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19 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 19, MAIO 2004 A Bioquímica como ferramenta interdisciplinar A apresentação dos conteúdos relacionados às Ciências Naturais durante o Ensino Médio ocorre de maneira fragmen- tada, provocando o fracionamento do conhecimento em disciplinas isola- das. A configuração e o âmbito des- sas disciplinas são freqüentemente estabelecidos pelos livros didáticos, que delimitam os conteúdos e a seqüência dos tópicos (Krasilchik, 1998). Nesse contexto, a discussão de temas complexos, como as ques- tões ambientais e os problemas de saúde, fica prejudicada devido à necessidade de combinar conheci- mentos de diferentes disciplinas (Mo- rin, 2002). A adoção de uma abordagem interdisciplinar no Ensino Médio é uma das indicações dos documentos oficiais (Brasil, 1999) e pode ser con- siderada uma das maneiras de superar a fragmentação do conheci- mento (Schinitman, 1987; Morin, 2002). Além de evitar uma visão redu- cionista da Ciência, as intervenções interdisciplinares permitem utilizar as- suntos mais interessantes para con- textualizar as aulas (Lima et al., 2000), favorecem a integração de conteúdos Paulo R.M. Correia, Melissa Dazzani, Maria Eunice R. Marcondes e Bayardo B. Torres A abordagem interdisciplinar dos temas das Ciências Naturais favorece a integração de conteúdos, evita a visão fragmentada do conhecimento e expõe os alunos à complexidade do processo de geração do conhecimento. Nesse contexto, a Bioquímica foi explorada como ferramenta interdisciplinar utilizando as proteínas e sua ação enzimática como tema cen- tral. As atividades foram divididas em três momentos distintos: 1) realização de experimentos para gerar resultados a serem interpretados; 2) introdução de subsídios teóricos a partir de textos e questionários; e 3) teatralização da síntese de proteínas com a participação de todos os alunos. A intervenção interdisciplinar proposta permitiu a discussão de conceitos bioquímicos, favorecendo a integração de conteúdos da Biologia e da Química. interdisciplinaridade, Bioquímica, proteínas, Biologia Recebido em 24/2/03; aceito em 16/12/03 e expõem os alunos à complexidade do processo de geração do conheci- mento (Nolasco, 2002). A combina- ção dessas vantagens pode tornar mais significativa a aprendizagem dos conceitos científicos. Os conteúdos discutidos nas au- las de Química permitem uma grande quantidade de interações com as outras disciplinas do Ensino Médio. Algumas discussões interdiscipli- nares podem ser promovidas a partir de temas de grande relevância, tais como as questões ambientais e os problemas relacionados com a saúde (Figura 1). A interação mais explorada ao lon- go do Ensino Médio tem ocorrido en- tre a Química e a Física. A valorização da Físico-Química pode ser observa- da na organização da maioria dos livros didáticos, que dedicam mais de 30% dos seus conteúdos às intera- ções entre a Química e a Física (Fel- tre, 2000; Peruzzo e Canto, 1999). A Bioquímica é um outro nicho Figura 1: Algumas interações interdisciplinares que podem ser estabelecidas no Ensino Médio a partir da Química.

A Bioquímica como Ferramenta Interdisciplinar: Vencendo o Desafio

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 19, MAIO 2004A Bioquímica como ferramenta interdisciplinar

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A apresentação dos conteúdosrelacionados às CiênciasNaturais durante o Ensino

Médio ocorre de maneira fragmen-tada, provocando o fracionamento doconhecimento em disciplinas isola-das. A configuração e o âmbito des-sas disciplinas são freqüentementeestabelecidos pelos livros didáticos,que delimitam os conteúdos e aseqüência dos tópicos (Krasilchik,1998). Nesse contexto, a discussãode temas complexos, como as ques-tões ambientais e os problemas desaúde, fica prejudicada devido ànecessidade de combinar conheci-mentos de diferentes disciplinas (Mo-rin, 2002).

