Upload
tranthu
View
216
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
A ARTICULAÇÃO POLÍTICO-INSTITUCIONAL DE UM MONARCA
CONSTITUCIONAL PARA O IMPÉRIO DO BRASIL (1826-1831)
Luís Henrique Junqueira de Almeida Rechdan (USP)
Resumo:
Este artigo tem por objetivo apresentar alguns aspectos teórico-metodológicos da pesquisa de
doutorado, em andamento, sobre a construção político-institucional do papel a ser
desempenhado pelo imperador à frente dos poderes moderador e executivo, de 1826 (abertura
dos trabalhos da Assembleia Geral, com o início da Primeira Legislatura) a 1831 (abdicação de
dom Pedro I, antes do início da segunda sessão anual legislativa da Segunda Legislatura), a
partir do diálogo estabelecido entre os representantes desses poderes estatais e os do poder
legislativo. Apesar do amplo rol de atribuições conferidas, em abstrato, ao imperador –
delegado privativo do poder moderador, enquanto Chefe Supremo da Nação e Seu Primeiro
Representante, e chefe do poder executivo – a Carta por ele outorgada e jurada no dia 25 de
março de 1824 não conteve, desde a primeira década da Independência, o papel desempenhado
pela Assembleia Geral por meio de suas duas câmaras.
Palavras-chave: Primeiro Reinado; História Política; Discurso Parlamentar.
Abstract:
This paper presents the preliminary results of a PhD research in progress on the political-
institutional construction of the role to be played by the emperor in front of regulating power [o
poder moderador] and as head of the executive power, from 1826 (opening of the General
Assembly, with the beginning of the First Legislature) to 1831 (abdication of dom Pedro I
before the beginning of the second annual session of Second Legislature), by the dialogue
between the government and the legislators. The Constitution - promulgated and sworn by dom
Pedro I on 25 March 1824, and despite the broad list of attributions conferred, in the abstract,
to the emperor - did not restrain, since the first decade of Independence, the role played by the
General Assembly through its two chambers.
Keywords: Primeiro Reinado; History of the political; Parliamentary discourse.
2
Assim terminaram de improviso as sessões da primeira Câmara dos
Deputados, fraca e vacilante em 1826, inquieta em 1827, exigente em
1828, e finalmente aventurando-se a opor uma barreira contra as
agressões do poder em 1829.1 (ARMITAGE, 1981, p.194)
O balanço feito por John Armitage2 sobre o caráter da Câmara dos Deputados, em sua
História do Brasil, publicada em 1836, foi de tal forma convincente que ainda hoje, em pleno
século XXI, encontram-se ecos de suas palavras em muitas das reflexões feitas sobre o papel
desempenhado pela Câmara dos Deputados no decorrer do Primeiro Reinado, desde a
abertura dos trabalhos legislativos no dia 06 de maio de 1826 até o encerramento da sessão
1 Em outro trecho, específico sobre os trabalhos legislativos em 1826, o historiador inglês foi mais contundente
ao afirmar: “A câmara eletiva no Rio de Janeiro prosseguia timidamente em seus trabalhos: desconfiava da
estabilidade da nova ordem de coisas: e muitos deputados consideravam a sua convocação como um passo
adotado para iludir o povo, e sujeito sempre a terminar por outra dissolução semelhante à da Câmara
Constituinte: incertos a respeito do grau de apoio com que deveriam contar da parte do povo, não ousavam entrar
em lide com a autoridade suprema, e procediam com receios” (ARMITAGE, 1981, p.130). 2 John Armitage (Failsworth, Inglaterra, 1807 – Manchester, Inglaterra, 1856) foi um negociante inglês que
residiu no Rio de Janeiro, como representante de uma firma ligada ao comércio de têxteis, de 1828 a 1835, onde
foi admitido na Sociedade Defensora da Liberdade e da Independência Nacional (1831-1835) e se tornou amigo
de Evaristo Ferreira da Veiga (deputado na segunda legislatura pela província de Minas Gerais, redator do
periódico Aurora Fluminense e, durante o século XIX, considerado o “verdadeiro” autor do livro), fatos que,
segundo Flávia Florentino Varella (VARELLA, 2011), justificam a preponderância da interpretação liberal
moderada da independência e do primeiro reinado em sua obra. Ou seja, a História do Brasil de Armitage se
insere no contexto político da Regência, no qual se alia aos denominados liberais moderados (escrita em inglês,
publicada na Inglaterra em 1836, foi traduzida e publicada no Brasil no ano seguinte), e sublinha o grande passo
dado pelo Império do Brasil, naquele momento, rumo aos ideais de comércio e de civilização pregados pelo
Império Britânico, em meados da década de 1830. Sobre Armitage, as características, a autoria e a recepção de
sua obra no século XIX, ver OLIVEIRA, 1999. Em nossa análise dos Anais da Câmara dos Deputados,
verificamos o quanto a interpretação dada por Armitage, sobre o papel desempenhado pela câmara temporária, é
tributária dos argumentos utilizados pelos deputados liberais através de discursos proferidos no decorrer da
primeira legislatura. Neste sentido, Francisco de Paula Souza e Melo, deputado pela província de São Paulo,
ressaltou, durante a discussão do voto de graças de maio de 1828, o quão longe eles estavam do posicionamento
adotado pelos deputados dois anos antes: “Em 1826 a discussão da resposta à fala do trono não passou de mera
formalidade; em 1827 ganhou-se alguma coisa, contudo ainda havia reserva, era preciso ir contra armas muito
poderosas. Em 1828 como se discute? Uma ampla liberdade nacional aparece contra as opiniões
anticonstitucionais! Se eu estivesse em minha casa, e visse nos diários as discussões que tem aparecido, eu me
admiraria” (Anais do Parlamento Brasileiro: Câmara dos Srs. Deputados, 1828, tomo primeiro, p.58).
3
anual legislativa de 18303. De tal forma que se tornou corrente, na historiografia dedicada a
este período, vislumbrar, nas primeiras sessões da Assembleia Geral Legislativa, deputados
fracos e vacilantes que temiam um desfecho igual ao da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa de 1823 (SOUSA, 1988, p.211; HOLANDA, 1997, p.399; CERVO, 1981, p.31-
32. PEREIRA, 2010, p.171, 203)4. Contudo, nota-se que, se por um lado eram cautelosos
(RIBEIRO; PEREIRA, 2009, p.154), na medida em que evitavam ferir os brios de dom Pedro
I, por outro, souberam, com muita habilidade, conduzir os trabalhos legislativos de forma a
elaborar uma crítica severa e ininterrupta aos rumos tomados e aos objetivos traçados pela
política imperial brasileira até aquele momento (LOPES, 2003, p.208; DOLHNIKOFF, 2005;
DANTAS, 2008, p.9-67) e propor estratégias para se construir, a partir do texto
constitucional, um papel viável ao imperador de acordo com os anseios das diversas
províncias brasileiras.
