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1521 A CELEBRAÇÃO DA PAIXÃO DE CRISTO NAS MISSÕES JESUÍTICAS DA PROVINCIA PARACUARIA E SUA REMINISCÊNCIA. Jacqueline Ahlert UPF/PUCRS [email protected] Resumo: A celebração da Semana Santa estava entre as mais importantes festividades realizadas nos povoados missionais da Província Jesuítica do Paraguai. As liturgias do calendário católico, como rituais formais e elaborados, sofreram inúmeras alterações desde as fórmulas predicadas pelos loyolistas até metamorfosearem-se em práticas significantes para os indígenas missioneiros. Assim, aspectos da acomodação de dogmas como redenção, sofrimento e do post mortem desvelam-se na ritualística da Paixão de Cristo, na qual as imagens tiveram função preponderante, e em sua reminiscência. Palavras-chave: Paixão de Cristo, Missões Jesuítico-Guaranis, Estatuária. Inserida numa ambiência barroquizante, característica das Missões Jesuíticas, celebrava-se “a Semana Santa com todas as solenidades de uma catedral”. Como era de praxe, não faltavam a música e as imagens: “tudo é continuamente acompanhado de música, desde as preces da manhã, até as missas e procissões (...). Para todas elas há imagens de vulto (...).” Todo este aparato tinha uma razão. Conforme o padre Cardiel: “Isso não só entra pelos olhos, mas leva-os às lágrimas, muito mais do que os outros sermões” ([1747] 1953: 171). As festividades nos pueblos missionais envolviam três tipos principais de eventos: os cotidianos, os anuais e as ocasiões especiais. Celebrações civis e religiosas complementares entre si. A festa, a missa e o trabalho, bem como o econômico e o cerimonial, eram elementos centrais da vida social dos povoados. Os festejos de caráter anual, ápices da estética barroca teatral, rompiam a continuidade estabelecida pelas comemorações cotidianas, alternavam em ciclos contínuos o calendário litúrgico. Entre os principais estava a Semana Santa, o de Corpus e a Festa do Santo Padroeiro do povoado. Aqueles realizados em ocasiões específicas exaltavam sucessos históricos de importância concreta para o próprio pueblo ou outros da província; visitas de bispos ou governadores, a conversão de algum cacique importante, entre outros. Ao mesmo tempo em que formavam uma memória coletiva, introduziam uma nova temporalidade e mantinham aspectos de elementos cíclicos, em um calendário formado na historicidade. Fortaleciam a hierarquia instituída através da presença de imagens, da

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A CELEBRAÇÃO DA PAIXÃO DE CRISTO NAS MISSÕES JESUÍTICAS DA PROVINCIA PARACUARIA E SUA REMINISCÊNCIA.

Jacqueline AhlertUPF/PUCRS

[email protected]

Resumo: A celebração da Semana Santa estava entre as mais importantes festividades realizadas nos povoados missionais da Província Jesuítica do Paraguai. As liturgias do calendário católico, como rituais formais e elaborados, sofreram inúmeras alterações desde as fórmulas predicadas pelos loyolistas até metamorfosearem-se em práticas significantes para os indígenas missioneiros. Assim, aspectos da acomodação de dogmas como redenção, sofrimento e do post mortem desvelam-se na ritualística da Paixão de Cristo, na qual as imagens tiveram função preponderante, e em sua reminiscência.

Palavras-chave: Paixão de Cristo, Missões Jesuítico-Guaranis, Estatuária.

Inserida numa ambiência barroquizante, característica das Missões Jesuíticas, celebrava-se “a Semana Santa com todas as solenidades de uma catedral”. Como era de praxe, não faltavam a música e as imagens: “tudo é continuamente acompanhado de música, desde as preces da manhã, até as missas e procissões (...). Para todas elas há imagens de vulto (...).” Todo este aparato tinha uma razão. Conforme o padre Cardiel: “Isso não só entra pelos olhos, mas leva-os às lágrimas, muito mais do que os outros sermões” ([1747] 1953: 171).

As festividades nos pueblos missionais envolviam três tipos principais de eventos: os cotidianos, os anuais e as ocasiões especiais. Celebrações civis e religiosas complementares entre si. A festa, a missa e o trabalho, bem como o econômico e o cerimonial, eram elementos centrais da vida social dos povoados.

Os festejos de caráter anual, ápices da estética barroca teatral, rompiam a continuidade estabelecida pelas comemorações cotidianas, alternavam em ciclos contínuos o calendário litúrgico. Entre os principais estava a Semana Santa, o de Corpus e a Festa do Santo Padroeiro do povoado. Aqueles realizados em ocasiões específicas exaltavam sucessos históricos de importância concreta para o próprio pueblo ou outros da província; visitas de bispos ou governadores, a conversão de algum cacique importante, entre outros.

Ao mesmo tempo em que formavam uma memória coletiva, introduziam uma nova temporalidade e mantinham aspectos de elementos cíclicos, em um calendário formado na historicidade. Fortaleciam a hierarquia instituída através da presença de imagens, da

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manipulação de símbolos e seus ordenamentos em quadros cerimoniais.1 Em toda a América espanhola a Semana Santa era, depois da festa de Corpus, a

com mais fervor apropriada e ritualizada pelos indígenas. 2

Na ânua de 1633, advertia-se que fazer as festas com solenidade e devoção era fundamental para que os índios colocassem estima e conceito sobre ela (MCA, 1969:68). A ritualização era elemento intrínseco na vida social das doutrinas, a prática “esteve ligada diretamente a uma concepção reciprocitária que não reconhecia uma distinção clara entre as relações econômicas, políticas e sociais” (WILDE, 2003: 206).

