A Dúvida de Cézanne.pdf

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    A DVIDA DE CZANNEEram -lh e necessrias cem sesses de trabalho para uma natureza mrta ,cento e c inqenta de pose para um retrato. O que chamamos sua obra para ele eraapenas a tentativa e a abordagem de sua pintura. Escreve em setembro de 1906,com 67 anos, um ms antes de morrer: Eu me achava num tal es tado de distr- .bios cerebrais, num distrbio to g r a n d ~ que te'mi, por um momento, que minha

    frgi l razo no r e s i Agora parece que estou melhor e que penso maiscorretam ente na orientao de meus estudos. Chegarei ao fim to procurado e portanto tem po persergu ido? Estudo se mpre a natureza e parece que fao lentosprogressos . A pintura foi seu mundo e sua maneira de exi stir. Trabalha i n h osem aluno s, sem admirao por parte da famlia, sem incentivo por parte da crti ca. Pinta ~ a tarde do dia em que a me morreu. Em 1870, piI1:ta na Estaqueenquanto os agentes o procur avam como refratrio. E, no entanto, acontece- lh eduvidar desta vocao. Envelhecendo, indaga se a novidade de sua pintura noprovinha de um distrbio visua l, se toda a sua vida no se fundam entou em umacidente do corpo. A este esforo e a esta d vida respondem as incertezas e astolices dos contemporneos. P intura de lavador de latrinas bbedo , disse umcritico em 1905. Ainda hoje, C. Mauclair argumenta contra Czanne valendo-sede suas confisses de impotncia. Enquanto isso, seus quadros se espalh am pelomundo. Por que tanta incerteza, tanto labor, tantos fracassos e, subitamente, omaior sucessQ?Zo la, que era amigo de Czanne desde a infncia, foi o primeiro a encontrar-lhe gnio e o primeiro a falar dele como um gnio abortado . Um espectadorda vida de Czanne, como era Zola, mai s atento ao seu carter que ao sentido desua pintura, por isso pde trat-la como uma manifestao doentia._ Poi s dese 1852, em Aix , quando ingressou no Colgio Bourbon, Czanneinquietava os colegas por sua s cleras e depresses. Sete anos mais tarde, decidido a se tornar pintor, duvida de seu talento e no ousa pedir ao pai, chapeleiro,depois banqueiro, que o envie a Paris. As cartas de Zola censuram-Ihe 'a instabili dade, a fraqueza e a indeciso. Chega a Pari s, mas escreve: No fao mais doque mudar de Il:lgar e o tdio me persegue . No tolera a discusso, porque estao cansa e por nunca saber argumentar. No fundo , seu carter an sioso. Aos quarenta e dois anos, pensa que morrer jovem e executa seu testamento. Aos qua renta e seis, durante seis meses, atravessa u ~ a paixo ~ r d e n t e ato rm en tada ,acabrunhante, cujo de senlace no conhecido e do qual no fa lar nunca. Aoscinqenta e um, retira-se para Aix, p a r ~ encontrar a natureza que convm melh or a seu gnio, mas tambm um retorno ao ambient e de sua infncia, me e----.J.,irm. Morta a me, apoiar-se- sobre O filho. A vida assusta , costumava dizer .

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    MERLEAU-PONTYA religio, que se pe a praticar ento , principia para ele pelo medo da vida e oda morte. o medo , explica a um amigo, sinto-me ainda por quatro dias sob rea terra; e depois? Acredito que sobreviverei e no quero me arriscar a arder naeternum Se bem que se tenha aprofundado depois, o motivo inicial de sua religio a necessid ade de fixar a vida e de se demitir dela. Torna-se cada vez maistmido, desconfiado e suscetvel. Vem algumas veze s a Paris, ma s ' quando encontra amigos, faz -lhes sinal de longe para no abord-lo. Em 1903 , quando seusquadros comeam a se vender em Paris duas vezes mais caros que os de Monel,quando jovens como Joachim Gasquet e mile Bernard vm v-lo e interrog-lo.d scontrai-se um pouco. Mas as cleras persistem. Uma criana de Aix, passandopor perto, o machuca , a partir da no pode mai s suportar um cantata. Um dia,na velhice, tendo tropeado, mile Bernard o segurou com a mo. Czanne ficoucolrico. Podia-se ouvi-10 andar a passos largos em seu atelier gritando que nose deixaria cair na convivncia", ainda por causa da convivncia" que afastava do atelier as mulheres que lhe poderiam servir de modelos, do convvio ospadres que achava " pegajosos", da cogitao as teo rias de mile Bernard quandose faziam muito opressivas.Esta perda de contatas flexveis com os homens, esta incapacidade de so lucionar situaes novas, esta fuga nos hbitos, num meio que no coloca problema s, est oposio rgida da teoria e da prtica, da convivncia" e de uma liberdade de so litrio, todos estes sintomas permitem falar de uma constituiomrbida e, por exemplo , como a propsito de EI Greco, de uma esquizidia. Aidia de urna pintura "direto da natureza" teria vindo a Czanne da mesma fra queza. A ateno extrema natureza, cor, o carter inumano de sua pintura(dizia que se deve pintar um rosto como um objeto), a devoo pelo mundo visvelseriam apenas uma fuga do mundo humano, a alienao de sua humanidade.Estas conjeturas no fornecem o sentido positivo da obra, no se pode concluir sem mais que sua pintura seja um fenmeno de decadncia, e, como dizNietzsche, de ida "empobrecida", ou ainda que no tivesse nada a ensinar parao homem realizado . proyavelmente por ter dado muita importncia "psicologia, ao conhecimento pessoal de Czanne, que Zola e mile Bernard acreditaramem seu fracasso. Permanece vivel que, por ocasio dos distrbios nervosos; Czanne tenh concebido uma forma de arte vlida para todos. Entregue a si mesmo ,pde olhar a natureza como s um homem sabe faz-lo. O sentido de sua obra nopode ser determinado por sua vida.No o conheceraf 1os melhor pela histria da arte, isto reportando-nos sinfluncias (a dos italianos e de Tinloretto, de Delacroix, de Courbet e dos impressionistas), aos procedimentos de Czanne ou at a seu prprio depoimento sobresua pintura.Os primeiros quadros at 1870 so sonhos pintados, um Rapto, um Assassnio. Origina-se de sentimentos e querem provocar primeiro os sentimentos. Soento quase sempre pintados com grandes traos e do antes a fi sionomia mor"aldo s gestos que seu aspecto visvel. graas aos impressionistas. especia lmente 'Pissarro, que Czanne concebeu em seguida a pintura no como a encarnao de