A adoção de uma abordageminterdisciplinar no Ensino Médio éuma das indicações dos documentosoficiais (Brasil, 1999) e pode ser con-siderada uma das maneiras desuperar a fragmentação do conheci-mento (Schinitman, 1987; Morin,2002). Além de evitar uma visão redu-cionista da Ciência, as intervençõesinterdisciplinares permitem utilizar as-suntos mais interessantes para con-textualizar as aulas (Lima et al., 2000),favorecem a integração de conteúdos

Paulo R.M. Correia, Melissa Dazzani, Maria Eunice R. Marcondes e Bayardo B. Torres

A abordagem interdisciplinar dos temas das Ciências Naturais favorece a integração de conteúdos, evita a visãofragmentada do conhecimento e expõe os alunos à complexidade do processo de geração do conhecimento. Nesse contexto,a Bioquímica foi explorada como ferramenta interdisciplinar utilizando as proteínas e sua ação enzimática como tema cen-tral. As atividades foram divididas em três momentos distintos: 1) realização de experimentos para gerar resultados a sereminterpretados; 2) introdução de subsídios teóricos a partir de textos e questionários; e 3) teatralização da síntese de proteínascom a participação de todos os alunos. A intervenção interdisciplinar proposta permitiu a discussão de conceitos bioquímicos,favorecendo a integração de conteúdos da Biologia e da Química.

interdisciplinaridade, Bioquímica, proteínas, Biologia

Recebido em 24/2/03; aceito em 16/12/03

e expõem os alunos à complexidadedo processo de geração do conheci-mento (Nolasco, 2002). A combina-ção dessas vantagens pode tornarmais significativa a aprendizagemdos conceitos científicos.

Os conteúdos discutidos nas au-las de Química permitem uma grandequantidade de interações com asoutras disciplinas do Ensino Médio.Algumas discussões interdiscipli-nares podem ser promovidas a partirde temas de grande relevância, tais

como as questões ambientais e osproblemas relacionados com a saúde(Figura 1).

A interação mais explorada ao lon-go do Ensino Médio tem ocorrido en-tre a Química e a Física. A valorizaçãoda Físico-Química pode ser observa-da na organização da maioria doslivros didáticos, que dedicam mais de30% dos seus conteúdos às intera-ções entre a Química e a Física (Fel-tre, 2000; Peruzzo e Canto, 1999).

A Bioquímica é um outro nicho

Figura 1: Algumas interações interdisciplinares que podem ser estabelecidas no EnsinoMédio a partir da Química.

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 19, MAIO 2004A Bioquímica como ferramenta interdisciplinar

interdisciplinar explícito que pode serestabelecido entre a Química e aBiologia. Apesar disso, as discussõesbioquímicas ocorrem superficial-mente no Ensino Médio, devido à faltade material didático que explore ade-quadamente essa interação. Concei-tos como proteínase sua ação enzimá-tica são apresenta-dos em momentosdiferentes do Ensi-no Médio, duranteas aulas de Quími-ca e Biologia. Alémdisso, as discus-sões ressaltam so-mente os aspectos químicos ou bio-lógicos, impedindo uma abordageminterdisciplinar que o enfoque bio-químico pode propiciar.

Assim, uma intervenção interdisci-plinar explorando as proteínas comocatalisadores foi planejada, aplicadae avaliada. A elaboração das ativi-dades considerou a necessidade deabordar, sob o ponto de vista químico,alguns processos tratados no EnsinoMédio exclusivamente sob o enfoquebiológico.

ProcedimentosDurante um dia (8 horas) de ativi-

dades extraclasse, 20 alunos volun-tários da 3a série do Ensino Médio doColégio Objetivo localizado em Suza-no - SP foram submetidos à interven-ção interdisciplinar. Um roteiro, con-tendo a descrição das atividades pro-gramadas e as informações teóricasnecessárias para as discussões, foipreviamente elaborado e distribuídoaos alunos.

As estratégias didáticas aplicadaspermitiram dividir as atividades emtrês momentos diferentes: 1) realiza-ção de experimentos, 2) leitura de tex-tos com resolução de listas de exer-cícios e 3) teatralização da síntese deproteínas.

