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o NoRDESTE AçUCAREtRO E O BRASTL COLONTAL A arte de fazer açúcar no Brasil O complexo e difícil processo da produção de açúcar inÍluenciou sob muitos aspectos a organização social e hierárquica da colônia, além das soluções específicas para os desafios enfrentados na produção de açúcar. A produção de açúcar era uma arte, resultando de uma série de proces- sos integrados: cultivo, moagem, cozimento, depuração e embalagem. Cada um deles apresentava suas exigências específicas em matéria de emprego da mão de obra e era essencial para o bom êxito do engenho. Dizia-se que esses moinhos de açúcar eram chamados "engenhos" por antonom ásia, pois eram um "amplo teatro da engenhosidade humana", "máquinas maravilhosas que requerem arte e muita despesa".23 Com algumas variações regionais, os engenhos do Brasil seguiam um método semelhante de funcionamento, com muito poucas alterações importantes atê o fim do século XVIII. Num espírito festivalesco, a safra tinha início quando os moinhos começavama funcionar no fim de julho ou início de agosto, após a bên- ção do próprio engenho e dos trabalhadores e a invoc ação da proteção dos santos.2a Durante a safra, a cana era cortada à luz do dia, mas os engenhos começavam a funcionar às 4 horas da tarde e continuavam até aproximadamente L0 horas da manhã seguinte, funcionando assim entre dezoito e vinte horas por dia. O trabalho era feito em turnos. Para os escravos, o ritmo de trabalho logo se tornava exaustivo. Seu "serviço ê algo incrível", diria José Israel da Costa. Cuthbert Pudsey observou no século XVII eue, "se eventualmente um negro frca alerjado, pois são tratados como animais, é posto para alimentar o moinho ou raspar raízes de mandioca na roda; eles usam os escravos com muito rigor, fazendo-os trabalhar sem fim, e quanto mais os maltratam mais úteis os acham, pois são levados a crer por experiência própria que os bons tratos corrompem seu comportamento".2s Na Bahia, a safra durava até as fortes chuvas de inverno em maio. Os engenhos funcionavam num período de 270 a 300 dias por ano, embora com as inrerrupções em feriados religiosos, para consertos e em momentos de escassez de cana

A Arte de Fazer Açúcar No Brasil

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A Arte de Fazer Açúcar No Brasil

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  • o NoRDESTE AUCAREtRO E O BRASTL COLONTAL

    A arte de fazer acar no Brasil

    O complexo e difcil processo da produo de acar inluenciou sobmuitos aspectos a organizao social e hierrquica da colnia, alm dassolues especficas para os desafios enfrentados na produo de acar.A produo de acar era uma arte, resultando de uma srie de proces-sos integrados: cultivo, moagem, cozimento, depurao e embalagem.Cada um deles apresentava suas exigncias especficas em matria deemprego da mo de obra e era essencial para o bom xito do engenho.Dizia-se que esses moinhos de acar eram chamados "engenhos" porantonom sia, pois eram um "amplo teatro da engenhosidade humana","mquinas maravilhosas que requerem arte e muita despesa".23 Comalgumas variaes regionais, os engenhos do Brasil seguiam um mtodosemelhante de funcionamento, com muito poucas alteraes importantesat o fim do sculo XVIII.

    Num esprito festivalesco, a safra tinha incio quando os moinhoscomeavama funcionar no fim de julho ou incio de agosto, aps a bn-o do prprio engenho e dos trabalhadores e a invoc ao da proteodos santos.2a Durante a safra, a cana era cortada luz do dia, mas osengenhos comeavam a funcionar s 4 horas da tarde e continuavamat aproximadamente L0 horas da manh seguinte, funcionando assimentre dezoito e vinte horas por dia. O trabalho era feito em turnos. Paraos escravos, o ritmo de trabalho logo se tornava exaustivo. Seu "servio algo incrvel", diria Jos Israel da Costa. Cuthbert Pudsey observouno sculo XVII eue, "se eventualmente um negro frca alerjado, pois sotratados como animais, posto para alimentar o moinho ou rasparrazes de mandioca na roda; eles usam os escravos com muito rigor,fazendo-os trabalhar sem fim, e quanto mais os maltratam mais teisos acham, pois so levados a crer por experincia prpria que os bonstratos corrompem seu comportamento".2s Na Bahia, a safra durava atas fortes chuvas de inverno em maio. Os engenhos funcionavam numperodo de 270 a 300 dias por ano, embora com as inrerrupes emferiados religiosos, para consertos e em momentos de escassez de cana

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    ou madeira esses nmeros pudessem ser reduzidos em cerca de um tero.A Igreja exigia que os engenhos parassem de funcionar nos domingose dias santos, mas muitos senhores de engenho tentavam esquivar-se aessas obrigaes religiosas, que respondiam por cerca de trs quartosdos dias perdidos. Em 1,592,Joo Remiro declarou diante da Inquisi-o na Bahia "qoe no dito seu engenho sempre em todos os domingos esanctos moendo seu engenho despois do sol posto... que uso e costumageralmente nesta capitania a todos os senhores e feitores de engenho semexcepo".26 Os senhores de engenho argumentavam que os moinhosno podiam ser parados para no prejudicar o trabalho dos dias ante-riores e posteriores aos de observncia religiosa. Esses argumentos emcausa prpria eram condenados pelos jesutas e a Igreja em geral, mas arepetio das queixas indica que muitos senhores de engenho ignoravamas diretrizes da Igreia.z7

    A longa durao da safra conferia ao Brasil considervel vantagemsobre os concorrentes caribenhos, cuja temporada de colheita duravaem mdia apenas 120-180 dias. Tambm tornava a produo aucareirano Brasil particularmente adequada escravido, i que entre o ciclo demoagem e o perodo de plantio praticamente no havia "tempo morto"e os escravos podiam ser utilizados quase continuamente em algumaetapa da produo de acar.

