do mbito internacional que englobe as

    interaes Estado/sociedade. O acadmico britnico considera no somente o Estado,mas tambm atores no-estatais e foras transnacionais em sua teoria dointernacional e afirma que o que vivido e normalmente estudado como algo queaconteceu dentro de pases, revela-se como parte de processos internacionais muitomais amplos de mudana poltica e econmica, ou seja, h interao do nacional e do

    internacional, dos mbitos interno e externo (Halliday, 1999:18).O ex-chanceler Celso Lafer (2002) acredita que essa discusso entre poltica

    interna e externa pode ser resumida na expresso: internaliza-se o mundo. Para ele, nomundo contemporneo as diferenas entre poltica nacional e internacional sediluram, o que engendrou novas realidades que tm colocado desafios inditos aosatores que atuam na cena internacional, deles exigindo novas e criativas solues.Lafer (2002) acredita que tal complexidade fez o ambiente internacional (interestatal)

    como unidade de anlise se desmembrar em global, transnacional e subnacional.

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    Hagan (1995), especialista em anlise da poltica externa, menciona vriosautores que tratam da poltica domstica como explicao para poltica externa, entreeles Putnam (1988), que chama essa situao de jogo de dois nveis (two-levelgame ). Hagan (1995) trata da construo de coalizes relevantes para a determinaoda poltica externa. No caso americano, o congresso tem que aprovar a entrada do pasem guerras, a ratificao de tratados internacionais e a aprovao do oramento, comoos recursos destinados para o departamento de Defesa e de Estado (que corresponde aoministrio das Relaes Exteriores do Brasil). A constituio brasileira prev esse procedimento, sendo o mais comum aprovao de oramento e a ratificao detratados internacionais. Essa questo de extrema relevncia porque o direitointernacional garante que tratados internacionais se sobrepem s constituiesnacionais. de estranhar que tanta relevncia, como aspectos jurdicos queinfluenciam as normas internas de um pas, passe despercebida pela academia nosestudos sobre administrao pblica.

    Hagan (1995) sugere que a poltica externa deva ser ajustada para impor osmenores custos domsticos possveis e que os efeitos do processo poltico domsticona poltica externa de um pas devam ser analisados num contexto mais amplo dadinmica internacional. A relevncia do processo poltico interno define a diminuio

    ou aumento da propenso de o pas assumir compromissos e riscos internacionais.Hagan (1995) analisa esse comportamento sob trs perspectivas: (a) acomodao; (b)mobilizao e legitimao; e (c) isolamento. Hagan (1995:134) afirma que pressesinternas e o receio de serem encarados como regimes fracos no sistema internacionallevaram as grandes potncias a entrarem na Primeira Guerra Mundial. E que tantoMargareth Thatcher, da Gr-Bretanha, e Galtieri, da Argentina, queriam lutar pelasIlhas Malvinas na esperana de que uma vitria militar no exterior pudesse reverter o

    declnio poltico que sofriam domesticamente.Moon (1995) trata da legitimidade dos Estados do Terceiro Mundo, tambm

    chamados de perifricos, em busca da autoridade interna por meio da poltica externa.Moon (1995) critica a definio de Estado no paradigma realista (que vai ser explicadono item 2.1 do referencial terico) e adota a abordagem estruturalista para apontar osdiferentes objetivos de poltica externa dos pases centrais e perifricos. Ilustrando taisargumentos, Moon (1995) afirma que pases perifricos usam a poltica externa para

    atingir objetivos domsticos, como o acmulo de capital, legitimidade de estado,estabilidade social e manuteno do governo, em detrimento dos objetivos do

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    paradigma realista das grandes potncias, como poder militar, influncia poltica erecursos econmicos (1995:198-199). Em alguns casos, a poltica externa permite queo Estado perifrico se retrate como orgulho nacionalista, em que pases menosdesenvolvidos buscam autodeterminao, integrao e at viabilidade domsticaenfatizando seu papel internacional. Tal poltica externa construda de formaconsensual, vista como legtima e com forte apelo ideolgico, como ocorreu com o pan-africanismo, o apoio causa Palestina e a oposio ao colonialismo e ao regimesegregacionista sul-africano conhecido como apartheid (Moon, 1995:194).

    O diplomata e acadmico Gelson Fonseca Jr. (1998) acredita que a agendadiplomtica tem uma importncia crtica para o sucesso de uma negociao bilateral,ou multilateral, para um pas como o Brasil. O que entra ou o que excludo daagenda de discusso e de negociao o indispensvel passo prvio, definidor dalatitude da defesa dos interesses de um pas. Desta forma, a agenda vai operacionalizaro tema da legitimidade como o espao de proposies o que, citando as palavras doex-chanceler brasileiro San Tiago Dantas, representa um extraordinrio reforo de poder em qualquer conflito de interesses que se possa apresentar.