A experimentação foi utilizadapara gerar resultados a serem inter-pretados e discutidos ao longo do dia.A rapidez de três transformaçõesquímicas foi avaliada na presença demateriais ricos em proteínas: salivahumana (α-amilase), extrato de batata

(catalase), extrato de abacaxi (pro-teases) e clara de ovo (albumina).Esses materiais foram adicionados atubos de ensaio contendo os subs-tratos a serem degradados: soluçãode amido (Maizena®), água oxige-nada ou folhas de gelatina colorida.

A observação vi-sual dos tubos de en-saio permitiu avaliarem qual situação arapidez das transfor-mações químicas éaumentada: a soluçãoesbranquiçada deamido torna-se prati-camente incolor na

presença de α-amilase; a liberaçãode gás oxigênio é intensificada du-rante o processo de decomposiçãoda água oxigenada com catalase; ocorante da folha de gelatina é pro-gressivamente transferido para a solu-ção com a degradação da proteínapelas proteases. Para facilitar a com-paração visual, foi utilizado um tubode ensaio de referên-cia, contendo so-mente o substratoque estava sendotestado. Uma tabelacom os resultadosexperimentais obti-dos pelos grupos dealunos foi organizadapara facilitar a interpretação dos fa-tos observados. A discussão arespeito da ação catalisadora dasproteínas foi iniciada visando buscarexplicações para os resultados dosexperimentos.

A introdução de subsídios teóricosfoi feita por meio de textos e de umroteiro de questões, que foram res-pondidas pelos alunos divididos em

pequenos grupos. Os conceitos quí-micos e biológicos necessários paraa compreensão dos experimentosforam abordados na seqüência indi-cada na Tabela 1. Desta maneira, osconhecimentos disciplinares foramprogressivamente integrados e osfatos observados nos experimentosforam interpretados sob o ponto devista bioquímico.

A síntese de proteínas foi discutidano final do dia para reforçar e sedi-mentar os novos conhecimentosbioquímicos. A teatralização permitiuaos alunos representarem macrosco-picamente fenômenos dinâmicos queenvolvem a participação de várioscomponentes celulares, como DNA,RNA e ribossomo (Amabis, 2001). Asíntese de proteínas foi entendidacomo um processo organizado, queimplica na ocorrência ordenada devárias reações químicas aceleradaspor enzimas.

A avaliação dessa intervençãointerdisciplinar foi realizada por meio

de três questionáriose dos depoimentosespontâneos dosalunos. Os questio-nários foram aplica-dos em três momen-tos distintos: 1) se-manas antes daaula, para verificar as

concepções prévias dos alunos efornecer subsídios para elaborar omaterial a ser utilizado; 2) imediata-mente após a aula, para avaliar o graude integração dos conhecimentosdisciplinares e a formação de con-ceitos bioquímicos; e 3) dois mesesapós a aula, para verificar quanto aaprendizagem foi significativa eestável.

Tabela 1: Conceitos teóricos discutidos no texto fornecido aos alunos.Contextualização

O que afeta a rapidez de uma rea-ção química?

Do que são formadas as enzimas?

Por que a forma é algo tão impor-tante?

Como as células sintetizam asproteínas?

Tópicos disciplinares abordados

Cinética química, catalisador, enzimase modelo chave-fechadura

Polímeros, aminoácidos, aminas, ácidocarboxílico e ligação peptídica

Isomeria óptica, forças intermolecula-res e desnaturação

Síntese de proteínas, DNA, RNA, có-dons, ribossomos e integração celular

Parte

I

II

III

IV

As discussões bioquímicasocorrem superficialmenteno Ensino Médio, devido àfalta de material didático

que exploreadequadamente essa

interação

Uma teatralização permitiuaos alunos representarem

macroscopicamentefenômenos dinâmicos que

envolvem a participação devários componentes

celulares, como DNA, RNAe ribossomo

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 19, MAIO 2004A Bioquímica como ferramenta interdisciplinar

Discussão das atividadesdesenvolvidas

A elaboração das atividades privi-legiou estratégias didáticas poucofreqüentes para os alunos que parti-ciparam dessa intervenção interdisci-plinar. As aulas oferecidas regular-mente são expositivas e as atividadesexperimentais ocorrem esporadica-mente ao longo dos três anos do En-sino Médio. O material apostilado,que substitui os livros didáticos, difi-culta a integração dos conteúdos dasdisciplinas e determina a seqüênciados assuntos. Verifica-se uma grandevalorização do exa-me vestibular, quepode ser constatadapela realização pe-riódica de provasque simulam as con-dições daquele exa-me. Dentro dessecontexto, os papéistradicionais a seremdesempenhados pe-los professores ealunos estão bemdefinidos: o corpodocente deve trans-mitir os conhecimen-tos específicos de sua disciplina atra-vés de aulas expositivas; aos alunoscabe comparecer às aulas e receberas informações.

