31
A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade nas novas linguagens visuais tecnológicas Patrícia Silveirinha Universidade Nova de Lisboa Índice 1 Introdução 1 2 O vídeo opera uma mudança 3 2.1 Vocação anti-televisiva do vídeo 4 2.2 A vocação narcisista do vídeo . . 6 2.3 A vocação formalista do vídeo . 8 2.3.1 Interpenetrações com o cinema experimental: algumas linhas de leitura ............ 9 2.3.2 Processos e consequências .. 15 3 A pós-modernidade do vídeo 18 3.1 Críticas e problematizações . . . 23 3.2 Relação com o corpo do especta- dor: experiência sensorial .... 27 1 Introdução Neste texto centrar-nos-emos sobre a ques- tão das imagens geradas electrónica, ou di- gitalmente. Argumentaremos que as prá- ticas que fazem uso destas novas tecnolo- gias se podem inscrever na continuidade de um questionamento, iniciado com a arte mo- derna, do lugar da representação e do sujeito, operando, no entanto, em relação a esta, uma mudança fundamental. Essa mudança diz respeito ao tipo de comunicação estabelecido e à ambiência criada pelos novos meios tec- nológicos, designadamente, na relação esta- belecida com o próprio corpo e no desloca- mento de um enfoque nas possibilidades de percepção, para um ênfase nas próprias sen- sações. Este deslocamento foi já antevisto por Walter Benjamin 1 e por Marshall Ma- cLuhan 2 Benjamin atribui um sentido táctil às cópias, ao qual opõe o sentido óptico do original. Também MacLuhan, imputa às no- vas tecnologias uma qualidade táctil, que se opõe ao domínio do óptico, operando uma ruptura com o modernismo, concebido como a elevação da razão instrumental ao abso- luto. A nova tecnologia, para MacLuhan, anuncia o declínio da razão ocidental ana- lítica (homogénea, estandardizada, linear) e inicia uma nova era, um retorno aos valores perdidos da época pré-Gutenberg. É nosso argumento que possibilidade de manipulação total das imagens, através dos 1 Benjamin, Walter; “A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica” (1936), in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d’Água, Lisboa, 1992, pp. 71-113. 2 MacLuhan, Marshall, A Galáxia de Gutenberg, Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972. (1 a Edição 1962).

A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

  • Upload
    lecong

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeoProcessos de abstracção e domínio da sensorialidade

nas novas linguagens visuais tecnológicas

Patrícia SilveirinhaUniversidade Nova de Lisboa

Índice

1 Introdução 12 O vídeo opera uma mudança 32.1 Vocação anti-televisiva do vídeo 42.2 A vocação narcisista do vídeo. . 62.3 A vocação formalista do vídeo. 82.3.1 Interpenetrações com o cinema

experimental: algumas linhasde leitura. . . . . . . . . . . . 9

2.3.2 Processos e consequências. . 153 A pós-modernidade do vídeo 183.1 Críticas e problematizações. . . 233.2 Relação com o corpo do especta-

dor: experiência sensorial. . . . 27

1 Introdução

Neste texto centrar-nos-emos sobre a ques-tão das imagens geradas electrónica, ou di-gitalmente. Argumentaremos que as prá-ticas que fazem uso destas novas tecnolo-gias se podem inscrever na continuidade deum questionamento, iniciado com a arte mo-derna, do lugar da representação e do sujeito,operando, no entanto, em relação a esta, umamudança fundamental. Essa mudança dizrespeito ao tipo de comunicação estabelecido

e à ambiência criada pelos novos meios tec-nológicos, designadamente, na relação esta-belecida com o próprio corpo e no desloca-mento de um enfoque nas possibilidades depercepção, para um ênfase nas próprias sen-sações.

Este deslocamento foi já antevisto porWalter Benjamin1 e por Marshall Ma-cLuhan2 Benjamin atribui um sentido táctilàs cópias, ao qual opõe o sentido óptico dooriginal. Também MacLuhan, imputa às no-vas tecnologias uma qualidade táctil, que seopõe ao domínio do óptico, operando umaruptura com o modernismo, concebido comoa elevação da razão instrumental ao abso-luto. A nova tecnologia, para MacLuhan,anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear) einicia uma nova era, um retorno aos valoresperdidos da época pré-Gutenberg.

É nosso argumento que possibilidade demanipulação total das imagens, através dos

1 Benjamin, Walter; “A Obra de Arte na Erada Sua Reprodutibilidade Técnica” (1936), inSobreArte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d’Água,Lisboa, 1992, pp. 71-113.

2 MacLuhan, Marshall,A Galáxia de Gutenberg,Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo,1972. (1a Edição 1962).

Page 2: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

2 Patrícia Silveirinha

meios electrónicos e digitais, abre novoscampos de produção cultural que se carac-terizam por uma tendência abstraccionista,campos onde, sistematicamente, o lugar darepresentação e do sujeito é questionado, re-trabalhado, redimensionado. As novas tec-nologias de imagem permitem a criação deum espaço e de objectos, sem recurso a qual-quer materialidade prévia, sem qualquer re-lação a referentes preexistentes.

Este não é, no entanto, um processo in-teiramente novo. Na pintura, já há muito sehavia rompido os cânones sagrados da repre-sentação. Por outro lado, no cinema - desde avanguarda europeia dos anos vinte aounder-ground americano - encontramos uma artetotalmente experimental, sem qualquer vin-culação a um “real” preexistente. É o casode algumas experiências mais radicais do ci-nema, onde, inclusivamente, a intervençãodirecta sobre a película - através de riscos,pinturas ou colagens - e a sua posterior pro-jecção - convidava já a uma mudança na per-cepção das imagens.

A questão parece ganhar maior pertinên-cia devido ao facto de a inserção do com-putador no domínio artístico afectar todasas imagens produzidas por processos ópticos(fotografia, cinema, televisão), na medidaem que todas elas serão, a curto prazo, di-gitalizadas, transmutadas em números, paraserem transmitidas, difundidas, conservadase manipuladas. Com as novas tecnologias,suporte e mensagem confundem-se. As no-vas tecnologias tornam possível uma produ-ção infinita de imagens sem que nenhumadelas preexista como tal. A sua imateriali-dade permite-lhes uma actualização poten-cial nos diversos meios. Isto provoca umaruptura em relação aos antigos conceitos dereprodutibilidade, cópia e original. Os dis-

positivos electrónicos e informáticos inaugu-ram aquilo que poderíamos chamar como acultura do disponível ou do virtual, algo queexiste em estado de pura possibilidade, masnão em acto, e que pode ser actualizado dediversas maneiras. A reprodutibilidade estábaseada na geração de cópias a partir de umamatriz única. A digitalização da imagempossibilita um número infinito de cópias semperda alguma de qualidade. A informaçãoaudiovisual, contida numa cópia de milésimageração, é exactamente a mesma contida namatriz de primeira geração: nem um pixel amais ou a menos. Não se trata de copiar, massim de aceder a informação que se encontradisponível num qualquer banco de dados. Aabstracção, neste sentido lato, toma conta do‘último reduto’ de referencialidade ou repre-sentatividade material que o cinema domi-nante e a fotografia mantêm ao longo desteséculo. Sai do domínio estrito das artes parainvadir a cultura popular.

A questão que se coloca é, então, a de sa-ber como e onde se inscreve, e o que podesignificar, essa ‘nova abstracção’ dos meioselectrónicos e digitais. Uma continuação doprojecto modernista, greenbergiano e forma-lista? Um retorno aos valores perdidos daera pré-Gutenberg, como parece crer o opti-mismo libertador de MacLuhan? Um domí-nio onde a realidade foi metamorfoseada ehibridizada em simulacro de hiperrealidadealienante como defende Baudrillard? Um re-torno a estratégias alegóricas que indiciamuma crise de significação, patente na sepa-ração entre o significante e o significado,centrando-se sobre este último, e perspecti-vando, não uma estratégia meramente for-malista, mas uma ‘saturação de sentido’ euma consequente ‘abertura’ semântica? Oponto culminar e o exemplo máximo de uma

www.bocc.ubi.pt

Page 3: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 3

série de práticas culturais pós-modernas, ca-racterizados por um processo de ‘esquizofre-nia’, como argumenta Jameson ao reflectirsobre as práticas de vídeo actuais?

Estas são algumas das questões que pro-curaremos problematizar ao longo das próxi-mas linhas. Para tal, estruturámos este textoda seguinte forma: em primeiro lugar, tentá-mos descortinar as principais tendências daspráticas do vídeo, nas suas diferenças e re-lações, tendo encontrado três grandes domí-nios: vocação antitelevisiva, vocação narci-sista e vocação formalista do vídeo. Nestaúltima, prestaremos particular atenção às in-terpenetrações entre o vídeo e o cinema ex-perimental. Em seguida, procuraremos esta-belecer os procedimentos e as consequênciasresultantes das práticas referidas. A relaçãodesses procedimentos e consequências coma questão da pós-modernidade ocupar-nos-áa terceira parte deste capítulo. Para terminar,centrar-no-emos especificamente sobre umaquestão central no nosso argumento: o papeldesempenhado pela experiência sensorial nacomunicação estabelecida com o espectador.

2 O vídeo opera uma mudança

A responsabilidade pelo nascimento daquiloa que virá a ser designado como ‘arte vídeo’é normalmente atribuída a Nam June Paik,quando este realiza, em 1965,Café Gogo.Oseu nascimento coincide com uma operaçãocomercial, mais do que com uma descobertatécnica: o lançamento no mercado, por parteda SONY, da telecâmara portátil e do vídeogravador.

Desde o início que a arte vídeo estabelecerelações complexas, quer com os restantesdomínios artísticos - nomeadamente com apintura e com o cinema -, quer com os meios

de cultura popular - designadamente a tele-visão. A hibridez desta nova forma ‘artís-tica’ prende-se com várias ordens de razões eencontra-se bem patente nas primeiras tenta-tivas de definir a lógica cultural do vídeo quedefendem, por um lado, uma lógica social-mente determinada (a vocação anti-televisivado vídeo); por outro, uma lógica interna-mente determinada, caracterizada, quer pelasua a vocação expressiva e narcisista, querpelo formalismo do novo meio artístico (se-guindo a ideia de que, desde o início, a artevídeo mantém relações mais estreitas com asartes plásticas do que com o cinema e com atelevisão).

Em 1979, Stuart Marshall distingue duasgrandes categorias de obras vídeo efectua-das por artistas nos Estados Unidos. A pri-meira, é aquilo que designa como ‘syna-esthetic abstraction’. A segunda, consistenum documentário diarístico e pessoal, fre-quentemente tendendo em direcção ao psico-drama. O termo ‘synaesthetic abstraction’é utilizado para referir a geração electró-nica de imagens abstractas usando sintetiza-dores vídeo e colorizadores de imagens. Nasua maior parte, a ‘synaesthetic abstraction’tende a evitar a representação e promove amistificação das formas de produção de ima-gens. Por sua vez, na categoria do docu-mentário pessoal existe, para Marshall, umaforte sub-categoria que pode ser caracteri-zada como ‘vídeo narcisista’.

Em relação aos trabalhos efectuados naEuropa, Marshall distingue igualmente duascategorias: uma, fortemente modernista,preocupada fundamentalmente, com as pos-sibilidades da tecnologia e com o processo

www.bocc.ubi.pt

Page 4: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

4 Patrícia Silveirinha

produção de imagens; e outra, centrada nasconvenções da representação televisiva.3

Embora não concordemos com a distinçãoefectuada por Marshall em relação às dife-renças entre as tendências encontradas nosEstados Unidos e na Europa,4 as quatros ca-tegorias distinguidas pelo autor são bastanteúteis analiticamente e parecem-nos, de facto,agrupar diferentes tendências e práticas da-quilo que tem sido indiscriminadamente de-signado como ‘arte vídeo’. No entanto, emvez de quatro grupos, e anulando a distinçãoentre a Europa e os Estados Unidos, encon-trámos apenas três categorias. Estas coinci-dem com o que já acima designámos comoa ‘vocação anti-televisiva’, a ‘vocação narci-sista’ e a ‘vocação formalista do vídeo’.

2.1 Vocação anti-televisiva dovídeo

O facto de o vídeo partilhar com a televi-são a sua tecnologia determina, desde logo,uma relação complexa e problemática entreos dois meios: uma relação que insiste napartilha da mesma tecnologia, para, a partirdaí, operar, paradoxalmente, uma distinção.O vídeo tenta demarcar-se e autonomizar-se, explorando uma série de estratégias quepassam por uma crítica acérrima aos pró-prios mecanismos e processos da televisãode massas, instituindo-se como uma “anti-

3Marshall, Stuart; “Video: Technology and Pra-tice”, Screen, Vol. 20, no 1, Primavera 1979, pp.109-113.

4Cremos que estas estratégias se podem encontrarde forma indistinta nos dois continentes e mesmo naobra de um mesmo autor. Veja-se, por exemplo, a ex-tensa obra de Nam June Paik, realizada nos EstadosUnidos, onde a reflexão sobre a tecnologia e as con-venções da representação televisiva, são dados funda-mentais.

televisão”. Esta crítica é efectuada atravésde um conjunto de procedimentos, que mar-cam a arte vídeo nos seus inícios, e que pro-curam desmistificar, quer os conteúdos, queros próprios procedimentos formais da já en-tão instituída linguagem televisiva. Destaforma, os anos sessenta são, para a arte ví-deo, um período de crítica social, mas tam-bém uma época marcada por uma tentativade destruir, pondo a nu, a perspectiva totali-zante da televisão, que se apresentava comouma “janela para o mundo”. Trata-se, por-tanto, de uma problematização acerca do lu-gar da representação na televisão, bem comode um questionamento acerca da integraçãode novas formas de transformação e manipu-lação de imagens. Estas duas últimas carac-terísticas manifestam-se através de um cen-tramento no próprio meio - insistindo na to-mada de consciência da sua própria materia-lidade -, bem como através da tendência paraatribuir um papel activo ao receptor (procu-rando redefinir o seu lugar de agente pas-sivo).

Nesta linha, Réné Berger fala de uma artevídeo que nega o ‘realismo’ da televisão edenuncia a sua presumida ‘realidade’ (bemcomo a presumida objectividade de qualquerimagem). O vídeo denuncia o facto “de atelevisão, que tende a fazer-se considerar ea ser considerada como a própria ordem dascoisas, ser uma ordem fundada numa tecno-logia e em relações sociais que a dominam.”5

A arte vídeo valoriza, e procura ex-plorar, as características técnicas do meioelectrónico. Assim, joga com uma auto-referencialidade que insiste em tornar visível

5 Relatório Crea, no 5, Unesco, Paris, 1983. Ci-tado em Aristarco, Guido e Teresa (Ed.); O NovoMundo das Imagens Electrónicas, Lisboa, Edições70, 1990, pp. 130.

www.bocc.ubi.pt

Page 5: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 5

a materialidade do meio fazendo uso daquiloque a televisão considera ‘erros’ técnicos eruído: granulosidade, hipercoloração, defor-mação da relação espacial entre as linhas, au-sência de imagem, procedimentos de acele-ração e desaceleração de imagens, sobrepo-sição. Por outro lado, procura redimensionara própria relação espacial do aparelho tele-visivo, redefinindo o seu espaço e a interac-ção. Esta última estratégia encontra-se bempatente nas ‘instalações vídeo’, que utilizamo aparelho de televisão como objecto escul-tural, procurando estender os limites do pe-queno ecrã televisivo, de forma a criar umaenvolvência maior com o receptor, insistindoem práticas que visam uma espacialização daimagem e o estabelecimento de uma relaçãosensorial com os objectos expostos e as ima-gens projectadas.

