16
mith. com o biológico, podemos questionar se "ela é necessariamente uma mulher, ou pode ser o feminino que um homem procura em outro homem, numa relação homossexual ?"21 É possível fazer uma diferenciação entre "ela-mulher" e o feminino? Para pensar a diferenciação proposta, é necessário desprender a imagem da mulher encarnada na gramática, daquilo que designa o pronome pessoal ela. Realizado tal desprendimento, estamos em terreno fértil para reconhecer que o feminino pode ficar nele, pode se localizar no corpo da mulher ou não, tendo como premissa que para a psicanálise a feminilidade não é exclusividade delas e nem tampouco a masculinidade é exclusividade deles. De que gozo se trata na relação intersinthomatique? Seria também e ainda o gozo fálico ou podemos supor outra forma de gozar neste caso específico? Podemos supor que se trata de um gozo que vai além do gozo fálico, mas como qualificá-Io? Ainda não disponho de elementos suficientes que permitam responder. Portanto, deixo em aberto a questão. Pontos suspensivos e ainda sem respostas, ante os quais parece- me importante assinalar que a complexidade do tema conduziu- me a uma abordagem por pequenas aproximações. E, se por um lado este fato pode gerar incômodo aos leitores, por outro, pode também impulsionar o desejo a que me acompanhem nesta instigante investigação, em uma próxima oportunidade. Parafraseando Lacan "hoje não posso dizer mais" ... " HARARI, R. Comunicação pessoal. Maio de 2001. ~ ::+:' " "\ ••• A CÉLULA VIOLENTA QUE LACAN NÃO VIU: UM DIÁLOGO (TENSO) ENTRE A ANTROPOLOGIA E A PSICANÁLISE. RITA LADRA SEGATO RESUMO: Após examinar as compatibilidades e incompatibilidades da tarefa etnográficae da prática psicanalítica, assim como da interpretação antropológica e da escuta psicanalítica, o artigo conclui trazendo um paralelismo entre o mito de fundação da sociedade Baruya e uma das máximas fundantes do lacanismo, argumentando que ambos são discursos análogos - mas não idénticos - em que uma mesma estrutura é narrada. Palavras-chave: Antropologia, Psicanálise, Mito Patriarcal ABSTRACT Afier examine the compatibilities and incompatibilities of the etnográficae task of the psichoanalytic practice, as for the antropological interpretation and the psichoanalytic hearing, the article concludes bringing a parallelism between the mith of foundation of the Baruya society and one of the axiom fundamentaIs of lacanism, arguing that both are analogous discourses, but not identical- in which one same stucture is narrated. Key words : antropology, psichoanalysis, patriarchal 120 CLlNAMEN - REVISTA PSICANALÍTICA n.2 FLORlANÓPOLlS 2003 CLlNAMEN - REVISTA PSICANALÍTICA n.2 FLORlANÓPOLlS 2003 121'"

A Celula Violenta Que Lacan Nao Viu

Embed Size (px)

DESCRIPTION

SEGATO, Rita L. A célula violenta que Lacan não viu: um diálogo (tenso) entre a Antropologia e aPsicanálise. Clinamen (Florianópolis), v. 2, p. 121-151, 2003.

Citation preview

  • mith.

    comobiolgico,podemosquestionarse"elanecessariamenteumamulher,ou podesero femininoqueumhomemprocuraemoutrohomem,numarelaohomossexual?"21

    possvelfazerumadiferenciaoentre"ela-mulher"eo feminino?

    Para pensara diferenciaoproposta, necessriodesprendera imagemda mulher encarnadana gramtica,daquilo que designao pronomepessoalela. Realizadotaldesprendimento,estamosemterrenofrtil para reconhecerque o femininopodeficarnele,podeselocalizarno corpodamulherouno,tendocomopremissaqueparaapsicanliseafeminilidadeno exclusividadedelas e nemtampoucoamasculinidadeexclusividadedeles.

    Dequegozosetratanarelaointersinthomatique?Seriatambme aindao gozoflicooupodemossuporoutraformadegozarnestecasoespecfico?

    Podemossuporquesetratadeumgozoquevaialmdogozoflico,mascomoqualific-Io?

    Ainda no disponho de elementossuficientes quepermitamresponder.Portanto,deixoem abertoa questo.Pontossuspensivose aindasemrespostas,anteosquaisparece-meimportanteassinalarqueacomplexidadedotemaconduziu-meauma abordagemporpequenasaproximaes.E, seporumladoestefatopodegerarincmodoaosleitores,poroutro,podetambmimpulsionaro desejoa queme acompanhemnestainstiganteinvestigao,emumaprximaoportunidade.ParafraseandoLacan"hojenopossodizermais"...

    " HARARI, R. Comunicaopessoal.Maio de2001.

    ~~

    ::+:'""\

    A CLULA VIOLENTA QUE LACAN NOVIU: UM DILOGO (TENSO) ENTRE A

    ANTROPOLOGIA E A PSICANLISE.

    RITA LADRA SEGATO

    RESUMO:

    Apsexaminarascompatibilidadeseincompatibilidadesdatarefaetnogrficaedaprticapsicanaltica,assimcomodainterpretaoantropolgicae da escutapsicanaltica,o artigoconcluitrazendoumparalelismoentreo mitodefundaodasociedadeBaruyaeumadasmximasfundantesdolacanismo,argumentandoqueambossodiscursosanlogos- masnoidnticos- emqueumamesmaestruturanarrada.

    Palavras-chave:Antropologia, Psicanlise, MitoPatriarcal

    ABSTRACTAfierexaminethecompatibilitiesandincompatibilitiesof

    theetnogrficaetaskof thepsichoanalyticpractice,asfor theantropologicalinterpretationandthepsichoanalytichearing,thearticleconcludesbringingaparallelismbetweenthe mithoffoundationof the Baruyasocietyand one of the axiomfundamentaIsof lacanism,arguing thatbothare analogousdiscourses,but not identical-in which onesamestuctureisnarrated.

    Key words: antropology,psichoanalysis,patriarchal

    120 CLlNAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORlANPOLlS 2003 CLlNAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORlANPOLlS 2003 121'"

  • DedicoesteensaioaOndinaPenaPereira

    , Conferncialida no CongressoInternacional"NuevosParadigmastransdisciplinariosenIasCienciasHumanas?",nodia 09deabrilde2003naUniversidadeNacional,Bogot,Col~mbia.

    TRANSDISCIPLINARlDADE ERETROCESSO NAS REAS HUMANAS:O CASO DA ANTROPOLOGIA.

    123CLlNAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORIANPOLlS 2003

    Deliberadamente tomarei o tema a partir daAntropologia. Esta disciplina, entre todas das CinciasHumanas, tem sofrido recentemente nas suas aulas eorientaesacadmicasemgeral,omaiorretrocessoemdireoao quej escuteidescrevercomoumavoltavirtuosaa um"fundamentalismodisciplinar".Acadmicosmuito srios esuperciliososfranzemosenhoesacodemacabea,numaatitudecondenatria,aocomentarodesvioperigosodadisciplinanosanos80,afirmandoa necessidadede redisciplin-la.Estesverdadeirosrestauradoresda disciplinatentamexpurgaracontaminaointroduzidapelaassimchamadaAntropologiaps-modernae tentamretomarsuasorigensconservadoras.Paravelarpelaidentidadedisciplinar- quetememseveramenteameaada- soobrigadosaserreacionrios,nosentidoestritodereagircontraqualquerinfiltraode outroscampos.Seulema,francamentefundamentalistaemespritopelosenganosquecontm,avoltaaosupostolegadodospaisfundadoresda.disciplina,copiandoseumtodo,quedestaformatorna-semaisa-histricodoquej foi.