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    A DVID DE CZ NNE 5cenas imaginadas, a extroverso de sonhos, mas como o estudo preciso dasaparncias, menos um trabalho de atelier que um trabalho na nature_a, e queabandonou a [atura barroca, que procura prim iro restituir o movimento atravsde pequenos toques justapostos e de pacientes hachuras.

    Mas logo se separou dos impressionistas. O.impressionismo queria restituirna pintura a prpria maneira pela qual os objetos atingem a viso e atacam ossentidos. Representava-os na atmosfera em que a percepo instantnea no-los d.sem contornos absolutos, ligados entre si pela luz e pelo ar. Para restituir essenvlucro luminoso, era preciso exclu ir os terras os Deres , os negros e utilizar apenas as sete cores do prisma. Para representar a cor dos objetos, no bastava trazerpara a tela seu tom local, isto a cor que tomam quando isolados do que osenvolve, era preciso dar conta dos fenmenos de contraste que na natureza modificam as cores loca is. Alm disso, cada cor que vemos na natureza provoca, poruma espcie de repercu sso, a viso da cor complementar, e estas complementaresse exaltam. Para obter sobre o quadro, que ser visto luz tnue dos apartamentos, o prprio aspecto das cores sob o sol, preciso ento traar no somente umverde, se se trata de grama, mas ainda o vermelho complementar que O farvibrar. Enfim, o prprio tom local decomposto pelos impressionistas. Pode-seem geral obter cada cor justapondo, ao invs de misturar, as cores componentes,o que 'd um tom mai s vibrante. Resultava destes procedimentos que a tela, queno era mais comparvel natureza ponto por ponto, restabelecia pela ao daspartes umas sobre as outras, uma verdade geral da impresso, Porm a pintura daatmosfera e a diviso dos tons submergiam ao mesmo tempo o objeto e faziamdesaparecer sua densidade caracterstica. A composio da palheta de Czanned a presumir que visa a outro fim: h no as sete cores do prisma, mas dezoito,seis vermelhos, cinco amarelos, trs azuis, trs verdes, um negro. O uso das coresquentes e do negro mostra que Czanne quer representar o objeto, reencontr-loatrs da atmosfera. Do mesma modo, renuncia diviso do tom e a substituipelas misturas graduadas, por um desenrolar de matizes cromticos sobre o objeto, pela modulao c o l o ~ i d que segue forma e luz recebida. A supresso do scontornos precisos em certos casos, a prioridade da cor sobre o desenho no teroevidentemente o mesmo sentido em Czanne e no impressionismo. O objeto nofica m i ~ coberto de reflexos, perdido em seu intercmbio com o ar e com os outros objetos. como que iluminado surdamente do iriterior, emana a luz e dissoresulta uma impresso de solidez e materialidade. Czanne, outrossim, no renun cia a fazer vibrar as cores quentes obtm esta sensao colorante pelo empregodo azul.Seria ento preciso dizer que quis voltar ao objeto sem abandonar a estticaimpressionista, que toma o modelo na natureza. m ile Bernard lembrava-lhe queum quadro, para os clssicos, ex ige circunscrio pelos contornos, composio edistribuio das luzes. Czanne responde: E les faziam quadros e n s tentamosum pedao de natureza" . Diz, dos mestres que "substituam a realidade pelaimaginao e pela abstrao que a acompanha", e, da natureza, que preciscurvar-se ante esta obra perfeita. Dela tudo nos vem, por ela existimos, esquece-