Na Constituição Política do Império do Brasil, outorgada por dom Pedro I no dia 25
de março de 1824, ao imperador foram conferidas diversas atribuições em abstrato, quer em
virtude dele ser o chefe supremo da nação e seu primeiro representante, quer enquanto chefe
do poder executivo, de acordo, respectivamente, com o disposto nos artigos 98 e 102 do texto
constitucional. Contudo, dada a não convocação da Assembleia Geral Legislativa e, deste
modo, pendentes de serem regulamentadas diversas inovações político-institucionais previstas
na carta de 1824 – tais como a (re)organização dos poderes judiciário, provinciais e
municipais, a regulamentação da responsabilidade dos empregados públicos em geral, a
3 A renúncia de dom Pedro I, no dia 07 de abril, ocorreu antes da abertura da sessão anual legislativa de 1831. 4 Verifica-se, a partir da leitura dos Anais da Câmara dos Deputados e dos periódicos da corte que, desde o
início, a Câmara dos Deputados se posicionou firme na crítica ao governo.
Ora, se os membros da Câmara dos Deputados tivessem realmente adotado uma postura fraca e vacilante, como
justificar as acirradas discussões ocorridas e as aprovações de projetos de lei como o da responsabilidade dos
ministros e conselheiros e estado em 21 de julho de 1826 (do projeto elaborado por Vasconcelos, na Câmara dos
Deputados, para ser enviado ao Senado e ser nele discutido e, caso aprovado, encaminhado ao imperador para
sanção – Anais do Parlamento Brasileiro: Câmara dos Srs. Deputados 1826, tomo terceiro, p.262); e as
reiteradas solicitações de informações e de esclarecimentos encaminhadas aos ministros no decorrer de toda a
sessão de 1826.
4
proteção dos direitos e garantias individuais previstos no texto constitucional dentre inúmeros
outros temas5 –, não estava claramente delimitado como monarca agiria à frente de cada uma
das atribuições a ele conferidas, ou mesmo quais os limites e as responsabilidades de seus
ministros e/ou conselheiros de Estado, por eventuais abusos, excessos e desvios na execução
dos atos praticados à frente dos poderes que lhe foram delegados pela nação. No entanto,
apesar de o imperador em diversas ocasiões se contrapor ao texto constitucional, por ele
mesmo outorgado à nação, não havia mais a possibilidade de se governar como no período
anterior: ser um monarca constitucional era-lhe uma obrigação, mais do que uma livre opção
(BARATA, 2009, p.49-70; MOREL, 2005).
Na leitura dos Anais do Parlamento Brasileiro: Câmara dos Srs. Deputados e dos
Anais do Senado do Império do Brasil6, perscrutam-se os meandros pelos quais o papel a ser
exercido pelo Imperador foi tecido através do discurso legislativo, muito mais do que pré-
determinado pelo texto constitucional. 7 A criação de um poder moderador (aliado ao
5 A novidade do sistema de governo implantada pela constituição de 1824 foi sintetizada por Justiniano José da
Rocha, contemporâneo dos acontecimentos, ao analisar, anos depois, este conturbado período da história do
Império do Brasil, ao qual denominou Primeiro Período – 1822-1831 Ação: Luta: “tudo estava por fazer, tudo
por criar, pois não só era nova a forma constitucional, novas as instituições, como novo o país até na sua
organização administrativa. (ROCHA, 2009, p.165).
Diante deste quadro, logo no início dos trabalhos legislativos, no Senado, os senadores Visconde de Nazaré,
Carneiro de Campos e Rodrigues de Carvalho elaboraram uma tabela das leis regulamentares indicadas na
constituição, na qual elencaram vinte e seis dispositivos constitucionais pendentes de regulamentação na
Constituição Política do Império do Brasil de 1824 – os artigos 6, §5; 20; 89; 97; 131; 134; 150; 153; 156; 162;
163 e 164; 168; 169; 179; 179, §§ 4, 6 a 10, 17, 22, 26 a 28, 33 e 35 (Anais do Senado do Império do Brasil,
1826, tomo primeiro, p.143). 6 Os Anais do Parlamento Brasileiro: Câmara dos Srs. Deputados foram digitalizados e estão disponíveis para
consulta no sítio www2.camara.leg.br, e os Anais do Senado do Império do Brasil (ASIB), no sítio
www.senado.gov.br. 7 Ao se analisar o texto da Carta, em comparação com os elaborados pelas experiências constitucionais de Cádis
(1812) e de Lisboa (1822), constata-se uma tentativa de se fortalecer o poder régio, frente aos demais poderes,
em especial, o legislativo. No entanto, a necessidade de legitimação do poder do imperador, no recém-
emancipado Império do Brasil, fez com que o diálogo com os senadores e os deputados gerais (representantes da
Nação, tal como o próprio imperador, de acordo com o art.11, porém com a diferença de que eram eleitos para
exercerem cargos vitalícios – caso dos senadores –, ou temporários – caso dos deputados) se tornasse central na
política pós-independência. Ou seja, a despeito do texto da Carta, o legislativo rapidamente assumiu um papel de
destaque no jogo político em construção. Em um momento delicado, no qual o espectro das revoluções
5
executivo), de forma a limitar a atuação do legislativo (forte nas experiências constitucionais
de Cádis e de Lisboa – de acordo com HESPANHA, 2004, p.102, “o poder real [moderador]
visava, antes de mais, a contenção do legislativo”), não impediu os deputados (representantes
da Nação, eleitos e temporários) e os senadores (representantes da Nação, eleitos e vitalícios)
de questionarem as medidas adotadas pelo imperador à frente dos poderes que lhe foram
reservados. Cumpre lembrar que, na arquitetura constitucional do Império do Brasil,
destacam-se dois grandes títulos 8 : o quarto, dedicado ao poder legislativo, e o quinto,
consagrado ao imperador – no qual foram instituídos os poderes moderador e executivo. Foi
do diálogo estabelecido entre os representantes desses três poderes – legislativo, moderador e
executivo –, no espaço da Assembleia Geral Legislativa que, a partir do texto constitucional,
mas nele não se esgotando, construiu-se a arquitetura político-institucional do Estado recém-
emancipado. Nas câmaras do corpo legislativo se canalizavam os anseios, as dúvidas, os
questionamentos e as expectativas da Nação soberana em torno de qual seria o melhor
governo e a melhor administração do Império em construção. Tratava-se, portanto, de um
fórum de debate privilegiado, no qual afloravam as diversas concepções de monarquia
constitucional em curso naquele momento.
permeava a política, era fundamental ao imperador obter o reconhecimento de sua legitimidade pela Nação
soberana. Não lhe bastava o texto constitucional para ser reconhecido imperador, era-lhe necessário a
legitimação pelos “povos” do Império do Brasil que teimavam em permanecer um mosaico, apesar da nova
ordem que se lhe propunha (JANCSÓ; PIMENTA, 2000).
