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A CIÊNCIA DABENZEDURAmau olhado,simpatias euma pitadade psicanálise.

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Coordenação EditorialIrmã Jacinta Turolo Garcia

Assessoria AdministrativaIrmã Teresa Ana Sofiatti

Assessoria ComercialIrmã Áurea de Almeida Nascimento

Coordenação da Coleção Saúde SociedadeLuiz Eugênio Véscio

Editora da Universidade do Sagrado Coração

EDUSC

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Alberto M. Quintana

A CIÊNCIA DABENZEDURAmau olhado,simpatias euma pitadade psicanálise.

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Editora da Universidade do Sagrado Coração

EDUSC

Q7cQuintana, Alberto Manuel.

A ciência da benzedura : mau-olhado, simpatias e umapitada de psicanálise / Alberto Manuel Quintana. - Bau-ru, SP : EDUSC, 1999.

226p. : 18.5cm. - (Saúde e sociedade)

ISBN 85-86259-47-0

Inclui bibliografia.

1. Superstição. 2. Medicina mágica e mística. 3. Ciên-cias ocultas - Aspectos psicológicos. I. Título. II. Série.

CDD- 615.882

Copyright© EDUSC, 1999.

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃORua Irmã Arminda, 10-50

CEP 17044-160 - Bauru - SPFone (014) 235-7111 - Fax 235-7219

e-mail: [email protected]

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Para

Mônica e Maurício

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Sumário

Prefácio

Introdução

Capítulo 1: O sagrado, a doença e as feridas simbólicas

Capítulo 2: O corpo social e as técnicas de benzedura41 O corpo, as doenças e a cura nas terapêuticas

populares46 Doença como desordem50 As benzedeiras56 O processo ritual

Capítulo 3: Mergulhando noutra realidade67 A benzedura com brasas: descrição78 Benzedura: entre o dom e o ofício92 A bênção97 Fala e (é) ação

105 O lugar da benzedeira129 Onde atua a benzedeira133 Olha o olho!

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148 O imponderável como o lugar da benzedura160 As narrativas173 Os símbolos185 A ressignificação

Capítulo 4: Benzedura e psicanálise: encontros edesencontros190 Xamanismo e psicanálise: equivalentes

invertidos192 Os efeitos da significação201 Mito individual e mito coletivo203 A influência do xamã versus a

neutralidade do psicanalista205 Sugestão210 A crença na psicanálise

Bibliografia

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Prefácio

Apenas duas das muitas qualidades do livro deAlberto Manuel Quintana, já seriam suficientes paratorná-lo leitura necessária de quantos militam nos vastoscampos da Psicologia e da Antropologia: a sua decididatransdisciplinaridade e a coragem de levar para seuespaço de atuação um trabalho sobre a benzedura e suaciência. Não uso o termo interdisciplinar, porque talabertura foi apenas o início do trabalho. Início sem dúvi-da vitalizador de qualquer reflexão e tanto maisnecessário hoje quando, como diz Balandier, a mo-dernidade embaralha as cartas; diria mais, interdiscipli-naridade inevitável quando se está trabalhando numaárea da antropologia da saúde e da doença. Dialogandoa partir de seu ponto de inserção como psicoterapeutacom uma vasta bibliografia das ciências sociais,Quintana transformou este diálogo inicial num meta-diálogo capaz de produzir um novo patamar crítico deintegração entre as áreas.

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Discute com competência, amparado em pesquisarealizada nos moldes antropológicos, as interpretações deLévi-Strauss para falar apenas de um símbolo maior da dis-ciplina. A coragem é evidente quando se pensa na estra-nheza que pode causar na sua área profissional o fato demergulhar na terapia popular, encarando com seriedade erespeito a atuação das benzedeiras. De fato, não encon-tramos aqui uma fala valorativa ou desqualificadora. Oautor coloca lado a lado profissionais saídos de universosculturais e sociais distintos, mas que lidam ambos com asmuitas facetas do sofrimento. A descrição do trabalho dasbenzedeiras é primorosa e só foi possível graças à trocaque soube estabelecer, à sensibilidade que soube desen-volver e à maturidade sem encantamento ingênuo diantedo "exótico", gêmeo do etnocentrismo; constituindo, assim,a matéria da reflexão crítica sobre a Psicanálise. O textonão se perde em respostas convencionais, nem na facili-dade escamoteadora de alguns conceitos. Passa-os todospor um crivo apertado. Centra-se inicialmente na práticaterapêutica para depois dialogar com a teoria. Começacom a benzedeira e desliza para o psicanalista. O queresponde pela eficácia, reconhecida pelo cliente, da ben-zedura? Se os símbolos são eficazes e sua eficácia pode serreconhecida tanto no campo do saber erudito como dosaber popular, é porque, e na medida em que, eles anco-ram a busca e a atribuição de sentido ao sofrimento, à dor,à angústia, à perda. Como diz o autor, dialogando comFreud e Lévi-Strauss, "aquilo que cura o paciente é a possi-bilidade, obtida com a ajuda do terapeuta, de poder colo-car em palavras algo que até o momento era impossível dese representar verbalmente"; mas isto se faz através de uma

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experiência que está estreitamente vinculada à produçãode processos significantes. Conclui o raciocínio afirmandoque qualquer que seja o processo de cura, a figura doterapeuta, "seja ele xamã, benzedeira ou psicanalista", éfundamental para sua realização. A produção de sentidonão se faz, contudo, através de uma operação meramenteintelectual. A inscrição num universo simbólico que possi-bilite a superação do sofrimento deve responder dupla-mente à exigência de sentido: para poder dar um sentido ouniverso simbólico deve fazer sentido ao que padece deuma "ferida simbólica". Por outras palavras, é fundamentalo contexto onde as falas se tornam eficazes. Crítica aosdogmatismos, desnaturalização das teorias explicativas,reconhecimento do seu caráter ideológico, são alguns dospontos altos deste trabalho. Gostaria de me deter ainda,num último ponto que me é especialmente caro: asuperação de dicotomias. Tal superação permite ver acrença como um elemento fundamental da terapia cientí-fica, magia e ciência invadindo-se sub-repticiamente,racionalidade e afetividade em relação. Que não hajaequívocos, entretanto. Numa época de supervalorizaçãoda dimensão afetiva e da emoção e de uma quase desva-lorização da razão, este livro não incorre em polarizações.Destaca as relações que se engendram na prática masexercita a razão. Aponta a ciência como produção humanadatada e contextualmente inserida. Interrogativa ou afirma-tiva, mas nunca fechada ao seu próprio e contínuo proces-so de questionamento interno e nem ao mundo que se fazpresente no pensamento e na ação dos cientistas, via ide-ologias, emoções, preconceitos e vaidades; o que constituisem dúvida a sua fragilidade e a sua fortaleza.

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É, enfim, um livro que não só convida à reflexão depsicanalistas e antropólogos, é também uma excelentecontribuição crítica ao campo de uma Antropologia daDoença e da Saúde.

Maria Helena Villas Bôas ConconeProfª Titular do Departamento de Antropologia e do

Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências SociaisPUCSP. Coordenadora do Núcleo de Estudos da Saúde PUCSP.

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Introdução

“A realidade social é um lusco-fusco, mundo de som-bras e luzes em que os atores revelam e escondemseus segredos grupais.” (Maria Cecília Minayo)

Sempre interessei-me por aquele conjunto de práticasterapêuticas presentes no nosso cotidiano mas que, fre-qüentemente, ficam escondidas no fundo do baú. Elas sãovistas como algo afastado de nós, nomeadas apenas deforma depreciativa. Estou me referindo aqui a toda gamade procedimentos conhecidos como terapêuticas popula-res. É interessante observar como a procura desses proce-dimentos de cura, normalmente considerados mágicos, ésempre referida a um outro, um conhecido, um amigo. Viade regra, quando se faz referência a eles é sempre de ma-neira jocosa. Não poderia ser de outro modo, pois, nomundo racional em que vivemos, não se podem levar a sé-rio práticas que não possuem um embasamento científico

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sob o risco de sermos ridicularizados. Por isso, tal crença ésempre creditada ao outro. Contudo, se, por um lado nãoconsideramos sérias essas práticas, por outro elas não dei-xam de nos fascinar; lemos, ávidos, qualquer material quea elas aluda. Tudo que a isso se refira torna-se objeto deinteresse e curiosidade. E se, por acaso, somos levados– por algum motivo alheio a nós; trabalho, estudo ou sim-plesmente para acompanhar um amigo – a presenciar algu-ma forma de terapêutica popular, ficamos encantados coma oportunidade única de poder participar do ritual sem terde assumir a crença.

Tais práticas não são valorizadas no mundo acadêmi-co, sobretudo na área de saúde, não fazem parte daquelasatividades que devem ser levadas a sério, porém, na vidapessoal a situação é outra. É fora das salas de conferên-cias, nos corredores, nos bares, nas conversas informaisque elas marcam sua presença. Envergonhamo-nos denelas acreditar, mas na calada da noite as procuramos as-pirando ao impossível.

Este encantamento pelo oculto, pelo mundo no qualo irrealizável parece poder ser alcançado, baseia-se emnosso conhecimento de que, mais cedo ou mais tarde, ire-mos defrontar-nos com o real; noutras palavras, com o im-possível de modificar. Nesse instante, nosso universo desentido desaba e uma das poucas formas de mantê-lo empé é adentrarmos nessa terra de mistérios.

Enfim, cabe perguntar-nos: em que consiste esse fas-cínio que os processos mágicos exercem sobre nós? Todosnós, algum dia, já presenciamos um show de mágica. Sepensarmos mais detidamente sobre isso veremos que, aocomprar um ingresso, o que estamos fazendo é pagar para

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sermos enganados. Sabemos que se trata de um embuste,mas saímos satisfeitos se o mágico for suficientemente há-bil para impedir-nos de ver o truque, pois assim fica aber-ta a possibilidade de que alguma mágica tenha acontecidode fato. É nisso que reside o encanto do mágico: ele noscoloca numa situação na qual sabemos que há um truquemas, no entanto, ao não poder identificar onde o mesmoteve lugar, ao não poder desvendá-lo, fica aberta a portaque nos possibilita continuar acreditando que ali existiumagia. É por sabermos que a mágica é impossível que nosencantamos com a ilusão de que ela aconteceu. Além dis-so, se aquilo que o mágico se propõe a fazer estiver dentrodaquelas coisas consideradas factíveis, não existiria magiae todos nós sairíamos frustrados do espetáculo.

Com efeito, a crença na magia nos permite manter ailusão de que possuímos algum tipo de controle sobre osnossos destinos. Não seríamos, então, seres tão indefesoscujas vidas são resultado de inúmeros acasos.

É sobre esse universo do fortuito, do imponderável,zona prioritária da atuação das benzedeiras, que este livrovai discorrer, procurando desvendar o tipo de lógica pre-sente nessas práticas. Inicialmente, podemos dizer que asbenzedeiras nos acenam com um discurso através do qualpodemos, de alguma maneira, ter um controle um poucomaior sobre as adversidades do destino. Contudo, não é so-bre o futuro que recaem os efeitos da benzedura; ela pos-sibilita, principalmente o reconhecimento das leis que de-terminaram nosso passado e, através delas, podemos res-significá-lo, modificando, assim, o nosso presente.

Com efeito, pretendemos, além de possibilitar a com-preensão de uma prática mágico-religiosa, ao vislumbrar a

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lógica intrínseca desses procedimentos, poder tambémdesmistificar a pretensa racionalidade do nosso pensamen-to. Propomos, desta forma, entender o fascínio que a ma-gia exerce sobre nós ao aceitar que qualquer um pode serpego por um discurso como o do mau-olhado, uma vezque todos estamos sujeitos a perder as referências de nos-sas realidades construídas

Este olhar voltado para a benzedura nos permite umacompreensão das terapêuticas oficiais, principalmenteaquelas encarregadas do tratamento daquilo que aqui de-nominamos feridas simbólicas, ou seja, as rupturas nas rea-lidades construídas que impossibilitam à outorga de senti-do a nossas vidas. De fato, o aprofundamento na com-preensão das técnicas da benzedura nos possibilitou obser-var semelhanças entre esta terapêutica e as de cunho psi-cológico, especialmente as de orientações psicanalíticas.

Para a realização do trabalho de pesquisa que funda-menta as idéias deste livro, adotamos a concepção de ciên-cia em que tanto o sujeito quanto o objeto formam partedesta, em que a neutralidade é um objetivo a ser persegui-do e não uma condição a ser cumprida, e que aquilo queestamos procurando não é uma verdade a ser alcançada,mas sim significados a serem compreendidos. Significadosque nos permitam construir caminhos para pensar, porintermédio da benzedura, outras formas de construção darealidade. Por isso, optamos pelas técnicas de entrevistassemi-estruturadas e observação participante.

Decidimos pela utilização de entrevistas pelo fato deelas nos proporcionarem inicialmente uma noção geral dasdiferentes técnicas empregadas pelos terapeutas populares,bem como uma primeira aproximação destes com o objeti-

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vo de uma posterior escolha de com quem iríamos trabalhar.Assim, num primeiro momento, foi nosso intuito conheceras características de determinada técnica: a forma de traba-lho, a freqüência com que era empregada, a maneira comoo conhecimento foi adquirido, as primeiras bênçãos realiza-das, a clientela atendida e as problemáticas tratadas. Paratanto, realizamos entrevistas com vinte e três benzedeiras etrês benzedores; parte destes pertencente à zona rural deSanta Maria, RS, enquanto outros residem na própria cida-de. As entrevistas foram gravadas, e antes de iniciadas erasolicitada autorização ao entrevistado, tendo somente umapessoa se negado à gravação. Na maioria quase absoluta doscasos, foi realizada mais de uma entrevista com cada pessoa.

Posteriormente, quando da observação participantejunto a uma das terapeutas, a observação foi intercaladacom entrevistas, visando esclarecer pontos que haviam fi-cado confusos durante a etapa de observação.

Pelo período de três anos acompanhamos, de formasistemática, o trabalho da benzedeira conhecida comoDona Helena. Durante este tempo, ficou clara a mútua in-fluência existente entre o sujeito e o objeto da pesquisa.Nossa simples presença durante o trabalho de benzeduraimpunha uma modificação à prática. Ao sermos incluídosno processo terapêutico, este passou a sofrer modificações,talvez na mesma medida em que íamos sendo modificadospor ele. A diferença social entre pesquisador e pesquisadoesteve presente a todo momento, sobretudo no fato de opesquisador poder participar da benzedura. Nossa partici-pação por vezes significou um verniz cultural ao trabalhoda benzedeira: “um professor que está ajudando!; um dou-tor que veio estudar a benzedura” (segundo Dona Helena).

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Ainda que sempre considerados como pertencentes aum outro grupo social, o temor inicial foi, contudo, se desfa-zendo até chegar a sermos vistos como parte do ritual. Assim,não foi somente do nosso lado que se deram mudanças noprocesso da benzedura. Na medida em que os códigos utili-zados se tornavam mais claros para nós, na medida em queeles começam a fazer sentido, passamos, de alguma forma, aparticipar dos seus valores. As noções de inveja e ciúme, ca-tegorias constantemente usadas para obter uma compreensãodos acontecimentos, por momentos se tornaram presentes naanálise que fazíamos de diversas situações.

Poderíamos, como pesquisadores, assumir uma posi-ção diferente da que tivemos ao nos engajar como partíci-pes do processo? Acaso seria possível compreender umaconcepção de mundo sem dela participar, de algumaforma, mesmo que esta participação fosse temporária e in-completa? Acreditamos que não.

De fato, a observação participante requer algo a maisque a presença do pesquisador nas atividades exteriores dogrupo; ela exige que se compartilhe também de seus inte-resses e afetos, pois somente ao assumir o papel do outro éque se poderá atingir o sentido de suas ações [(Haguette,1995, p. 72)].

Antes de realizar uma abreviada exposição dos con-teúdos de cada capítulo, gostaríamos de realçar que estetrabalho se constituiu, para nós, uma viagem a um mundodesconhecido e também perigoso, no sentido de que, emmuitos momentos, vimos questionadas certezas que nosacompanharam durante anos no exercício da nossa profis-são de psicólogo. Esta viagem pode ser vista, inicialmente,como uma tímida aproximação deste outro universo que,

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pouco a pouco, vai tomando forma, até que, no último ca-pítulo, esboçamos uma tentativa de costura da terapêuticada benzedura com a prática da psicoterapia.

No primeiro capítulo, a perspectiva adotada impõe olevantamento de algumas questões que dão conta da pre-sença de processos que podem ser denominados sagradostanto nas terapêuticas oficiais como nas populares: 1) exis-te algo inerente a qualquer processo de cura que o colocainexoravelmente no campo do sagrado? 2) sendo assim, oque vai caracterizar este sagrado e quais suas vinculaçõescom a doença e a cura? A tentativa de esclarecimento des-sas perguntas vai ser o eixo norteador da parte inicial donosso trabalho.

No capítulo subseqüente, partimos da análise docorpo e da doença como representações sociais. Vamos re-tomar a idéia segundo a qual a eficácia das terapêuticaspopulares reside em construir, em conjunto com o cliente,um representante por meio do qual se possa pensar a razãoda perturbação. Apresentamos, posteriormente, uma des-crição dos tipos de benzedura mais utilizados. Neles en-contramos elementos simbólicos: as rezas, a utilização debrasas ou galhos com os quais se faz o sinal da cruz; comotambém podemos observar elementos técnicos: chás, po-madas (industrializadas ou de fabricação própria), remé-dios etc. Contudo, tanto as rezas quanto os chás somenteadquirem um sentido, e, portanto, se tornam eficazes,quando inseridos no contexto ritual.

Iniciamos o terceiro capítulo com um relato detalha-do do ritual da benzedura com brasas no qual pudemosrealizar o trabalho de observação participante de formamais sistemática. Dentre os diversos aspectos abordados

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neste capítulo, cabe destacar os seguintes tópicos: primei-ro, a forma de adquirir os conhecimentos necessáriospara o ofício de benzedeira, normalmente relacionadacom a obtenção de um dom; segundo, as relações entrefala e ação, em que a primeira é vista como já possuindoum componente de tendência ao ato; terceiro, o lugar es-pecial que a benzedeira ocupa em relação ao cliente, es-tabelecendo-se uma dissimetria que garante à benzedeiraa posição de sujeito do suposto poder fundamental paradesempenhar com êxito sua função; quarto, a descriçãodas circunstâncias em que é propícia a utilização da téc-nica da benzedura, destacando, entre elas, aquelas queconsideramos ser a atividade principal dessas terapêuti-cas: a luta contra o mau-olhado; quinto, mostramos, naseqüência, como nessa luta se constrói, durante o proces-so ritual, uma narrativa composta, simultaneamente, compartes do discurso da benzedeira e do cliente. Nesse pro-cesso de construção são utilizados, por parte da benze-deira, diversos símbolos, como o esquerdo, a cruz, onúmero três, a água, o fogo, a estruturação do ambienteno qual se efetua o ritual e também, a própria figura dabenzedeira, que se constitui no símbolo da eficácia desua terapêutica.

No quarto e último capítulo, propusemo-nos levantaros pontos de encontro e de desencontro entre a benzedurae a psicanálise. Inicialmente, questionamos as oposiçõescolocadas por Lévi-Strauss entre esta última e o xamanis-mo. Abordamos, a seguir, a questão dos efeitos de signifi-cação, procurando realizar uma articulação entre as defini-ções sustentadas por Lévi-Strauss e pela teoria psicanalíti-ca. Posteriormente, afirmamos que a função da benzedei-

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ra, como também a do psicanalista, consiste em realizarum enlace entre o fator originário do sofrimento e aquiloque se pode denominar o mito verdadeiro. Finalmente, dis-cutimos o maniqueísmo que coloca ao lado da benzeduraa imparcialidade, a sugestão e a crença, enquanto para àpsicanálise ficam reservadas a neutralidade, a efetiva mu-dança e o embasamento científico.

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1O Sagrado, a Doença e as Feridas

Simbólicas

“A penitenciária existe onde se dão machadadas quenão têm sentido, que não ligam aquele que as dá àcomunidade dos homens.” (Antoine de Saint-Exupery)

Tentativas de encontrar padrões que diferenciem asterapêuticas populares das oficiais surgem, repetidamente,na literatura destacando processos mágico-religiososcomo a linha divisória entre elas. De fato, tais processossão considerados uma característica específica das tera-pêuticas populares, não sendo verificados, em princípio,na medicina oficial.

Temos observado, no entanto, que esta diferença nãoé tão radical assim; um olhar mais demorado permite vi-sualizar a presença do religioso também na medicina ofi-

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cial: as capelas no interior dos hospitais, a existência decrucifixos e imagens de Jesus Cristo nos quartos, as Bíbliasnas saídas das Unidades de Terapia Intensiva e, sobretudo,o nome de santos dados a muitos destes sanatórios delatama presença, não explícita, do religioso dentro do espaço damedicina oficial (Neves, 1984).

De fato, a análise das relações entre a prática médicae as terapêuticas populares estabelece uma clivagem força-da: do lado da medicina estariam o empírico, a farmaco-péia, o racional e o orgânico, entre outros; e do lado daspráticas populares, encontraríamos o simbólico, o ritual, oirracional, o psicológico e o social. Entretanto, não exis-tem, na verdade, práticas puramente científicas ou pura-mente mágico-religiosas (Laplantine, 1991).

