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A CASA DE CHICO MENDES PARA ALÉM DA HISTÓRIA
CARVALHO, Marcio Rodrigo Côelho de.
Chefe do Escritório Técnico de Icó, da Superintendência Estadual do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Ceará – Iphan-CE e Professor de graduação em Arquitetura e Urbanismo do
Centro Universitário Estácio - Ceará Rua Pacajus, 179/20, Alto Santo, Eusebio-CE, CEP 61760-000
E-mail: [email protected]
RESUMO
A Casa de Chico Mendes foi tombada como patrimônio cultural brasileiro em 2008 pelo Iphan e inscrita no Livro de Tombo Histórico. Os valores declarados ao bem se baseiam na história de vida, especialmente a de militância sindical dos trabalhadores rurais e dos movimentos socioambientalistas ocorridos desde a década de 1970 na Amazônia ocidental brasileira, representada pelo seu ilustre morador. Este imóvel foi lugar do assassinato de Chico Mendes em 1988 e parte-se da hipótese de que mais que um espaço biográfico que expresse o modo de habitar (e, portanto, de edificar), a narrativa construída para a instrução do processo de Tombamento tenha se baseado no fato simbólico de sua morte no imóvel. O objetivo do artigo é apresentar as características e outros valores da Casa para além do recorte biográfico-histórico a ela legitimado pela declaração de patrimônio cultural. Este imóvel explicita, portanto, um modo de vida peculiar em que suas estruturas físicas, materiais, técnicas construtivas, espacialidades, localização, orientação, relação com a natureza, entre outros aspectos. A arquitetura enquanto documento expressa um modo de vida seringueiro na cidade de Xapuri que reforça ainda mais a sua importância histórica já inicialmente declarada. O conteúdo desses escritos tem origem nos estudos de alteração e normatização a área de entorno e no Cadastro da Casa de Chico Mendes, desenvolvido pelo autor, entre 2011 e 2014 enquanto Técnico/Arquiteto da Superintendência do Iphan no Acre.
Palavras-Chave: Casa de Chico Mendes; Valor histórico; Arquitetura-documento.
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
1. O que é a Casa de Chico Mendes enquanto patrimônio cultural
O documento primordial que orientou o processo de Tombamento da Casa de Chico
Mendes enquanto patrimônio cultural, nº 1.549-T-07 (CGCH/DEPAM/IPHAN), sob Protocolo
nº 01450.011962/2006-52; e a sua inscrição no Livro do Tombo Histórico foi o Parecer
Técnico elaborado pelo Arquiteto e Urbanista do Iphan José Aguilera do Departamento de
Patrimônio Material e Fiscalização - DEPAM. Neste documento, fica visível a importância
histórica dos fatos recentes ocorridos no país, especialmente os Movimentos
Socioambientalistas na Amazônia entre as décadas de 1970 e 1980.
A essa condição, o líder seringueiro e sindicalista Chico Mendes, tornou-se símbolo da
luta em defesa dos Povos da Floresta: seringueiros, indígenas, ribeirinhos, entre outros,
para a permanência de um modo de vida peculiar em ambiente amazônico, ao mesmo
tempo em que o governo federal estimulava a ocupação dessa região brasileira com a
pecuária bovina. Dessa resistência, surgiram os empates, espécie de cordões humanos que
se contrapunham aos homens que manobravam imensas máquinas a devastar a floresta no
intuito de abrir grandes pastos para o gado.
A Casa de Chico Mendes é considerada pelo autor do Parecer Técnico como uma “Casa
Histórica” dentro do rol de atuação do Iphan nas políticas de preservação do patrimônio
cultural brasileiro. A declaração do seu valor está associada ao seu ilustre morador diante
da luta sindical, a dos trabalhadores rurais, especialmente os seringueiros.
Consequentemente, se associa aos já referidos movimentos socioambientalistas. Chico foi o
porta-voz desse momento histórico e, literalmente, alvo fatal dos “paulistas”, como eram
chamados os empresários do agronegócio que se instalava na região.
A Casa, residência de Chico Mendes e de sua família nos últimos anos de sua vida, foi
marcada também pelo seu assassinato em 1988, fato este culminado pela emboscada
armada por um dos pecuaristas do gado que devastavam a floresta e expulsavam as
populações tradicionais ali existentes. Esses que tinham o líder seringueiro como uma
grande ameaça aos negócios em ascenção.
O Parecer é extremamente rico na abordagem histórica acerca do ilustre morador.
