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1 A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1823: UM ENSAIO PARA O CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO Elaine Leonara de Vargas Sodré UFVJM/Diamantina [email protected] Resumo: A Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa de 1823, foi a primeira experiência parlamentar no Brasil, iniciou seus trabalhos em maio e foi abruptamente fechada por D. Pedro, em novembro. Os deputados tinham duas tarefas, uma elaborar as bases da futura legislação; outra, a mais importante, apresentar a primeira constituição do país. Sobre esta segunda é que se trata este texto. Através de uma análise dos debates, especialmente do projeto da constituição, objetiva-se compreender qual o entendimento do constitucionalismo moderno que lá se apresentava. Para isso serão analisados assuntos como escravidão, liberdade religiosa e separação de poderes buscando entender como eles estavam sendo entendidos à luz dos conceitos chaves do constitucionalismo. Palavras-chave: Estado Constituição Direitos Constitucional, representativo Falando de forma de governo, confundem-se entre nós, mesmo porque não podem deixar de se confundir os qualitativos constitucional e representativo: o governo representativo não se compreende sem constituição, nem o governo constitucional sendo ainda compreendido sem essa coisa tosca, bruta, dura e informe a que se chama com sobrada razão representação nacional, como quem diz comédia nacional. Brunswick, 1890, p. 311 D. Pedro, na abertura da Assembleia de 1823, assinava “Imperador Constitucional, e Defensor Perpétuo do Brasil”. Essa confusão que o dicionário oitocentista indica, marcou o Estado imperial brasileiro, ou pelo menos, marcou sua fase inicial. Naquele princípio de século, as novidades apresentadas pela Revolução Francesa ecoavam e eram reapropriadas em diferentes cantos do ocidente, inclusive no Brasil. O processo de mudança dos antigos Estados Absolutistas para os modernos Liberais não foi fácil nos velhos países europeus; certamente foi, porém, mais difícil nos novos.

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A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1823:

UM ENSAIO PARA O CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO

Elaine Leonara de Vargas Sodré

UFVJM/Diamantina

[email protected]

Resumo: A Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa de 1823, foi a primeira

experiência parlamentar no Brasil, iniciou seus trabalhos em maio e foi abruptamente

fechada por D. Pedro, em novembro. Os deputados tinham duas tarefas, uma elaborar as

bases da futura legislação; outra, a mais importante, apresentar a primeira constituição

do país. Sobre esta segunda é que se trata este texto. Através de uma análise dos

debates, especialmente do projeto da constituição, objetiva-se compreender qual o

entendimento do constitucionalismo moderno que lá se apresentava. Para isso serão

analisados assuntos como escravidão, liberdade religiosa e separação de poderes

buscando entender como eles estavam sendo entendidos à luz dos conceitos chaves do

constitucionalismo.

Palavras-chave: Estado – Constituição – Direitos

Constitucional, representativo – Falando de forma de governo, confundem-se

entre nós, – mesmo porque não podem deixar de se confundir – os

qualitativos constitucional e representativo: o governo representativo não se

compreende sem constituição, nem o governo constitucional sendo ainda

compreendido sem essa coisa tosca, bruta, dura e informe a que se chama

com sobrada razão representação nacional, como quem diz comédia

nacional.

Brunswick, 1890, p. 311

D. Pedro, na abertura da Assembleia de 1823, assinava “Imperador

Constitucional, e Defensor Perpétuo do Brasil”. Essa confusão que o dicionário

oitocentista indica, marcou o Estado imperial brasileiro, ou pelo menos, marcou sua fase

inicial. Naquele princípio de século, as novidades apresentadas pela Revolução Francesa

ecoavam e eram reapropriadas em diferentes cantos do ocidente, inclusive no Brasil. O

processo de mudança dos antigos Estados Absolutistas para os modernos Liberais não

foi fácil nos velhos países europeus; certamente foi, porém, mais difícil nos novos.

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Nesse grupo estava o Brasil, que apesar dos séculos de domínio e medidas absolutistas

perpetuadas pelo Estado português, estava diante de um conjunto de novidades. Essa

característica, somada à singularidade da continuidade da administração Bragança,

indicam que construção do Estado seria tarefa complexa. Nessa construção, várias

frentes foram importantes, aqui se pretende apresentar uma delas: A Assembleia

Constituinte de 1823.

Raymundo Faoro disse que “o Brasil entrou no processo constitucionalista pela

porta que a Revolução do Porto abriu” (1985, p. 7). Porta essa, que foi responsável pelo

surgimento de dois parlamentos que transformaram a história do Brasil: as Cortes

Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, de 1821-1822 e a

Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil de 1823.1 Neste

texto, o objetivo é analisar quais características gerais teve o constitucionalismo

brasileiro naquele contexto. Para isso, o foco central será análise dos debates em torno

do projeto de constituição que ocorreram na Assembleia Constituinte entre setembro e

novembro de 1823. Antes disso, rapidamente dirigimos o olhar para o outro lado do