    Este"retorno"noconsidera,emprimeirolugar,queoobjetotenhamudado,quenoexistemsociedadesnoexpostasadministraoatuantedeestadosnacionaismodernosenoatravessadaspelaglobalizaoe que,em muitoscasos,nodesejam nem necessitam mais porta-vozes, analistas,representanteseruditosparadaraomundoumaversosempreparcialdo queso.J queseuinteresseparticularnoresidequeseentendacomoso,esimempassarorecadodaquiloquequereme deixarclaroaquiloqueno querem- nesteltimoaspectodeprocurarentendererepresentaroqueassociedadesdesejampara si,osantroplogos,pelomenosnoBrasil,temoscontribudomuitopouco.

    Emsegundolugar,nasuareaodefensivaepuristadossupostos"pilares"daprofissodeetngrafo,osantroplogosesquecemquea antropologiaclssicasentousuasbasescomobrasquerespondiams perguntasformuladaspor outras

    ~ .

    """"",-'lID'~.,~~ '..- '.\!ir

    ~.'.

    CLlNAMEN _REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORIANPOLlS 2003122

    Foi comimensasatisfaoqueaceiteivir exporhojesobreatransdisciplinaridadenasreasHumanas'.Nosltimosanosvenhodefendendoe,porinstantes,pagandocaroporfaz-10,anecessidadedebaixarosparapeitosdisciplinares,cruzarasreas,lerextensamenteoqueseescrevenosoutroscampos.

    Nosercomfacilidadequevamosconsegui-lo,porqueabrir a cidademuradadessescampossignifica quebrar aarquiteturadeumsistemadeautoridadequepreservaodireitodeestabelecer,internamenteparacadarea,osparmetrosparajulgaro queserveeo quenoservee,sobretudo,distribuirosfundosdepesquisa,darempregonasuniversidadesetodasasdemaisprerrogativasquedistodependem.

    Entretanto,quandoparamosparapensarnosgrandesautoresdonossotempo,osformuladoresdemodelosdegrandeimpactonasHumanasemgerale,portanto,reformadoresdahistria,vemosquenenhumdeles,absolutamentenenhumdeixoudecircularentreumavariedadededisciplinascomoasCinciasSociais, a Histria, a Lingstica, a Filosofia e aPsicanlise,ealgunsdelesso,inclusive,muitodifceisdesituar.DeFocault,por exemplo,quemtemafetadodefinitivamenteos paradigmasde todas as nossas cincias,bem poucosestudantessocapazesdedizerqualfoi asuaformaobsicaouemqualreaelesegraduou.Istodemonstraquedamtuafertilizaodoscamposnasceateoriaenatransgressodasfronteirasdisciplinaresquenos encontramoscomas novasidias.

    i'--

  • disciplinasnapoca.O encapsulamentofundamentalistaquealgunshoje recomendamnuncaexistiue muito menosnoperodofundacional.A leituradefilsofos,telogos,lingistase psicanalistasfoi partedo processocriativodeMalinowski,Leenhardt,Evans-Pritchard,Mauss, Lvi-Strausse muitosoutros.FreudeDurkheimpublicaramsomentecomumanodediferenaseusmodelostericos- TotemeTabueAs FormasElementares da Vida Religiosa -, ambos utilizando associedadesTotmicascomochaveparaconjeturaracercadasbasesquefazempossvelaconvivnciahumanaeaorganizaosocietria. Isto no pode ter sido por acaso,e sim umaconseqnciadequeeramautoresdeseutempo,imersosnasp.erguntasda poca,na qual os conhecimentosetnogrficosexistentescirculavamentrereaseaexposiodeunsdiscursosacadmicosaosoutroseraintensa.

    MalinowskiseperguntoueindagounoseumaterialdasIlhas Trobriands se o complexode dipo universal, erespondeucomaquiloqueacreditouseroutratriangulao-no lugardo pai/me/criana,com.ono tringuloFreudiano,apontouotringulome/irmodame/filho,paraasOiedadedeavunculadoqueestavadescrevendo.Nesta,comosabido,separam-seapaternidadebiolgicadapaternidadejurdica,opaidopater,o afetodalinhagem.

    Mas hoje nos diz que no, que enveredarpor taiscaminhosincertosenvolveperigosino~_inve~_p_!:,_-a sadedj~S~Hli!!}l~.~a-prprproflsso ~implicada,depOISdo grandes\11'j;oda crticap~:ill9Slerna

    .........---- .,., .. ' ' ... o,' ... _ . "~--". """-., . ' _. ~--~ .. ~_

    represnt_:-_~fri5if~I~a,-queameu"inviahilizara f emnossosl>emintencionados"achados"nocampo.Eranecessriodevolvero crditos genealogias,aosmapasde aldeia,aosgrficosdeparentescoeoutrascategoriasnativasanotadaspeloantroplogona suaqualidadedeconhecimentocontundentesobrearealidade.

    Entretanto,seesteconhecimentocontundente,seestesdados duros no respondema perguntasde poca,no

    ::t:............. '"'i,,,,,.,

    dialogamcomasgrandesquestesabertaseemcirculaopelomundo atual, ocorre o que nos est acontecendocomodisciplina: escrevemose publicamos para especialistas,independentementedequepossamnosentrevistaros meioscom certa assiduidadelevando-nos presenado grande

    pblico.~as.asoutrasd_~_~~"~~o Po..::S~~~~~co tr.Q,!}sItotransdlsclplmar:basta entrarrras grandes"-livrarias dml:in~-Barnes"'-ndNoble, Borders, Fenac,e~,-."-.,.,."""~"....".."""."~ ..,,,.._,,._.. _ .. ' """,,~M""'''''''' ._, . .._~',,~~,";' ... _~veremosemcrescimentopermanenteasestantesdeFilosofia,Histria, Psicanlise,Estudos Culturais e Ps-Coloniais,Comunicao,EstudosdeGnero,emuit"L~.1!~.!

  • relacionadosaoindivduo,~.MJ1~~!~a.., e asquepensama sociedade,as Cincias Sociais. Parecia claro einquestionvelo que,dito assim,sentavaasbasesclarasdoseixosdisciplinarescom seus prprios poderes.Fazia-nosesquecerque,muitasvezes,essesmesmosprofessores,tentandoultrapassaras idiasde umasuper-organicidadeda cultura,comonoculturalismonorte-americano,oudasociedade,comono estrutural-funcionalismobritnico,teriamquerecordaraessesmesmosalunos,emumareleiturade}N'~~:Gques oarbtrioindividuale milharesdedecisescotidianasde'sus

    memb~~~pr~-d~~em=Qu"n~o estilde vif~-'de"iil1iacoletividadedeterminada.Ou seja,que nessesprocessos

    .individuaisquepossvelObservarareproduodavidacoletivaregidapelospadresculturaisconsideradosestveispelosantroplogos nas sociedadesdescritas como agregadosarticulados de pessoas que compartilham essa culturaminimamenteestveleidentificvel.E queseestareproduomecnica,sedeverepetioprocessadapelasconscinciaseprticasindividuais.O quej em1951MelfordSpiroapontava,.!l:~__s_e..t:lartig,:'t:lI!'!!~~~PersoQ_al_id_a_d_e_~_A_HISt~N fiif1]iumafalsadicotomia".l'{~e,Spir9.~rgunientaq~_~._-~deconverso.Qupassagernentre(},~(}!.~!l\.;oeoTnaivi~l!.::tLsesituanodispositivoqueFreudchamasuperegO,porondeavozdopai,()lI.dosdeverescoletivamentesanCna.dos,llitrnaliza'

    como'maii'dtQPr{)P!i?~,p~~QI_p~~~~!~!?~=-cw~~~~----~r

  • ,I

    ANTROPOLOGIA E PSICANLISE:O QUE PODEM E NO PODEM FAZER JUNTAS.