    A regulagem e gesto da operao no campo e na fbrica exigiaha'bilidade e experincia. Um bom mestre de aca r capaz de controlar eprever a maneira como as diferentes atividades se coadunariam, domi-nando pela inteligncia e a destr eza as diferentes partes do processo, eraessencial para o sucesso. Esse trabalho geralmente era bem remunerado,mas mesmo no sculo XVI encontramos referncias a engenhos em que afuno j era exercida por escravos, na medida em que os proprietriostentavam diminuir os custos.

    Nas plantaes, oS escravos plantavam a cana manualmente. Osarados raramente eram empregados no cultivo do acar no Brasil,provavelmente porque o solo de massap da Bahia e de Pernambucodificultava seu uso. Um a vez plantada a cana) grupos de escravos se

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    incumbiam do desagradvel trabalho de limp-la de ervas daninhas pelomenos trs vezes. Durante a safra, grupos de 20-4A escravos cortavama cana. Muitas vezes trabalhavam em pares, uffi homem paa cortar ascanas e uma mulher paajunt-las em feixes. A cana cortada era entolevada para o engenho em carros de boi ou pequenos barcos.

    O engenho era movido a moinhos d'gua ou trao animal. Os quese valiam da fora da gua faziamesta opo porque, apesar de o custode construo de uma roda, tanques e um aqueduto ou levada ser maior,gerava-se maior capacidade produtiva. Ambrsio Fernandes Brando,auror dos Dialogos das grandezas do Brasil (161,8), estimava em 10 milcruzados (a:$000) o custo de construo de um engenho' sem contar aconstruo dos prdios nem as despesas operacionais do primeiro ano.Um chamado engenho real podia produzir 10 mil arrobas por ano eat mais, embora fossem poucos os que chegassem a tal. Os engenhosmovidos atrao animal, s vezes chamados trapiches ou engenhocas, ge-ralmente eram postos em funcionamento por grupos de bois. Chegavama uma mdia de 3-4 mil arrobas por ano, mas sua construo era maisbarata.z8 Estimou-se em 1,639 que em Pernambuco um trapiche podiaprocessar o carregamento de cerca de 30 carroas de cana e produzirmeia tonelada (25-37 arrobas) por dia, ao passo que um engenho realera capaz de moer o contedo de 45 carroas e produzir no mximo Ltonelada por dia (50-75 arrobas).2e

    O sumo extrado da cana era ento passado por uma srie de cal-deiras, nas quais, por um processo de limpeza e evapono, o lquidoficava isento de impu ezas. As caldeiras de ferro e cobre, consideradasnum manual de instrues paa um feitor-mor em 1,663 "a coisa maisimportante do engenho", eram uma grande fonte de despesas' constan-temente precisando de reparos.3o O processo de limpeza dependia docalor de enormes fornalhas que ficavam por baixo das caldeiras. Essas"grandes bocas abertas" tragavamuma quantidade descomunal de ma-deira. Nos engenhos baianos, o custo da madeira representava em geralcerca de20% das despesas de funcionamento. At a introduo dacanacaiena, mais fibrosa, no fim do sculo XVIII, os engenhos brasileiros que

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    processavam a cana crioula raramente faziam uso do bagao (a sobra dacana espremida) como combustvel, dependendo pal:- isto dos recursosflorestais aparentemente ilimitados da colnia. O resultado disso foi adestruio de vastas extenses da floresta atlntica.3r

    O trabalho nas caldeiras exigia considervel conhecimento e habi-lidade. Sob a direo do banqueiro, os trabalhadores de cada uma dascaldeiras tratavam de limpar o lquido com grandes conchas, at que ofluido purificado e engrossado pudesse ser vertido em grandes formas deargila que eram ento levadas para uma construo separ ada,a casa depurgar, sendo dispostas em longas fileiras. O acar que se cristal izavanas formas era periodicamente coberto com argrla umedecida. A guada argila era ento filtrada pelas formas de acar cristalizado, limpandoainda mais as impurezas e gerando uma forma na qual predominava oacat branco. O escoamento das formas era reprocessado para gerarum acar mais grosseiro e o melado drenado das formas era destiladopala fazer cachaa. o padre Antonil, atento ao mesmo tempo teolo-gia e aos lucros, assinalou que "a lama suja deix ava o acar branco,exatamente como a lama dos pecados misturada s lgrimas de affe-pendimento podialavar nossas almas".32 A concentrao do Brasil naproduo desse a,car branco, "argiloso", deu vantagem colnia emrelao aos concorrentes caribenhos, que tendiam a produzrr acarmascavo mais escuro e menos apreciado.

    O Brasil especializou-se na produo de acar branco, mais valorrza-do que o mascavo, mas que tambm tendia a elimi na a necessidade demais refinao. Assim foi que sua metrpole, Portugal, ao contrrio daHolanda e da Ingl ateffa,no desenvolveu uma indstria de refinamentoat o sculo XVIII. Os engenhos brasileiros tambm produziam acaresmais grosseiros, e do melado f:eiam lcool, ou, segundo as diferentesnomenclaturas regionais, cachaa ou geribita. Nos perodos de maiordificuldade, os senhores de engenho brasileiros argumentavam que sconseguiam pagar as despesas na produo de acar, dependendo davenda da cacha a para obter lucro. Algumas regies, como o Rio deJaneiro, acabaram se especializando na produo de geribita, usada no

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    comrcio escravagista africano, mas no sculo XVIII a produo deacar branco predominava na colnia.

    Finalmente, sob a dneo do caixeiro, o dzimo era subtrado, equando necessrio se procedia a uma diviso entre o engenho e os la-vradores de cana. O acar separado era ento empacotado em grandescaixas de madeira que chegavam a pesar no sculo XVII cerca de 200-300 kg (1,4-20 arrobas). Cada caixa era ento registrada, com a iden-tificao do peso, da qualidade e da propriedade, para ser em seguidatransportadaem carroa de trao animal ou barco at o porto principal.

