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I UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Título: A AVALIAÇÃO NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM DE MATEMÁTICA, NO ENSINO MÉDIO: UMA ABORDAGEM FORMATIVA SÓCIO-COGNITIVISTA Autor: Domício Magalhães Maciel Orientadora: Anna Regina Lanner de Moura Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação defendida por Domício Magalhães Maciel e aprovada pela Comissão Julgadora. Data: 04/09/03. Assinatura:................................................................................... Orientadora COMISSÃO JULGADORA: __________________________________ Anna Regina Lanner de Moura __________________________________________ Marta Maria Pontin Darsie ___________________________________________ Mara Regina Lemes de Sordi 2003

A AVALIAÇÃO NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM DE

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  • I

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

    DISSERTAO DE MESTRADO

    Ttulo: A AVALIAO NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM DE

    MATEMTICA, NO ENSINO MDIO: UMA ABORDAGEM

    FORMATIVA SCIO-COGNITIVISTA

    Autor: Domcio Magalhes Maciel Orientadora: Anna Regina Lanner de Moura

    Este exemplar corresponde redao final da Dissertao defendida por Domcio Magalhes Maciel e aprovada pela Comisso Julgadora. Data: 04/09/03.

    Assinatura:................................................................................... Orientadora

    COMISSO JULGADORA:

    __________________________________ Anna Regina Lanner de Moura

    __________________________________________ Marta Maria Pontin Darsie

    ___________________________________________ Mara Regina Lemes de Sordi

    2003

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    by Domcio Magalhes Maciel, 2003.

    Catalogao na Publicao elaborada pela biblioteca da Faculdade de Educao/UNICAMP

    Bibliotecrio: Gildenir Carolino Santos CRB-8/5447

    Maciel, Domcio Magalhes. M187a A avaliao no processo ensino-aprendizagem de matemtica, no ensino

    mdio: uma abordagem scio-cognitivista / Domcio Magalhes Maciel. Campinas, SP: [s.n], 2003.

    Orientador: Anna Regina Lanner de Moura. Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade

    de Educao. 1. Avaliao educacional. 2. Educao matemtica. 3. Ensino mdio. 4.

    Sociologia educacional. 5. Metacognio. I. Moura, Anna Regina Lanner de. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo.

    03-148-BFE

  • III

    Aos meus pais Iber Marques Maciel (in memorian) e Jovelina Magalhes Maciel.

    minha esposa Maria do Carmo Costa Maciel e aos nossos filhos Pedro, Tiago e Abigail.

  • IV

  • V

    AGRADECIMENTOS

    Deus, Inteligncia Suprema do Universo, da qual sou criatura e filho.

    Aos meus pais Iber Marques Maciel (in memorian) e Jovelina Magalhes Maciel pela

    formao que me proporcionaram poder chegar ao final desse desafio.

    A minha esposa Maria do Carmo Costa Maciel e filhos Pedro, Tiago e Abigail Costa

    Maciel pelo apoio representado, particularmente, pela aceitao da separao temporria que

    exigiu renncia, sacrifcios, carncia e desapego.

    Aos irmos Slvia e Estvo Magalhes Maciel por terem sido o apoio, na falta do qual,

    esse desafio teria se agigantado.

    Aos irmos Sofia Magalhes Maciel e Jersey Marques Maciel Sobrinho que, nas horas

    certas, estavam sempre com as mos estendidas para ajudar.

    Aos amigos, conhecidos ou desconhecidos, virtuais ou presenciais, dos grupos de

    pesquisas ou no, das salas de aulas ou dos corredores da faculdade, das secretarias ou do

    laboratrio de informtica, pela interao positiva e cota de participao intelectual e/ou afetiva

    na realizao desse trabalho. Como so tantos, deixo os nomes no anonimato para que cada um se

    sinta importante, nem mais, nem menos, simplesmente importante, nesse processo.

    Aos professores e tericos que me iluminaram pelos seus conhecimentos e experincias.

    professora Anna Regina Lanner de Moura, minha orientadora, pela orientao,

    segurana e confiana dadas a mim, do comeo ao fim deste trabalho, alm de ter me propiciado,

    pela sua convivncia, conhecer um modo afetivo de ensinar e aprender Matemtica, atravs da

    Educao Conceitual.

    Aos auxiliares em geral, das bibliotecas, das secretarias, do laboratrio de informtica,

    das cantinas, dos restaurantes, da limpeza, dos nibus, dos bancos, dos hospitais, ao revisor de

    portugus,....

    Aos Espritos amigos que, mesmo nos momentos em que estava desacompanhado, no

    me deixaram sentir sozinho.

  • VI

  • VII

    Toda avaliao correta usa de critrios com certa relatividade e prende-se s circunstncias do momento e no, exclusivamente, aos fatos em si.

    Hammed Psicografia de Francisco do Esprito Santo Neto

  • VIII

  • IX

    RESUMO

    Esta pesquisa tem o objetivo de contribuir para reflexo sobre a avaliao no processo ensino-

    aprendizagem na rea de Matemtica, no ensino mdio. Fez-se uma reviso da literatura que trata

    da avaliao, nos seus aspectos histrico, scio-cognitivo, filosfico e metodolgico com o fim

    de dar prtica avaliativa do professor um referencial crtico e prtico no contexto da nossa atual

    escola, que se deseja ser comprometida com as aprendizagens de Matemtica dos alunos.

    Aprofunda-se a avaliao formativa com o fim de lhe dar uma abordagem scio-cognitivista.

    Pesquisas da Educao Matemtica apontam para a avaliao formativa quando os autores

    sugerem instrumentos de avaliao como possibilidades de aprendizagem da Matemtica,

    estimulando o uso da metacognio e dando nfase avaliao de resoluo de problemas e

    comunicao matemtica, num ambiente de cooperao. Para fazer uma correlao entre teorias

    existentes e a prtica avaliativa em Matemtica, na escola de ensino mdio, fez-se uma pesquisa

    de campo, no perodo de um semestre, na modalidade de estudo de caso qualitativo. Para a

    construo do material emprico, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas e questionrios

    abertos desenvolvidos com professores e alunos, sendo um professor por srie e uma classe por

    professor. Alm desses instrumentos, fizemos observaes da prtica de avaliao em sala de

    aula, na modalidade observao participante, bem como a observao e anlise de instrumentos

    de avaliao e documentos da escola. Conclui-se que a avaliao praticada pelos professores

    sujeitos da pesquisa, cuja escola no oferece condies ideais para uma avaliao formativa,

    presta-se mais ao jogo institucional ou social, que lhes imposto pelo sistema de ensino, que ao

    jogo pedaggico mais coerente com a avaliao formativa. Assim, pouco contribui para o

    processo ensino-aprendizagem de Matemtica.

  • X

  • XI

    ABSTRACT

    This research intends to contribute to the reflection on evaluation in the process of the teaching

    and learning of Mathematics at the secondary school level. An examination of the literature on

    evaluation was realized; taking into account its historical, social-cognitive, philosophical and

    methodological aspects in order to provide the evaluation practice a critical and practical

    reference in our contemporary school context, a context that we desire to be committed to student

    learning of Mathematics. Formative evaluation is duply examined with the purpose to give it a

    social-cognitive approach. Mathematics Education research indicate formative evaluation when

    authors suggest evaluation instruments as possibilities of Mathematics learning by stimulating the

    use of metacognition and by emphasizing evaluation in problem solving and mathematical

    communication in a cooperative environment. The study tried to come to a correlation between

    contemporary theories and the actual evaluative practices in secondary school; a field study was

    accomplished during the period of one semester, with a case study following qualitative method.

    Empirical data was obtained from both teachers and students by means of semi-structured

    interviews and open questionnaires applied to one teacher from each grade together with the

    students from one of his classes. In addition, classroom evaluation practices were examined

    utilizing the observer-participant method, and an analysis of the evaluation instruments and

    school documents complemented the in-class observations. As a conclusion, we indicate that

    evaluation as practiced by teachers in this reseach, whose school does not provide ideal

    conditions for the formative evaluation, answer much more to the institucional paper established

    and imposed by society through its school system than to the more coherent pedagogical

    practices appropriated to formative evaluation. Thus, that kind of evaluation contributes in a very

    small degree to the teaching and learning of Mathematics.

  • XII

  • XIII

    SUMRIO INTRODUO ................................................................................................................................01

    CAPTULO I AVALIAO E SOCIEDADE ......................................................................................09 1.1 A escola, sua origem, suas finalidades mais acentuadas numa sociedade de classes ..........................................................................................................................09

    1.2 O debate em torno do ensino pblico ...............................................................................11 1.3 Como a escola perpetua a desigualdade social: a parte que cabe avaliao (avaliao?)......................................................................................................13 1.3.1 Qual a parte do professor nesse processo?...........................................................17 1.4 O exame: a desiluso de uma carreira enganosa ..............................................................23

    CAPTULO II TRAJETRIA DA AVALIAO: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS .............................. 27 2.1 Uma incurso na histria da avaliao .............................................................................27 2.2 Avaliao e cognio........................................................................................................33 2.2.1 Aspectos cognitivos influenciados pela avaliao ...............................................33

    2.2.1.1 A auto-estima ........................................................................................36 2.2.1.2 A motivao ..........................................................................................37 2.2.1.3 As crenas de auto-eficcia ...................................................................40 2.2.1.4 Teoria de metas de realizao ...............................................................41

    2.2.2 Estratgias de aprendizagem................................................................................43 2.2.3 A metacognio e a motivao para aprender .....................................................45 2.3 Avaliao Formativa ........................................................................................................47 2.3.1 Pressupostos da avaliao ....................................................................................48 2.3.2 A importncia de se estabelecer os critrios e os instrumentos da

    avaliao .............................................................................................................53 2.3.3 Os jogos no campo da avaliao ..........................................................................54 2.3.4 Construo de um modelo formativo de avaliao..............................................55 2.3.5 Modalidades de aplicao da avaliao formativa...............................................58

    2.3.5.1 A avaliao pontual, com regulao retroativa .....................................58 2.3.5.2 A avaliao contnua, o modelo timo da avaliao

    formativa ...............................................................................................58 2.3.5.3 Modalidade mista ..................................................................................61

    2.4 O quantitativo e o qualitativo na avaliao ......................................................................62 2.4.1 Avaliao quantitativa versus avaliao qualitativa ............................................63 2.4.2 Quando a nota faz sentido....................................................................................64