Todavia, percebe-se que em relação a Casa, tem-se apenas o seguinte relato:
A casa de Chico Mendes é uma construção de madeira muito singela que obedece a um sistema construtivo tradicional da região ainda de uso freqüente.
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A fachada que dá para rua, que tem em um pouco mais de 4m de largura possui, como detalhe, apenas duas janelas de aproximadamente 1m² cada uma com 1m de lado. A entrada da casa está situada na fachada lateral, existe uma entrada de serviço que liga a cozinha ao quintal. A edificação tem uma pequena sala que dá para a fachada principal. Nos fundos, uma cozinha com área semelhante à da sala e, no meio, dois cômodos aos quais se acessa por corredor lateral. A cozinha tem duas janelas, a sala três, duas na fachada da rua e uma lateral, e os dois quartos, uma cada um. O corredor tem duas janelas, uma na frente da entrada de cada cômodo. O sistema construtivo é bastante simples. Na atualidade, carpinteiros experientes são capazes de construir uma casa dessas características em apenas uma semana. Inicialmente é feita a marcação da planta no chão, a seguir são cravados os pilares de madeira cuja seção varia de 15 x 15 cm a 20 x 20 cm, parcialmente enterrados no solo argiloso ficando com uma altura exposta de um pouco mais de três metros. Logo depois é construída uma gaiola com os elementos estruturais horizontais colocados da seguinte maneira: o baldrame, situado a aproximadamente 1m do chão, o frechal, a 2,10m de altura a partir do baldrame e, entre os dois, no meio, outro elemento que também circunda a casa toda e serve como arremate das janelas e peitoril. O telhado, de telha francesa, tem uma inclinação ligeiramente superior aos 45º. Tesouras de madeira bastante leves (10 x 10 cm de seção ou às vezes menos) estão colocadas na altura das divisórias dos cômodos, os caibros se projetam um pouco permitindo a formação de um pequeno beiral. Nas fachadas, frontal e de fundos, duas tábuas colocadas a guisa de tabeira lhes dão acabamento. As vedações internas e externas são feitas com tábuas colocadas no sentido vertical, afixadas nos elementos horizontais acima descritos, o assoalho também e de tabuado. Portas e janelas são também de tábuas, sendo que as janelas possuem somente folhas cegas. As portas ocupam toda a altura entre o assoalho e o frechal. A ausência de forro e o fato das divisórias internas terminarem na altura do frechal dão a sensação de que o espaço é maior do que realmente é. Por outro lado, a forma das divisórias e as janelas abertas nas quatro fachadas favorecem a ventilação. Por causa da elevação do assoalho com relação ao piso externo, existem duas escadinhas de alvenaria: uma na entrada da sala e outra na cozinha. Há um afastamento da rua de em torno de 5m e afastamentos laterais de aproximadamente 1m do lado direito de quem olha da rua e 2m do lado esquerdo. Nos fundos da Casa de Chico de Mendes existe um pequeno quintal onde foi construída uma edícula para abrigar o banheiro. A casa está pintada de azul turquesa sendo que portas, janelas, cercaduras e tabeiras estão pintadas de rosa na forma de modesta decoração. Internamente, com exceção do quarto dos pais, pintado de azul, a casa toda é pintada de bege (AGUILERA, 2007, pp.33-35).
Percebe-se claramente a descrição fundamentada na perspectiva de singeleza e de
simplicidade da arquitetura da casa. É também uma descrição essencialmente física e
espacial, ao arrolar o programa de necessidades, a disposição espacial, materiais e técnicas
construtivas, de modo isolado. Portanto, se vê uma exposição das informações
descontextualizada das variáveis em que a arquitetura se inter-relaciona. A importância
histórica dada ao homem histórico e ao seu legado ratifica o direcionamento histórico da
inscrição no Livro de Tombo.
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O que se busca neste artigo é extrapolar esse limite e compreender a Casa de Chico
Mendes exatamente a partir de uma arquitetura simples e singela, mas ao mesmo tempo
reconhecer sua significância nesse espectro. É justamente onde reside a sua essência.
Destarte, além da história socioambientalista de vulto internacional que a Casa representa
como suporte dos valores declarados e já consagrada pelo ato declaratório do governo
federal, aqui busca-se a sua expressividade pela relação com a geografia, cultura local,
aspectos socioeconômicos, entre tantos outros que têm interface direta com o ambiente
construído.