    Um engenho brasileiro precisava de uma fora de trabalho numerosa,em parte dotada de considervel experincia e habilidade. Em mdia,os engenhos da Bahia e de Pernambuco tinham 60-70 escravos em suafora de trabalho, mas tambm contavam com a mo de obra dos es-cravos dos fazendeiros fornecedores de cana, de modo que o nmerode trabalhadores por engenho podia de fato chega a ceca de 100 -120.Cada engenho tambm precisava de provimentos adequados de matria-prima, cana-de- atrcat, muitas cabeas de gado paa as carroas e asrodas, grande quantidade de combustvel, geralmente madeira, assimcomo alimentos para a fora de trabalho e toda uma srie de materiaise equipamentos.

    Trs elementos principais determinavam a natureza da economiaaucareira brasileira e seu sucesso, conferindo-lhe um carter e umaconfigurao especficos. Esses elementos, a estrutura de propriedade, oabastecimento de mo de obra e o acesso ao crdito, esto relacionados faha de capital nas primeiras etapas da indstrra) o que contribuiupaa padres de organrzao e prtica que viriam a persistir no Brasildurante sculos.

    O primeiro desses elementos encontra-se na estrutura de produo epropriedade. Os engenhos de acar brasileiros eram de propriedade doEstado, de diferentes instituies ou de indivduos em carter privado.Nos primrdios da indstria, alguns engenhos chegaram a ser constru-dos com financiamento rcalrpara estimular a colonrzaoe o crescimentoeconmico. Em 1,587, ainda podia ser encontrado um engenho real na

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    Bahia, em Piraj, perto da cidade, mas ele seria arrendado a um indivduoem carter privado.33 Mais tarde no sculo XVI, contudo, a Coroa j seeximia de qualquer participao direta, preferindo estimular a indstriamediante a concesso de terras e isenes fiscais a investidores privados.

    Alguns engenhos de acar pertenciam a instituies, sendo as maisimportantes as ordens religiosas, especialmente os iesutas, os carmelitase os beneditinos. Os jesutas, presentes no Brasil a partir de 1,549,foraminicialmente apoiados por subsdios reais e heranas privadas.3a Apesarde inicialmente relutantes em se engajar na agricultura de plantao,especialmente com emprego de mo de obra escrava, tendo em vista apossvel contradio com seus votos de pobreza e catidade crist, osjesutas vieram a constatar no incio do sculo XVII que a agriculturae a crao de gado podiam representar uma base econmica para suasatividades missionrias e educativas. Na Bahia, comearam a desenvol-ver pequenos engenhos na primeira dcada do sculo XVII, mas umgrande avano ocorreu quando o Colgio Jesuta da Bahia e o de SantoAnto, em Lisboa, receberam como legado o Engenho Sergipe na Bahiae o Engenho Santana em Ilhus, ambos anteriormente pertencentes aMem de S, ex-governador do Brasil. Embora a propriedade desses bensfosse objeto de longo litgio, opondo os dois colgios jesutas, um aooutro e tambm a outros reclamantes, esses engenhos, especialmenteo Engenho Sergipe, "Rainha do Recncavo", representavam impor-tanres arivos. Mais tarde, no sculo XVII, tanto o colgio dos jesutasde Olinda quanto o do Rio de Janeiro tambm entraram na posse depropriedades aucareiras. 3s

    Outras ordens religiosas tambm se envolveram na economia au-careira. Na Bahi a, f rancrscanos, carmelitas e beneditinos cultivarama cana-de-acar em diferentes momentos, chegando os beneditinos ecarmelitas a ter seus prprios engenhos.3 Os beneditinos, estabelecidosno Brasil apenas em 1581, tornaram-se proprietrios de plantaes decana no Recncavo Baiano. Chegaram a construir um engenho, SoBento das Lages, em algum momento anterior a 1650. Pelo meado dosculo XVII, mais de 60% da renda dos beneditinos baianos derivava

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    do acar. Em Pernambuco, os beneditinos de Olinda eram propriet-rios do Engenho Musurepe, que funcionou a partir da segunda dcadado sculo XVII, enquanto os beneditinos do Rio de Janeiro dependiamdo Engenho Guaguau. Os engenhos eclesisticos eram a exceo. Avasta maioria dos engenhos de acar era de propriedade privada. Associedades no eram de todo desconhecidas, e alguns dos primeiros en-genhos foram empreendimentos conjuntos nos quais alguns investidoresreuniram seus recursos, mas a propriedade individual ea a forma maiscomum. Com o tempo, a propriedade de mais de um engenho tambmse tornou comum, situao gerada em certa medida pelos gargalostecnolgicos provocados pela capacidade limitada dos engenhos e osproblemas de transporte da cana a longas distncias. Assim, a tendn-aa paa aumenta r a capacidade criando uma nova unidade tornou-secomum, resultando na propriedade de mais de um engenho por parte deindivduos e famlias. Embora os engenhos de acar representassem oalicerce econmico de certo nmero de famlias aristocrticas de plan-tadores, que constituram durante sculos a elite social, o mais comumeram histrias de alta rotatividade e volatilidade da propriedade. Umadas caractersticas distintivas da economia aucareira foi essa inseguran-a e rotatividade, indcio das dificuldades da atividade plantadora. Osindivduos e famlias que encontrassem xito tinham nas mos as rdeasdo poder e do prestgio locais. Antes de 1650, os conselhos municipaisde Olinda, Salvador e Rio de Janeiro, alm de prestigiosas irmandadesleigas, como a da Misericrdia, eram dominados pelos senhores deengenho. Passaram a considerar-se uma aristocracia digna de respeitoe deferncia, no obstante o fato de em sua maioria no terem origemnobre, sendo muitos, na verdade, descendentes de cristos-novos.37 NaBahia, por exemplo, representavam mais de 20% dos proprietrios deengenhos registrados entre 1,587 e 1592.