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    116 MERLEA U-PONTYmos todo o resto . Declara ter querido fazer do impressionismo a lgo de slidocomo a arte dos museus . Sua pintura seria um paradoxo: procurar a rea lidadesem abandonar as sensaes, sem ter outro guia seno a natureza na impressoimediata, sem delimitar 0 contornos, sem enquadrar a cor pelo desenho, semcompor a perspectiva ou o quadro. A isso chama Bernard o suicdio de Czanne:visa realidade e se probe os meios de atingi-la. Re sidiria ni sso a razo de suasdificuldades e tambm da s deformaes que se encontram sobretudo entre 1870 e1890. Os pratos ou as taas colocadas de perfil sobre uma me sa deveriam ser elipses mas os dois extremos da elipse so exagerados e dilatados. A mesa de trabalho, no retrato de Gustave GefTroy, ~ l o n g a s e pela parte inferior do quadro contraas leis da perspectiva. Deixando de lado o desenh o, Czanne ter-se-ia entregadoaos caos das sen saes. Ora, as sensaes fari am soobrar os objetos e sug eririamconstantemente iluses, como acontece algumas vezes - por exemplo, a ilu so deum movimento dos objetos quando mexemos a cabea - e o juzo no parassede ' aprumar as .aparncias . Czanne teria, disse Bernard, dissipado a pinturana ignorncia e seu esprito nas trevas .Em realidade, s se pode assim julgar sua pintura esquecendo-se metade doque disse e fechando os olhos ao que pintou.Em seus dilogos com mile Bernard, torna-se bvio que Czanne procurasempre escapar s alternativas prontas que se lhe propem: a dos sentidos ou dainteligncia, do pintor que v e do pintor que pensa, da natureza e da composio,d primitivismo e da tradio. preciso fazer ulT\a ptica prpria , diz, mas entendo por ptica uma viso lgica , isto , sem nada de absurdo. Trata-se denossa natureza? , p e q ~ u n t a Bernard. Czanne re sponde: Trata-se das duas . - A natureza e a arte no so diferentes? - Gostaria de uni-Ias. A arte umaapercepo pessoal. Coloco esta apercepo na sensao e peo intelignci aorganiz-Ia em obra . At mesmo estas frmulas do muita importncia snoes comuns de sensibilidade ou sensao e de inte ligncia , e por issoCzanne no pode persuadir e gosta mais de pintar. Ao invs de aplicar suaobra dicotomias, que alis pertenciam mais s tradies de escola que aos funda dores - filsofos ou pintores - destas tradies, mais valeria mostrar-se dcilao sentido prprio de sua pintura qu e qu estion-las Czanne no acha que deveescolher entre a sensao e o pensamento, ass im como entre o caos e a ordem.No quer separar as coisas fixas qu e nos aparecem ao olhar de sua maneira fugazde aparecer, quer pintar a matria ao tomar forma, a ordem nascendo por umaorganizao espontnea, Para ele a linha divisria no est entre os sentidos ea inteligncia , mas a ordem espontnea das coisas percebidas e a ordemhu mana das idias e das c incias. Percc.bemos coisas, entendemo-nos a seu respeito, nelas ancoramos e sobre es te pedes'tal de natureza que construiremos cincia. mundo primordial que Czanne quer pintar e eis por que seus quadrosdo a impresso da natureza sua origem, enquanto que as fotografias das mesmas paisagens sugerem os trabalhos dos homens, suas comod idades, sua presena iminente. Czanne nunca quis pintar como um animal , mas reco loca ra inteligncia, as idias, as cincias, a perspectiva, a trad i o em cont ato com

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    A DVIDA DE CZANNE 11 7o mundo natural que es to destin adas a compreender, confrontar com a nat ureza,como disse, as cincias que dela vieram,As pesquisas de Czanne na perspectiva 'descobrem' por sua fidelidade aosfenmeno s o que a psicologia recente deveria formular. A perspectiva vivida, a denossa percepo, no a perspectiva geomtrica ou fotogrfica: na perce.po, osobjetos prx imos parecem menores os distantes maiores, o que no sucede numafotografia, co mo se v no cin ema quando um trem se aproxima e cresce muitomais depressa que um trem real na s mesmas condies. Dizer que um crculovisto obliquamente torn a-se uma elipse substituir a percepo efetiva pelo esquema do que deveramos ver se f ssemos aparelhos fotogrficos: de fato, vemos umaforma que oscila em torno da elip se sem s r uma elipse. Num retrato de Mme. C vzanne o fri so da tapearia, do s dois lados do corpo no faz uma linha reta: sabese, porm, que a linha ao passar sob uma ampla tira de papel, as duas sees visveis parecem de slocadas, Estende-se a me sa de G ustave Gelfroy pela parteinferior da tela, mas, quando o olho percorre uma extensa superfcie, as imagen sque obtm de cada vez so tomadas de diferentes pontos de vista e a superfcietota l resulta abaulada. ve rdade que, transpor tando para a tela estas deformaes. congelo-as. interrompo o movimento espontneo pelo qual acumulam-seumas sobre as outras na percepo e tendem para a perspectiva geomtrica. oque 'acontece tambm em relao s co res. Ro sa sobre papel.cinza colore de verdeo fundo. A pintura de escola pinta o fundo de cinza, contando com que o quadro,assim comO objeto real, produza o efeito do contraste. A pintura impress ionistape verde no fundo para obter um contraste to vivo quanto o dos objetos ao arlivre. No falsearia assim o intercmbio dos ton s? Falsearia s ficasse a . prprio do pintor , entretanto, consiste em fazer com que todas as outras cores doquadro convenientemente modificadas pelo verde posto so bre o fundo tirem seucarter de cor real. Assim tambm o gnio de Czanne consiste em fazer com queas deformaes de perspectiva, pela disposio de conjunto do quadro deixem deser visveis por si mesm as na viso global e contribuam apenas como ocorre naviso natural, pa ra dar impresso de uma ordem nascente de um objeto quesurge a se aglomerar sob o olhar. O contorno dos objetos, igualm ente, concebidocomo um a linha que os delimita, no pertence ao mundo visve l mas geometria.Ao se o contorno de uma ma , faz-se dela uma coisa e no entanto no seno o limite ideal em direo ao qual os lados da ma correm em profundidade. No marcar nenhum contorno se ria tirar a identid ade dos objetos. Marcarapenas um seria sacr ificar a profundidade, isto , a dimenso que nos d a coisa,no es tirada diante de ns, mas repleta de reservas, realidade inesgotve l. porisso que Czanne vai seguir por uma modulao colorida a intumescncia do objeto e marcar em traos azui s vrios contornos. O o lh ar danando de um a outrocapta um con torno nascendo entre todos eles como na percepo. No h nadamenos arbitrrio que estas clebres deformaes, que Czanne alis, abandonarem seu ltimo perodo, a partir de 1890, quando no mais vai preencher sua telade cores e deixar a fatura cerrada das naturezas mortas.