  • XIV

    CAPTULO III A AVALIAO NO CONTEXTO DA EDUCAO MATEMTICA ................................. 67 3.1 Breves consideraes sobre o carter seletivo da Matemtica.........................................68 3.2 Movimentos a favor de uma avaliao a servio das aprendizagens em Matemtica .......................................................................................................................71 3.3 Em busca de alternativas para uma avaliao formativa no processo ensino-aprendizagem de Matemtica............................................................................72 3.3.1 nfase resoluo de problemas, comunicao e aprendizagens

    cooperativas em Matemtica ...............................................................................75 3.3.2 Diversificando os instrumentos de avaliao.......................................................76

    3.3.2.1 A observao.........................................................................................77 3.3.2.2 Mudando o carter das provas...............................................................78 3.3.2.3 Relatrios e ensaios...............................................................................81 3.3.2.4 A auto-avaliao....................................................................................82 3.3.2.5 Dirios ou memrias .............................................................................83 3.3.2.6 Mapas conceituais .................................................................................85 3.3.2.7 Portfolios ...............................................................................................86 3.3.2.8 Outros instrumentos ..............................................................................87

    CAPTULO IV METODOLOGIA DA PESQUISA...............................................................................89 4.1 Optando por um estudo de caso........................................................................................89 4.2 Planejamento da pesquisa de campo ................................................................................91 4.3 Sujeitos da pesquisa..........................................................................................................92 4.4 A observao participante ................................................................................................94

    CAPTULO V ANLISE DOS DADOS ................................................................................................................ 99 5.1 O professor e o aluno: que jogo jogam no campo da avaliao? .....................................99 5.1.1 O professor Pedro e seus alunos da turma T1 da 1 srie ....................................99 5.1.2 O professor Tiago e seus alunos da turma T2 da 2 srie ..................................108 5.1.3 A professora Abigail e seus alunos da turma T3 da 3 srie ..............................119 5.1.4 Pensando ainda na contribuio que os professores Pedro, Tiago e Abigail do aprendizagem de Matemtica de seus alunos.

    possvel encontrar uma formatividade na sua prtica avaliativa? .....................130

    CONCLUSES ......................................................................................................................................................139 REFERNCIA........................................................................................................................................................145 APNDICE - Saudades: at da escola (ou da turma?) a gente sente.............................................151 ANEXOS .......................................................................................................................................153

  • INTRODUO

    A trajetria deste trabalho tem incio nas minhas prprias experincias docentes com a

    avaliao como professor tanto do ensino mdio quanto do ensino superior.

    A partir de 1996, assumi a profisso de professor de matemtica, nos nveis mdio e

    superior. Em muitos momentos desta trajetria docente no ensino mdio, em So Lus-Ma, de

    1996 a 1998, em que os resultados da avaliao, baseados em provas, foram abaixo da mdia

    estabelecida para uma certificao (7,0), ficava na minha conscincia a seguinte questo: o que

    fazer com o resultado? Sempre achava que o problema no estava apenas nos alunos. Sempre em

    vspera de prova, que era basicamente o instrumento avaliativo usado por mim, considerando que

    trabalhava numa escola tradicional, procurava fazer revises do contedo com questes parecidas

    s que iriam ser propostas nela. Entretanto, observava os resultados de forma decepcionante ao

    corrigir as provas.

    Nunca fui extremista, do tipo, ou t certo ou t errado, ao corrigir as provas dos meus

    alunos, pois procurava ler toda e qualquer linha, fazendo observaes sobre o desenvolvimento

    das solues. Achava-me bastante criterioso. E, por isso, tenho certeza de ter sido muito

    criticado, pelos meus alunos, pois a cada sua falha algbrica, a nota ia baixando. Mas sempre fiz

    isso com a inteno de levar o aluno a melhorar a sua redao matemtica. Na verdade, a soma

    dos pontinhos registrados nas questes, nunca foi igual nota da prova. E eu fazia questo de

    mostrar isso. A nota era sempre maior. Mas no podia deixar de dizer onde o aluno estava fraco.

    Sempre me manifestava, ou contrrio ao que o aluno escrevia, escrevendo o por qu, ou deixava

    uma observao ou perguntas sobre o que estava escrito. Resolvia a prova no quadro de giz,

    como se aquilo fosse motivante para o aprendizado do aluno, considerando que a compreenso do

    erro no iria mudar a nota. s vezes, at mudava, pois sempre fui aberto a rever uma correo de

    prova, em razo da falibilidade do processo; isto , nunca registrei uma nota na caderneta que no

    fosse em acordo com o aluno. Entretanto, o aluno, em geral, no tinha muita escolha, por falta de

    argumentos.

    O mais constrangedor, nesse processo da correo, era quando o erro era igual ao do

    colega. A cola, quanta falta de honestidade consigo mesmo, e ao mesmo tempo, que arte!

    Pensava. Ficava impressionado quando detectava as colas nas provas sem as ter percebido no

    momento em que estavam sendo feitas. Em momentos flagrantes desta prtica, cheguei a retirar a

  • 2

    prova do aluno, a me ver em situaes de conflito bem difceis por esse motivo, pois me sentia

    muito mal ao tomar essa atitude. Mas a lei tinha que ser mantida. Na verdade, eu sempre detestei

    fiscalizar provas. Mas cumpria meu papel direitinho. Isto me faz lembrar um episdio, j na

    universidade, em que um aluno, preparado para pescar1, foi percebido por mim. Aproximei-me

    do mesmo e me instalei ao seu lado. Eu j no concebia mais tomar a prova de um aluno. Quanto

    suor aquele aluno derramou pelo rosto! Ele no fez nada na prova. O policial estava do lado dele.

    Mas voltando ao ensino mdio, depois da prova, costumava comear novo assunto, o

    que hoje considero incoerente; no fazia uma reviso para sanar as dificuldades dos alunos.

    Estava convencido de que se tratava de falta de pr-requisitos; ou seja, enquanto no resolvesse

    os problemas dos pr-requisitos, o problema da aprendizagem no seria resolvido. Entretanto,

    achava que isso deveria ser feito num momento diferente, que no o das aulas. Propus escola

    que se organizasse um curso de reciclagem do 1 grau, aproveitando a presena de duas

    monitoras de Matemtica que davam aulas de reforo. A idia foi aceita, as apostilas foram

    compiladas pelas monitoras, com minha superviso, e o curso foi iniciado. Tivemos em torno de

    dois ou trs encontros, mas o projeto no foi para frente, pois faltou uma coordenao maior por

    parte da equipe pedaggica, que s providenciou o material da fogueira, abandonando o fogo,

    depois de aceso. A iniciativa que tivemos pode ser considerada, mesmo sem ter sido baseada em

    um fundamento terico, uma tomada de deciso, a partir dos resultados das provas, como

    sugerem os tericos da avaliao.

    No ensino mdio, como no ensino superior, cheguei a fazer com que os alunos

    vivenciassem a experincia da correo da prova, propondo-lhes questes que trocariam com os

    colegas, depois de resolv-las, para que cada um corrigisse uma questo, fazendo toda crtica

    possvel, dando uma nota depois, de 0 a 2. Fazia este tipo de atividade avaliativa baseado numa

    crena de que, pela necessidade de fazer um juzo sobre a produo de outro, o aluno detecta suas

    dvidas, aprende outra forma de fazer uma questo, diferente da dele, exercita a argumentao, e

    se sente tambm na situao de ser um juiz. Aps o trmino da atividade, eles recebiam as

    minhas colocaes sobre cada questo resolvida e corrigida pelos pares.

    Para facilitar a vida dos alunos, sempre procurei resumir os diversos problemas que

    poderiam ser resolvidos com aquele contedo. Os problemas resolvidos em sala de aula, ou

    passados para casa, eram similares aos propostos na provas. Nas vsperas das provas, fazia

    1 Expresso usada no Maranho para colar.

  • 3

    exerccios de reviso, que, na verdade, eram uma simulao das mesmas. Mas no tinha jeito. Os

    resultados eram decepcionantes.

    A ttulo de mais exemplo, no ltimo ano em que lecionei no ensino mdio (1998), tive

    que fazer, no final do ano, trs provas finais, sem, entretanto, fazer adaptaes do ensino, pois j

    era uma avaliao somativa e final, para obter a aprovao de alguns alunos e, por ltimo,

    considerando que uma determinada aluna no conseguia a aprovao e considerando tambm que

    ela ficaria reprovada apenas em Matemtica, a promovi.

    No ensino superior, a avaliao tambm foi um problema para mim. Apesar de procurar

    ser o mais organizado possvel em minhas aulas, preocupar-me com que os alunos tivessem uma

    oportunidade de rever sob minha orientao todo o assunto programado para a prova em aula

    anterior sua realizao, chegava, s vezes, at a ir aonde eles costumavam estudar, para ver se

    estavam estudando de uma forma efetiva, os resultados de alguns eram decepcionantes.

    exceo de uma minoria, os alunos eram conduzidos prova aps prova para a avaliao final, o

    que eu achava preocupante, sem todavia tomar uma deciso a favor dos mesmos, pois a eles era

    dada a oportunidade de se livrarem da reprovao. Uma situao quase definida a partir da

    primeira prova. Como ns vivemos numa cultura da aprovao/reprovao, sempre fica a

    esperana, para o aluno, de que no final d para passar, o que constitui uma situao cmoda

    para o professor, que faz a sua parte: dar aula, preparar prova, corrigir e passar a nota para a

    caderneta. Coisa de profissional do ensino, restando ao aluno fazer a sua parte: prestar ateno

    aula, estudar para as provas, faz-las e, a partir delas, completar os pontos necessrios ou a mdia

    mnima para a aprovao.

    Vejo a minha trajetria como avaliador um tanto improdutiva. A avaliao, segundo a

    minha prtica, tanto no nvel mdio como no superior, apesar do bom relacionamento com os

    meus antigos alunos, mesmo com aqueles que ficaram reprovados em disciplinas ministradas por

    mim, no serviu de instrumento de ajuda aprendizagem de Matemtica do aluno, e nem

    serviu de inspiradora para possveis adaptaes de meu ensino, ou seja, a minha prtica

    avaliativa no me tornou um professor melhor. E o que mais caracteriza isso o fato de que,

    quando me efetivei como docente da Universidade Federal do Maranho-UFMA, a partir de

    1997, fui indicado para ser professor dos calouros, a quem acompanhei at a disciplina Clculo

    III, num perodo de dois anos. Mas at a parecia tudo normal. O fato grave foi que, de uma turma

    de 35 alunos, s 12 chegaram ao Clculo III. O mais interessante que, ao final de cada

  • 4

    disciplina, perguntava aos alunos se eles me queriam como professor da prxima disciplina, e

    eles diziam que no viam nenhum problema. Claro, s os aprovados diziam tudo bem. Pelo

    menos para esses eu era um bom professor. Mas entendo que no podemos nos sentir bons

    professores s para 12 alunos de uma turma de 35.