Entre 2011 e 2014, foi realizada na Superintendência Estadual do Iphan no Acre estudos
de alteração e de normatização da área de entorno da Casa de Chico Mendes. Esse foi o
momento de ampliar a visão sobre esse bem e descrevê-lo com mais atenção à arquitetura,
que é também imbuída de uma dimensão histórica incomensurável. Aqui faz-se um esforço
para entender o valor histórico também pela arquitetura.
2. Os estudos realizados no Iphan-AC
O autor deste artigo foi coordenador dos Estudos de Normatização e Alteração da área
de entorno da Casa de Chico Mendes entre 2011 e 2014. O intuito era de apenas definir
parâmetros para intervenção na área envoltória do bem tombado, definida em 2008. No
entanto, foram constatadas necessidades de alteração do perímetro para redefinição da
área em função dos valores declarados e reconhecidos da Casa.
Nesse sentido, constatou-se também a necessidade de conhecer detalhadamente a
Casa e foi eleito o Sistema de Integrado de Conhecimento e Gestão – SICG, elaborado pelo
Figura 01: Casa de Chico Mendes. Fonte: Iphan-AC. Data: 2012.
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Iphan, para Cadastro do bem. Vale ressaltar que trata-se de um instrumento de
levantamento de informações e de construção de mecanismos operacionais para o exercício
da gestão do patrimônio cultural brasileiro, que agrupa, entre outras informações, aspectos
de inventariança, legislação e fiscalização, a partir de uma base georreferenciada a ser
disponibilizada pelo site do Iphan. Houve o preenchimento das fichas do módulo de
Informação e de Conhecimento, a exemplo das Informações sobre Proteção Existente,
Características Gerais, Caracterização Externa e Caracterização Interna.
Justamente nesse exercício, foram salientadas as expressividades arquitetônicas da
Casa para além de uma arquitetura puramente “singela” e “simples” conforme relatada no
Parecer já citado. Tal exercício foi essencial para desenvolver subsídios na definição dos
parâmetros arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos da área de entorno. Porém, a equipe
se deparou com um impasse nessa definição.
Em 2011, o DEPAM do IPHAN publicou a Nota Técnica nº01 sobre o Estabelecimento
de procedimento de definição de poligonal de área de entorno para bens tombados. Consta
no documento a conceituação de Poligonal de Entorno, a qual é definida por
(...) área delimitada com o objetivo de resguardar a ambiência do bem tombado e garantir a qualidade urbana necessária para sua fruição. À área são atribuídos, portanto, valores diretamente relacionados aos valores atribuídos ao bem tombado, que deve ser a referência para sua delimitação (DEPAM/IPHAN, 2011, p.3, destaques no original).
Esta orientação técnica evidenciou um impasse criado quando do momento do
Tombamento. Tanto o Parecer Técnico quanto a inscrição no Livro específico de Tombo
tratam puramente do valor histórico e tal dimensão não dialoga com a arquitetura. Mais que
espaço de habitação, tem-se a hipótese de que a Casa de Chico Mendes é reconhecida
como patrimônio cultural brasileiro por ser o Lugar do assassinato de seu ilustre morador.
Assim, no exercício de definição das normas, não se viu possibilidade de parametrizar o
valor histórico. A equipe técnica do Iphan-AC optou por conhecer a Casa e procurar
minúcias que evidenciassem aspectos históricos de modo mais amplo, como amplamente
foi a perspectiva para enxergar a própria arquitetura da Casa. Na sequência, são
apresentados alguns pontos que evidenciam tal riqueza.
3. A casa para além da História: a arquitetura-documento através da
expressão cabocla
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A Casa de Chico Mendes apresenta-se como expressão cabocla do modo de construir e
de habitar, ou seja, de um modo de vida. É, enquanto espaço construído, a mescla dos
modelos importados da arquitetura de catálogo trazida da Europa pelos fluxos do processo
econômico da economia da borracha na Amazônia, com os conhecimentos vernáculos dos
povos originários que deram origem ao tapiri. Esta última se refere às células de habitação
mais primitiva que se tem registro no Acre.
Desse modo, vê-se que
A junção das duas tendências, através dos envolvimentos do cotidiano da época, favoreceu o aparecimento de um modelo que veio a se adaptar muito bem à região. Tipo que sugeriu um modelo, nascido da mistura, mas que acabou estabelecendo um termo intermediário na linguagem arquitetônica da cidade. Nota-se esta pertinência na comparação dos programas dos compartimentos. Os modelos que vieram para Xapuri seguiram padrões de morar europeu e consequentemente o mesmo que a República estava adotando com mais desembaraço (COSTA, 2010, p.109).
