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2/10/15 A arte da dúvida file:///C:/Users/GEVIDA/Documents/A arte da dúvida.htm 1/4 A arte da dúvida Quando se trata de pensamento, poucas pessoas se entregam mais do que os filósofos. Segundo Aristóteles, a razão distingue os homens dos animais. Platão dizia que só atingimos a virtude por meio do uso da razão. Já para Tomás de Aquino, a razão está para o homem como Deus está para o universo. Também Sócrates, pouco antes de ser condenado à morte pelos atenienses empedernidos, traduziu a sua crença de que uma vida privada de exame racional não vale a pena ser vivida. Falar de “razão” e não citar René Descartes, o pai da filosofia moderna, é impossível. Foi ele quem mais valorizou a razão, criando, a partir de conclusões, Cogito ergo Sun, o sistema filosófico mais usado em toda a história da filosofia, porém só sistematizado e ordenado a partir da modernidade por Descartes: O Cartesianismo. Por ele, outros filósofos renomados elevaram a razão tema predileto e favorito para o desencadeamento e desenvolvimento de suas doutrinas. Emanuel Kant, a meu ver, foi o principal desses filósofos que, usando as bases do Cartesianismo e do Cogito, idealizou a fenomenologia, que fora desenvolvida e sistematizada, mais tarde, por Martin Heidegger e Edmund Husserl. Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, há 50 anos, publicaram um célebre livro, Dialética do Esclarecimento*, onde procuram, de maneira exemplar, o desenvolvimento de uma crítica mais abrangente do próprio conceito de razão. O fio condutor do texto é a exposição das contradições inerentes ao conceito de esclarecimento e a reflexão sobre seus desdobramentos históricos. O objetivo do Esclarecimento sempre foi o de “livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores”. No confronto primordial com a natureza ameaçadora, o Esclarecimento deu início ao desencadeamento do mundo, buscando assegurar, pelo uso da razão, a conservação da espécie. Isso tudo não quer dizer que os filósofos sejam os únicos a pensar. Sempre estamos envolvidos em processos mentais muito semelhantes aos que ocupam os filósofos. Estamos, constantemente, procurando entender, procurando explicações e atribuindo causas. Porém, os filósofos quando se ocupam desses processos, o fazem com um extremo rigor dos critérios que utilizam antes de aceitar a verdade de qualquer coisa. Quando a filosofia surgiu na Grécia antiga, opunha-se à fonte tradicional de explicações do mundo – a religião popular.

A Arte Da Dúvida

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Um livro exelente sobre a literatura filosofica actual sobre a mente do ser humano.

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A arte da dúvida

Quando se trata de pensamento, poucas pessoas se entregam mais do

que os filósofos.

Segundo Aristóteles, a razão distingue os homens dos animais.

Platão dizia que só atingimos a virtude por meio do uso da razão.

Já para Tomás de Aquino, a razão está para o homem como Deus está

para o universo.

Também Sócrates, pouco antes de ser condenado à morte pelos

atenienses empedernidos, traduziu a sua crença de que uma vida privada

de exame racional não vale a pena ser vivida.

Falar de “razão” e não citar René Descartes, o pai da filosofia moderna, é

impossível. Foi ele quem mais valorizou a razão, criando, a partir de

conclusões, Cogito ergo Sun, o sistema filosófico mais usado em toda a

história da filosofia, porém só sistematizado e ordenado a partir da

modernidade por Descartes: O Cartesianismo. Por ele, outros filósofos

renomados elevaram a razão tema predileto e favorito para o

desencadeamento e desenvolvimento de suas doutrinas.

Emanuel Kant, a meu ver, foi o principal desses filósofos que, usando as

bases do Cartesianismo e do Cogito, idealizou a fenomenologia, que fora

desenvolvida e sistematizada, mais tarde, por Martin Heidegger e Edmund

Husserl.

Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, há 50 anos, publicaram um célebre

livro, Dialética do Esclarecimento*, onde procuram, de maneira exemplar, o

desenvolvimento de uma crítica mais abrangente do próprio conceito de

razão. O fio condutor do texto é a exposição das contradições inerentes

ao conceito de esclarecimento e a reflexão sobre seus desdobramentos

históricos. O objetivo do Esclarecimento sempre foi o de “livrar os homens

do medo e investi-los na posição de senhores”.

No confronto primordial com a natureza ameaçadora, o Esclarecimento deu

início ao desencadeamento do mundo, buscando assegurar, pelo uso da

razão, a conservação da espécie.

Isso tudo não quer dizer que os filósofos sejam os únicos a pensar.

Sempre estamos envolvidos em processos mentais muito semelhantes aos

que ocupam os filósofos. Estamos, constantemente, procurando entender,

procurando explicações e atribuindo causas. Porém, os filósofos quando se

ocupam desses processos, o fazem com um extremo rigor dos critérios que

utilizam antes de aceitar a verdade de qualquer coisa.

Quando a filosofia surgiu na Grécia antiga, opunha-se à fonte tradicional

de explicações do mundo – a religião popular.

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Enquanto ditavam as pessoas o que deviam crer, a religião não lhes

oferecia razões logicamente fundamentadas para tanto. As opiniões viviam

à custa da confiança – uma forma irracional, ao menos aos olhos dos

filósofos, para quem não podia haver pecado maior do que a crença

irrefletida na sabedoria tradicional.

Isso leva a uma conseqüência: a sensação de sabermos muito menos do

que imaginávamos saber – ponto de partida da sabedoria filosófica, a

menos na visão de Sócrates, o maior questionador da história da filosofia.

Sócrates passou a vida propondo a si mesmo questões básicas para as

quais seus concidadãos petulantes pensavam já ter as respostas –

questões como “que é virtude?”, “como devemos viver”? e “que é

sabedoria?”.

Mas ele não se contentava em questionar, ele se preocupava antes de

tudo em definir caminhos para chegar respostas válidas. Para Sócrates as

pessoas pensavam de modo confuso porque lhes faltava um método de

pensar: como não começam a discussão por um consenso sobre o uso dos

termos, o resultado natural é que, conforme avançam caem em

contradições e mal-entendidos.

Ao passo que o pensamento filosófico voltava-se para a construção de

argumentos a partir dos fundamentos mais sólidos e buscava inspiração na

geometria.

Admirava-se a geometria por sua capacidade de transitar de uns poucos

axiomas básicos à dedução de verdades mais abrangentes. A lógica

filosófica teve seu pioneiro em Aristóteles, que foi o primeiro a usar letras

no domínio do pensamento formal – como, por exemplo, na fórmula lógica

segunda a qual, se A é predicado de todo e qualquer B, e B de todo e

qualquer C, então necessariamente A é predicado de todo e qualquer C. A

lógica testa a pretensão de verdade de enunciados como “todos os

brasileiros são mortais”, decompondo-o em dois enunciados mais simples –

“todos os brasileiros são seres humanos” e “todos os seres humanos são

mortais”” – e recompondo a conclusão – “todos os brasileiros são mortais”

-, que pode não ser surpreendente, mas ao menos ilustra o funcionamento

do método filosófico em seu nível mais básico.

Talvez seja melhor definir a filosofia menos a partir dos seus temas do que

a partir do método de investigação lógica, do seu modo de pensar: lógico,

silogístico e axiomático.

Muitas áreas da ciência que se tornaram disciplinas independentes

começaram como ramos da filosofia: até o século passado, os cursos

universitários de física eram chamados de “filosofia natural”. Não obstante,

no curso de sua longa história, houve cinco áreas em que se concentrou a

atenção dos praticantes da filosofia: epistemologia, ética, teoria política,

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estética e filosofia da religião.