A celebração da Paixão de Cristo pertence ao primeiro momento da ritualização do tríduo pascal. São relativos a esta passagem a entrada de Jesus Cristo em Jerusalém, a última ceia, a prisão, o julgamento e a crucificação. Ao segundo segmento concerne a Ressurreição e ao terceiro a Ascensão.

Nos dias que presidiam a Semana Santa, todos faziam a sua “desobriga pascal”. A preparação para ritualização iniciava-se durante a quaresma, período em que os curas mudavam-se “durante oito dias a outro pueblo para fazer missão, com a finalidade de que com mais liberdade pudessem os fiéis confessar-se com outro” (CARDIEL, 1953: 136). A celebração estava pontuada por atividades piedosas: procissões, iniciadas a partir da bendição das palmas no Domingo de Ramos; seguida da reencenação dos Passos da Paixão, ou seja, das estações que levaram ao calvário de Jesus Cristo; jejum, abstinência e flagelos acompanhavam a ritualística, em especial durante o primeiro período pascal. Na quinta-feira santa, pregava-se pela noite um sermão sobre a Paixão de Cristo e, em seguida, ordenava-se a procissão (TESCHAUER, 2002: 199).

1 Sobre a manutenção do poder por meio de manipulações simbólicas ver: WILDE, Guillermo. Poderes del ritual y rituales del poder: un análisis de las celebraciones en los pueblos jesuíticos de Guaraníes. Revista Española de Antropología Americana, 2003.

2 Nos povoados franciscanos a celebração da Páscoa também era realizada com esmero e prestigiada pelos indígenas e moradores locais, conforme descreveu o Padre Pedro José Parras quando, em 1753, chegou ao pueblo de Itá na “Quarta-feira de trevas”, determinado a passar lá a Semana Santa. As trezentas famílias que compunham o pueblo, “particularmente nesta ocasião frequentam a igreja com grande devoção”. As procissões de Quarta, Quinta e Sexta-feira Santas e também do Domingo de Ressurreição eram realizadas com “extrema devoção”. Em todas, era imprescindível, deveria haver música. Antes de iniciarem-se os saimentos, “canta[va] as preces de manhã; as lamentações dos índios eram alternadas com o canto dos religiosos”; o maestro da capela cantou a oração de Jeremias, com a qual “identificam-se aqueles mise-ráveis índios, como só poderia ser para aqueles que estão sucumbidos a servidão que o espanhol impôs a esta nação”.

Também havia sermão nos dias de trevas, depois das preces matinais. Predicavam os curas a Ave Maria em castelhano, quando o prelado está presente, senão o sermão era predicado no idioma natural dos ín-dios. Ao sermão segue-se imediatamente a procissão, na qual, pequenos e grandes levam lanternas. As índias usavam para estas funções os tipóis negros e muitas delas trazem nas mãos um pequeno braseiro num recipiente de barro e durante toda a procissão andam queimando algumas ervas e resinas aromáticas. A presença da “gente branca” é numerosíssima, “todos que vivem nas estâncias das imediações acodem para este povoado, com mais gosto do que para as celebrações realizadas na cidade” (PARRAS, 1943: 204-5).

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A Paixão e os açoitamentos A quaresma era um período de preparação espiritual, no qual se intensificavam os

atos de fervor e penitência. Os índios eram incentivados ao flagelo durante todo o ano, em especial nas sextas-feiras, quando deveriam cumprir as “penitências e disciplinas” na igreja. Durante a temporada da quaresma, estas mortificações eram realizadas três dias por semana. Já em 1613 existem referências a prática de flagelos entre os indígenas missioneiros (MARTINS, 2006: 191).

Na quaresma de 1633, participaram os índios com zelo. Conforme descreve a ânua, este fato era importante como exemplo de transformação, considerando que a prática de penitências era hábito recém-adquirido pelos indígenas, pois

nunca eles e seus antepassados tiveram alguma iniciativa neste sentido, nem haviam tido notícia do que era o açoite; tanto que nunca castigaram aos seus filhos, não sabem castigá-los e, menos ainda, a si mesmos: e assim, no princípio, riam destas coisas, quando lhes dizíamos que era necessário fazer penitência de seus pecados e açoitar-se para que Deus os perdoasse (MCA, 1969: 57).

Conclui o padre que o poder da palavra de Deus os fez amar o que antes repudiavam e mesmo gostar de algo tão contrário ao seu natural, a ponto de haver a necessidade de tirar-lhes os pinos dos chicotes e outras coisas que acrescentam à disciplina para mais se fustigar (MCA, 1969: 57).

Na ocasião da procissão das insígnias da Paixão de Cristo, que consistiam no açoite, na coroa de espinhos e nos pregos da cruz, os índios participaram com “grande disputa e devoção, açoitando-se um grande número de adultos e crianças, que, sem sa-berem os padres, saíram voluntariamente” (MCA, 1969: 57). Esta iniciativa teria causado grande jubilo e consolo aos inacianos. Os que faziam penitência pública deveriam andar fora da procissão para não atrapalhar a ordem e concentração dos fiéis. Antes da execução dos Passos, havia outra função que despertava a admiração do padre Cardiel pela “ternura e compaixão”: era a passagem de dez a doze meninos, “vestidos com sotaina, cada um com uma insígnia da Paixão, cantando com voz lastimosa, em tom comovente” (1953: 171).