    Para Fonseca Jr. (1998), as brechas abertas pela Guerra Fria deram espao parao argumento da legitimidade, de cunho racionalista, dos pases no-hegemnicos. Por

    isso temas como autodeterminao e descolonizao, autonomia diplomtica(movimento dos no-alinhados), desarmamento nuclear, desenvolvimento esubdesenvolvimento e democratizao dos processos decisrios internacionais foraminseridos na agenda diplomtica multilateral. Entretanto, o prprio Fonseca Jr. (1998)acredita que a queda do muro de Berlim enfraqueceu a legitimidade pelas forascentrpetas da globalizao. Tal contexto representa um desafio para diplomatas eacadmicos de cincia poltica, relaes internacionais e administrao pblica, haja

    vista que instrumentalizar com preciso os temas da agenda internacional representaum fator estratgico para o Estado.

    A agenda internacional comea a ser pautada na agenda domstica, por isso relevante explorar como esse processo ocorre. Kingdon (2003) elaborou um exaustivotrabalho sobre a formao da agenda de polticas pblicas, abrangendo os atores efatores determinantes que moldam a influncia exercida na pauta da agenda, suasalternativas e oportunidades. Para Kingdon (2003), o presidente, ostaff presidencial e

    os articuladores polticos, formam o ncleo da organizao governamental,considerado pelo autor como o principal jogador na formao do processo poltico e

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    da agenda pblica. A academia, que comporta pesquisadores e consultores, representaum impacto ao longo prazo na formao da agenda, possuindo reconhecimento e prestgio junto ao governo. A atuao preponderante de acadmicos est nasalternativas da agenda, corroborando ou refutando propostas em andamento da agenda.Os acadmicos costumam freqentar ambientes governamentais no s comoobservadores, mas com freqncia como gestores pblicos contratados paraacompanharem determinados projetos ou atuarem de forma incisiva em agendas de polticas pblicas. Esse argumento legitima o presente estudo que tenta chamar aateno para a escassez de estudos sobre poltica externa na academia deadministrao pblica.

    O processo de formao da agenda est circunscrito esfera do Estado burocrtico e estrutura de oportunidades, mas no so dominadas por eles. O processo incorpora diversos atores, que compem o governo (presidente, parlamentares, articuladores polticos e burocratas) e atores externos (grupos deinteresse, academia, mdia e opinio pblica). O principal ator na formulao deagendas o presidente, entretanto ele no controla as alternativas, que correspondems oportunidades de mudar a agenda (Kingdon, 2003). H uma interao entre osatores para a formao da agenda e o que determina a intensidade da fora do ator o

    grau de informao, haja vista que ningum controla o sistema informativo natotalidade.

    Weil (2001) mostrou o enorme impacto que a questo sobre o internacional e a poltica externa de um pas tm na vida da populao no cenrio domstico, mesmoque os prprios cidados no tenham conscincia disso. Weil (2001) desperta aateno para a necessidade dos cidados de compreender como o desenvolvimentointernacional afeta suas vidas, ou seja, as implicaes da poltica externa de um pas

    no mbito domstico. A populao deve se conscientizar dessa importncia deconhecer o exterior, e no somente o governo, porque a democracia depende daconfiana e do apoio dos cidados e que falta de consenso popular pode paralisar uma poltica pblica. Outro alerta de Weil (2001) que o governo que no percebe asligaes com outros pases perde oportunidades de capitalizar lucros e compromete a prosperidade que poderia derivar de tais ligaes.

    A referncia ao trabalho de Weil (2001) se faz presente na relevncia de

    pesquisa porque a autora atribuiu essa negligncia com o internacional ao que chamoude dficit de informao. E para mudar essa tendncia, Weil defende que a

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    conscientizao do povo sobre a relevncia do internacional responsabilidade dosformadores de opinio pblica, ou seja, o governo, os legisladores, a mdia e aacademia. Esse argumento legitima minha escolha de explorar rgos de imprensainternacionais e suas perspectivas sobre o Brasil, suas polticas, posturas e nelesidentificar o alcance do poder brando brasileiro. A presente pesquisa tentou analisardois elementos desse trip da formao da opinio pblica: a imprensa internacional eos responsveis pela poltica externa, os diplomatas. Por dificuldades de acesso, s amdia internacional foi estudada. Alm disso, a relevncia que Weil (2001) d ao papelda academia no processo de capitalizao pelo pas de suas vantagens e oportunidadesno mbito internacional corroboram a importncia deste estudo em administrao pblica, haja vista a escassez de material produzido na rea sobre o mbitointernacional, j argumentado nesta pesquisa.

    Nye (2004) afirmou que a cultura, os valores e a formao da agenda das polticas domstica e externa so fontes primordiais do que chamou de poder brando, que corresponde habilidade de influenciar os outros a fazer o que vocdeseja pela atrao em vez de coero. O prprio Nye (2004:89) afirma que o Brasiltem poder brando em potencial para ser explorado por sua poltica externa, devido atrao despertada por sua vibrante cultura e promessa no futuro.