Noutras palavras, afirmamos que, as terapêuticas cien-tíficas – tal como as terapêuticas populares – são perpassadaspor processos mágico-religiosos1.

Assim, ao aprofundarmos no estudo das terapias popu-lares e, através delas, passamos a olhar com um certo estra-nhamento a medicina oficial, pois começam a brotar, diantede nós, os processos mágico-religiosos como cogumelos

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1. Contudo, deve-se ter presente que esses processos mági-co-religiosos se apresentam de maneiras diferentes nas tera-pêuticas populares e nas científicas. Nas primeiras, elesocupam um lugar central tanto nos seus procedimentos te-rapêuticos como na sua lógica interna. Já nas terapêuticascientíficas, os processos mágico-religiosos se apresentam demaneira periférica, sendo também excluídos de seu discur-so explícito.

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após a chuva. Eles parecem estar presentes em qualquer pro-cedimento terapêutico, sejam eles oficiais ou populares.

Por conta disto, enfrentamos uma série de questiona-mentos: essa ligação de toda terapêutica a processos mági-co-religiosos é uma ligação necessária? Em outras palavras,existe algo inerente ao processo de cura que o coloca ine-xoravelmente no campo do sagrado? E, sendo assim, o quevai caracterizar esse sagrado e quais suas vinculações coma doença e a cura? A tentativa de esclarecimento dessas per-guntas vai definir os rumos deste capítulo.

Todo processo terapêutico gira, inevitavelmente, emtorno da doença, e é sobre ela que inicialmente nos debru-çaremos. Via de regra, a classe médica põe ênfase no fatode que as doenças teriam um componente estritamentebiológico, excluindo assim qualquer relação da doençacom a realidade social e cultural. Contudo, compreen-demos que, a doença é uma linha contínua, que tem a saú-de e a doença em cada um de seus extremos. Esta últimanão se desenvolve somente no interior da pessoa, mas simentre ela o ambiente (Berlinguer, 1988).

A antropologia médica norte-americana nos mostra essarelação da doença com o social ao definir dois termos diferen-tes: disease, que em português teria como equivalente o termoenfermidade, constituiria a alteração orgânica; e illness, querepresentaria a doença, a resposta subjetiva do paciente, o sig-nificado que o indivíduo confere a esta (Helman, 1994). Em-bora essas duas denominações ou níveis possam se diferen-ciar, na prática sempre se apresentam superpostas.

Se, por um lado, a medicina pretende restringir adoença a seu aspecto meramente orgânico, por outro, em

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sua atuação, ela deixa transparecer as articulações dadoença com o social, uma vez que a atuação médica sedissemina por todo o tecido da sociedade: há atuação damedicina no seio da família, no trabalho, nos costumes so-ciais, alimentares, hábitos de higiene e de vida, no urbanis-mo, no trânsito etc. É difícil achar um campo do social emque a medicina não se faça presente. Desta forma, contra-riando seu próprio discurso, a medicina, em alguns aspec-tos, considera que a doença ultrapassa o aspecto biológi-co. É interessante ressaltar essa contradição: na sua verten-te preventiva, a medicina se expande no corpo social, aopasso que, na sua prática terapêutica, esse contexto sócio-cultural do paciente é expurgado.

Podemos dizer, aliás, que essa separação entre saúdee doença é arbitrária, não existindo uma linha divisória en-tre as duas. Saúde e doença são processos contínuos queforçosamente se tenta separar como uma forma de contro-le da doença afastando-a da saúde, tal como se pretendeafastar a morte da vida.

Enfim, essa separação da doença do meio cultural nãose verifica de fato porque suas repercussões incluem inexo-ravelmente o tecido social. A doença integra a ordem bioló-gica com a ordem sóciocultural ao produzir alterações tantono corpo do sujeito como nas suas funções sociais (Knauth,1992). Essas relações sociais podem incluir o trabalho queum indivíduo desempenha, suas relações na comunidade, apercepção dessa doença pelos vizinhos, sua vida familiar, aprópria economia etc. A doença nunca se esgota, portanto,no indivíduo doente, nem surge separada do social.

Nem mesmo a própria medicina se apresenta inde-pendente do contexto sóciocultural, registrando variações

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entre a medicina oriental e a ocidental. Existem também di-ferentes modelos médicos: bioquímico, imunológico, viral,genético etc (Helman, 1994). Essas mesmas variaçõespodem ser observadas dentro das especialidades médicas,como por exemplo as discrepâncias entre o obstetra e o pe-diatra em relação ao parto.

A ligação da doença com o social pode ser verificadatambém na demanda de uma explicação que a doençagera a qual deve dar conta dos componentes biológicos, esobretudo de seus componentes sócioculturais. Primeiro:Que está me acontecendo?, e depois, Por que tudo isto estáacontecendo comigo?

Isto se faz presente nas explicações que as diversassociedades dão à doença. Há a exigência de conhecer acausa do problema, mas, fundamentalmente, o que existe é ademanda de um sentido que possa dar conta tanto do porquêdo mal biológico como também da sua origem, quais as cir-cunstâncias que possibilitaram que ele emergisse.

Acreditamos ter esclarecido que a doença não podeser vista como um processo isolado do seu contexto social,porém, o que ainda fica um tanto obscuro é o porquê daexigência de um sentido.

Para esclarecer por que as pessoas precisam entendero que está acontecendo com elas e apreeder o sentido dasua doença faz-se necessária a compreensão da própriaconstituição do ser humano.

O que diferencia o homem do animal é que aquelechega ao mundo totalmente despreparado, não traz na suabagagem genética uma forma determinada e única de in-terpretar o mundo circundante. Qualquer animal, ao nas-cer, traz em seu código genético a compreensão das coisas

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que o rodeiam. Por esse código o animal identifica aquiloque é seu alimento, sua presa e seu caçador. Esse códigodetermina como deve ser seu comportamento: único, fixopara cada situação. Noutras palavras, para o animal, o sig-nificante já vem amarrado a seu significado. Nada escapaa essa teia que o intermedeia com o real, uma vez queaquilo que não está anteriormente significado é algo quenão é significativo mesmo, que não pertence ao universodas coisas.

Por isso, enquanto nos mamíferos superiores os pro-cessos fundamentais de seu acabamento ocorrem duranteo período fetal, no ser humano estes se dão após o nasci-mento, portanto em interação com o ambiente. Por ser ohomem um ser inacabado, seus instintos não vão ter o ca-ráter especializado encontrado nos instintos dos animais(Berger, 1985).

A psicanálise também faz essa diferenciação dos ins-tintos do ser humano em relação aos do animal. Para tanto,ela vai utilizar dois termos diferentes: instinto para referir-se ao animal, que seria “um esquema de comportamentoherdado, próprio de uma espécie animal, que pouco variade um indivíduo para outro” (Laplanche & Pontalis, 1967,p. 314), e o termo pulsão, próprio do ser humano, que con-siste numa pressão ou força que aponta a condutas indeter-minadas, as quais não seriam definidas geneticamente, esim culturalmente.

Vemos, assim, que, tanto na visão de Berger (1985)como na de Freud (1987), o genético vai ser completadopelo social. Se, por um lado, isso dá ao ser humano a pos-sibilidade de construir seu próprio mundo em razão da fal-ta de um mundo humano, por outro, esse mundo, essa se-

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gunda natureza construída pelo homem se caracteriza porsua possibilidade de ser mudada, ou seja, por sua precarie-dade. Se é necessário que se construam mundos, é muitodifícil mantê-los em funcionamento (Berger, 1985, p. 19).

Se, como dissemos anteriormente, o que separa o ho-mem do animal é seu despreparo em relação ao mundo, oque o aproxima é a fala. Vai ser por meio dela que o ser hu-mano tentará compensar a falta desses códigos genéticos e,assim, igual ao animal, ter uma matriz por meio da qualdotará o mundo de significado. Contudo, o que no animalprovém de uma fonte intrínseca – o código genético –, noser humano provém de uma fonte extrínseca – a cultura –que vai fornecer os códigos, os programas que modelamseu comportamento e que lhe permitem compreender omundo que o rodeia; noutras palavras, torná-lo inteligível(Geertz, 1978).

Desta forma, vemos que o ser humano fica totalmentedependente dessas construções simbólicas, semelhante aoanimal que morre se, por algum problema genético, care-ce da bagagem instintual que lhe permita orientar-se nomundo. Por sua vez, o homem não pode sobreviver sem ossistemas simbólicos. Por isso, qualquer coisa que colocaesses sistemas em xeque, que ameaça sua unidade e suacoerência se torna por demais angustiante, intolerável. Nosmomentos em que a coerência desses códigos culturaisfica enfraquecida, o ser humano se depara com sua verda-deira condição de fragilidade diante do mundo. Na medi-da em que o real abre brechas nessas construções simbóli-cas, obriga o homem a deparar-se com sua impotência,uma vez que esses padrões culturais lhe dão a ilusão decompletitude da qual ele carece.

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Porém, que situações seriam essas em que o real seimpõe, em que ele emerge apesar dos esforços de mantê-lo amarrado, controlado?

Para adentrarmos nessa temática, recorreremos, prin-cipalmente, a dois autores: Berger e Morin. Este último afir-ma que a novidade do sapiens não está na cultura, na téc-nica nem na sociedade. Sua novidade se encontra na sepul-tura. A sepultura dos mortos não tem apenas a finalidade dolivrar-se dos despojos, ela implica irrupção da morte na vidado homem. O autor nos mostra que a morte é vista comotransformação de um estado para outro. De outro modo, re-nascimento ou sobrevivência do “duplo” indica-nos que oimaginário irrompe na percepção do real e que o mito ir-rompe na visão de mundo (Morin, 1975, p. 103).

Ele nos mostra como o sapiens desenvolve sistemaspara enfrentar a morte, para lidar com aquilo que assinalaa perda de sua onipotência. Os funerais seriam ritos queprotegem o vivo da irritação dos mortos.

O homem apresenta uma consciência da morte, con-tudo, é uma consciência muito particular pois, se, por umlado, ele reconhece que é mortal, por outro, existe umaconsciência paralela que a nega e acredita na sua imortali-dade, ou mais propriamente numa transmortalidade. Sãoos rituais de morte que permitem manter essa consciênciaparalela. É por meio deles que se exprime, reabsorve e seexorciza, ao mesmo tempo, um trauma que provoca aidéia de aniquilamento (Morin, 1975).

Mas será que é do morto que os homens querem pro-teger-se, ou daquilo que ele representa? A morte se apre-senta como a situação limite extrema, uma situação que,como veremos mais adiante, escapa à realidade social, isto

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é, tudo naquele mundo se torna incerto, finalmente irreal,diferente do que se costumava pensar (Berger, 1985, p. 57).

Vemos, assim, que a morte é vivenciada pelo ser hu-mano como uma catástrofe irremediável; mais ainda, nãosomente existe uma recusa da morte, ela é vencida, ludi-briada, escamoteada por intermedio do mito e da magia.

O homem percebe essa morte, mas ao mesmo tempoa recusa, pois ela rasga, separa, abre uma brecha até a di-laceração, e deve ser preenchida com os mitos e os ritos desobrevivência (Morin, 1975).

Defrontados com o temor da morte, os ritos vêm nosdefender dela. Essa afirmação de Morin coincide com a deBerger, quando este nos diz que o conhecimento da mor-te não escapa a nenhuma sociedade, e que tal conheci-mento desequilibra todas as definições socialmente obje-tivadas. Todas as sociedades vão demandar uma legitima-ção, ou seja, uma explicação e justificação. Esses proces-sos de legitimações passariam principalmente pela reli-gião (Berger, 1985).

De fato, o sentido do mundo e da vida é uma questãoda qual deve dar conta a metafísica:

A última questão de toda metafísica desde sempre temsido esta: se o mundo como um todo e a vida em par-ticular devem ter um “sentido”, qual pode ser este eque aspecto deve tomar o mundo para se ajustar aele? (Weber, 1944, p. 127)

Aqui fica clara a ligação dos processos mágico-reli-giosos como forma de dominar o caos e, portanto, reduzir,a impotência do ser humano. Mas não é somente a morte

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que gera essa ameaça de sentido, outras situações tambémtêm esse efeito. Por estar a doença diretamente ligada coma morte é dela, também, que o homem deve defender-se.

Acreditamos, pois, que a morte se torna um lugar sa-grado, lugar de rituais em que se procura controlá-la. Adoença, por constituir-se uma possibilidade ou um preâm-bulo da morte, também deve seguir esse caminho.

O ser humano, como já vimos, se nega a aceitar oreal, um real que marca sua fragilidade. Esse real rompe,por assim dizer, com toda uma realidade, com a constru-ção de uma determinada ordem sociocultural que permitesubstituir a natureza da qual o homem carece. Portanto,tudo aquilo que escapa a ela é visto como algo incontrolá-vel e ameaçador.

As leis sociais, para serem eficazes, devem ser tidascomo naturais. O real abre brechas nessas construçõessimbólicas; brechas que, por escaparem às explicações dasleis sociais, são colocadas como processos de uma outraordem diferente da ordem natural. Essa outra ordem é a dosobrenatural, do sagrado, lugar onde se manifesta essa ou-tra realidade diferente das naturais e, portanto, profanas(Eliade, 1992).

Poderíamos, então, entender aqui o sagrado comoaquilo que não se enquadra nos códigos disponíveis comos quais interpretamos a realidade. Por estar fora dessescódigos sociais, o sagrado escapa ao controle do ho-mem. Abre uma fissura, como já vimos; ameaça todo osistema simbólico construído; sistema este que, sem oqual, como disse Geertz (1978), o ser humano se encon-traria mais perdido que um castor sem seus códigos ge-néticos.

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Urge, então, preencher esse vazio, fechar essa bre-cha, o que será conseguido por intermédio dos ritos. Esteespaço sagrado, ao ser recoberto pelo rito, vai se transfor-mar num espaço de forte significação, ou poderíamos dizersobre-significação, uma vez que é sobre um determinadosignificado que se constrói o símbolo.

Vemos que essa fenda que é aberta pela morte e peladoença, que são percebidas como não pertencentes à vidacotidiana, é preenchida pelo rito. Este tem por função re-criar os códigos por meio dos quais um determinado grupose relaciona com o mundo circundante. Na verdade, esserito se constitui numa fala, uma mensagem que tenta impora onipotência imaginária ali onde o real se faz presençaameaçadora.

A doença, pois, se torna algo incompreensível, inin-terpretável para o ser humano. A doença e o sofrimentoque ela comporta se nos apresentam sempre, sem dúvida,como algo inexplicável, como algo sem sentido. Por queadoeci? Por que eu? E se adoeci, por que não me curo?Qual é o sentido disso que está me acontecendo?

Ao deparar-se com a morte, o sujeito se coloca frente afrente com a fragilidade humana e, por sua vez, com a faltade sentido que questiona a totalidade das construções sim-bólicas pelas quais se orienta no mundo. Surge, então, a ne-cessidade de cobrir essa ruptura, de obturar essa falha medi-ante novas construções simbólicas. Porém, elas vão ter umadiferença em relação às anteriores, pois têm uma função es-pecífica, como acabamos de ver: a de dar conta daquelesprocessos que as construções simbólicas do cotidiano nãodão; ou seja, de dar conta e, portanto, manter a ilusão deque nossas construções simbólicas se equivalem ao real. As

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coisas que a ela escapam pertencem a uma outra realidade,a uma outra ordem: a ordem do sobrenatural, do sagrado.

Porém, se o sagrado aparece naqueles lugares ondeexiste, como já dissemos, uma falta de significação origina-da por uma quebra na organização simbólica, é de pensarque cada vez que surge a doença, vai também surgir a fal-ta de sentido, o sobrenatural, o sagrado e, portanto, a ne-cessidade do rito como forma de dar conta desse sagrado.

Seguindo essa linha de pensamento, podemos nos in-dagar se a figura do médico não é a daquele que vem res-taurar uma ordem perdida. Sua função é de ser aquele quevai eliminar a doença. Assim, ele se coloca no lugar dequem tem um poder especial para recompor a ordem. Masnão é só a eliminação da doença que vai permitir essa re-composição, pois, embora a doença desapareça, a fraturaque ela impõe no universo simbólico continua a reclamaruma significação, sob ameaça de que todo o restante domundo perca também seu sentido. Tudo, absolutamentetudo, deve ter um sentido, senão nada tem sentido.

É nessa linha que Eliade (1992) nos alerta para os pro-cedimentos de cura nas sociedades tribais, onde fica evi-dente a importância do ritual explicitar a origem do sofri-mento para que o medicamento produza efeito no doente.

Esse é um bom exemplo que nos revela como a funçãoterapêutica não se esgota na parte orgânica – erradicaçãodos sintomas e suas causas – , ela deve também cumprir afunção de reconstituição de um universo simbólico que,com o surgimento da doença, foi igualmente afetado.

Todavia, devemos destacar aqui que a doença é vistacomo algo que está fora do cotidiano, o que traz comoconseqüência a necessidade de outorga de sentido aos pro-

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cessos de cura. Noutras palavras, a demanda de o curadorpossuir a capacidade de, por meio de sistemas simbólicosespecíficos, possibilitar ao doente uma explicação quepossa dar coerência à sua aflição (Leal, 1992).

Como já é sabido, o que caracteriza o homem é afala. É através dela que podemos construir os universossimbólicos. Contudo, ela é, na maioria das vezes, negligen-ciada no processo terapêutico da medicina oficial. O peri-go dessa postura está em que, ignorando-se não somente aimportância, como também a própria existência do inter-câmbio simbólico implicado em qualquer ato médico,este, fique truncado, transformando-se, assim, em umamera ação técnica, na qual o paciente fica reduzido a umobjeto (Laplantine & Rabeyron, 1989).

Defrontamo-nos, então, com a importância do símbo-lo presente em qualquer tipo de terapêutica, seja ela reali-zada por um curandeiro ou por um psicanalista (Turner,1974). De fato, a possibilidade de simbolizar, de poder in-tegrar num contexto significativo um estado que escapa aopercurso natural da existência possibilita transformar o pe-rigoso ou prejudicial em algo nominável, tangível, e por-tanto passível de ser modificado. Não é isso que faz o psi-canalista ao possibilitar aos pacientes a sua inscrição numahistória?

Com efeito, a palavra que designa o objeto se trans-forma em seu duplo. Portanto, a partir do momento em quese nomeia o objeto através da palavra, pode-se controlar onomeado na sua ausência (Morin, 1975). O objeto pormeio da palavra se torna presente, ainda que ausente. Nãomais se faz necessário agir sobre os objetos, pois se podeagir sobre seus duplos: imagens, símbolos.

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Embora ainda não tenhamos feito um estudo sobre isso,arriscamo-nos a dizer que, na maioria das sociedades, essasduas funções terapêuticas – cura da doença e restabeleci-mento do sentido – ocorrem de forma paralela. A nossa so-ciedade talvez seja a única que tentou separar esses dois as-pectos. Contudo, isso não foi sempre assim. Inicialmente, areligião e a terapêutica estavam interligadas; a cura do espíri-to e a do corpo se apresentavam juntas. Tanto é assim quesegundo Lopes (1969), a História da Medicina é intimamen-te ligada à Historia das Religiões. Além disso, a medicina era,em seus primórdios, uma mistura de física e de conhecimen-tos práticos, permanecendo ainda a ciência médica influen-ciada pelas potestades celestes (Santos Filho, 1991).

Entretanto, na medicina, essa vinculação com processosmágico-religiosos era vista como algo que impedia seu avançoem direção a procedimentos científicos. Isto pode ser observá-do claramente na medicina européia do Renascimento, quereagiu contra aquilo que chamava de medicina árabe, conside-rada uma mistura de ciência oriental e misticismo, da qual de-viam desvencilhar-se, uma vez que a metafísica impedia a pes-quisa e o desenvolvimento científico (Cf. Pereira, s.d.).

Assim, paulatinamente, a medicina foi se afastandoda religião, mas levou consigo um conjunto de construçõessimbólicas que, posteriormente, tentou excluir. Foi a partirde sua aliança com o positivismo que ela tentou desvenci-lhar-se de todo aspecto subjetivo.

Em seu afã de objetividade, de procura de um positi-vismo, a medicina exclui a questão do sujeito da doença,ao reduzir, em prol da causalidade, a úlcera do estômagoa um buraco que deve ser eliminado (Cf. Laplantine & Ra-beyron, 1989).

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O que é interessante observar nesse processo é que osaspectos sagrados nas diferentes terapêuticas médicas nãodesaparecem, eles são empurrados para uma zona obscura,da qual ressurgem, por vezes, transvestidos de cientificismo1.

Por isso, a eventual dimensão religiosa da medicinanão fica visível para a população. Arriscamo-nos a dizerque ela não é percebida nem pelos médicos nem pelosseus pacientes. Os primeiros acreditam estar exercendouma atividade cem por cento científica, livre de aspectosmágico-religiosos (Laplantine, 1991).