Teschauer também descreve esta passagem da celebração:Vestidos de batina, trinta ou mais meninos de nove a dez anos, cada um deles levando um dos instrumentos com que o Senhor foi atormentado, abriam a função, e dois com lanternas os acompanhavam, para poderem melhor ser vistos por todos. Saía então o padre oficiante com capa pluvial e tomava assento à frente da porta da igreja, que estava fechada. Abriam-na e, entrando o primeiro menino, que levava as cordas com que haviam atado Jesus, com voz de quem lamenta dizia ele em sua língua guarani, em canto compassado: “esta é a soga com que se deixou atar o Senhor por nossos pecados. Ai, ai Cristo, meu Bem e Senhor!” (2002: 199).

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A soga era colocada sobre o tabernáculo e seguia a este um segundo menino, “levando uma figura de mão, cantando dizia: ‘eis a mão com esbofeteou um soldado cruel o rosto de Jesus e, por nossos pecados, sofreu-a o Redentor’.” (2002: 199). Após terem passado todos os meninos carregando as insígnias, iniciava-se a procissão em redor da praça, ao som dos salmos entoados pelos músicos. Os índios conduziam diferentes passos da Paixão. Estas imagens de vulto eram talhadas pelos mesmos e delas “havia em todos os povos”. Ao apresentar-se a imagem do Senhor açoitado e atado à coluna, e da Virgem Santíssima que ali aparecia cheia de dor, emocionavam-se as mulheres por toda a praça, enquanto seguia o “lúgrume som das trompas e o canto do ‘Miserere’, acompanhado do estrépido dos açoites, com que muitos se flagelavam” (2002: 199). Ainda na década de 30 dos Seiscentos, o padre da redução dos Santos Mártires de Caaró alegrava-se pelas benesses providas pela disciplina nos açoites. Eram os primeiros anos que “por misericórdia de Deus Nosso Senhor, os índios desta redução hão tido algum descanso, livre de mortes e fome, com boa colheita”. Estavam aprendendo o credo e iniciar-se-iam os “exercícios santos da quaresma”, com a disciplina da sexta-feira. Na ocasião o padre observou certo exagero nas penitências: os índios “haviam posto muitas rosetas no lugar dos pinos para sentir mais dor”. Porém, tudo isso consistia em mais uma mostra do “efeito da palavra de Deus e dos costumes cristãos” que os padres procuravam “inserir em seus corações” (MCA, 1969: 70 -74).

Incentivados desde os primeiros anos do processo de missionalização dos indígenas, os açoites, praticados pelas mulheres e crianças também, tornaram-se no decorrer dos anos prática tão corriqueira que, duzentos anos após, ainda eram perpetuados pelos nativos. Seria culpa dos corpos nativos, pouco habituados à cristandade, a vitimação por pestes e demais infortúnios. A prática, principalmente quando eram provocadas feridas sangrentas, senão recomendada, era profundamente admirada tanto pelos nativos quanto pela Companhia (BAPTISTA, 2009: 142-145). No entanto, olhares externos ao sistema, como o do militar Joaquim Machado de Oliveira – em contato com os guaranis missioneiros em 1816 - consideravam que a prática de açoitar-se “dava-se mais pela vaidade supersticiosa do que pela genuína fé cristã”, além de reconhecer a presença de elementos inspirados pelo fanatismo religioso da Idade Média (OLIVEIRA, [1818], 1842, p.339-340).

Em 1785, Gonzalo Doblas admirava-se: Como por muito tempo tem sido tão frequente entre os naturais açoitarem-se, está tão perdido o horror aos açoites, tanto dos que castigam como daqueles que são castigados ou os que veem, que nenhuma emoção os causa açoitar, ser açoitados ou ver-se executar; e assim castigam com maior inumanidade as criaturas em todas as ocupações que possuem, acostumados desse modo a sofrer com a maior indiferença aos açoites, em qualquer tempo, em qualquer

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idade (1836: 30).

A cruz e o flagelo frequentemente andavam juntos nos pueblos. Em 1640, a redução de São Nicolas de Piratini estava sendo punida com a peste que - diziam os padres - teria enviado Nosso Senhor por “castigo aos pecados desta pobre gente”. Era preciso aplacar a ira divina, e para isso foram os índios ao encontro do cura, solicitando uma grande pro-cissão. Assim, antes do sol nascer, “acudiu todo o povo com luzes nas mãos e muitos car-regando cruzes sobre os ombros, ao modo que costumam fazer durante a Semana Santa”. De fato, a cena deveria possuir feições dantescas. Conforme o padre, levavam mais de 400 cruzes, iam cantando e acompanhando o trajeto da maior delas, “bonita e grande, que se fez especialmente para colocar em um posto em frente ao povo” (MCA, 1969:178). Enquanto isso, as índias, com grande devoção, rezavam as orações em voz alta, pedindo ao Nosso Senhor que lhes perdoasse e aplacasse sua cólera.

O espetáculo incluía o flagelo: “Saíram muitos índios disciplinando-se com rosetas de farpado, derramando arroios de sangue, que a todos causava devoção”. A sessão de penitências não cessou até que o padre “lhes fez sinal que bastava”. Nem com toda a diligência cessou a peste. Porém, conformavam-se os religiosos, “nosso senhor deu o castigo como pai amoroso, tirando todos um grande proveito desta enfermidade” (MCA, 1969:178).3

A cruz foi uma das primeiras imagens incorporadas entre os indígenas, sua figura se encontrava difundida entre os guaranis desde começos do século XVII, a partir da ch-egada dos primeiros missionários. Os indígenas viam na cruz, sustentada pelas mãos dos padres, um símbolo com poderes mágicos equiparáveis ao maracá xamânico. A cruz, o sacrifício e a redenção estavam sempre associados.