    Os homens (e s vezes mulheres) que no tinham capital nem crditopara construir um engenho voltavam-se para as plantaes de cana-de-acar. Desde o incio, a indstria aucareira brasileira caracterizaa-sepela existncia desses lavradores de cana, que forneciam a matria-prima

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    aos engenhos. At as instrues originais de governo ou regimentorecebidas pelo primeiro governador real, Thom de Sousa, ffi 1549,reconheciam sua existncia, procurando estabelecer regras para o seurelacionamento com os senhores de engenho.3s

    Tudo indica que a experincia portuguesa nas ilhas do Atlntico,especialmente Madeira, fora particularmente importante no estabeleci-mento da utilidade dos lavradores de cana. No Brasil, eles se tornaramum aspecto regular e essencial da economia aucareira, e sua existnciateve profundas implicaes na estrutura da economia e no funcionamen-to da escravatura. At 1650, os lavradores de cana cultivavam a maiorparte da cana-de-acar produzida no Brasil.3e Isto provavelmente indicauma difuso do investimento e das caractersticas de risco da primitivaindstria aucareira brasileira.

    A explic ao da existncia e da importncia dos lavradores de canano Brasil intrigante. Com ceteza a tradio dos pequenos produtoresestabelecidos na Madeira representou um precedente, assim como a anti-ga prtica portuguesa dos contratos rurais, ou arroteias, mas o principalno Brasil pode ter sido a relativa escassez de capital para a construode engenhos nas etapas iniciais da colon rzao e o desejo da Coroa deestimular a colon tzao, oferecendo oportunidades a possveis colonos.De certa maneira, os lavradores de cana representam uma prova daescassez de capital na etapa de form ao da colnia. A preocupao daCoroa com sua existncia e a exigncia de que aqueles que recebessemconcesses de terras paa construir os primeiros engenhos grantissema proreo e os benefcios dos lavradores de cana deles dependentesrepresentavam um reconhecimento de sua importncia para o proietode colontzaoe o estabelecimento da indstria aucareira.J em L548,registrava-se na correspondncia entre o gerente do Engenho So Jorgeem So Vicente e o proprietrio ausente a presena de lavradores de cana,mas ele tambm enumerava argumentos explicando por que a moagemde sua cana era onerosa e talvez desnecessria.ao Esta tenso persistiu naeconomia aucareira brasileira durante o sculo XIX, mas at 1650 oslavradores de cana eram a caacterstica mais expressiva dessa economia.

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    Embora a designao lavrador fosse empregada em relao a qualquertipo de fazendeiro no Brasil, os lavradores de cana eram na verdade umaehte agrria, em posio social logo abaixo dos senhores de engenho eno raro compartilhando muitas de suas origens sociais, caractersticase aspiraes; mas isso tambm decorna danatvreza de sua dependncia,muitas vezes em conflito com os proprietrios de engenhos. A natrezadessa relao e seu status dependiam da posse da terra e do acesso aela. Os lavradores de cana que tinham terras em regime de sesmaria ouaquisio eram na verdade pequenos proprietrios e se encontravamem posio privilegiada para barganhar com os donos de engenhos.Os que dispunham dessa chamada "cana livre" geralmente dividiam oacar produzido com sua cana, metade para o engenho e metade parao lavrador, e podiam negociar outras vantagens, como arrendamentode gado, ajuda no transporte da cana ou preferncia na programao dehorrios do engenho. A maioria dos lavradores de cana no dispunhadessa vantagem. Eles produziam "cana cativa" e detinham um partidode cana para o qual arrendavam terras, devendo ento levar a produoao engenho, pagando 1/3 ou Ll4 de sua metade do acar produzidoa ttulo de aluguel da terra. Esses acertos e desvantagens contriburampaa a instabilidade dos lavradores de cana como classe. Num perodode 18 safras (1622-50) no Engenho Sergipe, na Bahia,1,28 indivduosso registrados como lavradores, mas apenas 41% (53) aparecem emmais de uma safra, e somente 19o/o (24) em mais de cinco.al

    A relao entre senhores de engenho e lavradores de cana era complexapor causa da dependncia recproca e tambm do conflito inerente a esserelacionamento. Um engenho podia dispor de at trinta lavradores parafornecimento de cana numa s colheita, mas a mdia de lavradores decana por engenho no Nordeste brasileiro era provavelmente de trs ouquatro. Em Pernambuco, eml639, havia 2i}lavradores fornecendo canaa cerca de 166 engenhos. Esta situao proporcionava a muitas pessoasuma entrada relativamente fcil na economia aucareira, muitas vezesna expectativade mobilidade social. Os custos iniciais de operao paraum lavrador de cana representavam aproximadamente um tero dos

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    custos de um proprietrio de engenho. Do ponto de vista dos senhoresde engenho, a existncia dos lavradores de cana era uma maneira departilhar os riscos e encargos financeiros da produo de acar. NaBahia, cerca de ll3 dos escravos empregados na produo de acar erade propriedade dos lavradores de cana, e no dos engenhos. os senhoresqueriam e precisavam de lavradores, mas temiam que ao adquirir suasprprias terras ficassem em condies de negociar melhores acertos paraa moagem de sua cana ou acabassem construindo seus prprios engenhos,gerando concorrncia pela cana e a madeira. Uma estratgia consistiaento em vender terras aos lavradores, mas com restries que forassemo comprador a fornecer sua cana ao engenho do vendedor em carterperptuo ou a pagar outras penalidades se a canafosse vendida a outroscompradores. Os lavradores reagiram com suas prprias estratgias, noraro vendendo "cana cativa" a outros engenhos, especialmente nos anosde baixa produo, quando a demanda era grande e muitos no tinhamcomo cumprir com suas obrigaes.