A Confederação do Equador (1824) mostrara o quanto era frágil o Império articulado na América a partir do
legado lusitano (LEITE, 1989; MELLO, 2004; BERNARDES, 2003). Além disso, o temor de uma possível
união das Coroas Brasileira e Portuguesa pairava sobre a política e dificultava a empreitada imperial, sobretudo
após a morte de D.João VI em 1826 e a questão da sucessão do trono português (LIMA, 2008; SOUSA, 1988;
MACAULAY, 1993). Nos Anais, esses aspectos afloram e permitem ao historiador desvendar a articulação de
um Império do Brasil a partir dos diversos anseios defendidos pelas províncias ora unidas sob um mesmo
governo. 8 A Constituição Política do Império do Brasil possui cento e setenta e nove artigos distribuídos em oito títulos:
I - Do Império do Brasil, seu Território, Governo, Dinastia, e Religião (com cinco artigos); II - Dos Cidadãos
Brasileiros (com três artigos); III - Dos Poderes e Representação Nacional (com quatro artigos); IV - Do Poder
Legislativo (com oitenta e cinco artigos); V - Do Imperador (com cinquenta e três artigos); VI - Do Poder
Judicial (com quatorze artigos); VII - Da Administração e Economia das Províncias (com oito artigos); VIII -
Das Disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros (com sete artigos).
6
No debate legislativo, o papel a ser desempenhado pelo imperador, em um sistema de
governo monárquico hereditário constitucional representativo, era questionado não apenas no
início de cada sessão anual, por ocasião da elaboração da resposta à fala do trono9, mas
diuturnamente ao serem analisados quer os projetos de lei, quer as petições encaminhadas
pelos cidadãos (analisados por PEREIRA, 2010), os ofícios e os relatórios encaminhados
pelos ministros às câmaras da Assembleia Geral Legislativa, ou mesmo, o debate da lei de
orçamento discutida a partir do relatório apresentado no início de cada sessão anual à Câmara
dos Deputados pelo ministro da fazenda (de acordo com o disposto no artigo 172 da
Constituição Política do Império do Brasil).10
A abertura dos trabalhos da Assembleia Geral do Império do Brasil, em maio de 1826,
trouxe de volta à cena pública e política, ainda em construção, inúmeros deputados
constituintes de 1823. A princípio contidos11 em suas falas relacionadas diretamente ao papel
exercido pelo imperador, rapidamente os ânimos se acirraram, tanto frente a assuntos
polêmicos, relacionados à política externa do nascente Império12, tais como o Tratado de Paz
e Amizade entre Brasil e Portugal (firmado em 29 de agosto de 1825, mas discutido no
Parlamento entre 1826 e 1827), a Guerra Cisplatina e o tratado antitráfico de escravos
(FERREIRA, 2006; PEREIRA, 2007, 2012; PARRON, 2011); quanto aos relacionados às
demais atribuições reservadas ao imperador, à frente quer do poder moderador quer do poder
9 Na fala do trono, o imperador elaborava tanto um balanço do governo do Estado no ano anterior quanto um
projeto para o que se iniciava. Desse modo, tratava-se de um momento privilegiado para os deputados, reunidos
em câmara, elaborarem um questionamento à política adotada pelo imperador, na medida em que, face à fala do
trono era elaborada uma resposta ou voto de graças debatido em plenário pelos representantes eleitos da nação. 10 Na primeira década da independência, a tradição do “como governar” não mais atendia aos anseios da Nação
soberana, mas ainda não se estabelecera um novo procedimento de governo e de administração no novo Estado,
fruto da emancipação política frente a Portugal. 11 Ser contido não implica em ser fraco ou, mesmo, vacilante como afirmava John Armitage em seu História do
Brasil (ARMITAGE, 1981, p.194). 12 De acordo com a Carta de 1824, a condução de política externa era atribuição do poder executivo (artigo 102,
§§ 6 a 9, com a consulta obrigatória ao Conselho de Estado, de acordo com o artigo 142), cabendo ao legislativo
um papel secundário, pois sua manifestação apenas era solicitada quando a segurança e o interesse do Estado o
permitissem. Ainda assim, a despeito do texto constitucional, o debate legislativo sobre as relações estabelecidas
entre o Império do Brasil e os demais Estados soberanos foi intenso durante todo o período a ser investigado.
7
executivo, por meio de seus ministros13 (OLIVEIRA, 2006, 2012, 2012; LYNCH, 2007). A
partir das fontes consultadas, verifica-se que, apesar dos preceitos constitucionais, na prática
político-institucional não estava claramente definido o que cabia a quem: atribuições eram
(com)partilhadas e se disputavam os limites de ação e a(s) (ir)reponsabilidade(s) de cada um
dos poderes estatais 14 . De acordo com o contexto da época, outorgou-se uma carta
constitucional, a qual, em abstrato, delimitava as atribuições de cada poder político – poderes
legislativo, executivo, moderador e judicial –, estabelecendo-se igualmente um sistema de
controle entre eles (check and balances), mas na prática político-institucional debatia-se a
extensão e as (ir)responsabilidade(s) 15 dos representantes de cada um dos poderes
constitucionais.