3 Na tradição tupi-guarani, certos momentos tidos como “estados de crise” envolviam a adoção de ritos purificadores (MARTINS, 2006: 192). Conforme Nicolas del Techo, entre os procedimentos e rituais de passagem para poder tornar-se um feiticeiro estavam longos jejuns e autoflagelos: “Os que pretendessem ser especialistas na arte da magia hão de se macerar com severíssimos jejuns e outras penitencias, para os quais fogem para lugares solitários, onde permanecem nus e sem tomar banho, nada comem, senão pimenta e certa espécie de raiz (...), fazem alarde de coisas sujas e mortificam seus corpos, até que pelo efeito do prolongado jejum, falta de forças e de sentido, aparece-lhes o demônio que haviam invocado” (2005: 276).

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Imagens da Paixão

A imagem histórica de Cristo começou a se firmar concomitante à consolidação das primeiras formas litúrgicas e à institucionalização da Igreja, após a vitória e conversão do imperador romano Constantino, no século IV. A representação desejava reafirmar na imagem do Cristo o mistério da encarnação, a figuração de Deus feito homem. Assim, se a essência de Deus não podia ser figurada através da revelação do Filho, sua imagem seria reprodutível e, deste modo, enraizou-se na tradição Greco oriental, na qual está ancorada desde os primeiros séculos.

Pelikan, em seu livro sobre as representações de Cristo, afirma que, simbolica-mente, na cruz, Jesus enfrentou os inimigos de Deus e do homem: “acreditava-se que a cruz era ‘o poder de Deus’, sobretudo nos combates (...), era o símbolo da invasão de Deus em território inimigo”. O autor elucida que a própria forma da cruz justificava o caminho de Deus rumo ao homem, “sendo que as barras vertical e horizontal representavam a unificação e a suprema harmonia de tudo em Cristo Crucificado” (2000:106 e 114).

As imagens da crucificação eram dotadas de força persuasiva. As de tamanho natural possuíam os membros superiores articulados e prestavam-se a encenações do de-scenso da cruz, na Sexta-Feira Santa. Eram colocadas em esquifes e levadas em procissão ao funeral. Tais representações impregnavam o imaginário indígena como exemplo de paciência e caridade, mesmo em meio ao padecimento. A morte na cruz remetia à entrega à vontade de Deus, assim como o fez Cristo. Era preciso que essa confiança cega se es-tendesse à fé guarani: Compreender o dogma da Redenção significava aceitar todo o resto da doutrina, afirmou Josefina Plá.

Nos povoados missionais havia imagens de Cristo dos mais variados tamanhos e representando diversas passagens de sua vida. Relativas a Cristo Crucificado as imagens poderiam se agrupar em torno de três tipos:

Na Clemência, Cristo é mostrado envolvendo com profundo olhar de amor o cristão que se ajoelha a seus pés: os olhos semiabertos, a cabeça inclinada na direção do fiel. A Agonia, é o grito de desespero que se dirige a Deus-Pai: os grandes olhos abertos, a cabeça voltada para o alto. Na Morte, a cabeça aban-dona-se sobre o peito, os olhos fechados ou vidrados (BAZIN, 1971: 54).

Do mesmo modo, para a ritualização da Paixão de Cristo, nas Missões, existiam imagens específicas que correspondiam a cada momento da encenação:

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Fora da procissão que se faz na quinta-feira de manhã, há outras duas, uma pela noite, neste mesmo dia, outra da Soledad, na sexta-feira. Para uma e outra há estátuas de vulto. Predica-se a Paixão e depois dela vão saindo vários passos, da Coluna, as Coroa de Espinhos, etc. (CARDIEL, [1758] 1953: 171).

No domingo de Páscoa, entravam em cena as esculturas de Cristo Ressuscitado, contexto no qual “sai a imagem de Jesus Cristo por um lado, com os homens [...] e por outro a Virgem, […] e todas as mulheres (CARDIEL, [1758] 1953: 171). E, em seguida, a representação da Ascensão era realizada e, assim, estava ritualizado o desfecho positivo.

Affani, em análise estatística da estatuária missioneira nos Trinta Povos, registrou um número mais elevado de imagens referentes à ressurreição comparativamente aos outros momentos desta passagem bíblica. A autora atribui este dado a concepção guarani de vida menos trágica e preocupada com a condenação eterna, e mais confiante em um desenlace aprazível.

A escultura de Cristo Ressuscitado integra, junto com a Virgem da Ressur-reição, um binômio que não encontramos até o então na Espanha e nem no restante da Hispanoamérica colonial, com exceção das Missões Jesuíticas de Chiquitos e Moxos onde se encontra possivelmente por influência dos Guara-nis (AFFANI, 2002: 347).

Fig. 1: Imagem de Cristo Crucificado - 8,7 cm x 6 cm. Chumbo; fundição/alto relevo.Acervo: Museo Sin Fronteras – Rivera/URYFoto da autora.

Essa passagem da Ressurreição se originou nos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola, nos quais se narra o encontro de Jesus Ressuscitado com sua mãe, como primeira pessoa que vê o “Cristo Glorioso”. A imagem do Senhor Ressuscitado caracteriza-se por

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um gesto triunfal e geralmente envolto por um pano branco (pano da pureza). A da Virgem da Ressurreição é reconhecida pela falta de atributos e os braços estendidos para receber seu filho.