    Para Abdenur (1997), h dados objetivos a serem considerados sobre aimportncia do Brasil no plano internacional. A riqueza e a diversidade da formaotnica e cultural do pas so fatores que ampliam as oportunidades de interlocuointernacional. A capacidade de dilogo com diferentes fatores reforada pelo fato dea realidade econmica e social brasileira exibir padres de primeiro mundo e tambmde subdesenvolvimento. Para ele, o Brasil um pas identificado pelos valores da paze cooperao internacional, com uma tradio de convivncia pacfica com os vizinhos

    que encontra poucos paralelos no mundo. H tambm o privilgio de se encontrarlocalizada numa regio ausente de conflitos tnico-religiosos e com registroshistricos de atuao diplomtica marcada pela incluso.

    Abdenur (1997) acredita que o Brasil deve ter a poltica externa de suadimenso e as dificuldades e desequilbrios internos devem constituir incentivos a umaatuao externa mais firme, como forma de contribuir para a superao de taisdificuldades. Tal estratgia pode se viabilizar pela formao e explorao de

    oportunidades da agenda internacional, quando transforma temas caros aos pasesricos (tais como meio ambiente, direitos humanos, crime internacional e terrorismo)

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    em temas associados questo do desenvolvimento, por exemplo. Assim, a prioridadedos pases desenvolvidos aos novos temas fornece, de forma indireta, o impulso poltico necessrio ao tratamento dos temas do desenvolvimento.

    Esse captulo tratou de justificar a relevncia do estudo da poltica externa doBrasil e seus reflexos no cenrio domstico. Tambm foi indicada a carncia deestudos sobre o mbito internacional na rea de administrao pblica, apesar de aaplicao da poltica externa ter sido explorada por outras reas de conhecimento e porgestores pblicos no Brasil, como vai ser analisado em detalhes no captulo seguinte.

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    Captulo 2 - REFERENCIAL TERICO

    Este captulo apresenta o desenvolvimento do referencial terico para melhorcompreenso do foco da pesquisa. Este referencial envolve os principais paradigmasdas relaes internacionais, os conceitos de poder e hegemonia, autoridade elegitimidade, bem como a insero internacional do Brasil, agenda internacionalcontempornea e, finalmente o objeto de estudo da pesquisa, o conceito de poder brando.

    2.1 Paradigmas das Relaes Internacionais (RI)

    Apresento a seguir uma breve reviso dos paradigmas dominantes das RelaesInternacionais (RI) porque podem esclarecer os conceitos tericos que sero adotadosnesta pesquisa.

    Fred Halliday (1999) aponta trs elementos constitutivos das RI: o interestatal,o transnacional e o sistmico. Por essa anlise, possvel destacar trs paradigmas,que correspondem s perspectivas tericas predominantes dentro da disciplina:realismo, liberalismo e estruturalismo.

    O realismo toma como ponto de partida a busca do poder dos Estados, cujacentralidade a fora militar. Para essa corrente terica, o mundo de mltiplasoberania fonte duradoura de conflitos e guerras onde cada ator, no caso Estado- Nao, age em busca do prprio interesse nacional. Os realistas enxergam a foramilitar como instrumento de manuteno da paz e como determinante nas RI. Elesacreditam que o mecanismo central para regular o conflito o equilbrio de poder, nosmoldes como a Inglaterra tentou administrar na Europa no sculo XIX (Kissinger,

    2001), desprezando a possibilidade de uma mudana radical na dinmica do prpriosistema, como ocorreu com o surgimento da Alemanha, em 1871. Para o realismo, asociedade internacional encontra-se em um estado de natureza (inspirado na obraLeviat, de Hobbes) e carece de um governo central, ou seja, anrquica. Aqui surgeuma divergncia interna do realismo. O embaixador Ronaldo Sardenberg (1982)definiu o realismo como a corrente terica que se preocupa com a operao livre edesimpedida do poder, correspondendo a uma utopia pessimista, que deixava ao

    emprego da fora a tarefa de encontrar um equilbrio internacional e evitar o flagelo daguerra. Para Sardenberg, e outros estudiosos da estratgia militar (Defarges, 1999), a

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    concepo e uso da bomba atmica foi fundamental para que o realismo seguissecomo paradigma clssico nas relaes internacionais depois da Segunda GuerraMundial, onde a linguagem de valorizao do poder se tornou preponderante nocenrio internacional.

    Halliday (1999) afirma que a escola inglesa est inserida dentro do realismo.Esse grupo de realistas se formou na Inglaterra e Austrlia e percebeu essa ausncia degoverno central no como caos, mas como um certo tipo de sociedade em que osEstados interagiam de acordo com certas convenes, includas a diplomacia, o direitointernacional, o equilbrio de poder, o papel das grandes potncias e at a prpriaguerra. Para Martin Griffiths (2004), a escola inglesa est inserida em outra correnteterica (teoria da sociedade internacional) que se diferencia do realismo porque, apesarda ausncia de uma autoridade central, os Estados exibem padres de condutaconstitudos por restries legais e morais, o que no so adequadamentecompreendidos como uma manifestao de poltica de poder.