Por outro lado, se o aparelho televisivo seencontra fora do seu habitual ambiente ca-seiro, a consciência da postura passiva adop-tada pelo receptor frente ao monitor, torna-separte determinante da sua experiência, bemcomo a percepção do aparelho televisivocomo um objecto ocupando um determinadoespaço e determinando as relações com essemesmo espaço. O vídeo pode, virtualmentedesconstruir a ordem espaço/temporal. Temo potencial para participar na deslegitimaçãoda funcionalidade das acções e das narrati-vas de causalidade. Pode questionar a ordemnatural das coisas através da qual, e onde, alegitimação se baseia.

Nam June Paik, por exemplo, joga coma própria materialidade do aparelho televi-sivo, quando realiza instalações onde o mo-nitor é colocado, sem qualquer imagem noecrã, em posições invertidas e disfuncionais,apresentando-se como um objecto escultural.O objectivo último destas práticas é descon-

textualizar e desfamiliarizar o uso habitualdo monitor de forma a desmistificar a suapresumida neutralidade e objectividade.6

A vocação anti-televisiva da arte vídeopartilha ainda a crítica social aos conteú-dos ideológicos televisivos com outros mo-vimentos da época, nomeadamente com aGuerrilla Televisionque, nos Estados Uni-dos, propunha uma ‘outra televisão’, críticae desmistificadora dos conteúdos veiculadospela televisão ‘oficial’.7

No entanto, e como já acima referimos, acrítica levada a cabo pela arte vídeo centrava-se, preferencialmente, nos seus procedimen-tos formais, procurando demonstrar a ilusãode perspectiva operada pelas próprias ima-gens televisivas e pelos procedimentos técni-cos que procuram apagar qualquer marca de

6Segundo Margaret Morse, o deslocamento ope-rado por Paik “do monitor em vestuário para o corpofeminino (...) ou a sua reorientação dos aparelhos detelevisão emTV Clock(1968-81)” consiste “numa li-teralização da ordem temporal da programação televi-siva.” Mas, para além dessas estratégias de referênciatelevisiva, Morse afirma ainda que “o deslocamentodos aparelhos televisivos em objectos naturais emTVGarden(1974-78), naquilo que a cassete deGlobalGroove(1973) compilou de todo o mundo, demons-trou um mundo de imagens como ambiente natural einternacional. Isto é, o nosso envolvente de imagensjá não representa um mundo separado. As imagensprocessadas por computador, nas quais Paik desempe-nhou um papel pioneiro, é outra indicação de que asimagens não são elas próprias a nossa matéria prima,o mundo natural sobre o qual exercemos a nossa in-fluência enquanto sujeitos.” Morse Margaret; “VideoArt: The Body, The Image, and Space-in-Between”;in Hall, Doug e Figer, Sally Jo (Ed.),Illuminating Vi-deo. An Essential Guide to Video Art, Aperture, NewYork, 1990, pp. 161.

7 Acerca daGuerrilla Televisonver o excelente ar-tigo de Boyle, Dierdre; “A brief history of AmericanDocumentary Video”, in Hall, Doug e Figer, Sally Jo(Ed.), Illuminating Video. An Essential Guide to Vi-deo Art, Op. Cit., pp. 51-69.

www.bocc.ubi.pt

Page 6: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

6 Patrícia Silveirinha

ilusionismo, apresentando-se com uma vo-cação eminentemente representativa e tota-lizante, neutral e objectiva do mundo.

Nesta linha, e num artigo de 1975 intitu-lado Video; the Distinctive Features of theMedium,8 David Antin, discute o parentescodo vídeo, desde o seu início, com aquilo queconsidera o seu ‘parente mau’ (a televisão).O vídeo portátil, que consiste no ponto de re-ferência do autor em 1975, é ainda uma ima-gem de baixa resolução e que não pode sereditada sem deixar marcas. Essas imperfei-ções técnicas mantêm, para Antin, as inscri-ções da intervenção humana e caracterizamum meio que implica baixos custos de pro-dução - factores que o autor considera essen-ciais para a manutenção do vídeo como meioartístico, independente das leis do mercado.

Maureen Turim, numa análise crítica daposição de Antin, opera uma distinção en-tre aquilo que designa como ‘primeira fasedo vídeo’, ou seja, o vídeo antes da mon-tagem, do processamento de imagens e docontrolo pelo computador; e a ‘segunda fasedo vídeo’, na qual as capacidades técnicasque vieram a caracterizar a especificidade daimagem vídeo mais adiante já se encontramdisponíveis.9 O vídeo percorreu um longocaminho, partindo de um ponto em que era

8Antin, David; “Video; the Distinctive Features ofthe Medium” Catálogo da ExposiçãoVideo Art, Ins-titute of Contemporary Art, University of Pennsylva-nia, 1975, reeditado em Hanhardt, John (Ed.);VídeoCulture: A Critical Investigation, Peregrine SmithBooks, New York, 1986 e citado em Maureen Turim;“The Cultural Logic of Vídeo”, in Hall, Doug e Fi-ger, Sally Jo (Ed.),Illuminating Video. An EssentialGuide to Video Art, Op. Cit., 1990.

9 Maureen Turim; “The Cultural Logic of Vídeo”,in Hall, Doug e Figer, Sally Jo (Ed.),Illuminating Vi-deo. An Essential Guide to Video Art, Op. Cit., pp.335.

menos maleável do que o cinema para setornar muito mais construtivista. A posiçãode Antin é vista por Turim como historica-mente circunscrita. O vídeo, na opinião deTurim, caminhou muito para além da sua de-finição primitiva e baseada no seu aparatotecnológico. No entanto, Turim consideraque, “estes primeiros vídeos, se considera-dos da perspectiva da manipulação de ima-gem são remarcavelmente evocativos do fu-turo. Que os artistas escolham humanizar asimagens, ou marcá-las como assinaturas deauto-retrato, representa o contradição opera-tiva entre arte do passado e a tecnologia dopresente e do futuro.”10

2.2 A vocação narcisista do vídeoRosalind Krauss, em 1978,11 argumenta quea arte vídeo é essencialmente narcisista. O‘Eu’ do vídeo experimental é visto comouma subjectividade narcisista, desligada docontexto social. Esse desligamento é efectu-ado e potenciado pelo própriomeio.12

A vocação narcisista do vídeo advém dofacto de o próprio meio, devido às suas ca-racterísticas técnicas e funcionais, permitiro estabelecimento de uma relação pessoal eautónoma entre o utilizador e a tecnologia,

10 Maureen Turim; “The Cultural Logic of Vídeo”,in Hall, Doug e Figer, Sally Jo (Ed.),Illuminating Vi-deo. An Essential Guide to Video Art, Op. Cit., pp.335.

11 Também Jean-Paul Fargier, em 1978, fala de re-lações muito particulares entre o vídeo e o narcisismo,e afirma mesmo que “o narcisismo encontra um ins-trumento privilegiado no vídeo.” Fargier, Jean-Paul;“Vidéo et Narcissisme”,Cahiers du Cinéma, 292, Se-tembro 1978, pp. 68.

12 Kraus, Rosalind; “Vídeo: The Aesthetics of Nar-cissism”, in Battcock, Gergory (Ed.),New Artits Vi-deo, E. P. Dutton, New York, 1978.

www.bocc.ubi.pt

Page 7: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 7

dispensando qualquer intervenção de tercei-ros. 13

O vídeo surge, então, como o meio privi-legiado para funcionar como um ‘diário elec-trónico’,14 no qual o artista pode expor assuas obsessões, fragilidades, sonhos; explo-rar a sua fisicalidade, exorcizar das suas me-mórias, medos, fobias etc., de forma intima,autónoma e privada. O vídeo retoma, assim,a função expressiva no domínio das artes vi-suais e, particularmente, no domínio das no-vas tecnologias de imagem.

Para Krauss, a auto-reflexividade própriada arte vídeo aproxima-a das estratégias pós-modernas. Esta auto-reflexividade opõe-se,segundo a autora, à reflexividade caracterís-tica das tendências eminentemente moder-nas.

De facto, mesmo neste campo de expres-são individual, colocam-se questões acercado que é, ou em que é que consiste, essa sub-jectividade que faz uso da tecnologia.15 Me-

13 Acerca da vocação narcisista do vídeo ver, porexemplo, Renov, Michael; “Video Confessions”, inRenov, Michael e Suderburg, Erika (Ed.);Resolu-tions; Contemporary Video Pratices, University ofMinnesota Press, Minneapolis & London, 1996, pp.78-101. Renov examina a emergência da primeirapessoa na confissão vídeo, entendendo o vídeo comoum aparato que, devido ao seu potencial para produ-ção e consumo privado, é particularmente adequadoa papel de facilitador ou de auto-interrogação. Paraalém disso, Renov argumenta que as confissões vídeo,produzidas e trocadas num contexto não hegemónico,podem ser ferramentas poderosas, não só para a auto-compreensão, mas também para uma comunicação bi-lateral.

14Ver Tamblyn, Christine; “Qualifying the Quo-tidian: Artist’s Video and the Prodution of SocialSpace”, in Renov, Michael e Suderburg, Erika (Ed.);Resolutions; Contemporary Video Pratices,Op. Cit.,pp. 13-28.

15 A este respeito ver, por exemplo, James, DavidE; “Lynn Hershman The Suject of Autobiography”;

diada pela tecnologia, a memória, a consci-ência e a percepção distanciam-se do ‘real’e centram-se apenas na percepção subjectivado Eu individual.16

Daí a tese, segundo a qual a arte vídeo -ainda mais do que o cinema ou, pelo me-nos, naquele baseado em processos quími-cos - está em condições de demonstrar queo verdadeiro referente de uma imagem nãoé a realidade, naturalisticamente entendida,mas uma série de outras imagens: imagensmentais; ou imagens situadas, para utilizaras categorizações de Saussure, num eixo pa-radigmático.

Esta tese encerra em si mesmo as duas vo-cações, narcisista e formalista, do vídeo.

A primeira, remete para um domínio desubjectividade, onde o verdadeiro referentede uma imagem é a subjectividade indivi-dual do artista que a cria (imagens mentais),concebendo o vídeo como um meio expres-sivo e com uma vocação narcisista acentu-ada, insistindo na intertextualidade das pró-prias imagens, bem como na interpenetraçãoe interligação entre elas.

Por outro lado, o facto de as imagensse construírem, constantemente, numa inter-

in Renov, Michael e Suderburg, Erika (Ed.);Resoluti-ons; Contemporary Video Pratices,Op. Cit., pp. 124-133. David E. James analisa as práticas diarísticas deLynn Hershman na sua especificidade electrónica.

16 Reflectindo sobre esta questão Timothy Druc-krey relaciona esta tendência com a proposição deWittgenstein “ O sujeito não pertence ao mundo, éuma fronteira do mundo”, que o autor considera umapoderosa chave para se pensar na relação entre o Euindividual e a tecnologia. Druckrey defende que estaproposição, quando aplicada ao domínio tecnológico,vem demonstrar que “o sujeito é mais ou menos umsistema que se adapta, mais do que um sistema adap-tativo.” Druckrey, Timothy (Ed.);Electronic Cul-ture. Technology and Visual Representation, Aper-ture, New York, 1996, pp. 20.

www.bocc.ubi.pt

Page 8: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

8 Patrícia Silveirinha

textualidade significa que podem conceber-se como componentes semióticos operativos(variáveis mínimas significantes e formais)que despoletam, através das suas relaçõesmutáveis, uma rede de processos e transfor-mações qualitativas que geram a obra em vá-rias dimensões favorecendo, quer uma aber-tura semântica, quer uma activação criativapor parte do espectador.

A intertextualidade determina ainda es-tratégias puramente auto-referenciais, ondeo significante apenas remete para ele pró-prio, e onde o artista se interessa essencial-mente pelo vídeo como ‘dispositivo’, utili-zando aqui a expressão de Ann-Marie Du-guet.17

2.3 A vocação formalista dovídeo

A vocação narcisista do vídeo, onde o autortem um papel fundamental, opõe-se às es-tratégias formalistas que se centram na pró-pria tecnologia e nas suas potencialidades,segundo as quais um objecto artístico não sedá a ver como expressão de uma subjectivi-dade, mas antes como pura materialidade.

17 A autora considera que “muitos artistas, in-diferentes aos constrangimentos da ficção clássica,interessam-se imediatamente pelo vídeo enquantoinstrumento de representação. O dispositivo electró-nico oferece-lhes uma grande liberdade no agencia-mento dos diferentes elementos que o constituem (au-tonomia da câmara e do monitor, objecto-imagem quepode ser colocado ou deslocado não importa onde...),uma gama mais vasta de modalidades de difusão (ví-deo projectores reproduzem as condições do cinema,mas também monitores onde a imagem é indepen-dente da luz envolvente. Não há uma maneira de vera televisão.” Duguet, Ann-Marie; “Dispositifs”, inBellour, Raymond e Duguet Ann-Marie (Ed.);Vidéo,Communications, 48, Seuil, Paris, pp. 227.

A vocação formalista do vídeo determinaa sua relação privilegiada com os procedi-mentos iniciados nas artes plásticas18 e nocinema experimental, de duas formas.

Uma primeira, cujo enfoque é a própriatecnologia e materialidade do meio: o impor-tante não é produzir mais uma imagem, masmanifestar o processo da sua produção, re-velar as modalidades da sua percepção atra-vés de novas proposições. Esta ideia estáligada às posições modernas de Greenberg,à Arte Minimal e a algum cinema experi-mental, nomeadamente o cinema estrutural.Os trabalhos iniciais de Nam June Paik podeenquadrar-se nesta linha. É o próprio artistaque afirma: “Não era a imagem que me in-teressava, mas a fabricação da imagem: ascondições técnicas e materiais da sua produ-ção ou, dito de outra forma, a exploração ver-tical e horizontal.”19

Uma segunda, que se interessa pelo ‘paraalém’ da realidade, através do estudo daforma, do inautêntico, do abstracto ou dasensação, e que estabelece ligações comalgumas correntes e autores vanguardis-tas, designadamente Kandinsky, o Supre-matismo, o Neoplasticismo e com algumasdas vanguardas cinematográficas (nomeada-mente Fischinger e a escola abstraccionistaamericana.) Pode encontrar-se exemplifi-cado nos trabalhos de Bill Viola e nas obrasde Larry Cuba, Jane Veeder, Ronald Pel-legrino e Vibeke Sorensen, entre outros,embora estes, apesar de partilharem alguns

18Para uma análise da interpenetração entre as artesplásticas e o vídeo ver: Turim, Maurin; “The imageof Art in Video”; in Renov, Michael e Suderburg,Erika (Ed.); Resolutions; Contemporary Video Pra-tices, Op. Cit., pp. 29-50.