Atlântico. A Revolução do Porto, de 1820 transformou a história de Portugal e do

Brasil, aqui apenas um legado dela será apontado, que é a reunião de Cortes para

elaborar uma Constituição e que foi uma de suas principais exigências. Para cumprir

aquela reivindicação, em outubro de 1820 publicou-se as Instruções que regulavam as

eleições dos deputados que formariam as Cortes, prevendo a participação apenas de

portugueses. A ausência de representantes do ultramar gerou alvoroço e as instruções

foram republicadas incluindo a representação de todos os indivíduos da nação

portuguesa. Por esse dispositivo, o Brasil estava legalmente inserido no processo

constitucionalista. Naquele momento, as relações entre Portugal e o Brasil eram

instáveis isso refletiu no processo eleitoral que ocorreu na Península até dezembro de

1820. Contudo, no Brasil apenas em março de 1821, D. João editou o decreto que

regulamentou o processo eleitoral, enquanto isso em Lisboa, a Assembleia estava

reunida desde 26 de janeiro.2

1 Neste texto, para evitar repetição de nomes tão extensos, a primeira poderá aparecer como: “Cortes de

Lisboa” ou “Cortes Portuguesas” e a segunda, como “Assembleia de 1823” ou “Assembleia

Constituinte”. 2 Mais informações sobre as Cortes de Lisboa ver: Berbel: 1999; Bercht: 2014; Carvalho: 2003; Ferreira:

2011; Tasca: 2016.

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A eleição para as Cortes Portuguesas foi a primeira experiência dos brasileiros

com uma eleição representativa. As eleições foram indiretas e em três níveis: freguesia,

comarca e província. Os primeiros deputados brasileiros chegaram a Portugal apenas

em agosto de 1821. Por isso, a participação brasileira foi breve. A atitude da maioria

dos brasileiros foi “apenas manter a coerência de uma posição, que pareceu vantajosa a

seu país, – ou, no começo, à província de cada um em particular” (Cunha, 2003: 198).

Conforme as notícias sobre a eminente separação chegavam a Lisboa, os deputados

aglutinavam-se pela causa nacional, alguns constituintes optaram pela ausência como

forma de evitar conflitos com os portugueses. A partir de agosto de 1822, aumentaram

os requerimentos dos deputados brasileiros pedindo licença para não comparecer às

sessões. Quando da finalização do texto, muitos não quiseram jurar, nem assinar a

Constituição; entre evasivas, somente 36 brasileiros assinaram. Assim foi a participação

do Brasil nas Cortes de Lisboa: rápida e discreta, mas que, apesar disso, serviu de

ensaio para a futura Assembleia Constituinte genuinamente brasileira.

Em 1822, as relações entre Portugual e Brasil eram cada vez piores. As Cortes

de Lisboa aumentaram a pressão pelo regresso de D. Pedro e, em 9 de janeiro, ele

respondeu com o “Fico”. A opção do Regente fortaleceu a causa da autonomia do

Brasil. Nesse contexto, surgiram pedidos para convocação de uma Assembléia

Constituinte. D. Pedro mostrava-se favorável à criação de Cortes Gerais brasileiras para

tratar dos assuntos do país. Num primeiro momento, a Assembléia teria como principal

função “verificar a viabilidade da aplicação ao Brasil da Constituição em elaboração

pelas Cortes, estabelecer as emendas, assim como deliberar sobre as justas condições

em que o Brasil deveria permanecer unido a Portugal” (Costa, 1999, p. 50). Em resposta

às reivindicaçãoes brasileiras, o decreto de 3 de junho mandava: “convocar uma

Assembleia Geral Constituinte e Legislativa composta de Deputados das Províncias do

Brasil, os quais serão eleitos pelas Instruções que forem expedidas” (Coleção de Leis,

1822, p. 19).3 Naquele momento, a Assembléia foi denominada de luso-brasiliense.

Nomenclatura que demonstra não se tratar de rompimento com Portugal. Contudo, as

decisões de Lisboa mudariam o rumo amistoso dessa proposta. A Assembleia quando

instalada, no ano seguinte, já não teria mais luso no nome.

3 Todas as referências à legislação que estiverem neste texto são do acervo digitalizado da “Coleção das

Leis do Império do Brasil”, disponível em http://www2.camara.gov.br/legislacao/publicacoes/doimperio.

No corpo do texto aparecerá indicação do ano e página onde se encontra a referência.

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As instruções foram publicadas em 19 de junho de 1822 para a eleição dos

deputados. Os eleitores seriam escolhidos em eleições paroquiais e formariam os

colégios eleitorais nos distritos. Após o escrutínio nos distritos, o processo seria

remetido para a Câmara da capital da província que ficaria encarregada da apuração

final. A quantidade populacional definia a proporcionalidade dos candidatos, a cada 100

fogos se indicava um eleitor. Para os deputados, por falta de censo populacional preciso,

foi utilizado o último censo de 1819 e se fez uma divisão provisória partindo do total

considerado ideal (100 deputados) divididos pelas províncias conforme sua população

(Coleção de Decisões, 1822, n. 57, p. 46). O processo eleitoral foi lento e em algumas

províncias não ocorreu. Assim, as 100 cadeiras nunca foram ocupadas “foram eleitos

apenas 90, vários não tomaram assento, 15 foram substituídos, e 5 não tiveram

substitutos” (Rodrigues, 1974, p. 27). Apesar das referências indicarem esses números,

neste texto, serão considerados 88 deputados.4

Vejamos um rápido perfil dos deputados eleitos. Afim de identificar o lugar

social desse grupo, foram usados alguns critérios, um foi analisar quais receberam

títulos nobiliários e ordens honoríficas, chegando a soma desses no mínimo a 35%.