O experimento proposto para ini-ciar as atividades teve o objetivo deexpor os alunos ao caráter empíricoda ciência. Além de mudar o ambien-te usualmente encontrado na sala deaula, foi possível utilizar equipamen-tos básicos de laboratório e discutircomo se planeja um experimento. Asinformações obtidas no laboratórioserviram como ponto de partida paraas discussões que ocorreram aolongo do dia. Desta forma, valorizou-se o trabalho realizado pelos alunosno laboratório e utilizou-se a experi-mentação para gerar questiona-mentos. Ao final dessa atividade, osalunos mostraram-se motivados parainiciar a busca por informações atra-vés da leitura do texto.

Os subsídios teóricos fornecidosno texto foram interpretados e discu-

tidos pelos alunosem pequenos gru-pos. Várias ques-tões interrompiama seqüência dotexto, evitando que a atividade se tor-nasse monótona e auxiliando a fixa-ção dos conceitos mais relevantes.Nessa situação, os alunos foram maisparticipativos e o grau de envolvimen-to com as tarefas propostas foi eleva-do. A troca de informações entre osalunos pôde ocorrer intensamente du-rante as discussões, permitindo queeles se auxiliassem no processo de

entendimento dosnovos conceitos. Es-se trabalho em con-junto, que ocorreudurante toda a leiturado texto, favoreceu aaprendizagem cola-borativa. O papel doprofessor consistiuem coordenar os vá-rios grupos de dis-cussão e, periodica-mente, verificar se to-dos os alunos ha-viam compreendidoas informações for-

necidas no texto. Rápidas checagensdas respostas dos alunos às ques-tões permitiram ao professor avaliaro andamento dos grupos.

A utilização de um modelo visualmacroscópico para representar a es-trutura de uma proteína foi necessáriapara elucidar fenômenos molecularescomo a desnaturação. As interaçõesintramoleculares, responsáveis pelamanutenção da estrutura espacial daproteína, foram representadas comauxílio de clipes coloridos e massa demodelar. Cada grupo recebeu umpapel indicando a seqüência de dezaminoácidos que deveriam ser liga-dos, bem como a correspondênciaentre os aminoácidos e cada uma dascores dos clipes. Cada grupo cons-truiu uma seqüência de dez clipesunidos representando a estrutura pri-mária da proteína (Figura 2). Poste-riormente, alertou-se os estudantespara o fato de alguns aminoácidosapresentarem grupos –OH, permitin-

do o estabelecimento de interaçõespor ligações de hidrogênio. Cada gru-po avaliou a estrutura molecular dosaminoácidos utilizados e os clipesque representavam aminoácidos comgrupos –OH foram unidos por meiode massa de modelar (Figura 3). Essanova representação permitiu eviden-ciar a relação entre a seqüência deaminoácidos, a estrutura espacial ea ação biológica das proteínas basea-da no modelo chave-fechadura.

A desnaturação por aquecimentoou por mudança de solvente foi dis-cutida a partir de demonstrações utili-zando clara de ovo tratada com álcoolou com aquecimento. A mudança decor observada foi relacionada comuma alteração da estrutura espacialda proteína (rompimento de ligaçõesintramoleculares), apesar da seqüên-cia de aminoácidos não ter sido alte-rada (manutenção das ligações peptí-dicas, que são covalentes). A desna-turação dos modelos construídos pe-los alunos foi simulada removendo-se a massa de modelar, o que des-truiu a forma espacial da proteínaobtida.