19 Paik, Nam June, “Entretien avec Nam JunePaik”, Cahiers du Cinéma, 299, Abril, 1979, pp. 12.

www.bocc.ubi.pt

Page 9: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 9

pressupostos, sejam autores muito distintosno que diz respeito aos seus procedimentos eresultados.

2.3.1 Interpenetrações com o cinema ex-perimental: algumas linhas de lei-tura

Um exemplo da interpenetração entre algu-mas vanguardas cinematográficas dos anosvinte e as imagem vídeo actuais pode ser en-contrado no trabalho de Chris Marker,SilentMovie(1995)20.

Fazendo uso de vinte e cinco monitores,onde são montados excertos de filmes dasvanguardas artísticas do cinema mudo,SilentMovieoferece múltiplas entradas de sentidoao permitir uma contemplação do trabalhoque enfatiza, simultaneamente, os aspectosfísicos e preceptivos da recepção. O espec-tador reconhece constantemente as imagens

20Silent Movie(1995) é a segunda instalação vídeode Chris Marker., seguindo a monumentalZappingZone(1991). Subsidiada peloWexner Center for theArtsna Ohio State University por ocasião do centená-rio do cinema, foi aí inicialmente exibida de Janeiroa Abril de 1995. Entre Junho e Setembro do mesmoano esteve em exibição no Museu de Arte Modernade Nova Iorque, fazendo arte de uma exibição colec-tiva de instalação vídeo intituladaVideo Spaces: EightInstallations, da qual faziam parte também trabalhosde Bill Douglas, Bill Viola, Gary Hill, Judith Barry eBrad Miskell, Teiji Furuhashi, Tony Oursler, e MarcelOdenbach. Em 1996, e inícios de 1997, esteve pre-sente noPacific Film Archiveem Berkeley, Californiae noWalker Center for the Artsem Minneapolis, Mi-nesota. A propósito desta instalação, bem como daobra de Chris Marker ver: McElhaney, Joe; “Primi-tive Projections: Chris Marker’s Silent Movie”,Mi-lennium Film Journal,No 29, Fall 1996. A respeitoda exibiçãoVideo Spaces: Eight Installationsver De-bevoise, Clay; “Mirror Spaces. A Review of VideoSpaces: Eight Installations”,Milennium Film Jour-nal, No 29 Fall 1996.

projectadas, tenta organizá-las e agrupá-lasnum todo. No entanto, a montagem utili-zada por Marker reforça apenas a qualidadealucinatória dessas mesmas imagens, prosse-guindo as estratégias e objectivos das van-guardas referidas, mas com uma virtuosi-dade técnica impossível de atingir com osmeios disponíveis nos anos vinte. Indepen-dentemente da quantidade de vezes que assequências são vistas, surgem sempre aosolhos do espectador como um trabalho dife-rente. A justaposição de imagens que ocorrenas sequências computadorizadas oferece-secomo ‘delirantemente’ infinita.

Por outro lado, esta interacção com o es-pectador aposta num processo de descon-tinuidade, que também já havia sido pre-conizado pela vanguarda francesa dos anosvinte. Este investimento na descontinui-dade manifesta-se em técnicas como a câ-mara lenta e o movimento acelerado, as so-breposições de imagens, a montagem, a po-livisão.

Marker multiplica e explora intensamenteessas técnicas que servem a sua função pre-ceptiva, mas que permitem, também, estabe-lecer uma ponte entre o passado e o presente,fazendo uso de uma linguagem simultanea-mente histórica e actual, pondo a descobertotodas as suas analogias e semelhanças.

Nesta linha mesma, Philippe e Colette Du-bois e Marc-Emmanuel Mélon, num artigocolectivo intitulado ‘Cinéma et Vidéo: Inter-prenetrations,que procura estabelecer as re-lações e influências mútuas entre o cinema eo vídeo, consideram que o vídeo continua aexploração de todo um conjunto de procedi-mentos formais desenvolvidos por vanguar-das cinematográficas, nomeadamente na dé-cada de vinte, e que tentam definir o cinema

www.bocc.ubi.pt

Page 10: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

10 Patrícia Silveirinha

como meio artístico.21 Os autores descorti-nam, assim, uma série de “figuras, pressen-tidas, durante os anos vinte, como singular-mente representativas das possibilidades no-vas da ‘arte cinematográfica’ que ecoam comos procedimentos do mesmo tipo que o vídeodesenvolve hoje por sua própria conta.”22

Essas figuras dizem respeito, generica-mente aos procedimentos de manipulaçãodas imagens. No entanto, a par desses pro-cedimentos formais que podem ser encon-trados em vários momentos da história docinema, as vanguardas francesas e alemãsdos anos vinte partilham ainda, com as ac-tuais imagens vídeo, uma semelhança dospróprios objectivos. A manipulação da ima-gem opera uma lógica de movimento, envol-vendo o espectador para lá de qualquer ‘hu-manismo da visão’. O olhar do sujeito torna-se abstracto, etéreo: “o cinema dos anosvinte sonhava com fazer voar o espectador,até à vertigem e ao balanço do reconheci-mento identitário. Realizar uma experimen-tação visual onde a relação com o espaço nãoé tanto uma questão de percepção, como desensação.”23

A questão do deslocamento da percep-ção para o domínio das sensações parece-nos ser uma questão fundamental. Segundoos autores, o cinema, partindo do tratamento

21Acerca das relações entre a arte vídeo e o cinemaexperimental ver também Small, Edward; “Film andVideo Art”, in Edgerton, Gary R, (Ed.);Film andthe Arts in Symbiosis, Greenwood Press, New York,1988, pp. 311-338.

22 Dubois, Philippe; Mélon, Marc-Emmanuel; Du-bois, Collete; “Cinéma et vidéo: interprénétrations”,in Bellour, Raymond e Duguet Ann-Marie (Ed.);Vi-déo, Op. Cit., pp. 267.

23 Dubois, Philippe; Mélon, Marc-Emmanuel; Du-bois, Collete; “Cinéma et vidéo: interprénétrations”,Op. Cit., pp. 274.

da câmara como instrumento de mobilidadeabsoluta da percepção, produz “um inves-timento identificatório do sujeito nessa hi-permobilização; faz descolar a simples per-cepção em direcção à sensação; virginiza oespaço, dando-o a ver, a perceber, a sen-tir como um novo mundo; desenvolve umsentimento de ultrapassagem quase extrasen-sorial, de acesso liberatório a um mundosupra-humano; e, abre mesmo a porta aofantasma totalizante de apreensão panópticado mundo: ver tudo sempre não importa deonde e quase simultaneamente.”24

Por outro lado, revela-se um ‘olho-máquina’, separado do resto do corpo e que“despoja o corpo de qualquer matriz espa-cial; um olho que vai mais depressa do queo pensamento e torna o corpo do especta-dor num lugar perdido, preso no sofrimentoe na prazer: sofrimento de não poder se-guir, de não poder ver tudo, de estar despo-jado, e prazer de aceder a um universo quasesupra-humano, feito de velocidades e de mo-vimentos inauditos, onde tudo parece aindavirgem.”25

Os autores encontram, no entanto, uma di-ferença basilar nos sistemas de representa-ção analisados, uma separação fundamentalentre as imagens cinematográficas e as ima-gens electrónicas, e que pode ser resumidana seguinte constatação: “passámos, grossomodo, de uma imagem ainda unitária, ho-mogénea e de um espaço ainda ‘terrestre’ -resumidamente, de uma representação aindade tipo cinematográfico -, a uma imagem

24 Dubois, Philippe; Mélon, Marc-Emmanuel; Du-bois, Collete; “Cinéma et vidéo: interprénétrations”,Op. Cit., pp. 276.

25 Dubois, Philippe; Mélon, Marc-Emmanuel; Du-bois, Collete; “Cinéma et vidéo: interprénétrations”,Op. Cit., pp. 276.

www.bocc.ubi.pt

Page 11: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 11

estilhaçada e múltipla, a um espaço flutu-ante, sem relação humana - resumidamente,a uma representação (quase) puramente tec-nológica.”26 Esta é a diferença basilar en-tre as imagens cinematográficas e as imagenselectrónicas: estas últimas operam um dis-tanciamento e uma quase total anulação darelação com o real e com a intervenção hu-mana.

A polivisão, a mistura de imagens, os pro-cessos de aceleração e câmara lenta, são pro-cedimentos comuns ao vídeo e ao cinemavanguardista dos anos vinte. Por sua vez, amistura de imagens é a operação mais fun-damental do vídeo e a tomada de perspec-tiva de vários pontos de vista (com a utiliza-ção de várias câmaras registando simultane-amente o mesmo acontecimento) tornou-senum dos aspectos fundamentais das lingua-gens electrónicas, incluindo a televisão. Asimagens vídeo prolongam as imagens cine-matográficas precedentes, estabelecendo, noentanto em relação a estas, diferenças signi-ficativas e criando um ‘ponto de não retorno’em relação aos processos iniciados pelo ci-nema. Este ‘ponto de não retorno’ coincidecom o desaparecimento da câmara e com aabstracção total da imagem, que cria espaçosvirtuais, inumanos, com recurso a lógicas elinguagens puramente matemáticas.27

26 Dubois, Philippe; Mélon, Marc-Emmanuel; Du-bois, Collete; “Cinéma et vidéo: interprénétrations”,pp. 271.

27 “O ponto de não retorno é evidentemente atin-gido com as possibilidades de movimentos ainda maisinéditos, porque teóricos, da imagem de síntese aosquais a nossa percepção se encontra hoje cada vezmais habituada (travellings matemáticos, perspecti-vas exacerbadas, enlaçamentos fluídos, rotações emsimulação, reviravoltas de objectos em falsa gravi-dade). Assiste-se à encenação de um novo espaço,quase inumano, gerado pela tecnologia e electrónico

Esta constatação tem implícita uma crí-tica nostálgica que aponta num sentido deniilismo das imagens electrónicas e digitais,com o desaparecimento do total do olhar hu-mano: “os ângulos deram lugar aosrobots.O olhar desapareceu. É o vazio que joga so-zinho, num turbilhão que aspirou qualquerpossibilidade de sujeito. O vídeo é, talvezainda, eu voo (eu vejo é o cinema), mas atelevisão tornou-se isso mesmo, voa (muitobaixo, geralmente).”28

Para além da ligação da arte vídeo às van-guardas europeias dos anos vinte, encontra-mos ainda uma outra interpenetração, me-nos explorada, das tecnologias com a ten-dência iniciada por Oskar Fischinger e con-tinuada na escola abstraccionista americana.Esta tendência que se encontra bem pa-tente na categoria que Stuart Marshall de-signa por ‘synaesthetic abstraction’ - e quemantém uma forte ligação com estratégiasmais místicas e abstractas, onde a manipu-lação de imagens através da tecnologia fun-ciona como ‘revelação’, ou ‘desvelação’ -está fundamentalmente direccionada para acriação e manipulação de imagens através

instituindo outros modos de relação com a imagem.Não apenas o coro do operador já não faz par com acâmara, mas mesmo a câmara já não existe. A ima-gem tornou-se abstracta. O movimento já não é maisdo que realizar trajectórias numéricas, programas ma-temáticos e algoritmos.” Dubois, Philippe; Mélon,Marc-Emmanuel; Dubois, Collete; “Cinéma et vidéo:interprénétrations”, Op. Cit., pp. 278.

28Dubois, Philippe; Mélon, Marc-Emmanuel; Du-bois, Collete; “Cinéma et vidéo: interprénétrations”,in Bellour, Raymond e Duguet Ann-Marie (Ed.);Vi-déo, Op. Cit., pp. 276-277. Jean-Paul Fargier já haviautilizado esta distinção entre ‘eu voo’ e ‘eu vejo’ parase referir ao sentido último da imagem electrónica naobra de Nam June Paik, por diferença com o cinema.Ver: Fargier, Jean-Paul; “Paikologie”;Cahiers du Ci-néma, 299, Abril, 1979, pp. 7.

www.bocc.ubi.pt

Page 12: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

12 Patrícia Silveirinha

de programas de computador, ou de sinteti-zadores visuais, no seguimento do trabalhode John Withney.29 Normalmente encontra-se restrita ao domínio designado de‘com-puter graphics’ ou ‘música visual’. En-tre alguns dos seus principais representantesencontram-se Larry Cuba, Jane Veerder, Ro-nald Pellegrino e Vibeke Sorensen.

Larry Cuba é, segundo Gene Youngblood,“um dos artistas mais importantes a trabalharactualmente na tradição conhecida indiscri-minadamente como animação abstracta, ab-soluta ou concreta.”30 Os seus trabalhos nãofazem uso do vídeo, mas apenas de computa-dores e de estruturas matemáticas, de formaa explorar o equivalente visual da compo-sição musical, “usando a matemática paracriar imagens, tentando fazê-las afectarem-nos da mesma forma que a música”.31 Cubainteressa-se assim, sobretudo, pela questãoda imagem e do ritmo, servindo-se do com-putador como meio para revelar e trabalharcom base nas estruturas subjacentes às nos-sas percepções e sensações.

Jane Veerder, ao contrário de Cuba, inte-gra imagens vídeo com imagens computado-rizadas em algumas das suas obras, nome-adamente emMontana (1982). Realizadoem conjunto com Phil Morton, esta obra foi,significativamente, o primeiro trabalho de‘computer graphics’a integrar a colecção devídeo do Museu de Arte Moderna de NovaIorque.Montanafoi realizado com imagensvídeo gravadas nas montanhas dos estadosde Montana, Wyoming e Utah, nos Estados

29Ver supraCapítulo II.30 Youngblood, Gene; “Calculated Movements. An

Enterview with Larry Cuba”;Vídeo and Arts Maga-zine, Inverno de 1986.

31 Cuba, Larry; “Calculated Movements. An En-terview with Larry Cuba”, Op. Cit.

Unidos, durante longas estadias de verão. Asimagens são processadas e complementadascom um trabalho de ‘computer graphics’.