Ao assim procederem no decorrer dos debates legislativos travados durante o reinado
de dom Pedro I, e obtidas diversas conquistas legais, em 1831 vislumbrou-se na abdicação do
imperador – no dia 07 de abril – a possibilidade de se manter o sistema de governo
monárquico hereditário constitucional representativo instituído pela Constituição Política do
13 Por um lado, os poderes exercidos pelo imperador nunca deixaram de ser objeto de preocupação pelos
representantes de ambas as câmaras, sobretudo no que se refere à natureza e aos limites a sua atuação. Por outro,
a necessidade de legitimação do poder régio pela Assembleia Geral impunha ao imperador submeter suas
decisões – mais do que meramente informar – à avaliação dos representantes eleitos pela Nação reunidos quer na
Câmara dos Deputados, quer no Senado. Dessa forma, as atribuições que lhe foram conferidas pela Carta de
1824, não lhe garantiam liberdade de ação, na medida em que sempre estava a depender da avaliação das
câmaras da Assembleia Geral. De certa forma, frustrara-se o objetivo de se construir um Imperador supra partes,
neutro e acima dos conflitos políticos; o qual se declarava “POR GRAÇA DE DEUS, e Unânime Aclamação dos
Povos, Imperador Constitucional, e Defensor Perpétuo do Brasil” no preâmbulo da Carta por ele outorgada aos
Brasis recém-emancipados. 14 Nesse momento, aos deputados gerais e aos senadores cabia não apenas o processo legislativo – atribuição
típica do poder legislativo –, mas também diversas outras atribuições hoje consideradas típicas quer do judiciário
(tal como o papel de Corte Constitucional) quer do executivo (como a concessão de aposentadorias e a
contratação de funcionários para a administração). 15 No tratamento da (ir)responsabilidade, a Constituição Política do Império do Brasil de 1824 estabeleceu: (1) a
irresponsabilidade do imperador, em seu artigo 99; (2) a irresponsabilidade dos senadores e dos deputados, nos
termos dos artigos 26 a 28; (3) a responsabilidade dos ministros e conselheiros de estado, de acordo,
respectivamente, com os artigos 133 a 135 e 143; bem como, seu julgamento pelo Senado, de acordo com o
artigo 47, II; (4) a responsabilidade dos juízes de direito e oficiais de justiça, nos termos dos artigos 156 e 157; e
(5) a responsabilidade dos empregados públicos em geral, de acordo com o artigo 179, §§ 29, 30 e 35.
8
Império do Brasil outorgada pelo monarca em 1824, a despeito da revolução em curso
naquele ano. De um lado, ao mesmo tempo em que o primeiro imperador – português de
nascimento – retornava para Portugal, deixava seu filho – nascido no Brasil – como elo de
continuidade dinástico-institucional. De outro, possibilitava às câmaras da Assembleia Geral
Legislativa concluírem o trabalho interrompido por ocasião da dissolução da Assembleia
Geral Constituinte e Legislativa de 1823: o texto constitucional de 1824 tornar-se-ia, de certa
forma – pela aprovação do Ato Adicional de 1834 e pela lei de interpretação de 1840 –,
representativo da Nação representada nas duas câmaras do corpo legislativo. Ao assim
procederem, legitimou-se, perante os Brasis, o texto outorgado em 1824.16 E, frente aos
diversos horizontes de expectativas de uma monarquia constitucional possível, articuladas no
período em análise, um pacto político-institucional foi tecido de forma a possibilitar a
manutenção desse sistema de governo até a instituição da República em 1889
(DOLHNIKOFF, 2005).
Por um lado, pela Carta de 1824, almejava-se a construção de um Estado nacional sob
um governo Monárquico Hereditário, Constitucional e Representativo (artigo 3 da
Constituição Política do Império do Brasil), o que era uma novidade política para a época
(NEVES, 2003). Desse modo, os representantes da Nação – o imperador e a Assembleia
Geral Legislativa – se questionavam sobre o alcance das disposições contidas no texto
constitucional. Quais as atribuições de um imperador, sob um sistema de governo monárquico
hereditário constitucional representativo, quer enquanto delegado privativo do poder
moderador quer enquanto chefe do poder executivo? Como as exercer e quais seus limites e
responsabilidades? Proclamadas a irresponsabilidade e inviolabilidade do imperador, quem
seria responsável pelos atos por ele praticados? E, quem e como seriam julgados e
16 Ao invés de afirmar peremptoriamente que o texto outorgado em 1824 era centralista ou mesmo absolutista
(MIRANDA, 2001; BONAVIDES, ANDRADE, 2008, p.106), pela simples previsão de um poder moderador
delegado privativamente ao imperador (o que não significava um “poder pessoal”, na medida em que era
obrigatória a consulta ao Conselho de Estado), investiga-se o aprendizado da política (ROSANVALLON, 1994)
proporcionado pelo debate político-institucional entre os poderes estatais de 1826 a 1831.
9
responsabilizados os responsáveis pelos desvios eventualmente cometidos? Quais condutas
deveriam ser punidas? Quais as relações possíveis entre os representantes dos poderes
executivo, moderador e legislativo, de forma a se manter o equilíbrio entre eles? Instituíra-se
o sistema de governo monárquico, hereditário, constitucional e representativo, mas a grande
questão era articular um regime de governo monárquico, hereditário, constitucional e
representativo, possível e viável, frente às especificidades políticas, econômicas e sociais do
Estado nacional em construção naquele momento.
Por outro, no plano jurídico, era igualmente uma novidade o ensino do Direito
Nacional (Pátrio) (LOPES, 2004, p.124-125; p.148). Nesse momento, ao passo em que se
afirmava uma nova ideia de soberania, relacionada à Nação, articulava-se uma nova
concepção de Direito tendo em vista os Estados nacionais em construção no século XIX.
Desse modo, não apenas novas concepções de lei, legitimidade e legalidade estavam em
construção no debate legislativo (FERNÁNDEZ SEBASTIÁN; FRANCISCO FUENTES,
2002), como também, no início do século XIX, o Direito Público, o qual abarca tanto o
Direito Constitucional quanto o Administrativo, ainda estava em fase de delimitação teórico-
conceitual (ROSANVALLON, 1994; LOPES, 2004; SLEMIAN, 2006).
Além disso, para perscrutar o debate politico no Império do Brasil em sua primeira
década, deve-se considerar, além da transformação no saber jurídico supramencionado, o fato
de os cursos jurídicos terem sido criados, nesse Estado nacional em construção, apenas em
1827 (as aulas tiveram início em 1828). Ou seja, há uma particularidade no debate travado,
durante o Primeiro Reinado, nas duas câmaras da Assembleia Geral do Império do Brasil: a
presença de uma geração formada, sobretudo em Coimbra, dentro dos valores iluministas e
intimamente vinculada ao espaço atlântico (VARGUES, 1997; MAIA, 2002; ARAÚJO, 2003;
NEVES, 2003).