    Entre os acadmicos brasileiros, Gonalves (2002) tambm classifica a escolainglesa como teoria da sociedade internacional, mas tambm o identifica sob outrortulo: o racionalismo. Para Gonalves, o racionalismo nas RI representa uma proposio terica que fica a meio caminho entre as teses liberais e realistas. No plano

    analtico, os racionalistas compartilham com os liberais a tese da existncia demltiplos atores nas RI, mas concordam com os realistas que os Estados so os principais atores responsveis pela deciso de fazer a guerra, ou seja, o meiointernacional no se caracteriza somente pelo conflito, mas tambm pela cooperao e,ao contrrio de realistas e liberais, os racionalistas atribuem grande importncia aosfatores culturais nas RI. No plano normativo, os racionalistas consideram perfeitamente possvel os Estados alcanarem, por meio de tratados e convenes,

    certo grau de entendimento e cooperao que resulte numa considervel reduo dosconflitos internacionais.

    Barry Buzan (2002) incorpora escola inglesa o construtivismo, cujo focoest na dinmica das interaes sociais, nas normas, regras e instituies que os sereshumanos desenvolvem para estruturar suas interaes em qualquer escala. Buzanatribui uma perspectiva pluralista escola inglesa, que est subdividida em trstpicos: a) o sistema internacional, com abordagem mais realista, concentrada no

    poder poltico estadocntrico; b) na sociedade mundial, com caractersticas globalistas,com elementos transnacionais e atores no-estatais; e c) a sociedade internacional,

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    com inspirao construtivista baseada nas regras, normas e instituies criadas paramediar relaes entre os Estados.

    O liberalismo no nega a importncia dos Estados como atores do sistemainternacional, mas destaca as foras transnacionais, ou seja, as interaes econmicas,sociais, culturais e tcnicas entre as sociedades nacionais. O liberalismo segue a lgicada interdependncia com uma viso mais relevante da cooperao no sistemainternacional. De acordo com Gonalves (2002), a origem do liberalismo est no pensamento iluminista do sculo XVIII, apresentando uma dimenso analtica e outranormativa porque, alm de pretender mostrar como a realidade , pretende mostrarcomo ela deve ser. Nas dcadas de 1920 e 1930, o liberalismo foi menosprezado comouma forma utpica ou idealista de interpretar as RI, por isso que muitos tericosusam o termo idealismo, simbolizado na figura do presidente dos EUA WoodrowWilson, para se referir a essa corrente terica. Com o fim da Guerra Fria e o colapsoda URSS, o liberalismo no mais marginalizado, dando margem a novas correntestericas, como a Economia Poltica Internacional. Para Sardenberg (1982), o idealismotinha como nfase a evoluo do direito internacional e o estabelecimento demecanismos internacionais de conciliao de interesses, correspondendo uma utopiaotimista que buscava construir uma legalidade internacional capaz de construir

    instituies supranacionais e, no devido tempo, o estabelecimento de um governomundial.

    O estruturalismo apresenta uma viso marxista das relaes sociais, porquedivide o mundo entre os que tm e os que no tm acesso a bens materiais, explorandoo conceito de centro-periferia e sendo uma expresso do funcionamento e da evoluodo sistema capitalista internacional. Os estruturalistas revelam as relaes assimtricas predominantes em RI e manifestam a explorao e dependncia da periferia

    subdesenvolvida. Os principais atores desse paradigma so os Estados, as empresastransnacionais e as organizaes internacionais, como o Fundo MonetrioInternacional (FMI), a Organizao das Naes Unidas (ONU) e o Banco Mundial,entre outras. Um representante brasileiro dessa corrente terica o embaixadorSamuel Pinheiro Guimares, que no livro Quinhentos Anos de Periferia (2002)mostra toda a estratgia de dominao do que chamou de estruturas hegemnicas para perpetuar sua concentrao de poder (econmico, militar, tecnolgico e cultural)

    excluindo os pases perifricos ou em desenvolvimento, como o Brasil.