    O desenho deve ento resul ta r da cor, se se qu er que o mundo seja restitudo

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    118 MERLEAU-PONTYem su es pessura , pois um a massa sem lacunas, um organismo de cores, atravsdas quais a fuga da perspectiva, os contornos, as retas, as curvas in stalam-secomo linhas de fora , pois vibrando que a rbita do espao se constitui. O de senho e a cor no so mais distintos, pintando, desenha-se; mais a cor se harmoniza,mais o desenho se precisa Rea lizada a cor em sua riqueza, atinge a formasua plenitude. Czanne no proc ura sugerir pela cor as sensaes tteis quedariam a forma e a profundidade. Na percepo primordi al, estas di stines dotato e da viso so desconhecidas. Com a cincia do corpo humano aprendemosdepois a d istinguir os sentidos. A coisa vivida no reenco ntrada ou construdaa pa: lir dos dados dos sentidos, mas de pronto se oferece como o centro de ondese irradiam. Vemos a profundidade 6 aveludado, a maciez , a dureza dos objetos- Czanne dizia mesmo: seu odor. Se o pintor qu er exprimir o mundo, precisoque a composio das cores traga em si este Todo indivisvel; de outra maneira,sua pintura ser urna aluso s coisas e no as mostrar numa unidade imperiosa,na presena, na plenitude insupervel que para todos n s a definio do real.Por este motivo cada toque dado deve s'atisfazer a uma infinidade de condies,por esta razo meditava Czanne s vezes por uma hora antes de o executar;deve, como diz Bernard, conter o ar, a luz, o objeto, o plano, o carter, o desenho, o e,stilo . A expresso do que existe uma tarefa infinita.

    No menos negligenciou Czann 'e a fisionomia dos objetos e dos rostos, queria somente capt-la quando emerge da cor. Pintar um rosto como um objetono despoj-lo do que traz pensado . Acho qu .e o pintor o interpreta , diz Czanne, o pintor no imbeciL Ma s esta interpretao no deve ser pensadaseparadamente da vi so. Se pintar todos os pequenos azuis e todos os pequenosmarrons , fao-o olhar como ele olha Ao diabo se du vidarem como, casandoum verde matizado com um vermelho, entristece-se uma boca ou faz-se sorrir umaface. O esprito v-se e l-se nos olhares, que so apenas conjuntos co loridos. Os.outros espritos s se oferecem a ns encarnados, aderentes a um rosto e a gestos.De nada adiantaria aqui opor as distines da alma e do corpo, do pensamentoe da viso, j que Czanne se volta justamente para a experincia primordialde onde estas noes se extraem e onde se apresentam inseparveis. O pintorque pensa e que procura a expresso comea por fa ltar ao mi strio da apariode algum na natureza, renovado a cada vez qu e o olhamos, Balzac descreve.em Pele de Onagr uma toa lha branca como uma camada de neve recente-mente cada e da qual ascendem simetricamente os talheres coroados por pez inhos dourados . Durante minha juventude , diz Czann e quis pintar isto , estatoalha de neve fresca Sei agora que no preciso pintar seno: 'ascendemsimetricamente os talheres', e: 'pezinhos dourados'. Se eu pintar 'coroados', estou frito, entendem? E se verdadeiramente equilibrar e matizar meu s talh eres epes co mo a natureza, estejam seguros de que as co res , a neve e todo o tremorestaro a.

    Vivemos em meio aos objetos construdos pelos homen s, entre uten slios,casas, ruas, cid ades e na maior parte do tempo os vemos atravs das aeshumanas de que podem ser os pontos de aplicaes. Habituamo-nos a pensa r que