Assim, corrobora a afirmação de Rodrigues de que na Assembleia estava “a elite de

duas classes, isto é, a dos senhores rurais com os grandes latifundiários e fazendeiros, e

a média e superior urbana” (1974, p. 159). Ainda assim, em linhas gerais, pode-se dizer

que era um grupo heterogêneo. O mesmo autor segue seu raciocínio dizendo que “não

sei se terá sido por descrença nas possibilidades revolucionárias da Assembleia que terá

levado os dois maiores radicais da época, Cipriano Barata e Frei Caneca, a não tentarem

nela influir” (1974, p. 159). Realmente, os dois citados não participaram, mas não quer

dizer que fosse uma representação de homens pacíficos, pois havia no mínimo 13

deputados que, em algum momento, participaram de movimentos revolucionários. No

que se refere à profissão, há maior homogeneidade, a soma de magistrados e advogados

chega a um percentual de 44% dos deputados, que é o dobro da segunda maior

corporação que era a dos clérigos. A faixa etária reflete uma Assembleia de anciãos,

4 Este texto é parte da pesquisa de pós-doutorado, em andamento denominada: “Em tempos de

liberalismo, dias de Antigo Regime: Constitucionalismo e Justiça na formação do Estado brasileiro”. O

critério para essa pesquisa foi selecionar aqueles parlamentares que foram diplomados e tomaram assento,

fosse como deputado efetivo, ou como suplente. Essa subdivisão foi desconsiderada para a compilação

dos dados, pois o que interessa é identificar o perfil daqueles que atuaram efetivamente nas atividades

legislativas.

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pois, em 1823, apenas 22% tinham menos de 40 anos, desses aproximadamente 7%

eram mancebos com menos de 30, enquanto cerca de 35% tinham mais de 50.5 Esses

homens entre maio a novembro de 1823 encontravam-se diariamente para exercitar a

função de representantes do povo.

A Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil iniciou

seus trabalhos em 17 de abril de 1823 “às 9 horas da manhã, reuniram-se em sessão

preparatória, na Cadeia Velha, os 52 deputados presentes na Corte” (BRASIL, 2015, p.

41). Assim como aquela primeira, mais quatro também foram sessões preparatórias.

Nelas tratou-se de regras e formalidades para o funcionamento da Casa. Na segunda, foi

decidido elaborar um regimento provisório para dar início aos trabalhos. Na sessão

seguinte, 30 de abril a Comissão, entregou o documento com as regras de

funcionamento, e delimitação dos poderes constituintes também se confirmou que em 3

de maio seria a abertura oficial. A quarta sessão foi dedicada ao cerimonial religioso,

comprovando a proximidade do legislativo com a igreja católica. Os deputados foram a

capela para assistir à missa e para prestar juramento. O presidente foi o primeiro e

“igualmente juraram perante o Sr. Bispo, presidente da assembleia, o Sr. Secretário e

mais deputados” (Annaes, t. 1, p. 31).6 Na última das sessões preparatórias definiu-se o

ritual da inauguração com a presença do imperador.

O dia 3 de maio foi “um dia de fausto e gala, e o Paço, a Capela Imperial, e

todos os edifícios das ruas por onde deviam passar D. Pedro e seus acompanhantes

apareceram adornados de brilhantes cortinas de seda de variadas cores” (Rodrigues,

1974, p. 31). Na Assembleia, os deputados se reuniram às 9 horas para esperar “sua

majestade o imperador, para abrir a sessão” (Annaes, t. 1, p. 39) que chegou às

12h35min e foi recebido por uma deputação de 12 membros. D. Pedro imediatamente

proferiu o seu longo e conhecido discurso, que é: uma espécie de memorial dos

acontecimentos que culminaram na separação de Portugal, é uma promessa de

melhorias para o Brasil e é também uma ameaça velada: lembrava que quando foi

5 Do total de 88 deputados foi possível confirmar a idade exata de 66 deles, ou seja, 75%. Outros 9 apesar

de não termos precisão na data de nascimento, sabemos qual período estudaram na Universidade de

Coimbra, assim numa média aproximada foi possível alocá-los nas faixas de idade proposta. Assim,

juntando estes últimos é possível identificar a idade de 85% do grupo. 6 ANNAES do Parlamento brasileiro: Assembleia Constituinte, 1823. Os exemplares aqui utilizados são

do arquivo digital do Senado Federal. Como todos os documentos referem-se ao ano de 1823, no corpo do

texto estará descrito apenas o tomo e a página em que se pode encontrar a referência. Disponível em:

http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/IP_AnaisImperio.asp

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coroado prometeu “que com a minha espada, defenderia a pátria, a nação e a

constituição, se fosse digna do Brasil e de mim”. Naquele momento, estava ratificando a

promessa e dizendo aos deputados que deles esperava que “me ajudeis a desempenhá-la,

fazendo uma constituição sábia, justa, adequada, e executável, ditada pela razão, e não

pelo capricho” (Annaes, t. 1, p. 41). Após sua conclusão, o presidente da Assembleia

respondeu e finalizou a sessão com vivas, demonstrando um clima amistoso entre

executivo e legislativo.