Ronald Pellegrino, nas suas obras multi-média, integra animação laser, imagens pu-ramente virtuais e imagens vídeo digitaliza-das. Em todas elas, Pellegrino procura umaestreita relação com a música, de forma aque as imagens surjam como ‘música visu-alizada’, através de uma multiplicidade desuportes e materiais. As formas puramenteabstractas de Pellegrino são, por isso, umatranscrição visual da estrutura musical cor-respondente. Com base na ideia de ‘sistemasperiódicos’ (vibrações que ocorrem em in-tervalos regulares de tempo), Pellegrino pro-cura demonstrar que, com a ajuda de um‘tradutor’ adequado, os padrões sonoros po-dem ser vistos, simultaneamente, como pa-drões visuais. No centro da noção de arteselectrónicas, para Pellegrino, encontra-se aideia do sintetizador como um instrumentoque gera, controla e transforma ondas eléc-tricas em modos análogos a muito do que co-nhecemos, intuitiva, psicológica e cientifica-mente, como o ‘fenómeno do mundo’. Pel-legrino acredita que as estruturas construídascom base nos sintetizadores e nas ondas so-noras partilham as mesmas leis dos fenóme-nos naturais, psicológicos e sensitivos e que,por isso, a comunicação com os espectadoresse constrói em vários níveis de percepção ede reconhecimento.

Também Vikebe Sorensen trabalha comnovos media experimentais, incluindo‘com-puter graphics’e animação. Sorensen par-tiu de trabalhos iniciais, em meados dosanos setenta, com sintetizadores vídeo, paraum crescente envolvimento com imagens tri-dimensionais de ‘computer graphics’, rea-

www.bocc.ubi.pt

Page 13: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 13

lizando uma série de instalações, filmes eobras interactivas.

As suas obras iniciais,Fish and Chips(1985), Microfishe (1985), Parroty Bits(1986),It’s Not a Bug, it’s a Creature(1987),e The Three Ring Circuit(1986), centram-sena exploração da percepção e da experiên-cia através de formas não-objectivas. Soren-sen prossegue, desde essa altura, um trabalhocom imagens abstractas, linguagem, símbo-los, tecnologia e percepção, através, nome-adamente, de obras realizadas por computa-dor. Por outro lado, Sorensen também ex-plora a integração entre as estruturas sonorase visuais. EmNloops(1989), por exemplo,aplica estruturas musicais minimais a umaforma visual.

Em 1993, Sorensen termina uma das suasobras mais importantes:Maya. Através deimagens digitais totalmente abstractas e, in-corporando referências à história da abstrac-ção na arte e na linguagem,Maya pode servisto como uma reflexão sobre a naturezada ilusão. O próprio título (Maya) foi ins-pirado na filosofia Hindu e significa literal-mente “conflito entre a ilusão e a realidade.”

De notar que as estratégias de integra-ção de imagens computadorizadas e abstrac-tas com imagens gravadas electronicamente,confundem-se numa amálgama de obras e deintenções bastante diversas. Para Bill Viola,por exemplo, a total manipulação de ima-gens permitida pelo computador vai deter-minar uma mudança fundamental na nossaforma de percepção, conferindo uma maiorliberdade artística às artes visuais, à seme-lhança do que já aconteceu com a introdu-ção da electrónica no domínio musical:32“o

32 “Incessantemente, a nossa forma de abordar arealização dos filmes vai mudar totalmente. As no-

domínio da imagem por computador é fas-cinante, ele acabará por substituir aquilo quechamamos imagens cinematográficas. Eu es-pero impacientemente, espero que possamosver isso acontecer durante a nossa vida: ofim da câmara!” Só assim, ou seja, “a partirdo momento em que a luz já não é a condi-ção e o material fundamental da imagem, nosencontramos no domínio do espaço concep-tual.”33

No entanto, em vez de estruturas matemá-ticas e algoritmos, Viola está particularmenteinteressado nas relações do nosso espaço in-terior com o mundo exterior. O “espaço con-ceptual” vem demonstrar que “a verdadeiranatureza da nossa relação com o real não re-side na impressão visual, mas nos modelos

ções de ‘matrice’ e de ‘métrage’ vão desaparecer.‘Montar’ vai tornar-se ‘escrever um programa desoft-ware’ que dirá ao computador como dispor (isto é,rodar, cortar, dispersar, apagar) a informação sobreo disco, difundi-la na ordem especificada em temporeal ou permitir ao espectador intervir. Tornando-seinútil ‘cortar’ realmente ou registar a velocidade deprojecção, as incontornáveis trinta imagens por se-gundo, vão tornar-se inteligivelmente variáveis e, por-tanto, maleáveis, como na música electrónica, numafrequência fundamental entre muitas outras que podeser modulada, aumentada ou diminuída, sobrepostaou interrompida, segundo os parâmetros da teoria dasondas electrónicas. Podemos associar a diferentessecções uma projecção em velocidades específicas,invertidas; podemos parar as imagens no ecrã por umperíodo de tempo pré-determinado. Podemos repetiroutras sequências ao infinito.” Viola, Bill; “Y-aura-t-il copropriété dans l ’espace de données?”; in Bellour,Raymond e Duguet Ann-Marie (Ed.);Vidéo, Op. Cit.pp. 71.

33 Viola, Bill; “Entretien avec Bill Viola: L’espacea pleine dent”; in Fargier, Jean-Paul (Dir.),Où va lavidéo, Cahiers du Cinéma, Éditions de l‘Étoile, Paris,1986, pp. 70.

www.bocc.ubi.pt

Page 14: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

14 Patrícia Silveirinha

formalizados de objectos e de espaço que océrebro cria a partir de sensações visuais.”34

Margaret Morse, compara a justaposi-ção de elementos nos monitores vídeoaos processos operados pela música serial.Referindo-se aDachau(1974) de Beryl Ko-rot afirma: “foi a primeira instalação vídeo aexplorar sistematicamente a justaposição domaterial nos monitores, num processo quepoderia ser comparado à musica serial.”35

Também Nam June Paik mantém fortesrelações com a música. De facto, Paikparte para o vídeo depois de um envolvi-mento inicial com a música electrónica, par-ticularmente com os trabalhos de Stockhau-sen e de John Cage. Pode, inclusivamente,interpretar-se muitas das suas obras em ví-deo como uma tentativa de transferir certosconceitos e técnicas musicais para o domíniovisual, partindo do princípio da existência deuma analogia entre os diversos meios elec-trónicos: “a música electrónica é um meioelectrónico, mas a televisão também é elec-trónica.”36Paik vê o vídeo em geral, e asinstalações vídeo em particular, como umaforma de abandonar as estruturas discursivasformais e de operar a um nível mais transcen-dente nas relações com o material. A pró-pria ideia deTV-Cello, em que a televisãoé vista como um violoncelo, uma máquinade som, pode enquadrar-se nesta perspectiva.Fargier afirma que “aTV -Cellonão produz

34 Viola, Bill; “Entretien avec Bill Viola: L’espacea pleine dent”; in Fargier, Jean-Paul (Dir.),Où va lavidéo, Op. Cit., pp. 70.

35 Morse Margaret; “Video Art: The Body, TheImage, and Space-in-Between”; in Hall, Doug e Fi-ger, Sally Jo (Ed.),Illuminating Video. An EssentialGuide to Video Art,Op. Cit., pp. 163.

36Nam June Paik: “Entretien avec Nam June Paik”,Cahiers du Cinéma, 299, Abril, 1979, pp. 10.

uma imagem, mas várias imagens. Imagensda imagem: o que oferece por inteiro, é oque resta da imagem na qual ela está contida,oferecendo uma parte, um fragmento, umgrande plano. Ou vice-versa: fragmentos nointerior e conjunto no exterior, no fundo.”37

A TV-Cello não produz som, mas relaçõesentre as imagens.

Por outro lado, o primeiro sintetizador vi-sual construído por Nam June Paik e porShuya Abe, em 1970, permite uma manipu-lação inédita das imagens produzidas. Estesintetizador gera horas de imagens lumines-centes abstractas que podem ser, ou não,combinadas com imagens concretas eventu-almente manipuladas. Paik fala do seu sinte-tizador como “um aparelho muito abstracto.As imagens que ele produz não têm nada aver com as imagens clássicas, realistas.”38

Com variações, estas máquinas foramconcebidas para permitir uma manipulaçãosem precedentes do sinal electrónico e colo-car a tecnologia directamente nas mãos dosartistas.39

De facto, com a imagem electrónica e di-gital opera-se aquilo a que poderíamos de-signar como a ‘assimilação da visão pela tec-

37 Fargier, Jean-Paul; “Paik: le jour où la vidéofut...: Premiers pas de l’homme dans le vide”, in Far-gier, Jean-Paul (Dir.),Où va la vidéo, Op. Cit., pp.19.

38Paik, Nam June; “Entretien avec Nam JunePaik”, Cahiers du Cinéma, 299, Abril, 1979, pp. 13.

39 Nam June paik afirma: “Nietzsche disse háimenso tempo: ‘Deus está morto’. Eu digo agora: ‘opapel está morto... à parte do papel higiénico’. SeJoyce vivesse no nosso tempo, teria certamente es-crito o seuFinnegans Wakeem banda vídeo, devido àsenormes possibilidades de manipulação que comportaa memória de informação magnética.” Paik, NamJune, “Videa, vidiot, vidéologie” in Bellour, Ray-mond e Duguet Ann-Marie (Ed.);Vidéo, Op. Cit., pp.40.

www.bocc.ubi.pt

Page 15: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 15

nologia’. Mas através de que processos é queessa assimilação tem lugar?

2.3.2 Processos e consequências

Segundo Peter Wollen, o computador, com asua capacidade de manipulação e de simula-ção, torna-se parte de um sistema integrado,que contém, tanto as velhas, como as novastecnologias de registo. Wollen resume as ca-racterísticas principais do novo sistema daseguinte forma: acesso a um banco de dadosde imagens emstockna memória electrónicaque permite reciclar o conteúdo de um bancode imagens para as recontextualizar total-mente; manipulação imediata (combinação,distorção, alteração, etc.) de imagens dis-poníveis de forma a que imagens de origensdiferentes possam ser combinadas; produçãode imagens por computador; simulação domundo real pelo computador; combinaçãode todos os procedimentos anteriores; e, porfim, outros domínios em curso de desenvol-vimento: hologramas e outros tipos de ima-gens a três dimensões; a interactividade e ou-tras formas de interface espectador-imagem(dispositivos de ecrãs múltiplos, bem comonovos tipos de transmissão e de recepção,como a fibra óptica)40.

Partindo das características apontadas porWollen, podemos concluir que, na tecnologiadigital, a manipulação das imagens atravésda sua combinação é um aspecto fundamen-tal, visto que a relação e as conexões entreimagens, ou conjuntos de dados, não é fixa.A imagem permanece assim, sempre, comoimagem em potência: uma imagem que podeser combinada e recombinada de acordo com

40 Wollen, Peter; “Le cinéma, l’americanism et lerobot”, in Bellour, Raymond e Duguet Ann-Marie(Ed.);Vidéo, Op. Cit., pp. 32.

uma variedade infinita de princípios e per-mutações. A imagem é reduzida aopixel,a um fragmento de luz digitalizado, a umconjunto de princípios que integram o mo-vimento, a luz e o som. Esta flexibilidadede relações entre imagens e fragmentos deimagens oferecida pelos computadores de-termina, por sua vez, uma alteração radicalnos nossos sistemas de representação. O es-paço deixa de estar confinado, como no ci-nema e na fotografia, a uma perspectiva re-nascentista, monocular.

É neste sentido que Ann-Marie Duguetconsidera que a imagem electrónica vemoperar um questionamento nos nossos sis-temas de representação: “uma certa catego-ria de instalações vídeo desempenha o papelde analista daquilo que constituem os funda-mentos da representação dominantes desdea renascença, elaborados segundo o modeloperspectivista e que se prolongam através daconcepção e das regras actuais de diversascâmaras41. Para Duguet, essa alteração temlugar através de três operações essenciais:conversão do ponto de fuga em ‘ponto detempo’, revelando perspectivas relativistas;confrontação do espaço virtual e imaterial daelectrónica com espaços de referência; tor-nar o corpo do visitante no instrumento pri-vilegiado de exploração, isto é, de revelaçãodo dispositivo42.

Nam June Paik considera que a princi-pal diferença entre a imagem do cinema e aimagem electrónica consiste no desapareci-mento do espaço. Na imagem televisiva nãohá espaço, não há imagem, mas apenas li-nhas electrónicas: “o conceito essencial da

41Duguet, Ann-Marie; “Dispositifs”, Op. Cit., pp.227.

42Duguet, Ann-Marie; “Dispositifs”, Op. Cit., pp.228.

www.bocc.ubi.pt

Page 16: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

16 Patrícia Silveirinha

televisão é o tempo (...). Em televisão nãohá verdade. Faça-se o que se fizer, já nãohá imagem. É tudo invenção pura, tudo seproduz a partir de um entrelaçamento elec-trónico e artificial”43.

Edmond Couchot, por sua vez, centra-sena própria materialidade do meio electrónicode representação para, a partir daí, retiraras consequências de uma imagem ‘materi-almente’ abstracta. Para isso, realiza umadistinção entre os meios electrónicos e digi-tais. Se, do ponto de vista morfogenético, aimagem vídeo electrónica advém de um sis-tema de figuração (que consiste em registar,através de meios ópticos, o traço luminosodeixado por um objecto que preexiste à ima-gem), na imagem numérica, “a numeriza-ção, logo o cálculo, permite exercer um con-trolo total sobre o último constituinte físicoda imagem: o ponto, que se designapixelem síntese de imagem”44. Essa manipula-ção determina que opixelseja, antes de tudo,linguagem: “uma linguagem formalizada, éverdade, mas uma linguagem. Não traduznenhuma realidade preexistente, torna visí-veis modelos lógicos e matemáticos, símbo-los abstractos”45.

Ainda segundo Couchot, quer a imagemelectrónica, quer a imagem numérica intro-duzem importantes mudanças em relação aossistemas representativos do cinema e foto-grafia. A imagem electrónica, ao contrárioda imagem cinematográfica (ou fotográfica),que funciona geometricamente como uma ja-

43Paik, Nam June, “Entretien avec Nam June Paik”,Cahiers du Cinéma, 299, Abril, 1979, pp. 10-11.

44Couchot, Edmond; “La mosaïque ordonnée oul’ecran saisi par le calcul”; in Bellour, Raymond e Du-guet Ann-Marie (Ed.);Vidéo, Op. Cit., pp. 82-83.

45Couchot, Edmond; “La mosaïque ordonnée oul’ecran saisi par le calcul”, Op. Cit., pp. 82-83.

nela para o mundo (importando o olhar inte-rior para o exterior), faz entrar o exterior nointerior, produzindo um efeito de ‘incrusta-ção’.”46

Por seu lado, a imagem numérica permitea criação de um ‘universo de outro tipo’,nas palavras do autor, “oscilando entre o reale o imaginário, nem objecto, nem imagem,composto de virtualidades infinitas; um uni-verso onde o espaço, mas sobretudo o tempo,são de uma outra essência”47. Este é, paraCouchot, o maior interesse da imagem nu-mérica e dos procedimentos de simulação,mais do que qualquer tipo de ‘hiperabstrac-ção’ e de ‘hiperformalismo’, ou pelo contrá-rio, de qualquer ‘hiperrealismo’ cru ou aindade procedimentos e distanciamentos críticosexercidos sobre estas técnicas.