    O fato de ter alunos aprovados no final do curso me garantia a certeza de que estava

    colaborando com algum na sua formao, mas ficava ainda uma inquietao. E os outros? Como

    evitar que os alunos enfrentassem situaes de risco como a prova final? O que fazer para que o

    desempenho dos alunos fosse mais compatvel com um real aprendizado?

    Isto para mim era um dilema, uma situao que veio a se consolidar em um problema de

    pesquisa. Naquela poca, no tinha nenhum referencial terico que possibilitasse a busca de uma

    soluo para o problema gerado, em funo mesmo da falta de leituras a respeito da avaliao.

    Estas questes me acompanhavam at que, aproveitando a motivao externa (por parte

    da instituio) e interna (com vista a crescer profissionalmente) de fazer um Curso de Mestrado

    em Educao Matemtica, resolvi optar por estudar o tema Avaliao. Que problema! Um colega

    que foi um ex-aluno mais chegado, ao saber das minhas intenes, exclamou: - Domcio, tu t

    doido!

    Nesse movimento, coincidiu o oferecimento, por parte do Departamento de Educao da

    Universidade Federal do Maranho, de um curso de Especializao em Avaliao Educacional.

    As leituras dos textos das disciplinas do curso me ampliaram a conscincia sobre a forma

    dissimulada com que o Estado mantm o status quo vigente de uma sociedade de classes, usando

    a escola como aparelho, dos mais eficazes, de inculcao da ideologia dominante dessa sociedade

    (ALTHUSSER, 1974).

    Passei a entender o papel do professor e o papel da avaliao numa sociedade capitalista.

    Formado de forma precria, particularmente para o ato de avaliar, e remunerado de forma mais

    precria ainda, tendo que multiplicar suas horas de sala de aula, sem nenhuma condio de fazer

    um ensino de qualidade, constitui-se, assim, em um mero agente de um sistema de ensino

    encarregado de reproduzir uma sociedade socialmente desigual (BOURDIEU; PASSERON,

    1975).

    Neste contexto, ficou claro para mim como a avaliao, na acepo de como eu a

    implementava em minha ao pedaggica (e quanto a isto ressalve-se que representava, no meu

    modo de conceber a avaliao, um modo comum a meus colegas), usada como instrumento

  • 5

    classificatrio, cujo carter maior de aprovar ou reprovar, embora isto, segundo DAmbrosio

    (1996, p.77) devesse ser misso de outro profissional, de outras instituies, normalmente

    representativas de camadas da sociedade interessadas em ter o servio de cidados para certas

    tarefas. Selecionar ou filtrar cidados para tarefas especficas no educao.

    Entendi tambm que, por um lado, com a funo classificatria, a avaliao constitui-se

    um instrumento esttico e frenador do processo de crescimento (LUCKESI, 2000, p.35); com

    esta funo, ela serve para a conservao da desigualdade social. E, por outro lado, com a

    funo diagnstica, ao contrrio, ela constitui-se num momento dialtico do processo de avanar

    no desenvolvimento da ao, do crescimento para a competncia (LUCKESI, 2000, p.35). A

    partir de uma viso filosfica, que encontrei nas leituras que fiz de obras deste autor, as

    contradies da prtica escolar em geral e da minha ficaram mais claras ainda. A partir de

    Luckesi (2000), tambm passei a pensar na nota, ou medida, com mais conscincia.

    Terminando o curso de Especialiazao em Avaliao Educacional, ingressei no curso

    de Mestrado do Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Educao da Unicamp. Passei a ver

    que, no processo avaliativo, outras variveis relativas avaliao poderiam ser estudadas, alm

    dos aspectos sociais, pois na disciplina Avaliao: ideologia e procedimentos tive contato com

    um texto que trazia resultados de pesquisas da rea de psicologia que denunciava a prtica

    avaliativa, estabelecida na escola, como geradora de um clima que afeta as variveis psicolgicas,

    inerentes realizao de uma tarefa, exame, ou prova. So momentos de tenso, que interferem

    na produtividade do aluno, na sua motivao para aprender, alm de, em situao de baixo

    desempenho, produzir uma queda na auto-estima e o enfraquecimento do sentimento de eficcia

    para desafios escolares (BORUCHOVITCH; BZUNECK, 2001; CROOKS, 1988), que acabam

    refletindo nos insucessos escolares e na legitimao da ideologia dominante de que a

    desigualdade social fruto da desigualdade escolar.

    Na primeira leitura de uma pesquisa da rea de Educao Matemtica (SAMESHIMA,

    1995), encontrei as dificuldades que os professores de Matemtica em geral tm em lidar com a

    avaliao, quando evitam falar no assunto, ou, quando falam, mostrando ignorncia sobre os

    fundamentos da avaliao. So poucas as pesquisas no Brasil que enfocam o tema avaliao na

    rea de Educao Matemtica. No perodo entre os anos 1970 e 1992 s foram realizadas 6 (seis)

    pesquisas enfocando o tema avaliao da aprendizagem (FIORENTINI, 1993); no perodo

    subsequente at os dias de hoje pudemos contabilizar mais 8 (oito) trabalhos, a partir do banco de

  • 6

    teses do Centro de Estudo, Memria e Pesquisa em Educao Matemtica (CEMPEM-

    FE/UNICAMP): Silva, (1993), Sameshima (1995), Silva, M. A. (1997), Silva, M. R. (1997),

    Rocha (1997), Carvalho (1998), Souza (1999) e Pironel (2002). Desses, apenas o trabalho de

    Pironel (2002) discute a avaliao especificamente no ensino mdio, onde desenvolve diversos

    instrumentos de avaliao com os alunos no contexto da Metodologia de Ensino-Aprendizagem

    de Matemtica via Resoluo de Problemas.

    A nossa pesquisa se junta a esses trabalhos com o objetivo de contribuir para que o

    processo avaliativo da aprendizagem em Matemtica seja melhorado, tornando a avaliao

    integrada no processo ensino-aprendizagem, de forma a desvincul-la dos processos

    classificatrios e mantenedores das desigualdades sociais, contribuindo assim para a

    aprendizagem de Matemtica dos alunos. Com esta pesquisa, informaremos ao professor de

    Matemtica e ao educador em geral os resultados das pesquisas da psicologia cognitiva, que

    contribuem para a melhoria do processo ensino-aprendizagem, possibilitando ainda o

    desenvolvimento de sujeitos autnomos para se auto-regular, sem desmerecer a importncia do

    trabalho coletivo de aprendizagem. Daremos ainda ao professor de Matemtica um

    aprofundamento sobre a avaliao formativa, que se preocupa em ajudar o aluno a aprender e o

    professor a ensinar, sem dispensar a relao inversa, contribuindo com sugestes sobre os

    diversos instrumentos de avaliao que a rea de Educao Matemtica tem experimentado e

    publicado.

    Dado que o meu contato com os professores do ensino mdio tem sido mais freqente,

    em virtude da minha atividade como professor e Coordenador de estgio Supervisionado da

    UFMA, e ainda que o nmero de pesquisas que enfocam a avaliao, no mbito do ensino mdio,

    muito restrito, esta pesquisa se restringe a esse nvel de ensino.

    Para dar mais elementos de reflexo ao professor de Matemtica, buscamos

    compreender o processo avaliativo do professor de Matemtica de uma escola pblica de So

    Lus-Ma, a partir de sua fala, intervenes em sala de aula, e tambm das falas e prticas dos seus

    alunos quando esto submetidos a esse processo. Tivemos, para nos orientar nesse trabalho de

    pesquisa, a seguinte questo:

    Que contribuies a avaliao praticada pelos professores de Matemtica do ensino

    mdio, de uma escola pblica de So Lus do Maranho, tem oferecido para o seu ensino e a

    aprendizagem de Matemtica de seus alunos?

  • 7

    O resultado desse trabalho o dividimos em cinco captulos. No captulo I, fazemos uma

    reflexo sobre a relao entre a sociedade de classe e o modo de avaliar em suas escolas, trazendo

    para o debate as consequncias de uma avaliao meramente somativa que resulta na cultura da

    nota e da supervalorizao da prova como instrumento de avaliao.

    No segundo captulo, primeiramente, tratamos das questes psicolgicas envolvidas no

    processo de avaliao. Com isto procuramos contribuir com o professor de Matemtica e seus

    alunos de maneira a tornar a avaliao um momento de ensino e aprendizagem de Matemtica,

    socializao do conhecimento construdo e busca de uma aprendizagem autnoma, atravs das

    estratgias cognitivas e metacognitivas, ampliadas pela aprendizagem cooperativa.

    Num segundo momento, discutimos os pressupostos filosficos da avaliao tendo em

    vista o amadurecimento do ato de avaliar, tornando esse ato consciente e desvinculado das

    prticas seletivas que atualmente ainda ocorrem nas escolas, sem que o professor reflita sobre

    isso. A partir disso, optamos por relevar o modelo de avaliao formativa que ajuda o professor a

    ensinar e o aluno a aprender e vice-versa. Em seguida, discutimos o quantitativo e o qualitativo

    na avaliao, tentando dar um sentido para a nota de forma que ela esteja a favor do aluno,

    servindo, no de punio ou de negociao, mas de informao para o aluno de como se encontra

    a sua aprendizagem tendo em vista o que foi planejado para ele.

    No terceiro captulo, contextualizamos a avaliao na rea da Educao Matemtica com

    o fim de informar as contribuies que essa rea tem dado para que a avaliao seja integrada no

    processo ensino-aprendizagem de Matemtica. Inicialmente, discutimos o carter seletivo que foi

    dado Matemtica e o movimento que surgiu no sentindo de reverter esse paradigma. E, para

    encerrar o captulo, fazemos uma reviso da literatura dessa rea sobre o tema avaliao. Os

    autores dessa rea tm se preocupado em estudar e propor formas alternativas de avaliao.

    Fazemos, ento, uma discusso sobre os diversos instrumentos de avaliao que os autores

    consideram como uma ajuda s aprendizagens de Matemtica. Observou-se que os instrumentos

    de avaliao que ora so sugeridos guardam uma relao com a nfase que se tem dado

    resoluo de problema no ensino da matemtica, comunicao em Matemtica, tudo isso

    ressaltando a importncia e o benefcio do trabalho cooperativo e o desenvolvimento da

    metacognio para a aprendizagem de Matemtica.

