A Arte de Decidir - a Virtude Da PRUDÊNCIA

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     A ARTE DE DECIDIR: A VIRTUDE DA 

    PRUDENTIA *

    THE ART OF DECIDING: THE VIRTUE OF PRUDENTIA 

    LUIS  JEAN  LAUANDProfessor titular (Filosofia e História da Educação) na Faculdade de Educação da

    Universidade de São Paulo. Investigador do Instituto Jurídico Interdisciplinar na Faculdadede Direito da Universidade do Porto. Fundador e Diretor do CEMOrOc, Centro de Estudos

    Medievais – Oriente & Ocidente da Feusp. Diretor editorial de diversas revistasuniversitárias do CEMOrOc com universidades européias.

    Recebido para publicação em agosto de 2003.

    Não é objetivo desta conferência tratarsistematicamente da  prudentia, considera-da classicamente a principal das virtudescardeais, nem analisar exaustivamente adoutrina de Tomás de Aquino, o maiormestre que se aplicou ao tema. Tais tarefas

    são sem dúvida importantes e já foramempreendidas por especialistas, de modoadequado. O que, sim, interessa aqui éapontar um problema mais geral na fron-teira entre ética e linguagem e destacaralguns aspectos que evidenciam a atualida-de da doutrina de Tomás sobre a virtudeda  prudentia (e a memoria  e a docilitas):sua relação com a problemática de nossotempo, seu “alcance existencial”, de inte-

    resse para o jurista (tema que será desen-volvido, na seqüência, pelo Dr. Mauro deMedeiros Keller). Na verdade, a prudentia,enquanto virtude da decisão, é a própriabase da justiça e a iurisprudentia nada maisé do que a  prudentia  do ius.

    Linguagem e percepção da realidade

    O relacionamento entre pensamento elinguagem é tema básico para a compre-ensão da ética e da educação moral nasanálises que Tomás de Aquino faz das

    virtudes cardeais e da prudentia, de extre-ma importância para o homem de hoje.O pensamento e a vida estão mais

    ligados à linguagem do que à primeira vistasupomos. Para além do âmbito da meracomunicação, a força viva da palavra nãosó transmite, mas até mesmo gera e pre-serva, em interação dinâmica, o que pen-samos e sentimos, o que podemos pensare sentir.

    Sem a palavra, nossa percepção darealidade é confusa ou nem sequer chegaa ocorrer. Quando a língua viva dispõe deuma determinada palavra (e quando delanos apropriamos...) é possível a configura-ção de uma realidade que – precisamente

    _____________

    * Notas de conferência proferida na Escola Superior de Direito Constitucional em 09.05.2003.Mantivemos o tom oral da exposição.

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    pela palavra – emerge da massa informe deexperiências confusas e desconexas quevamos acumulando. Em geral, vale a regra:nossa possibilidade de “visualização” darealidade depende do léxico vivo da língua.

    E, reciprocamente, esse léxico só surgee mantém seu vigor graças ao interessevital de uma comunidade pela realidade emquestão. Para o brasileiro médio, por exem-plo, evidentemente é muito mais fácil acaptação do que ocorre numa partida defutebol (de lances geniais a sutis pressõespsicológicas) do que, digamos, no golfe.Pois o interesse vivo pelo futebol é tãointenso e estendido que dispomos de umléxico de “alta resolução”: variações em

    um determinado tipo de jogada – para asquais outras línguas mal dispõem de umnome próprio – recebem em nosso idiomadenominações precisas: “bicicleta”, “meia-bicicleta”, “puxeta” e “voleio”...! E – comona interação dialética da peça publicitária:“vende mais porque é fresquinho ou éfresquinho porque vende mais?” – é emvirtude dessa riqueza de léxico que ofutebol se mantém como realidade viva

    entre nós.Neste aspecto fundamental da educação

    moral, um dos principais pensadores con-temporâneos, Josef Pieper, ao longo de seuclássico tratado sobre as virtudes cardeais, Das Viergespann,1 insiste em que há mútuaalimentação entre a percepção e vivencia-mento da realidade moral e a existência delinguagem viva. O empobrecimento doléxico moral é, hoje, um dos mais agudos

    problemas da educação moral, na medidaem que gera um círculo, literalmente, vi-cioso: a falta de linguagem viva embota avisão e o vivenciamento da realidade moral;o definhamento da realidade esvazia (oudeforma) as palavras... Faltam-nos os con-ceitos, faltam-nos os juízos, falta-nos aces-so à realidade.