Florence de Mèredieu, encontra duas ten-dências de sentido inverso no tratamento daimagem vídeo. Uma primeira que tende“para a implosão, a destruição, desfiguração

46Couchot, Edmond; “La mosaïque ordonnée oul’ecran saisi par le calcul”, Op. Cit., pp. 80. Tam-bém Jean-Paul Fargier já havia falado de incrustaçãocomo o “protótipo de todas as operações de análisee de síntese geradas electronicamente”. Fargier de-fine a incrustação como “essa operação que consisteem incluir electronicamente um fragmento de ima-gem bem circunscrito (actor, jornalista, objecto, pa-lavra) numa outra imagem (décor, fundo, paisagem,etc.) Fargier, Jean-Paul; “Paikologie”,Cahiers du Ci-néma,299, Abril, 1979, pp. 6-7.

47Couchot, Edmond; “La mosaïque ordonnée oul’ecran saisi par le calcul”, Op. Cit., pp. 85-86. Denotar que o efeito de ‘incrustação’ defendido por Cou-chot entra directamente em conflito com a posição deViola que defende, pelo contrário, que a conceptua-lização progressiva permitida pela tecnologia ‘levar-nos-á a construir objectos segundo um processo quevai do interior para o exterior, em vez do inverso.’ Vi-ola, Bill; “Entretien avec Bill Viola: L’espace a pleinedent”; in Fargier, Jean-Paul (Dir.),Où va la vidéo, Op.Cit., pp. 72.

www.bocc.ubi.pt

Page 17: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 17

ou desaparecimento de uma imagem, quecampos como a fotografia e o cinema - oumesmo a pintura - nos habituaram a per-cepcionar, desde a Renascença, como forte-mente organizados.” E uma segunda, ondeas técnicas de síntese desempenham um pa-pel decisivo, que visa, pelo contrário, corri-gir e canalizar a imagem vídeo. Nivelada,encerrada na trama de ecrãs múltiplos deesculturas, ou de ambientes estruturados deforma precisa, numerizada e digitalizada aimagem, segundo o autor, torna-se polida, eajuizada48.

Mèridieu, considera ainda que, enquantoque a imagem de síntese “privilegia a linhae a tendência para tratar a cor como umasimples coloração ou enchimento das for-mas”, o processo de implosão, pelo contrá-rio, “insistindo no papel particular da cor,fez com que o vídeo tenha contribuído deci-sivamente para o reforço da velha oposiçãocor/desenho; forma/conteúdo”49.

Para Mèredieu, a implosão da imagem re-leva o surgimento de uma libidofluo, eléc-trica e ramificada que permite medir o graude integração das próteses electrónicas nofuncionamento do aparelho psíquico50.

Roy Armes considera o vídeo como umaponto intermédio situado entre o real e o do-mínio virtual do computador. Encara as ima-gens electrónicas como uma forma de impri-mir ‘memória’ e realidade no seio do abs-tracto. O vídeo seria, então, o ponto inter-médio que estabelece a relação entre o olharhumano e a lógica puramente abstracta e

48Mèredieu, Florence de; “L’implosion dans lechamp des couleurs”, Op. Cit., pp. 247.

49Ver Mèredieu, Florence de; “L’implosion dans lechamp des couleurs”, Op. Cit., pp. 247.

50Mèredieu, Florence de; “L’implosion dans lechamp des couleurs”, Op. Cit., pp. 258.

conceptual dos computadores: “O principalaspecto do vídeo não é aquilo que partilhacom aquelas cassetes que servem como fon-tes de memória externa para um computador,ou mesmo a área fascinante constituída porgráficos gerados por computador, mas antesaqueles elementos de acção ao vivo que otornam complementares ao computador.”51

Jean-Paul Fargier afirma que as novas tec-nologias permitem uma “viagem sem retornodo concreto em direcção ao abstracto.”52erefere-se à “febrilidade instável do electrão”afirmando que, na imagem electrónica, “tudose torna volátil, irradiado...O vídeo dirige-senessa direcção. Sempre. Isso atrai-o. É essaa sua razão de ser: figurar um mundo em pro-cesso de desfiguração à força da figuração.Mostrar que tudo é passagem. Mesmo o ví-deo.”53

Alain Bourges importa os conceitos de‘hiperrealidade’ e de ‘imagens simulacro’ deBaudrillard para se referir às imagens vídeo:“A imagem simulacro não se refere a nada,afirma-se como real, mais real do que a re-alidade (...) Simulacro igual, senão superiorao seu modelo, a imagem de síntese não pre-tende representar nada: ela impõe-se comoobjecto de conhecimento e de experimenta-ção, como modelo.”54

51Armes, Roy; On Vídeo, Routlegde, London,1995, pp. 213 (1a edição, 1988).

52Fargier, Jean-Paul; “Paik: le jour où la vidéofut...: Premiers pas de l’homme dans le vide”, in Far-gier, Jean-Paul (Dir.),Où va la vidéo, Op. Cit., pp.16.

53Fargier, Jean-Paul; “Les électrons ont la viedure”, in Fargier, Jean-Paul (Dir.),Où va la vidéo, Op.Cit., pp. 7.

54Bourges, Alain; “Contre L’image numérique:Toutes les images sont-elles des images pieuses?” inFargier, Jean-Paul (Dir.),Où va la vidéo, Op. Cit.,pp.43. Segundo Bourges, “O vídeo afirma-se como

www.bocc.ubi.pt

Page 18: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

18 Patrícia Silveirinha

Esta posição é partilhada, embora comuma perspectiva mais optimista pelos pró-prios artistas vídeo. Bill Viola, por exemplo,afirma que “partimos dos modelos do olhoe do ouvido para nos dirigirmos para mode-los de processos de pensamento, de estrutu-ras conceptuais do cérebro. A ‘arte concep-tual’ tomará um novo sentido.”55

Em qualquer destas posturas o vídeoencontra-se, mais do que qualquer outro dis-positivo, ligado ‘à fantasmagoria do imate-rial.’56 A relação com o real é praticamenteanulada em favor do centramento numa lin-guagem luminosa, ou matemática, numa ló-gica puramente abstracta.

Por outro lado, estas posições partilhama consciência de uma tendência abstraccio-nista e formalizante das novas tecnologias,nomeadamente da imagem digital e electró-nica. Elas podem representar e, de algumaforma resumir, toda uma série de teorias quese debruçam sobre as alterações na nossa or-dem de representação introduzidas pelos no-vos meios. De tónica mais ou menos pes-simista, ou optimista, centram-se na questão

um suporte profundamente ligado à expressão da suaépoca. Lugar de passagem, superfície sem profun-didade, tomada de velocidade, demasiado superficialpara exprimir um sentimento, agressiva para esquecera fragilidade da sua constituição, assexuada, e enfim,efémera por definição, a imagem vídeo é um espelho ea proliferação dos seus reflexos sugere o labirinto mo-derno.” Bourges, Alain; “Contre L’image numérique:Toutes les images sont-elles des images pieuses?”, inFargier, Jean-Paul (Dir.),Où va la vidéo, Op. Cit.,pp.44.

55 Viola, Bill; “Y-aura-t-il copropriété dans l ’es-pace de données ?”; in Bellour, Raymond e DuguetAnn-Marie (Ed.);Vidéo, Op. Cit. pp. 71.

56 A expressão é de Florence de Mèredieu em“L’implosion dans le champ des couleurs”, in Bellour,Raymond e Duguet Ann-Marie (Ed.);Vidéo, Op. Cit.,pp. 249.

da invasão da nossa visão pela tecnologia esobre as consequências que daí advêm parao domínio da própria imagem.

A forma como estas questões se articu-lam com a problemática da pós-modernidadeé evidente e será alvo da nossa atenção naspróximas linhas.

3 A pós-modernidade do vídeo

A questão da relação da arte vídeo, nos iní-cios dos anos sessenta, com uma arte mo-derna ou, pelo contrário, com o surgimentode uma pós-modernidade é bastante proble-mática. Por um lado, a nova arte nascentenecessita de um reconhecimento por arte dosmuseus e das galerias que lhe valha o epítetode ‘arte’. Por outro, a sua hibridez enquantomeio, bem como a partilha da mesma tecno-logia com os meios da cultura popular, co-locam o vídeo numa posição pouco definidaem relação ao meio artístico. As estratégiaformalistas de centramento no próprio meiovão de encontro à perspectiva Greenbergianae Adorniana de arte e valem-lhe, de certomodo, um reconhecimento. No entanto, asua relação com a cultura popular, nomea-damente com a televisão, fazem com que,mesmo quando os objectos artísticos se cen-tram na materialidade do meio, contenhamsempre uma crítica implícita à cultura popu-lar e ao próprio sistema representativo televi-sivo. As estratégias anti-televisivas, narcisis-tas e formalistas da arte vídeo podem então,a esta luz, ser entendidas como um tendên-cia quadripartida, algo contraditória nos seustermos: a arte vídeo afasta-se e distancia-se dos meios de cultura popular, ao mesmotempo que se centra na materialidade domeio electrónico, através da exploração decaracterísticas como a velocidade e a mon-

www.bocc.ubi.pt

Page 19: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 19

tagem, indo de encontro às perspectivas mo-dernas; a arte vídeo institui-se como um es-paço de questionamento e crítica dos meca-nismos, e mesmo dos conteúdos, da culturapopular; a arte vídeo enquadra-se numa sé-rie de movimentos artísticos que questionamo próprio papel da arte e a sua relação como mundo e com o público; e, por último, aarte vídeo coloca em causa a questão da ‘pu-reza’ de um meio artístico enfatizando, pelocontrário, uma grande mistura e interpene-tração entre as artes, e imagens, nomeada-mente através das instalações multimédia.

Não podemos, assim, enquadrar os iní-cios da arte vídeo, nem num domínio estri-tamente moderno, nem eminentemente pós-moderno. O vídeo encontra-se, antes, numaposição que testemunha uma passagem, umaencruzilhada. O vídeo institui-se, nos seusinícios, como meio híbrido fazendo uso eintegrando tecnologias de massas, para le-var a cabo um projecto estético moderno e,simultaneamente, lançar os alicerces e an-tecipando uma arte pós-moderna. O papeldo vídeo no transição de concepções mo-dernas para concepções pós-modernas con-tinua por explorar. Se o projecto estéticomoderno pode ser encontrado nas estratégiasformalistas e numa preocupação com as pro-priedades e potencialidade de uma nova lin-guagem electrónica, procurando descortinaruma ontologia da própria arte vídeo - ques-tão que ocupou grande parte dos escritos so-bre esta arte57 -, a sua relação com estraté-

57 A este respeito, ver, por exemplo: Sturken, Ma-rita; “Paradox in the Evolution of na Art Form”; inHall, Doug e Figer, Sally Jo (Ed.),Illuminating Video.An Essential Guide to Video Art, Op. Cit., pp. 101-121. ‘A questão das propriedades inerentes do vídeoatingiu novos níveis de debate nos anos recentes, umdebate que se centra nas questões chave da relação

gias pós-modernas também pode ser encon-trada facilmente. Ela diz respeito à já refe-rida implosão das dicotomias característicasdo modernismo que é operada pela arte ví-deo. Por outro lado, as imagens electrónicasparecem ir de encontro (e à medida que avan-çamos no tempo, mais clara essa tendênciase torna) à questão da desaparecimento dadicotomia sujeito/objecto e da consequentepossibilidade de distanciamento crítico, como surgimento de uma ‘hiperrealidade’, de ‘si-mulacros’, tal como é preconizado por JeanBaudrillard. Baudrillard identifica a actualordem cultural com uma equivalência entresujeito e objecto - que se encontram em situ-ações intermutáveis.58 O monitor de vídeo,ou de computador, é o exemplo máximo daimplosão dessa dicotomia sujeito/objecto. Ainteracção entre o que se encontra efectiva-mente no ecrã e o receptor é uma relaçãonegociada. O que acontece no monitor nãose encontra, nem nele, nem no seu especta-dor, mas num espaço virtual e complexo en-tre ambos. A capacidade de distanciamentocrítico é, portanto, anulado e Baudrillard ca-racteriza esse processo como um mecanismode ‘alienação’. Isto determina uma aproxi-

do vídeo com o modernismo e o seu potencial parauma linguagem electrónica. A discussão das proprie-dades inerentes do vídeo tem sido o método predomi-nante de traçar a história do meio desde o seu início.’Sturken avança com uma crítica a esta discussão sa-lientando que: ‘críticos desta posição salientam quelimitar a discussão do vídeo às suas propriedades dis-tintivas restringem o discurso do meio às limitaçõesde uma teoria da arte modernista.’ Sturken, Marita;“Paradox in the Evolution of na Art Form”; in Hall,Doug e Figer, Sally Jo (Ed.),Illuminating Video. AnEssential Guide to Video Art, Op. Cit., pp. 115.

58Baudrillard, Jean; “The Ecstasy of Communica-tion”, in Foster, Hal (Ed.),The Anti-Aesthetic. Es-says in Postmodern Culture, Bay Press, Port Town-send, 1983, pp. 125-136.

www.bocc.ubi.pt

Page 20: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

20 Patrícia Silveirinha

mação entre o ‘real’ e o ‘irreal’ - a instituiçãode uma hiperrealidade.

A exposiçãoLes Immateriaux, organizadaem 1985, pelo Centre Georges Pompidou,emcuja concepção participaram uma série depensadores defensores do surgimento deuma época pós-moderna, é bastante ilustra-tiva da relação entre os conceitos de pós-modernidade e as novas tecnologias de ima-gem. Uma definição precisa do que seráa modernidade ou do que é, efectivamente,essa pós-modernidade é um trabalho que vaimuito para além do nosso presente estudo.O que aqui surge como relevante é que após-modernidade, tal como é entendida pelamaior parte dos autores, se caracteriza pelaapoteose do visual na nossa cultura. A pro-liferação de imagens que ultrapassam as di-cotomias do pensamento moderno, vem pôrem causa todo um sistema de representaçãoe de relação com o mundo. Caem as opo-sições entre espaço e tempo e o que resultaé um espaço ‘esquizofrénico’ de superfíciesem movimento acelerado.