Geralmente as imagens missioneiras possuem um ar mais sereno frente ao sofrimento, ao contrário da tradição espanhola, muito expressiva e “sangrenta”, com lágrimas de vidro, feridas simuladas, cabelos naturais, etc.

É interessante observar que, no que tange as imagens de médio porte e as minia-turas (de estatura inferior a 30 e 50 cm, respectivamente) alusivas à vida de Cristo, só ex-istem representações de Cristo Crucificado e Jesus menino. Outras passagens da Paixão, como Cristo da Coluna, Ressuscitado ou na Ascensão são quantitativamente muito in-feriores. Conjecturalmente, essa preferência pode estar vinculada a simbologia da cruz, considerando que se fazia presente enquanto proteção individual, como confirmam as pequenas cruzes de metal remanescentes.

A reminiscência

Remanesceram crucifixos de variados tamanhos, correspondendo à sua multiplicidade de fins. Desde o monumental crucifixo do altar-mor, passando pelas cruzes de médio porte, pertencentes a espaços de circulação e visibilidade comum, até o pequeno crucifixo do oratório ou capela ou mesmo de dimensões mais reduzidas, que ainda hoje se conservam nos nichos familiares.

Em 1785, o governador Doblas, observou sobre os bustos de Jesus Nazareno, nos vários passos de sua Paixão, como os da Virgem e outros santos que participam das procissões da Semana Santa que “todos estes são uns troços de madeira mal talhados e pior pintados, sem nenhum adorno em seus corpos, nem nas andas em que os colocam, sendo estas uma espécie de padiola mal formada”. Relevando a opinião pejorativa sobre a estatuária remanescente, Gonçalo de Doblas nos informa sobre a permanência da ritualização do tríduo pascal nos mesmos moldes praticados pelos jesuítas.

O governador conclui afirmando que seria conveniente que as imagens dos santos supracitados fossem mais bem esculpidas e ornamentadas, principalmente porque “lhes entram as coisas mais pela vista do que pelo ouvido”. Habituado ao estilo das representações espanholas, sugere que fossem utilizados parte dos “ricos tecidos empregados em ornamentos, também em vestidos decentes para estas imagens e outros adornos das mesmas” (1836: 57, 96-7).

Possivelmente a mais expressiva das narrativas sobre a Paixão de Cristo seja a realizada pelo militar Joaquim Machado de Oliveira em 1818, desde um acampamento

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nas imediações da atual cidade de Alegrete, no contexto da guerra contra Artigas.Havia se passado cinquenta anos desde a expulsão dos jesuítas da América

Espanhola quando, as margens do rio Ibirapuitã, um grupo de lanceiros guaranis se organizava para levantar um assentamento apto ao resguardo do inverno, que já insinuava sua aspereza, mas, especialmente, aparelhado para as celebrações da Paixão de Cristo daquele outono de 1818.

Conforme Joaquim Machado de Oliveira, nesta época, os guaranis estavam reduzidos a pequenos grupos nas povoações teocráticas do Uruguai, “que formam uma parte dessa criação cyclopeana dos jesuítas nas vastas regiões do Guairá”. Outros permaneciam “amontoados” em alguns recantos das povoações e estâncias da campanha, ou sem habitação fixa, “levando uma vida nômade ou selvática nos campos e nas extensas florestas da serra geral” (1842: 335).4

Pouco distante da colina em que se construía a capela de Alegrete 5 - destinada aos oficiais e soldados portugueses e luso-brasileiros -, estendia-se outra menor, separada daquela por um desnível geográfico, junto a uma “sanga que ia abicar no Ibirapuitã”. Este sítio havia sido designado para o alojamento da “companhia dos naturais lanceiros” integrantes da coluna Abreu, que, não sem pressa, ergueram ali um “grupo de copes 6” pressionados pela iminência do inverno e pela proximidade da celebração da Paixão de Cristo” (1842: 335). 7

A religiosidade dos missioneiros – na opinião do militar –, ainda estava impregnada pelos dogmas predicados pelos loyolistas. Considerou-os “suscetíveis de impressionar-se dos princípios da religião, do sentimentalismo e do maravilhoso”, expondo nisso certa “intelectualidade abstrata” de compleição apática. A herança, “fatal e cavilosa” deixada pelos jesuítas permanecia sendo “transmitida, como um legado sagrado, de geração a

4 Os guaranis tornaram-se culturalmente híbridos – expressavam um tipo de ambivalência por vezes mais disjuntiva que a própria realidade que viviam. Eram indivíduos de fronteira geográfica e o cultural. Esta condição se fez manifesta na guerra contra Artigas, contexto em que havia grupos de missioneiros lutando em ambos os exércitos.

A tropa, organizada para proteger a fronteira do território Ibicuí-Quaraí, dividia-se em dois grandes gru-pos, os combatentes luso-brasileiros e os guaranis. O acampamento-assentamento de ambos foi dividido conforme referências étnicas.

5 “Das entranhas do latifúndio, gerado no processo de conquista do sudoeste rio-grandense, e da guerra movida contra o Protetorado de Artigas, nascia o atual município de Alegrete” (GOLIN, 2002: 298). Em 1817, o tenente-coronel José de Abreu inicia efetivamente a instalação de moradias. Três anos depois, a povoação é elevada a Capela Curada, abrangendo domínio eclesiástico sobre os territórios dos atuais municípios de Uruguaiana, Livramento, Quaraí, Rosário do Sul, ao Departamento de Artigas (URY) até o rio Arapey, vinculado a São Borja.