No entanto, deve-se sublinhar que a unidade político-territorial brasileira foi, antes,
fruto da negociação entre as diversas elites brasileiras, representadas ou não nas Cortes
gerais, extraordinárias e constituintes, da Nação Portuguesa (1821-22), na Assembleia Geral
10
Constituinte e Legislativa do Império do Brasil (1823) e nas duas câmaras da Assembleia
Geral do Império do Brasil – a Câmara dos Deputados e a Câmara dos Senadores ou Senado
(instituídas pela Carta de 1824, em seu artigo 14, e em funcionamento desde 1826), do que
resultado do esforço homogeneizador conduzido pelo Estado português, por meio da atuação
de sua elite política formada em Coimbra, desde fins do século XVIII. Em um momento no
qual não havia a concepção moderna de partidos políticos ou programas partidários bem
definidos – pois, na prática político-parlamentar havia facções políticas com fluidas fronteiras
entre elas, o que exclui a ideia de fidelidade partidária –, os atores se posicionavam frente a
cada questão que lhes era colocada pelo debate legislativo, muitas vezes de forma contrária à
da facção que os havia conduzido quer à Câmara dos Deputados, quer ao Senado
(DOLHNIKOFF, 2012, p.13). De modo que, a maior liberdade nas intervenções em plenário,
característica desse período, gerou um amplo leque de ideias para cada questão discutida, o
que fornece, em certa medida, um amplo painel das ideias em circulação naquele momento
histórico.
Cumpre ressaltar que a permanência em vigor da Constituição Política do Império do
Brasil, ao longo de quase todo o século XIX 17 , fornece um indício tanto da habilidade
técnico-jurídica de seus redatores (dentre os quais alguns historiadores incluem o próprio
imperador) quanto da viabilidade político-institucional do sistema de governo monárquico
hereditário constitucional representativo nela proposto. Ou seja, apesar de não ter apresentado
uma solução definitiva para as questões da separação dos poderes e do equilíbrio entre eles, o
17 A Carta de 1824 sofreu apenas duas alterações, as quais não interferiram diretamente em seu texto original: o
Ato Adicional de 1834, a partir das Bases da Reforma Constitucional aprovadas em 1832; e a Lei de
Interpretação de 1840.
11
texto constitucional outorgado em 1824 construiu uma base para o amplo diálogo que se lhe
seguiu.18
Apesar da importância do tema da construção de um papel viável para o imperador,
tendo em vista as aspirações dos diversos segmentos sociais das províncias representados na
Assembleia Geral Legislativa, e do grande acervo documental disponível (parte do qual se
encontra publicado e/ou digitalizado) a ser investigado pelo pesquisador interessado na
compreensão da forma pela qual se articulou o papel político de um imperador, sob o sistema
de governo monárquico-constitucional, para o nascente Império do Brasil, há poucos
trabalhos a ele dedicados. No decorrer da última década, foram desenvolvidas pesquisas
relacionadas às origens e ao funcionamento do poder moderador, as quais ampliaram a
reflexão sobre esses temas em nossa historiografia (BARBOSA, 2001; AMBROSINI, 2004;
OLIVEIRA, 2006 e 2009; LYNCH, 2007). No entanto, não houve interesse direto da
historiografia tanto em relação ao papel desempenhado pelo monarca enquanto chefe do poder
executivo – competência por ele exercida juntamente com a de delegado privativo do poder
moderador19, quanto às relações estabelecidas entre ambos os poderes exercidos sob a chefia
18 O fato de a carta de 1824 ter vigorado até 1889 não significa a ausência de conflitos no interior do Império do
Brasil (DANTAS, 2011), mas a plasticidade do texto e a habilidade de seus intérpretes tendo em vista a
construção de um novo Estado nacional na América.
Cumpre notar que na década de 1830, houve uma instabilidade político-institucional em ambas as margens do
Atlântico, o que reforça a ideia do quanto as ideias circulavam por esse espaço construído historicamente
(TOMICH, 2004, p.238). Num momento em que múltiplas eram as experiências constitucionais e parlamentares,
a experiência brasileira impactava e era impactada pelas demais. Vislumbrar na Carta de 1824 – no que se refere
à construção político-institucional do papel a ser desempenhado pelo imperador à frente dos poderes moderador
e executivo – a simples adoção da teoria política de Benjamin Constant e/ou Jeremy Bentham é desconsiderar o
rico debate político-institucional travado no decorrer da primeira década da Independência. 19 O foco dos pesquisadores foi dado ao papel desempenhado por cada ministério, ou pelo Conselho de Estado,
em temas específicos, tais como a Guerra da Cisplatina (PEREIRA, 2007) e o debate acerca da escravidão
(PARRON, 2009). Contudo, não se considerou o fato de que os ministros atuavam sob a chefia e dentro do rol
de atribuições conferidas em abstrato ao imperador, ou seja, ao decidirem, exercitavam um poder delegado ao
imperador pelo texto constitucional e, deste modo, seriam responsabilizados por eventuais faltas cometidas
(artigos 132 a 135 da Carta de 1824), de forma a preservar a inviolabilidade e a sacralidade, que possibilitavam a
irresponsabilidade do monarca (artigo 99 da Carta de 1824) pelos atos praticados à frente quer do poder
moderador, quer do poder executivo. A questão da responsabilidade pelos atos praticados pelos ministros, quer
no âmbito do poder executivo (para o qual havia expressa menção na Carta de 1824), quer na referenda do ato
12
do imperador, com ou sem o referendo ministerial. No que se refere à utilização do discurso
parlamentar como fonte de pesquisa, no decorrer da última década, foram desenvolvidos
trabalhos que propuseram uma metodologia para a abordagem desse discurso político. Dentre
os temas tratados por essa nova historiografia, a qual utiliza o discurso parlamentar como
fonte, destacam-se questões da política externa (PEREIRA, 2007); da construção e exercício
da cidadania (RIBEIRO, 2002; PEREIRA, 2010); da Constituição (SLEMIAN, 2006), e do
contrabando e da escravidão (RODRIGUES, 2000; PARRON, 2009).