No discurso de D. Pedro, a função constitucional da Assembleia é enfatizada,

ele dizia que sua convocação foi “para que os brasileiros melhor conhecessem a minha

constitucionalidade” (Annaes, t. 1, p. 41) e que seu desejo era que “esta leal, grata,

briosa, e heroica nação fosse representada numa assembleia geral constituinte e

legislativa” (Annaes, t. 1, p. 42). De fato, o texto constitucional era o produto mais

esperado da Assembleia, mas ela era também legislativa, por isso o projeto da

Constituição ficou sob a responsabilidade de uma Comissão composta por sete

deputados.7 Enquanto a Comissão de Constituição redigia o projeto, a Assembleia

seguia exercendo funções legislativas, essas contabilizaram: o regimento interno, 38

projetos de Lei, 147 propostas e 238 pareceres dos deputados e das comissões

(Rodrigues, 1974, p. 49). Em 1º de setembro o projeto foi apresentado, continha 272

artigos, que apenas os 24 primeiros foram debatidos até o truculento fechamento da

Assembleia.8 Nessa ocasião, o deputado Andrada Machado lembrou a necessidade de

regulamentar os debates “porque a ordem de discussão estabelecida no regimento, não

lhe pode ser aplicável” (Annaes, t. 5, p. 69). Na sessão seguinte, discutiu-se qual a

forma apropriada para enviar uma cópia do projeto ao imperador, não foi uma decisão

consensual, a fala de Henriques de Rezende sintetiza a contrariedade:

Oponho-me que vá por uma deputação, visto que está vencido que se mande

um exemplar, e já não posso opor a isso. Oponho-me à deputação por duas

razões: uma para se não dar esse ar de importância a uma coisa que pode

ainda passar por muitas alterações, e até mesmo ser rejeitada: 2ª, para que se

não entenda que é um ajuste entre a assembleia, e o imperante: porque o

pacto social é entre os habitantes, ou ao menos entre as províncias do Brasil,

7 A Comissão era composta por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, Antônio Luís

Pereira da Cunha, Francisco Muniz Tavares, José Bonifácio Andrada e Silva, José Ricardo da Costa

Aguiar, Manoel Ferreira Câmara e Pedro de Araújo Lima. 8 O projeto de Constituição estava dividido em 15 títulos, sendo que apenas o Título I: ‘Do território do

Brasil’, com seus 4 artigos foi discutido integralmente. O Título II: ‘Do Império do Brasil’ tinha quatro

capítulos que compreendiam os artigos 5 ao 35. Como a Assembleia foi fechada quando estava discutindo

o artigo 24, apenas o capítulo I - ‘Dos membros da sociedade do Império do Brasil’ foi totalmente

debatido a interrupção ocorreu no capítulo II: ‘Dos Direitos individuais dos brasileiros’.

7

que a isto se havia proposto antes mesmo da aclamação. (Annaes, t. 5, p. 71,

Grifo meu)

Percebe-se que aqueles que eram contrários a enviar uma deputação até o

imperador para lhe entregar a cópia do projeto tinham dois argumentos: o mais

recorrente era a incompletude, pois defendiam que o texto sofreria alterações na própria

Assembleia, por isso não fazia sentido enviá-lo antes de concluído. O segundo ponto, na

verdade, o mais relevante é o da autonomia do legislativo, para Henriques de Rezende o

pacto social era firmado entre a sociedade e a Assembleia, com isso adentramos ao

primeiro tema relacionado aos princípios constitucionalistas, que foi constante nos

debates: o pacto social. A ideia de pacto surgiu com os contratualistas quando

apresentaram “a concepção de que a própria sociedade se funda num pacto, num acordo,

ainda que tácito entre os homens” (Ferreira Filho, 2006, p. 6), ideia essa defendida por

Hobbes e depois, em contraposição a ele, por Locke e Rousseau. O pacto social foi

constante nos debates, pois várias vezes os deputados recorriam a ele para analisar

outros assuntos.

Quando foi discutida a epígrafe do capítulo I: “Dos membros da sociedade do

Império do Brasil. Título II: Do Império do Brasil” vários deputados divagaram sobre

quem eram os brasileiros. Nessa discussão, repetidas vezes foi analisada a composição

da sociedade e por seu turno quem havia acordado o pacto social. A fala do deputado

Montezuma é bastante explicativa:

Eu cuido que não tratamos aqui senão dos que fazem parte da sociedade

brasileira, falamos aqui dos súditos do império do Brasil, únicos que gozam

dos cômodos de nossa sociedade e sofrem seus incômodos, que têm direitos

e obrigações no pacto social, na constituição do estado.

Os índios porém estão fora do grêmio da nossa sociedade, não são súditos

do império, não o reconhecem, nem por consequência suas autoridades desde

a primeira até a última vivem em guerra aberta conosco, não podem de forma

alguma ter direitos, porque não tem, nem reconhecem deveres ainda os mais

simples (falo dos não domesticados)...

Enquanto aos crioulos cativos, Deus queira que quanto antes purifiquemos

de uma tão negra mancha as nossas instituições políticas... mas enquanto o

não fazemos de força havemos confessar que não entram na classe dos

cidadãos, que não são membros de nossa política comunhão e portanto que

não são brasileiros no sentido próprio, técnico das disposições políticas...