    Entretanto, apesar dessa primeira ponte detraduzibilidadedaslinguagensdisciplinaresedasnegociaesdesentidopossveisentreascategoriasdeambasdisciplinas,vriasoutrasdificuldadespermaneceriam.

    relacionadosaoindivduo,ou ~~~i.~~~o~"

    n!1:h:p.Entretanto,diferemnoprojetoteraputica'daanlise,

    solicitadopelopacienteeonde,por assimo dizer,o~estud9~~~n~~~~L~rio supostodoprojetodoprocessode indagao.~~_ projetoantropol~g!~.

  • Ainda, na pr.ti~l:.lgi..,...qJE:5Li~,.o.psicaBU1.--...procurad()pelop(lciente.NocalllPo, oaptroplog()quemvaiembuscadese~'Ilativo.Aindaqueistoestejamudandonestestempose, muitopossivelmenteo 'cOl)~eito4e "call1pg}'tenhanosdiasdehojeumaconfiguraomuit'-diferentdaquelaquetinhaathunsvinteanos- aindaquenotenhavistoestudos,por certomuitopertinentes,da histriadastransformaessofridaspelanooe asprticasdaquiloqueosantroplogoschamamos"campo".Nosltimostrsmesesde2002tiveumaexperinciaetnogrficaquetransgrideeinvertetodososmeus

    Masacomparaoquevenhoarticulando,naverdade,bastantemaiscomplexadoqueaparentasereinteressalembraraquique,aomesmotempoemqueexistemantroplogosque,no sendo etngrafos, trabalham interpretando,contextualizando ou fazendo epistemologia da obraantropolgica,existemautoresquetrabalhamcomapsicanliseprivilegiandoexclusivamentea indagaofilosficaderivadadeseudiscursosobreo sujeitoe noseinteressampeloseupapeldecura(Juranville1984,Gallop1985,Ragland-Sullivan1986;Goux1993,Alemny Larriera1996,PenaPereira1999,entreoutros).

    129CLINAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORIANPOLIS 2003

    hbitosanteriores:umgrupodemulheresindgenassolicitouautoridadeindigenistabrasileira- aFundaoNacionaldondio(FUNAI) - serem"escutadas"paraconstruir,a partir dessaconsulta, uma proposta de polticas pblicas destinadasespecificamentea elas.Nestecas,o,asanotaesetnogrficas~_ ...-fe~Q ..J;t9_rgt~~,()e R~E-i:i.~!~.!I..._".~.~~.._~!?-.t~r..~s~s.'Exemploscomoesteindicamquea!:~l~q.h..a.bitua!etn.grafo-nltivo,estruturadorado"campo"antropolg{c();"est.mudando.

    Entretanto, necessriom~dllrnest'~p()ii1:()quenenhumdoscampos,atomomento- enistososemelhantes- inverte(ousubverte)arelaohierrquicaentreobservador-observado,e em nenhum estprevistaa possibilidadedadevoluo do olhar, isto , que o analisado possa,eventualmente,analisar o analista, ou que o nativo setransformenoetngrafodeseuantroplogo.

    Diferem,por outrolado,aAntropologiaeaPsicanlisena maneiraem que a teoriaparticipaem suasrespectivasprticas.Napsicanlise,categoriaspreviamenteenunciadasdoasrefernciasqueorientama escutae suainterpretao.Osantroplogosvema Psicanlisecomoum mtodocativodesuateoriaevema si mesmoscomoinvestigadoresdateoriadooutro,dateorianativa.Em outraspalavras,o psicanalistasabe,desdeo comeo,aondese dirige,qual o seuporto deancoragempoisateoriajindicao queprocuraaindaquenoondeoencontrar- isto,sobquaissignificantessorevividosospersonagensdacenaoriginriaefundantedatriangulaoedpica.

    A teoriaantropolgicadeterminajustamenteaabstenotericaoususpensodascategoriasdoantroplogoduranteotempodainvestigaoetnogrficaj queo queseprocura,justamente,a teoriado outrosobreo mundo:a perspectiva,crenasemodelosdonativoaindaqueestesseencontrememcontradiocomosnossos.Entretanto,eumesmaargumentei,anosatrs,emmeuartigo:"Um paradoxodo relativismo:o

    jr-

    ljCLINAMEN ,REVISTA PSICANALTICA 0.2 FLORIANPOLIS 2003

    lhesuscitae emdependnciadaquiloqueelequerdepositar.Isto nos"ley:La umasrie-d~__I.!lica._Jmtr-tWista.-=--~rta,~fechada,JormaLou.jniQ.till!- comomtodode extraodeinformaesj que,comotenhoargumentadoemoutrolugar

    comoauxliodanoodedialogiaemBakhtin,!9d~~d

  • discursoracionaldaantropologiafrenteaosagrado"(Segato1992)que,aoimpornossaracionalidadesociolgicascrenasreligiosasestvamosdeixandode cumprir com a premissarelativistadesuspensodojuzo. Istosemdvidaquestionaaidiademtodocativodapsicanliseemoposioaomtodo"livre"daAntropologia.

    Poroutrolado,amatriaprimadaPsicanliseotextoverbal,afala,enquantoqueamatriadaAntropologiaotextovivido,a interaosociale o seucontextodiscursivoverbal.Assim, enquantoo Psicanalista"escuta"o seu paciente,oetngrafoobservaavidacotidianadeseusnativosescutandosuasconversaesefazendo-Ihesasperguntasnecessriasparadotarde sentidoas aesobservadas.Mais uma vez, se opacientevaiparao div,o antroplogovaia campoeobservaseuobjetoin situo

    A isto se somaumadiferenaquedesejoenfatizar:aPsicanlise tem mais clara a "suspeita" ricoeuriana,administrandoummtodomaisprecisoparachegaraoqueaconscinciadeseupacienteoculta.Suaescutavai dirigidasinconsistncias,osatosnovoluntriosdafala,aoqueosujeitomascaraquandopretendecontar.Noduvidaquedaopacidadedaconscinciadeseupacienteque,aomesmotempoemquerevela,positivamenteesconde,nopodesabersobresi - seossujeitospudessemsabereinformarsobresi,sesuaconscinciafosselcida,asCinciasHumanasnoteriamcontribuioparadar.AAntropologia,infelizmente,derivamuitasvezesemumamprticaconsistentenatransposioeditadadafalanativaeo abandonodasuspeita.Socadavezmenososantroplogosquehojeemdiaexercitamalgumtipo deanlisedo discursocapazde atravessara opacidadeda conscincianativae osprocedimentosantropolgicosdedesvendamento,aosermenosformalizadosque os da Psicanlise,acabammuitasvezesdeixadosdelado.A sadaetnogrficaparaacorreta"escuta"dodiscursonativo correlacionara falacomasprticas,assimcomotambmcompararos enunciadosnativosentresi. O

    -J.

    psicanalistaescutanasfissurasefalhasdafala;o antroplogodeveescutarnasarticulaesentreaoepalavraassimcomonasinconsistnciasentreosdiscursosdiferentementesituadosdosdiversosatoressociais.

    Nesse contexto das "escutas" psicanaltica eantropolgica,amaiortarefaemcolaboraoquepossivelmentecompartilhamosumatarefajinauguradapeloprprioFreudemtextoscomo"O mal-estarna Cultura","O futurodeumaIluso" ou sua anlise do sorriso da Gioconda: a leiturapsicanalticadetextosculturais.Sea etnografia a inscriofeita pelo antroplogo,da interaosocial e os valores ecategoriasculturaisqueaorientam,suainterpretaopoderiasevalertambmda "escuta"psicanalticado discursoassiminscritopeloantroplogo.