    Esta situao acabou gerando uma crise na Bahia na dcad a de 1660,quando Bernardino vieira Ravasco, irmo do famoso jesuta padreAntnio Vieira, senhor de engenho e secretrio de Estado do Brasil,liderou um movimento no conselho municipal de Salvador para limitara construo de novos engenhos. A proposta encontrou sria oposiode muitos senhores de engenho, argumentando que se os lavradores nopudessem ter a expectativa de se tornar senhores de engenho, no maisse disporiam a servir como lavradores de cana. A coroa acabou pro-mulgando na Bahia, em 1681 e"!,6T4,leis que limitavam a consrruo deengenhos a 1.500 braas (cerca de 3 quilmetros) de outros j existenres.o efeito disso foi estimular aabertura de novas reas aucareiras maisdistantes do litoral. Leis semelhantes foram promulgadas em outrascapitanias. Embora aos senhores de engenho no agradasse a possvelconcorrncia de novos engenhos e a relativa vantagem dos lavradores decana quando muitos senhores disputavam seu produto, eles tambm sedavam conta de que, sem uma expectativa de mobilidade social, poucoshaveriam de aceitar os encargos do plantio de cana. os lavradores de

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    canaeram um elemento permanente da economia aucareira brasileira etambm, em seus primrdios, uma medida de sua condio econmica.

    Havia muito capital e muita riqueza entre os lavradores de cana,alguns ligados por laos de sangue ou matrimnio aos senhores deengenho. Havia tambm um bom nmero de mulheres, no raro vi-vas, participando da economia aucareira. Digno de nota at o fimdo sculo XVIII, contudo, era o fato de os lavradores de cana seremquase invariavelmente brancos. Os negros e mulatos livres simples-mente no dispunham de crditos ou capital para assumir os encargosdesse tipo de agricultura. Sua ausncia chama a ateno para o statussocial relativamente alto dos lavradores de cana como plantadoresem potencial. Um status que poucos deles de fato alcanavam, mas apossibilidade sempre representava um atrativo. Esta situao perdurouat o sculo XVIII.

    Globalmente, os lavradores de cana e senhores de engenho estavamunidos por seus interesses e pela dependncia ao mercado internacio-nal. Juntos, constituam os "nervos do corpo poltico", nas palavrasde's7enceslao Pereira da Silva em 1738. Antonil advertiu os senhores atratarem seus lavradores bem, e em 1,623 um administrador do EngenhoSergipe informou que precisava tratar os lavradores com cuidado, pois"nesta teratudo respeito e cortesia".a2 Mas muitos senhores abusavamde seu poder. Em ltima anlise, os dois lados precisavam um do outro.Os lavradores de cana eram sob muitos aspectos protoplantadores, pro-prietrios de gado, escravos e s vezes terras. No raro pertenciam aosmesmos estratos sociais que os grandes plantadores, compartilhandocom eles muitas atitudes. Cooperavam em conflitos com os comerciantese na busca de uma moratria das dvidas, concesso que foi alcanadana Bahia em'1,663, com uma lei proibindo o arresto de um engenho pordvidas menores que seu valor total, estendida aos lavradores de canabaianos em 1720 e a outras capitanias posteriormente.

    Essas aparentes "vitrias" dos devedores podem ter contribudopara as dificuldades que o Brasil viria a enfrentar ao tentar competircom Barbados e, mais tarde, com a Jamarca. As unidades integradas de

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    produo, com numerosa mo de obra escrava sob controle unit no,que passaram a caracteilza a produo caribenha eram de realizaodifl na realidade do Brasil, em vista da tradio dos lavradores e darelutncia dos credores em fornecer amplos crditos para a mo deobra escrava expandida e necessria para as plantaes unificadas. Asobrevivncia dos lavradores de cana como classe social era um sintomada incapacidade do Brasil de transformar sua economia aucareira emconformidade com os novos modelos do sculo xvIII.43

    A segun da caracterstica da indstria auc arcira brasileira em seusprimrdios era a dependncia relativamente longa de uma fora de tra-balho indgena e a gradual passagem para os africanos. Nos primeirossetenta anos aproximadamente, a indstria dependeu da mo de obraindgena. Tambm isso parece indicar uma falta de capital ou crditopaa financiar a importao de trabalhadores africanos como escravos.Os escravos africanos e afro-brasileiros viriam a predominar na econo-mia aucareira, mas esse processo se deu num perodo prolongado, demais de meio sculo.aa

    A transio dos ndios para os africanos como trabalhadores foium elemento-chave da expanso da economia aucareira brasileira nofim do sculo XVI. Com a intensificao das exigncias da agriculturaaucareira em meados da dcada de '!,s60, o trabalho indgen a j nopodia ser obtido por escambo. Alm disso, as tentativas dos porruguesesde se apropriar de trabalhadores nativos pelo resgate de prisioneiros deguerra' para em seguida mant-los temporariamente como escravos,enfrentou crescente oposio dos jesutas, alegando que os indgenasdas aldeias jesuticas podiam fornecer mo de obra paraos engenhos demaneira mais efrcaz e com menos abusos. Em 1600, eles afirmavam ter50 mil indgenas sob seu controle, disposio tanto da Coroa quanrodos colonos. Enquanto isso, a Coroa legislava cad,a vez mais contra aescravizao de indgenas, com leis promulgadas em 1570, 159s e 1,609.Nesse perodo, contudo, os indgenas, fossem escravizados ou livres,representavam a principal fora de trabalho na economia aucareira,assim permanecendo at as primeiras dcadas do sculo XVII.

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    A demog rafra tambm foi um fator decisivo na rransio. A popu-lao indgena foi dizimada por doenas, primeiro a varola, depois osarampo, entre 1559 e 1563. Milhares morreram, aldeias inteiras foramabandonadas, muitos fugiram para o interior, disseminando a doena.Os portugueses reagiram mandando novas entradas pata o interiorrpaatrazer mais trabalhadores, e transferindo grupos de uma capitania para ou-tra, mas essas polticas eram onerosas e a suscetibilidade dos indgenass doen as faza com que os plantadores de cana relutassem em investirna aquisio de mais ndios ou no seu treinamento em aspectos tcnicosda produo do acar.