    Além disso, o relacionamento entreética e linguagem torna-se ainda maisproblemático por conta da conhecida “lei”– C. S. Lewis estuda isto brilhantementeem seu clássico Studies in words – queregistra a “inflação” semântica das palavrasque exprimem realidades morais. O pior éque não se trata só de esvaziamento daspalavras fundamentais, mas, por vezes, deautêntica inversão de polaridade: a palavraque designava uma virtude passa a designarum vício. É o que ocorreu, por exemplo,com a palavra “simples” (simplex) e coma palavra “prudência” ( prudentia). Simplex,classicamente, nada tem que ver com sim-plório e designa o homem que tem uma

    visão límpida da realidade e que não deixaa objetividade de sua consciência ser su-bornada por interesses interesseiros. Pru-dentia, classicamente, designa a arte detomar a decisão certa.

    Ora, baseados em que tomamos nossasdecisões? A arte, dizíamos, de decidir bem,reta e adequadamente, era denominadapelos antigos prudentia. Originariamente, avirtude da  prudentia  (a principal entre as

    virtudes cardeais!) não tem nada que vercom a encolhida cautela a que, hoje, cha-mamos prudência; prudentia (a legítima, averdadeira) é, pura e simplesmente, a artede decidir certo.

    Estudando o tratado  De prudentia deTomás de Aquino, deparamos uma doutrinamaravilhosa e riquíssima e, além do mais,de extrema atualidade. Encontramos, porexemplo, que a Prudentia  é uma virtude

    intelectual; seu princípio é a inteligênciareta, o olhar límpido, simples, capaz de vera realidade e, com base na realidade vista,tomar a decisão boa, para “fazer a coisacerta”.

    A inteligência da Prudentia  é umavirtude e não dotes de inteligência, diga-mos, de Q.I., porque só o homem bom

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    consegue ter a inteligência que não distorceo real (pense-se, por exemplo, na dificul-dade de ver a realidade por conta depreconceitos, inveja, egoísmo etc.).

    Virtude da inteligência, mas da inteli-

    gência do concreto: a  prudentia  não é ainteligência que versa sobre teoremas ouprincípios abstratos e genéricos, não!; elaolha para o “tabuleiro” de nossas decisõesconcretas, do “aqui e agora”, e sabe dis-cernir o “lance” certo, moralmente bom.

    Entre muitos outros pontos geniais dadoutrina clássica, destacaria inicialmenteseu critério para saber o que é bom: arealidade! Saber discernir, no emaranhado

    de mil possibilidades que esta situação meapresenta (que devo dizer a este aluno?,compro ou não compro?, devo respondera este mail? etc.), os bons meios concretosque me podem levar a um bom resultado:e, para isto, é necessário ver a realidade.

    Mas este ver a realidade é só uma parteda  prudentia; a outra parte, ainda maisdecisiva (literalmente) é transformar a re-alidade vista em decisão de ação: de nada

    adianta saber o que é bom se não há adecisão de realizar este bem...

    O nosso tempo, que se esqueceu até doverdadeiro significado da clássica  pruden-tia, atenta contra ela de diversos modos: emsua dimensão cognoscitiva (a capacidadede ver o real, por exemplo aumentando oruído – exterior e interior – que nos impedede “ouvir” o real) e em sua dimensãoprescritiva: o medo de enfrentar o peso da

    decisão, que tende a paralisar os impruden-tes (pois, insistamos, a  prudentia  tomacorajosamente a decisão boa!).