    No quarto captulo, descrevemos a metodologia utilizada nessa pesquisa. Optamos por

    um estudo de caso qualitativo, segundo Ludke e Andr (1986), relativo a uma escola pblica de

  • 8

    ensino mdio de So Lus-Ma, cujos sujeitos foram trs professores de Matemtica do turno

    matutino e seus alunos. Para o levantamento dos dados empricos desenvolvemos uma

    observao participante (LUDKE; ANDR, 1986) e aplicao de questionrios e entrevistas com

    os professores e seus alunos.

    No quinto captulo, desenvolvemos uma anlise qualitativa dos dados, de natureza

    dialtica e emancipatria, buscando nesse movimento evidenciar os movimentos contrrios

    existentes no processo avaliativo e verificar possibilidades de uma avaliao emancipadora no

    processo educativo da escola pesquisada.

    Nosso objetivo , com esta pesquisa, dar uma contribuio para que a avaliao no

    processo ensino-aprendizagem de Matemtica seja formativo, colaborando para a construo de

    uma sociedade justa, composta de sujeitos crticos e inseridos na mesma.

  • 9

    CAPTULO I - AVALIAO E SOCIEDADE

    Enquanto a sociedade dividida em classes no desaparecer, a escola continuar sendo uma simples engrenagem dentro do sistema geral de explorao, e o corpo de mestres e de professores continuar sendo um regimento, que, como os outros, defende os interesses do Estado.

    Anbal Ponce

    Neste captulo, pretendemos fazer uma reflexo sobre o papel da avaliao no contexto

    de uma formao d23e classes sociais. Fazemos uma incurso na Histria para compreender

    como a escola tem cumprido o papel de preservar a diviso da sociedade em classes, desde a sua

    origem at os dias de hoje. Nesse contexto, refletimos sobre o papel da avaliao tendo o

    professor como agente das aes avaliativas de um sistema de ensino.

    Discutimos tambm os exames nacionais e o seu papel no processo seletivo da sociedade

    ao se constituir numa forma dissimulada de legitimar a discriminao de classe.

    Pensamos contribuir para que o processo avaliativo na escola se destitua de dar

    continuidade s desigualdades sociais e se direcione para outro movimento que o de orientar o

    processo escolar de forma a garantir aos alunos o direito de escolha de suas trajetrias de vida em

    uma sociedade. Sendo a avaliao em Matemtica a que mais tem se prestado para a seletividade

    na sociedade, sobre ela que este trabalho se debrua.

    1.1 A escola, sua origem, suas finalidades mais acentuadas numa sociedade de classes

    Nos primrdios da humanidade, as comunidades viviam em funo to somente de lutar

    pela sua sobrevivncia. Tudo era de todos. O que se aprendia tinha carter de continuidade da

    comunidade. As crianas se desenvolviam tornando-se membros de sua sociedade pela simples

    convivncia com os adultos, que, indistintamente, orientavam as crianas de forma espontnea e

    integral com o fim de integr-las no seio das atividades da sua comunidade. A educao era

    espontnea porque inexistia a escola para inculcar as normas sociais e integral porque os

    membros das tribos recebiam educacionalmente apenas o que era necessrio e possvel

    desenvolver pela comunidade (PONCE, 1998).

  • 10

    Contudo, foram surgindo determinadas atividades que foram se diferenciando do

    trabalho braal feito em funo da sobrevivncia. Isto decorreu em virtude de que para produzir

    os bens de manuteno da comunidade, que eram diminutos em funo da diminuta necessidade,

    nem todos da mesma trabalhavam para este fim. Paralelamente, com a inovao de tcnicas de

    produo, esta passa a exceder o necessrio para a tribo. Surge portanto, um grupo de indivduos

    libertos do trabalho material (PONCE, 1998, p. 22-24). Esse excedente passa a no ter mais o

    valor de uso, que seria aquele relacionado com a prpria sobrevivncia, levando a surgir relaes

    de troca de mercadorias intra e intercomunidades tornando isso um processo social usual. A

    partir desse momento, consolida-se a dissociao entre a utilidade das coisas destinadas

    satisfao direta das necessidades e a das coisas destinadas troca. Seu valor de uso dissocia-se

    do seu valor de troca (MARX, V.1, 1985, p. 98). Isto contribuiu para o surgimento de duas

    foras produtivas: uma manual e outra intelectual. Passa-se a ter uma separao entre os que

    fazem e os que pensam.

    Isto se acentuou com o aumento da produo, pois para a comunidade passou a ser

    possvel e necessrio a manuteno de escravos obtidos em confronto com tribos vizinhas, cuja

    conseqncia foi o crescimento ainda maior da produo. Ter escravos significou aumentar o

    contingente dos que fazem sempre subordinados aos que pensam. Aparece ento a figura do

    administrador que passou a controlar e comercializar os produtos com comunidades vizinhas e

    distantes (PONCE, 1998). Essa funo, com o tempo, foi-se tornando hereditria, e o que era

    coletivo passou a ser privado da famlia do administrador.

    A sociedade de classe se estabelece e a educao perde o seu carter indistinto que

    existia nas comunidades sem classes, ou seja, a educao passou a ser sistemtica, organizada e

    violenta [...] e uma vez constitudas as classes sociais, passa a ser um dogma pedaggico a sua

    conservao, e quanto mais a educao conserva o status quo, mais ela julgada adequada

    (PONCE, 1998, p. 28, grifos do autor).

    Assim, as classes constitudas, dominada e dominante, se distanciam pelos ideais, sendo

    que a dominante, pela educao, tenta fazer com que a dominada considere natural a

    desigualdade educacional. E para defender os interesses da classe dominante, foi institudo o

    Estado: uma instituio que no s defendesse a nova forma privada de adquirir riquezas, em

    oposio s tradies comunistas da tribo, como tambm que legitimasse e perpetuasse a

  • 11

    nascente diviso em classes e o direito de a classe proprietria explorar e dominar os que nada

    possuam (PONCE, 1998, p. 32, grifo do autor). A Escola surge nesse movimento.

    Como instituio, encontramos a escola, j no ano 600 a.C. na Grcia, com um fim

    exclusivamente de atender aos filhos daqueles que se dedicavam ao cio, ou seja, os membros da

    classe dominante. Em Roma, a escola surge em 449 a. C. para atender os filhos das famlias

    menos ricas, que no podiam pagar professores particulares. Para impedir que o ensino fosse

    apossado pelos cristos, o imperador romano Juliano, em 362 d. C. passou a intervir no processo

    de nomeao dos professores. Assim, o ensino a cargo do Estado surgiu pela primeira vez na

    histria da humanidade (PONCE, 1998, p. 78). Posteriormente, em 425, o Estado assumiu por

    completo o papel de promotor do ensino eliminando qualquer forma de ensino que no fosse

    estatal (PONCE, 1998).

    A instituio da sociedade de classes, o ato de educar ou no, passou a ser ideolgico da

    classe dominante necessitada de manter o seu status quo. Havia e h, para cada classe, uma

    educao distinta. Mas essa distino foi mudando de uma forma declarada para outra

    dissimulada a partir da Revoluo Francesa. A seguir, ao desenvolvermos o debate em torno do

    ensino pblico gratuito, buscando argumentar sobre as causas de sua promulgao, e explicando

    como se deu essa abertura, desvela-se porque se criou um mecanismo de conteno da

    mobilizao social, a avaliao na escola.

    1.2 O debate em torno do ensino pblico

    Mesmo antes do movimento revolucionrio que culminou com a Revoluo Francesa de

    1789, em que houve a participao de burgueses e proletrios, cuja mxima foi a proclamao da

    Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, em 26 de agosto de 1789, j se debatia sobre o

    ensino estatal para todos. Encontramos no pedagogo da poca, La Chalotais (1701-1785), a idia

    de que o ensino estatal deveria ser dado apenas s classes abastadas. Para esse pedagogo, as letras

    desviariam os operrios de suas tarefas naturais (PONCE, 1998). Essa idia j havia sido

    defendida pelo filsofo Voltaire (1694 - 1778), pois, segundo este, o conhecimento deveria ser

    reservado aristocracia pensante. Por sua vez, John Locke (1632 1704) defendia a necessidade

    de uma escola para governar, para os ricos, e uma escola para instruo, para os pobres (SILVA,

    1993).

  • 12

    J. B. Basedow (1723-1790) fora muito refratrio ao ensino para todos, mas admitia que

    fosse dado um ensino diferenciado para as classes populares, pois considerava que

    No h nenhum inconveniente em separar as escolas grandes (populares) das pequenas (para os ricos e tambm para a classe mdia), porque muito grande a diferena de hbitos e de condio existentes entre as classes a que se destinam essas escolas. Os filhos das classes superiores devem e podem comear bem cedo a se instrurem, e como devem ir mais longe que os outros, esto obrigados a estudar mais... As crianas das grandes escolas (populares) devem, por outro lado, de acordo com a finalidade a que deve obedecer a sua instruo, dedicar pelo menos a metade do seu tempo aos trabalhos manuais, para que no se tornem inbeis em uma atividade que no to necessria, a no ser por motivo de sade, s classes que trabalham mais com o crebro do que com as mos (PONCE, 1998, p. 137).

    Entre os tericos que defendiam o ensino para todos, destacou-se Diderot (1713 1784),

    o enciclopedista, que se manifestou favorvel instruo para todos, numa carta a Imperatriz

    Catarina da Rssia: bom que todos saibam ler, escrever e contar - dizia ele - desde o Primeiro

    Ministro ao mais humilde dos camponeses. [...] Porque mais difcil explorar um campons que

    sabe ler do que um analfabeto (PONCE, 1998, p. 133).

    Outro representante da burguesia que foi defensor do ensino pblico e gratuito para todos

    foi Condorcet (1743 1794). Este pedagogo em seu plano educacional para a Frana,

    denominado Rapport, apresentado Assemblia Legislativa dos dias 20 e 21 de abril de 1792,

    defendeu a instruo para todos e de forma gratuita. Nesse documento, o Estado deveria ser

    promotor do ensino gratuito, sem, contudo, gerenciar as diretrizes do sistema de ensino, ficando,

    inclusive, impedido de nomear os professores. Condorcet estimulou a livre concorrncia entre

    escolas pblicas e particulares sem a interveno do Estado. Entretanto, as idias de Condorcet,

    um burgus, foram artimanhosas, dado que, ao propor seu Rapport, a burguesia ainda no tinha

    assumido o poder administrativo. Com a proclamao da Repblica, ele reeditou o seu informe

    com a admisso de que o ensino primrio deveria ficar sob o controle do Estado.