6 Pequenas cabanas construídas de madeira e palha.7 Interferia na construção da capela o “sisudo capelão” da coluna. Conforme Joaquim Machado de Olivei-

ra, um “aventureiro no Continente”, protótipo de outros tantos religiosos do período colonial brasileiro. Praticava especulações simoníacas, aproveitando-se de “um povo generoso e ingênuo, cheio de fé e de crença”, granjeando mediante seu “sacerdócio impuro” um pecúlio em moeda e “bestas para o próprio passal” (1842: 333).

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geração”, ao que concluiu que: “será até a consumação dos séculos!” (1842: 334-335).Tudo se organizava segundo as “fórmulas praticadas pelos jesuítas”, acatadas com

zelo. Com todo o “apuro de sua dedicação ao Crucificado”, a motivação seria menos por um “intrínseco sentimento de crença ortodoxal” do que por “imitação e costume tradicional” (1842: 334-335).

Ao que tudo indica, havia neste ritual a necessidade de “aplacar a cólera divina”, que, temiam os guaranis, aumentara pela “involuntária interrupção da série ânua desses atos”, ocasionada pelas incursões bélicas.

A religião tornara-se para eles o mais forte [...], o único hábito moral de sua vida: o objeto mais essencial que ela lhes apresenta, e que lhes sugere a mais escrupulosa atenção, é o culto explícito das imagens exercido com estrépito e aparato singelo.O ministro desse culto, que eles olham como o dispensador das graças celestes, que pôde pela força maravilhosa de suas orações e interposição de oferendas, amenizar a intempérie das estações, neutralizar os males físicos e aflições da humanidade, fazer abundantes os frutos da terra e predispor o caminho para a felicidade eterna, atrai facilmente as suas mais vivas e ternas afeições, e tem sobre os seus ânimos um predomínio exclusivo (OLIVEIRA, 1842: 336).

Os rumores sobre a celebração da Paixão de Cristo na aldeia ribeirinha tinham “divagado de estância a estância, de povoação a povoação”, chegando as “Sete Missões do Uruguai”, colocando em movimento “numerosos bandos” para o Passo-geral do Ibirapuitã. Para o brigadeiro, era algo singular ver uma família guarani em viagem, fato descrito em detalhes:

O seu chefe tinha a precedência na marcha, arriando os cavalos que não eram montados: vestido mui singelamente, envolvida a cabeça em um pano, e cingindo a cintura o inseparável cheripá, do qual pendiam a guampa e a faca [...], apresentava-se apto para voltear o laço e as bolas, e a disparar sobre a bagualada [...]. a pouca distância dele ia a china, mãe de família, cavalgando o animal mais pacifico da tropilha, e cobrindo-lhe a cabeça e as faces um lenço vermelho (panhoêlo puitam), que se confundia com a cor de seu rosto [...]. Se tinha filhos pequenos, trazia-os engrupados sobre a montaria, e ligados a si pelo cheripá [...]. Pendiam aos lados do lombilho, e cruzando o assento por baixo do pelego, a maleta e o passoêlo, que continham o vestuário festivo da família (1842: 338).

As numerosas famílias guaranis que ocorriam para a celebração da Paixão tinham hospedagem aberta na aldeia, “sendo-lhes comum o trabalho e aprestos que precediam esse ato, a fim de preenchê-lo sem omissão da menor solenidade” (1842: 338), não escapando nenhum dos preceitos tradicionais que eram atribuídos ao ritual, e que os mais idosos tinham impressos em sua memória.

Era Domingo de Ramos. No alvorecer do dia, “depois da chamada militar dos lanceiros” cada índio conduziu uma “grande braçada de folhas de palmeira geribá”, destinada a cobrir as cabanas onde se desenvolveria o “serviço divino” durante a semana da Paixão, os últimos martírios de Jesus. Seguiu-se a benção da cabana e a missa, proferida

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pelo capelão de Alegrete. A poucos metros de distância da cabana consagrada aos “ofícios divinos”, erigiu-se

outra, dedicada à penitência. A sequencia de ações expiatórias começava na Quarta-feira de Trevas, quando os índios “dilaceravam com açoites” seus corpos, “suportando com estóica resignação os mais bárbaros tormentos”. Os candidatos a representação simbólica do “Redentor” eram contemplados como “predestinados por uma inspiração celeste para exercerem as funções mais augustas e religiosas” no rito à que se ofertavam.

O número de penitentes era indefinido, mas entre eles o que mais arduamente se flagelasse, o que mais “sangue vertesse” e aguentasse na “mais absoluta abstinência”, seria o escolhido para representar Jesus Cristo no ritual. Durante as flagelações, os índios permaneciam “nus da cintura para cima, ajoelhados, silenciosos, com a cabeça inclinada para o chão, a mão esquerda sobre o peito, e a direita empunhando um látego de couro”. Com o chicote esfolavam suas costas, “sem o mais leve indício do sentimento de dor” (1842: 339-340).

Na Quinta-feira de Endoenças foram organizados os “aprestos para a procissão do enterro”, que devia ser encenada no dia seguinte. A cabana que servia de casa de oração estava toda coberta de preto e, sobre uma alta banqueta, “construída de varas e revestida de pano branco, via-se colocado um crucifixo, entre duas velas acesas, assentadas em castiçais de barro”. Outras velas cravadas em estacas de taquara ornavam o ambiente. Aparatos litúrgicos eram adaptados conforme as possibilidades do local, de modo que, no lado direito da entrada “via-se presa a parede uma guampa com água benta e hysope8 de cabelo, para as aspersões dos que iam visitar o santo albergue, e oscular a peanha do crucifixo” (1842: 341).

