A carta de Clemente aos Coríntios: Evidência do primado do bispo de Roma?

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  • 8/6/2019 A carta de Clemente aos Corntios: Evidncia do primado do bispo de Roma?

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    A carta de Clemente aos Corntios: Evidncia doprimado do bispo de Roma?

    Argumento catlico:

    Pelos anos 90 do primeiro sculo da nossa era, quando aindavivia o apstolo Joo, surgiu um problema interno de nopequena importncia na igreja de Corinto. de supor que olgico teria sido que uma vez que ainda viva um dosapstolos, coubesse a este impor a sua autoridade parasolucionar a questo. Mas no foi assim. Quem se encarregoude acabar com o desaguisado foi nem mais nem menos que obispo de Roma.

    Se com isto se pretende insinuar que um bispo, por mais "sucessorde Pedro" que se o queira considerar, podia ter uma autoridadesuperior dos prprios Apstolos, o mesmssimo Clemente seencarrega de contradizer tal coisa:

    Os Apstolos nos pregaram o Evangelho da parte do Senhor JesusCristo; Jesus Cristo foi enviado de Deus. Em resumo, Cristo da partede Deus, e os Apstolos da parte de Cristo: uma e outra coisa, porisso, sucederam ordenadamente por vontade de Deus. Assim, pois,

    tendo os Apstolos recebido os mandatos e plenamente asseguradospela ressurreio do Senhor Jesus Cristo e confirmados na f pela palavra de Deus, saram, cheios da certeza que lhes infundiu oEsprito Santo, a dar a alegre notcia de que o reino de Deus estavapara chegar. E assim, segundo apregoavam por lugares e cidades aboa nova e baptizavam os que obedeciam ao desgnio de Deus, iamestabelecendo os que eram primcias deles depois de prov-los peloesprito - por inspectores (episkopous) e ministros (diakonous) dosque haviam de crer. E isto no era novidade, pois j desde h muitotempo se havia escrito acerca de tais inspectores e ministros. A

    Escritura, com efeito, diz assim em algum lugar: Estabelecerei osinspectores deles na justia e os seus ministros na f (Isaas 60:17).

    Carta Primeira de So Clemente, 42:1-4Em Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostlicos. Edio bilingue completa,4 Ed. Madrid: BAC, 1979

    Tendo sido estabelecidos eles mesmos pelos prprios Apstolos, impossvel que a sua autoridade estivesse acima da de quem lhahavia concedido em primeiro lugar. Alm disso, cabe sublinhar que

    Clemente em nenhuma parte ensina ou insinua a existncia de um

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    episcopado monrquico (como o faz algo mais tarde, ao invs, Inciode Antioquia [1]). Pelo contrrio, na carta aos corntios:

    Mencionam-se presbteros vrias vezes, mas no so distinguidos dosbispos. No h absolutamente meno de um bispo em Corinto, e as

    autoridades eclesisticas so sempre nomeadas no plural.

    John Chapman, Pope St. Clement I . Em The Catholic Encyclopedia,vol. IV (1908).

    Clemente alonga-se mais frente quanto forma de eleio e scondies das autoridades da Igreja:

    Tambm os nossos Apstolos tiveram conhecimento, por inspiraode nosso Senhor Jesus Cristo, que haveria contenda sobre este nome

    e dignidade do episcopado. Por esse motivo, pois, ..., estabeleceramos supracitados e juntamente impuseram dali em diante a norma deque, morrendo estes, outros que fossem vares aprovados lhessucedessem no ministrio. Agora pois, a vares estabelecidos pelos Apstolos, ou posteriormente por outros exmios vares comconsentimento de toda a Igreja; homens que serviramirrepreensivelmente o rebanho de Cristo com esprito dehumildade, pacfica e desinteressadamente; testificados, alm disso,durante muito tempo por todos; a tais homens, vos dizemos, nocremos que se os possa expulsar justamente do seu ministrio. E

    assim que cometeremos um pecado nada pequeno se depomos doseu posto de bispos aqueles que irrepreensvel e religiosamenteofereceram os dons. Felizes os ancios que nos precederam naviagem para a eternidade, os quais tiveram um fim frutuoso eperfeito, pois j no tm que temer que algum os afaste do lugarque ocupam. Dizemos isto porque vemos que vs removestes do seuministrio alguns que o honraram com conduta santa eirrepreensvel.

    Carta Primeira de So Clemente, 44:1-6

    Em Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostlicos. Edio bilingue completa,4 Ed. Madrid: BAC, 1979 (negrito acrescentado)

    Ou seja, a conduta santa e irrepreensvel era para Clemente orequisito mais importante para os bispos e ministros. [2]

    Por que foi ento Roma a corrigir os corntios e no o apstolo Joo?Teramos que perguntar a Joo. Entretanto, h que notar que umfacto inexplicado e se se quiser intrigante dificilmente serve comoevidncia de alguma coisa. Neste caso particular foi a Igreja de Romaa que se encarregou da correco. Demonstra isto que era superior aCorinto? No meu entender, no mais do que a carta que Ireneu

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    dirigiu a Vtor demonstra que o bispo das Glias era superior ao deRoma. Ao no existir uma estrutura acima das igrejas locais, nadaimpedia que uma Igreja se dirigisse a outra, ou um bisporepreendesse outro. O que demonstra isto? Simplesmente que purafantasia ou wishful thinking imaginar-se que a hierarquia que Roma

    estabeleceu, para o ocidente, na Idade Mdia, existisse em sculosanteriores.