Essa permanência do sagrado na medicina é fácil deser constatada até na própria figura do médico, o qual secoloca como Senhor da vida e da morte. A equiparação dafigura do médico a um ser todo-poderoso está presentetambém na obra de Freud, onde ele por vezes assevera queo médico, e principalmente aquele que exerce uma cáte-dra na universidade, é visto como alguém próximo deDeus (Freud, 1973a). Mas é no trabalho sobre O esqueci-mento de nomes próprios (Freud, 1973b) que se pode ob-servar um desejo inconsciente do próprio Freud de ocuparesse lugar.

1. Como já dissemos, a presença de crucifixos nos quartosde hospitais, as capelas, os nomes de santos dados a muitosdesses sanatórios, a disposição dos móveis no consultório, aexposição dos diplomas na parede, a utilização da escriva-ninha como forma demarcadora do espaço são maneiras deapontar para o sagrado. Não podemos nos esquecer das au-las de anatomia, no início do curso de Medicina, quando osestudantes são confrontados com corpos retalhados como seisso fosse um rito de iniciação e, ao mesmo tempo, um exor-cismo da morte.

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Porém, isso não deve ser tomado como uma caracte-rística individual, uma vez que está vinculado com a legi-timação de uma determinada realidade ao relacioná-lacom uma realidade última, universal e sagrada. Assim, omédico, através dessa equiparação entre as duas esferas,representa num outro plano, o todo-poderoso, reafirman-do, assim, sua realidade como a única e verdadeira. Nãose trataria aqui, pois, de uma característica pessoal daque-le indivíduo, que em determinado momento exerce a pro-fissão médica, mas do papel social que ocupa essa profis-são e sua função legitimadora.

Pelo comportamento médico se pode observar comoexiste uma crença disfarçada de que a morte pode ser con-trolada, dominada. Não somente a morte, também a vida ea criação estariam sob seu domínio através da engenhariagenética. Acreditamos que não estaríamos sendo demasia-do fantasiosos se disséssemos que a aspiração da medicinaé a de chegar a ter, de dentro de seus laboratórios, o poderde controlar a vida e a morte. Desta forma, na mesma me-dida em que a medicina tenta excluir de sua prática os pro-cessos subjetivos que têm por função intermediar o real,ela se coloca como aquela que pode controlá-lo. Noutraspalavras, quanto mais a ciência médica tenta excluir de suaprática processos mágico-religiosos, tanto mais tem a pre-tensão de ocupar esse mesmo lugar – a medicina é nossareligião (Laplantine, 1991).

A medicina acredita que não precisa de meios simbó-licos para intermediar o real, pois ela se crê portadora demeios técnicos para dominá-lo. Ela substituiu a intenção de

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dar um sentido ao mundo pela pretensão de controlá-lo.Assim, ela se convence de que por intermedio do positivis-mo obteve controle sobre a doença e a morte; quando, narealidade, somente perdeu o domínio sobre o universosimbólico.

Isso talvez tenha relação com o fato de que nossa so-ciedade seja, quiçá, a única a ter especialistas científicospara tratar exclusivamente de ferimentos simbólicos. As di-versas técnicas psicológicas são terapêuticas oficiais que seapresentam como métodos de cura dos processos de sim-bolização, porém isoladas de recursos farmacopéicos. To-davia, ela só faz sentido num universo científico, o que nosleva a um outro aspecto já trabalhado anteriormente, masque cabe destacar aqui: essa produção de sentido que sefaz necessária em todo processo terapêutico tem que vir aoencontro do universo cultural da população. A reduzidaoutorga de sentido que restou à medicina oficial vai aoencontro da visão de mundo das classes média e alta, quetêm uma tendência ao individualismo e à separação dosaspectos biopsicossocial. Para os grupos populares, essaseparação entra em choque com seu universo cultural, noqual existiria uma integração desses três aspectos1.

Não devemos também nos esquecer de que os proce-dimentos terapêuticos são uma forma de reconstruir deter-minados códigos sociais, de fomentar uma coerção social.

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1. Isso pode ser visto nas representações da doença encon-tradas na Umbanda (Cf. Montero, 1985).

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E, portanto, em certa medida, também configurariam umaforma de poder. Por isso, nos grupos populares, duvidar daidéia do médico não é só duvidar do profissional, é tam-bém questionar toda uma forma de pensar o mundo, umadeterminada estrutura social. Neste sentido é que as práti-cas de cura populares são vistas como uma ameaça quedeve ser combatida.

Essa constatação nos leva à questão se essa outorgade sentido das terapêuticas não seria também um processode dominação, de manutenção de uma determinada estru-tura social? Daí a necessidade de estarmos alerta para a ou-torga de um sentido que não se integra, ao contrário, sechoca, com o universo cultural da população que se pre-tende ajudar.

Gostaríamos assim de ressaltar que essa separaçãoradical entre terapêuticas científicas e mágico-religiosasnão é passível de defesa a partir do momento em que adoença traz em si a ruptura do universo simbólico. Portan-to, ao trabalhar com ela, mergulhamos, irremediavelmen-te, no universo do sobrenatural, do sagrado. Quer queira-mos, quer não, ele vai aparecer. Assim, a pergunta não étanto se ele está ou não presente, e sim: o que vamos fa-zer com o sagrado?

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2O Corpo Social e as Técnicas de

Benzedura

“Não é porque uma crença é verdadeira que uma co-munidade inteira acredita nela; é porque a comunida-de acredita coletivamente nela é que ela é verdadei-ra.” (Carlos Brandão)

O Corpo, a Doença e a Cura nasTerapêuticas Populares

Passamos pela vida como se o social fosse algo exter-no a nós, o que nos possibilita manter a ilusão de liberda-de, de independência. Contudo, ele está presente na nossafala, na forma com que nos vestimos, na nossa postura, emnossos gestos, nossos gostos, no incentivo do tipo físico aser procurado (ser gordo ou de porte atlético), nos ritmosde dormir, nas diferentes formas de descansar, na forma depensar e de interpretar a realidade.

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Por exemplo, ao sentarmos à mesa para almoçar, tudoestá regido pelo social, desde o fato de ter que sentar paracomer e de existir a mesa, até o tipo de comida que é ser-vido, como é servido, como também certas funções corpo-rais que podem ser incentivadas ou reprimidas durante arefeição. Tudo isso está irremediavelmente ligado a con-venções sociais e culturais.

Do mesmo modo como fazemos um recorte ao utili-zarmos um determinado conjunto dos muitos fonemas dispo-níveis para nosso sistema de fala e comunicação, também fa-zemos uma seleção com as inúmeras maneiras que existiriampara nos alimentar, vestir, trabalhar, brincar, dar à luz etc.,constituindo, assim, um sistema de códigos (Rodrigues, 1979).

Continuando nessa linha argumentativa, podemos di-zer que o homem somente se constitui como tal quando émediado pelo social. Ele é um ser social. Nessa direção, épossível afirmar que não existe homem isolado de seus pa-res e despido de seus símbolos. Como refere Leroi-Gou-rhan (1970), os corpos sem vida de um grande sacerdote ede um vagabundo, nus e imóveis, ao deixarem de seremsuporte de um sistema simbólico humano, não passam dedois cadáveres de mamíferos superiores

Contudo, os símbolos representativos de uma culturanão se constituem um mero revestimento colocado sobrealgo natural. Ao contrário, eles modelam o corpo, dão-lheforma, deixando nele suas marcas1.

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1. Para uma visão da construção do corpo, ver Viveiros deCastro (1987).

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Clastres (1978) nos mostra como, entre os índiosMandam, durante o processo de iniciação dos jovens, a leié inscrita nos corpos dos iniciantes. Ela fica gravada na suacarne pela tortura à qual são submetidos. Assim, a socieda-de dita a lei aos seus membros e a inscreve na superfíciedos corpos.

Embora nos horrorize tal procedimento, um processosimilar em que se colocam no corpo as insígnias sociais severifica também em outras sociedades. Isso se apresenta anossos olhos de uma forma mais evidente provavelmentepor estar afastado de nosso universo cultural, tal como emcertos grupos como a Yakuza – máfia japonesa – , nosquais as marcas do grupo estão nas tatuagens que cobrema quase totalidade do corpo de seus membros ou na faltada primeira falange dos dedos de suas mãos. Porém, seriauma ilusão acreditarmos que existe alguém que possa es-capar a essa modelagem de seu corpo ditada pelo social.Em nossa sociedade ela se faz presente pelas diversas téc-nicas que vão desde uma intervenção cirúrgica como a li-poaspiração, até as inúmeras dietas para emagrecer, pas-sando por intermináveis horas de tortura nas academias deginástica, na tentativa de moldar o corpo a um certo idealestético

Neste ponto, seria interessante voltarmos a Leroi-Gourhan (1970) e perguntar se realmente nus e imóveis,tanto o grande sacerdote como o vagabundo não passamde simples cadáveres de mamíferos superiores? Acredita-mos que a resposta é não. Vivos, sua postura estaria nosrevelando uma determinada posição social. Como cadá-veres, o social já deixou a sua marca nos seus corpos.

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Marcas que são tão visíveis e significativas como os dese-nhos das cicatrizes nos jovens Mandam. Impossível, paraalguém de seu grupo social, deixar de perceber as mãoscuidadas, as faltas de feridas no corpo, a ausência de ta-tuagens, a presença de dentadura completa, ou prótesedentária, os pés sem calosidades, o corte de cabelo e abarba de um, em contraposição com as mãos e pés cheiosde calosidades, cicatrizes produzidas por quedas e brigas,tatuagens, feridas pelo corpo e a boca desdentada do ou-tro. Essas cicatrizes sociais vão acompanhar o homem atéo seu túmulo.

Paradoxalmente, em nossa sociedade, na qual pode-mos nos escandalizar frente às mutações infringidas nos jo-vens corpos dos Mandam, é difícil encontrar alguma pes-soa que não apresente, como parte de seu corpo, um pro-duto industrializado. Esses produtos são dos mais variados,desde uma pequena obturação dentária de porcelana ouamálgama até um coração de plástico, passando por ossosde titânio, próteses de silicone, olhos de vidro etc.

Todos esses produtos, resultante de uma variedade deproduções industriais, nos mostram como, numa socieda-de industrializada, a matéria do corpo já não é mais mera-mente formada de substância orgânica. Os produtos dessasociedade passam a ser elementos constitutivos do corpo,são parte de seu corpo socialmente modelado. De fato,nesse corpo o orgânico e o industrial se superpõem, conec-tando-o ao mundo da ciência e da indústria através de seusimplantes, tornando-o uma propaganda viva, ambulantedas eficácias desses produtos (Cf. Helman, 1988).

Não podemos, pois, pensar em um corpo puramenteorgânico. O corpo, da mesma forma que qualquer outro

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objeto, somente adquire existência para o ser humanoquando faz parte de um conjunto de representações e, des-ta forma, constitui-se ele mesmo uma representação sim-bólica (Mendez & Mendes, 1994). Assim, para o homemnão existe um organismo biológico, e sim um corpo simbó-lico, socialmente construído. Portanto, torna-se impossívelapartar um corpo biológico dessa representação, pois foradela não existe corpo algum.

Tal perspectiva em relação ao corpo também pode serencontrada na psicanálise, para a qual o corpo não seconstitui a partir de experiências sensórias individuais, masatravés de um processo identificatório. Não existe umcorpo sem um outro no qual eu veja minha imagem espe-lhada. Por isso, quando se fala sobre o corpo em psicaná-lise, fala-se sempre de uma imagem, de um esquema cor-poral, sendo impossível separar o estritamente orgânicodessa representação. O social e o corpo são indivisíveisdesde o momento em que é o social que cria o corpo.

Por pertencer a esse sistema de representações simbó-licas, o corpo fala. De fato, ele pode ser visto como um sig-no através do qual se veiculam determinadas mensagens.

Sendo, pois, o corpo uma construção social, as doen-ças que nele se manifestam, assim como as terapêuticasdestinadas a combatê-las, nunca são meramente indivi-duais, elas também levam a marca do social. É por essemotivo que, segundo Augé (1986), pensar sua doença é jáfazer referência aos outros. Com efeito, cada grupo socialfaz determinados recortes através dos quais constrói suasrepresentações tanto da doença como da cura.

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Doença como Desordem

É, pois, nesse corpo sígnico segundo Ferreira (1994),que a doença irá se instalar. Assim, não somente o corpo,mas também as diferentes formas de vivenciar a doença eas diversas terapêuticas que serão implementadas estão li-gadas ao social. Como questionou Barthes (1977): você jáviu um proletário ou um pequeno comerciante ter enxa-quecas? A divisão social passa por meu corpo: meu corpoé ele próprio social.

Noutro trabalho (Quintana, 1989), tivemos a oportu-nidade de expor como nos grupos populares, espaço prin-cipal do desenvolvimento do trabalho das benzedeiras, adoença é vista como uma irrupção no cotidiano e se mani-festa no corpo, impedindo a pessoa de realizar suas tarefashabituais. Retomando agora o capítulo anterior, vemos quea doença é percebida e representada como algo inexplicá-vel, sem sentido, algo que irrompe no curso normal dascoisas (Cf. Boltanski, 1984; Duarte, 1986; Loyola, 1984;Montero, 1985; Ropa & Duarte, 1985; Souza, 1982).

Se a doença é caracterizada pela desordem, falta designificação, a cura, por sua vez, vai procurar uma reorde-nação, uma ressignificação. Esta não poderá ser obtida re-metendo-se a doença meramente a uma causa determina-da, é necessário que seus sintomas sejam articulados a umtodo, a um sistema de significações. Noutras palavras, opaciente encontra-se diante de um conjunto de sintomasque não fazem sentido para ele. Será preciso que alguémlhe ajude a construir uma linguagem socialmente aceita,por meio da qual ele possa pensar, compreender e experi-mentar esses sintomas.

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As diferentes sociedades, ao explicarem suas doen-ças, não se restringem a suas causas, pois procuram umsentido que, para além do mal biológico, dê conta de suaorigem, ou seja, que torne inteligível o seu contexto socialde produção (Cf. Knauth, 1992).

O indivíduo poderá aceitar o fato de sua doença sepuder outorgar-lhe um sentido. A dor é sempre intolerávelenquanto significar algo arbitrário. Mas quando ela adqui-re um sentido, torna-se suportável. É em busca dessa lin-guagem que as pessoas procuram uma benzedeira.

Lévi-Strauss (1972), em seu conhecido trabalho sobrea “eficácia simbólica”, nos mostra como, pela possibilida-de de simbolização do infortúnio, uma mulher indígenaconseguiu o desbloqueio fisiológico que lhe impedia a rea-lização do parto. Essa linguagem não somente estaria per-mitindo ao paciente um conhecimento, mas, principal-mente, estaria possibilitando experienciar suas perturba-ções numa outra ordem; noutras palavras, propiciaria umaressignificação. E será nessa possibilidade, de experienciarseu sofrimento desde um outro lugar, que estará localizadaa condição da eficácia do símbolo.

Poderíamos dizer que essa eficácia do símbolo radicajustamente em oferecer um representante por meio do qualse possa pensar essa perturbação, que, até o momento, so-mente podia ser experienciada e, portanto, ficava sem pos-sibilidades de interpretação, deixando, assim, àquele quedela padece no mais profundo desamparo. Apenas quandopodemos nomear, é que podemos pensar, e assim, de algu-ma forma, controlar o evento. Assim, o símbolo comanda-ria o objeto, o qual passa a ter existência somente quandonomeado (Leroi-Gourhan, 1970).

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Entretanto, o símbolo não pode existir num indivíduoisolado, pois requer uma convenção social que o homolo-gue. Desta forma, esse símbolo sempre vai estar articuladonum sistema que o torna inteligível. Não é qualquer símbo-lo que pode produzir efeitos: somente aqueles aceitos pelogrupo cultural ao qual pertence o doente é que terão essacapacidade. Deste modo, o símbolo sempre vai estar inte-grado num sistema de crenças. Uma experiência individualé reintegrada no social através da possibilidade de com-preendê-la e pensá-la segundo uma explicação socialmen-te aceita.

Isso nos remete ao fato de que apenas determinadaspessoas, reconhecidas socialmente para tal função, podem,através de um determinado ritual, construir junto com odoente uma explicação que lhe permita compreenderaquilo que até aquele momento era incompreensível, quelhe possibilite pensar o até então impensável. Por isso, nãoé qualquer explicação que pode produzir efeitos, é neces-sário que a explicação seja, no dizer de Alves (1994), umaexplicação autorizada. Quer dizer, deve ser efetuada poruma figura que possua um papel social reconhecido pararealizar tal processo.

O reconhecimento como um bom feiticeiro pode sedar pelo paciente, mas é o grupo quem vai consagrá-locomo tal. Num consultório médico, esse atestado do reco-nhecimento grupal está expresso por um diploma na pare-de. Já um terapeuta popular, como a benzedeira, vai preci-sar recorrer a outras formas de reconhecimento, que podese dar em virtude da quantidade de gente que aguarda nopátio para se benzer, ou pelo relato das várias bênçãos rea-

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lizadas com êxito, ou por referência a figuras investidas deautoridade que procuraram pelos seus serviços.

Assim, temos que a benzedura é uma encenação, atra-vés da qual se veicula uma linguagem que produz um sen-tido. Entretanto, para que isso aconteça, seja na benzeduraou noutra terapêutica popular qualquer, a “posta em cena”deve sempre acontecer inserida no dia-a-dia do grupo aoqual pertencem os curadores e sua clientela (Alves, 1994).

Percebemos, então, a existência de uma complemen-tação: a benzedeira precisa do reconhecimento do grupopara poder exercer com êxito suas funções. Entretanto, o ri-tual de cura não está destinado unicamente ao cliente, eletambém tem como alvo o seu grupo social, pois cada pro-cesso bem-sucedido reforça, por sua vez, o universo sim-bólico desse grupo1. Não é somente a eficácia da terapêu-tica da benzedura que está ali em pauta; é também umaforma de conceber o corpo e a doença e, mais do que isso,é o próprio pensamento do grupo que está em jogo, umavez que nessa teia de significados não existe nada que es-teja solto, cada fio está amarrado ao conjunto e, ao mesmotempo que o sustenta, é sustentado por ele.

Deste modo, o processo de cura está dirigido tanto aodoente como ao seu grupo. É ele que se constitui o tercei-

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1. Melatti (1970) reafirma essa idéia ao colocar que o xamãse torna tal por reviver, de forma individual, um mito coleti-vo. É pelo fato de a sociedade acreditar nesse mito que oxamã pode também acreditar em seus poderes. Entretanto, acada êxito do xamã a sociedade também revigora o mito queele reviveu.

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ro elemento do processo terapêutico. Assim, o ritual nuncaé apenas de duas pessoas: ele inclui o seu grupo socialque, ao mesmo tempo que dá a força à benzedeira pararealizar seu trabalho, também obtém dela uma reafirma-ção, pois, como já dissemos, a cada cura realizada, revali-da-se a crença nesse procedimento terapêutico e, por suavez, na realidade grupal.

As Benzedeiras

A benzedura pode ser caracterizada como uma ativi-dade principalmente terapêutica, a qual se realiza atravésde uma relação dual – cliente e benzedor. Nessa relação, abenzedeira ou benzedor exerce um papel de intermedia-ção com o sagrado pela qual se tenta obter a cura, e essaterapêutica tem como processo principal, embora não ex-clusivo, o uso de algum tipo de prece.

Num primeiro momento, pode-se pensar que a benze-dura seja um resíduo de tempos passados, como uma grandefortaleza que deixou de ser utilizada e se encontra entregueao tempo para sua total destruição. Longe disso, a benzedu-ra é um entre outros sistemas de cura que são utilizados pe-los grupos populares. O que podemos afirmar é que essa prá-tica (assim como toda prática social) vem sofrendo uma sériede modificações. Não poderia ser de outra forma, uma vezque, como toda prática social, a benzedura vai estar semprenum processo de reconstrução, ganhando sentido apenas emrazão de sua articulação com o social; portanto, nunca vai seruma prática estática, detida no tempo; pelo contrário, ela seconstitui uma realidade dinâmica (Alves, 1994).

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Muitas das benzedeiras1 entrevistadas na cidade refe-riram-se ao campo como seu lugar de origem e o localonde se deu a sua aprendizagem ou a origem daquela pes-soa que a iniciou – geralmente um membro da família.Contudo, cabe assinalar que aquelas benzedeiras que ti-nham maior reconhecimento social na sua profissão atri-buíam sua aprendizagem a uma experiência mística, situa-ção que será analisada posteriormente.

Ainda que nem na cidade nem na roça tenhamosencontrado uma técnica uniforme, existem certas carac-terísticas que diferenciam este procedimento de cura nocontexto urbano e no contexto rural. Uma delas é a perdade hegemonia que a prática da benzedura sofre na cidade.Enquanto no meio rural é a prática popular por excelência,que reina quase absoluta, na cidade, ela compartilha esteespaço com inúmeras outras práticas.

Não é esta, porém, a única diferença entre a benze-dura da zona rural e a da zona urbana. Talvez a mais sig-nificativa delas esteja presente no nome pelo qual asagentes terapêuticas gostariam de ser reconhecidas.Enquanto na cidade elas se autodenominam benzedeiras,na zona rural preferem que sua atividade seja reconhecidacomo fazer orações, apesar de continuarem a ser identifi-cadas no seu meio como pessoas que benzem. Quandoessas pessoas aludem a outras colegas de profissão, estassão referidas como as que fazem benzeduras, sem queexista com isso uma tentativa de desprestígio do seu tra-

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1. Falaremos aqui no feminino, pois a grande maioria daspessoas que realizam essa atividade é de mulheres.