Foi provavelmente o primeiro desses ramos que mais afastou pessoas da

filosofia. Esperando encontrar certo número de sugestões úteis sobre

como viver, estudantes de primeiro ano dão de encontro com um curso de

epistemologia, o ramo da filosofia que lida com a Teoria do Conhecimento.

Uma de suas questões-chave é a fonte de nossos conhecimentos. Os

racionalistas (como Platão e Descartes) argumentam que idéias intrínsecas

à mente humana são as únicas fontes do conhecimento, enquanto os

empiristas (Locke e Hume) afirmam que os sentidos são a fonte primária

das nossas idéias e do nosso conhecimento. Essa ordem de preocupações

pode parecer abstrata, em especial quando o debate se concentra na

natureza da linguagem (a linguagem nos oferece uma imagem correta do

mundo, qual a relação entre palavras e coisas?), mas a epistemologia

permanece como centro vital de toda a empresa filosófica.

Pois antes que possamos nos perguntar como devemos viver, a

epistemologia cabeça-dura insiste em investigar antes de tudo como a

linguagem nos permite formular tais questões. È para a ética que devemos

nos voltar se quisermos auxílio em nossas preocupações mais cotidianas.

Todas as escolas de filosofia na Grécia na Roma helenística – ou seja, os

epicuristas, os céticos e os estóicos – acreditavam que a filosofia devia

tratar dos problemas mais penosos da existência humana – a morte, o

amor, a sexualidade e o ódio.

Epicuro dizia ser inútil qualquer argumento filosófico que não trate

terapeuticamente o sofrimento humano. Pois, assim como de nada serve a

medicina senão expulsar a doença do corpo, do mesmo modo é inútil a

filosofia que não expulsar o sofrimento da mente.

Diante de alguém preocupado com a morte, o epicurista decerto

decomporia o problema em suas partes constituintes e argumentaria que

só devemos temer o que nos causa dor. Uma vez mortos, não temos que

temer a dor ou o prazer; logo, não a razão lógica para temer a morte. O

homem que verdadeiramente compreendeu que não há nada de terrível em

cessar de viver não tem mais nada de terrível a temer – concluía Epicuro.

Sendo assim, fala tolamente quem diz temer a morte, pois esta não causa

dor quando finalmente sobrevêm; tão-somente sua antevisão pode causar

dor.

Examinando os argumentos filosóficos para uma vida conforme a razão, há

que mencionar uma importante contracorrente da filosofia ocidental, que

argumenta contra a razão e exalta a fé ou o instinto. Longe de nos ajudar

a resolver problemas, a razão é apontada como causa maior deles. Santo

Agostinho escreveu com desdém sobre as teorias com as quais os homens

tentaram alcançar a felicidade em meio à miséria desta vida – e

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aconselhava a submissão à vontade divina. E, ao rejeitar as pretensões do

Iluminismo, Rousseau afirmaria que o pensamento corrompe nossos

instintos naturais e positivos: ele imaginou um filósofo que, ao

testemunhar da sua janela um assassinato na rua, não precisaria de muito

raciocínio para evitar que sua natureza se identificasse com a vítima

infeliz.

Estamos longe da fé socrática numa vida racional, sendo que a única

ironia está em que este chamado a desconfiar dos filósofos parte de mais

filósofo!

Se o pensamento é a ferramenta básica da filosofia, temos ainda que

examinar quais usos os vários filósofos destinam a ela. Portanto, a

condição fundamental do ser humano é o pensamento, ou seja, todo

mundo pensa, mas como? Qual método seguir? O que é apenas outra

maneira de perguntar: Como, afinal, devemos viver? Qual é a boa vida?

Onde está a virtude?

Vamos usar, mais uma vez o método cartesiano. A Dúvida metódica.

*Dialética do Esclarecimento – Fragmentos filosóficos – Theodor W.

Adorno e Max

Horkheimer. Trad. Guido A. de Almeida. Jorge Zahar Editor.

Por Osmar Maciel