A Arte de Analisar Poeira - Murilo Seabra

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  • A arte de analisar poeira: uma rediscusso

    Murilo Seabra(1)

    "O que est no mago do comentador o remorso: Eu queria ter tido essa idia",

    era assim que comeava a srie de ataques pregadas em frente ao Departamento

    de Filosofia da Universidade de Braslia (UnB) no fim da dcada de 90 sob o ttulo

    A arte de analisar poeira: comentrios sobre comentadores por um estudante que

    at ento havia passado quase completamente desapercebido - preciso confessar,

    aquele estudante de cujos cantos da boca vertia a mais incontrolvel espuma no

    era ningum mais do que eu mesmo, que agora, poucos anos - ou talvez muitos -

    depois do acontecido - mas em todo caso insuficientes para engendrar um

    julgamento neutro - atreve-se finalmente a analis-lo sob um outro olhar.

    Sobre o que aconteceu, no resta muito a dizer, nem adiantaria dizer algo agora,

    como nunca adiantou dizer coisa alguma - mas tornou-se claro para mim depois

    que fui vtima, no mais que vtima, em primeiro, da nulidade ao qual estava

    destinado por ser um mero aluno e um aluno brasileiro, sem um nome complexo

    que suscitasse ateno e respeito, em segundo, da iluso de que as coisas

    poderiam mudar - da iluso de que a situao - o destino - era conversvel - da

    iluso de que o Departamento de Filosofia - supostamente entupido de filsofos -

    se mostraria minimamente sensvel aos meus apelos. Nada - absolutamente nada

    do que eu queria saiu da potncia ao ato, e dizer que a razo foi que se chegou a

    uma aprazvel mdia aritmtica - com concesses de ambos os lados - seria no

    mnimo insensato - mas j passou, j passou.

    O que eu queria? Que fosse instituda uma disciplina onde os estudantes seriam

    incentivados a redigir suas prprias idias - amparados pelas fartas leituras, pela

    experincia e pelo estmulo dos professores - mas a ridcula objeo de que no se

    saberia como proceder na hora da avaliao bastou para bloque-la - e tambm

    uma disciplina onde os professores exporiam e discutiriam suas prprias idias com

    os estudantes - que poderiam ganhar muito em flexibilidade e detalhamento pelas

    inflexes de crebros frescos e pouco viciados - uma sugesto que no encontrou

    apoio, como tambm suscitou um verdadeiro horror - talvez porque s dois ou trs

    professores de todo o quadro pareciam qualificados para ministr-la.

    Um deles escreveu na poca um texto chamado "Murilo's paradox". Que era: se

    todo mundo apenas escrever - se todos os filsofos se tornarem filsofos como

    Wittgenstein, com mais outputs do que inputs - chegar-se- na curiosa situao de

    no sobrar ningum para ler. O que esvaziar de sentido o prprio trabalho de

    escrever. preciso ento decepar os testculos do pai - como Cronos fez a Urano -

    para que ele cesse um pouco de procriar. O paradoxo tem o mrito de refrear as

    pretenses dogmticas e absolutistas que exalavam da forma desesperada - e

    espumante - como eu defendia as minhas idias. No entanto, no contexto geral da

    histria, no conseguiu encontrar ocasio para desempenhar sua funo - porque

    no houve nenhum excesso - na verdade, no houve nada - para que refreasse.

  • O reverso do paradoxo - que eu poderia chamar de "paradoxo de Borges" - seria:

    se todos os filsofos se tornassem de repente apenas leitores - digamos, como

    Hacker e Malcom para Wittgenstein - chegar-se-ia na situao de no haver

    material para ler. Estaramos ainda hoje comentando o que restou de Tales de

    Mileto - ou talvez, se Tales houvesse tambm seguido o dizer risca, nem a gua,

    mas apenas: o nada. Contudo, esse lado do paradoxo, o lado no qual eu insistia,

    no assustava os professores do Departamento de Filosofia - no faltam Tales,

    Plates, Aristteles, Husserls, Russells e Wittgensteins sobre os quais escrever.

    Os dois paradoxos inauguram um espao de discurso, cada um limitando-o por um

    lado: num extremo, a impossibilidade de apenas escrever, sem ler; no outro

    extremo, a impossibilidade de apenas ler, sem escrever. Se adicionarmos a esses

    dizeres um tanto circunspetos - e por isso mesmo paradoxais - as expresses 'em

    primeiro lugar', 'em segunda importncia', 'mais do que' e 'menos do que', o espao

    ganhar em complexidade - o caminho que vai de um extremo ao outro se

    alongar e o nmero de opinies possveis - de loci conceituais - em seu interior se

    alargar. Quanto mais distantes dos extremos nos colocarmos, mais nos livraremos

    das contradies que os afligem - ou melhor, mais assim parecer. Porque se no

    estivermos postos exatamente no centro - onde o discurso se equilibra, se

    neutraliza e no diz nada - estaremos apenas aumentando a complexidade do

    extremo ao qual mais nos inclinamos - com vistas a dissolver as suas -

    verdadeiramente insolveis - contradies.

    Parece-me hoje que A arte de analisar poeira no conseguiu mais do que deslocar

    os professores do Departamento de Filosofia do extremo "ler, sem escrever" para o

    locus conceitual mais prximo - dependendo do caso, para "primeiro ler, depois

    escrever" ou para "sobretudo ler, embora tambm escrever". Acreditando terem

    chegado finalmente s posies certas - s opinies verdadeiras - deram-se - no

    todos, claro - por satisfeitos - e passaram a defender, cada um seu locus, sem

    perceber que todos - ou quase todos - apontavam no mesmo sentido: para o

    extremo "ler, sem escrever". O que achavam ser a soluo era apenas a

    manuteno - sob uma forma um pouco mais sofisticada - das suas posies

    anteriores.

    Mas o que importa - o que realmente diferencia um locus conceitual do outro - o

    sentido para onde ele aponta. Todos os do lado "ler, sem escrever" no constituem

    mais do que reforos - do que apoios - ao extremo original do qual emergem. A

    questo no a de descobrir um locus que seja suficientemente complexo para

    parecer certo e sim perceber que a adoo de um locus - exceto o locus neutro,

    central - uma questo poltica: todos os loci do lado "ler, sem escrever", por mais

    sofisticados que sejam, em ltima instncia sugerem exatamente isso: ler, sem

    escrever - ou: repensar, sem pensar - ou: reproduzir, sem produzir - ou: manter,

    sem gerar - ou: desenvolver as idias dos outros, no as prprias idias - ou:

    analisar a poeira alheia, sem deixar para anlise alheia a prpria poeira.

    Bom, isso - preciso ter sempre em mente que para cada argumento h sempre

    um contra-argumento, o seu espelho, e que por mais comprometido com a

    verdade que o ocupante de um locus parea estar, sua opo sempre se revelar

  • em determinadas conseqncias prticas. O defensor de um locus um pouco mais

    complexo do que o "ler, sem escrever" est sem dvida sob o manto do perodo

    colonial - no entanto, na medida em que sua mo segura com menos

    determinao a foice de Cronos, parece seguir numa direo mais sustentvel. Que

    no - certamente - escrever, sem ler. Mas simplesmente: fazer o que der vontade -

    e gerar condies para que os outros tambm faam o que querem fazer.

    (1) Mestrando em Filosofia pela Universidade de So Paulo. E-mail:

    [email protected]