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balho, uma vez que ele é claramente diferenciado dosbatuqueiros, considerados realizadores de um trabalhopara o mal.

Essa recusa a se autodenominarem benzedeiras estávinculada à forte ligação dessas pessoas a uma instituiçãoreligiosa, principalmente à religião católica, o que consti-tui outra das diferenças encontradas entre a benzedura dazona rural e a da zona urbana.

Enquanto as benzedeiras da zona rural, como jávimos, têm uma ligação muito intensa com a religião, prin-cipalmente católica – todas elas são freqüentadoras daparóquia, tendo inclusive a autorização do padre para fazerorações em favor daqueles doentes que as procuram –; jáentre as urbanas, o estreito vínculo com alguma instituiçãoreligiosa não é uma constante. Pode-se observar que quan-to às pessoas identificadas com a religião católica, nota-seuma relação de antagonismo com os representantes oficiaisda Igreja.

Essas posturas diferenciadas em relação à IgrejaCatólica também podem ser constatadas quanto aoemprego de símbolos ofíciais do catolicismo, como a uti-lização de imagens, a Bíblia e a água benta (Figura 1).

Ainda que cientes dessas diferenças, neste trabalhonos limitamos apenas a assinalá-las, restringindo nossaanálise às benzedeiras da zona urbana.

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Aprendizagem

Em todos os casos estudados, a formação da ben-zedeira depende de uma aprendizagem assistemática, masque, a rigor, pode ser dividida em dois tipos: aquela que éresultado de uma experiência sobrenatural e a que é conse-qüência de um processo imitativo em relação a um mestre.

Vamos iniciar pela aprendizagem imitativa. As ben-zedeiras que assim se iniciaram referem ensinamentos devárias fontes: receitas médicas dadas a elas próprias ou aamigas, fórmulas de chás passadas de boca em boca entrepessoas da família ou vizinhos ou mesmo receitas de livros

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Figura 1: Benzedeira Dona Terezinha realizando uma benzedura. A me-nina segura uma vela frente ao pequeno altar.

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de medicina natural, etc. Essa aprendizagem está normal-mente associada à presença de um mestre, que via de regraé uma figura da família praticante da benzedura. Mesmo quepor intermédio de um mestre, essa aprendizagem continuaainda a ser assistemática, pois se inicia como uma brin-cadeira na qual a criança imita o proceder de um adultobenzedor. Em nenhum momento se coloca uma situação emque o adulto ensina à criança. É sempre esta que procurouobservar o mais velho e repetir, como brincadeira, os mes-mos procedimentos. Gradualmente, a brincadeira vai setransformando num processo eficaz, reconhecido no meiofamiliar, dado que o interesse da criança estaria revelando aexistência de um dom. Contudo, ainda que esse reconheci-mento familiar se dê numa idade precoce, o reconhecimen-to social só ocorrerá numa idade já avançada.

Num grupo onde a educação está orientada para ostatus, no qual o respeito à tradição permanente é muitopresente (Bernstein, 1980; Costa, 1989), é de esperar que apessoa que ocupe esse lugar de saber, encarregado detransmitir um código social, deva ser alguém em que sepossa ver, por meio das rugas no seu rosto, um represen-tante desses valores. Assim, para poder obter um reco-nhecimento social, estes terapeutas devem ter uma idadeque garanta, para seu grupo, um certo saber. Eles devemser a voz da experiência1. Esse processo através do qual se

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1. O aspecto relativo à idade das benzedeiras também estápresente no trabalho de Leal (1992, p.11), onde a autora co-loca que existe, no grupo pesquisado, o entendimento deque uma pessoa sabe mais por sua experiência de vida doque por qualquer tipo de poderes especiais e místicos.

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atribui um saber à velhice pode ser observado num ditadopopular comum na região por nós estudada: O diabo sabepor diabo, mas mais sabe por velho.

Vemos, assim, que as receitas, pomadas, chás podemser ensinados pela transmissão verbal ou de alguma formamais sistemática – como pela leitura de um livro –; porém,o procedimento terapêutico sempre exige uma figura deidentificação para seu estabelecimento.

Na aprendizagem pela experiência mística, osconhecimentos tanto das orações como dos chás,pomadas, ungüentos etc são atribuídos à informação dealguma entidade sobrenatural, como anjos ou guias, prin-cipalmente. É interessante constatar que aquelas ben-zedeiras que faziam referência a uma aprendizagem dessetipo eram as que tinham um maior reconhecimento do seugrupo, o que se evidenciava pela sua clientela.

Ainda com as diferenças apontadas em ambas assituações, o processo terapêutico é uma encenação atravésda qual se estaria ressignificando uma determinada pertur-bação, por isto é tão importante aquilo que se receita comoo processo através do qual tal receita é dada. Dito de outromodo, tanto as rezas como os chás somente adquirem umsentido, e, portanto, se tornam eficazes, quando inseridosno contexto ritual. Fora dele, perdem todo seu poder, poisdeixam de ser significantes e, então, não vão poder operarmudanças no discurso do paciente. Uma vez aprendido oprocesso ritual, ele pode vir a ser incrementado por outroselementos, mas nunca os elementos descontextualizadospodem produzir efeitos terapêuticos.

Desse modo, diferentes elementos, enquanto possamser vistos como elementos significantes, vão ser incluídos

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no processo ritual – uma nova receita de um xarope, umnovo chá de ervas, uma receita para a fabricação de umapomada, uma nova reza aprendida na televisão –, inclusiveconselhos médicos são ressignificados e apropriados pelodiscurso dessa terapêutica desde o momento em que qual-quer objeto pode se constituir um símbolo e, como tal, ver-se incluído num contexto ritual. Todo objeto pode teracrescentada à sua matéria uma convenção social; assim,qualquer matéria pode ser arbitrariamente dotada de sig-nificação (Barthes, 1980, p. 132).

Isto não invalida, porém, que essas receitas se consti-tuam uma ação técnica. O que estamos assinalando é anecessidade da articulação dos aspectos técnicos aos sim-bólicos para que aqueles se tornem eficazes.

O Processo Ritual

Nesta primeira análise do processo ritual, vamosdiferenciar três momentos verificados no ato da benzedu-ra: A) O diálogo; B) A bênção; C) As Prescrições. Taldivisão é apresentada aqui meramente para fins des-critivos, uma vez que essas instâncias não se organizam deforma estanque. Na prática, verifica-se antes uma inter-calação dinâmica como veremos mais adiante.

O diálogo

O processo terapêutico inicia-se já com a chegada docliente que, solicita intervenção. Nesse momento inicial, apessoa vai expor suas queixas e a benzedeira procurará

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conhecer suas perturbações. Não se trata, porém, simplis-mente de um conhecimento da sintomática que está pre-sente na situação inicial. Ela já está produzindo efeitos deressignificação. Nesse primeiro encontro, a benzedeira nãoprocura somente o conhecimento da queixa de seu cliente,ela procura também observar qual é o posicionamento dopaciente em relação à terapêutica solicitada. Em algunsdos casos observados, essa aproximação se dá como umaconversa informal abordando temas que não fazem refe-rência direta à queixa do paciente. Intercalados os assun-tos gerais, é comum a benzedeira relatar casos de proble-mas similares aos apresentados pelos pacientes e quetiveram uma resolução positiva. A resolução positiva setorna mais enfática à medida que a incerteza do cliente emrelação aos efeitos positivos da benzedura se apresentacom maior intensidade

Nessas histórias, alguns temas são recorrentes: 1) orelato da cura e do reconhecimento de alguma pessoa deprestígio social no grupo, como alguém de reconhecidasposses, um político, um professor, etc.; 2) a referência àprocura de pessoas provenientes de lugares afastados; 3) orelato de uma cura em relação à qual um médico tenha fra-cassado; 4) o reconhecimento dos trabalhos por figuras ofi-ciais, como o padre e o médico.

A bênção

Em nosso trabalho encontramos diferentes tipos debenzedura. Na seqüência, faremos uma breve descrição decada um deles.

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Algumas benzedeiras utilizam no seu ritual uma penade galinha preta e óleo de cozinha. A pena é embebida noóleo e ao mesmo tempo que se realiza com ela uma cruzno ar, na frente do cliente se recita uma oração que, parao ouvinte, se restringe a um murmúrio em que a únicaparte audível é o nome do cliente e “eu benzo”. Esse pro-cedimento é repetido por três vezes, umedecendo-se apena no óleo a cada vez (Figura 2).

Outro procedimento é denominado costura, quandosão utilizados um pedaço de pano, uma linha e uma agu-lha. Algumas benzedeiras solicitam que o cliente leve essesobjetos, os quais devem ser sem uso, ou elas mesmas

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Figura 2: Pena de galinha preta e recipiente com óleo utilizado na benzedura. (Foto cedida por Maristela G. Ribeiro).

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fornecem-nos. O ritual consiste em recitar a oraçãoenquanto se costura o pano com a linha. Algumas terapeu-tas realizam uma reza silenciosa enquanto outras o fazemde forma audível. Pode-se também solicitar a participaçãodo cliente, que deve responder após cada oração.

O número de orações é sempre três e devem serrealizadas durante três dias, após os quais, em algumassituações, o pano é dado para que a pessoa o deixe apo-drecer em algum lugar afastado; noutras, permanece coma benzedeira que posteriormente se desfaz dele (Ver Figura3). Em relação aos pontos que são feitos nos panos, é umaconstante a forma da cruz (Ver Figura 4).

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Figura 3: Benzedeira Dona Celestina realizando uma costura.

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Observamos também um procedimento que, aindaque utilize a costura, apresenta em relação aos outros umavariante bem definida; além do pano, da agulha e da linha,utiliza-se uma pequena marmita (ou um prato fundo) con-tendo água fervente e um copo de alumínio. Coloca-se ocopo de boca para baixo dentro da marmita, cuja água nãochega a cobri-lo totalmente, enquanto se faz a reza e a cos-tura por três vezes consecutivas. Depois, colocam-se alinha, a agulha e o pano sobre o copo, o qual já absorveua água do recipiente em que foi colocado (Ver Figura 5).

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Figura 4: Pano onde foi realizada uma costura.

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Uma outra técnica observada, ainda que numaúnica vez, consiste no que poderíamos chamar deimposição das mãos. A benzedeira, segurando um rosárionuma das mãos, vai tocando distintas partes do corpo dospacientes, enquanto realiza as orações de forma inin-teligível (Figura 6).

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Figura 5: Costura realizada num pano colocada acima do copo numprato de água fervendo.

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Além das formas aqui enumeradas, encontramos ou-tros dois tipos de benzedura, os quais, por ser de ampla uti-lização entre esses agentes, os consideramos as maneirasmais comuns de benzedura. Uma delas é utilizar trêspequenos galhos de planta (algumas benzedeiras preferemarruda, porém não é o comum). A benzedura consiste emrecitar uma reza – a qual varia de benzedeira para ben-

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Figura 6: Benzedeira Dona Eva. Enquanto benze pressiona com a mãodiferentes partes do corpo da paciente enquanto segura um rosário.

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zedeira – enquanto, com o galho, se realiza o sinal da cruzpor diferentes partes do corpo da pessoa, sempre finalizan-do nas extremidades. Esse processo é repetido três vezesconsecutivas, e se inicia com um galho ao qual se incre-menta outro a cada nova reza. O procedimento deve serrealizado por três dias, mas não é necessário que sejamconsecutivos (Ver Figura 7).

Figura 7: Benzedeira Dona Luiza realizando uma benzedura com galhos verdes

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Um procedimento análogo é realizado utilizando trêsbrasas, uma tesoura e um copo de água. A benzedeirasegura uma pequena brasa com a tesoura e, enquantorecita a reza na frente do paciente, vai fazendo o sinal dacruz com a brasa, a qual, após cada reza, é despejada den-tro do copo com água (Ver Figuras 8 e 9).

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Figura 8: Benzedeira Dona Tereza realizando uma benzedura com brasas.(Foto cedida por Maristela G. Ribeiro).

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As prescrições

Ainda que vejamos na benzedura propriamente dita omomento mais forte do ritual, não é ali que ele se esgota.Após o ritual completo, é dada ao cliente uma explicaçãodo que está acontecendo com ele e também uma pres-crição. Tanto uma como a outra vão apresentar grandevariação de caso para caso, uma vez que dependem daqueixa do cliente. Em alguns casos, pode consistir em con-selhos sobre como comportar-se; noutros, há indicações deuso de chás, pomadas (industrializadas ou de fabricaçãoprópria) e medicamentos. Ainda, como já vimos, não deve-mos considerar que, no caso das indicações de chás e,talvez, principalmente, de medicamentos industrializados,

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Figura 9: Benzedeira Dona Helena benzendo com brasas.

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estamos diante de uma ação meramente técnica. Essesprodutos, independentemente de suas funções fisiológicas,contêm a idéia de recuperar as forças perdidas peladoença, absorver no corpo a força atribuída a esses ele-mentos, com a finalidade de melhor enfrentar as forças dadesordem1.

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1. Ver Montero (1985).

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3Mergulhando Noutra Realidade

“O feiticeiro é como a Arlesiana: fala-se muito dele,mas ninguém o vê...” (Marc Augé)

A Benzedura com Brasas: Descrição

Para realizar o trabalho de interpretação que nos per-mita descortinar a lógica que traspassa essa terapêuticapopular, tomaremos por estudo, preferencialmente, aindaque não exclusivamente, a prática da benzedeira DonaHelena, da qual viemos acompanhando o trabalho pormais de três anos.

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Procuraremos realizar uma descrição detalhada dolocal onde se realizam as benzeduras pois acreditamos queisso permitirá uma melhor compreensão, por parte doleitor, do ritual empregado, uma vez que são várias as suasdimensões: visuais, verbais, espaciais, todas acontecendode forma simultânea (Cf. Leach, 1978).

Dona Helena mora num bairro relativamente afasta-do do centro da cidade, com características de classemédia baixa. Sua prática, segundo Dona Helena, trouxe-lhe problemas com a vizinhança, pois recebeu muitassolicitações para se mudar para outro local. Sua casa é sim-ples, de madeira, com um jardim na entrada e uma grandevaranda lateral onde se encontram, encostados contra aparede, três grandes bancos, utilizados pelos clientesenquanto esperam a vez de serem atendidos (Figura 10, ).

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Figura 10: Dona Helena e o autor no pátio. No fundo pacientes esperando a benzedura.

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Oficialmente, Dona Helena atende três dias porsemana: às terças, quartas e sextas-feiras pela manhã.Contudo, nos demais dias da semana, principalmente noinício da manhã (entre 7h30min e 10h) e no início da tarde(entre 14h e 16h), sempre se encontram pessoas à esperada benzedura, que normalmente são atendidas.

Uma diferença que se apresenta entre o horário ofi-cial de atendimento e os outros horários é que, nos dias deatendimento, às sete da manhã, o marido de Dona Helenaentrega aos que esperam do lado de fora 25 fichas de ma-deira, de cor cinza, e com o número pintado; estas fichasguardam muita semelhança com aquelas fornecidas em al-guns ambulatórios da cidade.

Às 7h30min Dona Helena começa a benzer. A benze-dura é realizada na cozinha, à qual se tem acesso pela par-te lateral da casa, no fim da varanda (Ver Figura 11). Logoà esquerda da porta encontra-se uma cadeira. Na seqüên-cia, encostado à parede lateral, observamos um fogão à le-nha, o qual está sempre acesso, acima dele uma janela per-manentemente aberta, que dá para um pátio coberto. Sem-pre seguindo a linha dessa parede, há ainda um armário e,finalmente, uma porta, que dá acesso ao pátio já referido.Na parede do fundo, de frente para a porta de entrada, en-contra-se a pia e, ao lado, uma porta que dá acesso a umbanheiro. Na parede lateral oposta à parede do fogão háum outro fogão, a gás (sempre desligado), e um armáriobaixo. Na continuação, uma abertura sem as folhas de umaporta leva à sala. Depois dessa abertura e encostada à pa-rede, como todos os móveis do local, uma mesa com qua-tro cadeiras uma em cada cabeceira e duas de frente à pa-rede. Durante o período de observação, ficávamos senta-

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dos à cabeceira da mesa de frente para a porta. Na varan-da, frente à porta de entrada da cozinha, encontra-se umapequena capela com a imagem da Nossa Senhora comuma vela geralmente acesa.

Dona Helena é uma senhora de sessenta e cincoanos, cabelos grisalhos, analfabeta. Ela utiliza diversos ti-pos de benzedura, mas, podemos dividi-los em pratica-mente dois tipos por serem os mais freqüentes: a benzedu-ra com brasas, que é a que se realiza normalmente, e abenzedura de míngua, que é realizada em crianças nos pe-ríodos de lua minguante. Inicialmente, descreveremos abenzedura com brasas.

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COPO

ARMARIOFOGÃOLENHA

BENZEDEIRA

PIA

GASFOG

ARMMESA

CA

PEL

A

CADEIRAS

Figura 11: Esboço da distribuição do local onde Dona Helena realiza a benzedura.

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A pessoa entra e se senta na cadeira da esquerda. Nocaso de estar acompanhada (mãe-filho, esposo-esposa), aoutra pessoa ocupa, enquanto espera, a cadeira da cabe-ceira da mesa que fica de costas para a porta; no caso de oacompanhante também receber a bênção, o que é mais fre-qüente, geralmente ele troca de cadeira com a outra pes-soa para que a benzedura seja realizada do lado do fogão.Algumas pessoas, inicialmente, estabelecem um diálogono qual colocam sua problemática, no caso de serem jáconhecidas de Dona Helena. Poderíamos dizer que isso écomum, ainda que não se constitua uma regra.

Já aqueles que vão pela primeira vez, a conversapode não acontecer, pois o cliente nada fala. Nesse casoDona Helena tenta estabelecer o diálogo, perguntando: Eaí, como vão as coisas? Quer uma bênção para algo espe-cial ou pra tudo? Ou alguma coisa do gênero. Logo emseguida, mesmo que não haja o diálogo, tem início aprimeira das três bênçãos. Dona Helena, com uma tesourana mão direita, pega no fogão uma brasa do tamanho deuma bola de gude. Segurando a brasa na ponta da tesoura,vai realizando um movimento de cruz na frente da pessoa,enquanto recita a seguinte reza:

Tô benzendo tu [nome da pessoa] e teu marido [nocaso de haver um] de todos os males que tiveres noteu corpo, abrir os caminhos, abrir o coração, asaúde, na casa a paz e a união. Em nome de Deus, doanjo da guarda. De quebrante, mau olhado, raiva,tentação, por causa da água, do sal, sangue, nos ner-vos, nos ossos, na cabeça, no intestino, de praga, debruxaria, de tentação, de ciúme e de todo mal que

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tiver em teu corpo e dê tudo pra água corrente, pelomais sagrado, Ave Maria, Anjo da Guarda, amém.

Dependendo do caso, essa bênção é incrementadacom outras sentenças. Assim, quando se trata de uma cri-ança, a bênção inclui a cura para vermes, ou, no casouma mulher abandonada pelo marido, que ele volte. Emalgumas ocasiões, quando a pessoa se queixa que os negó-cios vão mal, ela inclui “Se tu tiveres amarrado pros negó-cios por bruxaria, olho grande, serás desamarrado. Se tiverolho grande por inveja, ciúmes há de ser desmanchado”.No caso de bebês, inclui pedidos de cura para insôniaalém de vermes.

Após a bênção, a brasa é despejada num copo deágua que se encontra na beira do fogão a lenha. Apósobservar rapidamente o que acontece com a brasa, se elafica boiando, se afunda, rápida ou lentamente, é dado odiagnóstico, ou seja, defina-se o problema da pessoa quan-do este não foi exposto no início do processo. Quando oproblema já foi referido, ele vai ser mais bem definido e édada também a explicação de por que está acontecendo.Nesse momento geralmente se estabelece um diálogo entrecliente e benzedeira sobre os problemas que o afetam esuas causas. Nos casos em que não se trata unicamente deuma queixa física, a maioria, essa explicação é feita geral-mente em termos de inveja, ciúmes, olho grande.

Na seqüência realiza-se a segunda bênção. A ben-zedeira pega uma nova brasa do fogão e faz a prece acom-panhada dos mesmos movimentos da tesoura. A prece tam-bém é igual à primeira, podendo ser incrementada emrazão dos assuntos levantados no diálogo, como foi

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explanado anteriormente. Por exemplo, para os negócios:se estão amarrados; para o aluguel de uma casa: se a casaestá amarrada etc. Novamente a brasa é jogada no copo,nova observação e novo diálogo, quase sempre uma con-tinuação do primeiro.

Finalmente, é realizada uma terceira bênção nosmoldes das duas anteriores. Uma vez finalizada, retoma-seo diálogo no qual, fundamentada na posição das trêsbrasas no copo, a benzedeira reforça o diagnóstico dadoanteriormente, podendo fazer, na ocasião, alguma pres-crição sobre como tomar determinado chá ou, então, ummedicamento industrializado, embora isso seja umaexceção; realizar alguma simpatia ou também uma orien-tação de conduta de acordo com a problemática trazida.Em correspondência ao fato de que a maioria das expli-cações se dá em termos de mau-olhado, também uma ori-entação freqüente é não falar de suas coisas pra ninguém.No final da benzedura, é indicada a volta do cliente outrasvezes, até completar-se o total de três sessões.