A arquiteta e urbanista categoriza a Casa de Chico Mendes essencialmente como
arquitetura cabocla. Datada da década de 1970 a sua construção, traz em suas estruturas
físicas, técnicas construtivas, lógicas espaciais, materiais de construção e relação com a
paisagem, expressões do modo de vida de ambiente amazônico em que a arquitetura se faz
documento. Nos itens a seguir, serão identificadas partes dessas expressões. Ademais, o
intuito deste artigo é ampliar o valor patrimonial do imóvel em questão para além da história
atrelada à biografia do ilustre morador. Portanto, a biografia aqui é compreendida também
pelo modo de vida intrínseco à arquitetura em questão.
Cabe destacar que muitas questões interpretativas e contextuais têm origem na vivência
do autor em quase 04 (quatro) anos no estado do Acre, em visitas técnicas às comunidades
ribeirinhas, seringais e demais assentamentos rurais, como também no ambiente urbano.
Figura 02: Registro antigo da Casa. Fonte: DPHC/FEM. Data: s/d.
Figura 03: Registro antigo da Casa. Fonte: DPHC/FEM. Data: s/d.
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Acrescenta-se a isso os contatos com as aldeias indígenas e com a família Mendes, além
dos pesquisadores e gestores dos espaços de memória e do patrimônio cultural. Outras
fontes advêm de pesquisas documentais e bibliográficas que possibilitaram a construção
dessa interpretação da Casa de Chico Mendes enquanto espaço arquitetônico para reforçar
a sua importância enquanto lugar histórico.
3.1 A arquitetura desnudada, espaço externo x espaço interno
Primeiramente, faz-se necessário registrar a noção de arquitetura que foi compreendida
nos estudos realizados pelo Iphan-AC. A prática estabelecida se encontra com a perspectiva
de Holanda (2013) ao criticar Evaldo Coutinho especialmente na obra O espaço da
arquitetura. O professor da UnB – Universidade de Brasília destaca que mais que espaço
interior, a arquitetura é essencialmente espaço, onde o ambiente externo se expressa
também por uma arquitetura. As áreas livres, a ocupação das fachadas, o arruamento, entre
outros aspectos, constroem o espaço arquitetônico, não limitado apenas ao ambiente
interno de um imóvel isoladamente.
Nessa direção, a Casa de Chico Mendes foi entendida por sua relação com a calçada,
onde era o ponto de conversa e de encontro dos colegas de trabalho e companheiros de
sindicatos, no fim de tarde, para as conversas à sombra da frondosa copa da árvore que ali
existia (ver figuras 02 e 03). Ao mesmo tempo, a massa verde que emoldura o fundo, entre
árvores e palmeiras, frutíferas e ornamentais, advindas dos cultivos de pomares e quintais,
evidenciam um ambiente rururbano remanescente naquela micropaisagem.
A edificação solta no lote e o logradouro expressivo no imóvel, evidencia uma marca
tipológica na habitação. O seu quintal e a vegetação de cultivo, a exemplo do cupuaçuzeiro
e do coqueiro, trazem do verde o ambiente doméstico da vida seringueira.
Figura 04: cupuaçuzeiro na lateral do imóvel. Fonte: Iphan-AC. Data: 2012.
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3.2 A privacidade x vida cabocla
COSTA (2010, p.25) se refere ao Padre Luigi quando trata a madeira como material que
compromete a privacidade na casa, pois “inibe sentimentos e provoca desencontros”.
Ademais, “acanha os casais em suas relações mais íntimas, não permitindo o desfrute da
totalidade do prazer”. Observa-se em muitos casos de habitações indígenas e caboclas
construídos em madeira e em palha, no Acre, ao mesmo tempo em que o uso exclusivo
deste material é tratado como inadequado à luz do pudor cristão. Muitas espacialidades são
marcadas por vão único, ou, como é o caso da residência de Chico Mendes, não possuem
paredes até o teto, ou sequer tem forro.
Essa condição está atrelada ao conforto ambiental, de modo a favorecer a aeração dos
ambientes internos, associada à cumeeira alta. Outro caso peculiar está relacionado à
conexão entre os quartos por portas que não são a de acesso pelo corredor, mas sim para
facilitar a vigilância dos pais mais facilmente para acesso ao quarto dos filhos.