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    As Relaes Internacionais surgiram como disciplina acadmica depois daPrimeira Guerra Mundial, se difundindo nos principais vencedores do conflito:Inglaterra e Estados Unidos. A preocupao inicial era evitar novos conflitos, uma vezque o equilbrio de poder, fundado em Westflia (1648), falhou em garantir uma pazdurvel dando incio guerra em 1914. O presidente americano Woodrow Wilsonacreditava ser possvel um novo modo de pensar as relaes internacionais mediante aadoo de cinco princpios e nove medidas objetivas contidas num documento quelevou o seu nome: os 14 pontos de Wilson. Em sntese, ele propunha a democracia, olivre-comrcio, o desarmamento, o respeito auto-determinao dos povos e ao direitointernacional, ou seja, um mundo regulado por regras e leis para manuteno da paz.Como Halliday afirma (1999), se RI tivesse uma disciplina me, ela seria o direitointernacional. O liberalismo exerceu grande influncia sobre o pensamento e ao poltico-diplomtica at os anos 1930, quando estourou a Segunda Guerra Mundial(1939), dando incio a uma duradoura hegemonia do realismo dentro de RI, nummundo em constante tenso devido Guerra Fria. O colapso da URSS trouxecredibilidade a outras perspectivas tericas em RI, inclusive ao liberalismo.

    Essa variedade de paradigmas influencia muito na argumentao e no estudode como funciona a ordem mundial, suas relaes de dependncia, alm da

    instrumentao e manifestao de dominao e poder entre os pases, como veremos aseguir com os conceitos de poder e hegemonia.

    2.2 Poder e Hegemonia no Sistema Internacional

    Como definiu Robert Dahl (2001), o conceito de poder envolve a habilidade para conseguir que outra pessoa faa alguma coisa que, de outra forma, no seria feita.

    Esta uma definio muito semelhante a utilizada pelos expoentes da escola realistaquando se referem ao poder no contexto internacional. Morgenthau (2003) o definecomo a capacidade de cada Estado de influenciar ou obrigar os demais a agirem dedeterminada maneira, ou a deixarem de faz-lo. Aron (2002) afirma que o poder nacena internacional corresponde capacidade de uma unidade poltica impor suavontade s outras unidades.

    Para o embaixador Sardenberg (1982) tais definies escondem equvocos e

    defasagens de contexto. Equvocos porque se referem ao poder como uma capacidadenacional e o ignora enquanto relao caracterstica da vida internacional e defasada

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    porque nessa definio e pelo perodo em que foram publicados (as verses originaisso de 1948 e 1962 respectivamente), se referem ao poder como um dadoincontrastvel da realidade internacional, caracterstica dos primrdios da Guerra Fria, perodo em que os Estados Unidos detinham hegemonia mundial devido ao monoplioda bomba nuclear e da superioridade econmico-financeira. Entretanto, Sardenbergafirma que o diferencial de poder pode ser a importncia diplomtica-estratgica que permite pases pequenos, pobres e fracos derrotarem pases maiores, mais ricos e maisfortes.

    Seguindo esse raciocnio, Aron (2002) define a distino entre poder ofensivo e poder defensivo. Poder ofensivo a capacidade de uma unidade poltica de impor suavontade sobre as demais e sua capacidade de no deixar que a vontade alheia lhe sejaimposta. Para Aron, no domnio diplomtico, o poder defensivo consiste em umEstado salvaguardar sua autonomia, manter seu prprio estilo de vida, no aceitar quesuas leis internas ou aes externas sejam subordinadas aos desejos de outros pases.Os Estados considerados pequenas potncias geralmente s exercem o poderdefensivo, procurando sobreviver como centros de decises livres. As naeschamadas de grandes potncias desejam a capacidade de atuar sobre outras unidades polticas, convenc-las ou constrang-las, buscando a iniciativa de fazer alianas e

    liderar coalizes. Para Aron, um Estado que esteja no que definiu de primeira posiohierrquica que faz uso apenas do poder defensivo, adota uma postura isolacionista,o que para o pensador francs, nem sempre recomendvel. Tal afirmativa est deacordo e pode ser encarado como uma justificativa para a postura agressiva do generalCharles de Gaulle para ascender a Frana a uma posio de primeira potncia.

    Para Sardenberg (1982), o poder internacional no s visvel em crisesabertas, quando a violncia se torna o modo dominante de comunicao. O poder

    internacional pode ser medido tambm pela capacidade de destruir, infligir danos oude evit-los. Edward Carr (2001), um realista clssico, descreveu o poder internacionalem trs categorias: o militar, o econmico e o poder sobre a opinio12. Essa definio parecida com a de poder brando, cunhada por Joseph Nye, explorada nessa pesquisa.H o poder mais visvel, como a ostentao militar e a robustez econmica, e o podermenos visvel que o de convencimento, persuaso, atrao e de influenciar a opinio

    12 Inicialmente o livroThe Twenty Years Crisis: 1919-1939: An Introduction to the Stdy of International Relations foi publicado em 1964. Adoto na bibliografia a traduo publicada em 2001 pela editora da

    Universidade de Braslia.

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    dos outros a fazer o que voc deseja. Entretanto, esse poder de convencimento noexplcito, definido como poder brando, no tem um sentido manipulador emaquiavlico que outros autores realistas de relaes internacionais, como Kissinger(1998), atribuem opinio pblica como fator de poder poltico. Acredito que anatureza do poder brando est em mais harmonia com aquela defendida por Weil(2001) sobre a opinio pblica na formao da agenda da poltica internacional. Faoessa reflexo apesar de Nye, Carr e Kissinger terem origem acadmica no mesmo paradigma de relaes internacionais: o realismo e o estudo da seguranainternacional.