Cumpre salientar que, após o desenvolvimento do contextualismo linguístico
(SKINNER, 1969; POCOCK, 2003), da história conceitual do político (ROSANVALLON,
1994, 1995, 200320), da história dos conceitos (KOSELLECK, 1990, 1997) e da história
praticado pelo imperador à frente do poder moderador, suscitou amplo debate no Parlamento e na imprensa no
decorrer do século XIX e, no qual, participaram os principais publicistas do oitocentos. 20 As reflexões de Pierre Rosanvallon voltadas tanto à elaboração de uma metodologia para a história conceitual
do político quanto à compreensão do regime político francês de 1814 a 1848, a partir da análise dos textos
constitucionais de 1814 e 1830 (ROSANVALLON, 1985, 1994), fornecem instrumentos para uma nova
abordagem da construção político-institucional do papel a ser desempenhado pelo imperador à frente dos
poderes moderador e executivo, a partir do diálogo estabelecido entre os representantes desses poderes estatais e
os do legislativo. Dentre os aspectos abordados pelo autor, destaca-se a aprendizagem da política em curso nas
décadas de 1820 e 1830 (no decorrer desses anos se buscava a construção do novo representado pela prática
política de um sistema constitucional, base do Estado nacional a ser consolidado). Além disso, a partir da leitura
desse autor, verifica-se o quanto a historiografia brasileira tradicional buscou interpretar o Primeiro Reinado a
partir dos modelos interpretativos elaborados pela historiografia francesa para a compreensão da França entre
anos de 1814 e 1848.
A contribuição do pensamento de Pierre Rosanvallon está presente na pesquisa desenvolvida pelo cientista
político Christian Edward Cyril Lynch, sob a co-orientação daquele autor. Lynch propõe a análise da recepção
do discurso monarquiano pela “direita”, em confronto com o liberalismo vintista defendido pela “esquerda”
brasileira do século XIX, no “contexto das revoluções ibero-americanas” e do ingresso do Brasil na modernidade
política (LYNCH, 2007, p.6). Suas reflexões fornecem não apenas um percurso metodológico, como também
uma minuciosa análise teórico-conceitual do poder moderador – seu objeto de pesquisa – tanto na França quanto
no Brasil. No entanto, ao invés de se focalizar a fidelidade ou não do que aqui se construiu com a teoria e a
práxis política francesa, ressaltando as ambiguidades presentes no pensamento político brasileiro do século XIX,
tal como faz o autor em sua tese, propõe-se nessa investigação desemaranhar os fios que teceram um imperador,
sob um sistema de governo monárquico-constitucional possível, para o nascente Império do Brasil. No diálogo
travado entre os representantes dos poderes estatais na tribuna parlamentar, encontram-se ecos não apenas das
experiências constitucionais e parlamentares francesas, como defende Lynch, mas também, e, sobretudo, das
ibéricas, as quais não se resumem ao liberalismo vintista de “esquerda” (forma através da qual o autor se refere à
experiência constitucional portuguesa de 1820 a 1822). Os conceitos provenientes das experiências
constitucionais e parlamentares atlânticas foram apropriados, e não meramente recepcionados, pela heterogênea
13
atlântica (BAILYN, 1996, 2005; TOMICH, 2004; MORELLI, 2006; ELLIOTT, 2006;
MARZAGALLI, 2008; LANGUE, 2011), um amplo instrumental teórico-metodológico foi
disponibilizado aos historiadores de forma a elaborar novas abordagens de temas tradicionais
na historiografia, questionando-os e redefinindo-os. Desse modo, frente às periodizações e às
classificações consagradas, novas abordagens permitem tanto um questionamento, quanto
uma problematização da historiografia tradicional referente ao tema.
Parte da nova historiografia brasileira dedicada ao Primeiro Reinado, valendo-se tanto
das perspectivas abertas pela nova história política quanto dos questionamentos trazidos pela
história cultural, voltou-se à compreensão do vocabulário político da independência, a partir
das reflexões metodológicas articuladas por Quentin Skinner, John Pocock e Reinhart
Koselleck (NEVES, 2003, p.16). Ao se utilizarem não apenas da documentação de caráter
oficial, mas também dos periódicos, folhetos e panfletos como fontes para a história,
buscaram desvendar os múltiplos e cambiantes significados que os conceitos assumiam num
período em rápida transformação político-social; e, dessa forma, questionaram as
interpretações clássicas dadas aos acontecimentos considerados fundadores do Estado e da
Nação brasileiros desde José da Silva Lisboa (LISBOA, 1827-1830). Dentro dessa vertente
historiográfica, a historiadora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves (2003), antes de
desemaranhar a trama dos acontecimentos políticos ocorridos entre 1820 e 1822 – ao analisar
folhetos e panfletos publicados nesses anos no Brasil e em Portugal –, elabora um minucioso
elite política imperial, a qual, habilmente, soube articular um regime de governo monárquico-constitucional
possível, para o nascente Império do Brasil, o qual permaneceria em vigor ao longo de quase todo o século XIX,
mantida praticamente inalterada a Carta outorgada em 1824.
Cumpre notar que, por discurso monarquiano, Cyril Lynch se refere ao pensamento conservador, originário do
pensamento político revolucionário francês, que possibilitou a veiculação de um liberalismo possível “numa
terra cuja fragilidade social impunha ao Estado forjar a nova ordem como condição das reformas preconizadas
pelo espírito da ilustração” (LYNCH, 2007, p.11). Para o autor, o denominado tempo saquarema (concepção
defendida pelo historiador Ilmar Rohloff Mattos; MATTOS, 2004) representou o triunfo dessa concepção
política, a qual persistiria ao longo de todo o Império e seria resgatada nas décadas de 1920 e 1930 pelos
tenentes e pela burocracia estatal, tendo em vista a centralização do Estado e a democratização pelo alto da
sociedade brasileira (LYNCH, 2007, p.12).
14
estudo acerca do vocabulário político dos anos da independência, o qual constitui uma
importante contribuição teórico-metodológico-conceitual à presente investigação21. Em sua
interpretação dos acontecimentos daqueles anos, a autora mostra o quanto apenas a partir da
ação e da prática política é que se compreende a dinâmica de uma sociedade em
transformação. Outro aspecto importante de sua pesquisa é a preocupação em entender a
política, a partir do que ocorria em ambos os lados do Atlântico, tendo em vista o mundo luso-
brasileiro comum por ela abordado. No entanto, em sua obra, deve-se relativizar a
interpretação por ela dada em relação às permanências do Antigo Regime na cultura política
da independência (NEVES, 2003, p.414-418), de forma a sublinhar em demasia a conjuntura
política da Restauração (e da ideia política de um Império Luso-brasileiro) no curso dos
acontecimentos.