Segundo Martin Jay,Les Immaterieauxsugere a emergência da ‘era do simulacro’,profetizada na exposição pela própria voz deBaudrillard. Indicia esse domínio fantasma-górico de imagens sem referentes, a ‘prece-dência do simulacro’ que Baudrillard identi-fica com a actual ordem cultural. A fé mo-dernista de que a visualidade e a raciona-lidade podiam ser conciliadas foi decisiva-mente rejeitada. O que é recepcionado pe-los sentidos e o que faz sentido é desligado eseparado.59

Uma característica desta emergência é a

59Jay, Martin;Downcast eyes. The denigration ofvision in Twentieth - Century French Thought, Uni-versity of California Press, California, 1994, pp. 584-586.

crescente intervenção das novas tecnologiasda imagem. Nestas, a distinção entre meio emensagem desaparece. Os códigos bináriosdo computador, bem como as ondas electró-nicas da televisão e do vídeo consistem numadesmaterialização simultânea do significantee do significado. Por outro lado, anulam opróprio sujeito, já que implicam uma perdade autonomia que se caracteriza pela sepa-ração binária sujeito-objecto. Como notouJohn Rajchman, “No mundo dos Immatéri-aux, tudo começa no corpo e acaba na lin-guagem... Era o pesadelo de um fenomeno-logista; por todo o lado era mostrada a subs-tituição das actividades materiais do ‘corpovivo’, por artificiais, ou por linguagens for-mais ou imateriais. Entrava-se num mundode simulação do corpo.”60

Sean Cubbit classifica o vídeo como ummeio híbrido, isto é, como um meio onde ainterpenetração de materiais, práticas, con-ceitos e percepções é o dado fundamental.61

O vídeo opõe-se, por isso, à lógica moder-nista de separação entre cada domínio ar-tístico, operando uma mistura entre cinema,teatro, pintura, dança, escultura, música, emesmo entre estes domínios artísticos e su-portes relacionados com a cultura popular,como a televisão. Ao ultrapassar as distin-ções entre cada domínio artístico, o vídeoapela a uma interligação entre todas as for-mas de percepção e entre todos os sentidos,

60 Rajchman, John; “The postmodern Museum”Art in America, 73, 10, Outubro de 1985, pp. 14 e 16.Citado em Jay, Martin;Downcast eyes. The denigra-tion of vision in Twentieth - Century French Thought,Op. Cit., pp. 584.

61Ver Cubitt, Sean;Timeshift on Video Culture,Routledge, London, 1991; e Cubbit, Sean;Video-graphy. Vídeo Media as Art and Culture, MacMillan,London, 1993.

www.bocc.ubi.pt

Page 21: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 21

permitindo uma ‘experiência total’ que per-mite ultrapassar regimes de visão muito rígi-dos e específicos que advêm, segundo Cub-bit, da fetichezação da visão nas artes mo-dernas.

Por outro lado, a imagem vídeo, segundoCubbit, ultrapassa ainda uma outra dicoto-mia, característica da arte moderna: a dico-tomia entre forma e conteúdo, entre signifi-cante e significado. Colocando o ênfase noconceito de alegoria, Cubitt defende que ovídeo opera uma libertação da ‘tirania da re-presentação’, abrindo campos onde a comu-nicação se processa com base em domíniosnão racionais. A perspectiva de Cubitt podeenquadrar-se na linha do surrealismo, nome-adamente através das ideias de Jung acercado ‘inconsciente colectivo.’

Por outro lado, a perspectiva de Cubittpode ser relacionada com aquilo que pode-ríamos considerar a noção de ‘sublime’ deLyotard e a sua aplicação à tecnologia dovídeo, ou seja, às imagens ‘imateriais’ dasnovas tecnologias. Precisamente, para Lyo-tard, as imagens pós-modernas distinguem-se das imagens modernas devido às suas res-pectivas atitudes em relação à estética do su-blime. Ao contrário das imagens eminente-mente modernas que se situam numa lógicade reconciliação, o pós-modernismo, pelocontrário, deseja viver a dor da irrepresen-tabilidade. Trata-se de uma ‘esquizofrenia’,no sentido Lacaniano, potenciada pelas no-vas tecnologias da imagem, como o vídeo,hologramas, satélites e computadores.62

No entanto, a maior defesa do vídeo comoo símbolo máximo da apoteose do pós-

62A relação das teorias de Lyotard com as novastecnologias da imagem será desenvolvido um poucomais adiante.

modernismo é feita por Frederic Jameson.Apesar de fortemente criticadas, as ideias deJameson relativamente à pós-modernidadeaplicada ao vídeo experimental têm mar-cado e alimentado muito da produção cultu-ral neste domínio.

Num texto dedicado exclusivamente a estaquestão Jameson traça claramente um enqua-dramento onde se salienta uma estreita rela-ção do vídeo com a pós-modernidade.63 ParaJameson, o vídeo experimental, ou a arte ví-deo, é o candidato mais forte à hegemonia naactual cultura pós-moderna. O vídeo tende adissolver as diferenças entre cultura populare cultura de elite. Por outro lado, a mescla designificantes que caracterizam o vídeo pós-moderno, resiste às interpretações e à pro-cura de um significado, ou referente. Por seuturno, a ideia de‘total flow’ também acen-tua a impossibilidade do vídeo comunicarum único significado. O espectador é assimobrigado a resistir à construção de uma in-terpretação acerca do significado das obras,o que, segundo Jameson, teria como resul-tado uma simplificação redutora de um textoque é constituído, precisamente, por uma co-lagem de imagens efémeras que resistem àinterpretação. O mesmo espectador, pode,aliás, retirar diversas conclusões diferentesacerca da mesma obra. Por outro lado,vervídeo, é diferente dever umvídeo e envolve,para Jameson, uma imersão no ‘fluir total’das imagens, “de preferência numa sucessãoaleatória de três ou quatro horas de cassetes

63Jameson, Frederic, “Surrealism withouth the un-conscious” inPostmodernism, or, the cultural logicof the late capitalism, Duke University Press e Verso,1991, pp. 67-96. Artigo traduzido para francês e edi-tado sob o título “La lecture sans l’interpretation” inBellour, Raymond e Duguet Ann-Marie (Ed.);Vidéo,Op. Cit. pp. 105 - 120.

www.bocc.ubi.pt

Page 22: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

22 Patrícia Silveirinha

em intervalos regulares.”64 Isto determina odesaparecimento da noção de obra: não háobras de arte vídeo, nunca poderá haver umcânon vídeo e muito menos uma ‘política deautor’ vídeo. Determina, também, uma rela-ção do espectador que passa por um processode submersão total do mecanismo presente.

O vídeo pós-moderno distinge-se, assim,segundo Jameson, devido a uma série de ca-racterísticas. Em primeiro lugar, a rotaçãoconstante de elementos, de forma a que estesmudem de lugar a cada instante. Em segundolugar, a máquina torna-se simultaneamentesujeito e objecto, entidades semelhantes eindiferenciadas. Em terceiro, opera-se uma‘despersonalização mecânica’ do espectadore dos próprios autores que são dissolvidos ese tornam, durante um certo tempo, parte in-tegrante da tecnologia do meio. Em quarto,devido ao facto do vídeo ser uma arte tempo-ral, os efeitos mais paradoxais desta apropri-ação tecnológica da subjectividade são ob-serváveis na própria experiência do tempo.O conceito de ‘total flow’ institui uma espé-cie de duração pura e vazia, que contrastacom a suspensão ou reforma modernista daexperiência do tempo. Em quinto, o vídeoexperimental caracteriza-se pelas suas pro-priedades não ficcionais (mesmo a televi-são que aspira à ficcionalidade do cinema,apenas produz um simulacro do tempo fictí-cio). Em sexto, o conteúdo mais profundo dovídeo experimental pode ser descrita comosendo uma de ‘aborrecimento’ (‘boredom’,no original): o processo do vídeo é carac-terizado por uma temporalidade de ‘aborre-cimento’, pelas “badaladas do tempo real,

64Jameson, Frederic, “Surrealism withouth the un-conscious” inPostmodernism, or, the cultural logic ofthe late capitalism, Op. Cit. pp. 78.

minuto por minuto, a ansiosa realidade ir-revogável subjacente ao acontecimento emcurso.”65 E, por último, o vídeo é a únicaarte, ou meio, no qual a última ligação en-tre o espaço e o tempo é o próprio âmago daforma.

Jameson alia, assim, a espacialização dotempo ao desaparecimento da consciênciahistórica característico da pós-modernidade.O vídeo pode tratar o tempo como umaconfiguração espacial, atribuindo uma novaacepção de concreto ao nosso sentido de ins-tantaneidade e simultaneidade. De facto,a capacidade do vídeo para espacializar otempo está inscrito no próprio sistema, vistoque aframeem vídeo é uma discreta unidadede tempo.

Através da análise da obra AlieNATION(1979) de Edward Rankus, John Manninge Barbara Latham, Jameson desenvolve assuas conclusões sobre os mecanismos e osefeitos utilizados pelos vídeos experimen-tais.66 Salienta o papel da montagem visualde ‘retalhos’ (colagem), e da justaposição dematerial ‘natural’ (as sequências filmadas) ede material artificial (as imagens que já fo-ram misturadas pela máquina), onde o ‘na-tural’ é ‘pior’ do que o artificial, operandoaqui uma inversão: o natural já não conota

65Jameson, Frederic, “Surrealism withouth the un-conscious”, Op. Cit. pp. 75.

66Segundo a descrição de Jameson, AlieNATIONconsiste numa colagem que inclui um fundo de fic-ção científica (retirado de um filme japonês de 1966intituladoGodzilla vs Monster Zero),reproduções depinturas clássicas, uma mulher deitada sob hipno-tismo, entradas de hotéis ultra-modernos com eleva-dores em movimento, sonatas de Beethoven, discosvoadores sobre Chicago, publicidade a cozinhas dosanos cinquenta, e muito mais, sem ser possível esta-belecer qualquer relação de hierarquia de conotaçãoentre eles.

www.bocc.ubi.pt

Page 23: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 23

a vida quotidiana segura de uma sociedadehumana, mas antes “os sinais ruidosos e ba-ralhados, o inimaginável lixo informacional,da nova sociedade dos media.”67 Por outrolado, opera-se uma mistura de signos de vá-rios sentidos e de vários meios (musica, pin-tura, escultura). O efeito de alucinação é umresultado da colagem aleatória, da rapidez demontagem, da intertextualidade, instituindoum ‘tempo de delírio’ onde o ‘mundo ob-jecto’ é desfragmentado, desconectado. Amemória é anulada, o conteúdo é abando-nado e o “significante torna-se pouco maisdo que uma memória ténue de um signo an-terior e, sem dúvida, da função formal da-quele signo já extinto”68

Por outro lado Jameson, tomando empres-tadas a terminologia e as distinções de Pi-erce, afirma que o que caracteriza o processodo vídeo (ou o ‘fluir total experimental’) éuma incessante rotação de elementos. Istosignifica que nenhum elemento “pode ocupara posição de interpretante (ou de signo pri-mário) por qualquer período de tempo, mastem antes de ser desalojado no instante se-guinte.”69 Para além das consequências quedaqui advêm para uma teoria da interpreta-ção, esta característica serve ainda para anu-lar as diferenças entre a cultura popular e cul-tura de elite: o vídeo apropria-se de materi-ais advindos de ambas e estabelece um pro-cesso de interacção onde os respectivos valo-res são equivalentes. Jameson destaca aindaaquilo que considera como as propriedadesfundamentais dos signos no contexto vídeo,

67Jameson, Frederic, “Surrealism withouth the un-conscious”, Op. Cit., pp. 81.

68Jameson, Frederic, “Surrealism withouth the un-conscious”, Op. Cit., pp. 84.

69Jameson, Frederic, “Surrealism withouth the un-conscious”, Op. Cit., pp. 91.

a saber: a mudança de lugares entre signos;o facto de não haver lugares prioritários noprocesso; e a inconstância, já que a situaçãoem que um signo funciona como interpre-tante de outro signo é absolutamente provi-sória.70

Assim, a realidade e a referência desapa-recem simultaneamente e, nas palavras doautor: “somos deixados com aquele jogopuro e aleatório de significantes que cha-mamos pós-modernidade, que já não produzobras monumentais de tipo moderno, mas in-cessantemente remodelam os fragmentos detextos preexistentes (...): meta-livros que ca-nibalizam outros livros, meta-textos que co-lam bits de outros textos - esta é a lógicada pós-modernidade em geral, que encontrauma das suas formas mais autênticas na novaarte do vídeo experimental.”71

3.1 Críticas e problematizaçõesFace a estas posições coloca-se a questão desaber se, e aonde, cabe a negatividade dasnovas formas artísticas e das novas tecnolo-gias da imagem. Dito de outra forma, exis-tirá ainda lugar para o ‘sublime’, na nova artepós-moderna e nas novas tecnologias da ima-gem?

A questão de atribuir um papel de nega-tividade às praticas artísticas do vídeo, tempassado por uma crítica às análises de Jame-son relativas ao vídeo experimental. No inte-rior dos debates sobre o vídeo, estas críticassão inúmeras e insurgem-se, principalmente,contra a ideia detotal flowe consequente de-saparecimento do autor, anulação da memó-

70Ver Jameson, Frederic, “Surrealism withouth theunconscious”, Op. Cit., pp. 88.

71 Jameson, Frederic, “Surrealism withouth the un-conscious”, Op. Cit., pp. 96.

www.bocc.ubi.pt

Page 24: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

24 Patrícia Silveirinha

ria e da história, e auto-referencialidade, queimpossibilitam qualquer relação, ou crítica,social ou política, produzida pelo vídeo ex-perimental.

Nesta linha, Sean Curbitt considera, emtraços largos, que Jameson operou uma ge-neralização abusiva, sustentada em exemplospouco demonstrativos e numa bibliografiamuito pobre. Afirma que Jameson se en-quadra numa série de discursos que se pre-ocupam mais com aquilo que o vídeoé, doque com aquilo que o vídeofaz.72 A redu-ção de toda a arte vídeo às características dehiperralidade, abolição do conteúdo, auto-referencialidade e ‘colagem’ são particular-mente atacadas por Cubitt, bem como, im-plicitamente, a impossibilidade de interpre-tação.

As suas críticas incidem principalmentesobre o conceito detotal flow que, segundoCubitt, manifesta uma confusão entre emis-são (broadcasting) e vídeo, ao mesmo tempoque remete para um tratamento do vídeocomo texto no qual os seus autores teriamdesaparecido. A esta dissolução do au-tor, Cubitt opõe o argumento de que existetodo um conjunto de vídeos, onde, precisa-mente, a sua utilização confessional e auto-exploratória desempenha um papel funda-mental.73 É o caso do que acima designámos

72Cubitt, Sean;Timeshift on Video Culture, Op.Cit.,pp. 122. Esta parte do livro encontra-se previamenteeditado em Cubitt, Sean; “Vídeo Art and Colonialism:An other and its others”,Screen, vol. 30, 4, 1989.