    H outras diversas formas de definir o poder, como a de Aron (2002), na qualo poder tem um trinmio sinttico espao, populao e recursos, sejam eles naturais oueconmicos. Esse trinmio apenas um exemplo, haja vista que, recentemente,acadmicos tm estudado a composio de vrias vertentes num conjunto definidocomo hegemonia (Arrighi, 2000; Kennedy, 2000; Keohane, 1984; Kindleberg, 1996; Nye, 1991, 2002; Todd, 2003; Wallerstein, 2004). Os requisitos que definemhegemonia mudam de autor para autor, que enfocam ora o aspecto militar (Kennedy,2000), ora o econmico (Arrighi, 1996; Kindleberg, 1996), ora o poltico, cultural etecnolgico (Nye, 2002) e ora todos juntos (Guimares, 2002; Keohane, 1984; Todd,

    2003).Halliday (2001) um especialista nos estudos sobre revolues e procura

    identificar se elas so possveis e como elas ocorrem. Nesse contexto, ele define anatureza do poder no cenrio internacional mediante trs formas: o militar, oeconmico e o cultural ou ideolgico. Ele defende que, tradicionalmente, o poderinternacional era manifestado pela fora militar. Entretanto, Halliday afirma que elanunca foi suficiente e se sustentava em dois pilares: a fora econmica e a coeso

    poltica. E apesar de a fora militar ser a mais importante demonstrao de poder, elano era em si a motivao principal para o interesse de expanso do Estado, o queremete discusso sobre predomnio territorialista ou capitalista vigente na Europaentre os sculos XV e XIX. Halliday acredita que, com o advento das armas nucleares,a ocorrncia de guerras entre Estados se tornou menos provvel, o que fragmentou ainfluncia militar na trade de poder, onde a tecnologia fortaleceu os outros pilareseconmico e cultural. Argumento semelhante ao de Igncio Ramonet (2003), que

    afirma que a supremacia militar no se traduz mais, como no sculo XIX e primeirametade do sculo XX, por conquistas territoriais. Para Ramonet, as operaes militares

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    se tornaram, a longo prazo, politicamente impossveis de administrar, financeiramentedispendiosas e desastrosas diante da opinio pblica, confirmando a mdia como atorestratgico de primeira grandeza na poltica externa e domstica. A avaliao dosocilogo francs foi anterior invaso americana no Iraque, em maro de 2003, e semostrou verdadeira13.

    Ramonet (2003) tambm afirma que os principais protagonistas do sistemainternacional e, conseqentemente, os que detm o poder mudaram. O Poder passoudo mbito poltico (concentrao nos Estados Nacionais) para o controle de mercadofinanceiro, grupos planetrios de mdia, as infovias da comunicao, as indstrias deinformtica e as tecnologias genticas. Resumindo, os principais atores, na opinio deRamonet, so: a) associaes de Estados, como Unio Europia, Mercosul e aAssociao Econmica das Naes do Sudeste Asitico (Asean); b) as empresasglobais e os grandes grupos de mdia ou de finanas; e c) as organizaes no-governamentais. Para ele, os conceitos geopolticos mudaram (Estado, poder,soberania, independncia, democracia e fronteira) influenciando a relao entredominantes e dominados no sistema mundial. Ramonet afirma que existe um duplotriunvirato que detm os comandos do planeta e age como uma espcie de poderexecutivo global. No plano geopoltico lideram Estados Unidos, Inglaterra e Frana. E

    no plano econmico, as trs maiores economias do mundo: Estados Unidos, Japo eAlemanha.

    Ramonet (2003) aponta outra transformao nas fontes de poder. Antigamente,os trs fatores principais eram: a) tamanho do territrio; b) importncia demogrfica,ou seja, tamanho da populao; e c) riqueza de matrias-primas. No contextogeopoltico atual eles no representam mais trunfos. Pelo contrrio, representam pesadas e onerosas desvantagens na era ps-industrial, na qual a nova riqueza est na

    capacidade intelectual, que promove o saber, a pesquisa e a habilidade de inovar, e nomais na produo de matrias-primas. Para ilustrar seu argumento, Ramonet apontaEstados extensos, com grande populao e ricos em recursos naturais que esto em posio de desvantagem na distribuio de poder, como Rssia, ndia, China, Brasil,

    13 Um ms depois do incio dos combates, o presidente George W. Bush declarou o fim da guerra e a vitriaamericana no Golfo Prsico. Nesse perodo morreram cerca de 300 soldados americanos. Um ano depois, no perodo ps-guerra, mais de mil soldados morreram. A ocupao ps-guerra se tornou um dos temas principaisdas eleies presidenciais nos EUA, sendo alvo de crticas contra Bush. Redes de televiso americana fizerammea culpa por terem feito uma cobertura dos conflitos sem os questionamentos que o exerccio jornalsticoexige.