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    A DVIDA DE CZANNEtudo isto existe necessa riamente c inabalvel. A pintura de Czanne suspe.ndeestes hbitos e revela o fundo de natureza inumana sobre o qual se instala ohomem. Eis por que suas personagens so estr anhas e co mo que vistas por um serde outra espcie. A prpria natureza est despojada dos atributos que a preparampara co munhes animi stas: a paisagem aparece sem vento , a gua do lago de An necy sem mov im ento, os objetos transidos hesitando como na or igem da terra. um .m undo sem familiaridade , onde no se est bem, que impede toda efusohumana. Se formo s ver outros pintores partindo dos quadros de Czann e, umadescontrao se produz, como aps o lu to as conversas reatadas mascaram estanov id ade absoluta e aos vivos restitui -lhes a so lidez. S um homem, contudo, capaz ju stam ente desta viso qu e va i at as razes, aqum da hum anidade constituda. Tudo indica que os animais no sabem olhar ap rofundar-se nas coisas,nada esperando de las seno a verdade. Dizendo que o pintor das realidades um smio , m ile Bernard diz ento exatamente o contrrio do qu e verd icoe entende-se como Czann e podia retomar a defin io clssica da arte: o homemac rescentado natureza.Sua pintura no nega a cincia e no nega a tradio. Em Paris, Czanne iadiariamente ao Louvre. Pensava que se aprende a pintar, que o estudo geomtricodos pl nos e das formas flecessrio. lnform ava-se sobre a estrutura geolgicadas paisagens. Estas rela.es abstratas deveriam operar no ato do pintor, masregul adas com o mundo visvel. Ao dar um toque, a anatom ia e o desenho estopresentes, como as regras do jogo numa partida de tnis. O que motiva um gestodo pintor no pode residir unicamente na per spectiva ou na geometria , em leis dadecomposio das co res ou em qualquer outro conhecimento. Para todos os gestos que pouco a pouco fazem um quadro s h um mot ivo, a paisagem em suato talidade e em sua plenitude absoluta - a que Czanne justamente chamavamotivo . Comeava por descob ri r as bases geolgicas. No mais se moviadepois, e, o lhos dilatados, contemplava, relatava Mme. Czanne. Ele germinavacom a pai sagem. Tratava-se, esq uecid a toda a cincia, de recuperar por meio destas cincias a constituio da paisagem como organismo nascente. Era necess rioligar umas s outras todas as vistas parciais que o olhar tomava, reunir o que sedispersa pela versatilidade dos o lhos, assoc iar as mos errantes da natu reza , dizGasq uet.\ H um minuto do mundo qu e passa, preciso pint-lo em sua real\dade , Perfazia-se a meditao num lance. Sustenho meu motivo , dizia Czanne,e expl icava que a paisagem deve ser circunscrita nem muiLO a lta, nem muito

    : baixa, ou a inda trazida viva num a rede que nada deixa passar. Atacava ento seuquad ro por todos os lados ao mesmo tempo, cercava de manchas color id as o primeiro trao de ca rvo, o esque leto geolgico. A imagem saturava-se, g a v a ~ s edesenhava-se, equ ilibrava-se, tudo ao mesmo tempo se maturava. A paisagem,diz ia, se pensa em mim e sou sua conscincia. Nada est mais distante do naturali smo que esta cincia ~ A arte no uma imitao, nem , por outro lado,um a fabricao segundo os vo tos do in stinto e do bom goSlO. um a operao de~ o Assim co mo a palavra nomeia, isto , apreende em sua natureza e co loca ante ns a ttulo de objeto reconhecvel o que aparecia confusamente, o pintor ,

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    A DVID DE CZ NNE 2cuo . Antes da expresso , exi ste apenas uma febre vaga e s a obra feita ecompreendida poder provar qu e se deveria ter detectado ali antes alguma coisado qu e nada. Por ter-se voltado para tomar con scincia disso no fundo de experincia muda e solitria sobre que se con stri a cultura e a troca de idias , o artista lana sua obra como O homem lanou a primeira palavra, sem saber se passar de grito , se ser capaz de destacar-se do fluxo de vida individual onde nasce epresentificar , seja a es ta mesma vida em seu futuro , seja s mnadas que con s igocoexi stem, seja comunidade aberta da s mnadas futuras, a exi stncia independente de um sentido identifi cve l. O sentido do que vai di zer o arti sta no s t emnenhum lugar, nem na s coisas, que ainda no so sentido, nem nele mesmo , emsua vida informulada. Invoca a passagem da razo j fe ita , em que se fecham os

    homen s culti vado s , a uma razo que abr angeria sua s prprias o rigens. QuandoBernard qui s cham-lo inteligncia humana , Czanne respondeu: Inclino-me intelignc ia do Paler Omnipotells . Inclina-se em todo o caso para a idia ou parao projeto de um Logos infinito. A incerteza e a solido de Cz anne no se expli cam , no essencial , por sua constituio 'nervosa, mas pela inteno de sua obra.Dera -lhe a hereditariedade sen saes ricas, emoes arrebatadora s um vago sentimento de angstia ou de mi strio que desorganizavam sua vida voluntria eseparava m-no dos homens; estes dons porm s cheg am obra pelo ato de expresso e nada participam das dificuldades'como das vi rtudes deste ato. As dificuldades de Czanne so as da primeira fala. Achou-se impotente porque no eraonipolenle, porque no era Deus e queria, conludo, pinlar o mundo, convertlointegra lm ente em espetc ulo , fa ze r ver como nos a Uma nova teoria f sicapode se provar porque a idia ou o sentido es t ligado pel o clculo a medidas quepertence m a um domnio j comum a todos o s homens. Um pintor como Czanne,um arti sta , um fil sofo devem no somente criar e exprimir uma idia, mas aindadespertar as experincias que a vo enraizar em outras con sc incias. Se a obra bem sucedida , tem o estranho poder de tr ansmitir-se por s i. Seguindo as indicaes do quadro ou do livro, tecendo compa raes, tateando de um lado e de outro ,conduzido pela confusa ,clareza de um estilo, o leitor ou o espectador acaba po rreencontrar o que se lhe quis comunicar. O pintor s pode construir uma imagem. prec iso esperar que esta imagem se anime para os outros. Ento a obra de arteter jun,ado estas vidas separadas, no mais unicam ente existir numa deJascorno sonho tenaz ou delr io persistente, ou no es pao qu al tela co lorida, vindo a'indivisa habitar vrios espritos em todo, prcsumiye lmente, esprito possve lcomo uma aqulslao para sempre.Ass im , as hereditari edades , as influncias - os acidentes de Czanne- so o texto que, de sua parte, a natureza e a hi stria lh e doaram para decifrar.Propo rcion aram apena s o sentido literal da obra. As criaes do artista , comoalis as decises livres do hom em, impe m a este dado um sentido figurado queantes delas no existia. Se nos parece qu e a vida de Czann e trazia em germ e s uaobra, porque conhecemos s ua obra antes e vemos atravs delas as circunstn ciasda vid a, carregando-as de um sentido que to mamos obra. O s dados de Czannequ e enum eramos e de que falamo s co mo condies prem ent es , se devessem figura r