    A transio de uma fora de trabalho de indgenas para outra predo-minantemente de africanos ocorreu lentamente ao longo de um perodode cerca de meio sculo. J na dcada de 1540 eram buscados escravosnegros, mas eles ainda eram muito poucos na dcad a de 1,560. Muitosdos primeiros africanos trazidos para o Brasil eram provavelmente ofi-ciais, vale dizer, trabalhadores qualificados, e alguns indubitavelmentej tinham trabalhado em engenhos na ilha da Madeira ou em So Tom.No Engenho So Jorge, havia em 1548 apenas sete ou oito africanos,servindo no entanto como capatazes ou encarregados da purificao oudas caldeiras. Em 1580, a fora de trabalho aucareira em Pernambucoainda era aproximadamenteZl3 indgena, mas a transio se processava.Era mais oneroso obter trabalhadores africanos, mas, considerando-se ocrescente custo da aquisio de indgenas, sua suscetibilidade s doenas,sua disposio de fugir e a percepo dos portugueses de que os africanoseram trabalhadores mais fortes e capacitados, os africanos pass aram aser cada vez mais procurados. Em 1,572, no Engenho Sergipe, na Bahia,um trabalhador africano valia 25$000, enquanto um indgena comcapacitao semelhante valia em mdia apenas 9$000. Os registros doEngenho Sergipe permitem-nos acompanhar essa transio. Em 1,574,apenas 7% de sua fora de trabalho eram de africanos, mas em 1591 opercentu al era de mais de 37%, e em 1,638 ela 1 era totalmente africanaou afro-brasileira.a5 Era mais oneroso obter trabalhadores africanos,mas a longo prazo eles se revelavam um investimento mais lucrativo.

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    A transio de uma fora de trabalho de americanos nativos paraoutra composta basicamente de africanos e seus descendentes tinha comoparalelo uma segunda transio, de trabalhadores brancos qualificadosem sua maioria livres pala especialistas e artesos do fabrico de a-car que eram escravos ou negros livres.a6 Nos primrdios da indstriaaucareira brasil etra) no raro se viam at vinte brancos trabalhandocom um salrio anual ou mediante prestao de servios. Eram soli-citados capatazes, supervisores, encarregados de caldeiras, ferreiros,carpinteiros, construtores de barcos, pedreiros. Os trabalhadores eramremunerados de diversas maneiras, em funo no s da capacitaomas tambm da etnia; os brancos sempre eram mais bem remuneradosque os negros ou mulatos, sendo os ndios os que recebiam menos pelasmesmas tarefas. Com o passar do tempo, verificou-se uma generalizadatendnci a para substituir os artesos brancos por escravos ou antigosescravos alforriados, para os quais essas ocupaes representavam umaforma de acesso mobilidade social. A possibilidade de acesso a essasposies servia de incentivo aos escravos do engenho. Os plantadoresdavam prefern cia, para ocupar essas posies, aos mulatos e negrosnascidos no pas (crioulos). Do ponto de vista dos plantadores, o inte-resse era substituir trabalhadores brancos livres por escravos ou antigosescravosr eue podiam receber uma remunerao menor que os brancos.aTEssa mudana para uma mo de obra qualificada afro-brasileira resultouda intensificao do comrcio escravagista no Atlntico e das alteraesdemogrficas por ela geradas, dando aos plantadores a oportunidade dereduzir suas despesas operacionais, passando a recorrer a uma crescentepopulao brasileira de origem mista.

    Finalmente, o acesso ao capital e ao crdito e o padro de lucratividadeconstituram fatores-chave parc o sucesso da economia aucareira. Em1'61'8, o cristo-novo Ambrosio Fernandes Brando afirmava que muitosportugueses que tinham feito fortuna na ndia retornavam a Portugalpara gast-la e levar uma boa vida, mas raramente algum que tivesseficado rico no Brasil voltava ao seu pas. O motivo era o fato de a riquezano Brasil expressar-se em terras, no sendo portanto transfervel. Apesar

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    dos eventuais comentrios sobre o estilo de vida opulento dos grandesplantadores, muitos deles levavam uma vida simples, aplicando suasfortunas na construo de suas propriedades. Os plantadores estavamsempre se queixando das dvidas e dos gastos, mas parece evidente queuma rrqueza considervel foi gerada, pelo menos nos setenta primeirosanos do crescimento da indstria.

    O clculo dessa rqueza, contudo, difcil. Os plantadores simples-mente calculavam a renda anual em cotejo com as despesas, para sabercomo se saam. O que muitas vezes lhes dava uma falsa impresso desua posio econmica. Alm disso, o Brasil e sua metrpole, portugal,sofriam de crnica escassez de moeda em circulao, especialmente noperodo anterior a 1580. Foi o que o gerente do Engenho So Jorge deixouclaro em 1548: "Pois aqui no existe circul ao de dinheiro e se deveforosamente ceder as coisas a crdito por um ano e esperar dois anospara ser reembolsado. Dessa forma, todo proprietrio de um engenhoaqui paga aos trabalhadores em bens (...).' Esta situao de certa formase alterou entre 1580 e 1,620, quando os portugueses do Brasil tiveramacesso prata peruana por contrabando, atravs de Buenos Aires, numvolume que a Coroa estimou em 1605 chegar a 500 mil cruzados emmoeda e barras por ano.a8 Mas essa porta se fecharia depois de 1,621,,restabelecendo-se as condies anteriores de escassez.ae

    Nos primeiros anos da indstria, muitos dos moinhos foram constru-dos com crditos fornecidos por comerciantes de acar. Nesse perodo,as terras muitas vezes eram adquiridas por concesso e a mo de obra,pela captura de indgenas, o que mantinha originalmente baixos os cus-tos fixos de capital, facilitando a formao do capital. Ainda assim, eranecessrio construir prdios e maquinaria, caldeiras e formas de acarprecisavam ser compradas ou fabricadas, assim como gado, barcos ecarroas, preparando-se ou se arrendando terras para o plantio da cana.Uma das fontes de capital para a indstria aucareira parecem ter sidoas funes governamentais. Os estudos recentes de Joo Fragoso sobreo desenvolvimento da economi a avcareira no Rio de Janeiro revelamque a maioria das famlias de plantadores estabelecidas na regio antes

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    de 1620 haviam desempenhado funes administrativas aparentementeusadas pala abrir portas no acmulo de rqveza ou na obteno de ou-tras vantagens que ento possibilitaram a chegada posio de senhorde engenho.s0 Sucessivas geraes eram proprietrias de engenhos deacar e habitualmente ocupavam cargos no conselho municipal doRio de Janeiro, dando continuidade unio entre a funo pblica e afortuna. As funes reais, os contratos fiscais e as funes municipaisgeravam o capital que viria a ser investido na indstria auc areira. Pa-dres semelhantes parecem ter prevalecido na Bahia e em Pernambuco.