    É dessa dramática imprudência da in-decisão que tratam alguns clássicos daliteratura: de Hamlet ao “Grande Inquisi-dor” de Dostoiévski, de que trataremosmais adiante.

    A grande tentação da imprudência (sem-pre no sentido clássico) é a de delegar aoutras instâncias o peso da decisão que,para ser boa, depende só da visão darealidade. Há diversas formas dessa abdi-cação: do abuso de reuniões desnecessáriasà delegação das decisões a terapeutas,analistas e gurus, passando por toda sortede esoterismos.

    Uma das mais perigosas formas derenúncia a enfrentar a realidade (ou seja,a renúncia à  prudentia) é trocar essa finaarte de discernir o que a realidade exigenaquela situação concreta por critériosoperacionais rígidos, como num Manual de Escoteiro Moral ou, no campo do direito,num estreito legalismo à margem da Jus-tiça. É também o caso do radicalismo decertas propostas religiosas: em vez de sedar ao trabalho de discernir os casos,simplifica-se grosseiramente tudo: é peca-do e pronto!

    Certamente, há absolutos na moral (nãoexistem homicídios ou adultérios bons);refiro-me à indevida absolutização do re-lativo... O regime Taliban, por exemplo,pretendia tornar dispensável o discerni-mento de cada fiel/cidadão, por meio de umextenso e detalhado sistema de normas, quedeterminava inclusive as formas verbais deque a torcida podia se valer num jogo defutebol: ante a alegria do gol, a exclamaçãodevia ser: Al-hamdu lillah (louvor a Deus);ante uma roubada do juiz,  Allahu Akbar (“Deus é grande”) e, em qualquer caso: Allah  (o palavrão estava proibido pelo

    Ministério do Vício e da Virtude).Mesmo sem chegar a extremos como o

    da criação de um Ministério do Vício e daVirtude, a tentação é a de tornar dispensá-vel a virtude pessoal da  prudentia (e a daJustiça): deixando tudo definido e opera-cionalizado num código. Lembro-me aquidaquele sargento que comandou a operação

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    de resgate, no Parque Nacional do Itatiaia,de um amigo, alpinista de primeira esca-lada, que acabou por ficar preso numaestreita pedra, sem poder sair. O sargentodo resgate, tendo subido a uma pedraparalela e estando a uma distância de 3 ou4 metros desse meu amigo, antes de lançar-lhe a corda, tomou o megafone (desneces-sário) e, com a melhor psicologia decaserna, berrou: “Vítima, não entre empânico, vítima!” (a primeira regra do Manualde Resgate é: “Faça com que a vítima nãoentre em pânico”...).

    As partes quasi  integrais da prudência

    A definição de  prudentia – recta ratioagibilium – situa o próprio centro da vidamoral em dois âmbitos literalmente deci-sivos: o cognoscitivo e o preceptivo: trata-se de conhecer a realidade (recta ratio)concreta para tirar daí a decisão de ação(agibilium). Daí que a prudentia seja con-siderada a mãe (genitrix virtutum) e a guia(auriga virtutum) das virtudes.

    Para bem compreendermos o alcance da

    virtude da prudência, são necessários al-guns esclarecimentos conceituais.

    Santo Tomás, precisamente a propósitoda prudência, retoma, exemplificando, ostrês tipos de partes das virtudes cardeais.E diz que há partes integrais, como aparede ou o teto são partes da casa;subjetivas, como “boi” e “leão” em relaçãoao “ser animal”, e  potenciais, como adimensão nutritiva ou sensitiva em relação

    à alma (II-II, 48,1).Prossegue explicando que, no caso das

    virtudes, partes integrais2 são as que con-correm para o ato perfeito da virtude (domesmo modo que, digamos, uma casa semteto não seria uma casa completa).