Durante a recitação da prece, na maioria das vezesaudível, é comum que Dona Helena boceje de formarepetida. Outra atitude observada é o posicionamento damão esquerda, geralmente colocada no bolso ou nascostas.

Pode acontecer que, durante o procedimento, ocliente solicite alguma informação sobre alguém que nãose encontre no lugar, como por exemplo o ex-marido, ousobre alguma situação da qual o cliente não consegueobter informação, como no caso de um processo judicial.Nessas circunstâncias, Dona Helena benze sobre o copopara poder ter informações necessárias.

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A reza é a seguinte:

Com o Nome de Deus e da Virgem Maria, se esta bra-sa descer, FULANO vai conseguir (seu dinheiro, o re-torno de seu marido, uma decisão favorável no pro-cesso judicial, etc). Esta brasa vai descer louca e aflita.

Após esta oração ela solta a brasa no copo. O proces-so se repete por três vezes. É de assinalar que essa oraçãoé realizada num tom de voz inaudível.

Outro procedimento comum usado por DonaHelena, ao final do ritual de benzedura, é aquele em que,a pedido da benzedeira, a pessoa escreve seu nome ou ode outra pessoa num papel. Caso o cliente queira fazeruma segurança (mais adiante se descreverá esse procedi-mento), ou Dona Helena acredite que ele deva receberuma força especial além da benzedura, ela solicita quedeixe seu nome escrito, que também representa um víncu-lo que reforça sua relação com o cliente. O nome, a iden-tidade ficam sob sua proteção. Noutras situações em quea pessoa identificou, antes ou depois da benzedura, o cau-sador de seus infortúnios, Dona Helena lhe solicita que es-creva o nome da pessoa e, posteriormente, o nome docliente por cima daquele.

Um tipo de benzedura também realizado por DonaHelena, ao qual já nos referimos, é o denominado benzade míngua, apenas para crianças. Algumas vezes pode serindicado para adolescentes, o que é mais raro, ficando viade regra restrito a crianças entre oito meses e um ano até apré-adolescência. Segundo Dona Helena e outras benze-deiras, míngua é o que os médicos chamam de anemia. Na

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benza de míngua não se utilizam brasas e durante o perío-do de sete dias da lua minguante Dona Helena não benzeoutro tipo de situações. O rito da benzedura, nesse caso, éo seguinte: Dona Helena coloca uma linha preta na testada criança e reza:

Míngua, míngua velha, míngua minguada, onde tu tá,está no nervo, está no sangue, tá nos ossos, tá na car-ne. Nem pra diante, nem pra trás esta míngua vai an-dar, e a mesma há de secar, os glóbulos aumentar, tuvai desenvolver, o sangue vai aparecer, o nervo vaisair, tu vai sarar em nome de Deus, das três palavras,da Santíssima Trindade.

Após a reza, ela faz um nó na linha. Continua esten-dendo-a do ombro direito até a ponta dos dedos da criança,que mantém o braço esticado. Faz a mesma reza e depoisum nó para marcar a extensão. Repete o procedimento nobraço esquerdo. Na continuação, molha a linha nos lábios ea enrola num ovo, contando primeiro de um a sete (Figura12), posteriormente de um a seis e assim sucessivamente atéchegar a um. Depois utiliza o ovo com a linha enrolada e,fazendo sinal da cruz na altura do peito da criança, reza:

Míngua, míngua velha, míngua minguada, onde tu tá,tá neste corpo, deste corpo esta míngua vai sair, nuncamais esta míngua vai voltar, nem pra diante nem pratrás esta míngua há de andar e a mesma há de secar.

Esse tipo de benzedura tem uma procura muito me-nor que a com brasas, limitando-se a umas oito crianças

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por dia, aproximadamente. Nesses dias também se benzemtodos aqueles tipos de problemas que impliquem uma re-dução para sarar. Assim, é muito comum a benzedura debócio, no qual, à medida que vai pressionando a protube-rância na garganta da pessoa, com o polegar e o indicadorem forma de pinça, pronuncia-se a seguinte oração:

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Figura 12: Benzedeira Dona Eva com ovos utilizados na benzedura de mín-gua. Cabe resaltar que, a diferencia de Dona Helena, ela usa linha branca.

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Jesus Cristo, nervo da carne, da carne ressuscitou,unita carne, unita nervo, do nervo que rendeu assimnervo e carne. Em nome de Deus e a Virgem Maria.Nem pra adiante, nem pra trás, esta tiróide há de an-dar, a mesma há de secar. São Paulo e São Bento quelivras este filho deste mal peçonhento. Amém.

O procedimento se repete por três vezes.Além do bócio, também é comum a bênção das he-

morróidas:

Corta hemorróida brava, corta cabeça, corta o rabo.Nem pra frente, nem pra trás esta hemorróida há deandar. A mesma há de secar. São Paulo, São Bento.Benza este filho de hemorróida peçonhenta, emnome de Deus.

Pudemos observar também a benzedura de cobreiro1:

Corta cobreiro bravo. Corta cabeça e corta o rabo.Nome de Deus, Virgem Maria. Nem pra diante, nempra trás este cobreiro há de andar, mas antes há de se-car. São Paulo, São Bento. Benza este filho deste co-breiro peçonhento, em nome de Deus.

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1. O cobreiro é identificado por pintas avermelhadas e pe-quenas bolhas de água na pele. Essa inflamação se apresen-ta principalmente nas costas, causando forte ardência. Seunome científico é Herpes-zoster.

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Nossa análise, entretanto, será centrada na benzedu-ra com brasas, pois, como procuraremos demostrar, é apartir dela que se configura a área de atuação da benzedei-ra e, também, é nela que se alicerça o seu processo de le-gitimação.

Benzedura: Entre o Dom e o Ofício

Os anjos são os mestres

É comum em nosso mundo acadêmico, ao nos de-frontarmos com o trabalho de uma benzedeira, fazermos apergunta: “Como se deu seu processo de formação?”.Quando levamos esse questionamento a Dona Helena naforma de “Como uma pessoa aprende a benzer?”, a respos-ta foi, de início, desconcertante: “É um dom”. Noutra oca-sião, ao depararmos com uma grande quantidade de recei-tas à base de ervas indicadas por Dona Helena, pergunta-mos se ela levou muito tempo para aprender a utilidade decada uma dessas ervas. Ao que ela respondeu: “Não tanto,foi o anjo que me ensinou quando estava cega”.

Encontramo-nos diante de um conhecimento que nãoé atribuído a nenhum tipo de aprendizagem, nem formalnem informal, contrapondo-se, por um lado, ao conheci-mento médico, o qual responde a um aprendizagem for-mal, e, por outro, diferenciando-se daqueles terapeutas po-pulares cujo conhecimento é atribuído a uma intuição (Cf.Loyola, 1984). Aqui, trata-se de uma intervenção de forçassobrenaturais.

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O dom ao qual se referem esses terapeutas geralmen-te está relacionado com algum acontecimento marcante navida das pessoas (Cf. Oliveira, 1985), o qual pode tomarformas diversas desde ter chorado na barriga da mãe, comoassinala Pereira (1993) no seu trabalho sobre parteiras, até,o que é mais comum, uma doença da qual a futura benze-deira tenha conseguido curar-se através de uma experiên-cia mística.

Com efeito, a existência da cura de uma doença seapresenta em diversos tipos de curadores como uma con-dição a ser superada e que possibilita, por sua vez, curar osoutros. Tal situação guarda semelhanças com o processode iniciação xamanística (Glik, 1988).

Eliade (1976) também tem trabalhado sobre este temano que se refere à transformação do indivíduo em xamã,que pode ser precedida por um acidente ou evento insólito.É o caso, por exemplo, de algum tipo de doença, tal comouma crise epiléptica, da qual a pessoa se cura. A doença se-ria interpretada como o sinal de que o futuro xamã foi o es-colhido pelos deuses. Essas doenças são chamadas por Elia-de de iniciáticas, pois recriam dores e sofrimentos infligidosnas torturas dos rituais iniciáticos. A loucura também podeser vista como um retorno ao caos inicial. Eliade (1976)reconhece três passos comuns às iniciações: 1) Tortura, so-frimento; 2) Morte; 3) Renascimento como um novo ser.

Esses dados parecem vir ao encontro da forma comoDona Helena descreve sua iniciação na benzedura; ela re-lata que aos quinze anos ficou cega,

... não enxergava nada. Estava no hospital, e apareceuum anjo, eu podia olhar para as asas, assim, brancas.

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Esse anjo disse que ia fazer a graça de me curar, masque eu ia ter que retribuir curando outras pessoas.

Dona Helena refere que estava conversando com oanjo e que o médico que a tratava na ocasião pôde ouvir oque ela dizia. A partir daí, ela voltou a enxergar e começoua benzer. A experiência da cegueira e depois a de voltar aenxergar podem ser interpretadas como um processo equi-valente à morte e ao renascimento, coincidindo assim comas afirmações de Eliade (1976).

Dona Helena teria perdido a visão, porém, ao recupe-rá-la nessa experiência mística, ela teria sido designadapara uma missão. Saiu da crise duplamente fortalecida: pri-meiro, no sentido de ser uma escolhida e, segundo, por terqualidades que anteriormente não tinha, pois passou acontar com uma faculdade especial que lhe permite veralém das pessoas comuns. Isso lhe possibilita saber o queestá acontecendo com aqueles que a procuram solicitandoajuda. Assim, esta experiência mística, de alguma forma,permitiu-lhe acesso ao domínio do sobrenatural, ao con-trole das forças sagradas.

Essas doenças iniciáticas apresentam uma outra conse-qüência, a de a benzedeira transformar-se no símbolo da efi-cácia do seu tratamento. Como foi expresso por uma benze-deira entrevistada: “Se foi bom prá mim, tem que ser bom paraos outros” (Dona Adelina). A conseqüência é que a benzedei-ra, como no caso de Dona Helena, passa a ocupar um lugardiferenciado em relação às outras pessoas. Essa condiçãoespecial, como veremos mais adiante, será de fundamentalimportância no processo de cura que passará a realizar.

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Em que consistiria, entretanto esse dom? Ele parececonsistir principalmente em uma comunicação privilegia-da com o sobrenatural, na qual se baseia sua força e seuconhecimento. Em contrapartida, ao assumir a benzedeiraa obrigação de ajudar os necessitados através da benzedu-ra, a entidade que lhe outorgou o dom fica, por sua vez,obrigada a ajudá-la no desempenho de suas tarefas.

O Anjo ao qual seguidamente se refere Dona Helenapassará a ser o seu mestre. O poder, a força não estão poisna benzedeira, nem numa outra pessoa determinada, nemnuma habilidade aprendida; trata-se de algo de que elapoderá usufruir enquanto cumprir certos requisitos. Porsua vez, o cliente passa a estabelecer com Dona Helenauma relação semelhante à que ela estabeleceu com seuAnjo. Dona Helena vai ser uma presença na vida da pes-soa à qual vai transmitir sua força. O cliente, por sua vez,também deverá cumprir certas obrigações para que atransmissão possa ter efeito. Em ocasiões em que o clien-te se encontra muito fragilizado ante uma situação angus-tiante, – como no caso de uma mulher de trinta anos quehavia perdido um filho e estava prestes a fazer cesariana–, Dona Helena diz: Tá ótimo. Só tu pensando que não vaidar. Te vou dar algo para tu levar para ver que não tá so-zinha, que tá comigo. Em seguida ela traz uma fita e aamarra ao pulso da cliente.

O Anjo, origem do dom e elemento do sobrenatural,vai remeter o sujeito a uma ordem exterior. Não se trata aquide uma simples técnica, a qual seria da ordem do cotidianoe, portanto, questionável. Justamente por não existir uma va-lidação científica que coloque essa técnica na ordem do na-

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tural (é assim que se faz), faz-se necessário o mito cosmogô-nico. A concessão do dom se constitui este mito e com issose passa a ter uma reafirmação externa do procedimento edo poder. Assim, a benzedeira e, por sua vez, o paciente,passam a ser inscritos numa outra ordem, ao mesmo tempointerior e exterior às pessoas: a ordem simbólica.

Enfim, é por meio desse acesso diferenciado queDona Helena obtém duas vantagens fundamentais na suaprofissão: 1) uma influência sobre as forças sagradas quelhe possibilita solicitar ajuda para seus clientes, 2) a possi-bilidade de ser guiada.

Esse dom, origem de sua aprendizagem e ao mesmotempo validação de sua prática terapêutica, não pode sesustentar unicamente no reconhecimento da própria ben-zedeira; é necessário que a comunidade onde ela vive tam-bém veja nela alguém especial. De nada adiantaria essahistória de vida se as pessoas de seu grupo, no qual vai sedar o início de suas atividades terapêuticas, fizessem outraleitura desses acontecimentos. É necessário que estahistória encontre um interlocutor que reconheça o sinalque marca seu protagonista como alguém especial, aqueleescolhido para realizar a intermediação com o sagrado.

Nesse sentido, esse processo se constitui uma estradade mão dupla. É necessário que a população escolha umportador de dom especial, com poderes sobrenaturais,para, por sua vez, lhe retribuir com a imagem fetichizadade sua vida e do infortúnio que, por ventura, venha acon-tecer (Cf. Oliveira, 1985).

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O auto-sacrifício e o papel da benzedeira

O dom obtido através da experiência mística, como éo caso de Dona Helena, vai marcar a pessoa com certosatributos. Além do poder e da força conferidos a essa pes-soa, outros atributos também lhe são designados, principal-mente os de bondade e sacrifício. Tais aspectos são, comoveremos mais adiante, fundamentais para construção dascaraterísticas do atendimento. Constantemente, a benzedu-ra é colocada como um encargo a mais, além daquele demanter a casa limpa, preparar a comida, lavar a roupa ecuidar do filho deficiente1.

Hoje acordei às cinco da manhã, lavei roupa, dei cafépara esse meu filho que está no quartel, encaminhei oalmoço, e às sete já estava benzendo. E nunca voudeitar antes da meia-noite, uma hora. Sempre temroupa para passar ou arrumar. E ainda tenho o filhodoente que sou eu que atendo (Dona Helena).

Essa fala é repetida em diversas ocasiões durante osatendimentos:

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1. O filho de Dona Helena apresenta uma deficiência neu-rológica que dificulta a coordenação motora e o impossibi-lita de caminhar e falar. Em virtude desse problema ele pas-sa a maior parte do tempo na cama ou numa cadeira de ro-das, dependendo de outras pessoas até para se alimentar.

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Cliente: Podia ter vindo mais cedo. Mas esse homemembroma a gente (referindo-se ao marido).

D. Helena: É. Sabe a que hora me acordei hoje demanhã? Às cinco e meia. Já fiz pão, doce de abóbora,bolachas. Antes fazia mais, mas agora não dá tempopara fazer muito.

Esse discurso tem seu reflexo sobre a população atendi-da, que vê Dona Helena como uma pessoa de extrema bon-dade; alguém que se sacrifica pelos outros, e parte desse sa-crifício é seu ofício de benzedeira. Essa realidade tambémfica evidenciada no tratamento dado ao filho deficiente,expressando a abnegação e o sofrimento de Dona Helena.Alguns dos cometários dos clientes durante a espera refletemessa visão: “Que pessoa boa que é Dona Helena, e como tra-balha a coitada! Inclusive com esse filho que ela tem!”.

Beto, o filho doente, com sua deficiência, de umacerta forma atribui a Dona Helena uma certa aura: de bon-dade, de espírito de sacrifício.

Caillois (1988) vê no sacrifício uma forma de a pessoainfluir sobre o sagrado, assumindo um espécie de dívidacom ele. Desta forma, as forças sagradas se veriam na ne-cessidade de dar aquilo que foi solicitado a fim de restabe-lecer a ordem no mundo. O pedinte, através de uma ofer-ta que o sagrado não poderia recusar, obriga-lhe a respon-der a suas súplicas. Enfim, o fiel, por meio do sacrifício,passa a ser credor frente à divindade, a qual começa a servista como portadora de uma dívida para com ele.

Ainda que esta explicação tenha uma certa lógica, in-clinamo-nos mais à perspectiva de Leach (1978). Segundo

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este autor, o auto-sacrifício, muito mais que uma oferenda,que, nesse caso, Dona Helena dirige às forças sagradas,constitui-se um signo de submissão. Assim, pela submis-são, Dona Helena vem a participar do poder, das forças sa-gradas, estabelecendo uma relação de reciprocidade.

Essa situação na qual Dona Helena se encontra e queacreditamos estar ligada à sua condição de benzedeira seaproxima sobremaneira daqueles sentimentos presentes nafase liminar do processo ritual descrita por Turner (1974).Durante uma crise vital, que implica a passagem de umacondição estrutural para outra, como na adolescência, navelhice e na morte, pode observar-se um sentimento de bon-dade humana que independeria das afiliações subgrupais.Contudo, em certos casos, como no xamanismo, o que seriauma fase se transforma numa situação permanente, na quala pessoa assumiria uma condição de estrangeirice sagrada.

Realmente, Dona Helena tem um status de estrangeiro,de marginal à própria sociedade. Ela se configura de ummodo estranho diante de seu grupo social. Possui uma aurasanta, confirmada pelas situações da sua vida: o filho doente,do qual ela trata sozinha; um papel de destaque na estruturafamiliar – o papel de mantenedora – um certo ar de masculi-nidade presente em determinadas situações; e um vago mis-tério, evidenciado no olhar daqueles que a procuram.

A imposição de um ofício

Ao mesmo tempo que esse dom traz à pessoa uma sé-rie de qualidades, ele também impõe um ofício: o ofício dabenzedura (Oliveira, 1985).

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Podemos dizer que o dom vai estruturar linhas funda-mentais na benzedura. Uma delas refere-se a como é vistoo exercício desse ofício. Não se trata aqui de uma escolha,de uma opção, mas sim de uma imposição, de uma obri-gação que a benzedeira deve cumprir. Tal realidade estábem expressa no relato da experiência de Dona Helena, járeferida anteriormente, pela qual ela recebeu o dom:

Esse anjo disse que ia fazer a graça de me curar, masque eu ia ter que retribuir curando outras pessoas.(Dona Helena).

O dom obriga, manda, é um compromisso assumido.Ele representa um certo privilégio ao dotar o escolhido deum poder especial, mas também é vivenciado no seu cará-ter obrigatório de atribuir uma responsabilidade à qual oescolhido não pode fugir (Pereira, 1993).

Desta forma, o ofício de benzedeira, semelhante aoofício de médico, mais que uma profissão, é visto comoum sacerdócio, uma missão. Essa característica marca olugar que a benzedeira vai ocupar em relação a seus clien-tes. São sempre estes que precisam dela, e, em nenhumasituação, ela quem precisa dos seus clientes. O atendi-mento implica sempre uma dívida que o cliente contraicom a benzedeira.

O privilégio do dom também determina que a benze-deira, como já vimos, não possa se negar a dar sua ajudaàquele que a procura. Isso explica também a participaçãodo marido de Dona Helena, Seu Luís. Como vimos, cabe aele a função de entregar as fichas às sete da manhã e tam-bém, ainda que de uma forma não explícita, estabelecer

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um limite ao trabalho de Dona Helena. É comum, após ter-minadas as fichas, e depois de passado um certo tempodesde o início do atendimento, chegar alguma pessoa pe-dindo para ser atendida em caráter excepcional. Geral-mente, Dona Helena faz cara de desagrado, fala donúmero de pessoas que já atendeu e do avançado da hora,não tendo podido parar até aquele momento. E se a pessoainsiste, ela diz: “Se quer, pode esperar que eu termine aspessoas que já tem ficha, mais não garanto”.

Se a pessoa ficar, freqüentemente é atendida. Entre-tanto, se a solicitação do atendimento se faz na presençade Seu Luís, ele toma uma atitude ríspida para com a pes-soa, indicando que está havendo abuso. Assim, Seu Luísatua como um protetor que catalisa as desavenças, possibi-litando a Dona Helena realizar aquilo que o dom obriga enão negar ajuda a quem solicite.

Nem tudo o dinheiro compra

O outro aspecto que o dom vai determinar é a gratui-dade do atendimento. O que se recebeu de graça, de graçase deve dar (Dona Helena). Entre as benzedeiras, é umaconstante fazer referência a que nunca se cobra nada deninguém. No entanto, é explicitado que, se alguém querdar alguma coisa, será bem aceita.

Eu nunca cobrei nada a ninguém. Nunca cobrei umtostão de ninguém! Graças a Deus! Me dão algumacoisa se querem... (Dona Leonida, benzedeira)

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Assim, em todos os casos é deixado à pessoa a respon-sabilidade pela dívida contraída com a benzedeira. Dianteda pergunta feita por muitos clientes sobre o preço da ben-zedura, Dona Helena responde: “A pessoa é que sabe”.

Essa questão está relacionada com a maneira como évisto o procedimento terapêutico, no qual, em última ins-tância, quem cura é a intervenção divina. Assim, não sepode cobrar por algo que não é diretamente a pessoa quefaz. Contudo, é importante assinalar que se espera um re-conhecimento pelo trabalho realizado, o qual vai se dar naforma de reciprocidade através de um presente, seja em es-pécie, geralmente algum comestível (erva, café, batatasetc), seja em dinheiro.