    Argumento catlico:

    Apesar de alguns protestantes e ortodoxos tenderem aminimizar a autoridade de Clemente, o certo que do texto dasua carta se depreende com grande clareza a conscincia queo prprio bispo de Roma tinha sobre a sua autoridade frenteda Igreja. Seno vejamos:

    "Mas se alguns desobedecerem s admoestaes que pornosso meio vos dirigiu Ele mesmo, saibam que se faro rusde no pequeno pecado e se expem a grave perigo" 1Clemente aos Corntios (LIX 1)

    Ou seja, o bispo de Roma intervm directamente nos assuntosinternos de outra igreja para impor a sua autoridade que,como se encarrega de reconhecer, lhe vem da parte de Deus.

    Algumas observaes aqui:

    1. A suposta conscincia que Clemente tinha acerca da sua prpriaautoridade somente pode aparecer com "grande clareza" a quemanacronicamente sustente um poder que Roma reclamou para si maistarde e que jamais foi reconhecido pelas Igrejas orientais.

    A este respeito, h que observar que na carta no h o mnimo apelo autoridade do bispo de Roma como tal.

    2. Embora no haja dvida razovel de que Clemente foi o seu autor,h que notar que isto o sabemos por evidncia externa, a saber, otestemunho unnime da tradio. De facto, o nome de Clementeno aparece na carta. Isto, desde logo, apresenta um notvelcontraste com as epstolas de Paulo e de Pedro. A longa epstola dirigida de "A Igreja de Deus que habita como forasteira em Roma, Igreja de Deus que habita como forasteira em Corinto: Aos chamadose santificados na vontade de Deus por nosso Senhor Jesus Cristo".Contra o que costumam afirmar os catlicos, o cabealho no o deum superior para um subordinado, mas de uma irm para outra.

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    Isto o reconhecem at aqueles que sustentam tenazmente a doutrinado primado romano, como Johannes Quasten, que escreveu:

    inegvel que no contm uma afirmao categrica do primado daS Romana. O escritor no diz expressamente em nenhuma parte

    que a sua interveno ligue e obrigue juridicamente a comunidadecrist de Corinto.

    Patrologa (edio preparada por Ignacio Oatibia). Madrid: BAC,1978; 1:56.

    De igual modo, Daniel Ruiz Bueno (o.c., p. 118), que como catlicotambm considera a epstola como evidncia do suposto primado,afirma categoricamente:

    E adianto-me a dizer que, por muito que possa investigar-se nelasobre o direito e constituio da Igreja, afirmar que esta carta umadeciso jurdica em vez de uma homilia, parece-me uma imperdovelfalta de penetrao no seu esprito, nascida de um excessivo afapologtico.

    3. A declarao to cara aos apologistas catlicos, "Mas se algunsdesobedecerem s admoestaes que por nosso meio vos dirigiu Elemesmo [Deus], saibam que se faro rus de no pequeno pecado ese expem a grave perigo", deve ser entendida no seu contexto. O

    autor no fez nenhum apelo sua autoridade pessoal; em vez disso,exps as Escrituras como fontes da sua autoridade e mostrou ondeest o erro dos sediciosos de Corinto. E sobre esta base, e no a dealgum primado imaginrio, que pode afirmar e com toda a razo, queaqueles que desconhecessem semelhante admoestao,perfeitamente fundamentada, se expunham a grave perigo: no pordesobedecer ao "papa", mas por desobedecer a Deus. Clemente falaaqui, em nome da Igreja de Roma, com autoridade proftica. Isto ficaclaro do que se segue frase citada, que com frequncia (como nestecaso) se omite transcrever: "Mas ns seremos inocentes deste

    pecado". Parece que o autor est a pensar nos termos do dito porDeus ao profeta Ezequiel:

    Quando o justo se desviar da sua justia para cometer injustia, euporei um obstculo diante dele e morrer; por no o teres advertidotu, morrer ele pelo seu pecado e no se lembrar a justia que tinhapraticado, mas do seu sangue eu te pedirei contas. Se pelo contrrioadvertires o justo para que no peque, e ele no pecar, viver elepor ter sido advertido, etu salvars a tua vida.