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    Indonsia, Mxico e Nigria. A exceo, reconhecida pelo prprio Ramonet, so osEstados Unidos.

    Strange (1996) fez uma relevante contribuio terica discusso sobre asfontes de poder quando definiu os quatro pilares do poder estrutural, transformando aEconomia Poltica Internacional (EPI) em uma corrente de pensamento independentedo realismo na teoria das relaes internacionais. Strange afirmou que as fronteirasterritoriais no mais coincidiam com a extenso da autoridade poltica sobre aeconomia e sociedade, onde ocorreu uma difuso de poder entre autoridades estatais eno-estatais na economia mundial. Ela foi incorporando atores no-estatais em sua proposta terica, medida que identificou o crescente declnio do poder e autoridadedo Estado e a dificuldade de ele exercer as funes bsicas de lei, ordem, defesa,moeda, justia e bem-estar social. Em contraposio ao poder relacional, com forteteor de influncia, Strange props a alternativa do poder estrutural, que seriainfluenciada indiretamente pelos atores no-estatais, que tem quatro pilares desustentao: a) a segurana, nica fonte de poder que fica exclusivamente nas mos doEstado-Nao; b) financeira, na qual o crdito ganha relevncia em detrimento situao econmica (riqueza); c) produtiva, onde se assemelha ao estruturalismo pordestacar nessa questo as desigualdades do sistema internacional, onde quem tem e

    quem no tem acesso a fatores produtivos; e d) conhecimento, que define o poder deinfluenciar as idias dos outros.

    O socilogo italiano Giovanni Arrighi (2000) afirma que quatro hegemoniasmoldaram a economia capitalista mundial nos ltimos seiscentos anos: Gnova (dosculo XV ao incio do XVII), Holanda (do fim do sculo XVI at a maior parte doXVIII), Inglaterra (da segunda metade do sculo XVIII ao incio do XX) e os EstadosUnidos (de 1870 at os dias atuais). Arrighi identificou quatro perodos que chamou de

    sculos longos, nos quais cada hegemonia liderou um processo mundial deacumulao de capital, correspondendo a uma unidade temporal maior que cem anos.O estudo do socilogo italiano mostra a centralizao de redes de produo, comrcioe poder sob cada uma das quatro hegemonias, onde ocorreram fases de expansomaterial precedendo fase de expanso financeira, ambas formando um ciclo sistmicode acumulao.

    Nas primeiras fases de cada ciclo, o capital coloca em movimento uma massa

    crescente de produtos, inclusive fora de trabalho e bens naturais, transformados emmercadorias, enquanto nas fases seguintes esse mesmo capital busca libertar-se de sua

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    forma mercadoria, prosseguindo a acumulao, cada vez maior, por meio demecanismos financeiros. nesse perodo que ocorre, segundo Arrighi, o deslocamentodo comando da economia mundial na direo de um novo centro hegemnico. Taisciclos sistmicos definem a criao, consolidao e desintegrao de sucessivosregimes que conciliaram as lgicas de poder territorialista e capitalista14. Arrighi faz oalerta de que o sistema mundial no pode expandir-se indefinidamente e que aturbulncia deste fim de sculo pode estar produzindo no uma nova reorganizao domoderno sistema de poder em bases mais amplas, mas sua metamorfose num sistemaque revitaliza alguns aspectos de dominao do comeo da modernidade, ou mesmo pr-modernos.

    O economista americano Charles Kindleberg (1996) tambm estuda ahegemonia sob a perspectiva econmica e descreve quatro perodos hegemnicos nocapitalismo industrial: a) Inglaterra; b) perodo de indefinio hegemnica, queocorreu entre guerras (defende o argumento de que necessrio uma lideranahegemnica para promover a estabilizao); c) Estados Unidos, cuja primeira etapaesteve sob o desafio sovitico; e d) Estados Unidos depois da Guerra Fria, em queexerceu, nas palavras de Kindleberg, uma hegemonia nua e crua. Kindleberg apontaque, na primeira etapa da hegemonia americana, Washington teve que ceder

    concesses como o desenvolvimento a convite, feito Coria do Sul, Taiwan eMalsia, por exemplo, para evitar a atrao e influncia comunista. O interessantedesse argumento que se assemelha a de outros acadmicos brasileiros, comoTheotonio dos Santos (2000) e Samuel Pinheiro Guimares (2002) de que uma dasrazes de o Brasil no ter atingido um desenvolvimento econmico do patamar dosTigres Asiticos de no estar envolvido no tabuleiro geopoltico da Guerra Fria e,conseqentemente, no ter recebido financiamentos externos em condies favorveis

    dos Estados Unidos.Consolidando sua tica econmica, Kindleberg afirma que a potncia

    hegemnica deve regular o comrcio internacional e destaca cinco predicados quedefiniu necessrias para uma boa hegemonia: a) manter os mercados abertos nascrises; b) sincronizar as polticas econmicas; c) estabelecer a manuteno de umsistema cambial; d) ser emprestador de ltimo recurso; e e) ser um estabilizador

    14 Desde o perodo do absolutismo monrquico e as Cidades-Estado italianas h esse conflito, de que se deve primeiro expandir as riquezas econmicas, capitalistas, para financiar exrcitos na expanso territorial ou oinverso, as conquistas militares e a conseqente expanso de territrios permitem uma maior explorao derecursos que resultam num sensvel ganho capitalista (Arrighi, 2000).