E eu... não... não faço nada assim com... com... assimcom a intenção do senhor me gratificar... o senhor medar um presente bem bom... Tá na pessoa... porqueeu nunca cobrei um tostão de ninguém! O que eu re-cebi de graça, de graça eu distribuí, né? Agora,quem... reconhece, dá... sempre dá... porque a gentecompra de tudo; dá... dá um dinheiro pra comprar umleite, ou dá um...uma ida – até ranchinho, eu tenhoaí, eu tenho ganhado, de pessoas... de reconheceremo que a gente faz, né... Mas não que eu cobre algumacoisa de ninguém. Nunca cobrei! De ninguém. Podeser o mais rico que for. (Dona Leonida)

Assim, o fundamental desse processo é que o paga-mento se constitui uma forma de reconhecimento do clien-te para com a benzedeira, reconhecimento de uma dívida

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que é impossível pagar. Se a benzedeira colocasse um pre-ço no seu trabalho, ela o estaria desvalorizando, pois ele éalgo da ordem do sagrado, que não pode ser medido naordem do material. Agindo assim, ela estaria misturandofenômenos que correspondem a duas ordens distintas – osagrado e o profano –, e estaria, confundindo ou contradi-zendo classificações ideais (Douglas, 1976).

Uma cobrança por parte da benzedeira viria a man-char, a sujar tanto o trabalho realizado como a imagem dequem o realiza. Ao colocar um preço e vender os seus ser-viços, ela estaria deixando de ter as qualidades citadas an-teriormente: bondade e pureza, as quais lhe possibilitamsustentar um lugar especial e manter o dom.

Vem uns assim e me dá, por exemplo, um ranchinho,outros me dá 20, 50 pila, outros me dá 20, outros medá 10! É limpo, né? Me dão de livre e espontâneavontade! Não que a gente cobre. (Dona Leonida)

O que se evidencia nessa atitude é o desinteresse pelodinheiro como pagamento pelos rituais de benzedura.Segundo Dona Helena, nem tudo o dinheiro compra...

Para a benzedeira, é necessário colocar que não seobteve lucro através da benzedura, bem como mostrar quetal exercício chega a atrapalhar suas vidas no plano mate-rial e, fundamentalmente, no plano familiar. O que ficaclaro é que, a benzedura continua sendo uma carga para apessoa.

Ainda que as benzedeiras sejam pessoas de escassosrecursos e reconheçam esse fato, elas insistem em que se

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trata de uma opção, uma vez que teriam a oportunidade deestar vivendo numa situação melhor, que seria oportuniza-da pela ajuda, sempre rejeitada, de um benfeitor, antigocliente que, em razão de uma cura, se prontifica acolabarar por gratidão.

Aí ela curou. Os pais ficaram tão agradecidos quequeriam me levar a mim e a família para Goiás (...) Eleera do Exército, dizia que se eu queria podia transfe-rir meu filho pra lá. Até hoje ele escreve pedindo paramim ir pra lá. Diz que até uma casa pronta já tem prámim. (Dona Helena).

Alguns benzedores chegam a fazer referência ao des-prezo pelo dinheiro. Eles não têm, mas poderiam ter muito,se quisessem. A pobreza se transforma numa opção; eles,assim, estariam acima dos valores materiais, o que, por suavez, os coloca numa posição superior a seus clientes, inde-pendentemente das condições financeiras destes.

... quando fez 8 dia, teve são... E aqui me ofereceu...que era um doutor lá de... (...) me ofereceu 500 milréis diário por dia... e pra mim benzer lá... eu nãovou... morrer lá... Graças a Deus ele sarou! (...) Eu po-dia ser rico, mas não quero. (Seu Kinka, benzedor)

A existência de um protetor confirma tanto o despren-dimento do benzedor em relação aos aspectos materiaiscomo a eficácia de seu tratamento que gerou tamanhagratidão. Desta forma, o benzedor se coloca no lugar da-

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queles que não precisam de nada, pois se quisesse teriatudo, casa, comida e alguém que o sustentasse. Fica claro,assim, que o cliente pode agradecer, mas nunca pagar pelagraça recebida.

O sujeito do suposto poder

A existência do dom na benzedeira atribui-lhe umaforça que a situa num lugar diferenciado em relação a seusclientes. Ela seria pois a portadora da força da qual eles ca-recem. Esse lugar diferenciado, essa dissimetria que se es-tabelece entre benzedeira e cliente, torna-se fundamentalpara a produção da eficácia do símbolo, tema que maistarde abordaremos.

Se, por um lado, essa força se refere a um poder delutar contra a doença, ela também põe à prova as condi-ções físicas da benzedeira. Ela deve demonstrar que já es-tabeleceu a luta contra essas forças negativas e venceu.

Às vez u'a pessoa tá... tonta, tonta da cabeça, assim,que não podia mais, vinha... p'a mim benzer, e eubenzia, graças a Deus! Ela... saía boa. Mas hoje emdia, dessas coisa eu não benzo mais, porque eu nãoposso nem eu me defender disso! Eu vivo tonta tam-bém e não encontro uma pessoa que me benza!(Dona Maria Nair, benzedeira)

A esposa de Seu Kinka, um benzedeiro muito ativo,faz alguns anos, falando da numerosa clientela que procu-rava o marido, refere que atualmente já não é mais tão so-

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licitado, atribuindo isso ao enfraquecimento do seu cônju-ge: ”... quando ele tava mais forte, que tinha mais força, vi-nha bastante gente”. Com efeito, a força espiritual parecedecrescer à medida que a doença toma conta do benzedor.

A Bênção

A bênção é uma prática que se encontra difundida nocotidiano das pessoas. Podemos encontrar a bênção dospais ao futuro casamento de um de seus filhos ou a bênçãode uma casa nova que está por ser habitada (Cf. Oliveira,1985). Ela pode tomar formas menos definidas, próximasda prece, que vai ter um papel protetor diante de umadoença grave ou de um exame difícil. Pelo exposto, obser-vamos que a bênção não se apresenta unicamente no pro-cesso terapêutico aqui descrito, embora nele, como vere-mos mais adiante, tome características especiais.

Vimos anteriormente que o dom é um fenômeno que,à primeira vista, pode parecer puramente individual, masque se constitui em um fenômeno social, pois, para que eleexista, deve haver o reconhecimento do grupo. Algo seme-lhante vai acontecer com a bênção, pois, ao estudarmos essaprática, também estamos lidando com um processo social.

Mauss (1979) chamou a nossa atenção sobre isto.Mais ainda, ele afirma que é difícil encontrar alguma esfe-ra da vida social na qual a prece não cumpra algum papel.Na organização familiar, ela sela alianças como observa-mos por ocasião do casamento; tem funções econômicasevidentes na sociedade eclesiástica onde o acúmulo de ri-quezas está a ela relacionado.

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Destacando, assim, a importância da prece, com efei-to, ela é valorizada em infinidades de situações, e não ex-clusivamente na benzedura. Podemos afirmar então que,ao estudar esse processo terapêutico, não estamos reali-zando um estudo de pessoas, de indivíduos, e sim de umfenômeno social, embora ele se expresse através das açõesdesses indivíduos denominados benzedeiros.

Aqui defrontando-nos com uma questão: a bênção éum tipo de prece ou se constitui um procedimento mágico?

Para começar, tomaremos a argüição de Mauss (1979)na qual afirma que podemos considerar a existência de pre-ce sempre que estejamos na presença de um discurso quese refira, de forma explicita, a uma autoridade religiosa.Caso o discurso careça dessa afirmação, também se consi-derará prece se o rito for realizado num lugar sagrado, oupor um agente detentor de um caráter religioso. Caso faltemesses elementos, estaremos diante de um ato de feitiçaria.

Porém, como na seqüência o próprio autor assinala,nem sempre é tão fácil discriminar uma da outra, pois, en-tre o feitiço e a prece, assim como entre a magia e a reli-gião, existe uma grande variedade de graus intermediários.Certas preces, com efeito, são por alguns ângulos de visão,verdadeiros feitiços (Mauss, 1979).

Ainda que, posteriormente, chegasse a aceitar que se-ria impossível separar, de forma radical, prece de feitiço,Mauss não considerava a bênção uma prece, uma vez queconsistiria em tentar modificar o estado de uma coisa pro-fana, conferindo-lhe um caráter religioso. Na bênção e namaldição, é uma pessoa que é bendita ou maldita (Mauss,1979). A prece, ao contrário, tem por objetivo principal ainfluência sobre seres sagrados.

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No caso da benzedura, é sobre Deus e os anjos quese intenta influir para que eles, por sua vez, intervenhamem favor daquele que procura aquela prática. O benzedoré um intermediário, é alguém que tem como particularida-de especial uma comunicação privilegiada com o sagrado.Ele tem um intercâmbio direto com o Olimpo.

Uma outra diferenciação que o autor faz consiste en-tender que na prece comum, embora haja uma repercus-são sobre alguém, isso não se constitui processo essencialdo ritual destinado, em primeira instância, às forças religio-sas e, somente de maneira indireta, pode vir a repercutirsobre seres profanos (Mauss, 1979).

De fato, esse ponto nos coloca uma diferença. Poder-se-ia dizer que a bênção é um tipo de prece na qual:

1) aquele que a realiza procura influenciar os favoresdas forças sagradas em benefício de uma outra pessoa;

2) essa prece tem por objetivo implícito também in-fluenciar tanto as forças sagradas quanto o beneficiário.

A bênção que Dona Helena utiliza é eminentementeoral e compreensível na sua totalidade. Contudo, observa-mos outras benzedeiras que recitam a prece de uma formaincompressível, ficando, em alguns casos, reduzida a ummero murmurar. Esta, no entanto, é uma das formas em quea bênção pode variar. Ela pode também deixar de ser umaexpressão oral para se materializar em um elemento, comoa “Segurança” (bentinho), a qual é constituída por um pa-pel com a seguinte oração:

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Segurança para o Serviço, Saúde, Paz, Amor, Dinhei-ro, contra Olho Grande, Inveja, Ciúmes, Contra todosos males. São Marcos Manso que amanse estes males.Amém.

O papel é recortado de uma folha fotocopiada. Cadafolha tem escrita várias vezes a oração. Dona Helena des-taca uma das orações da folha e solicita a algum membroda sua família que escreva no verso do papel aquilo que apessoa pediu (saúde, amor, dinheiro etc). Posteriormente,coloca o papel num saquinho de pano de aproximadamen-te dois centímetros por três, ao qual se agrega incenso edepois o fecha. Tudo isso é realizado sem a presença dapessoa que solicitou a segurança. Um outro detalhe é quea segurança, diferentemente da bênção, tem estipulado umpreço, que oscila em torno de 10% do salário mínimo1.

Estamos aqui diante de uma mutação da prece. Elase torna um mero recitado de palavras, podendo, até,ser modificada para um gesto. Assim, a movimentaçãodos lábios chega ser igualada a qualquer outro tipo demovimentação, como, por exemplo, braços, pernas etc.A prece fica então transformada num recitado de pala-vras gastas, sem sentido. Essa modificação da precepode, também, dar como resultado um objeto material,como um amuleto ou um rosário – preces materializa-das. Desta forma, a prece nas religiões cujo dogma se

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1. Esse tipo de segurança é o mais comum; contudo, existemainda outros tipos, como aquela para chamar dinheiro ou asegurança contra bronquite asmática.

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desvincula de qualquer fetiche torna-se, ela mesma, umfetiche (Mauss, 1979).

Na reza de algumas benzedeiras, as palavras deixamde transmitir uma mensagem, é o ato de falar que está di-zendo algo, e não as palavras. É através do ritual de suapronúncia que se procura comunicar. Já no caso de DonaHelena, também é importante aquilo que a prece diz, osentido de suas palavras. Na primeira situação se procuraproduzir um efeito meramente pela ação da fala, as pala-vras são um gesto; na segunda, elas possuem um sentidoque deve ser compreendido no conjunto do ritual.

As seguranças são um bom exemplo dessas precesmaterializadas referidas por Mauss (1979). A prece deixade ser oral para ser substituída por um pedaço de papel,contudo permanece nela um caráter sagrado. É como setentasse controlar a força da prece, domesticá-la, enjaulá-la para poder fazer uso dela em qualquer situação.

Entretanto, não basta a oração estar lá escrita paraque a segurança possua esse caráter sagrado; como afir-mou Lévy-Bruhl (1963), é fundamental que aquele dequem se recebe essa segurança seja considerado possuidorde força. De fato, o amuleto por si mesmo não detém umpoder mágico, ele se torna sem valor caso aquele que odeu não possua o dom de entrar em contato com o mundosobrenatural.

Podemos dizer que, em qualquer uma das situaçõesdescritas, se procura, por meio da oração, produzir efeitosno cliente. Ou seja, na bênção existe o objetivo explícitode influenciar o sagrado e o objetivo implícito de influen-ciar a pessoa que está recebendo a bênção.

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Ainda que reconhecendo os diferentes tipos de precee diferenciando esta da bênção, vemos que uma situaçãopermanece invariável: a prece tem como característica sereminentemente um rito oral, mas, ao mesmo tempo, umaação. Em algumas situações, o aspecto da fala fica em pri-meiro plano, como no caso das bênçãos recitadas de formaclara, e noutros, é a ação que toma o plano principal. Noentanto, os dois elementos parecem estar sempre presentes.

Fala e (é) Ação

Mauss (1979), de modo feliz, conseguiu perceber ocomponente de ação presente na fala. Ele viu que a lingua-gem possuía um objetivo e produzia um efeito, sendo as-sim um instrumento de ação.

Essa articulação entre palavra e ação é, a nosso ver,fundamental para a compreensão do processo de benzedu-ra. Portanto, nos propomos aqui a aprofundar um poucoessa questão.

A relação palavra-ação é trabalhada, ainda que deuma forma um tanto indireta, por Vygotsky (1989). Discor-rendo sobre a junção da fala e das atividades práticas, oautor diz que as crianças, na tentativa de atingir seu objeti-vo, falam, e que isso é tão importante quanto a ação queempregam para atingir seus objetivos. Mais do que isso, falae ação constituiriam uma mesma função psicológica com-plexa, dirigida para a solução do problema em questão(p. 28). O autor destaca, também, uma unidade entre per-cepção, fala e ação, e que esta deveria ser um objeto cen-tral quando se analisa a origem das formas de comporta-

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mento humano, uma vez que as palavras moldam as ativi-dades dentro de uma estrutura predeterminada da mesmaforma que um copo dá forma à agua nele colocada.

Enfim, Vygotsky levanta a questão da importância daspalavras na construção do pensamento da criança. São elasque vão permitir à criança organizar seu pensamento.

Malinowski (1935) já fazia referência ao aspecto deação presente nas verbalizações das crianças. Elas respon-dem à fome, ao desconforto ou à dor através de gestos físi-cos, entre eles a expressão verbal. Esses sons emitidos pelacriança produzem uma resposta no ambiente que a rodeia,principalmente nos pais, os quais reagem de forma a inter-romper essa sensação de desconforto; assim, uma pequenacriança atua sobre seu ambiente através da emissão desons, os quais são a expressão de suas necessidades corpo-rais (p. 63).

Posteriormente, uma criança ao sentir fome repeteessa emissão sonora que antes originara a saciedade, o quegeralmente faz a comida aparecer. Malinowski comentaque essas expressões verbais da criança seriam quase a ex-pressão de um encantamento mágico.

A resposta dos pais às expressões inarticuladas ou bal-bucios de seus filhos produz uma efetividade na fala dacriança que a assemelha a uma fórmula mágica. Assim,após repetidas vezes em que a criança solicitou a mãe, oua comida, e esta apareceu, quando posteriormente pedeuma destas coisas, é quase como se recitasse uma fórmulamágica. As primeiras palavras na infância são um meio deexpresão e, mais importante, um efetivo modo de ação(Malinowski, 1935, p. 63).

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Numa outra perspectiva, Barthes (1978) também ana-lisa essa relação entre a estrutura do pensamento e a línguaao afirmar que ela não se esgota na mensagem que gera;ela a sobrevive, através de sua estrutura, a qual se impõeao pensamento (p. 14).

A importância das palavras e o componente de açãopresente nelas foi enunciado também por Freud ao referir-se às resistências que poderiam existir para realizar umapsicanálise. Observando nelas um componente de magia,destaca que é por meio das palavras que uma pessoa podefazer outra feliz ou desespenrançada. É também por meiodelas que alguém atrai multidões e, principalmente, sãoelas o meio de influência recíproca entre os homens(Freud, 1973c).

Podemos resgatar aqui o germe da idéia de que, da-das certas condições, as quais consistiriam nos aspectos ri-tuais, as palavras possuem um poder transformador quepode se igualar à ação.

Contudo, foi Austin (1990) quem trabalhou de manei-ra mais sistemática o componente de ação presente na fala.O expressivo título de seu livro Quando dizer é fazer1 jános sugere o caminho que ele vai percorrer.

O autor fala que certas sentenças não são descriçõesde atos nem declarações de estar realizando uma determi-nada ação, elas são a ação. Exemplos desse tipo de senten-ça podem ser encontrados em: “Aposto cem cruzados queamanhã chove”, ou “Batizo este navio com o nome de Rai-

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1. Mais sugestivo ainda é o titulo original da publicaçãoamericana: How to do things with words.

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nha Elizabeth”. Austin (1990) chama a essas sentenças deperformativas. O nome provém da palavra inglesa performque significa realizar, executar.

Assim, ao emitirmos um verbo performativo, não es-tamos diante de um mero dizer, mas sim nos defrontamoscom a realização de uma ação.

Entretanto, o simples proferir a palavra não constitui oato; dizer determinadas palavras não é casar-se. Conformedizer de Austin (1990), para que as sentenças performativassejam felizes, devem ser ditas em circunstâncias apropria-das, ou seja, existe um conjunto de requisitos para que esseato tenha sucesso. Se considerarmos o verbo benzer comoum verbo performativo, a sentença “estou benzendo fula-no” deve ser dita num contexto apropriado para que seconstitua uma benzedura.

Malinowski (1935) também aponta para a situação naqual deve ser proferido o ato verbal como condicionante desua eficácia. Ele destaca a importância da força de uma tra-dição sancionada por várias crenças, instituições e regrasexplícitas. É justamente sobre esse constrangimento socialque o pedido do encantamento não pode ser ignorado.

Falando sobre proferir a palavra “aceito” na cerimô-nia de casamento, Austin (1990) nos mostra que essa enun-ciação não se constitui um relato do ato, pelo contrário, elaé o ato. Ao dizer a palavra “aceito” está-se fazendo algo: éna pronúncia dessa palavra que reside o ato de casar, as-sim como também o ato de apostar consiste em dizer “euaposto”. De fato, não estamos aqui perante um ato do qualessas frases seriam um sinal audível de uma outra ação queé realizada, pois, esses atos, casar e apostar, consistem jus-tamente em dizer certas palavras.

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Na benzedura aconteceria algo semelhante. Dizer“Eu te benzo, em nome de” não está descrevendo umaação, pois a frase é a própria ação. Talvez por isso, embo-ra certas partes da bênção sejam ditas em voz baixa, o “eute benzo” é dito sempre de forma audível.

O autor nos mostra, na seqüência, que não basta pro-ferir a palavra “Aposto” para ter conseguido apostar. O pro-ferimento deve ser realizado em circunstâncias adequadas.De fato, dizer “aposto” não tem valor nenhum se proferidoapós terminar a corrida de cavalos.

Austin (1990) dá algumas condições para que umproferimento performativo seja feliz, pois, quando algumasdessas condições não se cumprem, o ato é vazio:

1 ---> deve existir um procedimento convencional-mente aceito, com um determinado efeito convencional eque inclua o proferimento de certas palavras por certaspessoas em certas situações;

2 ---> o procedimento deve ser executado por todosos participantes de modo correto e completo;

3 ---> nos casos em que o procedimento procuraproduzir nas pessoas uma conduta correspondente deveexistir, por parte dos participantes, a intenção de se con-duzirem de tal maneira e, ainda, essa intenção deve seratingida.

É interessante esta passagem pois aponta que o atoperformativo não é feliz, ou poderíamos dizer eficaz, emtodos os casos. São necessários certos requisitos. Na ben-zedura, poderíamos dizer que se faz necessário que eleseja realizado num contexto no qual seja aceito pelo gru-po; ou seja, deve fazer parte da realidade das pessoas.

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Austin (1990) também assinala que o proferimentodas palavras pode ser acompanhado de gestos, como, porexemplo, um piscar de olhos, um dar de ombros, franzir ocenho etc.; ou de atos cerimoniais não-verbais. As circuns-tâncias do proferimento também são fundamentais, porexemplo: ao dizer “te deixarei meu relógio no dia que mor-rer”, o estado de saúde daquele que fala é relevante para ainterpretação das palavras. Assim, o proferimento “Estoubenzendo” não tem uma eficácia por si mesmo, mas formaum todo com o conjunto de sinais que o acompanham. As-sim como a situação e o local onde é executado.

Poderíamos, desta maneira, afirmar que tudo o que ro-deia a benzedeira faz parte do ritual. Até mesmo, o maridoque briga com os clientes que querem ser atendidos, sem tera ficha, tem seu lugar no ritual. Com efeito, a ocasião do pro-ferimento é fundamental, uma vez que as palavras utilizadassão, por vezes, explicadas pelo seu contexto (Austin, 1990).