A teatralização foi uma maneira derepresentar fenômenos molecularese dinâmicos, com a participação ativados alunos. A parte final do texto for-necido descrevia sucintamente oseventos celulares que ocorrem duran-te a síntese de proteínas. Tomandopor base esse texto, a tarefa solicitada

Figura 3: Representação de uma das liga-ções intramoleculares responsáveis pelaforma espacial da proteína, utilizandomassa de modelar.

Figura 2: Estrutura primária de uma proteína, com cada clipecolorido representando um aminoácido.

A teatralização foi umamaneira de representar

fenômenos moleculares edinâmicos, com a

participação ativa dosalunos. A parte final do

texto fornecido descreviasucintamente os eventoscelulares que ocorremdurante a síntese de

proteínas. Tomando porbase esse texto, a tarefasolicitada aos alunos foirepresentar o processo

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 19, MAIO 2004A Bioquímica como ferramenta interdisciplinar

aos alunos foi representar o processo.Os grupos de alunos destacaram aspalavras desconhecidas, buscaramcompreender seus significados e or-denaram a participação dos princi-pais componentes envolvidos na sín-tese de proteínas. Este estudo prepa-rou-os para a teatralização solicitada.A mudança da linguagem verbal paraa linguagem gestual (corporal), ne-cessária para a teatralização, é um re-curso instrucional poderoso: paraconseguir a transposição, é obriga-tória a compreensão do fenômeno aser representado.

Cada aluno representou um doscomponentes celulares importantespara a síntese do glucagon, uma dasproteínas que controlam a concentra-ção de glicose no sangue. Além depermitir a discussão dos conceitosbioquímicos previamente abordados,os alunos compreenderam a impor-tância da ordenação dos eventos ce-lulares necessários para a síntese deproteínas. A célula passou a ser vistacomo um sistema muito bem orga-nizado, onde cada estrutura desem-penha uma função específica.

Avaliação dos questionáriosA comparação das respostas aos

questionários aplicados antes e apósa intervenção interdisciplinar permitiuverificar que os alunos estabeleceramnovas relações entre os conhecimen-tos da Química e da Biologia. Os con-ceitos abordados em cada questio-nário estão indicados na Tabela 2.

A análise das respostas ao ques-tionário inicial permitiu constatar queos principais conceitos a serem dis-cutidos não eram desconhecidos. Poroutro lado, as respostas indicaramque a memorização de definições en-contradas nos livros didáticos predo-minava sobre o entendimento con-ceitual.

Os alunos relacionaram freqüente-mente o papel das enzimas com oprocesso digestivo, talvez porque aptialina e a pepsina são exemploscomumente apresentados nos livrosdidáticos. A definição de enzimasfornecida pelos alunos [“... catalisame aceleram as reações dentro doorganismo (sic)]” e “... participam da

digestão, quebrando as moléculasmaiores para facilitar a absorção...”)reforçaram esse fato. A falta de inte-ração dos conhecimentos discipli-nares da Química e da Biologia éoutra característica marcante. Assim,a macromolécula “proteína” apresen-tada pela Química tem pouca relaçãocom a “proteína” apresentada nasaulas de Biologia.

As respostas for-muladas pelos alu-nos após a atividadeindicaram um au-mento da integraçãodos conteúdos disci-plinares. A especifici-dade das enzimas ea desnaturação dasproteínas foram com-preendidas a partir daestrutura molecular. A classificação daafirmação “Se a seqüência de ami-noácidos estiver correta, a proteínaresultante certamente irá desem-penhar suas funções corretamente”em verdadeiro ou falso indicou queos alunos passaram a entender asproteínas presentes nos organismosvivos como moléculas que possuemformas (“... se a forma, a estrutura damolécula for alterada, não haverá co-

Tabela 2: Aspectos avaliados em função do momento de aplicação dos questionários.

Momento da aplicação

Antes da atividade proposta

Logo após a atividade proposta

Dois meses após a atividade pro-posta

Aspectos avaliados

• Conceitos prévios sobre cinética química,funções orgânicas, reação de neutraliza-ção, proteínas, enzimas, DNA e ribossomo

• Elaboração de conceitos bioquímicosreferentes a proteínas

• Visão sistêmica dos processos celulares

• Consolidação dos novos conhecimentosbioquímicos, reavaliando os tópicos maisrelevantes sobre proteínas e suas funções

I

II

III

mo esta desempenhar suas funçõescorretamente...”). Assim, o enfoquebioquímico das atividades permitiuintegrar os conceitos de proteínaapresentados isoladamente nas aulasde Química e Biologia.