A articulação político-institucional de um imperador, sob o sistema de governo
monárquico hereditário constitucional representativo, para o nascente Império do Brasil
demonstra a ousadia daqueles homens que, apesar de formados no espírito do reformismo
ilustrado ibérico, buscaram, a partir tanto das experiências constitucionais e parlamentares
atlânticas, quanto do aprendizado da política no espaço da Assembleia Geral, construir o novo
e, não simplesmente, reproduzir em terras americanas modelos políticos alhures concebidos.
Conheciam a especificidade do Império a ser construído e se articularam de forma a conceber
um regime de governo monárquico-constitucional possível, o qual foi tão habilmente tecido
que durou até quase o final do século.
Nesse sentido, a historiadora Cecília Helena de Salles Oliveira – ao analisar as
origens, o funcionamento e os limites do poder moderador –, fornece elementos para a melhor
compreensão da articulação político-institucional em curso nos primeiros anos do nascente
21 No campo do vocabulário político, destaca-se o dicionário coordenado por Javier Fernández Sebastián e Juan
Francisco Fuentes (2002), o qual, ao abordar a Espanha, fornece elementos para a melhor compreensão daqueles
anos “revolucionários”, nos quais o radicalmente novo estava a ser construído.
15
Império do Brasil e alerta sobre o perigo de se abordar o poder moderador “em separado dos
demais poderes e mecanismos estatais” (OLIVEIRA, 2006, p.46). A produção teórica da
autora quer sobre o processo de independência do Brasil (OLIVEIRA, 1999) quer sobre a
consolidação do sistema de governo monárquico-constitucional no Segundo Reinado
(OLIVEIRA, 2006, 2009, 2010), traz reflexões fundamentais tanto aqueles que se dedicam ao
período por ela estudado – o Segundo Reinado – quanto aos que buscam compreender a
articulação político-institucional de um imperador viável, sob o sistema de governo
monárquico hereditário constitucional, para o Império do Brasil, durante o Primeiro Reinado.
A Aclamação de D. Pedro I, como “Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil”
(12 de outubro de 1822); a outorga da Carta Constitucional pelo mesmo Monarca (25 de
março de 1824); a abertura da Assembleia Geral Legislativa (em 06 de maio de 1826); a
sanção imperial da lei da responsabilidade dos ministros e conselheiros de Estado (em 15 de
outubro de 1827); a nomeação de um ministério composto por três deputados, dito
parlamentar (em 20 de novembro de 1827); a demissão do denominado ministério clementino
e nomeação de um ministério conciliador articulado pelo marquês de Barbacena (em 04 de
dezembro de 1829); e, a abdicação do imperador (em 07 de abril de 1831) constituem atos de
um movimento mais amplo de consolidação do sistema de governo monárquico hereditário,
constitucional e representativo implantado pela Carta de 1824: não se queria mais ser um
mosaico (JANCSÓ; PIMENTA, 2000), mas como conciliar os diversos interesses em conflito
de forma a reordenar as peças do jogo?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AMBROSINI, Diogo Rafael. Do poder moderador: uma análise da organização do poder na
construção do estado imperial brasileiro. São Paulo: Dissertação de mestrado, FFLCH-USP,
2004.
16
ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu de. A Cultura das Luzes em Portugal: Temas e
Problemas. Lisboa: Horizonte, 2003.
ARMITAGE, John. História do Brasil: desde o período da chegada da família real de
Bragança, em 1808, até a abdicação de D.Pedro I, em 1831, compilada à vista dos
documentos públicos e outras fontes originais formando uma continuação da história do
Brasil de SOUTHEY (1ª edição: 1836). São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
BAILYN, Bernard. The Idea of Atlantic History. In: Itinerario, vol. 20, n. 1, 1996, p. 19-44.
_____. Atlantic History. Concept and Contours. Harvard, Harvard: University Press, 2005.
BARATA, Alexandre Mansur. Do secreto ao público: espaços de sociabilidade na Província
de Minas Gerais (1822-1840). In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria Bastos
Pereira das (organizadores). Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e
liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.49-70.
BARBOSA, Silvana Mota. A sphinge monarquica : o poder moderador a e politica imperial.
UNICAMP. Tese de doutorado. 2001.
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. Pernambuco e o Império (1822-1824): sem
constituição soberana não há união. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e
da nação. São Paulo: Hucitec, Fapesp, 2003, p.219-249.
BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil (1ª edição:
1988). Brasília: OAB Editora, 2008
CERVO, Amado Luiz. O Parlamento brasileiro e as relações internacionais (1826-1830).
Brasília : UnB, 1981.
17
DANTAS, Monica Duarte. Revoltas, Motins e Revoluções: das Ordenações ao Código
Criminal. In _____ (org.). Revoltas, Motins, Revoluções: Homens livres pobres e libertos no
Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2008, p.9-67.
DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo:
Globo, 2005.
_____. A monarquia constitucional brasileira e o modelo de governo representativo dos
oitocentos. Texto apresentado na XXIX Semana de História da Universidade Federal de Juiz
de Fora, 2010. Disponível em: http://www.ufjf.br/semanadehistoria/files/2010/02/Mesa-
Especial-de-Debates.pdf. Último acesso 25 de junho de 2014.
ELLIOTT, John H. Imperios del mundo atlántico. Madrid: Taurus, 2006.
FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier; FRANCISCO FUENTES, Juan. Diccionario político y
social del siglo XIX español. Madri: Alianza Editorial, 2002.
FERREIRA, Gabriela Nunes. O Rio de Prata e a consolidação do Estado Imperial. São
Paulo: Hucitec, 2006.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. A herança colonial, sua desagregação. In: _____ (dir.).
História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II, volume 1: O Brasil Monárquico (1ª
edição: 1962). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p.9-39.
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o
estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTTA, Carlos Guilherme
(org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias. São
Paulo: Senac, 2000, p.129-175.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos
(1ª edição: 1990). Rio de Janeiro: Contraponto, PUC-Rio, 2006.
18
_____. L’expérience de l’histoire. Paris: Gallimard, Le Seuil, 1997.
LANGUE, Frédérique. El espacio atlántico: conexiones imperiales, revoluciones, y
comunidades mercantiles. In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Reseñas y ensayos
historiográficos, 2011(11 février 2011). Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/60994.
Último acesso em 25 de junho de 2014.
LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco 1824: A Confederação do Equador. Recife:
Massangana, 1989.