Senhores, os escravos não passam de habitantes do Brasil; e nós não

tratamos neste capítulo dos simples habitantes do Brasil; porque então

devemos enunciar aqui os estrangeiros, etc... (Annaes, t. 5, pp. 211-212,

Grifos meus)

Os índios, os negros e os estrangeiros, literalmente citados pelo deputado, não

faziam parte da sociedade brasileira, por consequencia não haveria porque se preocupar

8

com que lugar eles ocupariam no pacto social, eles estavam fora dele. Considerando que

isso estava posto, outra precupação era com a manutenção do pacto social como

apareceu na discussão do artigo 12: “Todo o brasileiro pode ficar ou sair do império

quando lhe convenha, levando consigo seus bens, contanto que satisfaça aos

regulamentos policiais, os quais nunca se estenderão a denegar-se lhe a saída”. O

deputado Silva Lisboa não concordava com o que ele denominou de “indefinida

liberdade pessoal”, pois com isso qualquer cidadão sairia do império e isso poderia

“converter-se o contrato bilateral em unilateral, de sorte que o governo não pode nunca

deixar de dar proteção aos súditos, mas este pode, quando quiser, subtrair-se a devida

obediência, e talvez na ocasião que mais sejam necessários os seus serviços” (Annaes, t.

6, p. 144, grifos no original). No entendimento do deputado, provavelmente, não cabia a

concepção de direito de ir e vir, mas se percebe o entendimento original sobre o pacto:

fidelidade dos indivíduos em troca de proteção do soberano.

O pacto social recebeu essa denominação, exatamente, porque pressupunha

reciprocidade. Locke concebia a possibilidade de pacto duplo: entre os indivíduos

(pacto de associação) e entre a comunidade e o poder político (pacto de sujeição). Mas

em qualquer dos pactos os indivíduos não transferiam seus direitos integralmente.

Hobbes ao contrário entendia que os indivíduos ao ingressarem no pacto abdicavam

todos os seus direitos em favor da coletividade. Desde então, o pacto social estava

associado à segurança: pessoal e da propriedade. Esse entendimento também observa-se

na Assembleia. Quando se tratou do segundo artigo, nele estavam listadas as províncias

do Brasil e finalizando o texto se lê: “e por federação o Estado Cisplatino”, esse ponto

gerou longa discussão, 10 deputados falaram em 17 intervenções, sendo que o pomo da

discórida era a palavra “federação”. A maioria dos argumentos era da incompatibilidade

entre monarquia e sistema federativo, muitos recorreram a uma possível quebra do

pacto social, pois nele a sociedade brasileira teria acordado que a forma de governo

seria monarquia constitucional. Nesse sentido, falou José de Alencar “suponhamos por

um momento, que estas duas províncias, que não entram no nosso pacto social, formam

sua união à parte, e nos dizem – nós queremos federação convosco para nossa maior

segurança, porque temos direito para isso” (Annaes, t. 5, p. 153). As províncias

mencionadas eram Maranhão e Pará, naquele momento, em situação conflituosa com o

governo central e por isso sem representação na Assembleia. O deputado estava

9

considerando que aquela condição poderia mudar e ambas as províncias talvez

quisessem juntar-se ao pacto, pois seria garantia de segurança para elas.

Nada esteve mais presente nos debates do que o conceito de liberdade, não

havia como ser de outra forma, pois dos poucos artigos discutidos a maioria tratava da

formação da sociedade e dos direitos básicos. A primeira liberdade que surge é referente

à organização territorial, também no artigo segundo, no polêmico item “federação”. O

deputado Montezuma não vê problema em denominar algumas províncias confederadas

ao Império, pois segundo ele, assim “mostramos à nação, que serão respeitados os

inalienávies direitos de cada uma das províncias”, pois sem tais direitos as províncias

“jamais poderão conseguir verdadeira prosperidade que está implícita no gozo de uma

salutar, e bem entendida liberdade” (Annaes, t. 5, p. 155). A liberdade almejada pelo

deputado, na verdade, trata-se de autonomia provincial.9 Ainda na discussão do mesmo

artigo Carvalho e Mello defende posição contrária, no seu entendimento a monarquia

era sinônimo de Estado único e indivisível, enquanto na federação cada uma das partes

teria sua forma de governo. Ele explica:

Quando falo, Sr. Presidente, de liberdade, suponho que é a justa e a que pode

subsistir unida com a segurança do cidadão; falo daquela que faz a

particular felicidade e firma a dos estados; daquela que é marcada pelas

leis e regulamento; que produz cômodos e fruições sem ofender a ordem e a

segurança pública. Faz tudo o legislador que une na lei fundamental a

máxima liberdade com a máxima segurança. Sacrifica a falsa deusa, quem

adora a ilimitada liberdade mãe das desordens e anarquias.