    Já as partes subjetivas são as diversasespécies da virtude; a prudência pode

    voltar-se para a boa direção de si mesmoou do coletivo (neste caso, Tomás analisaas prudências militar, a doméstica e apolítica).

    As partes potenciais são virtudes adjun-tas que se dirigem a atos secundários, quenão possuem toda a virtualidade da virtudeprincipal.

    Ainda em II-II, 48, 1, Tomás enumeraas partes da prudência.

    Destacaremos aqui duas virtudes dentreas cinco partes quasi integrais da prudênciaem sua dimensão cognoscitiva: a memória(memoria) e a docilidade  (docilitas).

    As outras partes são:

    - A inteligência (intellectus), entendidanão enquanto faculdade intelectiva, nemenquanto cognoscitiva de universais, mascomo uma “outra inteligência” (alius intel-lectus),3 que conhece a outra “ponta” (extre-mi): um primeiro singular e contingenteoperável, a menor do silogismo da pruden-tia, que deve ser particular (II-II, 49,2, c e ad1). Se a memória diz respeito ao passado, ointellectus refere-se ao presente “operável”.

    - A solertia, tal como a docilitas, refere-se à aquisição de uma reta opinião. Aocontrário desta, porém, dá-se não por meiode ensinamento de outro, mas  per seinveniendo, com rápida e fácil descobertado meio (II-II, 49, 4).

    - Finalmente (II-II, 49, 5), a ratio, razão:não enquanto faculdade, mas enquanto“raciocínio” sobre os casos particulares eincertos.

    Prudência e Contingência

    Tomás nos arts. 1 a 5 (de II-II, 49) trata,em particular, de cada uma daquelas cincovirtudes – partes quasi integrais da prudên-cia em sua dimensão cognoscitiva (dasquais interessam-nos particularmente amemoria  e a docilitas). Uma constante

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    essencial, nesses artigos, é o fato de que aprudência versa sobre ações contingentes.

    Assim, no art. 1, dedicado à virtude damemoria, Tomás observa que não pode ohomem reger-se por verdades necessárias,

    mas somente pelo que acontece in pluribus(geralmente). Note-se que esta é tambéma razão da insegurança em tantas decisõeshumanas: a prudência traz consigo aqueleenfrentamento do peso da incerteza, quetende a paralisar os imprudentes.4

    Como já apontávamos, é dessa dramá-tica imprudência da indecisão que tratamalguns clássicos da literatura: do “to be ornot to be...” de  Hamlet  aos dilemas kafki-

    anos (o remorso impõe-se a qualquer de-cisão), passando pelo Grande Inquisidor deDostoiévski, que descreve “o homem es-magado sob essa carga terrível: a liberdadede escolher”5   e apresenta a massa queabdicou da prudentia e se deixa escravizar,preferindo “até mesmo a morte à liberdadede discernir entre o bem e o mal”.6 E, assim,os subjugados declaram de bom grado:“Reduzi-nos à servidão, contanto que nosalimenteis”.7

    Cabe ressaltar – porque é de especialinteresse para a educação – a centralafirmação de S. Tomás: “A prudência nãoé inata em nós; ela procede da educaçãoe da experiência”.8

    Memória e Prudência

    A prudência versa sobre o contingente e,portanto, é pela experiência ( per experimen-tum) que deve o prudente guiar-se, pois,“diz o filósofo”, “a virtude intelectual ori-gina-se e desenvolve-se com a experiênciae com o tempo”. Mas a experiência, por suavez, não é senão memória acumulada...9

    Tomás, no ad 2 de II-II, 49, 1, apontaas quatro leis fundamentais da educação damemória:

    1) Estabelecer semelhanças (similitudi-nes) adequadas para o que se quer recordar.Mas, adverte, não semelhanças usuais, poisguardamos melhor o invulgar. E, assim,prossegue o Aquinate, é necessário encon-trar semelhanças ou imagens, pois as rea-lidades espirituais facilmente se esvaem senão estão “amarradas” a alguma semelhan-ça corpórea (nisi quibusdam similitudini-bus corporalis quasi alligentur ). E isto,conclui, porque o conhecimento humano émais forte com relação ao sensível.