    Tenteichamarapsicanliseeaanotaoetnogrficaparainterpretaro textosocial,por exemplo,na minhaleiturada'interaodeinterlocutoresnainternetqueincluonoutrotexto.Nela, para compreendero carterbeligerantee a posturaonipotente dos freqentadores dos chatrooms,independentementedotematratado,ressaltoofatodequeestesassumemaprescindibilidadedocorpomaterialquepassaasersubstitudoporumcorpoideal,virtualmenteconstrudoatravsdeumanarrativa(nomerefiroaquiquelescasosemqueocorpointervm,filmadoeprojetadonasuperfciebidimensionaldatela,o quefarianecessriointroduziroutrotipodeanliseda reduoda materialidadeda imagemvirtual).Este atuarcomoseo corponoexistisse,forcluiamaterialidadecomooprimeirolimitedequeosujeitotemnotcia,aprimeiraevidnciada lei. A primeira lei e a materialidade se encontramprofundamentevinculadas,umavezquenaausnciadoquesentidocomoumfragmentoprprioqueseescindequandoocorpomaternosesepare,queseintroduzolimiteeacarncia.Materialidadee experinciaoriginriadafaltae dalei quea

    '30 CLlNAMEN - REVISTA PSICANALITICA n.2 FLORIANPOLlS 2003 CLlNAMEN - REVISTA PSICANALITICA n.2 FLORIANPOLlS 2003 131

  • impe,soum processonico e indissocive1.Portanto,aobliteraodamaterialidadedocorponainternetpermiteaosujeitofalarcomoseestivesseinteiro,simulando,paratodososefeitos,suaprpriacompletude.Comisto,inevitavelmente,elecai presoem'suaprpriafantasia,queo totaliza.E comisto,tambm,ooutronatelapercebidocomoumboneco,umdummy,aquelea quemsepodeseduzir,vencerou anular.Atelafuncionaaquicomoumespelhoondeaalteridadesumespelhismo.A partirdaforclusodalei docorpocomolimite,todondicedealteridadeouresistnciadomundoeliminado,e o outro deixa de ser percebido na sua radicalidade eirredutibilidade.Estamosemummundodegentesozinhaque,.comamenorcontrariedadedointerlocutorvirtual,estepodesereliminado,anulado,abandonandoacenacomumsimplescliquedemouse.

    Este tipo de anlisedo sujeitocontemporneocomosujeitoonipotenteparadigmatizadono usurioda internetprximoe complementrioao que,segundoJudith Butler,emergecom a primeirainvasodo Iraque.SegundoButler,desdeomomentoemqueotelespectadornorte-americanopodeobservaramortedoinimigonateladateleviso,desdeo sofdasuacasa,semeleestarnamiradasarmasnemdalentedacmeradoolitro,pode-sefalardeum"sujeitotelescpico".Estesujeitonorte-americanoocupaumaposioqueno nemsimtricanemcomutvelcoma do seuoutro,nestecasoosujeitoiraquiano,e , emmeusprpriostermos,um sujeitoonipotentee solipsistaem cuja fantasiao outro deixa deconstituirumrisco(Butler1992).O sujeitotelescpicoeo dainternet,possivelmenteomesmo,forcluemsuaprpriafinitude,jque,enquantoeliminamooutro,permanecemforadealcancedopoderdemortedooutro.Estesujeitobelicistaparticular,civilizacional, histrica e sociologicamente situado eescolarizado.Doquepossveldeduzirque,seexisteumaformaculturalizadade ser sujeito,dependendodo ambiente-emoutraspalavras,daordemdiscursivaqueoarticuleeatravesse

    ~

    l

    \

    f

    7

    !

    .

    "f

    lI

    (Foucault,1971)-, possvelaproduooua emergnciadeum sujeitoonipotentecomoeste,ou de sujeitosdialgicoscapazesdeadmitira comutabilidadedasposiese preveracirculaoporlugaresrelativos.Ohorizonteculturalehistricoir transformaraformaemqueo sujeitoselocalizadiantedeoutros.

    Outroexercciodeinterpretaodotextosocialmedianteo instrumentalpsicanaltico o que realizeiquandotenteientendero trnsitointer-religioso,cujaprticacadavezmaisfreqentenomundocontemporneo,convocatantossocilogoseantroplogosdareligioatualmente.Emlugardeater-meaoparadigmadurkeiminiano,queestabelecequeo desenhodosagradoreproduz,metaforiza,o desenhodomundo,opteiporcolocaro sujeitoreligioso,o sujeitocrenteno centrodacena.Ao faz-Io,substituioprocedimentodametfora,prpriodasanlisessimblicasdecortesociolgicohabituais,epropusoprocedimentoda metonmia,queimplicatraaro itinerriodestesujeitodesignificanteemsignificante,atravsdeumacadeiatransculturalqueelearticulaemdireoascensionalaosagrado,inspiradopor uma aspiraomuito prxima dodesejoamoroso.Assim, utilizandoa cadeiametonmicadesignificantescomorefernciaparaaleituradocomportamentodo sujeitoquecre se submete experinciada conversoreligiosa,torna-semaisacessvelcompreenderasvicissitudesda f de sujeitosqueabraamcrenasdiferentesque,comoobservadores,parecem-nosincompatveis(Segato,2003).

    Estesexemplosnospermitemsugerirque,naconjugaoprolfica da antropologia e a psicanlise, surge umapossibilidadedeculturalizarosujeito,ouseja,nopremfocode nossostrabalhosetnogrficosnem a identidade,nem aconstruoculturaldacategoria"pessoa",nemasubjetividadecomo contedosconstitutivos do ego, que sustentam aidentidadedosujeitoesodaordemdoimaginrio(Lacan1977

    '--

    '32CLINAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORIANPOLIS 2003 CLINAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORIANPOLIS 2003 133

  • Isto diferentedo quefalardaconstruodapessoala Mauss, ou de falar do "si mesmo no seu ambientecomportamental" la Irving Hallowell (1955).Tampoucoequivaleaoscontedosde subjetividadedo si mesmoqueosujeitoencontra suavoltareflexivaquando,interpelado,

    a), e sim damaneiraquepronunciamos,deformatcitaouexplcita,aprimeirapessoadosingular.

    Osantroplogos,classicamente,desdequeMarcelMaussintroduziuem1938acategoriapersonacomotemainteressanteparaser abordadodesdeumaperspectivarelativista,isto ,antropolgica,viemospensandona noodepessoacomoaarquitetura- e aquia metforaespacial intencional- comqueas diversasculturasdoformaa seudesenhoda pessoahumana(Mauss1985).No seuensaioseminalsobreacategoriade "persona",Maussafirmavaque,emoposio mesma,o"eu",ouseja,aprimeirapessoadosingular,eraumacategoriapresenteemtodasaslnguashumanase,portanto,universal.O quesugiro interrogarjustamentea universalidadedestaexperinciadaprimeirapessoaou,emoutraspalavras,aformaemqueasdistintasculturasepocaspronunciamseu"eu"nomundo, tendo em perspectiva paisagense cartografiasdiferentes,esecolocandoadistnciasrelativasvariveisdeseusoutros.Ondeseencontraooutroquandoosujeitodasuaculturaedoseutempoenunciasuapresenanomundo?

    O sujeito,entendidodestaforma,notem contedodiscursivomastraveleidentificvelcomoumaposionodiscurso. Constitui uma funo relacional. o ponto dearticulaoentreo eue a mquinada comunicao.O lugarondeinstalomeu"eu"quandofalo,aplataformadeondemelanoparaaconversao,faominhaentradanainterlocuo,e que denotaminha atitude,minha disposioafetivaemdireoaosoutrosassimcomoolugarquelhesassignonaminhapaisagemmental.Nestesentido,osujeitoumindex,umditicovazio,semsubstncia,umapuraposiofrenteaosoutros.