73Segundo Cubitt a confusão entre emissão e vídeo,aliada à estratégia textual, “permite ao vídeo juntar atextualidade indiferenciada da hiperrealidade de Bau-drillard removendo todas as qualidades que o tornamdistinto e que encontraram tanto reconhecimento en-tre os praticantes. Por exemplo, o vídeo é, para Jame-son, ‘num certo sentido anónimo’ no bom sentido dapalavra (como na produção medieval, por exemplo),

como a vocação narcisista do vídeo. À ca-racterística de rotação constante de elemen-tos, Cubitt opõe otakelongo, que consideraser uma estratégia importante entre os artis-tas vídeo, particularmente entre as feminis-tas “perturbadas pelo machismo da monta-gem rápida nas emissões televisivas.”74

Também a impossibilidade de interpre-tação e o desaparecimento do conteúdosão contestados por Cubitt, nomeadamentequando afirma que “regular o processo designificado pode servir os interesses da aca-demia, mas não fala pelos realizadores e es-pectadores das obras.”75

enquanto que o uso dos artistas do vídeo como umaforma de auto-exploração e confissão, é uma das suasqualidades mas dramáticas, e uma mais desenvolvidapor artistas com regularidade, pelo menos desde o iní-cios dos anos setenta. Esta combinação de estratégiasliterárias com a confusão entre televisão e vídeo, per-mite falhas de análise mais radicais e cumulativas.”Cubitt, Sean;Timeshift on Video Culture, Op. Cit.,pp. 122-123.

74Cubitt, Sean;Timeshift on Video Culture, Op.Cit., pp. 123.

75Cubitt, Sean;Timeshift on Video Culture, Op.Cit., pp. 123. O ataque à abolição do conteúdo édeferido de outras frentes. Por exemplo, Maurren Tu-rim, na sua análise da obraSignifying Nothing(1975)de Steina Vasulka, enfatiza o lado irónico contido nopróprio título. Defende que este emblematiza o ata-que ao modernismo e aos seus conceitos formalis-tas. A mesma crítica poderia ser aplicada a Jameson.A obra de Vasulka, segundo Turim, subverte e con-fronta o formalisto, insistindo na ideia de que a totalausência de significado é apenas possível numa ima-gem cujos significantes sejam simultaneamente auto-referenciais e complexos: ‘Sim, não significa nada(de decifração imediata); não, não escapa à signifi-cação nem nunca pretendeu fazê-lo.’ Por outro lado,Maureen Turim centra a sua crítica na ideia de Ja-meson de que o vídeo opera uma espacialização dotempo, sendo isto um factor determinante na apreci-ação da história e na definição de pós-modernidade.Segundo Turim, o modernismo já implicava um certo

www.bocc.ubi.pt

Page 25: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 25

Mas as críticas às conclusões de Jamesonrelativamente ao vídeo experimental vêm deuma série de outros autores, empenhados emdefender um papel social crítico para a artevídeo, enfatizando as suas relações com umasérie de movimentos artísticos que surgiramao mesmo tempo que esta arte e que preten-diam, nomeadamente, questionar o caminhode elitismo e fechamento excessivo tomadopelas artes modernas. Jameson é acusado deter ignorado as linhas que ligam a arte ví-deo à arte daperformance, onde, ao contrá-rio do que afirma o autor, a categoria mo-dernista de ‘obra de arte’ também já havia

relativismo em relação à temporalidade e espaciali-dade. O tempo e o espaço eram vistas como catego-rias que se afectavam mutuamente. Para Turim, Ja-meson confunde o ambiente da imagem de televisão(que nos bombardeia com imagens sistematicamenteextraídas do seu contexto, onde a justaposição apagaqualquer causa e efeito em favor de um mero valor dechoque) e o vídeo, que também utiliza esse tipo de co-lagem, mas com resultados diversos. Turim opõe-se àideia de que a colagem age contrariamente à compre-ensão e comentários históricos. Em vez disso, afirmao autor, ‘pode-se ver a capacidade do vídeo para es-pacializar o tempo e temporalizar o espaço como po-tencialmente um meio de continuar a dessecação daapreensão e significado de um acontecimento.’ Turimconsidera, então o vídeo, como um meio que contribuipara aquilo que podemos considerar, não como pós-modernidade, mas como o ‘projecto acabado da mo-dernidade.’ Argumenta que a própria lógica internado computador contribui para esse facto, visto que, aoser exteriorizada através de uma configuração visual,contribui para a criação de uma forma artística queresponde às mudanças dinâmicas da tecnologia, comoaceleração ou como crítica - um dos impositivos domodernismo. Assim, na opinião de Turim, “o vídeoenquanto aparato inscreveu a lógica das tecnologiasmodernas como um elemento primário do seu desen-volvimento.” Maureen Turim; “The Cultural Logic ofVídeo”, in Hall, Doug e Figer, Sally Jo (Ed.),Illumi-nating Video. An Essential Guide to Video Art, Op.Cit., pp. 331-342.

sido posta em causa. Ann-Marie Duguet76 eJohn G. Hanhardt,77 por exemplo, salientamo facto de as estratégias dos inícios da artevídeo, nomeadamente as desenvolvidas porPaik e Vostell, se encontrarem muito próxi-mas das doFluxuse das dosNouveaux Réa-listes, que questionavam as noções de artede elite, afastada da experiência quotidiana eque procuravam estabelecer um diálogo en-tre artistas de diversas áreas, bem como en-tre as obras de arte e o público. Situam, as-sim, o surgimento da arte vídeo no interior deum movimento artístico, que teve início nosanos sessenta, e que se insurgia contra a ideiamodernista de pureza da arte, da separaçãoarte/vida e do formalismo absoluto. Assim,os pioneiros da arte vídeo, fortemente influ-enciados pelas teorias de John Cage, tentamultrapassar a separação da arte e da vida epreconizam uma estreita relação e uma inter-penetração entre vários domínios artísticos.

Por sua vez, Raymond Bellour, apesar denão efectuar uma crítica explícita a Jameson,fala do vídeo como um processo mais en-raizado na escrita (e mesmo na pintura) doque no cinema. Esta tese defende que, o ví-deo deixa ‘marcas’ como um desejo básicode inscrever sentido e memória.78 Por ou-tro lado, também situa o vídeo como um lu-gar privilegiado de restauração da memória,através da análise deArt of Memoryde Wo-

76Ver Duguet, Ann-Marie; “Dispositifs”, in Bel-lour, Raymond e Duguet Ann-Marie (Ed.);Vidéo, Op.Cit., pp. 221-222.

77Ver Hanhardt, John G.; “Dé-collage/Collage:Notes toward a reexamination of the origins of videoart”, in Hall, Doug e Figer, Sally Jo (Ed.),Illumina-ting Video. An Essential Guide to Video Art, Op. Cit.,pp. 78.

78 Bellour, Raymond; “Vídeo Writing”; in Hall,Doug e Figer, Sally Jo (Ed.),Illuminating Video. AnEssential Guide to Video Art, Op. Cit., pp.421-443.

www.bocc.ubi.pt

Page 26: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

26 Patrícia Silveirinha

ody Vasulka,79ou como lugar de resistência

79Bellour, Raymond; “The images of the word”,in Renov, Michael e Suderburg, Erika (Ed.);Reso-lutions; Contemporary Vídeo Pratices, Op. Cit., pp.149-159. A questão do desaparecimento da memó-ria é um dos pontos mais criticados em Jameson. Aeste respeito veja-se, por exemplo, o artigo de Ma-rita Sturken, onde a autora defende a construção damemória engendrada no próprio acto de gravar me-mória no ecrã. Opõe-se, por isso à tese de Jamesonde anulação da memória e da história, argumentando,pelo contrário, que o vídeo é um local onde as memó-rias, quer individuais, quer colectivas, são produzi-das. Para sustentar a sua argumentação, Sturken ana-lisa uma série de obras que considera representativasda forma como a fenomenologia do vídeo se inter-cruza com as políticas contemporâneas da memória,frequentemente usando imagens que se opõem e des-mantelam as memórias nacionais. São elas,Art ofMemory(1987) de Woody Vasulka;History and Me-mory (1991) de Rea Tajiri;Memories from the De-partment of Amnesia(1990) eWho’s Going to Payfor These Donuts, Anyway(1992) de Janice Tanaka; eNomads at the 25 Door(1991) de Jeanne Finley. Stur-ken Marita; “The Politics of Video Memory”, in Re-nov, Michael e Suderburg, Erika (Ed.);Resolutions;Contemporary Vídeo Pratices,Op. Cit., pp. 1-12.Veja-se também o artigo de Erika Suderburg onde sãoexaminadas a representação da história e da memóriaem várias obras de vídeo, consideradas como codifi-cações alternativas da determinadas narrativas histó-ricas. Suderburg ataca o argumento de Jameson deque o vídeo teria “nascido sem conteúdo e depois dahistória” e seria “imune à memória.”A autora consi-dera que “os artistas contemporâneos que trabalhamcom vídeo continuam a fabricar ‘gramáticas’ envol-ventes de imagem. Essas gramáticas encontram-selocalizadas na intercepção do poético e do documen-tário: inferências dialécticas, construídas com base no‘re-contar’ visual ou ‘re-chamar’ do momento histó-rico, divorciadas dos modos tradicionais do documen-tário e da narrativa (...).” Essa especificidade híbridaprocura, segundo a autora, questionar a representaçãohistórica dominante através da reconstrução de histó-rias alternativas. Suderburg, Erika; “The ElectronicCorpse: Notes for na Alternative Language of His-tory and Amnesia”, in Renov, Michael e Suderburg,

contradizendo a profetização pós-modernado fim das vanguardas.80

Estas posições aproximam-se da questãoda pós-modernidade considerada como umprocesso de ‘deslegitimação’, tal como é te-orizada por Lyotard,81 mais da convicção deque se trata de uma era caracterizada pelofim das vanguardas, tal como é preconizadopor Jameson e Baudrillard. A questão quese coloca é a de que forma a ‘arte imate-rial’ (Les Immateriaux) de Lyotard podemainda situar-se na linha das vanguardas do‘sublime’. Dito de outra forma, resta saberqual o potencial de ‘poesis’ na tecnologia ví-deo actual.82

Várias soluções possíveis foram já acimaadiantadas. No entanto, sistematizando aoextremo, podemos encontrar três vias naresposta a esta questão. Em primeiro lu-gar, a ocorrência de uma abertura discur-siva de sentido, em função do estabeleci-mento de relações inéditas e imprevisíveisentre imagens descontextualizadas, que per-dem o seu conteúdo e que são estilhaçadasnum fluir drástico e constante de signos emsituações absolutamente provisórias (Jame-son).83 Em segundo, as imagens obtidas atra-

Erika (Ed.);Resolutions; Contemporary Vídeo Prati-ces, Op. Cit., pp.102-123.

80 Bellour, Raymond; “Être ou ne pas être d’avant-garde. L’Utopie Vidéo”, in Fargier, Jean-Paul (Dir.),Où va la vidéo, Op. Cit., pp. 90-95.

81Lyotard, Jean-François; A Condição Pós-Moderna, Gradiva, Lisboa, 1989.

82 Eleftheriots, Dimitris; “Vídeo poetics: techno-logy, aesthetics and politics.”,Screen, 36, no 2 Verão1995, pp. 100-112.

83 Numa estratégia oposta à proposta por RolandBarthes, através de uma ‘saturação’ de sentido. VerBarthes, Roland;O Grau Zero da Escrita, Edições 70,Lisboa, 1984 (1a Edição 1953) e Barthes, Roland;OPrazer do Texto, Edições 70, Lisboa, 1988 (1a Edição1973). Ver ainda a referência de Jameson a Barthes

www.bocc.ubi.pt

Page 27: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 27

vés de meios electrónicos e digitais são abso-lutamente inéditas e abrem um campo, parautilizar a expressão de Bill Viola, para umaarte verdadeiramente ‘conceptual’,84 onde atecnologia funciona como uma forma de ‘re-velação’.85 Em terceiro, a criação de uma en-volvência, de um espaço onde, precisamente,as nossas estruturas preceptivas são abaladase questionadas, abrindo caminho para umacomunicação que passa por uma anulaçãoentre o corpo do espectador e as obras, ondeas nossas funções preceptivas e racionais sãosubstituídas por sensações e reacções emi-nentemente sensoriais. Esta última via de-senfatiza o conteúdo das imagens em favorde propriedades como a cor, a forma e osvectores de movimento.

Tendo já explorado, de alguma forma, asduas primeiras vias, debrucemo-nos agora,sobre a terceira, ou seja, sobre a instituiçãode um ‘espaço sensorial’.

3.2 Relação com o corpo doespectador: experiênciasensorial

Desde muito cedo, a arte vídeo preocupa-se com o estabelecimento de uma relação

em Jameson, Frederic, “Surrealism withouth the un-conscious”, Op. Cit., pp. 84-85.

84 Viola, Bill; “Y-aura-t-il copropriété dans l ’es-pace de données?”, in Bellour, Raymond e DuguetAnn-Marie (Ed.);Vidéo, Op. Cit. pp. 71.

85Druckrey, Timothy (Ed.);Electronic Culture. Te-chnology and Visual Representation,Op. Cit.. Druc-krey afirma: “Neste sistema (meios digitais) a repre-sentação cultural é menos significante do que a re-presentação psicológica. O sistema cognitivo torna-se uma questão mais pertinente do que o sistema decomunicação.” Druckrey, Timothy (Ed.);ElectronicCulture. Technology and Visual Representation;Op.Cit., pp. 22.

específica com o espectador. A manifesta-ção mais evidente dessa preocupação podeencontrar-se na forma de ‘instalação ví-deo’.86 Englobando-se, como já foi refe-rido, numa série de movimentos artísticosque procuravam anular as distâncias entre aarte e o seu público, a instalação vídeo, à se-melhança da arte minimal, dabody art, daland art, e daperformance, opera uma mu-dança, centrando-se nas relações com o es-paço e com o tempo, jogando com as estru-turas preceptivas e cognitivas dos seus espec-tadores e instituindo uma relação interactivacom as obras.

As instalações vídeo, independentementedas formas que poderão tomar, instituem umaquieagoraespacial que determina a sua re-cepção como experiência actual, como acon-tecimento, e não como ilusão (ou seja, comoevocação de ausências). O enunciado apa-rece assim como indissociável do tempo e dolugar da sua enunciação e recepção.

A relação interactiva é o resultado dessaindissociabilidade entre enunciados e acto deenunciação. As instalações vídeo oferecem-se assim, ao receptor, como uma ‘obraaberta’, onde a construção e reconstruçãode sentido encontram-se em constante mu-dança. No entanto, essa construção de sen-tido é inseparável do acto de recepção comoevento, como experiência, frequentementeirredutível às suas regularidades.

Este sentido de experiência, de evento, de-termina que o olhar e o corpo dos sujeitosnão sejam apenas confrontados com um dis-positivo. Eles instituem-se como um evento.