A teatralização da síntese de pro-teínas auxiliou o desenvolvimento deuma visão sistêmica dos processos

celulares. A funçãobioquímica desem-penhada por diver-sos componentescelulares (DNA,RNA, ribossomoetc.) foi assimilada.A molécula de DNA,freqüentemente ex-posta na mídia, ga-nhou ainda mais sig-nificado para os alu-

nos: ao interpretarem um quadrinho(Figura 4), o DNA foi entendido como“...guardião das características funda-mentais...” e “...livro de receitas quecontém a seqüência correta para ca-da proteína...”.

O questionário aplicado após doismeses permitiu constatar que os con-ceitos bioquímicos abordados duran-te a atividade proposta foram assimi-lados de maneira significativa. A im-

Figura 4: Quadrinho interpretado pelos alunos após a aplicação das atividades interdis-ciplinares.

A comparação dasrespostas aos questionários

aplicados antes e após aintervenção interdisciplinar

permitiu verificar que osalunos estabeleceram

novas relações entre osconhecimentos da Química

e da Biologia

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 19, MAIO 2004A Química na formação escolar

Referências bibliográficasAMABIS, J.M. Conceitos de biologia:

objetivos de ensino, mapeamento deconceitos, sugestões de atividades –Guia de apoio didático. São Paulo: Mo-derna, 2001. p. 192-196.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Na-cionais de Ensino Médio. Parte III: Ciên-cias da Natureza, Matemática e suastecnologias, 1999.

FELTRE, R. Química. 5ª ed. São Paulo:Moderna, 2000. v. 2.

KRASILCHIK, M. Interdisciplinaridade:problemas e perspectivas. Revista daUSP, n. 39, p. 38-43, 1998.

LIMA, J.F.L.; PINA, M.S.L.; BARBOSA,R.M.N. e JÓFOLI, Z.M.S. A contextuali-zação no ensino de cinética química.Química Nova na Escola, n. 11, p. 27-29, 2000.

MORIN, E. Os sete saberes necessá-rios à educação do futuro. 5ª ed. Trad.C.E.F. Silva e J. Sawaya. São Paulo: Cor-tez, 2002. p 35-46.

NOLASCO, S.M. Actividades interdis-ciplinarias. Química Nova, v. 25, p. 502-504, 2002.

PERUZZO, F.M. e CANTO, E.L. Químicana abordagem do cotidiano. 2ª ed. SãoPaulo: Moderna, 1999. v. 2.

SCHINITMAN, N.I. (Ed.). Manual demetodologia de la enseñanza de la Quí-mica. Córdoba: Ed. Gonzales Truccone,1987. p. I.1-I.27.

Para saber mais

COELHO, F.A.S. Fármacos e quiralida-de. Em: Torres, B.B. e Barreiro, E.J. (Eds.).Cadernos Temáticos de Química Nova naEscola (Química de Fármacos), n. 3, p.23-32, 2001.

FRAGA, C.A.M. Razões da atividadebiológica: interações micro- e biomacro-moléculas. Em: Torres, B.B. e Barreiro, E.J.(Eds.). Cadernos Temáticos de QuímicaNova na Escola (Química de Fármacos),n. 3, p. 33-42, 2001.

ROCHA, W.R. Interações intermolecu-lares. Em: Amaral, L.O.F. e Almeida, W.B.de (Eds.). Cadernos Temáticos de Quí-mica Nova na Escola (Estrutura da Ma-téria: Uma Visão Molecular), n. 4, p. 31-36, 2001.

MARZZOCCO, A. e TORRES, B.B. Bio-

química básica. 2ª ed. Rio de Janeiro:Guanabara Koogan, 1999. p. 270-274.

SNYDER, C. H. The extraordinary che-mistry of ordinary things. 3ª ed. Nova Ior-que: John Wiley & Sons, 1998. p. 455-490.