3.3 Telhados íngremes
Uma marca tipológica vista no bem em questão é a das águas do telhados muito
íngremes. Daí se cria um pé direito alto. Acredita-se que com esta solução, favoreça o
microclima do ambiente interno para amenização do calor amazônico. Essa lógica pode ser
compreendida como uma herança sertaneja dos homens nordestinos migrantes. O exemplo
que se tem da cidade de Icó, no Ceará, vê-se claramente a marca que permanece para
convívio com o calor do semiárido. Outra relação pode ser estabelecida com os chalés
Figura 05. Paredes (esq.) encerradas após a altura das aberturas. Fonte: Iphan-AC. Data: 2011.
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importados, que transferiam à cidade de Xapuri, no Acre, um modo de vida exógeno à
Amazônia brasileira entre o fim do século XIX e início do século XX.
3.4 A tabeira e as ponteiras
Diz-se que o uso da tabeira (ou testeira) arrematando a borda das águas do telhado tem
um efeito decorativo. Sabe-se da proteção como um anteparo (respingador) da queda
d’água para a fachada. Todavia, sabe-se também da adaptação do que se via no centro da
cidade com os chalés adornados com seus lambrequins e que se adequava à realidade
cabocla. A essa condição, vê-se o uso massivo das ponteiras em forma losangular tanto na
cumeeira quanto nas extremidades dos beirais. Os dois elementos juntos decoram a casa
como um gesto naïf.
3.5 O jirau
Figura 06: Telhados íngremes na cidade histórica de Icó-CE. Fonte: Iphan-CE. Data: década de 1940.
Figura 07: Cumeeira da Casa de Chico Mendes, com declividade acentuada. Fonte: Iphan-AC. Data: 2011.
Figura 08: Casa comercial no centro de Xapuri, com o uso de lambrequins. Fonte: http://raimari9.blogspot.com.br/2013/05/o-turco-identificado-pelo-nariz-e-o.html. Acesso em 05.11.2015, às 19h.
Figura 09: Uso da tabeira e das ponteiras na fachada da Casa de Chico Mendes. Fonte: Iphan-AC. Data: 2011.
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Um elemento marcante nas casas caboclas é o jirau. Trata-se de uma estrutura
proeminente na janela, a partir da altura do parapeito, voltada para o exterior e normalmente
se encontra na abertura da cozinha. Como a água encanada não existia nessas casas, os
serviços domésticos, a exemplo da preparação de alimentos e de limpeza dos objetos
(pratos, talher, panelas, etc.) se dava por recipientes que a água é conduzida até o jirau,
onde se usa para lavar, escoar, enxugar, entre outros serviços. A água cai direto na área
livre do terreno. O tablado em madeira é até hoje em dia muito utilizado, mesmo em
algumas casas que possuem serviço de abastecimento d’água. Há outra variação do jirau,
que é a do quintal, como uma pequena mesa em altura inferior, também utilizado para
serviços domésticos.
3.6 Os materiais e técnicas construtivas
Com exceção das telhas, todo o material da Casa apresenta-se em madeira, desde as
suas estruturas em barrotes, pilares, vedação, etc. Apresenta-se menor parte em madeira
lavrada e maior parte beneficiada em serraria. O sistema é o de gaiola, com vedação em
fichas tipo réguas, dispostas verticalmente. Existe uma estrutura horizontal a meia altura que
arremata a gaiola, denominada perna manca. Além da função de sustentação do imóvel,
internamente por criar nichos, funciona como prateleiras, onde são guardados objetos de
higiene pessoal, utensílios domésticos, por exemplo.
O piso da Casa foi coberto por cera líquida na cor vermelha, mas existe em alguns
trechos ainda a paginação em claro (avermelhado) e escuro (marrom) de madeira de lei,
densa, portanto mais resistente à água e ao pisoteio, com superfície lisa, muito utilizada nas
residências no Acre. A manutenção desse piso era feita com querosene, para lustrar a
madeira.
Figura 10: Jirau no quintal. Fonte: Iphan-AC. Data: 2011.
Figura 11: Jirau na janela da cozinha. Fonte: DPHC/FEM. Data: s/d.
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3.7 Os barrotes
Entre as expressividades da arquitetura cabocla certamente o uso dos barrotes seja uma
das mais evidentes. Vários são os motivos para o seu uso, ou, a justificativa de ter tal
estrutura elevada. Uma delas diz respeito aos ataques de animais silvestres e peçonhentos
de ambiente rural e de floresta em que parte dessas casas são construídas. Daí, suspendê-
la do chão cria um artifício de segurança maior, por causa do obstáculo vertical. Além disso,
há a sazonalidade dos rios amazônicos em que parte do ano estão cheios. Daí, as casas
ribeirinhas são construídas numa altura que tolere até certo limite a subida das águas.