    Os que desejavam entrar no negcio da produo de acar geralmen-te constatavam que havia escassez de espcie, de modo que o crdito eraessencial para dar incio s operaes, fosse no caso dos plantadores oudos fazendeiros

    -

    dependendo estes s vezes daqueles paa ter acessoao crdito. Se tomarmos como referncia padres desenvolvidos poste-riormente, muitas plantaes foram montadas com um desembolso decerca de um tero do capital necessrio, sendo o resto fornecido a crdito.Isso permitia que pessoas de recursos relativamente modestos aspirassem condio de senhor de engenho, significando que seus lucros eramconsideravelmente mais altos que os que poderiam ser depreendidos daproporo entre capital e renda anual.

    Os crditos eram obtidos em diferentes fontes, sendo os conventos,irmandades caritativas (misericrdias) e outras instituies religiosas asprincipais fontes de dinheiro emprestado em condies cmodas de cercade 6,25"/o a tomadores de baixo risco ou grande prestgio. Esses emprs-timos eram muitas vezes de muito longo prazo. Os tomadores menosprivilegiados contratavamemprstimos a taxas muito mais elevadas juntoa comerciantes que davam um jeito de contornar as limitaes impostas usura. Muitos senhores montavam engenho contando basicamentecom crditos, o que no entanto levava com frequncia a conflitos comcomerciantes por motivo de atraso. A falta de registros notariais nesseperodo constitui um srio impedimento no sentido de determinar anatureza dos acertos creditcios. Sabemos que os registros notariais deAmsterd revelam muitas transaes envolvendo cristos-novos ligados

  • o NoRDESTE AUCARtRO E O BRASTL COLONTAL

    por seus investimentos ao comrcio brasileiro e economia imperialportuguesa, mas praticamente no dispomos de provas de investimen-tos diretos na produo de acar.sl H indicaes de que o crdito erafornecido quase sempre por comerciantes locais e correspondentes nacolnia, e no por fontes europeias.

    Durante o rpido crescimento da indstria depois de 1570, algunsobservadores falavam da riqueza e opulncia dos plantadores de acar,de seu gosto pela hospitalidade luxuosa, a vida em alto esrilo e os smbo-los de um estilo de vida nobre. Na muito citada expresso de Antonil, serum senhor de engenho no Brasil equivalia a ter um ttulo de nobre za emPortugal. Mas prestgio no era o mesmo que riqu eza. Apesar do gostopelo luxo, os retornos de capital dos plantadores no parecem ter sidoto extraordinariamente altos quanto em certas estimativas modernas,superestimando a produo e subestimando os custos.s2 A mo de obraera um elemento essencial dessas despesas, tanto como custo fixo, naforma de compras, substituies, aliment ao e cuidados com os escra-vos, chegando talvez a ceca de 25% dos gastos anuais, como tambmna forma de salrios pagos a especialistas, artesos e eventualmentetrabalhadores do acar, ou o equivalente a 2A30% dos custos anuais.Como vimos, era esta uma tea onde os plantadores de acar procu-ravam cortar gastos. No incio do sculo XVII, era possvel montar umengenho ao custo de 8-10 mil cruzados (3:600$). pelo fim do sculo, ovalor mdio de um engenho baiano era de aproximadamente 15 mil, semcontar os escravos, e talvez de 18-20 mil cruzados contando com eles. Ocapital era distribudo enrre vrios bens (prdios, equipamenros, gadoetc.), e a terca constitua invariavelmente o mais valioso, costumandorepresentar metade do valor total do engenho. A fora de trabalho es-cravo geralmente representava algo em torno de 20% do capital. Nesseperodo, um lucro de 2:000$ a 3:000$ num engenho valendo 20:000$,ou um lucro de 10 a 1,5o/o) era considerado muito bom, nem sempresendo alcanado.

    Ao longo do sculo XVII, um retorno de capital oscilando entre 5e 1'0"/o na indstria como um todo provavelmente era comum, embora

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    fossem possveis taxas mais elevadas em perodos de expanso. Oslavradores de cana enfrentavam condies ainda mais difceis. Mas ofluxo de caixa talvez no seja a melhor maneira de avaliar o negcio daproduo de acar. Boa parte dos ganhos iniciais da indstria podemter assumido a forma de criao de capital, medida que o valor dosbens se elevava mais rapidamente que a renda, o que parece dar a en-tender um alto ndice de poupana. Devemos lembrar que muitos dosprimeiros engenhos no sculo anterior adquiriam terras pelo regime desesmarias e trabalhadores indgenas por simples captura, a um customonetrio relativamente baixo, de tal maneira que o valor do capitalcrescia rapidamente. A aragem da terca, a construo de capelas, casase prdios, de aquedutos e moinhos aumentavam o valor do capital,representando a construo de uma riqueza pessoal. Isto por sua vezgerava bens que facultavam uma expanso do crdito. Nesse ponto, aimportncia dos vnculos familiares e pessoais em geral, to comum nocomrcio do incio da era moderna, tambm desempenhou um papel,explicando a participao ativa de cristos-novos em todos os aspectosda indstra) de formas que associavam os comerciantes a plantadores,gerentes e artesos.