Na InternetO roteiro de atividades elaborado para

desenvolver as atividades está disponí-vel no seguinte sítio: http://sbbq.iq.usp.br/revista/mtdidaticos.php.

Alguns projetos dedicados à discus-são de temas bioquímicos no EnsinoMédio, desenvolvidos pelo Laboratóriode Ensino a Distância do Instituto de Bio-logia da Unicamp, podem ser encon-trados no seguinte sítio: http://ensino.ibi.unicamp.br/.

Recurso multimídiaUm CD contendo programas edu-

cativos visando o ensino de Bioquí-mica e que trata de cinética enzimá-tica pode complementar algumasdiscussões: GALEMBECK, E.; TOR-RES, B.B. Bioquímica: softwares edu-cacionais, 1999.

Abstract: Biochemistry as an Interdisciplinary Tool: Meeting the Challenge of Content Integration in High School – The interdisciplinary approach to Natural Sciences’ themes enhances contentintegration, avoids the compartmentalized perception of knowledge and exposes the students to the complexity of the knowledge generation process. In this context, Biochemistry was explored asan interdisciplinary tool, using proteins and their enzymatic action as a central theme. The activities were divided into three different stages: 1) doing experiments to generate results to be interpreted;2) theoretical information supplied through texts and questionnaires; 3) theatrical role-playing of the protein synthesis process with the participation of all the students. This interdisciplinary interven-tion allowed the discussion of biochemical concepts, facilitating the integration of biological and chemical contents.Keywords: Interdisciplinarity, biochemistry, proteins, biology

portância da seqüência de aminoá-cidos e das ligações intramolecularespara garantir a forma espacial da pro-teína, o modelo chave-fechadura e oprocesso de desnaturação foramadequadamente discutidos pelosalunos. A síntese de proteínas foi reto-mada através da comparação entredois segmentos de DNA, diferindoapenas por uma base nitrogenada.Os alunos conseguiram relacionar es-sa diferença com uma provável alte-ração estrutural da proteína, compro-metendo seu funcionamento.

ConclusõesA intervenção interdisciplinar de-

senvolvida permitiu aumentar a inte-gração dos conteúdos da Química eda Biologia. A introdução de concei-tos bioquímicos facilitou a compreen-são de processos celulares comple-xos como a catálise biológica e a sín-

tese de proteínas. As estratégias di-dáticas utilizadas (experimentação ediscussão em pequenos grupos) exi-giram uma postura ativa dos alunos,diferente da passividade das aulas ex-positivas regularmente freqüentadaspor eles. Mesmo com as 8 horas deduração da atividade, todos os alunospermaneceram até o final e mostra-ram um elevado envolvimento com to-das as atividades desenvolvidas. Avalidade da aplicação dessa propostaficou evidenciada nas declaraçõesespontâneas dos alunos, que classi-ficaram a intervenção interdisciplinarcomo “... uma maneira dinâmica deaprender, a partir do meu próprio ra-ciocínio...”.

NotaEste trabalho foi apresentado no

XI Encontro Nacional de Ensino deQuímica, em Recife - PE.

AgradecimentosOs autores agradecem a Juliana

Naozuka pela leitura crítica do texto eao Colégio Objetivo (Suzano - SP) porpermitir o desenvolvimento das ativida-des com seus alunos. P.R.M. Correiaagradece à FAPESP pela bolsa con-cedida (processo 01/02590-2).

Paulo R.M. Correia ([email protected]), licenciado ebacharel em Química e mestre em QuímicaAnalítica pela Universidade de São Paulo (USP), édoutorando na área de Química Analítica noInstituto de Química da USP (IQ-USP). MelissaDazzani (melissa_daz@ hotmail.com), licenciadae bacharel em Química pela USP e mestranda naárea de Ensino de Ciências na USP, é professorade Química no Colégio Integrado Objetivo, em SãoPaulo - SP. Maria Eunice R. Marcondes ([email protected]), licenciada e bacharel em Química edoutora em Química Orgânica pela USP, é docentedo Departamento de Química Fundamental do IQ-USP. Bayardo B. Torres ([email protected]),licenciado e bacharel em Biologia e doutor emBioquímica pela USP, é docente do Departamentode Bioquímica do IQ-USP.