Correspondendo ao referido acima, como no período de administração jesuítica, as imagens que formavam o cortejo celeste, do “Salvador e seus Bem-aventurados” eram obra “das mãos dos índios”. Para talha destas imagens utilizavam “qualquer que fosse a matéria de que para esse efeito se servissem”. Juízos de valor aparecem intrínsecos na descrição do militar. Sob o seu ponto de vista, os guaranis não possuíam as “mais superficiais noções artísticas”. Além da habilidade decorrente do “natural discernimento”, a feitura desses objetos, de “suportável execução”, teria características miméticas também.

Nas imagens se divisavam impressas formas características do tipo indígena, “atitudes e estilos que lhe são peculiares”:

Assim é que, a cópia do gentil e nítido semblante de Santo Antônio, era formulada pelo fusco carão de um índio quinquagenário, com todas as feições e gestos agrestes, e cabelo hirto; e o divino Filho da Virgem [...] que se assenta nos braços do canonizado Paduano, expondo idêntica fisionomia a de uma

8 Esta planta é mencionada na Bíblia, por ocasião da Páscoa, quando os israelitas saíram do Egito, e também é citada no momento da crucificação de Jesus: “havia ali um vaso cheio de vinagre. Os soldados encheram de vinagre uma esponja e, fixando-a numa vara de hissopo, chegaram-lhe à boca” (BÍBLIA SAGRADA, São João 19,29).

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criança indígena, tinha por vestes um ponche de seda orlado com fimbria de ouro (1842: 342).

A presença de imagens estava cingida pela simbologia da companhia e proteção divinas, satisfazia necessidades subjetivas de amparo e compleição. Carregar estatuetas de santos em viagens e/ou atividades cotidianas, era prática comum no período missional. A herança deste costume é referida pelo militar: “Destas imagens andavam sempre providas as maletas das chinas em suas viagens e, como os Penates9 dos romanos, eram expostas no interior dos copés, quando os podiam construir para receberem as manifestações devotas da família” (1842: 339-340).

Imagens inspiradas no “fusco carão de um índio” contêm a expressão do desenvolvimento da autonomia religiosa e estética dos missioneiros, indexando significados de diferentes universos culturais. Aproximam da compreensão de uma nova dinâmica de orientação da experiência religiosa, do contexto como a fé e a devoção passaram da imagem e de seu significado no imaginário dos índios até sua introdução no cotidiano desses indivíduos, perpetuando uma prática religiosa coletiva e individual.

Representações como essas podem manifestar os níveis de mestiçagem do processo, pautado nos embates entre diferenças culturais e formas de representar e se relacionar com o sagrado, a exemplo da manifestação de luto encenada ao meio dia da quinta-feira.

Enquanto se ouvia em todo o entorno da aldeia, “o rufo surdo de um tamboril coberto de pano negro”, as mulheres com suas vestimentas negras e de longos cabelos soltos, “em sinal de luto e dor”, postavam-se sentadas em um canto da cabana, “imóveis e lastimosas, com as cabeças inclinadas para o chão”, num estado de absoluto recolhimento moral, “arrobo místico e exagerado ascetismo” (1842: 342).

À noite, a índia de mais avançada idade, prostrada aos pés da banqueta que servia de supedâneo ao crucifixo, de mãos postas “desferia um pranto lúgubre e horroroso a maneira das antigas carpideiras nos funerais”. Em volta dela “extasiava uma multidão” de curiosos com “quadro tão assombroso”, enquanto os índios, consternados e enternecidos num pranto geral, compartilhavam da agonia da anciã guarani. Depois de algumas horas, a “carpideira” era substituída por outra que prosseguia com as lamúrias, intercalando prantos e queixas com “um trago de canha” (1842: 342).

Na visão de Oliveira, havia nos “brancos” desprezo e escárnio, revelado por gestos satíricos frente ao ritual encenado pelos guaranis. “As duas raças sempre em rixa, sempre divorciadas”. Nestas passagens, o autor não deixa de expressar suas opiniões (preconcebidas) sobre a etnia e cultura guarani e indígena. Para ele, estes tinham

9 Na mitologia romana os penates eram os deuses do lar, responsáveis pelo bem-estar e a prosperidade das famílias. Eles compartilhavam o altar da deusa Vesta localizado no centro da casa. Assim como as minia-turas missioneiras, estas imagens eram veneradas no âmbito doméstico e carregadas em viagens.

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“acanhadas faculdades intelectuais”. Na manhã da Sexta-feira Santa ninguém saia de suas casas tampouco se escutava

algum balburdio vindo delas. A tarde passou-se no exame de qual dos penitentes fora mais flagelado, e “por mais longo tempo se recusasse ao alimento”. O escolhido pelo capitão e pelos oficiais representaria Jesus na procissão de enterro.

Ao anoitecer, a índia que representara a mãe de Cristo voltou a aparecer, continuava a entoar lamúrias na companhia de seus parentes. Também, neste momento, o crucifixo que ficava na cabana fora substituído por “uma cruz preta assentada sobre peanha de barro”, e de cujos braços pendiam tiras de pano branco.