    2) Na segunda lei, Tomás afirma sernecessário organizar e dispor em ordemaquilo que se quer lembrar, de tal modo quehaja uma associação por encadeamento.

    3) É necessário, prossegue o Aquinateao enunciar a terceira lei, que o homemtenha solicitude e afeto para com aquiloque quer recordar,10   pois onde não háinteresse e amor, não se fixam as impres-sões na alma.

    Como bom pedagogo, Tomás – ao falardo “dom da palavra” em II-II, 177, 1 – dizque aquele que ensina deve tocar o senti-mento, mover ao afeto e isto acontecequando faz com que o discípulo “sejamovido ao amor das realidades significadaspelas palavras e queira pô-las em prática:e isto ocorre quando a formulação é tal queo ouvinte se emociona” (“quod aliquisamet ea quae verbis significantur, et velitea implere: quod fit dum aliquis sic loquiturquod auditorem flectat”).

    4) Finalmente, diz Tomás ao enunciar aquarta lei da memória, é necessário meditar

    freqüentemente sobre o que queremosguardar na memória. E cita o provérbio: “ocostume é como uma natureza”. “Daí quenos lembramos rapidamente do que muitasvezes consideramos, associando, como quenaturalmente, uma coisa a outra”.

    Estas duas últimas leis enunciadas porTomás, tal como no caso da prudência,

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    unem a ordem intelectual à moral. Amemoria, mais do que uma questão detécnicas mnemônicas, liga-se a um saberpessoal e coletivo. Com muita propriedade,lembra Pieper: “Por memória entende (To-más) algo mais do que, por assim dizer, amera faculdade natural de lembrar-se (...).A ‘boa’ memória, entendida como requisitode perfeição da prudência, não significasenão uma memória ‘fiel ao ser’. (...) Ofalseamento da recordação, em oposição àrealidade, mediante o sim ou o não davontade, constitui a mais típica forma deperversão da prudência”.11

    O artigo de Tomás sobre a memoriafecha-se com a resposta à terceira objeção,

    a objeção de que a memória não poderiaser parte da prudência, pelo fato tão sim-ples de que a prudência é para o “agível”(operabilium) do futuro, enquanto a memó-ria é do passado. A resposta de Tomás aesta objeção associa o passado ao futuro:“É mister tomar do passado argumentospara o futuro. E, assim, a memória dopassado é necessária para bem aconselhar-nos sobre o futuro”.

    A  Docilitas

    Do mesmo modo que pode haver umfalseamento da lembrança, pode se dartambém um falseamento da percepção darealidade presente, que se recusa à objeti-vidade. Daí que, no art. 3 (sempre em II-II, 49), dedicado à outra parte quasi  inte-gral da prudência, a docilitas, Tomás afir-

    me a necessidade dessa disposição deabertura e acolhimento para aprender, a quese opõem a auto-suficiência e a indiferençanegligente (ad 2). O Aquinate volta alembrar que a prudência tem por objetoações particulares e que estas se dão emdiversidade praticamente infinita (quasiinfinitae diversitates). Assim, para exercera prudência, não pode um indivíduo sozi-

    nho, em pouco tempo, considerá-las todas.Tomás conclui, remetendo ao cabedal daexperiência coletiva: “É necessário consi-derar atentamente (attendere) as opiniões esentenças (mesmo não demonstradas) dosanciãos e dos experientes, não menos doque as verdades demonstradas, pois, pelaexperiência, eles penetram nos princípios”.