    Numaanliseprofundaqueapliqueestaperspectivaatsuasltimasconseqncias, provvelqueas "culturasdosujeito",assimcompreendidascomoculturasqueorientamamaneiraemqueesteenfrentaesedirigeaseusinterlocutoreseosconstriemseudiscurso,apresentemregularidadesapartir

    135CLINAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORIANPOLIS 2003

    Trata-se,alternativamente,deetnografarerelativizarosujeito,emseuatodeemergnciafrenteaosoutros,comopuroindex,diticolingsticooupuraposiovaziadecontedos.EnquantoLacanvinculaasubjetividadeaoplanodoimaginrio,comseuscontedosinformadospelafantasia,situao sujeitono planodo simblico,e delesepodedizersomenteondeseencontraquandofazum atodeemergnciaedesdequallugarrelativo, na hierarquia de posies, fala a seus outrossignificativos.Introduziramos,assim,naanliseantropolgica- talcomotenteifazernosexemplosqueacabeideapresentar- uma nooqueculturalizao quea psicanliseconsiderauniversal:a estruturade relaesquesustentao simblico,mostrandoqueum sujeitocomoo quea internetexpressaepotencializanasociedadecontempornea,ouonavegadorinter-religioso caracterstico da intensificao dos encontrosinterculturaiscaractersticosdo mundodehoje,ou o sujeitotelescpicodainvasodoIraquedescritoporJudith Butler,setornamdominantesemumapocaesolocivilizatriopropcioe, se no sepodenegara possibilidadede quetenhamtidoalgumapresenaemoutrasculturasoupocas,pelomenossepode dizer que se voltaramnormativoscom relao- ourelativamente- culturadonossotempo.

    levado a reconhecer-se e a identificar-se, teorizadosamplamenteporVincentCrapanzano(1992a),nemformaodenoesdeidentidadeatravsdasfronteirastnicasdequenos fala Barth (1969),nem produode identidadepeloprocessoativoe deliberadode identificaocomoadesoapredicadosemblemticosdequenosfalaStuartHall (1996).

    r

    CLINAMEN REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORIANPOLIS 2003134

    ~--

  • deafinidadescomosmodosespecficosemquecadasociedadeou pocadesenhao "outro"na suaoposioao "ns".Comomuitosdevemter notado,sebema oposiodo indivduo-sociedadenotemauniversalidadequeDurkheimlheatribuiu,osdesenhosrelativosdonseosoutrosexistemeorientamainteraoemtodasassociedadeshumanas,eamaneiraemqueosujeitoseopeaseusoutrosdependedestedesenhofundante.Boaventurade SouzaSantos,numapropostaquemepareceressignificarerelanaroprojetoantropolgicodacomunicaointerculturala umatarefade granderelevnciano mundocontemporneo,propeareformadaconcepoimperialistaeocidentalde DireitosHumanosatravsdo quedefinecomohermenuticadiatpica- um mtodoprximoaoquevenhochamandode exgesisrecproca(ver nota 2). Por esteprocedimento,sefazemdialogardiversasvisesdo mundoeseusrespectivosmodelosdo bemvivere do deverser para"ampliaraomximoaconscinciadaincompletudemtuaporintermdiodeumdilogoquesedesenvolve...\comumpnumaculturaeooutroemoutra"(Minhatraduo.Santos2002:48).Ao aplicaresteexerccionosuniversosdosDireitosHumanosnoOcidente,oDharmanandiaeaUmmanomundoislmico,BoaventuradeSouzaidentifica,baseadoemanalistasnativosdasrespectivascivilizaes,que,seanooocidentaldeDireitosHumanosfalhaporseuindividualismo,aShariaislmica,aocontrrio, fecha a noo de fraternidadena coletividadereligiosa, excluindo os no islmicos e resultando numa"construorestritivado"Outro";enquantoquenos"dharmasespeciais"vigentesnandia,aidiado"ns"serestringeapartirdocritriodecasta.A reformadestestrsmodeloscivilizatriosinspiradaemumahermenuticadiatpicacorrigiriajustamenteosexcessosdecadaumqueemergemquandoabordadosdesdea perspectivados outros.Olhadasa partir da maneiraqueproponho,parece-mequecadaumadelasformaumhorizontequeimpulsao sujeitoaseposicionarfrenteaosoutrosdeumamaneiraespecficaequeaafirmaodesuacontemporaneidade

    ,

    l\

    \

    pelomodelodiatpico,assimcomoanfasenointercmbiodosolhares propostos por Boaventura de Souza, apontaprecisamenteparaapossibilidadedeumareformadosujeitoemseushbitosinterlocutrios.

    oMITO LACANIANO EM PERSPECTIVATRANSCULTURAL:UMAEXEGESERECPROCA2 DO MATERIALETNOGRFICO E PSICANALTICO.

    E chegamos,assim, depois destelongo priplo denegociaes em torno do possvel e do impossvel nacolaboraoentrea Antropologiae a Psicanlise, pedraangulardaassumidaincompatibilidadeentreosdoiscampos:o postuladopsicanalticodauniversalidadedo complexodedipo e seu cartercentralcomomodelopara formular'aemergnciadosujeitonomundoregradodaculturaenomundoculturalmenteregidoda sociedade.Antesda emergnciadosujeitodausinaedpica,medidapelaproibiodoincesto,tantona escalafilogenticadahistriada espciecomona escalaontogenticadahistriaindividual,acriaturahumanaregidapor seuprogramabiolgicoe,portanto,nohumanaainda.Saprimeiralei nobiolgica,nosdizpersuasivamenteLvi-Strauss, pode ser uma lei humana, pode ser uma lei nasociedade,e estalei a mesmalei do pai no vocabulriolacaniano:aproibiodo incesto.As duasteoriasremetemaummesmomodelodeorigemparaa sociedade,a cultura,eahumanidade.A primeira lei no biolgica, portanto,emambas,a queexpulsao sujeitode seuninho biolgicoe opropulsafazendo-oemergirhumano,regrado,entrehumanos.

    , Utilizoaquio mtodode"exgesisrecproca"ou"dilogointercultural"queformuleinomeulivroSantoseDaimones(Segato1995).O procedimentoconsisteemproduzireintermediarumdilogo,quaseumaconfrontao,entredoistextosculturaisoriundosdetradiesdiferentese,fazendocomquesefalemumcomoutro,identificaratravsdequaisafinidadesconversameoqueosdistancia.Oantroplogocumpreaquiumpapeldemediadorentredoismundosqueseencontramedialogamgraasasuainterveno,

    136 CLlNAMEN - REVISTA PSICANALTICA 0.2 FLORlANPOLlS 2003 CLlNAMEN - REVISTA PSICANALTICA 11.2 FLORIANPOLIS 2003137

  • Os mitosdecriaodo mundoreplicamestatesenasmais diversas culturas, falando de outra forma de umatriangulaonaqualo sujeitoexpulsoou,alternativamente,seqestradodeumestadoparadisacoefusionaldesatisfaooriginriapor umgrandelegisladoronipotenteque,comseupoderilimitadoparafundaraleiqueinauguraomundo,cortaasatisfaoirrestrita,introduzinterdiesedivideentretodosospapis,valorese atribuies.O smboloprimriodacadaouexpulsodoparaso,universalsegundoPaulRicoeur(1969), umaalegoriageralda satisfaoe do estadode plenitudeperdidos depois que uma infrao humana ocasiona oregramentodomundoearestriodafelicidade.