    Parc a indstria como um todo, o perodo entre 1560 e 1,620 pro-vavelmente assistiu aos maiores ganhos de riqueza) com considervelarrefecimento posterior, medida que os preos do acar declinavame, em consequncia, aumentavam os custos. A gerao fundadora deplantadores adquirira boa parte de suas terras por concesso e a mode obra por captura ou ainda por contratao, com os jesutas, detrabalhadores no remunerados ou modestamente remunerados. Seusgastos haviam sido reduzidos por esse processo, e seus ganhos, poten-ciahzados. Por volta de "1,620, as melhores terras, prximas do litoral,haviam sido ocupadas, de modo que a expanso s podia dar-se em terrasmais afastadas, onde seriam mais elevados os custos de transporte. Assesmarias tornaram-se menos comuns e cada vez mais as novas terraseram adquiridas mediante compra. As medidas da Coroa para eliminar aescravido indgena e a oposio jesuta por ela enfrentada dificultaram

  • o NoRDESTE AUCAREIRO E O BRA'SlL COLONIAL

    e tornaram mais dispendiosa a aquisio de mo de obra indgena, e

    s a introduo do engenho de trs rolos permitiu a continuidade doprocesso de expanso, emb ora i agora a um ritmo reduziCo' Com acrise de 1,623 e a subsequente queda dos preos do aitcar no mercadoatlntico, seguidas da invaso holandesa de 1630, com toda a pertur-

    bao que causou, inclusive os ndices mais altos de resistncia e fuga

    entre oS escravos, a indstria aucareira brasileira entrou numa nova

    etapade estabilidade e expanso lenta, na qual as exigncias da guerra

    e da poltica pass aama desempenhar um papel mais importante que asvantagens e benefcios do clima e do regime de chuvas' No momento em

    que oS novos concorrentes caribenhos em Barbados, Suriname, Jamaica

    e Martinica desafiavam a posio predominanre do Brasil, a indstria do

    acarj enfren tav aconsiderveis difi culdade s causadas por sua organi-zao social interna e as tenses que havia gerado. O acar continuousendo a mercad ona agrcola mais valiosa do Brasil at meados do sculo

    xIX, e o plantio do acar, um negcio difcil e s vezes lucrativo aolongo do sculo xvIII. Mas o apogeu do fim do sculo xvl e do inciodo sculo XVII nunca voltaria da mesma maneira, embora a esperanae a lembrana permanecessem no esprito dos que aspiravam ao ttulode senhor de engenho, assim como riqueza, ao poder e autoridade

    que passaa a representar.O acar projetou uma forte sombra sobre a histria inicial da

    colnia. Grandes cidades foram fundadas como portos e centros ad-

    ministrativos pata o comrcio aucareiro. As cidades secundriasdesenvolviam-se com lentido, pois os engenhos muitas vezes usurpavam

    suas funes econmicas e religiosas. As colheitas de subsistncia, a

    criao de gado, a guerra contra povos nativos e sua captura e o des-

    maramento da Floresta Atlntica foram em certa medida resultado das

    necessidades da economia auc areita no Nordeste' O mesmo ocorreu import ao de cerca de meio milho de africanos no sculo XVII' Asociedade brasileira organizou-se hierarquicamente pela cor da pele'

    ocupando os brancos o topo da hierarquia' os mulatos' mestios eoutros pardos, o meio, e os africanos escravrzados, a base' Mas havia

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    outras divises e hierarquias, em matria de situao jurdica, etnia,lugar de nascimento, origens religiosas e ocupao. Os engenhos nocriaram essas hierarquias, mas suas estruturas internas, com proprie-trios de origem europeia, trabalhadores coagidos, primeiro indgenase depois africanos, e uma srie de artesos e outras posies ocupadaspor brancos pobres, ex-escravos libertos e povos de origem mista, ten-diam a reforar e expor as estruturas constituintes da sociedade. Nestesentido, os engenhos foram ao mesmo tempo geradores e espelhos dasociedade brasileira durante a grande poca aucareira.

    Notas

    1. Cuthbert Pudsey,2000. v. 3, pp. 25. A impresso de Pudsey no era singular. FreiVicente do Salvador, o primeiro historiador do Brasil, observou que no Brasilas coisas eram invertidas, pois a colnia toda no formava uma repblica, antesparecendo que cada casa era uma repblica. Ver a discusso em: Fernando A.Novais, 1997-98,I, P. 13-40.

    2. Hermann Kelenb enz,1'968, p- 295; Eddy Stols, 1968' p. 405-41'9'3. Jos Antnio Gonsalves de Mello e Cleonir Xavier de Albuquerque (eds.), 1967,

    p.71.4. Christopher Ebert (no prelo).5. Domingos Abreu e Brito, 1..931, p. 58-59.6. "Provncia do Brasil", ANTT, Convento da Graa de Lisboa, tomo vi. Este docu-

    mento analisado em Artur Teodoro de Matos. "O imprio colonial portugusno incio do sculo XVII', Arquiplago, v.I, no 1 (1'995)' p. 1'81'-223'

    7. Memorando de Joseph Israel da Costa, Algemein Rijksarchief, Loketkas 6, StatenGeneraal West Indische Compagnie.

    8. AHU, Bahia, papis avulsos, caixa 1, L" ser. no cat.9. A respeito da questo ainda no esclarecida da inveno do engenho vertical de

    trs rolos, ver John Damiels e Christian Daniels, 1988, p. 493-535.10. G. B. Hagelb erg, 1.996, P. 9-25.11. ANTT, Cartrio dos Jesutas, mao 1.3, doc. 4. Na colheita de t61'1-1'2, no

    Engenho Sergipe, a seguinte anotao foi feita no livro de contabilidade: "a umarteso que ajudou Sebastio Pereira a f.azer uma gangorra durante 'l'2 dias a320rs". (ANTT, Cartrio dos Jesutas' mao 14, doc.4).

    12. Suely Robles Reis de Queiroz, 1'967.

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