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    contra-cclico. De acordo com tais caractersticas, somente a Inglaterra, no sculoXIX, foi uma boa hegemonia. Para Kindleberg, o capitalismo e o Estado-Nao soirmos siameses porque o surgimento do Estado-Nao, em 1648 na Paz de Westflia,est associado estruturao do capitalismo que, por ser dinmico, instvel e,conseqentemente, sujeito crises. Essa a explicao simplista para crises deautoridade e legitimidade do Estado.

    Kennedy (2000)15 fez um levantamento minucioso sobre a ascenso e quedadas grandes potncias desde o sculo XV e um fato indito de sua obra foi reunirdados que mostram a fora militar de cada potncia em ascenso ou que lutava pelamanuteno do poder, seja em nmero de soldados, de canhes, fragatas ou munies.

    Guimares (2002) mostra a estratgia que levou ao poder o que chamou decentros hegemnicos, mostrando que a atual posio e insero internacional dosEstados Unidos no um acaso ou fruto do Destino Manifesto16, mas sim oresultado de um planejamento com diversos fatores de concentrao de poder:

    a) o fator tecnolgico, onde a Guerra Fria ajudou a promoverlegislaes e regimes que dificultaram a difuso do conhecimentocientfico, devido natureza dual da tecnologia (militar e civil);

    b) econmico, no qual o capital se sente atrado para as regies commelhor infra-estrutura de transportes e de comunicaes, commelhores servios pblicos, inclusive de segurana, com mo-de-obra mais treinada e qualificada, com nvel de renda e capacidadede consumo mais elevados e que sejam mais estveis politicamente;

    c) poltico, com a expanso dos poderes do Conselho de Segurana daONU (como dever de ingerncia em casos humanitrios e at meio

    ambiente) e de agncias onde o voto ponderado, com peso maior para os estados centrais, como FMI, BIRD e OMC;

    d) militar, fortalecido pela concentrao de poder cientfico etecnolgico, a restrio difuso de tecnologias militares por meiode acordos especficos, sanes aos pases que os infringem e

    15 Inicialmente o livro Rise and Fall of Great Powers foi publicado em 1986. Adoto na bibliografia a traduo publicada em 2000 pela editora Campus.16 O Destino Manifesto foi um documento apresentado pelos Estados Unidos justificando que eles so o pasescolhido por Deus para liderar o mundo e um dos argumentos o privilegiado posicionamento geogrfico, porser cercado por dois oceanos (Atlntico e Pacfico) e dois vizinhos fracos militarmente (Mxico e Canad)(Pecequilo, 2003).

  • 7/22/2019 A APLICAO DO CONCEITO DE PODER BRANDO (SOFT POWER) NA

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    arcabouo jurdico da ONU permitiu concentrao do podermilitar;

    e) o fator ideolgico, haja vista que as novas tecnologias deinformao e das telecomunicaes redundaram em uma enormeexpanso da capacidade de acesso das informaes e da produoaudiovisual geradas nos EUA, acentuada pela facilidade emaprender o idioma ingls, transformada em lngua universal, e nadifuso de programas de intercmbio universitrio.

    Independente das definies de poder, uma das formas usadas para ilustrar suadistribuio a Balana de Poder, ou equilbrio de poder. Sardenberg (1982) afirmaque a Balana de Poder o que existe de mais clssico na teoria das relaesinternacionais, cuja utilizao data da emergncia das cidades-estado italianas, duranteo renascimento. Esse instrumento foi muito exercido tambm pela Inglaterra durantesua hegemonia no sculo XIX e consistia na interveno dos pases europeus numconflito particular sempre ao lado do Estado mais fraco. A Balana do Poder pretendiaevitar a emergncia de estados forte que contestassem a distribuio de poderexistente. Para Aron (2002), a idia do equilbrio de poder existia pela rejeio da

    possibilidade de um governo mundial e pela pluralidade de atores. E acrescenta que adiplomacia do equilbrio no era um produto de escolha deliberada, mas decircunstncias. Circunstncias essas que oscilavam e freqentemente atingiam Franae Alemanha, os dois Estados que almejavam status de potncia continental da Europa.

    Para Nye (2002), a expresso equilbrio de poder