Essa colocação do autor nos remete à comparação deLeach (1978) entre a execução orquestral e o processo ri-tual. Na orquestra, a platéia não está interessada nos sonsindividuais dos diversos instrumentos, mas na combinaçãodeles. É no lugar onde eles se fazem um que o ouvinte vaiencontrar o significado da música. Da mesma forma, o sig-nificado do ritual se encontra na sua totalidade, onde secombinam os diversos elementos.

Nos processos rituais existiria, na maioria das vezes,o que Leach (1978) metaforicamente denominou um maes-tro, um protagonista central, cujas ações dão um marcotemporal para todos os outros. Esse papel do maestro seriaocupado pela benzedeira. Ela é a diretora de um conjunto

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de elementos, como o calor do fogo, os gestos, a oração, ofilho deficiente, o marido briguento, o pesquisador-ajudan-te1, e também os clientes que procuram seus serviços, poisos executantes e ouvintes são as mesmas pessoas. SegundoLeach (1978, p. 56), participamos de rituais a fim de trans-mitir mensagens coletivas a nós mesmos.

Retornando a Austin, observamos que ele pretende aclara diferenciação entre a realização de um ato ao dizeralgo, ou seja, situações em que dizer é fazer, em oposiçãoà realização de um ato de dizer algo (Austin, 1990).

Com efeito, a oração dá um sentido a toda a fala pos-terior. Ela dá autoridade à pessoa que a realiza, dá sentidoa seu discurso, explica como essa pessoa conhece essas coi-sas. A bênção não tem somente a função de cura, ela tam-bém é indispensável para justificar o diagnóstico. A bênção,de fato, primeiramente justifica o diagnóstico, permite quea benzedeira conheça o problema e suas causas. Durante abênção, como se fosse um transe, se revela à benzedeiratoda a problemática do paciente. É como se, ao passar acarga do cliente às brasas, a benzedeira conseguisse perce-ber tanto a carga como a origem desta. Assim, a benzedu-ra, ao mesmo tempo que cura, identifica o mal daquele queestá tratando. Por outra parte, como já dissemos, essaoração somente adquire sentido e poder quando inseridanum contexto onde ela, no dizer de Austin (1990), se tornafeliz. Entretanto, como o autor nos adverte, no caso do pro-ferimento fracassar, não significa que ele seja falso, mas ma-logrado; ou seja, participante da doutrina das infelicidades.

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1. Mais adiante exporemos como fomos integrados ao ritual.

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Acreditamos existir uma ligação entre o trabalho deAustin (1990) e o do antropólogo Malinowski (1935), poiseste, referindo-se ao aspecto pragmático da fala, ressaltaque as palavras fazem muito mais que transmitir informa-ção ou contar uma determinada história, elas são um meiode efetuar uma ação. Ainda que ele afirme que em toda so-ciedade existe a cristalização de dois tipos de linguagem: alinguagem da tecnologia e da ciência versus a linguagemda magia e persuasão, nos adverte de que a diferência en-tre o uso mágico e o uso teórico das palavras é somente degrau, pois o significado de todas as palavras deriva deexperiência corporal (Malinowski, 1935).

O uso teórico da palavra na filosofia moderna não es-taria, portanto, desvinculado de sua origem. De fato, nãohaveria ciência cujos elementos conceituais, logo verbais,não estivessem vinculados à origem prática das palavras.Assim, esse aspecto prático da palavra não se limita à faladas sociedades ditas primitivas, como à primeira vistapoderia parecer (Malinowski, 1935).

Tambiah (1993) destaca como encontramos esse tipode linguagem em nosso mundo moderno, apresentadocomo exemplo as propagandas de beleza mágica de Hele-na Rubinstein, da qual se espera uma transformação total.Não seria esse o pensamento mágico que nos guia quandocompramos um perfume? Sabemos que se trata de ummero perfume mas, mesmo assim, ao realizar esse ato, nãoestamos de alguma maneira comprando um filtro de amor?

Leach (1978) também faz referência a esse tipo de lin-guagem, quando a qualifica como um ato expressivo, quese opõe, aos por ele chamados atos técnicos.

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Kenneth Burke (1969) também aborda essa questãoao pretender deixar de ver a magia como uma má ciênciapara vê-la como uma Arte Retórica. Para ele, a magia éuma retórica primitiva, uma vez que a função essencial dalinguagem seria a de induzir cooperação em seres que, pornatureza, respondem a símbolos (Burke, 1969, p. 43).

Segundo Tambiah (1993, p. 82), essa função real dafala nos remete a uma realidade de um tipo diferente, jul-gada pela ciência como verdadeira ou falsa.

O Lugar da Benzedeira

Intermediação

Se, por um lado, as benzedeiras receberam o dom dacura, por outro, esta não se efetua, exclusivamente, atravésde uma relação entre benzedeira e cliente. Contrariamenteao que se pensa num primeiro momento, existe uma acei-tação tanto do paciente quanto da benzedeira de que nãoé ela quem opera a cura. Ainda que se confie nos procedi-mentos utilizados, tem-se consciência de que, em últimainstância, é uma vontade superior que determina a melho-ra. A atuação da benzedeira ficaria restrita a uma interme-diação das forças sagradas.

Exemplo disso se apresenta quando Dona Helena diza uma cliente que a procurou porque o marido a tinhaabandonado por outra mulher: Mas não há de ser nada, mi-nha filha. Deus é maior. Ele está amarrado, tudo tem umfim nesse mundo.

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Num outro caso:

Cliente: Passei [num concurso], Dona Helena.Dona Helena: Passou graças a Deus. Parabéns.

Assim, no processo ritual de cura, é dada uma impor-tância muito grande à intervenção de Deus. A frase “Gra-ças a Deus” é uma constante. Esse papel fundamental daautoridade religiosa no processo terapêutico pode tambémestar expressa em: “Com o favor de Deus”. Ambas indicamque o trabalho da benzedeira, além de utilizar os medica-mentos caseiros, consiste também em conseguir, por seuintermédio, o favor de Deus. Ainda que esse favor, essa in-tervenção divina, se dê, principalmente, pela atuação dabenzedeira, o paciente deve ter a condição da fé. De fato,faz-se necessária a reunião desses requisitos para que seefetue a intervenção divina. Desta forma, o papel funda-mental da benzedeira seria estritamente o de intermediar.

Desde os 15 ano eu benzo. Graças a Deus! Tenho cu-rado muita gente com o favor de Deus. É pra pasmo,é pra ar, é pra... é rendido, é pra... cobreiro, é pramordida de aranha, é pra tudo! Graças a Deus! (DonaLeonida, benzedeira)

Estudos como os realizados por Glik (1988) sobre ou-tros processos de cura populares, como os de Baltimorecom grupos de cura Pentecostais e Nova Era, nos mostramque entre eles existe uma idéia que coincide com a obser-vada entre as benzedeiras e seus clientes, a de que o cura-

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dor cumpre uma função de intermediário. Os clientes acre-ditam que não foi o curador que os curou, atribuem a me-lhora a Deus, a forças da natureza, ou ao potencial do ho-mem para a cura natural que foi catalisado pelo curador(Glik, 1988, p. 1201).

Pereira (1993, p. 92) também nos chama a atençãopara esse lugar de intermediação quando se refere ao tra-balho das parteiras, no qual a idéia é de intermediação daforça mágica contida nas plantas e nas orações, que são osfatores capazes de curar.

Essa idéia é também compartilhada por Devereux(1993) ao afirmar que o xamã era um intermediário entre omundo espiritual da natureza e a tribo.

O papel de intermediário fica bem expresso nas dife-rentes orações utilizadas pelas benzedeiras, nas quais en-contramos constantemente a expressão “Em nome de Deus”.

Ainda que se reconheça a intervenção divina comofator principal no processo de cura, isso não significa queas benzedeiras estejam destituídas de todo poder; pelocontrário, como já assinalou Mauss (1979), é nesse fatorde intermediação, nessa proximidade com as entidades di-vinas, que lhe permite estabelecer uma relação especialcom elas, que reside o seu poder. É assim que acontececom o mágico australiano que, ao adquirir seus poderes,obtém uma alma nova a qual lhe possibilita relações maisparticulares com os deuses e as almas dos mortos, com osespíritos da natureza e as espécies totêmicas. É justamen-te nessas relações particulares que reside seu poder mági-co, seu mana, como se diria nas línguas melanésias(Mauss, 1979, p. 101).

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Mais ainda, através dessa relação, o curador passa ausufruir parte dos poderes atribuídos a esse mundo supe-rior. Assim, essa intimidade com o sagrado lhe permite teracesso a forças sobrenaturais e participar dos seus poderes.

No caso das benzedeiras, essa ligação qualificadacom as forças sagradas possibilita-lhes obter as orientaçõese os poderes necessários para curar seus clientes. Contudo,não é demais repetir, seu poder está justamente nessa inter-mediação com os deuses. Elas não são detentoras do po-der, só o estão exercendo em nome de outro.

A função de intermediação entre o sagrado – espíritose anjos – , e o profano – o cliente – também pode ser lidacomo uma intermediação entre o social e o individual, namedida em que possibilita ao cliente a sua inserção numalinguagem grupal. De fato, consideramos ser essa a inter-mediação fundamental da benzedeira.

O conhecimento privilegiado que as benzedeiras pos-suem do universo mitológico, das tradições e da história doseu grupo social as incumbe e as autoriza a exercerem afunção de outorgar sentido aos fatos que parecem escapar àsignificação do cotidiano (Mendez & Mendes, 1994, p. 30).

Para poder cumprir essa função de outorgar sentidoatravés do ritual, a benzedeira deve ter condições de inte-grar os diversos acontecimentos que se apresentam duran-te o ritual. Como dissemos anteriormente, todos os elemen-tos devem constituir-se um conjunto harmônico para que oritual tenha sentido. Nada pode destoar do conjunto.

Assim, durante a benzedura, diversos acontecimentosdevem, em determinado momento, incluir-se forçosamen-te no processo; esse acontecimento terá de ser integrado

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nos demais componentes do ritual sob pena de alterar a efi-cácia do conjunto. Isso pode se evidenciar nas pequenasalterações que podem ocorrer, quando, por exemplo, asbrasas do fogão à lenha começam a estalar, soltando fais-cas, e a cliente pergunta:

Cliente: E que as brasas tenham estralado, significa al-guma coisa?

Dona Helena: Estralar é bom, é muito dinheiro, mui-ta saúde.

Ou noutra situação, com a de uma moça de aproxi-madamente 35 anos que se consultava a respeito de umarelação amorosa que não estava dando certo e, durante abênção, a brasa caiu da tesoura e se quebrou em dois pe-daços.

Cliente: O que significa?Dona Helena: Isso é bom, quer dizer duas pessoasjuntas no mesmo canto.

O melhor exemplo dessa capacidade de integraçãoacreditamos que pode ser visto quando começamos a par-ticipar dos rituais de benzedura.

No primeiro dia combinado para começar a partici-par das benzeduras, chegamos às 8h30min, embora saben-do que Dona Helena iniciava seu trabalho a partir das7h30min. O atraso foi proposital, pois tínhamos receio dechegar antes do início das consultas e não saber o que fa-zer, o que se revelaria constrangedor.

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Quando chegamos à casa de Dona Helena, entramosno pátio e olhamos para dentro da cozinha; ela já tinha co-meçado a benzer. Ficamos aguardando na área junto comas outras pessoas (aproximadamente umas dezoito). Quan-do saiu o cliente que era atendido, e logo após ter entradoo seguinte, Dona Helena assomou à porta e nos chamou.Falou que estávamos atrasados, que ela já estava na fichanúmero nove. Encontrávamo-nos constrangidos, principal-mente em relação aos clientes, coisa que pareceu não afe-tar Dona Helena. Ela aparentava achar tudo isso muito na-tural. Sentamo-nos e pegamos umas folhas que tínhamoslevado para tomar notas.

Dona Helena notou que o rapaz que esperava paraser benzido mostrava certo incômodo, em virtude do quelhe disse: “Pode falar sem receio que esse senhor que estáaí, ele veio me ajudar. Pode falar sem problema”. No en-tanto, percebíamos que algo ainda não se encaixava, quealgo estava fora de lugar. Obviamente esse algo éramosnós. Mas rapidamente Dona Helena encontrou umafunção para nós.

Como já falamos anteriormente, em várias ocasiões,no final do processo ritual é solicitado ao cliente que escre-va seu nome ou o de outra pessoa num papel. Dessa vezDona Helena pediu para que nos dessem o nome para es-crevermos. Nós já tínhamos, então,uma função, nossa pre-sença ali tinha uma razão de ser, tanto para os clientescomo também para nós. Transformamo-nos em escreven-te oficial. Essa função que Dona Helena nos outorgou foitão eficaz que, em poucos dias, já passamos a ser reco-nhecidos pelos clientes, como uma parte do processo.

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Com o passar do tempo, certos clientes nos reconheciamcomo alguém que poderia possuir um pouco da força deDona Helena. Não podemos negar que, na ocasião, ofato nos deixou um tanto orgulhosos, confirmando assim olugar especial que Dona Helena ocupava em relação aosclientes e, por que não dizer, também em relação a nós.

É interessante como Dona Helena conseguiu, ao nosdar um lugar no ritual, articular uma característica sua, nãosaber escrever, com uma características nossa, que era jus-tamente lidar com papéis e com a escrita. Desta forma, aomesmo tempo que nos integrou no ritual, o fez de umaforma útil, percebida pelos clientes, por Dona Helena etambém por nós.

Dissimetria

Para que Dona Helena cumpra a função de mediado-ra na produção de sentido é preciso que ela ocupe um lugarespecial em relação às forças sagradas. O dom, como vimosanteriormente, dota a benzedeira de uma força que, em par-te, garante essa posição diferenciada. Assim, esse lugar espe-cial define que Dona Helena, como qualquer outra benze-deira, estabeleça, com o cliente, uma relação assimétrica.

Seu poder, sua força não residem, unicamente, no co-nhecimento de um conjunto de orações e procedimentosrituais. A execução deles por si só não garante que produ-zam efeitos. É necessário que aquele que os utiliza ocupeesse lugar especial, que, se, por um lado, está fundamenta-do no seu dom, na sua força, por outro, é desse lugar queseu poder emana.

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Como Favret-Saada (1985) destacou, ao fazer referên-cia ao processo pelo qual se retira uma feitiçaria de umapessoa, esse ato não consiste principalmente em recitar fór-mulas mágicas ou realizar determinados atos ritualísticospara que o processo tenha êxito. É de fundamental impor-tância que o cliente coloque o mágico na posição de seraquele que supostamente possui um poder, e que, por suavez, o mágico se reconheça como possuidor de tal poder,e assim se articule num discurso assumindo os efeitos dapalavra mágica sobre seu próprio corpo e, desse modo,deixar instituído um sistema de lugares.

Muitos clientes, quando recorrem à benzedeira, játêm uma idéia, às vezes muito vaga, outras mais clara, deque eles podem estar tomados pelo mau olhado. Em várioscasos isso já foi assinalado por algum membro da famíliaou por um vizinho, mas mesmo assim falta algo para queisso se institua: é necessário, no dizer de Favret-Saada(1985), a palavra autorizada do enunciador. E é precisotambém que essa pessoa seja colocada no lugar do sujeitodo suposto poder.

Hingson (1981) nos mostra como esse lugar especialque ocupa a benzedeira é também fundamental para o mé-dico desempenhar com êxito suas funções, destacando quea diferença de conhecimentos entre o médico e o pacienteproduz uma assimetria que favorece o controle da relaçãopor parte do primeiro.

De fato, esse lugar de autoridade em relação ao con-sulente não é algo exclusivo da prática da benzedeira; eletambém pode ser verificado em relação à ação do médi-co, ainda que, nesse caso, se acredite real e não imaginá-

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rio. No tratamento psicanalítico, também existe a necessi-dade, para o bom andamento do atendimento, de que oterapeuta ocupe, em relação ao paciente, o que se deno-mina o lugar do sujeito do suposto saber. Isso significa queo paciente deve supor, ou seja, deve ter como verdade oque é mero fruto de seu imaginário, que o terapeuta pos-sui o saber que a ele lhe falta para poder livrar-se de seudesconforto.

Colocando o terapeuta nesse lugar ideal, uma vezque ele teria justamente aquilo que o paciente consideraas respostas para suas perguntas, e por meio delas a solu-ção de seus problemas, o paciente estabelece uma relaçãodissimétrica com o terapeuta. Relação esta, voltamos a di-zer, fundamental para que o processo psicanalítico tenhaeficácia.

De forma semelhante, a benzedeira em relação aoimaginário do cliente deve ficar no lugar daquele que temo poder, a força que falta ao cliente para conseguir se livrardo mal que o persegue. Numa equiparação entre benze-deira e psicanalista, poderíamos dizer que, enquanto o se-gundo deve ocupar o lugar de sujeito do suposto saber, aprimeira deve, por sua vez, ocupar o lugar de sujeito do su-posto poder.

Essa constatação nos leva a um outro problema: nes-ses tipos de terapêuticas em que, como na psicanálise, umaparte importante do processo consiste em uma cura do quejá denominamos feridas simbólicas, tal cura tem que serrealizada através de um processo de recodificação. Paraque o referido processo tenha êxito, torna-se imprescindí-vel que o cliente coloque o terapeuta no lugar do ideal.

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Como vimos, em Psicanálise esse lugar é denomina-do o do sujeito do suposto saber, uma vez que se supõeque ele tenha as respostas para a problemática do pacien-te, e que no caso das benzedeiras pode ser denominado lu-gar do suposto poder, significando que a benzedeira é pos-suidora de um poder do qual o cliente carece. De fato, essaposição diferenciada constitui-se um passo necessário, etalvez possamos dizer fundamental, para que se estabeleçao conjunto de processos rituais, de manejos, que possibili-tem essa ressignificação.

O processo de ressignificação tem pontos de encon-tro com a socialização primária e a socialização secundá-ria, assim como com o processo de ressocialização colo-cado por Berger & Luckmann (1976). Estes autores referemque o indivíduo não nasce membro de uma sociedade; suainclusão requer um processo de interiorização desta. Essaapreensão implica um sistema dinâmico através do qualum indivíduo assume o mundo no qual os outros vivem.

Podemos dizer que, através da socialização primáriao indivíduo passa a naturalizar o mundo (aquele recorte es-pecífico que um grupo de pessoas faz nas infinitas possibi-lidades de significação). É a partir da socialização primáriaque o indivíduo adquire os códigos através dos quais podedotar o mundo de sentido, e, portanto, interpretá-lo.

O processo de socialização primária é atribuído pelosautores a outros significativos, que podem ser os pais ououtros indivíduos que desempenhem essas funções. A ne-cessidade de que estes outros significativos não sejamquaisquer uns fica evidenciada desde o momento em queé postulado que o aprendizado deve acontecer em conco-

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mitância com um alto grau de emoção, sem a qual o pro-cesso de aprendizado seria difícil, quando não de todo im-possível (Berger & Luckmann, 1976, p. 176).

Assim, essa interiorização de uma realidade dos ou-tros só se realiza quando se dá um processo identificatóriodo indivíduo com esses outros significativos, o que resultaem que a criança assuma como próprios os papéis e atitu-des destes. Essa identificação vai lhe permitir tanto situar omundo como também situar-se nele.

A identificação com o mundo dos pais não é realiza-da no sentido de se reconhecer um dos mundos possíveis;pelo contrário, ela interioriza como sendo o mundo, o úni-co mundo existente e possível. Por isso, o mundo interiori-zado na socialização primária se adere com maior insistên-cia ao sujeito do que aqueles que são interiorizados nas so-cializações subseqüentes e denominados socializações se-cundarias (Berger & Luckmann, 1976).

Continuando, os autores referem que as socializaçõessecundárias posteriores devem assemelhar-se à socializa-ção primária. Ou seja, dificilmente terá existido uma socia-lização secundária que se oponha radicalmente à sociali-zação primária. Portanto, nas terapêuticas que aqui referi-mos deve existir um processo de edição da socializaçãoprimária. Quer dizer, por ocupar esse lugar assimétrico emrelação ao paciente, o terapeuta está em condições de ficarno lugar daquele que produziu essa socialização primáriae é somente desse lugar que se podem produzir modifica-ções nela.

Contudo, deve estar já inscrito na socialização primá-ria a possibilidade dessa pessoa ocupar esse lugar assimé-

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trico. Ou seja, para uma pessoa à qual a benzedura não fazparte de seu mundo, dificilmente esta poderá ocupar emalgum momento esse lugar. Do mesmo modo, será poucoprovável que o psicanalista ocupe o lugar de sujeito do su-posto saber para alguém cujo pensamento científico e adúvida sistemática não façam parte de seu mundo (Ropa &Duarte, 1985).

É por essa razão que as terapêuticas que se propõemum processo de ressignificação devem possuir a força parapoder modificar a socialização primária. Essa força tem suaorigem na ocupação desse lugar assimétrico que remete àassimetria original em relação aos pais. Eles foram aquelesque originalmente tinham o saber, tinham a força, goza-vam da onipotência. Eram eles os possuidores da verdadei-ra e única maneira de entender o mundo antes que este seesfacelasse em inúmeros mundos possíveis.