    Quer dizer, enquanto o poder estatal continuava nas mos da classe inimiga, era necessrio impedir a qualquer preo o controle estatal das escolas: no permitir que o Estado nomeasse os professores e exigir a existncia das escolas particulares (burguesas, neste caso), em cuja fundao o Rei no pudesse interferir. Mas, assim que a burguesia se apoderou da mquina administrativa, Condorcet passou a afirmar que as escolas deveriam estar sob a vigilncia e a administrao do Estado. No se poderia exigir de um visionrio mais conscincia de classe (PONCE, 1998, p. 141).

  • 13

    Naquele momento, vale ressaltar que a gratuidade era irrelevante, dado que as crianas a

    partir de cinco anos j trabalhavam para ajudar seus pais (PONCE, 1998).

    Pestalozzi (1746-1827), outro burgus, discpulo de Rousseau, foi um grande pedagogo,

    que, apesar de ter sido considerado o educador da humanidade, defensor das massas populares,

    tambm diferenciava o seu ensino segundo as classes (PONCE, 1998).

    Como vemos, numa sociedade de classe, a dominante sempre defendeu para si uma

    educao distinta da classe dominada. Entende-se a postura dos burgueses no debate sobre o

    ensino pblico, pois o receio deles era justamente o de perder sua posio intelectual na diviso

    social do trabalho, j que a instruo que permite ler o manual da mquina permite ler o panfleto

    do sindicato (VASCONCELLOS, 1998, p. 58).

    A escola, assim, se configurou como instrumento de conservao e reproduo social, e

    usou/usa a avaliao para esse fim, como veremos a seguir.

    1.3 Como a escola perpetua a desigualdade social: a parte que cabe avaliao (avaliao?2)

    Aps as denncias feitas pela sociologia da educao nos anos 70, na Frana, entre outros, com Bourdieu e Passeron, Althusser, Baudelot e Establet, Snyders e tambm nos EUA com Bowles, Gints, Levin e Cannoy, mais tarde com Giroux e Aple, a escola passou a ser vista com um olhar muito crtico, que via seu papel no mais como fator seguro de desenvolvimento e crescimento no mbito social, mas como possvel recurso de conservao da organizao da sociedade, em favor dos grupos dominantes. E a avaliao como todos sabemos, passou a ser vista como mecanismo central para efetivao desse processo de conservao da ordem estabelecida e de excluso dos no qualificados para ela.

    Menga Ludke

    Com a complexificao da sociedade, se acentua sempre mais a diviso social do

    trabalho. Alguns passam a depender do trabalho rduo de outros, destinando para si atividades

    intelectuais. Essas atividades, frutos do cio, possibilitaram aos usurpadores das conscincias

    alheias a manipulao das riquezas acumuladas e excedentes em benefcio de si mesmos. Passa-

    se ento a ter uma diviso social do trabalho que diferencia aqueles que detm o trabalho manual

    2 A interrogao se faz para que fique claro que, apesar de estarmos usando este termo, as aes que so feitas em

    seu nome, na verdade no passam de testes, exames, medies de desempenho, sendo que o seu verdadeiro significado encontrado no captulo II deste trabalho.

  • 14

    dos que detm o trabalho intelectual. Esses, por estarem livres para pensar, decidem como tem

    que ser a vida daqueles outros, a ponto de entender como tem que ser a sua preparao

    educacional, detendo assim os privilgios que conseguiram ao usurparem do que era coletivo,

    tornando-lhe particular (PONCE, 1998).

    Os dominadores sentem necessidade de ocupar os seus filhos ociosos com atividades

    orientadas para o exerccio do poder. A escola surge com este fim: perpetuar as posies sociais.

    Mudam-se os modos de produo capitalista e a escola mantm a sua funo. S os filhos dos

    abastados recebem uma educao voltada para a organizao e administrao da sociedade na

    escola.

    Com a revoluo industrial, a burguesia sente a necessidade de preparar melhor os seus

    operrios. Ento passa a ser justa a abertura da escola para os filhos de trabalhadores. A

    tecnologia exige mos habilidosas no trato com as mquinas que potencializam a produo.

    Como a sociedade dividida em classes, tambm justo que se tenha escola distinta para classes

    distintas.

    Surgem pedagogos, sem trarem sua classe, interessados em que todos tenham acesso ao

    saber, e o Estado, a servio da classe dominante, institui o ensino pblico e gratuito. J um

    avano, abstrao feita da qualidade de ensino que ministrado aos alunos, particularmente aos

    das classes populares.

    Como a escola passa a ser um direito de todos, h o risco de mobilizao social. A classe

    dominante, que muito defendeu para que os da classe dominada no tivessem e no tenham

    acesso ao saber, sente a necessidade de criar mecanismos objetivos, tecnicistas e imparciais que

    justifiquem a desigualdade social pela desigualdade escolar, e sejam, inclusive, legitimados por

    aqueles que se encontram em posio desfavorvel na sociedade.

    A avaliao surge como esse mecanismo de manuteno de uma sociedade de classes.

    Ela possibilita controlar a ascenso dos indivduos de uma classe desfavorecida para outra

    favorecida. Pelo seu aspecto quantitativo, e este o nico usado para esse fim, ela diferencia,

    num processo competitivo, quem pode galgar os melhores lugares na sociedade: as chances so

    dadas a todos, mas s alguns sabem aproveit-las. Casualmente essa minoria chega aos melhores

    postos sociais.

    Como se explica que se considere normal ter os que nasceram para servir e outros para

    mandar? Os socilogos da educao procuraram dar explicaes para isto.

  • 15

    Althusser (1974), em sua obra Ideologia e Aparelhos Ideolgicos de Estado(AIE)3,

    explicou a estrutura criada para a inculcao ideolgica da classe dominante e caracterizou a

    escola como o AIE dominante entre todos os outros aparelhos. Isto se deve, segundo o autor, ao

    tempo que os alunos ficam expostos ao educativa4.

    Bourdieu e Passeron (1975) e Bourdieu (2001) denunciam de modo claro a forma

    dissimulada com que a escola reproduz a sociedade de classe, comeando por considerar todos

    iguais; como diz Bourdieu (2001, p. 53) Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, basta que a escola ignore no contedo do ensino transmitido, nos mtodos e tcnicas de transmisso e nos critrios de avaliao as desigualdades culturais existentes entre as crianas das diferentes classes sociais: por outras palavras, tratando dos alunos como iguais em direitos e deveres o sistema escolar levado a sancionar as desigualdades iniciais perante a cultura

    Com um carter seletivo, a escola, via avaliao, opera no aluno, que chega com

    esperana de ser algum na vida, a limitao desses sonhos proporo que se desenvolve no

    interior da escola. Bourdieu (2001, p. 220), em suas anlises, concluiu que:

    (...) depois de um perodo de iluso e mesmo de euforia, os novos beneficirios compreenderam, pouco a pouco, que no bastava ter acesso ao ensino secundrio, para ter xito nele, ou ter xito no ensino secundrio para ter acesso s posies sociais que podiam ser alcanadas com os certificados escolares (...).

    Essa dissimulao, que se apoia na ideologia dos dons, encontra respaldo em sucessos

    obtidos por uma minoria insignificante que passa de uma classe outra, isto ,

    o sucesso excepcional de alguns indivduos que escapam ao destino coletivo d uma aparncia de legitimidade seleo escolar, e d crdito ao mito da escola libertadora junto queles prprios indivduos que ela eliminou, fazendo crer que o sucesso uma simples questo de trabalho e de dons (BOURDIEU, 2001, p. 59).

    A ideologia dos dotes e do esforo, que inculcada nas crianas e jovens das classes

    populares, foi desmistificada pelos socilogos que mostraram que as crianas chegam escola

    3 O autor designa Aparelhos Ideolgicos de Estado (AIE) como um certo nmero de realidades que se apresentam

    ao observador imediato sob a forma de instituies distintas e especializadas como, por exemplo: as igrejas, as escolas, a famlia, a mdia, etc. (ALTHUSSER, 1974, p. 43-44).

    4 Pensamos que o Aparelho Ideolgico de Estado que foi colocado em posio dominante nas formaes capitalistas maduras, aps uma violenta luta de classes poltica e ideolgica, contra o antigo Aparelho Ideolgico de Estado dominante, o Aparelho Ideolgico escolar. [...] Nenhum Aparelho Ideolgico de Estado dispe durante tanto tempo de audincia obrigatria (e ainda por cima gratuita...), 5 a 6 dias em 7 que tem a semana, razo de 8 horas por dia, da totalidade das crianas da formao social capitalista (ALTHUSSER, 1974, p. 60; 66).

  • 16

    com capital cultural5 distinto, sendo sempre maior o daquelas da classe dominante, pois sua

    cultura familiar se encontra mais prxima da cultura arbitrria dominante; a conseqncia disso

    que os alunos dessa classe so mais exitosos nos exames escolares em detrimento do sucesso

    daqueles outros (BOURDIEU; PASSERON, 1975).

    A ideologia da classe dominante, com respaldo no Estado, descompromete-se com os

    insucessos escolares quando oportuniza escola para todos, e inculca nos reprovados pelo sistema

    de avaliao que, se algum no consegue, porque no quer. A avaliao na escola o

    patrulhamento ideolgico que naturaliza essa justificativa, e os resultados dos exames de fim de

    escolaridade legitimam essa ideologia. A dissimulao maior dessa ideologia se d quando se

    decide manter os alunos das classes populares, considerando que no podem ser eliminados j na

    entrada do sistema de ensino. Deve-se deixar que eles prossigam os seus estudos. Elimina-se

    concretamente na sada, ou ento seja dada a eles uma posio no to nobre na sociedade

    (BOURDIEU; PASSERON, 1975). Aqui est a dissimulao mais perversa.

    Percebe-se na escola mudanas na forma de fazer avaliao orientando para avaliar o

    aluno como um todo, em que deve haver prevalncia dos aspectos qualitativos sobre os

    quantitativos (BRASIL, 1996), mas no se modifica a forma de conduzir esse processo via

    avaliao, nem as condies de trabalho para que se possibilite aos professores melhorar suas

    intervenes pedaggicas, dissimulando mais ainda o processo seletivo produzido pela escola.