    Pieper indica o sentido do conceito dedocilidade em S. Tomás: “Sem docilitasnão pode haver prudência perfeita. Mas adocilitas não é evidentemente a submissãoe o zelo superficial do ‘bom discípulo’. Oque o termo designa é aquela disponibili-dade leal que, em face da multiplicidaderealista das coisas e das situações experi-mentadas, renuncia a refugiar-se estupida-mente na absurda autarquia dum saberfictício. O que o termo designa é aquelacapacidade de se deixar ensinar, capacida-de que brote, não de uma vaga modéstia,mas simplesmente do desejo verdadeiro –o que já, de resto, necessariamente, contéma autêntica humildade. A falta de aberturae a auto-suficiência intelectual são, nofundo, formas de resistência à verdade das

    coisas reais; ambas assentam na incapaci-dade de o sujeito conseguir fazer calar oseu ‘interesse’ – condição imprescindívelda apreensão da realidade”.12

    Alguma Implicações Existenciais

    Após esta breve introdução conceitual,passemos a discutir algumas conseqüênciasexistenciais e pedagógicas.

    Primeiramente, o caráter dramático da prudentia. Ela é uma virtude que – comoinsiste Tomás – versa sobre o “aqui e oagora”, sobre a realidade contingente, sin-gular, infinitamente variada, com a qual eume encontro e requer de mim uma decisão.Para decidir corretamente, devo enxergar averdade, o logos, o que a realidade exige

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    de mim. Trata-se, portanto, antes de maisnada, de uma clarividência, de uma simpli-citas, de uma capacidade intelectual de vero real. Mas não de um real teórico, teore-mático; e sim do concreto: saber discernirno “aqui e agora” o que vai me realizar ouo que vai me destruir... Tomás, sempreatento à linguagem, dirá que  prudens vemde  porro uidens, “ver longe”. Nesse sen-tido, há uma sugestiva expressão que se usamuito em espanhol: “las veo venir”, equi-valente aos nossos: “já vi esse filme antes”,“já dá para ver onde isto vai parar”...

    Esse caráter dramático da  prudentiamanifesta-se no fato de que ela, sim, é uma

    atitude racional, é a limpidez da inteligênciaque vê o real (e isto é uma qualidade moral:só o homem de coração puro vê o real), masnão há critérios operacionais para determi-nar qual a decisão certa. Suponhamos, porexemplo, que aceitemos os dez mandamen-tos como guia moral e que estejamos todosde acordo em que é necessário, digamos,amar pai e mãe... Porém, como realizar este“amar pai e mãe” na situação concreta em

    que estes pais reais – Sr. João e Da. Maria– se encontram no aqui e no agora: o que éo melhor, objetiva e concretamente, paraeles? Oferecer-lhes todas as comodidades,poupando-lhes todo trabalho ou deixá-losque se ocupem de suas tarefas para que nãocaiam numa torpe alienação?

    A condição humana é tal que – muitasvezes – não dispomos de regras operacio-nais concretas: há um certo e um errado

    objetivos, um “to be or not to be” pendentede nossas decisões, mas não há regraoperacional. Tal como para o bom lance noxadrez, há até critérios objetivos... mas nãooperacionais!

    Nesse sentido, está a agudíssima páginade Guimarães Rosa – todo um tratado defilosofia moral na boca do jagunço Riobal-

    do em Grande Sertão Veredas (Rio deJaneiro, José Olympio, 5. ed., p. 366):

    “Sempre sei, realmente. Só o que euquis, todo o tempo, o que eu pelejeipara achar, era uma só coisa – a inteira

    – cujo significado e vislumbrado delaeu vejo que sempre tive. A que era: queexiste uma receita, a norma dum cami-nho certo, estreito, de cada uma pessoaviver – e essa pauta cada um tem – masa gente mesmo, no comum, não sabeencontrar; como é que sozinho, por si,alguém ia poder encontrar e saber?Mas, esse norteado, tem. Tem que ter.Se não, a vida de todos ficava sendosempre o confuso dessa doideira que é.

    E que: para cada dia, e cada hora, sóuma ação possível da gente é que con-segue ser a certa. Aquilo está no enco-berto: mas, fora dessa conseqüência,tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer,o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, ficasendo falso, e é o errado. Ah, porqueaquela outra é a lei, escondida e vivívelmas não achável, do verdadeiro viver:

    que para cada pessoa, sua continuação já foi projetada, como o que se põe, emteatro, para cada representador – suaparte, que antes já foi inventada, numpapel...”.