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    1 MERLEAU -PONTYno tecido de projetas qu e era, s o poderiam propondo-se lhe como O que tinha aviver, deixando indeterminada a maneira de o viver. Tema de incio obrigatrio ,eles so, recolocados na existncia que os envolve, apenas monograma e emblemade uma vida que se interpreta a si mesma livremente.

    Compreendamos bem, todavia, esta liberdade. Evitemos imaginar algumafora abstrata que superpusesse 'seus efeitos aos dado s da vida ou escandisse odesenvolvimento. certo que a vida no explica a obra, porm certo tambmque se comunicam. A verdade que esta obra f zer exigia esta vida Desde o in c io , a vida de Czanne s encontrava equilbrio apoiando-se na obra ainda futura ,er1. seu projeto e a obra nela se anunciava por signos premonitrios que errara mos se os considerssemos causas, mas que fazem da obra e da vida uma nicaaventura. Aqui no h mais causas ou efeitos, unem-se na simultaneidade de umC zanne eterno que a frmula ao mesmo tempo do que quis ser e do que quisfazer. H um intercmbio entre a constituio esquizide e a obra de Czanneporque a obra revela um sentido metafisico da doena - a esquizidia comoreduo do mundo totalidade das aparncias estticas e suspenso dos valoresexpressivos - , porque a doena no mais , pois, um fato absurdo e um destinopara se tornar uma possibilidade geral da existncia humana, quando enfrenta demaneira conseqente um de seus paradoxos, o fenmeno da expresso, e j queneste sentido, enfim, no h diferena entre ser Czanne ou esquizide: Logo. noseria possvel separar a liberdade criadora dos comportamentos menos deliberados que despontavam j nos primeiros gestos de Czanne criana e na maneirapela qual as coisas o atingiam. O sentido que Czanne em seus quadros dar sco isas e aos rostos propunha-se -Ihe no prprio mundo que lhe aparecia, nada maisfez que o liberar, so as prprias coisas e os prprios rostos tais quais via que pediam para assim serem pintados e Czanne no disse mais do que queriam dizer.Mas ento onde est a liberdade? Verdade que condies de existncia s podemdeterminar uma conscincia po r intermdio das razes de ser e da s justificaesque a si mesma se d , que s podemos ver diante de ns e sob O aspecto de finso que nos , de tal modo que no ssa vida toma sempre a forma do projeto ou daesco lh a e assim nos parece espontnea. Mas dizer que acima de tudo SOmos odesgnio de um futuro implica d izer que nosso projeto est j designado com no s-.sas primeiras maneiras de ser, que a escolha eSlj feita em nosso primeiro sopro. ;.. Se nada constrangedo exterior porque somos todos nosso exterior. Este Cz e eterno que vemos surgir primeira vista, que atraiu sobre o homemzanne os acontecimentos e as influncias que cremos exteriores a ele e desenhavatudo o que lhe ocorria, esta atitude para com os homens e o mundo que no forade liberada, livre qu anto s causas externas, ser ia livre quanto a si mesma? Noseria a escolha recuada para aqum da vida e haveria escolha onde no h aindaum campo de possveis claramente articulado, mas um nico provvel, e comoque uma nica tentao? Se desde o nascimento sou projeto , impossvel di stinguirem mim o dado e o criado, impossvel portanto designar um s gesto que no sejasen o hereditrio ou inato e que no seja espontneo, mas tambm um s gestoqu e seja absolutamente novo em relao a esta maneira de estar no mundo que me