    Para Lima (1995, p. 83)

    a abolio do exame oral, a substituio das notas por conceitos (A,B,C, etc.), o fim da segunda poca, a adoo da semestralidade da recuperao, a orientao geral para a multiplicao de provas e a evitao das provonas, e demais medidas de fragmentao e amenizao da avaliao, sem o rompimento com a manufatura pedaggica6, no passam de formas de mascarar o processo seletivo que, quanto mais disfarado estiver, mais eficaz se torna.

    A essas medidas acrescentamos a progresso continuada cujos resultados tm sido os

    mais desastrosos para a populao estudantil das escolas pblicas.

    5 Bens culturais que so transmitidos pelas diferentes aes pedaggicas familiares e cujo valor enquanto capital

    cultural funo da distncia entre o arbitrrio cultural imposto pela ao pedaggica dominante e o arbitrrio cultural inculcado pela ao pedaggica familiar nos diferentes grupos ou classes (BOURDIEU; PASSERON, 1975, p. 43). Quanto menor a distncia entre a cultura arbitrria dominante (inculcada na escola) e a cultura inculcada pela famlia, maior o capital cultural.

    6 Analogia feita, pelo autor, da escola com uma fbrica taylorista/fordista, em que o produto final a mquina-doutor.

  • 17

    Apesar da bandeira levantada pelos educadores em favor de uma avaliao que ajude a

    aprendizagem do aluno, no se impede que ela se mantenha de forma tradicional. Apesar

    estudiosos como Bourdieu (2001) denunciarem a indiferena s diferenas, as crianas e jovens

    so sempre tratados como iguais. Assim, na atualidade, a avaliao est entre a seleo e

    formao, o reconhecimento e a negao das desigualdades.

    A avaliao tradicional privilegia a classificao, cuja conseqncia o estabelecimento

    de uma hierarquia de excelncia (PERRENOUD, 1999). Alm de classificar, este tipo de

    avaliao certifica, d diploma, habilitando o aluno perante o seu futuro empregador, ou ento ela

    promove para ciclos ou sries seguintes. Mas a certificao apenas informa o que idealmente o

    aluno deve saber, sem garantias concretas.

    A forma como feita a avaliao na escola, propicia a criao de uma cultura conforme

    a qual na sociedade normal classificar as pessoas. Isso legitimado pelos alunos que sentem a

    necessidade de se sair bem nas provas como forma de se preparar para a realidade avaliativa

    extra-escolar. Assim, por intermdio da escola, aprende-se a conviver com a avaliao e at

    desej-la, uma vez que se prepara o sujeito para ser constantemente medido, classificado,

    rotulado, consentindo em ser objeto da avaliao (BERTAGNA, 2002, p. 243).

    A escola para funcionar necessita de um corpo tcnico e de um corpo docente para

    desempenhar o seu papel na sociedade. O professor assume, em ltima instncia, por delegao,

    o papel mais comprometedor, no nosso entender, desse processo de excluso, quando,

    fundamentado em boas, convictas e ingnuas intenes, inculca a ideologia dominante, via

    avaliao. No item a seguir analisamos o conflito do professor nesse processo, quando assume o

    papel de professor-avaliador desvinculado do papel do professor que quer ensinar.

    1.3.1 Qual a parte do professor nesse processo?

    A avaliao em nossas escolas - pblicas ou privadas, confessionais ou laicas, boas ou ms -, no importando suas motivaes e objetivos, eminentemente somativa, preocupada com os resultados finais, que levam a situaes irreversveis sobre o desempenho, sem que os educadores considerem as vrias implicaes, inclusive sociais, de um processo decisrio muitas vezes fatal do ponto de vista educacional.

    Heraldo Marelim Vianna

  • 18

    A escola instituda configura um quadro de professores que devem cuidar da educao

    daqueles que sero os continuadores da sociedade. Conhecemos bem o jargo: o futuro da nao

    est nas crianas e jovens, mas no se questiona de que nao est se tratando.

    Em sua formao, o professor preparado para ensinar uma disciplina especfica sem

    necessariamente este ensino estar direcionado a esta ou a outra classe social. Terminando sua

    formao, se encontra disposio de empregadores educacionais, sejam pblicos ou privados.

    Independente do caminho, pblico ou particular, que tomar, j encontrar um sistema constitudo

    que deve dar seqncia a um projeto de sociedade. Numa sociedade de classes, esse projeto se

    mantm s custas da cultura da competitividade e da seleo, entre outros fatores.

    Por uma questo profissional e scio-econmica, o professor que precisa preencher

    requisitos de bom trabalhador, se veste da roupagem do bom trabalhador da rea da educao

    institucionalizada. Dever, portanto, cumprir normas ou ordens organizacionais da escola em que

    trabalha. Ao entrar no sistema de ensino, recebe a autoridade pedaggica que o conduzir, de

    uma forma ideolgica, a dar sua contribuio na manuteno do status quo da sociedade. No

    entanto, ele no trabalha deliberadamente para isto, pois estaria negando a sua condio social,

    uma vez que, dado que, por no ser uma profisso considerada rentvel, fluem para a profisso de

    professor os cidados de uma classe no muito favorecida, apesar da dimenso que a ela dada

    pelo discurso de que via educao que um pas se desenvolve.

    Faremos ento uma anlise da participao do professor no processo de excluso dos

    alunos via avaliao, conscientes de que, quando estamos tratando de seleo social, no

    estaremos nos referindo a uma inteno deliberada e consciente dos professores, mas, sim, de

    todo o sistema de ensino.

    Na escola, o professor, a princpio, contratado para ensinar e o aluno matriculado

    para aprender. Este deveria ser o foco maior da ateno de ambos os atores principais da

    educao. Entretanto, a escola no foi feita s para educar, mas tambm para certificar, preparar o

    aluno para exercer um papel dito por ela importante na sociedade. Dependendo da classe que a

    procura, a certificao que ela d, quando d, tem uma qualidade diferente.Ou seja, a escola

    para ensinar, mas no a todos e sim os que tm condies e os que querem ou merecem (os

    eleitos) (VASCONCELLOS, 1998, p. 47).

    O processo ensino-aprendizagem comea a se fragmentar quando escola, seja pblica

    ou particular, delegado o poder de definir quem sabe e quem no sabe e, indiretamente, o de

  • 19

    selecionar os melhores da sociedade. Isto passa a ser feito via avaliao, uma avaliao

    distorcida, que na verdade no avaliao, como veremos no captulo II desta dissertao. A

    partir de uma mensurao do que o aluno produziu, como rendimento escolar, a escola o rotula

    com uma medida, uma nota. O boletim do aluno o seu passaporte para uma posio na

    sociedade, que em geral a mesma em que ele se encontra.

    Ao receber do sistema escolar esse poder de certificar e selecionar, a escola por sua vez

    transfere-o para o professor. Esse, tendo sido preparado para ensinar, deixa de faz-lo

    intensivamente para corrigir exaustivamente provas e dar conta de preencher cadernetas com

    notas. Desta forma, decide sobre a vida de seus alunos pela nota que lhes atribui e no pela

    qualidade do ensino que desenvolve.

    Como a sociedade exige que o indivduo tenha uma formao adequada espelhada pela

    nota, o professor mesmo que no queira deliberadamente, mas por ter que atender a uma

    atividade burocrtica, se prende ao ciclo da aprovao/reprovao, deixando de ensinar, por

    verdadeiramente no avaliar. Essa cultura assimilada pelo aluno, o que constitui uma

    reproduo da cultura social na escola.

    A relao professor-aluno se torna s vezes inamigvel pela relao de poder que se

    instaura entre um e outro. Como diz Vasconcellos (1998, p. 53, grifos do autor):

    Se, de um lado, a escola usa a avaliao como instrumento de poder e de controle do aluno, por outro, o aluno acaba desenvolvendo estratgias de sobrevivncia e criando um contra-poder estabelecer uma relao utilitarista com o saber e com o outro; conseguir nota a qualquer custo, mesmo que atravs de cola (que muito mais comum do que se imagina): seja material (escritos em papis, borracha, carteira, etc.) ou mental (memorizao mecnica). De qualquer maneira, o que se verifica freqentemente que no h correlao entre a nota e a qualidade da aprendizagem. Ou seja, o aluno acaba descobrindo o jogo da escola e encontra formas de resistncia e enfrentamento.

    Assim, por ter passado por um sistema de avaliao em que se prioriza o sucesso e no

    o desenvolvimento, o aluno vai evoluindo, no em aquisies essenciais de conhecimento, mas

    em formas de se adequar ao processo dissimulado de demarcar posies na sociedade, quase

    sempre se distanciando de conhecimentos bsicos, mas fundamentais para o seu crescimento

    individual e social.

    Ao controlar o aluno, pela nota, exigir que ele passe por momentos individuais de

    exame, e tempo limitado, porque ele tem que se preparar para a vida, o professor

    contraditoriamente no o ajuda, pois isso tolhe a sua criatividade e o descompromete com a sua

  • 20

    aprendizagem. Quando as notas obtidas nos testes so continuamente baixas, produzem-se

    conseqncias motivacionais negativas no aluno com relao disciplina relativa, que o

    acompanharo para toda a vida, como o caso da maioria das pessoas que tiveram experincias

    traumticas com a Matemtica.

    A lgica disso que o aluno vai se acostumando com o que o espera fora da escola e, ao

    mesmo tempo, vai diminuindo a sua crena em aprender e se conformando com a hiptese de que

    se no se sair bem na vida devido a sua incompetncia escolar, pois a escola sempre parte do

    pressuposto que cumpriu sua tarefa de formadora para qualquer profisso. A inculcao

    ideolgica realizada sem o professor e o aluno perceberem.

    Quando se trata de preparar os alunos para o exame do vestibular, a repercusso disto

    que os jovens deixam de desenvolver um projeto de vida, pois eles se orientaro ou sero

    orientados segundo os sucessos ou insucessos obtidos em suas carreiras escolares. Alm disso,

    quando ingressam na universidade, muitos demoram para concluir o curso, e, quando concluem,

    se sentem frustrados com a formao que tiveram, isto quando no abandonam o curso

    (VASCONCELLOS, 1998).

    Que conseqncia mais cruel do que levar um aluno a escolher uma profisso que

    exija conhecimentos que no aprendeu, como o caso das pessoas que se direcionaram para as

    reas de Humanas para escaparem, por exemplo, da matemtica, porque tiveram muitos

    insucessos nas avaliaes relativas a essa disciplina? Quantas frustraes ns identificamos em

    alunos universitrios que mudam de curso porque a encontram disciplinas que exigem muita

    matemtica, e ainda contando nestas com um professor inflexvel? Quando no mudam de curso,

    se sentem penalizados por semestres consecutivos ao terem que enfrentar disciplinas que exigem

    muita matemtica.