Muitas casas, como é o caso da de Chico Mendes, não são marginais aos rios, porém
resguardam em si essas mesmas lógicas.
Outras marcas são perceptíveis, como o uso de depósito de objetos domésticos, como
ferramentas, materiais de construção, entre outros, ou de abrigo de animais domésticos no
vão entre o assoalho e o solo do terreno. Há outras relações, como a justificativa
apotropaica de elevar o corpo (e a casa) mais perto do céu e não ter o contato direto com a
terra. Em termos de conforto ambiental, justifica-se o uso dos barrotes pela não absorção
direta do reflexo do calor no solo através do piso e por existir um canal de circulação de ar
entre o piso da residência e o solo do terreno. Desse modo, favorece o microclima do
ambiente interno do imóvel.
3.8 A edícula: o banheiro
As construções em alvenaria não eram comuns e populares em Xapuri e se restringiam
até a primeira metade do século XX aos edifícios públicos, institucionais e comerciais. A
Figura 12: Estrutura de barrotes com o uso doméstico (depósito). Fonte: DPHC/FEM. Data: s/d.
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arquitetura em madeira predominava as construções civis. A Casa é marcada por um corpo
principal em madeira que evidencia a inexistência de banheiro. Assim, os banhos e uso de
sanitários eram realizados ao ar livre, sem os equipamentos, no quintal das residências ou
em corpos e cursos d’água próximos.
Mais recentemente, constrói-se a edícula, configurada em 02 ambientes para vaso
sanitário, lavatório e chuveiro, além do camburão, como é localmente denominado o
recipiente metálico para armazenamento d’água. Cabe destacar que a edícula não possui
água encanada, tampouco sistema de esgotamento sanitário.
4.Considerações Finais
A busca dos estudos realizados pelo Iphan-AC foi de não apenas normatizar a área de
entorno, mas de compreender a Casa de Chico Mendes para além do lugar do assassinato
de seu ilustre morador. O exercício foi de ampliar a noção de História através da própria
arquitetura, tratada no Parecer Técnico citado como “singela” e “simples”. Todavia, é
justamente nessa singeleza e simplicidade que reside a significância do modo de construir e
de habitar em parte do ambiente amazônico. Pelos materiais, técnicas construtivas,
espacialidades, relação com a geografia natural, aspectos sociais, econômicos e culturais,
por exemplo, se manifestam na Casa de Chico Mendes e ratificar sua importância enquanto
patrimônio cultural brasileiro.
Figura 13: Edícula em alvenaria. Fonte: Iphan-AC. Data: 2011.
Figura 14: Vista interna de um dos compartimentos da edícula. Fonte: Iphan-AC. Data: 2011.
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Este artigo não esgota os aspectos arquitetônicos do bem protegido. É apenas um
recorte e se registra a necessidade de outros estudos complementares. Cabe ressaltar a
existência dos bens móveis da Casa, igualmente tombados enquanto patrimônio cultural tal
qual a Casa é legitimada desde 2008. O mobiliário, os objetos pessoais e demais elementos
expressam o cotidiano da família Mendes naquele lar. Curiosamente alguns objetos foram
inseridos após o assassinato de Chico Mendes, como uma homenagem post mortem ao
legado da luta sindical e dos movimentos socioambientalistas na Amazônia brasileira em
que a Casa é símbolo.
5. Bibliografia
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favorável ao tombamento da “Casa de Chico Mendes”. Brasília: IPHAN/DEPAM, 2007.
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DEPAM/Iphan. Nota técnica nº001/2011/DEPAM - Estabelecimento de procedimentos
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02/08/2011.
HOLANDA, Frederico de. Os 10 mandamentos da arquitetura. Brasília: FRBH, 2013.
IPHAN-AC. SICG Casa de Chico Mendes. Ficha M103 – Informações sobre a Proteção
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______. SICG Casa de Chico Mendes. Ficha M301 – Cadastro dos bens. Rio Branco:
IPHAN-AC, 2012.
______. SICG Casa de Chico Mendes. Ficha M302 – Bem Imóvel – arquitetura –
caracterização externa. Rio Branco: IPHAN-AC, 2012.
______. SICG Casa de Chico Mendes. Ficha M303 – Bem Imóvel – arquitetura –
caracterização interna. Rio Branco: IPHAN-AC, 2012.