    Vemos,por exemplo,paradigmaticamente,no grandemitoPiaroa,onde,apesardoregimemarcadamenteigualitriode direitos, deveres,liberdadessexuaise atribuiesquecaracterizam suas relaes de gnero, uma figuraanatomicamentemasculina a que representao primeirolegislador.Assim,aigualdadeaparentedasrelaesdegneroconfundesuaetngrafa,Joanna Overing(1986),quereportacomo,inclusivenomitooriginrio,asmulheresdedeusWaharieseuirmogozavamporigualdeirrestritaliberdadesexualatqueincorreramemexcessos,entregando-seabusivamenteaosexo- eaindanisto,transgrediramnamesmamedida.Wahari,alarmadoe desagradadofrentea estacondutadesregrada,oscastiga,cortandoo longussimopnisdeseuirmoedandoamenstruaoasuasmulheres,oqueasobrigaaumresguardodeumnmerodediasacadams.A etngrafa,ento,assinalaestaigualdadetambmna distribuiodepunies- arribosperdememfunodamesmalei, ambossebeneficiamcomanovaordemna mesmamedida,sobreambospesaa mesmaobedinciaeosmesmoslimites,ambospassama contaminaroupoluiromundoedevemguardarresguardosequivalentes_como uma prova a mais de um regime de gnero nohierrquico.Masesqueceoaspectomasculino,viril,dogrande

    legisladororiginrio,o quenoplanodaideologiaintroduz,deformafundacional,osimblicodecortepatriarcal.

    Encontramos,tambm,estanarrativa de um crimeprimignioeaconseqenteexpulsodoparasooriginrioporobrae graadeum interventorviril - benignoourigoroso-investidodaautoridadeinstauradoradalei grupalemoutrosnumerososcasosprovenientes,por exemplo,de sociedadesaustralianas,comoosArandaouosMurimbata,analisadosporL. R.Hiatt(1994).E noprecisamosir aosmitosdecriaodosassimchamados"primitivos",poistemosnognesisbblicoumanarrativadeestruturasemelhante- a satisfaoilimitadadocotidianonodeninterrompidapelocastigodeumlegisladorviril quedincioassimaocaminhohumanodasrestriesealei.

    HansBaldung,pintoregravadoralemodeinspiraoreligiosadosculoXVI, representouestadimensoerticadoestadode plenitude, fuso e indiferenciao inerente aosimbolismoadmico.Umadesuasxilogravurasmostra"umanaturezaexuberantequeestalaportodasoslados.OscabelosdeEvaenredam-seemisturamcomosramosdasrvoreseasfolhasenquantooscachosdeAdoseentrelaamcomosseus...o corpo deAdo aparecemodeladopor msculossinuososreplicadospelas curvas do tronco de uma rvore. Eva, .plenamentecarnal,lhe estendeumama... aAdo...Ado .emumgestoquereproduzodeEvaoferecendoafruta,ofereceo peitoesquerdodeEva aoespectador... (e)...alcana,comasuamo direita,atrsde Eva,umamada rvore"(Miles1991:129).Traa,assim,aequivalnciaentreo peitofemininoeama,comoduplicaoerticaproibidadafonteoriginriadenutrioeprazer.Estaequivalnciair,embreve,instantesdepoisda cenaretratadapor Baldung,romper-see ficarimpedidadeentrarnaconscincia,permanecendocomoumamemriainapreensvel,vaga.Essaaequivalnciaeindefinioqueserainterdioimpostapelojuiz legisladorquevirpara

    138CLlNAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORIANPOLlS 2003 CLlNAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORIANPOLlS 2003 13

  • quebrarnacenaseguinte,daqualarepresentaodeBaldungnomaisdoqueo subtextoou,melhorainda,opretexto.

    A emergnciado sujeito tambmdramatizadapelosrituaisdeiniciaomasculinaatravsdomundo,comomostramnumerososexemplosdocumentadospelosetngrafos.Ospovosoriginriosdafrica,AmricadoSuleNovaGuinnostrazemexemplosespetacularesdeprocessosdeiniciaodejovensondepodemser identificadosos motivosda expulsodo mundomaterno,doterodomstico,e a entradaregradano mundoregido pelas normas da masculinidade. Um exemploimpressionante o relatadopor GilbertHerdt(1987)emTheGardiansof theflutes, quedescreveo processode acessomasculinidadeadultadosjovensdestepovodeguerreirosdaNovaGuinpor meioda ingestoprogressivadesmendoshomensmaisvelhosnaprticadefellatio,numclarodesterrodo mundomaterno,ondeo alimentomaternal totalmentesubstitudopeloalimentoviril comsuasregrashierrquicasesuaestruturadeautoridade.EstedesterromasculinotambmdescritodeformainequvocaporSuzetteHeald(1994)paraomundoAfricanonasuaetnografiadainiciaomasculinaentreosGisudeUganda.

    Trata-sedeverdadeirasencenaescoletivasdodramasimblicoondeoprocessoedpicoeaemergnciadosujeitonomundo humano da Lei, replicado pela comunidade.Oreingressonavidasocialdosadolescentesduplicaeamplifica,agora transposta em smbolos da cultura coletivamentecompartilhados,sua primeira emergnciainfantil da faseedpica. o caminhoguerreiroda re-emergnciano mundocomosujeitomasculino,a duplicaodaemergnciado cicloedpicoparadarlugaraumsegundonascimentodeumsujeitoagorainequivocadamentemarcadocomosujeitomasculino.Suamarcao statusadquiridocomoresultadodetersobrevividoaoriscodevidaedor caractersticadetodosestesprocessosparadigmticosde iniciaomasculinadispersosno mundo,

    ainda quepossamestarmais formalizadosnas sociedadessimplesoumenosritualizados,comoatualmentenoocidente."Deslocalizao"e o que estou chamandoaqui "segundaemergncia" do homem no mundo so processosconcomitantes,j que para adquirir o statusmasculinonecessrioexpurgarasensibilidadeeoacomodamentoaobem-estardocontatomaterno.Serhomem,maneiraemqueestesprocessose procedimentosde produodemasculinidadeonarram, sempreum poucoser soldado:duro frente dorprpriaoualheia,poucosensvelfrenteperda.

    Mitosdecriaoerituaisdeiniciaomasculinanarrame dramatizamuma e outra vez a cenaprimordial: fuso,intervenodeumaforaexternanormativaacatadaporpelomenosumdoselementosdafuso,expulsodosujeitodeseuparasooriginrio.Desdeessaperspectiva,podemosentendera narrativafreudiano-lacanianacomoummitoa mais,queculturalizacomasnarrativasparticularesdafamlia nuclearocidentalaquelacenaoriginria, esquema- ou estrutura-ltimo do que chamamos"simblico",uma relaoentreposies:omaterno- noimportaquemo encarne-, o filial-apegadoa esteestadoednicoe que somenteacatarsuaautonomiaeasregrasdavidaemsociedadeapartirdaentradasempre crua e interventora de um agente legisladormasculinamenterepresentado,opaterno- estelegisladorqueirrompepararetirar-lheoqueconsideravaumapartedesi,deseuprpriocorpo;funomaterna,funopaternae funofilial, emsuarelaohierrquica,queir repetir-semaistardenasrelaesraciais,coloniais,degneroetodasasdemaisquereplicamaestruturadesigualdopatriarcadosimblicocomsuapedagogiadodesejo.

    A pergunta:masondeentoficaahistria?Ondeseintroduz a liberdadeindissociveldo ambientehumanoeinerenteasuamarchatransformadora?