    Por mais que nosso tempo insista emquerer relativizar a verdade, no fundosabemos que há certos e “errados” objeti-vos e que a decisão do agir é um problemade ratio, de recta ratio... Quando, diante deuma ação, perguntamos “por quê?”, esta-mos perguntando é pela razão  (reason,raison...): “Por que razão você fez isto?”.E o mesmo ocorre quando, diante de umaação, dizemos: “É, você tem razão...”, “estácoberto de razão” etc. E para uma ação queé um grave mal moral, dizemos: “Queabsurdo!!!”.

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    humana, do to be). Abdicar da prudentia, acardeal das cardeais, significa perder o eixo,o gonzo, tornar-se “des-engonçado” exis-tencialmente! Abdicar da prudentia é abdi-car da realidade e confiarmos a um  Ersatz– como ao Grande Inquisidor – as decisõesfundamentais da existência...

    Nota sobre o direito e as religiões

    Mencionávamos há pouco os funda-mentalismos religiosos. Para além de “leissecas”, rigidezes e literalidades, as religi-ões correm ainda outro risco de impruden-tia: no afã de libertar-se do peso da respon-

    sabilidade de decidir, o crente transfere oproblema para Deus (ou para o sobrenatu-ral). Certamente, Deus pode inspirar-nosem nossas dificuldades de decisão e a Eledevemos humildemente recorrer para pedirluzes e discernimento. O problema, nissocomo em tudo, são os abusos.

    Certamente, todo aquele que crê estálegitimado em pedir luzes a Deus para suasdecisões (é o que, para a doutrina católica,

    é “conselho”, dom do Espírito Santo); oque não se pode é avalizar com a autori-dade divina posições meramente tempo-rais, como a de saber se a falta foi dentroou fora da área... Em todo caso, a ilumi-nação sobrenatural deve ser (caso queira-mos fazer uso público dela) de tal ordemque torne visíveis para qualquer um arealidade de que se trata (penso que é issoo que se pede naquele verso do maisclássico hino ao Espírito Santo, o “VeniCreator ”:  Mentes tuorum visita, visita asmentes dos que são teus...). Outra atitudedegeneraria em tirania, em teocracia.

    Um exemplo nos ajudará a entender. Oexemplo nos vem da própria Bíblia, doCapítulo 13 do profeta Daniel. Dois anci-ãos, juízes (iníquos) de Israel, repelidospela bela Susana em seus desejos adúlteros,

    vingam-se levantando contra ela o falsotestemunho de adultério: “Vimos um jovemassim, assim, adulterando com ela no jar-dim etc.”. Quando a multidão já estápreparada para aplicar à casta Susana apena de morte por apedrejamento, Deusinspira ao jovem Daniel (cujo nome, aliás,significa juiz de Deus) a defesa da inocen-te. Mas Daniel não afirma em nenhummomento sua iluminação sobrenatural; oque ele faz é apresentar argumentos huma-nos, que todos podem comprovar, sobre ainjustiça daquele processo: interroga emseparado, diante do povo, os juízes iníquos:“Debaixo de que árvore ela estava adulte-rando?” e ante a disparidade de respostas,

    torna-se evidente que estavam mentindo eo povo aplica-lhes a pena de morte quetinham planejado para Susana...

    É muito perigoso o uso indevido dareligião em questões meramente temporais(naturalmente, questões éticas como a defesada vida ou da justiça social não sãoquestões meramente temporais e as religi-ões podem – e devem – trazer reflexãoadequada para seu equacionamento na

    sociedade).O Brasil inteiro chorou o desapareci-

    mento de Chico Xavier, uma figura bonís-sima e um exemplo de humildade e deamor. Mas esse grande líder espírita pro-tagonizou alguns episódios curiosos e quesuscitam inquietante reflexão.