LIMA, Oliveira. Dom Pedro e Dom Miguel: a querela da sucessão (1826-1834). Brasília:
Senado, 2008.
LISBOA, José da Silva (Cairu). Historia dos principaes successos políticos do Imperio do
Brasil. Rio de Janeiro: Tip. Imperial e Nacional, 1827-1830.
LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da
primeira metade do século XIX. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da
nação. São Paulo: Hucitec, Fapesp, 2003, p.195-218.
_____. As palavras e a lei: Direito, Ordem e Justiça na História do Pensamento Jurídico
Moderno. São Paulo: Ed.34, Edesp, 2004. LYNCH, 2007
LYNCH, Christian Edward Cyril. O momento Monarquiano: o Poder Moderador e o
Pensamento Político Imperial. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Tese
de doutorado, 2007.
MACAULAY, Neil. Dom Pedro I: a luta pela liberdade no Brasil e em Portugal, 1798-1834.
Rio de Janeiro: Record, 1993.
19
MAIA, Fernanda Paula Sousa. O discurso parlamentar português e as relações Portugal-
Brasil: A Câmara dos Deputados (1826-1852). Braga: Fundação Calouste Gulbenkian;
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2002.
MARZAGALLI, Silvia. L’histoire atlantique en Europe. In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos,
Coloquios, 2008 (24 septembre 2008). Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/42463.
Último acesso em 25 de junho de 2014.
MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema. A formação do Estado Imperial (1ª edição:
1986). São Paulo:Hucitec, 2004.
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência. O federalismo pernambucano de 1827 a
1824. São Paulo: Editora 34, 2004.
MIRANDA, Jorge. O Constitucionalismo liberal luso-brasileiro. Lisboa: Comissão Nacional
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.
MOREL, Marco. A transformação dos espaços públicos : Imprensa, atores políticos e
sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005.
MORELLI, Federica. Bernard Bailyn, “Atlantic History. Concept and Contours, Harvard,
Harvard University Press, 2005, 149 p.” In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Reseñas y
ensayos historiográficos, 2006 (03 avril 2006). Disponível em:
http://nuevomundo.revues.org/2151. Último acesso em 25 de junho de 2014.
NEVES, Lúcia Maria B. Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da
independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Faperj, Revan, 2003 (Tese de doutorado em
História Social – 1992).
20
OLIVEIRA, Cecília Helena Lorenzini de Salles. A Astúcia Liberal: Relações de Mercado e
Projetos Políticos na Corte do Rio de Janeiro (1820-1824). Bragança Paulista: EDUSF,
Ícone, 1999 (tese de doutorado defendida na FFLCH-USP em 1986).
_____. Teoria política e prática de governar: o delineamento do Estado imperial nas primeiras
décadas do século XIX. In: _____; PRADO, Maria Lígia Coelho; JANOTTI, Maria de
Lourdes Monaco (org.). A história na política, a política na história. São Paulo: Alameda,
2006.
_____. Repercussões da revolução: delineamento do império do Brasil. In: GRINBERG,
Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil imperial. Volume I – 1808-1831. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009, p.15-54.
_____. Contribuição para o estudo do poder moderador. In: _____; BITTENCOURT, Vera
Lúcia Nagib; COSTA, Wilma Peres. Soberania e Conflito: configurações do Estado Nacional
no Brasil do século XIX. São Paulo: Hucitec, Fapesp, 2010, p.185-235.
_____. A carta de 1824 e o poder do monarca: memórias e controvérsias em torno da
construção do governo constitucional do Brasil. In: _____; BERBEL, Márcia (orgs.). A
experiência constitucional de Cádis: Espanha, Portugal e Brasil. São Paulo: Alameda, 2012,
p.219-250.
PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865.
(Mestrado em História Social - FFLCH, 2009). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
PEREIRA, Aline Pinto. Domínios e Império: o Tratado de 1825 e a Guerra da Cisplatina na
construção do Estado no Brasil. 2007, 269f. Dissertação (Mestrado em História Social).
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia.
21
_____. A monarquia constitucional representativa e o locus da soberania no Primeiro
Reinado: Executivo versus Legislativo no contexto da Guerra da Cisplatina e da formação do
Estado no Brasil. 2012, 302f. Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal
Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia.
PEREIRA, Vantuil. Ao Soberano Congresso: Direitos do cidadão na formação do Estado
Imperial brasileiro (1822-1831). São Paulo: Alameda, 2010 (Tese de doutorado em história
apresentada na Universidade Federal Fluminense em 2008).
POCOCK, J.G.A. Linguagens do ideário político. Tradução de Fábio Fernandez. São Paulo:
Edusp, 2003.
_____. A angústia republicana: entrevista com J.G.A Pocock. In: Lua Nova. 2000, n.51, p.31-
40.
RIBEIRO, Gladys Sabina; PEREIRA, Vantuil. O Primeiro Reinado em revisão. In:
GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil imperial. Volume I – 1808-1831. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.137-173.
ROCHA, Justiniano José da. Ação; Reação; Transação. In: MAGALHÃES, Raimundo (org).
Três panfletários do segundo reinado. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2009.
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio : propostas e experiências no final do tráfico de
africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas : Unicamp, 2000.
ROSANVALLON, Pierre. La Monarchie Impossible: Les Chartes de 1814 et de 1839. Paris:
Fayard, 1994.
_____. Por uma história conceitual do político (nota de trabalho). Revista Brasileira de
História. São Paulo, 1995, vol. 15, nº30.
22
_____. Pour une histoire conceptuelle du politique, leçon inaugurale au Collège de France
faite le jeudi 28 mars 2002. Paris: Seuil, 2003.
SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. In: History and
Theory, 1969, nº 1, p. 3-53.
SLEMIAN, Andréa. Sob o império da lei: Constituição e unidade nacional na formação do
Brasil (1822-1834). 2006, 338f. Tese (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
SOUSA, Otávio Tarquínio de. História dos Fundadores do Império. Volume III – A vida de
D. Pedro I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988 (1ª edição: 1952).
TOMICH, Dale. O Atlântico como espaço histórico. In: Estudos Afro-asiáticos, 26 (2), p.221-
240, mar.-ago. 2004.
VARELLA, Flávia Florentino. Da impossibilidade de aprender com o passado: sentimento,
comércio e escrita da história na História do Brasil de John Armitage. 2011, 127f.
Dissertação (Mestrado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo.
VARGUES, Isabel Nobre. A aprendizagem da cidadania em Portugal (1820-1823). Coimbra:
Minerva, 1997.