    Ezequiel 3:20-22; cf. 33:1-9

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    Argumento catlico:

    Bom, algum poder dizer que uma coisa que o bispo deRoma pretendesse ter tal autoridade e outra que os corntios areconhecessem e aceitassem. Pois temos o testemunho

    indiscutvel de algum que foi bispo de Corinto vrias dcadasmais tarde. O seu nome Dionsio, e escreveu o seguinte aSotero, que por ento era tambm, bispo de Roma.Na sua carta a Sotero, por volta de 170 Dc, Dionsio lhe diz:

    "Hoje celebrmos o santo dia do Senhor no qual lemos a vossacarta (a do Papa Sotero) [3] a qual para nossa correcocontinuaremos a ler sempre ASSIM COMO A QUE ANTERIORMENTE NOS FOI ESCRITA POR CLEMENTE" (Acitao aparece em Eusbio de Cesareia Histria IV, 23, 11)

    Ou seja, resulta que na igreja de Corinto, no dia do Senhor,continuava-se a ler a carta do bispo de Roma Clemente quaseum sculo depois de ser escrita, e alm disso, lia-se a carta do por ento bispo de Roma, Sotero, com a inteno de sercorrigidos por ele.

    Veja-se que no estamos a falar do papado nos tempos deConstantino, ou do sculo X ou do XV. No, estamos a ver qualera a realidade sobre a primazia da s romana nos sculos I e

    II da era crist.

    O testemunho de Dionsio mostra o efeito benfico que a epstolateve sobre a Igreja de Corinto, e tambm o valor do documento, queat onde sei ningum questionou. Em outras palavras, a epstola foirecebida, lida e conservada pelo seu valor intrnseco, no porqueproviesse de um bispo de Roma.

    Embora segundo Eusbio a carta de Dionsio tenha sido dirigida aSotero, por ento bispo de Roma, leva segundo o mesmo autor o

    ttulo Aos Romanos (pros Rmaious) e se dirige comunidade noplural, nomeando o bispo na terceira pessoa (Histria Eclesistica IV,23, 9-10). O responsvel da edio da BAC da obra de Eusbio, diznuma nota de rodap:

    A carta de Dionsio , pois, resposta que tinha recebido dosromanos, escrita sem dvida por ministrio de Sotero, como aprimeira o fora por ministrio de Clemente. O mais provvel que Dionsio diga primeira, no por relao a uma segunda deClemente, mas em relao com a segunda da Igreja de Roma,isto , a mesma de que est a falar, escrita por ministrio deSotero.

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    na situao de outras igrejas com a mesma autoridade que na sua prpria ou d instrues Igreja universal. O prprioClemente Romano passa muito para segundo plano atrs da Igrejade Roma como tal, para que, com base na sua carta igreja deCorinto, se lhe possa atribuir um direito consciente de correco,

    sustentado por autoridade especial, no sentido, por exemplo, da ideiado primado.

    Karl Baus, De la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia.Em Hubert Jedin (Dir.), Manual de historia de la Iglesia. Verso de D.Ruiz Bueno. Barcelona: Herder, 1980; 1:240-241 (negritoacrescentado).

    Com base nos factos, reafirmo pois o que j disse em "Supremacia

    papal nos escritos ante-nicenos?":

    Pode-se ler a carta de cima abaixo, detalhadamente, e no seachar vestgios de nenhuma conscincia de supremacia;simplesmente, o desejo fervoroso de um santo bispo de que serestabelecesse a paz na turbulenta igreja corntia. Clementeensina, admoesta, exorta; o que nunca faz ordenar nemapelar sua investidura como argumento.

    Notas

    [1] O episcopado monrquico no aparece em nenhum lado nos 65captulos de 1 Clemente, um facto indiscutvel e cuidadosamentenotado pelos eruditos catlicos. Quando esta realidade se confrontacom os ensinos de Incio (m. 107) que supem um episcopadomonrquico, parece o mais razovel concluir que existiaheterogeneidade na organizao eclesistica da Igrejaprimitiva. Com o tempo (j na segunda metade do sculo II)prevaleceu a organizao reflectida nas cartas de Incio e no apressuposta em I Clemente. Esta concluso, desde logo, no fortalece

    a hiptese de um primado de autoridade jurisdicional e doutrinal daIgreja de Roma no sculo I.

    [2] A Igreja de Roma ensina que o papa no perde a sua autoridadepor ser simonaco, nepotista ou moralmente dissoluto. Nisto se vque no "obedecem" a Clemente.

    [3] Quando fala da "vossa carta" indica, a dos Romanos, escrita pormeio do seu bispo Sotero. um agradecimento comunidade deRoma no seu conjunto, no ao seu bispo em particular.

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    [4] Por que interveio ento a Igreja de Roma e no a de feso ou ade Tessalnica ou qualquer das igrejas muito mais prximas deCorinto que Roma?

    Ao carecer a Igreja primitiva da organizao hierrquica que mais

    tarde se imps (para no falar da hierarquia romana medieval), noestavam delimitadas as jurisdies, de modo que de uma maneira se evanglica, uma igreja podia exortar outra sem violar a inexistentelei cannica. No havia nada que o impedisse.

    Alm disso, se o bispo de Roma tivesse tido numa poca to primitivapretenses de papa universal, no resultaria fcil explicar por querazo, sendo as seitas gnsticas iniciadas na mesmssima Roma porValentim e por Cerdo (antecessor de Marcio) no foram postos noseu lugar pelos prprios bispos locais (Higino, Pio e Aniceto) mas por

    outros como Ireneu, bispo de Lyon, e Justino, que no era bispo(Eusbio, Histria Eclesistica IV, 11).