    No seulivro dosanos90,EZEnigmadeZDon,MauriceGodelierexpeumadasreservasclssicasdosetngrafosao

    '40 CLlNAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORIANPOLlS 2003 CLlNAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORIANPOLlS 2003 1

  • estruturalismodeLvi-Strausse deLacan:tantoLacancomoLvi-Straussafirmamque,"entreo imaginrioe o simblico(quenopodemexistirseparadamente), o simblicoo quedominae o quedeveconstituir-sepor tal razoempontodepartida de todas as anlises" (cita Lacan, Ecrits: "o quedenominamossimblico,dominaao imaginrio")(Godelier1998:43-44).Mas Godelierresistea aceitarestaidia:"nocompartilhamosessaidia",dizGodelier.

    Tais frmulas,apesarde seupoderde fascinao(oumelhor, por causadisso), constituemverdadeirosabusostericosquelanamopensamentoabecossemsadaondeficapreso.A frmuladeLvi-Straussfazdesapareceropapelativodocontedodasrelaeshistricasespecficasnaproduodopensamentomitolgico"(op.cit.:45)

    A Historia pois, no unicamenteo desdobramentoinconscienteepuramentecontingentedealgunsdospossveis"letargos"nasestruturasprofundasdoespritohumano,querdizer,finalmente,denossocrebro.(ibidem:46).

    E mostrabrilhantemente,ao longoda obra,comoumser humano, que o chama "imaginrio" (modificandoconsideravelmentea idia do "imaginrio"em Lacan,queacredita equivocadamentecomentar, o que no deveriaimportar-nosdemaispois amplamentecompensadopelointeressede seuargumento),um duplofantasmticodo serhumanohistricoeconcreto,projetadonotempodomito,retiradoprimeiroa suacapacidaderealdeproduzirhistriae seusentimentode potnciatransformativapara faz-Io.Destaforma,o mito - e a religioem geral - segundoGodelier,expropriamoserhumanoencarnadoehistricodesuaagncia,projetando-anosseusduplossuper-humanoshabitantesdostemposoriginriosquecontamsemprecomoapoiocrucialdediversasformasdeajudasobrenaturalparafundarecivilizaro

    mundo.Ao colocartodaapotncianosdeuses,omitoconvenceo homemqueno elequemtema capacidadecriadoraetransformadoraparaproduzirsuaprpriahistria:

    ...nosencontramosempresenadeuniversosproduzidospelohomem,quenoobstantesedesprendemdeleesepovoamde duplos fantasmticos de si mesmo, duplos que comfreqncialhesobenvolose acodememsuaajuda,ou quetambmcomfreqnciao oprimem,masque,emqualquercaso,o dominamsempre.(ib.:107)

    Entretanto,apesardestaenfticadefesacontraLacandapreeminnciaeprecednciadasmistificaesfantasiosasdoimaginrio como instaurador da estrutura,do poder, e asubordinao tradiocomsuareproduosimblicadossistemasde autoridade, curiosamenteo mesmoGodelierquem,no centromesmode seulivro, nos fala da revelao.nucleardeseus30anosdetrabalhoetnogrficoentreosBaruyadeNovaGuin,o maiorsegredodoshomens:queo elementomais sagrado da casa dos homens, o que representa amasculinidademesma- asflautasbemguardadaseinterditasprotegidasdavisodasmulhereseascrianas- foraconstrudoemtemposoriginriospelasmulheresepertenceuaestas.

    ...eesteosegredomaissecretodosbaruya:noobjetosagradoquemanifestao poderdoshomens,seencontramospoderesdasmulheresqueoshomensconseguiramapropriar-se quandolhes roubaramas flautas. Desdeessestemposprimordiais,oshomenspodemre-engendrarascrianasforado ventredas mulheres,mas devemmante-lasseparadaspermanentementede seusprprios poderes,diramosquealienadasemrelaoasimesmas"(ib.:182).

    Relata, ento, o que foi revelado: que em temposprimordiais um baruya,se aproveitandoda ausnciadas

    '42CLINAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORlANPOLIS 2003 CLINAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORlANPOLIS 2003 143'

  • , r-I

    I

    mulheresdesuacasacomunal,seintroduznelae,entrearoupasujadesanguemenstrual,encontraopreciosoinstrumentoqueas mulherescriaram e sabemtocar. Foge imediatamenteroubandoaflautaque,desdeento,passaaserpatrimniodoshomens.

    Godeliernoparecerepararqueesteepisdiocentralnograndemitofundacionalbaruyaparafraseiaaqueleque,porsuavez,o motivocentraldanarrativa- oumito-lacaniano:quea mulher o falo enquantoo homemtemo falo (Lacan1977b: 289).(De minha parte, confessoques chegueiacompreenderestehermticomotivoemtodaa suadensidadedesentidoquandofui exposta narrativabaruya).No centrodegravidadedaestruturaseencontrao profundoinsightdoroubodofalo,tantoemumacomonaoutramitologia.Mas oque,prosseguindocomesteexercciodeexegeserecproca,omitobaruyaexplicita,esclarecendo-nos,queopodersempre,por naturezae pelaprpriaengenhariaqueo constitui,umausurpao, um roubo de plenitude e autonomia, umaexpropriao.Seriapertinenteentotrocarumapalavranotextolacaniano,e dizerque"o homemusurpao falo" e nosimplesmenteo "tem".

    comestemotivocentralquesefechao argumentodeGodeliercontraLacanemfavordapreeminnciadoimaginriosobre o simblico. Mas sua evidnciaetnogrficaacabaprovando o contrrio, pois demonstra,sem dvida, queocidentaisebaruyafalamos,comnossasmetforasmitolgicas,noidiomacifradodomito,domesmo:aestruturahierrquicae patriarcaldo simblico.Uma estruturacujaprofundidadehistricaseconfundecomo tempoda espciee secomportacomoo cristalculturalmais duro e de maiorpermannciahistrica - uma verdadeirabase cristalina da civilizaohumana.

    Entretanto,eaquiondevaleapenadeter-se,osbaruyarevelamno seumito, textualizamo quea versolacanianaencobre:a violnciaqueprecedee originao simblicoe a

    transgressomasculina(e no feminina, comona gnesejudaico-crist) que acabapor dar ao mundo sua ordempatriarcal.Nosetratadeserouterofalo,setratadenot-Ioederoub-Io:oprocedimentoviolentoedesonestoqueLacannorevela.Usurpao,violnciafundanteeummasculinoque,depois de sua produo inicial medianteexpropriaoeexpurgo,permanececondenadoparasemprea reproduzir-sesemdescansoa expensase emdetrimentodo feminino,queforaantes- emtempospr-mticos- donodesi.Estaaclulaelementar da violncia. Trata-se de uma economiaexpropriadoranica, institudae emvignciapermanente,narradaemambosmitos.

    E na medidaemqueessedireitodeusonofoi doadosenoadquirido por meio da violncia,deveser tambmconstantementeconservadopor meiodaviolncia... E seoshomensseconcedessemumdescanso,aindaquenofossemais

    queporumsdia,umsmsouumsano,noexercciodessaviolncia,dessapressoqueexercemsobreasmulheres,essespoderesretornariamparaasmulherese a desordemsurgirianovamente,subvertendoasociedadeeocosmos.(ibidem:190.O grifomeu)

    Sobretudoporque,comoo prprioGodelierregistradabocadeseusinformantesbaruya,se"ahumanidadedevesmulheresohaversadodoestadoselvagem",severdadequeasmulheresinventaramnosflautasmastambmo arcoeaflecha,pesasobreelasa acusaode noter sabidoutilizarcorretamenteosprodutosdesuaextraordinriacriatividade:"o reconhecimentonosmitosdasuperioridadeoriginariadasmulheres- alegaGodelier- constituitambmum pretexto,una'artimanha',...umpretextoparaaviolncia".Senofosseassim,comopoderiaser legitimada'sua subordinaono

    3Aqui, paraserfiel aoseuprpriodiscurso,Godelierdeveriadizer"sereshumanos"eno"homens".Consideremosumdeslizedalingua.