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    desde o incio. o me smo di zer qu e nossa vida inteiramente construda ouinteir amente dada. Se h um a verdadeira liberdade, s pode existir no percurso davida, pela superao da situ ao de partida e sem que deixemos, contudo, de sero mesmo - eis o problema. Duas co isas so certas a respeito da liberdade: quenunca somos determinados e que no mudamos nunca, que, retrospectivamente,poderemos sempre encontrar em nosso passado o prenncio do que nos tornamos.Cabe-nos entender as duas coisas ao mesmo tempo e como a liberdade irrompeem ns sem romper nossos elos com o mundo.Sempre h elos, mesmo e sobretudo qu ando nos recusamos a admiti-los.Descreveu Valry a partir dos quaqros de Leonardo um mon stro de liberdadepura, sem amantes, credor, anedotas, aventuras. Sonho algum encobre-lhe as prprias coisas, subentendido algum traz-lhe certezas e no l seu destino em algumaim agem fav orita como o abismo de P ascal. No lutou contra os monstros, descobriu seus mecani smo s, desarmou-os pela ateno e os reduziu co ndio de coisas conhecid as. Nada mais livre, ou seja, nada menos humano que seus juzossobre o amor, a morte. Faz-no s pressenti -los em alguns fragmentos de seus cadernos . O am or em se u furor d iz mai s o u menos) algo to feio que a raa humanase extinguiria - la natura si perdereb.be se os que o fazem se vissem. Diversosesboos acusa m este desprezo, porm o c mulo do desprezo por certas coisas consiste enfim em examin-las vontade. Desenha, pois, c e l unies anatmicas,cortes pavorosos de pl eno amor ,l denomina seus meios, faz o que quer, passa vontade do co nh ecim ento vida com uma elegncia super ior. Nada fez o nde nosoubesse o que fa zia e a operao da ar te como o ato de re spirar ou de viver noultrapassa seu conhecimento. Encontrou a atitude central a partir da qual igualmente possvel conhecer, agir e criar, porque a ao e a vida, to rnadas exerccios, no so contrrias ao des interesse do entendimento. E um poder intelectu al ,o homem do esprito .Consideremos melhor. No h revelao para Leonardo. Nem abismo aberto sua direita, diz Valry. Sem dvida. Mas h em ' Santa Alia. a Virgem e aCriana este manto da Virgem que desenha um abutre e termina no rosto daCriana. H um fragmento sobre o vo dos pssaros onde Leonardo subitamentese interrompe para ' seguir uma recordao de infncia: Parece que fui destinad.oa o u p r ~ especialmente do abutre, pois uma de minhas primeiras recordaesde infncia qu e, estando eu no bero, veio um abutre a mim, abr iu -me a bocacom sua cauda e por vrias vezes com a cauda tocou-me entre os lbios . 2 Assimat esta conscincia transparen te tem seu enigma, verdadei ra recordao de infncia ou fantasma da idade madura. Ela no partia do nad a, no se alimentava desi prpria. Eis-no s metidos numa hi stria secreta e numa floresta de smbo los. SeFreud quer decifrar o enigma partindo dejelfalio e sua translao ao tempo delactncia. sem d vida que se protesta r. Ma s pelo me nos um fato que os egpc ios faziam do abutre o smbolo da maternidade, porque, acreditavam, todos os

    I11roduclion la Mlho e de onard de Vinci, Variet, pg. 185.Z Freud , Un SOllvenir d Enfance de Lonard de Villci, pg. 65.

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    124 MERLEAU-PONTYabutres so fmeas e so fecundados pelo vento. tambm um fato que os Doutore s da Igreja se serviam desta lenda para refutar pela hi stria natural os que noqueriam acreditar na maternidade de uma virgem e provvel que, em sua s leit uras infinitas, Leonardo tenha se deparado com esta lenda. Ni sso via o smbolo desua prpria sorte. Era filho natural de um ri co notrio que des posou, no mesmoano de seu na scimento, a nobre senh ora Albiere de quem no teve filho e recolheucm seu lar Leonardo, ento com cinco anos de idade. Seus quatro primeiros anosento passou-os Leonardo com a me, a camponesa abandonada. Foi uma criana sem pai e aprendeu o mundo tendo por nica companhia esta imponentemam e infeliz que parecia t -lo miraculosamente criado. Se lembrarmos agoraque no se sa be de nenhuma aman.te ou mesmo p'aixo sua, que foi acusado desodom ia, mas absolvido, que seu dirio, mudo sobre muitas outras despesas maisonerosas, meticulosamente anota os custos para o enterro de sua me, mas tam bm as despesas de vesturio para dois de seus alunos, no mudaremos mu ito asco isas por dizer que Leonardo amou apenas uma nica mulher, sua me, e queeste amor s de ixou lugar para ternuras platnicas pelos jovens que o acompanhavam. Nos quatro anos decisivos de sua infncia, estabelecera uma ligao fundamentai qua l teve de renunciar quando foi chamado casa do pai e na qua l investiu todos os seus recursos de amor e todo seu poder de entrega. Sua sede de viver,raltava-lhe apenas empreg-Ia na inves tigao e na cognio do mundo, e desdeque dela o haviam separado, precisava tornar-se es te poder intelectual, estehomem de espri to, este estrange ir o entre os homens, este in diferente, incapaz deindignao, de amor ou dio im ediatos que deixava inacabados seus quadrospara dedicar seu tempo a ex per incias esqui sitas, em que seus contem po rneospressentir am um mistrio. Tudo se passa como se Leonardo nunca tivesse completamente amadurecido, corno se todos os lu gares de seu corao hou vessem sidopreviamente oc upados, como se o esprito de in vestigao ti vesse sido para ele ummeio de escapar vida, como se houvesse permanecido at o fim fiel suacia. Brincava como uma criana . Vasari conta que confeccionou uma pas ta decera, e enqu anto passeaya, com ela formava animais muito delicados, ocos epreenchidos de ar soprando, voavam, saindo o ar, voltavam terra. Tendo encontrado o vinheleiro de Belvedere um la garto assaz curioso, moldou-lh e Leonardo asasas com a pele t irada de outros lagartos, e n c h e u ~ de me rc rio , de so rte que seagitavam e freniam ao se mover o lagarto, da mesma forma l h e tambmolhos, uma barba e cornos, domesticou-o, c o o c o u o em uma caixa e assustavacom este laga rto todos os seus amigos .3 Abandonava suas obras in acabadas,assim como seu pai o abandonara. Ignorava a autoridade e em matria de conhecimento, confiava apenas na natureza e em seu ju zo, como amide procedem osque no foram criados na intimidao e no poder protelar do pai . Ass im sendo ,esta capacidade de di scernir, esta solido, es ta curios idade que definem o espritovie ram-lhe ao contato de sua hi stria. No apogeu da liberdade , por isto mesmo,a criana qu e foi , est liberto de um lado ex atam ente porq ue ligado al hu res. Tor-J Un SaliveI ir d Enfallce e Lonar de Vinci, pg. 189