Às dez horas da noite iniciou-se a procissão do enterro: “todas as vistas, todas as atenções” convergiam para aquele acontecimento. Uma cruz alta, feita de taquaruçu, era hasteada por um menino envolto numa vestimenta roçagante de cor preta e com a cabeça coberta por um pano branco, sobre o qual “assentava uma coroa de espinhos”. Do lado dele caminhavam dois outros meninos envoltos na mesma indumentária, estes portavam taquaras onde queimavam velas de sebo. As laterais da procissão eram “guarnecidas com duas alas de 50 a 60 lanceiros, em traje de guerra, empunhando sirenes semelhantes aos que iam aos lados da cruz que abria o préstito” (1842: 342-343).

No intervalo das alas “movia-se lentamente (...) uma numerosa fileira de meninas, vestidas de túnicas de pano branco, com os cabelos soltos e coroas de espinho sobre suas cabeças, que se inclinavam para o chão”. Na cena,

cada uma delas conduzia em suas mãos uma forma simbólica, e em miniatura, dos objetos que figuraram no martírio e paixão do Crucificado, e dos atributos físicos e morais que se reuniram a sua essência divina. Viam-se nesta série, entre outros emblemas, o galo que com seu tríplice canto revelou a Pedro a culpa da sua estranha negativa, os trinta dinheiros que recebeu o discípulo traidor, o azorrague, a lança de Longuinhos, a escada do descimento, a coroa de espinhos, os cravos: assim também os peixes e pães reproduzidos nas bodas de Canaã, a espada com que se armou contra o espírito das trevas, representado por um dragão de colo entonado, e as insígnias que lhe competiam como o Rei profetizado da Judéia (1842: 346).

A procissão foi encerrada por um grupo de músicos “garganteando uns a ladainha com uma voz chula e dissonante, e outros fazendo guinchar com sinistro alarido algumas rabecas, outras de suas próprias mãos”. Na frente dos tocadores andavam outros indígenas com “grossos cartões” pregados no dorso, onde estavam gravadas as notas sobre pedaços de couro.

Junto a essa procissão, seguia-se outra, onde “com as mãos atadas, diadema de espinhos na cabeça e túnica preta”, andava cercado por outros lanceiros o “miserando penitente”, escolhido para representar Jesus. Os ditos lanceiros não poupavam “azorragadas, violentos arremessões, bofeteadas e insultos ignominiosos” (1842: 346).

Atrás destes e “pondo fecho a todo aquele espetáculo”, ia uma mulher desfalecida

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nos braços de um índio. A dupla representava a mãe de Cristo e o Evangelista que assistiu a sua Paixão. Esta “tinha por séquito uma multidão de mulheres que levavam ao seu lado os filhos menores de mãos postas, e que caminhavam vagarosamente com luzes nas mãos, lavadas em pranto, e soltando arquejos e soluços”.

Até a meia-noite seguiu a procissão, onde não faltaram, na plateia, correspondentes a altura para o drama, “caiam de joelhos, os índios que a observavam e, num arrobo extático e devoto batiam nos peitos com veemência” (1842: 346-347).

Na manhã de sábado os fiéis foram acordados pelo som de tambores e pífanos anunciando a aleluia em “rufos descompassados e em dissonantes assobios”. A cabana de penitência havia desaparecido e, em seu lugar, “hasteara-se um poste elevado, donde pendia um mal formado manequim, figurando o traidor Iscariotes”. Momentos depois este boneco seria arrancado de sua posição pelo “laço de alguns cavalheiros e, em poucos momentos, reduzido a mil pedaços” (1842: 348-349).

Por fim, Ao tambor que não cessou de rufar, congregaram-se vários tangedores de viola e rabeca, e em breve tempo o mais desentoado alarido de mistura com festivos hosanas difundiu-se da aldeia à capela de Alegrete; e esta retumbante folia, com um séquito numeroso de mulheres e crianças, trajados de gala, e em cujos fuscos semblantes reluziam a alegria e o contentamento, corria as ruas proclamando a aleluia (1842: 348-349).

Depois, os guaranis recolheram-se aos seus copés, “conscienciosamente pago de ter, segundo as regras e preceitos tradicionais da sua primitiva associação, desempenhado com o possível escrúpulo a celebração da Paixão de Jesus Cristo” (1842: 349).

Em sentido amplo, a narrativa da celebração da Paixão de Cristo entre índios provenientes dos povoados missioneiros, passadas cinco decênios do rompimento com o sistema jesuítico, são alusivas a um processo de indexação do sagrado, que se fixou em criações e usos autônomos das balizas do cânone.

Reiterando as contribuições de Chartier (2006) sobre as soluções engendradas pelos atores sociais para dar sentido às suas práticas e aos seus enunciados, a tensão que se estabelece entre as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades, e as restrições e convenções que limitam o que lhes é possível pensar, dizer e fazer, se converteu em linguagem original de manipulação e externalização do sagrado, nesta ritualização de 1818.

As liturgias do calendário católico, como rituais formais e elaborados, sofreram inúmeras alterações desde as fórmulas predicadas pelos loyolistas até metamorfosearem-se em práticas inseridas no processo de mestiçagem e povoamento sul-rio-grandense. Nestas circunstâncias, quando o indígena se inseriu no âmbito do povoamento, tornou-se, também, parte da sociedade sob hegemonia dos estados colonial e nacional. Seu conduto é

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mestiço e suas práticas podem indicar os termos do discurso que integraram. Entre outras reminiscências, seus santos de madeira, com formas constitutivas do biótipo indígena, “atitudes e estilos que lhe são peculiares”, correspondem a primeira manifestação de arte popular religiosa do sul do Brasil.

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