    144 CLINAMEN - REVISTA PSICANALfTICA D.2 FLORlANPOLIS 2003CLINAMEN _REVISTA PSICANATICA D.2 FLORlANPOLlS 2003

    145

  • Finalmente,recordemosa advertnciade Godelierjcitadasobreopapeldareligioedosmitos:

    exercciodopoderpoltico...?"(ib.184-5).Assim,"estaviolnciaimaginaria,ideal,eaquelegitimaemprimeirainstnciatodasasviolnciasreaisqueseexercensobreasmulheres"(ib.182).

    E apesar de que aqui Godelier parece recair emDurkheim,no modeloda sociedadehipostasiadaquesai damangacomodeusexmachinaparaexplicara inrciaculturaldahistria,oretomamosparaassinalarcomeleque,seomitobaruyaeo freudiano-lacanianotmcomotemapermanenteodeixara subordinaofemininaparafora dasnegociaesedeciseshistricas,estamos,ento,diantedeoutraestruturapermanente,to dura e cristalina comoo patriarcalismosimblico:a evacuao,a expulsoda potnciahumanadoespaoe do tempodo mito. Estamosassimdiantede outra

    '47CLlNAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORlANPOLIS 2003

    A CLUIA VIOLENTAQUE IACAN NO VIU

    estruturaestvel,intocvel,ahistrica,atravessandoasculturaseaspocas:aestruturadoespritohumanocujademarchecria,inevitavelmente,mitospararestituira ordeme a lei. Outraabstrao,outrageometria,outrosimblicoquenosrelacionacoma Lei deformainescapvel,poisa fazemanardoterrenodomito.Destaforma,oautor,queiniciaseuargumentocomaqueixahabitualdoetngrafocontraodomniopsicanalticodosimblico,acabasubstituindoum problemapor outro,umaestrutura por outra, uma ahistoricidade por outra, umainescapabilidadeporoutra.

    Para concluir, quero enfatizarque, apesarde suascoincidncias,a narrativabaruyae a psicanalticano soidnticas no que afirmam sobre a cena fundacional dosimblico.Parece-mequecontradizGodelierofatodqueistopermite,justamente,fazerpnahistria,independentementedequeambasapontema umaestruturadecortehierrquicopatriarcal.

    Em sntese:no mito lacaniano,tantoa transgressooucrimemasculinoqued incioao tempoatual,comoo atoviolentofundacionaleaviolnciapermanenterequeridaparareproduzir a lei, assim como,sobretudo,a superioridadeoriginria das mulheres na sua capacidade criativa,encontram-se forcluidos at, inclusive, como merapossibilidade. Portanto factvel dizer que a narrativalacaniana,ocidental,nos enganamais, mais neurtica.Inclusive, porque os Baruya guardamessasverdadesemsegredo,oquevaledizerquepesaumacensuraeumarepressogrupalsobreaenunciaodessasverdadesqueso,semdvida,admitidase atrelatadasaoetngrafo,depoisdedcadasdesuapresenaemcamponaintimidadedogrupomasculino.Mas

    2003CLINAMEN - REVISTA PSICANALTICA n.2 FLORlANPOLIS

    ...oessencialseapianofatodequeosmitosconstituemumaexplicaodaorigemdascoisasquelegitimaaordemdouniversoe dasociedade,aosubstituiraoshomens3reaisquedomesticaramas plantas e os animais e inventaram asferramentaseasarmas,etc.,porhomensimaginriosquenoofizerammasreceberamessesfavoresdasmosdosdeusesoude heris fundadores... como se a sociedadehumananopudesseexistirsemfazerdesaparecerdaconscinciaapresenaativa do homemna origem de si mesmo... semlanar aoinconscientecoletivo e individual a um espao alm daconscincia,a aodohomemna origemdesi mesmo.... Setudoistotemsentido,aquestodoinconscientepodepropor-seentoemoutrostermos.No o espritohumanoquem,pelojogo de suasestruturasinconscientes,universaise a-histricas,estariana origemdessadesapariodohomemrealedesuasubstituioporseresimaginrios...seriaasociedade(ibidem:246-7).

    146

    l""''''''''.n",,","~._'.,..

  • BIBLIOGRAFIA

    Barth,Frederik1969.Ethnic GroupsandBoundaries.Boston:Little,Brown&Co.

    Alemn,JorgeySergioLarriera1996Lacan:Heidegger.BuenosAires:EdicionesdeICifrado.

    149CLINAMEN - REVISTA PSICANALITICA n.2 FLORIANPOLIS 2003

    Godelier,Maurice1998EI EnigmadeIDon.Barcelona,BuenosAires,Mxico:Paids

    Hall,Stuart1996"lntroduction:Whoneeds'ldentity'?".ln Hall, StuartandPaul du Gay(eds.):Questionsof CulturalIdentity.London:SagePublications,1996.

    Hallowel,A. lrving 1955."The SelfandIts BehavioralEnvironment". ln CuIture and Experience.Philadelphia:UniversityofPennsylvaniaPress.

    Goux, Jean-Joseph 1993 Oedipus, Philosopher.Stanford,California:StanfordUniversityPress

    Hiatt,L.R. 1994"lndulgentfathersandcollectivemaleviolence" ln Heald, Suzette and Ariane Deluz (eds.):Anthropology and Psychoanalysis.An encounterthroughculture.LondonandNewYork: Routledge.

    Gallop, Jane: 1985Reading Lacan. Ithaca: CornellUniversityPress.

    Foucault, Michel 1971 L'ordre du discours. Paris:Gallimard

    _____________ b "Text,Transferenceandlndexicality"ln Hermes'DilemmaandHamlet'sDesire.On the Epistemology of Interpretation. Cambridge,Massachusetts:HarvardUniversityPress.

    Crapanzano,Vincent1992a "TheSelf,TheThird, andDesire"ln Hermes'Dilemma and Hamlet'sDesire.On theEpistemologyof Interpretation. Cambridge,Massachusetts:HarvardUniversityPress.

    Joan Scott:FeministsTheorizethePolitica!.LondonandNewYork:Routledge.

    CLINAMEN - REVISTA PSICANALITICA n.2 FLORIANPOLIS 2003148

    Butler,Judith 1992"ContingentFoundations:FeminismandtheQuestionof 'Post-modernism'''.ln Butler,Judith and

    nohenunciaoequivalentenocorpuslacaniano,nemsequercomosegredobemguardado.ComotampoucoLacannosfaladareproduoviolentadopoder,nemsobresuareedioativaeconstante.

    A exgesisrecproca destestextos mostram sim ahistoricidadeda imaginaohumana,mas revelamque oterrenodosimblico,senodefinitivo,oprodutodeumtempomonumentalecivilizatrionaescaladotempodaespcie.Umtempohistrico to longo que no nos possveltodaviavislumbrarnemseuprincpio nemseufim, aindaque este,acredito,se encontreprximo. somenteao ultrapassaraestrutura simblicapatriarcal que a humanidadesair,finalmente,desuapr-histria.

    j O poder,cujaclula esta, o grandeparadigmaquenema Antropologia,nema Psicanlise,nemnenhumadasHumanas pode descuidar. O paradigma da fora,definitivamenteps-weberiano,onde imperativorecordar,muito especialmentenos temposque correm,o papel dadesonestidadee a astciana instituioviolentadaLei. Esteparadigmada fora bruta, que estou denominandops-weberiano,deixaparatrsnossailusodequasetrintaanosarespeitodequeanegociaodesentidoeaeleioentreopessejaaprerrogativapermanentedeumatorsocialrelacional,deumaaudinciadereceptoreslivres.