Sr. Presidente, só a ordem e a segurança pública faz a prosperidade individual

e segura a estabilidade dos impérios. Rejeite-se pois a palavra – federalmente

com a natureza do governo adotado; é contrária ao bem que ansiosamente

procuramos estabelecer...10 (Annaes, t. 5, p. 165, grifos meus)

Na segunda parte da fala do deputado observa-se um outro entendimento, que

associa diretamente liberdade à ordem, como argumento para a assertiva inversa, ou

seja, o excesso de liberdade provoca anarquia. Esse poderia ser o epitáfio do Brasil, pois

é um discurso que atravessa toda nossa história, até os dias atuais, as ações políticas

estão sempre com os olhos na manutenção da ordem, em nome dela, tudo vale. Na

9 Provavelmente, falar em “autonomia” em 1823, é correr o risco de anacronismo, pois naquele momento

se entendia a liberdade das províncias como oposição ao governo imperial. Contudo, as dificuldades de

governabilidade colocaram esse assunto na agenda política posterior, especialmente, na Regência. Essa

falta de liberdade era tão problemática para as províncias que as negociações de mudanças culminaram no

Ato Adicional de 1834 que reformou a Constituição exatamente para ampliar a autonomia das províncias. 10 Atualmente não cabem dúvidas de que os conceitos de federação e confederação são diferentes,

contudo, no pensamento dos deputados da Assembleia de 1823 não havia um entendimento claro sobre a

diferenciação entre ambas. Essa é uma constatação superficial, que carece de pesquisa mais atenta nos

discursos que tratam especificamente desse tema.

10

primeira concepção de liberdade que lemos na citação, se identifica claramente o

entedimento de que a lei é o indíce da liberdade, inspiração em Montesquieu, conforme

o próprio deputado mencionou. Contudo, esse entendimento inicou com Rosseau,

segundo ele os indivíduos renunciavam à liberdade natural, mas em contrapartida

ganhavam liberdade civil e a manutenção da propriedade, conforme sua explicação:

“liberdade natural, que só tem termo nas forças do indivíduo, da liberdade civil, que é

limitada pela vontade geral; e a possessão, que é só efeito da força, ou do direito do

primeiro ocupante, da propriedade, que não pode ser fundada a não ser num título

positivo” (Rosseau, 2000, p. 33). Ainda que de forma diferente tanto para Rosseau,

quanto para Montesquieu é necessário tratar das formas de organizar o poder.

A partir da publicação “Do Espírito das Leis” pode-se falar em distintos

poderes. Na obra se lê: “há em cada Estado três espécies de poder: o poder legislativo, o

poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o poder executivo

daqueles que dependem do direito civil” (Montesquieu, 2007, p. 165). Esses poderes,

não poderiam estar unidos, pois “não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver

separado do poder legislativo e do executivo” (Montesquieu, 2007, p. 166). Os poderes

também não deveriam estar centralizados em uma pessoa, pois essa é a essência do

despotismo. Parece que essa independência dos poderes era um entendimento

consensual na Assembleia, uma vez que em vários debates e diferentes personagens

demonstra-se isso. Em teoria, todos sabiam e defendiam isso, como na fala do próprio

D. Pedro, na abertura da Assembleia, quando pedia que na constituição “os três poderes

sejam bem divididos em forma, que não possam arrogar direitos, que lhe não

competem, mas que sejam de tal modo organizados e harmonizados, que se lhes torne

impossível, ainda pelo decurso do tempo fazerem-se inimigos” (Annaes, t. 1, p. 42).

Quanto se discutiu o artigo 13, prevendo a inserção de sistema de Júri para

“matérias crimes; as cíveis continuarão a ser decididas por juízes, e tribunais”, alguns

deputados lembraram da separação dos poderes. O primeiro foi Carneiro de Campos,

que apesar de considerar que o Júri não poderia ser implementado no Brasil, antes da

aprovação de novos códigos, defendeu o Sistema. Segundo ele, não era suficiente

“separar os dois poderes legislativo e executivo, é ademais disso indispensável, que o

poder judiciário seja constituído tão livre de toda a dependência e influência de qualquer

autoridade”. O sistema de jurados seria o único “capaz de infundir no coração do povo o

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sentimento inabalável de segurança dos seus direitos” e os jurados escolhidos entre os

seus pares os únicos “juízes verdadeiramente independentes” (Annaes, t. 6, p. 174). Na

mesma sessão, José de Alencar, defendendo o sistema e a sua implementação, seguiu a

linha de raciocínio do colega:

Senhores, nós vemos que não só a soberania da nação está dividida nos três

poderes soberanos, legislativo, executivo e judiciário, mas que cada um

destes poderes já assim divididos, não está a cargo de um só indivíduo, ainda

mesmo que este seja um indivíduo moral e coletivo.

Nós vemos o poder legislativo entregue aos representantes da nação (falo nas

legislaturas ordinárias e não nesta que é uma convenção extraordinária), mas

sempre tendo o executivo alguma ingerência nele; vemos o poder executivo,

que já é indivisível, não entregue também a um só indivíduo, porque sabemos

que no monarca se presume sempre um poder, e nos ministros outro, e ainda

neste há divisão pois não se entrega a um só todo o executivo, e sim a muitos,

cada um por sua competente repartição; é isto não só para o bom expediente

dos negócios, como para evitar o que o movimento de toda a máquina dos

negócios esteja pendente de uma só mão. (Annaes, t. 6, p. 177)

O deputado Alencar pretendia convencer a audiência de que os jurados seriam

uma opção para descentralizar o poder judiciário. Contudo, aqui nos interessa enfatizar

que na sua fala ele entende que o poder executivo é indivisívelaqqqqqs, não é exclusivo

do monarca. Ponto de vista esse, diferente do que apresentou Maciel da Costa:

“Sabemos todos que num governo constitucional, o supremo chefe, além do poder

executivo para a simples execução das leis tem o supremo poder moderador”. O

deputado não está dizendo que seria um poder dividido, como se aventaria mais tarde,

com um Conselho de Estado, mas sim advoga que o imperador, permanentemente vigia

o império “é o argos político que com cem olhos tudo vigia, tudo observa, e não só vigia

e observa, mas tudo toca, tudo move, tudo dirige, tudo conserta, tudo compõe, fazendo

aquilo que a nação faria se pudesse”. Na impossibilidade da própria nação desempenhar

o papel de sentinela então concede a outrem e “tem mostrado a razão, e a experiência,

que vale mais cometê-lo a uma pessoa física, que a uma pessoa moral, isto é, uma

corporação” (Annaes, t. 5, p. 208).11 Todo esse discurso foi para defender que as

autoridades provinciais deveriam ser “os olhos” do imperador, mas aqui podemos

aproveitar a discussão para analisar uma outra temática fundamental para o ideário

constitucionalista: a Soberania.

11 O deputado João Severiano Maciel da Costa foi eleito por Minas Gerais, naquela ocasião era um

experiente magistrado de 64 anos, havia sido Conselheiro de D. João VI, governador da Guiana Francesa,

tendo, em 1808, alcançado o posto mais alto da magistratura: desembargador do Paço. Essa breve

biografia é para dizer, que certamente, não foi por casualidade, que Maciel da Costa integrou o Conselho

de dez membros nomeado por D. Pedro, quando do fechamento da Assembleia, para redigir o “novo

projeto” de Constituição, que de projeto nada tinha, visto que a Carta foi outorgada.

12

Embora fosse um conceito chave para a formação das nações, mas na

Assembleia pouco se falou nela. É o assunto que menos aparece nos debates do projeto

de constituição. Os deputados quando mencionavam a soberania não faziam uma

associação de a quem ela pertencia, como foi muito debatido pelos ilustrados desde a

Revolução Francesa, quando ficou claro que a soberania no povo era inviável. Depois

partindo das ideias de Rousseau a “vontade geral” do povo deveria definir os rumos da

sociedade, e os representantes dessa vontade estavam no Parlamento, logo, detinham a

soberania. Contudo, num passo atrás Montesquieu e Benjamin Constant colocariam em

dúvida a supremacia do parlamento, chamando ao centro dos debates o rei como

representante da nação, assim a soberania que deveria ser do povo, ora era creditada ao

parlamento, ora ao governante. Lúcia Neves analisando o grupo de ilustrados

contemporâneos à Assembleia de 1823 diz que havia um grupo mais liberal que

defendia a “ideia da soberania popular, aceitando o conceito democrático de liberdade”

(2001, p. 82). Enquanto, um segundo grupo, mais conservador “simpatizavam com o

ideário de um liberalismo clássico, que conservava a figura do rei como representante

da nação, mas que negava que a soberania pudesse residir no povo” (2001, p. 81).

Provavelmente esses dois grupos também estavam representados na Assembleia, mas

não chegaram a confrontar suas ideias, no que se refere, especificamente ao conceito de

soberania.

Voltando ao conceito de liberdade como fio condutor dos debates na

Assembleia, vemos outros dois temas: a escravidão e liberdade religiosa. Esta foi tratada

nos artigos 14, 15 e 16. Contudo, já na discussão do artigo 7º: “A constitução garante a

todos os brasileiros direitos individuais... § 3º: A liberdade religiosa” (Annaes, t. 5, p.

12) o debate foi longo. Nos dois momentos, os argumentos foram semelhantes, embora

com vários posicionamentos diferentes. De um lado, aqueles radicalmente contrários,

como Rodrigues da Costa que dizia que “estabelecer-se entre nós como artigo

constitucional, uma tal liberdade muito me tem escandalizado”. O escândalo era porque

já havia uma religião do Estado “Se não tivéssemos uma religião revelada pela qual

Deus nos fez conhecer como devemos adorar, tanto interior como exteriormente,

poderia admitir-se esta liberdade religiosa” (Annaes, t. 6, p. 56). Havia outros

totalmente favoráveis, o padre Muniz Tavares dizia “eu reputo, e reputarei sempre, a

liberdade religiosa um dos direitos mais sagrados, que pode ter o homem na sociedade”

13

(Annaes, t. 6, p. 57). Contudo, a maioria criticava algum ponto, um grupo defendia que

se a própria constituição instituía a religião católica como a religião oficial, aceitar

outras era inconcebível. Alguns ainda reforçavam esse aspecto dizendo que, eles

deputados, tinham jurado fidelidade à religião católica, logo votando por liberdade

religiosa estariam quebrando o juramento. Uma preocupação de vários deputados era

como equacionar a falta ou a limitada liberdade religiosa para os estrangeiros. Exemplo

disse se ouve do deputado Brant Pontes que menciona a necessidade e considerar a

“utilidade que nos resulta da tolerância de quaisquer seitas religiosa; e, com efeito,

parece evidente que muito nos convém atrair a maior porção possível de estrangeiros”

(Annaes, t. 6, p. 248). Outros não viam problema em haver liberdade religiosa “se ela se

considera limitada à consciência e culto interno, e ainda mesmo ao externo, mas privado

e dentro dos limites da própria casa, que lhe é intimamente conexo” (Carneiro, Annaes,

t. 6, p. 249). Liberdade limitada, eis ai outro conceito que poderia ser slogan do Brasil,

limitação que vemos no próximo tema: escravidão.