    Num processo por homicídio, em 1985,um juiz de Campo Grande aceitou que adefesa apresentasse “cinco cartas psicogra-fadas pelo médium Chico Xavier, nas quaisa vítima dá a entender que a arma disparouacidentalmente. O júri o absolveu, mas asentença foi anulada por recurso da promo-toria, que quer condenação por homicídiodoloso” (Marido das cartas psicografadasvolta a júri, O Estado de S. Paulo,06.04.1990, p. 16).

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    Revista Brasileira de Direito Constitucional , N. 2, jul./dez. – 2003 (Conferências e Debates )

    Em outro júri de homicídio, um juiz deGurupi-GO, em 1987, convocou ChicoXavier como testemunha (não como teste-munha visual, mas mediúnica!), pelo fatode o médium ter recebido mensagem doalém da pretensa vítima (Testemunha docrime: o médium, O Estado de S. Paulo,25.03.1987, p. 17). E o  Jornal Espíritacomentou essa notícia em matéria de pri-meira página: “Haverá de chegar um tempoem que os espíritos poderão vir do ‘ladode lá’ – com o aval das autoridades –consertar tantas injustiças” (ano XI, n. 143,maio 1987).

    Outro tanto poderia ser questionado apropósito da prática de cirurgias por mé-diuns, o que, na prática, equivale a umadispensa do diploma de médico.

    Que os espíritos nos orientem sobrequestões de foro íntimo ou, então, tal comono caso do profeta Daniel, nos apontem asrazões – visíveis para todos – que possamnortear nossas decisões prudentes.

    NOTAS

    1. Pieper desenvolve essa tese principal-mente nas introduções a cada virtude. Porexemplo: “(A verdade moral e também a ver-dade em geral) perde não só sua força conquis-tadora, mas também seu poder de divulgação,se não for regenerada incessantemente em seusentido autêntico. E esta regeneração contínuarealiza-se pela força incisiva da palavra viva.Daí a grande responsabilidade – que sempreacompanha o poder – para com a verdade dos

    que comunicam: podem anunciar a verdade oudesvirtuá-la” (p. 211-212 da edição portuguesa:Virtudes fundamentais, Aster, Lisboa, 1960).

    2. Na verdade, Tomás fala de partes quasiintegrais, “ad similitudinem partium integra-lium”: a virtude, uma qualidade simples, não

    admite partes integrais em sentido próprio, poisnão se trata de sua entidade, mas de funções (cfr.I-II, 54,4).

    3. Enquanto aportação dos princípios uni-versais ao caso particular. Assim (ad 1), ainteligência não só conhece os princípios espe-culativos ou práticos (como “não se deve fazermal a ninguém”), mas se estende ao casoconcreto presente e, neste sentido, é parte daprudência.

    4. Como apontávamos, curiosamente, a pru-dentia, virtude da decisão, converteu-se na atual

    “prudência” indecisa...5. DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os irmãos

    Karamázovi.  São Paulo: Ouro, s.d., p. 226.6. Ibidem, p. 225.7. Ibidem, p. 224.8. “Ergo prudentia non inest nobis a natura

    sed ex doctrina et experimento” (II-II,47,15,sedcontra).

    9. Em II-II 47,16, Santo Tomás discute sea prudência pode se perder por esquecimento.E afirma que sendo apetitiva (e não só cognos-

    citiva...), não se perde diretamente (non directe)a prudência por esquecimento, mas conclui: “Oesquecimento, no entanto, pode impedir a pru-dência, pois esta para preceituar precisa deconhecimento e este, sim, pode ser esquecido”.

    10. Saber de cor , com o coração, by heart , par coeur .

    11. PIEPER, Josef.  Das Viergespann. Mün-chen: Kösel, 1964. p. 29.

    12. PIEPER, Josef. Virtudes fundamentais.Lisboa: Aster, 1960. p. 26.