    Entendemos que, deliberadamente, o professor no o culpado das conseqncias de

    suas prticas avaliativas, pois a avaliao tal como ocorre na sala de aula, no apenas da

    responsabilidade do professor, individualmente considerado. Trata-se de um processo de

    alienao do sujeito, por imerso numa realidade bem maior que ele (VASCONCELLOS, 1998,

    p. 62). Entretanto, sem perceber, ou com a convico que no pode fazer nada, contribui para a

    distoro que ocorre na avaliao que praticada na escola (VASCONCELLOS, 1998).

    A distoro da avaliao na escola, ns a encontramos tanto na escola pblica como na

    particular. Tanto uma como a outra desviam o objetivo central da avaliao que estar a servio

  • 21

    da aprendizagem dos alunos. As conseqncias na formao do aluno, no entanto, se do de

    formas diferentes. H aqueles alunos cujos pais podem dar uma assistncia extra-escolar e

    aqueles que, ao passar pelo mesmo sistema escolar do filho e no tendo completado sua

    formao, no podem ajud-lo.

    Mas se o professor no tem culpa, o que o leva a manter uma prtica em desfavor do seu

    aluno?

    Vasconcellos (1998) categorizou seis motivos pelos quais o professor refora uma

    avaliao distorcida de efeito excludente:

    1- Necessidade o professor usa da autoridade que a nota lhe concede para sobreviver

    na relao com o aluno.

    2- Convico o aluno tem que se preparar para a vida que acontece na sociedade.

    3- Ingenuidade o professor no reflete sobre as conseqncias de sua prtica.

    4- Comodidade mudar a prtica avaliativa implicaria reformular sua prtica como um

    todo, inclusive de ensino.

    5- Presso ele faz porque existe a lei, cobrana dos pais, superiores, colegas, e s

    vezes at dos alunos.

    6- Formao no lhe ensinaram outra forma de avaliar.

    Esse autor destaca as duas primeiras como as mais recorrentes.

    difcil dizer qual delas mais prejudicial ao aluno e sociedade. No que diz respeito

    NECESSIDADE, para o professor ficam as seguintes questes: o que colocar no lugar da

    presso da nota? Se j est to difcil trabalhar tendo a nota para segurar um pouco os alunos

    que esto totalmente desinteressados, dispersos, desmotivados, mal educados, sem limites, etc.

    o que acontecer se baixarmos a guarda? A sim que ser o caos total... (VASCONCELLOS,

    1998, p. 61). Necessrio se faz que isto seja discutido, pois a nota s est ajudando a manter a

    disciplina escolar e tem efeito muito negativo na vida do aluno.

    Em se tratando da CONVICO, Vasconcellos (1998) categorizou quatro justificativas

    para a necessidade de manter a prtica excludente de avaliao na escola:

    1 o aluno que se reprova a culpa recai no aluno, que desinteressado, ou nos pais

    que no do apoio aos seus filhos;

    2 normal a lgica da curva de Gauss. Em qualquer turma, sempre tem aqueles que

    esto muito acima da mdia, outros muito abaixo da mdia e outros tantos que

  • 22

    oscilam em torno da mdia. Isto leva o professor a se desinteressar por aqueles que

    esto bem abaixo da mdia e dar ateno total queles que esto bem acima da

    mdia. Qual o professor que no gosta de falar do e para o aluno nota 10?

    3 so contingncias individuais as caractersticas individuais so listadas para

    justificar a deficincia do aluno. Nem todos tm condies de acompanhar, pela

    histria de vida ou por falta de aptido.

    4- no gostaria, mas no tem outro jeito... o sistema culpabilizado por ter sempre

    sido assim. As condies de trabalho no ajudam a atender a todos. Ento fica a

    questo: e o aluno, que culpa tem disso?

    Entre uma justificativa e outra o aluno vai ficando para trs, no aprendendo e se

    tornando uma pessoa de baixa auto-estima, desacreditando em si mesmo, por que no

    acreditado pelo seu professor. importante ressaltar que em educao fundamental a crena

    do professor em sua capacidade de ensinar e na capacidade do aluno aprender, e a crena do

    aluno na sua capacidade de aprender e na capacidade de ensinar do professor

    (VASCONCELLOS, 1998, p. 130).

    Apesar de muitas vezes ter um discurso democrtico, o professor na prtica realiza

    aes que se distanciam da sua teoria. E aqui que est o cerne da questo inerente excluso

    escolar, por refletir a alienao do professor em relao s conseqncias das prticas avaliativas

    induzidas pelo sistema de ensino. Mesmo estando bem intencionado, os efeitos de suas aes so

    contrrios ao que ele defende sem se dar conta disso. No final, o aluno no preparado para a

    vida e sim impedido de avanar na vida.

    Para concluir a respeito da participao do professor no processo excludente que a

    escola implementa com as aes avaliativas distorcidas, tomamos as palavras de Vasconcellos

    (1998, p. 67): a manifestao da alienao do educador, portanto, se d em duas diferentes e

    complementares direes: no saber da repercusso do que faz, e no saber que tem foras para

    mudar.

    Em ltima anlise, precisamos entender que o processo que exclui no interior da escola

    tem uma lgica dissimulada. Conforme Freitas (1995) 7, se o aluno no privado de entrar no

    7 Segundo Freitas (1995, p. 239) eliminao e manuteno so conceitos contrapostos, que evidenciam possveis resultados de uma luta de contrrios no bojo da seleo que o sistema de ensino abriga a mando do sistema social. Para compreender a dialtica eliminao/manuteno, esse autor cria conceitualmente dois tipos de manuteno e dois tipos de eliminao: manuteno propriamente dita e eliminao adiada; e manuteno adiada e eliminao propriamente dita.

  • 23

    sistema de ensino (eliminao propriamente dita), ele pode ser levado a se auto-eliminar,

    evadindo do mesmo (manuteno adiada). Caso contrrio, ele pode ser mantido de duas

    maneiras: caso ele seja de uma classe dominante, ele orientado para profisses nobres

    (manuteno propriamente dita); se for das classes populares, a manuteno no passar de uma

    eliminao adiada, ou seja, se o aluno no reprova numa srie, reprova na srie seguinte ou ento

    orientado para uma profisso menos nobre quando no eliminado no exame que d

    prosseguimento aos estudos ou seleciona para ocupao no mercado de trabalho. Entendemos que

    na eliminao adiada que se observa um foco de resistncia ideologia dominante no interior

    da escola, pois, na tentativa de sobreviver ao sistema de classificao e reprovao, os alunos

    apelam para meios cooperativos, ou no, como a cola, apesar de proibidos, de se manter na

    escola, pois objetivam um futuro melhor por meio dela.

    No item a seguir, discutiremos como a eliminao/seleo se concretiza no final do

    ensino mdio, pela avaliao.

    1.4 O exame: a desiluso de uma carreira enganosa

    A proliferao dos exames e concursos em grande parte se deve s necessidades que as sociedades apresentam de distribuir os indivduos nas diferentes posies dos espaos sociais, mediante critrios pessoais, e de legitimar essa organizao e a ideologia correspondente, bem como os conhecimentos, os privilgios e o direito s prticas profissionais, atravs da outorga de diplomas e ttulos.

    Jos Dias Sobrinho

    Bourdieu e Passeron (1975) mostram, em sua obra A Reproduo, a forma dissimulada

    de como a eliminao se d no interior da escola, sendo o exame, no final da escolaridade, o

    atestado dessa eliminao. Fica claro que os insucessos escolares vo atingindo a auto-estima dos

    alunos que, diferenciadamente, segundo a resistncia e insistncia dos pais e alunos, vo sendo

    eliminados do sistema. Para alguns essa eliminao adiada, mas sem deixar muito horizonte ao

    aluno.

    A lgica do exame que se d de tempo em tempo, como temos no Brasil (Sistema de

    Avaliao do Ensino Bsico (SAEB), Sistema de Avaliao do Rendimento Escolar do Estado de

    So Paulo (SARESP), Exame Nacional do Ensino Mdio (ENEM), Exame Nacional de Curso

    (ENC/Provo)), ir filtrando, perfilando, classificando o aluno, orientando para nveis

  • 24

    profissionais diferenciados, segundo o resultado no mesmo, ou ento dissimulando a eliminao

    sem exame que vai ocorrendo no curso da escolaridade (BOURDIEU; PASSERON, 1975). Ele,

    assim, assume sua funo scio-mercadolgica.

    Na Frana, dezenove anos aps a Revoluo Francesa, em que proletrios ajudaram os

    burgueses a assumirem a administrao do Estado, este, a servio da classe que o instituiu,

    implantou um exame nacional chamado baccalaurat8 que passou a ter a incumbncia de

    certificar o ensino secundrio, orientar para estudos superiores ou eliminar ou estagnar

    socialmente de vez o aluno. At hoje ele aplicado no sistema francs de ensino.

    O ENEM, similar ao bac francs, tem se constitudo na porta para o sucesso profissional

    no mercado de trabalho. Para muitos, das escolas particulares, o seu resultado constituir um

    mrito, que se d em funo do elevado capital cultural (BOURDIEU; PASSERON, 1975) e,

    para outros, o fracasso e a eliminao final que estava adiada h muito tempo.

    Como seletivo social, o ENEM passa a ser uma credencial mercadolgica. A

    competitividade que existe na sociedade se reproduz no sistema de ensino global em que duas

    categorias de escolas (pblicas e particulares) competem de forma desigual, e a avaliao, como

    exame, mais uma vez reproduz a sociedade de classes.

    O concurso vestibular, como o ENEM, tambm se constitui como um seletivo dos mais

    injustos, e, nas escolas, as avaliaes vo se fazendo pensando que os alunos devero faz-lo. O

    ENEM, para ser legitimado, passa a fazer parte dos vestibulares de muitas universidades

    brasileiras, e o Estado, que o homologou, cumpre o seu papel de prover as necessidades de

    manuteno do poder da classe dominante.

    Os exames so sempre demarcadores de posies sociais e ao mesmo tempo

    possibilitadores de mobilizao social. S que, nesse caso, s alguns de uma classe dominada, em

    desproporo ao contingente dos que o procuram, alcanam sucesso. E esse sucesso devido

    mais ao esforo prprio do aluno do que s intervenes pedaggicas que o mesmo recebe na

    escola. Com base em sua suposta neutralidade, que se revela falsa, o exame legitima a ideologia

    dos dons (BOURDIEU; PASSERON, 1975).