86Para um excelente texto sobre a instalação vídeoveja-se Morse Margaret; “Video Installation Art: TheBody, The Image, and Space-in-Between”, in Hall,Doug e Figer, Sally Jo (Ed.),Illuminating Video. AnEssential Guide to Video Art, Op. Cit., pp. 153 - 167.

www.bocc.ubi.pt

Page 28: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

28 Patrícia Silveirinha

Esse evento, implica, não apenas um olhar,ou uma reflexão, mas um envolvimento glo-bal, de todos os sentidos, no confronto comos diversos espaços possíveis. Neste sentido,todas as instalações serão interactivas, já queo visitante escolhe um percurso, um ponto,uma situação de olhar que determina senti-dos, e percepções variáveis.

Morse, no texto acima citado distingue en-tre dois tipos de instalações vídeo: “algu-mas instalações jogam com modos habitu-ais de experiência sensomotora, outras ope-ram a um nível mais contemplativo, depen-dendo da passagem das imagens, ou de cam-pos conceptuais, através de várias dimen-sões, mais do que na passagem do corpo dovisitante através da instalação. No entanto,mesmo neste caso, o visitante é fechado nointerior de um envelope de imagens, texturase sons.”87

Seguindo a distinção de Morse, podemosfalar de diferenças ao nível das instalaçõesque passam pelo tipo de envolvimento e pelaforma como jogam com a presença do espec-tador. Por um lado, encontramos circuitos devídeo fechados que operam com uma câmaraao vivo e com a inter-relação e intervençãodirecta do espectador, onde são principal-mente explorados a relação com o espaço, acriação de ambiente e a relação mediada. Poroutro, distinguimos as instalações vídeo queutilizam imagens pré-gravadas onde se tornavisível um mundo conceptual de relações ede interacções entre as imagens e os meca-nismos de identificação, memória ou anteci-pação. Morse afirma que, neste tipo de insta-lações, “um mundo conceptual é tornado ma-

87Morse Margaret; “Video Art: The Body, TheImage, and Space-in-Between”; in Hall, Doug e Fi-ger, Sally Jo (Ed.),Illuminating Video. An EssentialGuide to Video Art, Op. Cit., pp. 153.

nifesto à medida que objectos literais e ima-gens se situam em relações físicas um com ooutro. Isto é, a técnica que traz mundos re-ferenciais à consciência não é amimésismasa simulação.”88 Assim, e segundo a teoriapragmática da comunicação, o modo e enun-ciação deste tipo e discursos é performativoou declarativo: isto significa que “um mundoé declarado pertencer à existência. Não ne-cessita de ir de encontro ao mundo exterior(isto é, ser constatativo), nem comanda o vi-sitante ou obriga o artista, nem tão pouco ex-pressa meramente um estado de alma.89

Quer num tipo, quer em outro, mundosdiferentes são colocados em co-presença e,inevitavelmente, em interacção. Estes mun-dos podem ser multiplicados, por exemplo,com a utilização de vários monitores e ima-gens vídeo, com a presença de objectos,sons, fotografias, etc. Nesse caso, os diver-sos elementos interrelacionam-se igualmenteentre si e a relação entre mundos é elevada aonúmero de elementos em presença.

Esta interacção e justaposição de diver-sos elementos e mundos em presença, operauma ‘saturação’ de sentido (no sentido queJameson lhe atribui) que abre um domíniode ‘mundos possíveis’ estritamente concep-tuais, que resultam de uma acção física entreos diversos elementos em co-presença. Essaacção sobre o espaço pode ser complemen-tada com uma outra sobre o tempo através daaceleração ou desaceleração do movimento.

88Morse Margaret; “Video Art: The Body, TheImage, and Space-in-Between”; in Hall, Doug e Fi-ger, Sally Jo (Ed.),Illuminating Video. An EssentialGuide to Video Art, Op. Cit., pp. 159.

89Morse Margaret; “Video Art: The Body, TheImage, and Space-in-Between”; in Hall, Doug e Fi-ger, Sally Jo (Ed.),Illuminating Video. An EssentialGuide to Video Art, Op. Cit., pp. 159.

www.bocc.ubi.pt

Page 29: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 29

Qualquer uma delas procura destabilizar anova visão e a nova percepção, remetendo,com maior ou menor ênfase para estratégias,de ‘revelação’, ‘desvelação’, simples fruiçãoou juissance(importando aqui um termo uti-lizado por Lyotard.) A visão é autorizada aaceder e a revelar figuras invisíveis que pul-sam através do choque e a interacção de ‘vá-rios mundos.’

Num ensaio intitulado ‘Acinema’Lyotard,argumentando pela prioridade do fluxo e mo-vimento sobre o estático, acusa o cinema deprocurar formas de estabilizar a experiênciavisual e fornecer um fechamento formal. Istoé conseguido através do controlo total sobreos movimentos, de forma a que cada foto-grama esteja colocado num todo do qual elenos remete para ‘outra coisa’. Nenhum mo-vimento nos é apresentado por aquilo queefectivamente é: “uma simples diferença es-téril no campo do audiovisual.”90 A este tipode estratégias Lyotard opõem as do cinemaexperimental eunderground, onde encontraum ‘acinema’ que, pelo contrário, irá des-truir a ilusão de unidade e a coerência. Seráum desvio: “é essencial que a totalidade daforça investida no simulacro seja promovida,aumentada, desligada e queimada em vão. Éentão o que Adorno disse que a única grandearte é a construção de trabalhos de fogo: pi-rotécnicas que simulariam perfeitamente oconsumo estéril de energias emjuissance.”91

O ‘acinema’alcança este fim, quer atravésda imobilidade extrema (produzindo filmesque são como quadros vivos), ou através damobilidade extrema que cria ‘abstracções lí-

90Lyotard, Jean-François; “Acinema”,Wide Angle,vol.2, no3, 1978, pp. 53.

91 Lyotard, Jean-François; “Acinema”,Wide Angle,vol.2, no3, 1978, pp. 54.

ricas.’ Em ambos os casos, o sujeito da nar-rativa tradicional é totalmente desmantelado.

A tradição do ‘acinema’ pode ser encon-trado em algumas experiências no domíniodas novas imagens digitais e electrónicas(pós-modernas?). A vocação formalista dovídeo e das novas tecnologias da imagem, éherdeira, como vimos, de toda uma série deprocedimentos que podemos encontrar no ci-nema experimental, noacinemade Lyotard,nomeadamente através do ênfase no movi-mento e no ritmo puros, instituindo uma re-cepção como merajuissance. Como uma‘pirotécnica’, as imagens são alvo de umafruição pura, sem qualquer sentido ou direc-ção. A razão e a procura de sentido são con-vidadas a darem lugar a outras formas de re-cepção e de interacção: a uma sensorialidadelatente. As imagens electrónicas e digitaispermitem, ainda mais do que o cinema, umaaceleração ou desaceleração geral do tempo:imobilidade ou mobilidade extrema que, nocaso do cinema, Lyotard afirma criar ‘abs-tracções líricas’.92

Encontramos assim duas estratégias apa-rentemente opostas: uma conceptualização eabstracção progressivas, a par de uma senso-rialidade crescente. No entanto, essas duasestratégias cruzam-se e a sensorialidade é al-cançada, paradoxalmente, por objectos cadavez mais conceptuais e abstractos. Bill Viola

92A propósito da mobilidade extrema ver, porexemplo, o artigo de J.P. Fargier, sobre Woody eSteina Vasulka. Fargier afirma: “Nos Vasulka, a di-gitalização não é estática: combinada com um zoomelectrónico, a multiplicação numérica da face morta éenrolada num movimento incessante entre os dois in-finitos: nenhum ponto, nunca, em qualquer momento,ocupa um valor constante, definitivo. A instabilidadeé total, a flutuação permanente. Fargier, Jean-Paul,“Steina e Woody Vasulka. Zero Un”, in Fargier, Jean-Paul (Dir.), Où va la vidéo, Op. Cit., pp. 79-82.

www.bocc.ubi.pt

Page 30: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

30 Patrícia Silveirinha

fala de uma imagem vídeo que foi transfor-mada em uma ‘imagem total’: "por imagensquero referir-me à informação que vêm aode cima através da visão, audição e todas asmodalidades sensoriais.”93 A aproximação àmúsica, nomeadamente à música contempo-rânea é evidente: Schoenberg, Stockhausene Cage, já operam nesta aparente dicotomia.

Gary Hill é um dos artistas onde mais pesotem esta relação sensorial. Referindo-se àsinstalações vídeo de Gary Hill, Bill Hornescreve: “Hill não confia demasiado numaestrutura conceptual que transporte as suasideias. Em vez disso, elas encontram-se con-tidas numa experiência poética, que é aces-sível a todos quantos questionarem a obra.Mesmo se alguém se afastasse da obra coma sensação de incerteza em relação aos moti-vos ou à teoria que a conduziu, Hill transfor-mou as ideias numa experiência corporal.”94

Segundo Horn, no trabalho de Gary Hill, ahierarquia tradicional segundo a qual nós,como sujeitos humanos, ‘vimos’ imagens e‘falamos’ ou ‘escrevemos’ palavras torna-sefluida. As formas humanas são fragmenta-das. A atribuição de sentido já não é auto-mática e o corpo do visitante torna-se a suaforma de negociar uma posição num ambi-ente instável.

Os compositores de ‘música visual’, comovimos acima, desde logo que se centramnesta relação sensorial com os receptores.

93Jorg Zutter, “Interview with Bill Viola”, inBillViola. Más allá de la mirada (imágenes no vistas),Cat., Madrid, Museo Nacional Centro de Arte ReinaSofía, 1993, p. 137. Citado em Pelizzari, Maria An-tonella; “Experiencing Bill Viola’s Buried Secrets”,Millennium Film Journal, no 29, Fall 1996, pp. 10.

94Horn, Bill; “Image/Object, Vídeo/Text: GaryHill at the Guggenheim”,Millennium Film Journal,no 29, Fall 1996, pp. 6.

De facto, é curioso notar que as formas maisabstractas, produzidas actualmente no do-mínio das novas tecnologias, insistem nessaprimeira relação onde a obra produz uma en-volvência, um espaço e um tempo de ‘de-lírio’ que nos remete para além das nossasestruturas de percepção quotidianas e raci-onais, apelando a todos os sentidos. Estasexperiências são alcançadas através de for-mas multimedia, nascidas da integração dasnovas tecnologias com a tradição da arte daperformance.

Vikebe Sorensen considera que a desma-terialização da arte opera um corte radicalna tradicional tríade artística (artista/obra dearte/receptor). A tendência que se manifestana arte daperformancedos anos sessenta,estende-se através dos anos noventa, influen-ciando, decisivamente, a arte digital e elec-trónica. A realidade virtual, especialmente,desmaterializa o objecto e convida à partici-pação dos receptores, tal como a arte interac-tiva.

Ronald Pellegrino, através da integraçãode lasers, computadores, sintetizadores eaparelhos de vídeo, misturados com dança,vozes, musica electrónica e acústica, criauma arte multimedia dinâmica, que apela aexperiências sensoriais, totais e inéditas.

A constatação do deslocamento para umaestética sensorial, pode ser já encontrada emWalter Benjamin e em Marshall MacLuhan,através da ideia de ‘qualidade táctil’, ouefeito de ‘choque’95atribuída às novas tecno-logias96 que se opõe à ‘qualidade óptica’ tra-dicional das artes.

95 Benjamin, Walter; “A Obra de Arte na Erada Sua Reprodutibilidade Técnica” (1936), inSobreArte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d’Água,Lisboa, 1992, pp.107-108.

96No caso de Benjamin, aplicado ao cinema.

www.bocc.ubi.pt

Page 31: A arte vídeo - BOCC · A arte vídeo Processos de abstracção e domínio da sensorialidade ... anuncia o declínio da razão ocidental ana-lítica (homogénea, estandardizada, linear)

A arte vídeo 31

Benjamin associa a qualidade táctil do ci-nema à da arquitectura que possui, precisa-mente, uma recepção de dois tipos: atravésdo uso e através da percepção, ou seja, táctile óptica.97 Para Benjamin, a recepção tác-til advém do uso, de um envolvimento to-tal do receptor com o objecto, que resultade uma anulação da ‘aura’ da obra de arte.O valor de uso - táctil - característico da có-pia, opõe-se ao valor de culto, dominante nooriginal que impõe uma relação à distância,uma contemplação e um envolvimento me-ramente espiritual. No cinema, a qualidadetáctil, através da técnica formal do ‘choque’permite novas formas de percepção e de en-volvimento. No entanto, para Benjamin, es-tas não são absolutamente opostas à crítica eà razão.98

Através do conceito de ‘diversão’, Benja-min, fala de uma profunda alteração nos me-canismos de percepção nas artes: “a recep-ção na diversão, cada vez mais perceptívelem todos os domínios da arte, e que é sin-toma das mais profundas alterações na aper-cepção, tem, no cinema o seu verdadeiro ins-trumento de exercício.”99

A democratização da recepção, coinci-dente com a perda de ‘aura’ e de original,bem com a emergência de uma percepçãotáctil das cópias determina, assim, para Ben-jamin, uma mudança nas formas de percep-

97Benjamin, Walter; “A Obra de Arte na Era da SuaReprodutibilidade Técnica” (1936), pp.109.

98Benjamin afirma. “O cinema rejeita o valor deculto, não só devido ao facto de provocar no públicouma atitude crítica, mas também pelo facto de tal ati-tude crítica não englobar, no cinema, a atenção. Opúblico é um examinador, mas distraído.” Benjamin,Walter; “A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibili-dade Técnica” (1936), Op. Cit., pp.110.

99Benjamin, Walter; “A Obra de Arte na Era da SuaReprodutibilidade Técnica” (1936), Op. Cit., pp.110.

ção, mudança que se encontrava, em 1936,bem exemplificada nos aspectos formais docinema, mas que Benjamin, preconiza jáalargar-se a toda a arte. O táctil é a envolvên-cia total e o esquecimento do receptor numapanóplia de sentidos, da qual fazem tambémparte uma razão e uma crítica, mas ‘distraí-das’.

MacLuhan também atribui uma qualidadetáctil aos meios electrónicos. Na ‘nova eraelectrónica’, profetizada pelo autor, assisti-mos a uma explosão de todos os sentidos,a uma revolta contra o domínio absoluto darazão instrumental, através da tecnologia edos novos meios. Estes novos meios, enten-didos, como uma extensão dos nossos senti-dos, do humano, anunciam um envolvimentototal do receptor100.

É, talvez, por esta razão que, no mundo daindústria, os produtores discográficos maisatentos estão a apostar todas as suas carta-das na sensorialidade pura. Esta será a hi-pótese que procuraremos explorar num pró-ximo ponto.

100Ver, MacLuhan, Marshall,A Galáxia de Guten-berg, Editora da Universidade de São Paulo, SãoPaulo, 1972. (1a edição 1962). Ver tambémMacLuhan, Marshall;Understanding Media,NewAmerican Library, New York, 1964; e MacLuhan,Marshall; “The Electronic Age - The Age of Implo-sion” in Essays, Media Research. Technology, Art,Communication, OPA (Overseas Publishers Associa-tion, Amesterdan, 1997, pp. 16-38.

www.bocc.ubi.pt