Na verdade, a escravidão não aparece nos debates, a condição de escravo será

tratada em alguns momentos, mas o Sistema em si não. Naquela época, não havia

contradição entre liberdade e escravidão, ao contrário, vemos respeitados intelectuais

legitimando a escravidão como Montesquieu que defendia o direito de escravizar os

negros: “Os povos da Europa, tendo exterminado os da América, tiveram de escravizar

os da África, para que estes fossem utilizados na lavoura das tantas terras”

(Montesquieu, 2007, p. 252). Um açúcar mais barato justificava a utilização de escravos

na lavoura. Na Assembleia, os escravos apareceram inicialmente nos debates do

parágrafo 6º do art. 5: “são brasileiros” (art. 5) “os escravos que obtiverem carta de

alforria” (§ 6º). Alguns deputados aprovaram e defenderam o parágrafo, outros

defenderam parcialmente, como o deputado França que dizia que o problema era a

quantidade de escravos africanos porque a esses não se poderia conceder o título de

brasileiro, mas concordava com a concessão aos crioulos. Outros quiseram inserir

condicionantes, como Costa Barros que desejava que além da alforria, para ser

considerado brasileiro, o ex-escravo deveria comprovar que tinha um emprego ou um

ofício. Contudo, uma vez mais, é o deputado Alencar que toca no ponto crucial da

questão:

Ainda que pareça que deveríamos fazer cidadãos brasileiros a todos os

habitantes do território do Brasil, todavia não podemos seguir rigorosamente

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este princípio, porque temos entre nós muitos que não podemos incluir nessa

regra, sem ofender a suprema lei da salvação do Estado. É esta lei que nos

inibe de fazer cidadãos aos escravos, porque além de serem propriedade de

outros, e de se ofender por isso este direito se os tirássemos do patrimônio

dos indivíduos a que pertencem, amorteceríamos a agricultura, um dos

primeiros mananciais da riqueza da nação, e abríamos um foco de desordens

na sociedade introduzindo nela de repente um bando de homens, que saídos

do cativeiro, mal poderão guiar-se por princípios de bem entendida

liberdade. (Annaes, t. 5, p. 258, grifos meus)

Em síntese, os pontos problemáticos da inserção dos escravos como

“brasileiros” na sociedade: ser propriedade de outrem, causar desordem social e não

saber viver em liberdade. Essa não era uma visão isolada, o deputado Almeida e

Albuquerque faz um comparativo: “Se os europeus, nascidos em países civilizados,

tendo costumes, boa educação e virtudes, não podem, sem obter carta de naturalização,

entrar no gozo dos direitos de cidadão brasileiro”, perguntava ele “como o escravo

africano destituído de todas as qualidades pode ser de melhor condição?” (Annaes, t. 5,

p. 259). A resposta obviamente é no sentido de negar aos forros a inserção na sociedade

brasileira “civilizada”. Com esse tema, propositalmente, encaminhamos o fechamento

do texto. O conceito de liberdade que circulava pela esfera dos poderes era sempre

acompanhado de “mas” ou de “se”. No discurso de abertura, D. Pedro dizia esperar

“uma constituição, que pondo barreiras inacessíveis ao despotismo, quer real, quer

aristocrático, quer democrático, afugente a anarquia, e plante a árvore daquela

liberdade, a cuja sombra deva crescer a união, tranquilidade, e independência deste

império” (Annaes, t. 1, p. 42). Passados seis meses, ele fecha a Assembleia sob o

argumento de ter ela “perjurado ao tão solene juramento, que prestou à Nação, de

defender a integridade do Império, sua independência e a minha dinastia” (Dec. de 12

de novembro de 1823). Explicação pouco elucidativa.

A falta de clareza é o que se via por todas as partes, além das falas aqui citadas

houve várias outras que deixam claro que os deputados conheciam os debates que

estavam na agenda do constitucionalismo. Além disso, em várias ocasiões

demonstravam que tinham familiaridades com as constituições, ditas mais liberais,

especialmente, as francesas e a espanhola de 1812. Contudo, é difícil afirmar que

constitucionalismo se via na Assembleia de 1823, pois se poderia dizer algo mais

concreto caso o produto final tivesse sido concluído, contudo o fechamento sumário

interrompeu essa possibilidade e, pelos debates, o máximo que se pode afirmar é que o

assunto era conhecido da maioria, especialmente, daqueles formados em Direito. Por

15

isso, parece mais correto afirmar que a primeira Assembleia Constituinte foi apenas um

ensaio para o constitucionalismo brasileiro. Embora, não esqueçamos que é consenso

afirmar que a Constituição outorgada em 1824 é muito semelhante ao projeto, sendo

então, um ensaio produtivo, mas definir o quanto produtivo depende de uma análise

comparativa com a própria Constituição e esse é assunto para um outro momento.

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