    A Cartilha do ENEM (2003) explicita suas boas intenes:

    O Exame Nacional do Ensino Mdio (ENEM) permite aos estudantes, fazerem uma auto avaliao dos conhecimentos e das habilidades desenvolvidas ao longo da educao bsica, com a finalidade de saber como est sua formao para

    8 Tambm apelidado por bac.

  • 25

    integrar-se efetivamente sociedade. Alm disso, serve para orientar as escolhas futuras em relao continuidade dos estudos e participao no mercado de trabalho (INEP, 2003).

    Para quem este recado? Para estudantes das classes populares? Sim, se for no sentido

    de dizer para eles que eles so os responsveis por no terem se sado bem no exame. E no tendo

    condies de tomar as decises mais adequadas, pertinentes ao seu crescimento, restam a eles se

    resignarem e se integrarem no sistema produtivo que os espera.

    O Ministrio da Educao e Cultura (MEC) do Brasil se descompromete com os

    fracassos dos alunos, mas benevolamente oferece oportunidades para que os reprovados faam

    novamente o exame. Ou seja, o exame a chave para a ascenso profissional, integrao no

    mercado de trabalho ou eliminao definitiva deste; ou, com respeito continuidade aos estudos,

    o ENEM poder ser a porta de entrada de um curso superior, que atualmente est acontecendo de

    forma parcial em diversas universidades brasileiras.

    Considerando que a escola ideal deve, j que tem por objetivo, possibilitar a construo

    de uma sociedade justa em que os seus membros buscam naquela se apropriar de elementos

    educacionais que dizem respeito sua relao com o meio em que vivem, seja fsico ou social,

    defendemos que a avaliao seja um elemento que favorea um processo de ensino-aprendizagem

    em que os seus atores sejam transparentes em suas aes respeitando-se em suas

    individualidades, visando o crescimento coletivo.

    Assim, a avaliao ter por fim integrar o ensino e a aprendizagem, aluno e professor,

    aluno e aluno de forma que a relao escola-sociedade no seja dissimulada, evitando privilegiar

    uma minoria que determina posies e poder nas relaes sociais.

    A situao atual da avaliao na escola tem suas razes de ser no prprio processo

    histrico que a veio constituindo. Para que se possa aprofundar o processo avaliativo, mesmo que

    de uma nica escola, como no caso desta pesquisa, entendemos ser importante buscar seus

    caminhos na histria da avaliao na direo de uma avaliao emancipatria, bem como estudar

    os aspectos cognitivos e filosficos com a finalidade de optar por um modelo formativo de

    avaliar, que valorize o processo, a auto-regulao e a interao entre os alunos. do que

    trataremos no prximo captulo.

  • 26

  • 27

    CAPTULO II - TRAJETRIA DA AVALIAO: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS

    2.1 Uma incurso na histria da avaliao

    A Histria da avaliao escolar est necessariamente vinculada ao processo seletivo em

    benefcio de privilgios intrnsecos a uma sociedade de classe. Entretanto, teoricamente, o campo

    da avaliao evoluiu das tcnicas de medidas educacionais (que mais se prestaram e se prestam

    ao carter seletivo de uma sociedade de classes) aos processos emancipatrios que a avaliao

    escolar pode propiciar quando por ela se investe na aprendizagem do aluno.

    Faremos nesse item uma incurso na Histria do campo da avaliao para assumirmos

    uma modalidade de avaliao mais preocupada com o processo, tendo em vista que o nosso foco

    o desenvolvimento de pessoas que podem contribuir para o seu prprio desenvolvimento e o da

    sua sociedade.

    Teoricamente, Sousa (1998) situa a rea de avaliao como um campo de conhecimento

    relativamente novo, mas que se desenvolveu mais intensamente na dcada de 90 do sculo

    passado. Perodo esse que, segundo Rosales (1992)9, citado por ela, se constituiu como a

    maturidade desse campo de conhecimento.

    Com relao avaliao da aprendizagem, inicialmente, nos EUA, os estudos foram

    voltados medida de quanto o aprendiz mudava seu comportamento. Esses estudos eram de

    responsabilidade da psicometria, que teve como precursores Robert Thorndike e Robert L. Ebel

    (SOUSA, 1997; VIANNA, 1989), cujos trabalhos influenciaram os norte-americanos a

    construrem os testes padronizados para mensurar as habilidades e aptides dos alunos, nas duas

    primeiras dcadas do sc. XX. Este movimento foi ampliado na dcada de 30 do mesmo sculo

    (SOUSA, 1997), com destaque para o trabalho Estudo de Oito anos de Tyler e Smith, que

    propuseram uma diversidade de instrumentos de medida tendo em vista preciso das

    informaes da avaliao. A partir desse trabalho, Tyler deu incio a um movimento de

    constituio da avaliao como atividade cientifica, cujo marco maior foi a publicao do seu

    artigo General Statement on evaluation, em 1942 (VIANNA, 1989), e consolidado pelo livro

    9 ROSALES, C. Avaliar refletir sobre o ensino. Rio Tinto: ASA, 1992.

  • 28

    Basic principles of curriculum an instruction em 1949 (SOUSA, 1998). Outros estudiosos10, que

    se dividiram entre a avaliao de currculo e avaliao de aprendizagem, nas dcadas de 60 e 70

    seguintes, tomaram as idias de Tyler como referncia, e as ampliaram sem modificar suas

    estruturas e pressupostos bsicos (SOUSA, 1998, p. 162).

    Preocupado com o quanto a escola cumpria seu papel, Tyler idealizou que deveriam ser

    levantadas informaes detalhadas da instituio que dessem aos decisores da mesma, condies

    de aprimorar o programa instrucional, reformulando-o naquilo em que fosse deficiente ou

    inoperante (VIANNA, 1989, p. 29). Com Tyler, nasceu a concepo de avaliao por objetivo,

    que deveria ser vista como um processo de verificao de quanto os objetivos educacionais

    estavam sendo alcanados pelo programa de ensino, seu alvo bsico de investigao. Esses

    objetivos educacionais se referiam ao que se podia observar segundo uma linha positivista de

    pesquisa, ou seja, os comportamentos se traduziriam em objetivos educacionais.

    Desse modo, a quantificao foi muito relevante no modelo de Tyler com nfase nos

    objetivos a serem atingidos, e tinha como finalidade conhecer o quanto o currculo da escola se

    aproximava da realidade em que estava inserida, informar os atores do sistema educativo se os

    objetivos educacionais estavam sendo atingidos, sendo que para isso deveriam ser levantados

    diversos tipos de instrumentos para coletar as informaes precisas, diferenciando do modelo

    simplificado em testes padronizados, conforme os psicometristas. Alm disso, Tyler previa mais

    de um julgamento para registrar a ocorrncia de mudanas (DEPRESBITERIS, 1989), ou seja,

    uma avaliao educacional envolve pelo menos duas apreciaes [...] para que a mudana seja

    medida (TYLER, 196911 apud SOUSA, 1997, p. 32), como tambm envolve a participao de

    todos envolvidos no processo educacional (VIANNA, 1989).

    A avaliao por objetivos influenciou sobremaneira a prtica escolar, que passou a

    definir como competente aquele professor que sabia delimitar bem os objetivos instrucionais que

    deveriam ser alcanados. Ou seja, a partir de uma tica positivista, o critrio de competncia do

    professor deslocou-se do saber fazer no concreto para o saber planejar o que fazer no papel

    (FRANCO, 1997, p. 19). Quanto diversidade de instrumentos avaliativos, isto ficou em

    suspenso, pois a prova sempre se caracterizou como instrumento nico, sendo que s

    10Lee, J. CRONBACH, D. STUFFLEBEAM, Michael SCRIVEN e Robert E. STAKE, Benjamin S. BLOOM,

    GAGN, R. F. MAGER, James W. POPHAM, R. S. FLEMING, David P. AUSUBEL, Hilda TABA, PARLET & MCDONALD, entre outros.

    11TYLER, R. W. Educational evaluation: new roles, new mains. Chicago: Hernan G. Richey, 1969.

  • 29

    recentemente tem se observado uma pequena mudana, e de forma isolada, mais com intuito de

    ajudar na nota do que colher informaes para apreciar mudanas na qualidade do aprendizado,

    pois o trabalho proposto quando o aluno, depois das provas realizadas, no apresenta nota

    suficiente para ser promovido para a srie seguinte, ou para se livrar de uma recuperao. Esta

    prtica muito comum nas escolas e na universidade, situao em que o prprio aluno, quando se

    sai mal numa prova, pede que o professor passe um trabalho. s vezes proposto pelo professor,

    j pensando que s pela prova tem-se certeza que os alunos no vo conseguir a aprovao direta.

    O trabalho deve, sim, ser proposto se, como objeto de observao, integrar um conjunto de

    instrumentos de avaliao. Se servir de negociao, melhor no propor.

    Outro autor que serviu de base constituio do campo cientfico da avaliao foi Lee J.

    Cronbach que, segundo Vianna (1989, p. 29), discutiu a avaliao em seu artigo Evaluation for

    course improvement (1963), considerando quatro pontos:

    a) associao entre a avaliao e o processo de tomada de deciso; b) os diferentes papis da avaliao educacional; c) o desempenho do estudante como critrio de avaliao de cursos; e

    finalmente, d) (...) algumas tcnicas de medida disposio do avaliador educacional.

    Esses pontos de anlise esto hoje sendo bastante explorados nos debates relativos ao

    tema avaliao, exatamente porque o item c) tem sido uma prtica governamental de avaliar os

    cursos superiores de graduao, sem, entretanto, usar os resultados obtidos com a finalidade de

    contemplar o item a). Quer dizer, os planejadores e executores de polticas pblicas se prendem a

    detalhes de uma idia global de avaliao, como a desse autor, para justificar suas prticas de

    controle e conteno dos gastos pblicos com a educao. A deliberao governamental se

    contrape ao pensamento de Cronbach, pois, segundo Vianna (1989, p. 34-35), para ele, o

    desempenho em provas ou testes no deve ser elemento nico de avaliao de um curso,

    relevando assim o estudo dos processos em sala de aula, alm de considerar que

    quando a avaliao visa ao aprimoramento de curso, seu principal objetivo verificar quais os efeitos do curso, ou seja, quais as mudanas que produz no estudante. [...] a avaliao presta um grande servio quando identifica os aspectos dos cursos que necessitam de reviso. [...] a comparao de cursos no deve ser objetivo da avaliao.

    Por outro lado, a discusso tambm alimentada em funo de no se ter em conta, na

    prtica escolar, ainda o item a), ou seja, o professo