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    nar-se uma co nsc incia pura a ind a um a maneira de tomar posio em re laoao mundo e aos ou tros e esta man eira Leona rdo aprendeu-a assumindo a situaoque encontrou feita por seu nascimento e infnc ia. No h consc incia que noseja modul ada por seu engajamento primo rdial na vida e pelo modo desteengajamento .O que pode haver de arbitrrio nas explic es de Freud no autorizariadesacreditar aq ui a intuio psi n ltica Por m ais de um a vez, o leitor interrom pido pela insuficincia das provas. Por qu e isto e no outra co isa? A questoparece se impor tanto mais que Freud muitas vezes d vrias interpre taes. Ficabem claro, enfim, que uma doutrina que faz intervir a sexualidade por toda parteno poderia, segundo as regras da lgica indutiva, determinar-lhe a eficcia emlugar algum , uma vez que se pri va de todo co nfronto ao excluir de antemo todocaso diferencia l. assim qu e se triunfa sobre a psican lise mas so mente no papel.Pois as sugestes do psicana lis ta , se no podem nunca ser provadas, no podemtampouco se r e limi nadas:- como imputar ao acaso as convergnc ias complexasque o psica nl ista descobre ent re a criana e o adulto? Como negar que a psicanli se nos ensinou a perceber, de um momento a outro -de uma vida , ecos, a lu ses,repeties, um encadeamento de que no ousaramos duvidar, houvesse F reud elaboradQ o ~ m sua teo ri a? A psican lise no fcita para dar-no s, como ascinc ias da nat ureza, relaes necessrias de causa e efeito, mas pa ra nos indicarrelaes de motivao que, por princpio, so simples mente possve is No concebamos o fantasma do abut re em Leonardo , com o passado in fantil qu e recobre,como uma fora que determinasse seu futuro. Trata-se, como O va ticnio do ugure, de um smbolo ambguo que antecipadamente se apli ca em v rias linhas deacontecimentos possveis. Ma is precisamente: o nasc imento c o passado defin empara cada vida categorias o u dimenses fundamentai s que no impem nenhumato em particul ar, mas que se lem ou se podem encontrar em todos . Seja que Leonardo ceda in fncia, seja que de la queira fugir , nunca de ixar de ser o que foi.As prp rias decises que nos tran sformam so semp re tomadas face a um a situao de fato e uma situao de fa to pode bem ser ace ita ou recusada, ma s em todocaso no pode de ixar de nos proporcionar o mpeto, e de se co nstituir para ns,como situao a aceitar ou a recusar ,na enca rn ao do valor qu e lhe conferimos. Se 6 obje to da psicanlise qescrever esta perm ut a entre futuro e passado cmostrar como cada vida voga so bre enigmas cujo sentido rinal no est prioriinscrito em pa rt e a lguma, no cabe ex igir dela o rigo r induti vo. O devane io hermenutico do psicanalista , qu e mu ltiplica as com unicaes de ns para conosco,toma a sex ualidade por smbo lo da ex istncia e a ex istncia por smbo lo da sexualidade, procura o sentido do futuro no pa ssado e o do passado no f\lturo , est, melhor do que um a induo rigo rosa, adaptado ao movime nto c irc ular de nossavida , que apia o fu turo no pa ssado, o passado no futuro e onde tudo simbolizatudo . A ps ican li se no imposs ibilita a liberdade, ensi na-nos a conceb-la co ncretamente, como retomada cr iat iva de ns mes mos, a ns mesmos finalm ente sempre fiel.

    Pode-se pois ao me smo tempo d ize r que a vida de um autor nada nos reve la

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    126 MERLE U-PONTYe que se soubssemos sond-Ia nela tudo encontrar amos j que se abre em suaobra . Como observamos os movim entos de algum animal desconhec ido semcomp reender a lei que os anima e governa assim tam bm os testemu nhos de Czanne no adivinh am as transmutaes que incutem aos acontec im entos e sexper incias. permanecem cegos ante sua signi0cao. por luminescncia di fusaque o s envolve por momentos. No se situa nunca todavia em seu prprio centronove dias sobre dez v em to rno de si apenas a mis ria de sua vida emprica e de-suas tentat ivas fracassadas restos de festa incgnita . E ainda no mundo num ateia. com cores que lh e se r preciso realiza r sua liberd ade. Dos ou tros de seu

    s s n t ~ deve esperar a prova de seu va lor Por isso indaga o qu adro q ~na sce de sua mo perscruta olhares alheios pousados na tela. Eis por que nuncaacabaria de traba lh ar. No samos nunca de nossa vida. Jamais vemos a idia oua liberdedc face a face.

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