Ocupando esse lugar de suposto poder ou de supostosaber – segundo nos refiramos a um tipo de terapêutica ououtra – é que, neste caso, a benzedeira vai poder produziruma mudança na maneira do cliente interpretar o mundo.Ou seja, ela, a partir desse lugar, consegue produzir umamodificação nesses códigos originários; noutras palavras,consegue reeditá-los.

Não se trata, nos processos terapêuticos que aqui re-ferimos, de produzir o que os autores denominam sociali-zação secundária, a qual servirá para possibilitar o ingres-so do indivíduo nos diferentes submundos institucionais,os quais seriam um dentre outros mundos possíveis. O quese produz nas terapêuticas populares é uma socializaçãosecundária muito mais intensa, na qual se procuraria uma

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modificação da socialização primária. Nestes casos, essasocialização secundária se constitui uma réplica, tão exataquanto possível, do caráter de socialização primária (Ber-ger & Luckmann, 1976). Isso requer técnicas artificiais deacentuação da realidade.

Os autores, referindo-se a um processo de ressociali-zação, como no caso da conversão religiosa, destacam anecessidade, nestes casos, de uma estrutura efetiva deplausibilidade (Berger & Luckmann, 1976). Ou seja, colo-ca-se o indivíduo numa situação em que, ao mesmotempo que se procura anular sua identidade (as vestimen-tas, o cabelo, os adereços que podem ser depositários des-sa identidade são substituídos pela uniformidade dada pe-las vestimentas-padrão, corte de cabelo igual e adereçoscomuns a todos os membros), se procura limitar o seucontato com outras realidades. O isolamento é uma desuas formas típicas.

O procedimento que aqui está em pauta pode ser ob-servado no processo de reclusão do iniciando nos terreirosde candomblé descrito por Augras. A autora refere que oiniciado é submetido a um processo de socialização secun-dária no qual todas as modalidades de relacionamento, alinguagem, os gestos, os tratamentos obedecerão a rigoro-sa ordem simbólica (1995, p. 21).

Temos, então, nesse processo de socialização secun-dária, dois procedimentos. Um que consistiria no enfra-quecimento da realidade do sujeito com vistas à aceitação,por parte deste, de uma nova realidade. E outro, que é o re-ferido anteriormente de o coordenador do processo ocuparo lugar que uma vez ocuparam os outros significativos.

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Tanto na benzedura como na psicanálise, dá-se ênfa-se a esta segunda modalidade, ainda que a primeira não es-teja totalmente descartada, desde que a assiduidade a qual-quer uma dessas terapêuticas implique ficar muito maispróximo desta nova realidade e afastar-se da anterior. Nou-tras palavras, a pessoa vai estar cada vez mais rodeada deoutras pessoas para as quais o mundo da benzedura é umarealidade. Suas conversas com os outros clientes vão girarem torno de categorias de mau-olhado e, assim, vai seaproximando desse outro universo simbólico, ressaltandoque ele nunca lhe foi indiferente, pois, em maior ou menormedida, sempre lhe foi próximo; ou seja, ele sempre foi umcampo de possibilidades. Sua escolha por um tipo de tera-pêutica ou outra já está marcando isso.

Acreditamos, portanto, que a benzedeira, assimcomo o psicanalista, deve, mais do que realizar uma so-cialização secundária – no sentido de incluir o cliente emnovos submundos institucionais – , poder editar, ou seja,reordenar a socialização primária. Para que isso aconte-ça, tanto o psicanalista como a benzedeira necessitamocupar o lugar daquele que possui a palavra autorizada;não uma versão, não uma verdade, mas aquele que estáno lugar de possuir a única verdade. Ela deve ocupar, as-sim como o psicanalista, o lugar que alguma vez ocupa-ram os pais em relação a essa criança que agora pode jáser um adulto.

Como vimos, para essa criança, os pais não possuíamuma versão sobre o mundo, eles lhe mostravam como omundo era de fato. Por intermédio dos pais a criançaaprendia uma linguagem que lhe permitia ler e interpretar

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essa realidade. Eram eles que propiciavam para ela os có-digos de acesso ao real que, a partir desse momento, sãotomados como o próprio real. Será, pois,necessário que oterapeuta ocupe, no imaginário do cliente, um lugar seme-lhante àquele ocupado pelos pais, para poder editar, revi-sar essa socialização primária, e possibilitar uma recodifi-cação na leitura que o cliente está fazendo de sua situaçãode vida.

A benzedeira, ao ser a intermediária das forças divi-nas, ao ser a escolhida para representar os deuses e exer-cer em seu nome esse trabalho, estabelece a assimetria ne-cessária, fundamental, para que a benzedura produza efei-tos simbólicos.

Esse suposto poder, ao qual nos referimos, radica napossibilidade de intermediação, através da qual se adquirea força necessária para se opor às forças maléficas, às car-gas negativas que estão prejudicando o cliente. De fato,tudo poderia ser compreendido em termos de força.

Um processo semelhante é encontrado nos trabalhosrelativos à feitiçaria (Favret-Saada, 1985). Neles se apre-senta a tarefa do feiticeiro como consistindo em atrair parasi, por meio de seus poderes, a força que está minando oenfeitiçado que não possui os meios mágicos para se de-fender. Daí a importância de a benzedeira ter força, pois setrata de estabelecer um combate contra um outro, que tam-bém possui força. Nessa luta, que se trava no corpo do pa-ciente, quem vai sair vitorioso é o mais poderoso.

Percebe-se, por um lado, a existência de um outroque está carregando o cliente com sua força negativa:“Você está muito carregado, meu filho!” (Frase marcante

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na maioria dos processos observados); por outro encon-tra-se a benzedeira que utiliza sua força para retirar essascargas negativas do paciente. Ao libertá-lo desse peso, ocliente pode fazer uso de todo seu potencial para melho-rar sua vida, que agora passa a seguir seu fluxo normal. Éinteressante assinalar que, embora existam essas cargasnegativas, não existe um feiticeiro que faça disso o seutrabalho. As cargas negativas vão ser geradas, de formaintencional ou não, por alguém perto da pessoa commau-olhado. Contudo, essa pessoa não se constitui umfeiticeiro.

No trabalho realizado por Favret-Saada (1985), aautora nos mostra que aquele a quem se atribui a origemdas forças negativas é identificado como um profissionaldas forças do mal, um feiticeiro. Essa constatação se opõeao observado por nós. Em nenhuma situação aquele inden-tificado como o gerador das cargas negativas é visto comotendo poderes mágicos diferentes das outras pessoas. Aliás,como dissemos anteriormente, o mau-olhado colocado poruma pessoa não significa uma ação intencional, como po-demos observar nos seguintes exemplos:

Dona Helena: Está muito carregada.Cliente: É, eu sabia, fazia tempo que não me benzia.É gente próxima que bota.Dona Helena. Sim, é alguém de perto.Cliente: Eu vejo, às vezes sem a pessoa querer. Atéminha neta, às vezes, quando fica brava comigo, meolha com esses olhos que parece que quer me comer.

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Num outro caso:

Em criança [que tem mau-olhado], é aquela que nãodorme direito, dorme com os olhos abertos. É o bebêsó chorando – isso aí, isso aí. Isso aí é o quebrante. É.Em geral, a criança é o que mais pega quebrante. Por-que têm uns pai... – os próprios pais põem os que-brante nas criança. Eles acham bonitinho, chegam:"ma' meu filhinho bonitinho!". Mas eles não sabemdo que tá saindo, qu'ele tá transmitindo por intermé-dio dele naquela criança. E às vez sem maldade, né?Sem maldade, mas eles... eles acham bonitinha acriança, e quando é pequena principalmente... ( SeuVitor, benzedor)

O mau-olhado, então, pode ser considerado um atoinconsciente e, portanto, não premeditado; o seu portadornão tem percepção do mal que o seu olhar pode causar so-bre outra pessoa. Taussig (1993), na sua pesquisa sobre xa-manismo na Colômbia, considerou o mau-olhado a quin-tessência da inveja – a envidia, que assume vida própria,acima e além da intencionalidade.

O cliente, desde o momento em que procura abenzedeira, já a coloca nesse lugar do sujeito do supos-to poder, pois sempre, em alguma instância, acreditaque ela possui a força com a qual possa solucionar seusproblemas. Caso contrário, se nem existisse o benefícioda dúvida, não procuraria esse tipo de tratamento. Con-tudo, esse lugar não está sempre claramente definido,em diversas situações o cliente duvida dele. Ele traz à

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benzedeira essa dúvida em relação a seu poder, uma dú-vida que ameaça retirar a benzedeira desse lugar indis-pensável para que se produzam efeitos simbólicos. Opaciente reclama ser convencido, pela própria benze-deira, de que ela ocupa esse lugar. Ele está incrédulo,mas espera que a benzedeira possa desfazer essa incre-dulidade, o que em si mesmo já constitui uma prova deseu poder.

Estabelece-se então uma pugna na qual a benzedeiratentará garantir esse lugar especial. De fato, uma das estra-tégias para ocupar tal lugar, quando existe indício da faltade fé do cliente, passa pelo convencimento deste na eficá-cia da benzedura. Isso se dá de diversas maneiras. Uma de-las é referir a grande demanda que existe em relação a seusserviços.

É muita gente que procura, às vezes fica dificil darconta do serviço da casa, de tanta gente que vemaqui. (Dona Adelina, benzedeira)

O prestígio da benzedura também aumenta na medi-da em que as pessoas que procuram seus serviços perten-çam a uma classe mais abastada ou uma posição social dedestaque, especialmente médico ou um familiar próximo(filho ou esposa).

Oia, eu não sei como é que o pessoal descobre a gen-te aqui! Fica 3, 4 carro, aí. Parece eu nem sei o quê(Dona Leonida, benzedeira)

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... quando fez 8 dia, teve são... E aqui me ofereceu...que era um doutor lá de... é lá... (Seu Kinka, benze-dor)

Outro aspecto que também valida a prática do ben-zedor é a distância que as pessoas percorrem para procu-rar seus serviços. Quanto maior ela for, maior o prestígio:

Vêm lá da ... lá do outro lado da cidade, vem gentep'a se benzer aqui. De fora! Formigueiro... (DonaLeonida)

Como já comentamos anteriormente, o relato de ca-sos de pessoas que não conseguiram resultados através damedicina oficial, ou mesmo a cura de pessoas ligadas àpratica da medicina, como filhos de médicos ou o própriomédico, assim como a cura de pessoas de prestígio social– comerciantes conhecidos na cidade, pessoas de renomena comunidade – são utilizados como prova da eficácia dotratamento oferecido pelo agente de cura popular.

Nem sempre a luta por estabelecer os lugares, que emdiversas ocasiões se apresenta no início da consulta, apre-senta a simplicidade por nós aqui colocada. Na continua-ção, relataremos situações que exemplificam nossa afir-mação.

Um rapaz de aproximadamente 25 anos entra na casade uma benzedeira de maneira muito acanhada:

Dona Leonida: Boa tarde.Cliente: Queria me benzer. Já passei muitas vezes

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aqui pela frente mas nunca tive coragem de entrar.Dona Leonida: O que é que tem? Eles vieram do centroda cidade pra benzer a criança [Referindo-se a um ca-sal que estava conversando com ela e que tinha trazidoo filho para benzer (é de assinalar que o casal pertenciaà classe média)]. Não tem que ter vergonha, não!

O cliente, diante dessa fala, fica ainda mais cons-trangido.

Dona Leonida: Não tem motivo não para ter vergo-nha. Até professor já me procurou para benzer. Aquivem todo tipo de gente, meu filho! Vem gente com es-tudo e vem gente sem nenhum estudo. Mas tu acredi-ta em benzedura?Cliente: Sim [A resposta é dada sem muita convicção,expressando a dúvida em relação ao que está fazendo].Dona Leonida: Bom, se não acreditasse tinha que di-zer que sim de qualquer jeito [A benzedeira disse istorindo e despenteando carinhosamente os cabelos docliente].

Técnicas muito sutis são empregadas para inverter aposição do cliente, levando-o a sentir que o natural, o ló-gico é acreditar, situação oposta à que ele tinha ao chegar.Por outro lado, por meio desse diálogo, Dona Leonidamostra ao cliente que ela consegue conhecer o que estáacontecendo com ele. Ela consegue obter novamente ocontrole do paciente, sem precisar entrar numa discussãodireta com o mesmo.

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Inicialmente, ela explicita aquilo que o paciente nãoconsegue dizer: sua vergonha em relação a procurar taltipo de tratamento. Posteriormente , ela volta a explicitar oproblema que acontece com ele: sua dúvida, não manifes-ta, em relação ao atendimento. Finalmente, quando ocliente responde que sim, novamente Dona Leonida de-monstra o domínio da situação, explicitando o que real-mente estava acontecendo, isto é, que a resposta que ocliente deu era a única que ele poderia dar.

Tudo isto é feito com um gesto tipicamente usadocom crianças, empregando a expressão “Meu filho!”, esta-belecendo o lugar definido ao cliente no atendimento. Es-tabelece-se a assimetria, mas não de um modo dado, es-pontâneo; ela foi conquistada através de sutis processos decomunicação.

Analisamos também aqui o relato de uma das benze-deiras entrevistadas, referindo o caso de um rapaz que pro-cura a benzedura em virtude de cobreiro:

...a senhora me benze prá cobreiro, que eu tô deses-perado; faz... não sei quantos dia que eu não durmoe ninguém dorme! Passo só gemendo e chorando...de dor! Faço as injeção e fico cada vez pior... Aí eudisse pra ele: "olha, meu filho, eu vou te benzer! Masisso tá adiantado; isso é cobreiro de cobra". "Será queé...?". "É de cobra!" (...)... eu disse pra ele: "olha, voute dizer uma coisa: eu vou te benzer, vou botar o re-médio... Tu não me bota pumada nenhuma aí, que euvou botar o remédio!". "Não... porque a senhora mebenze, pelo amor de Deus!". Eu disse: "tá adiantado

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isso aí, eu vou botar meu remédio...". Ele disse: "não!Pois eu vou fazer os seu remédio e vou parar com osremédio do doutor". Digo: "eu não vou dizer que tupare com os remédio do doutor porque, também, tutá na mão do médico...". Ele disse: "Não. Eu vou fazercomo a senhora... a senhora me benze!". (Dona Eva,benzedeira)

O início do relato nos mostra que a estratégia utiliza-da foi atribuir a gravidade da doença ao tempo que ocliente demorou em procurar a sua ajuda. Uma admoes-tação que colocaria o cliente num lugar de inferioridade.Por estar fazendo um tratamento pela medicina oficial, abenzedeira tem que deslocar o médico do lugar da autori-dade antes de iniciar o trabalho. Nisso consiste essa pri-meira intervenção da benzedeira: “Aí eu disse prá ele:‘olha, meu filho, eu vou te benzer! Mas isso tá adiantado;isso é cobreiro de cobra’”. Noutras palavras, isso poderiaser interpretado como: “Eu vou fazer a minha parte, embo-ra você não tenha feito a sua me procurando antes em vezde procurar o médico”. Diante do diagnóstico, permaneceainda uma dúvida por parte do cliente.

Cliente: Será que é...?

Ao que a benzedeira deixa claro ser ela quem domi-na a situação, colocando com voz enfática e cortante umcategórico:

- É de cobra!

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Posteriormente vai enfatizar que o cliente deve con-fiar somente nela, ao dizer:

- Tu não me bota pumada nenhuma aí, que eu voubotar o remédio!

O remédio é aquilo que ela coloca, o que o médicoreceitou pareceria ser algo distinto. Inverte-se, assim, a po-sição da medicina oficial, para a qual as prescrições feitaspelo médico são vistas como o remédio, e as prescriçõesda medicina popular são sempre outra coisa (chás, ervas,placebos, superstição etc.). O rapaz, aceitando seu papelde submissão, disse: “Não... porque a senhora me benze,pelo amor de Deus!”. Ao que a benzedeira responde comuma admoestação por ter esperado tanto tempo; noutraspalavras, por ter procurado um médico antes de se consul-tar com ela: "tá adiantado isso aí, eu vou botar meu remé-dio". O rapaz, segundo o relato, entendeu bem essa men-sagem, pois respondeu:

- "Não! Pois eu vou fazer os seu remédio e vou pararcom os remédio do doutor".

No momento em que o rapaz passa a estar submetidoà sua vontade, Dona Eva relata que retira sua ordem de nãopassar a pomada do médico, para que isso seja feito pelopróprio paciente.

- "Eu não vou dizer que tu pare com os remédio dodoutor porque, também, tu tá na mão do médico..."

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Ele já estaria sob seu domínio. Ela já ocupou o lugardo sujeito do suposto poder, da imagem ideal, não preci-sando mais lutar por esse espaço. A partir disso, ela podeser condescendente tanto com o paciente como com aimagem do médico. A benzedeira relata, aliás, como ago-ra se pode dar ao luxo de dizer que o paciente está nasmãos do médico, pois sabe que, na verdade, está nas suas.O paciente retifica essa idéia ao afirmar.

- "Não. Eu vou fazer como a senhora... a senhora mebenze!”

O relato concluiu com a completa desvalorização dotratamento médico ao contar que, após alguns dias, o ra-paz, já curado, teria perguntado o que deveria fazer comos remédios. Ao que Dona Eva teria respondido: “Ah? Levana farmácia, troca por outra... qualquer outra coisa ou... oudá pra alguém, ou bota fora”. Não podemos negar umcompleto domínio por parte da benzedeira, o que em psi-coterapia se chama de manejo do paciente.

Que esse diálogo tenha ou não acontecido, não mu-daria o fato de que a benzedeira o considera um exemplode uma técnica ideal diante de uma situação difícil comoa relatada. Além disso, o diálogo apresentado tem tambémpor objetivo constituir-se um testemunho da eficácia obti-da por ela ante o fracasso do médico, apropriando-se, des-sa maneira, da autoridade representada por este último.

É importante assinalar, contudo, que Dona Helena, abenzedeira com a qual trabalhamos de maneira mais inten-sa, poucas vezes fala aos seus pacientes de seus êxitos profis-

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sionais, nem de ter atendido filhos de médicos. A sua fala seconcentra naquilo que é trazido pela pessoa que a procura.Acreditamos que essa ausência de autopromoção está ligadaao fato de que sua força é demonstrada pela fila de pessoasque esperam para ser atendidos, assim como pela necessida-de de ter fichas para serem atendidas. Com efeito, a clientelase constitui também um elemento simbólico a mais.

Onde Atua a Benzedeira

O dom, a força que a benzedeira possui lhe permitematuar em quatro instâncias, que passamos a descrever, se-guidas de situações observadas que as exemplificam:

1) Observar e influenciar um evento futuro que porvezes escapa ao controle do cliente: Passar num concurso,conseguir um emprego, alugar uma casa, resolver um pro-cesso judicial de forma positiva, conseguir um/a namora-do/a. Em todos esses casos, se, por um lado, o cliente poderealizar atos que favoreçam alcançar êxito, por outro, essesatos não garantem sua realização plena. Todas essas situa-ções dependem, também, de outras pessoas: os concorren-tes no concurso, os interessados na casa, um sistema judi-ciário por vezes visto como incompreensível, ou outra pes-soa sobre a qual não se tem controle.

Cliente: É a transferência de minha filha. Gostaria desaber como está (uma senhora de 55 anos).Dona Helena [após a bênção]: Mas a transferência vaisair logo. Não te preocupa.

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2) Detectar se o evento, além de sua própria dificul-dade normal, está sendo perturbado pela infuência negati-va de alguém que botou o olho, que o tenha deixado amar-rado.

Dona Helena: Como vai a senhora?Cliente: Mais ou menos, faz quase um ano que a casanão se aluga.Dona Helena: Acende uma vela e a coloca na capeli-nha de Nossa Senhora Aparecida.

A bênção utilizada é incluída no final com os dizeres:“Se tua casa estiver amarrada, será desamarrada; se estiveratada, será desatada”.

Dona Helena [após jogar a última brasa no copo, diz,assinalando o feito]: Viu, é isso aí. As brasas estavamtodas no fundo do copo.Cliente: É. É brincadeira.Dona Helena: Não é brincadeira. É serio. E é de den-tro [referindo-se a alguma pessoa de dentro de seu cír-culo de relações que estaria amarrando o aluguel dacasa].

Em algumas ocasiões, a referência à existência de umentrave àquilo que o cliente deseja conseguir não é expli-citada diretamente, e sim através de sua menção na bên-ção. Por exemplo, quando uma pessoa se queixa de ir malnos negócios, Dona Helena inclui: “Se tu tiveres amarra-do pros negócios por bruxaria, olho grande, serás desa-

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marrado. Se tiveres olho grande por inveja, ciúmes, há deser desmanchado”.

3) Agir sobre uma concatenação de efeitos adversoscausados pelo mau-olhado de alguém, como podemos ob-servar na fala de uma cliente:

Cliente: As coisas iam bem e aí tudo começou a darerrado, não conseguia mais serviço, começou a brigarem casa.

Ou nas colocações da benzedeira:

Está carregada. Anda pisando nos espinhos, vai fazeras coisas, esquece, vai falar fica engasgada, vai dor-mir perde o sono. (Dona Helena)

4) Curar problemas físicos, através de seus conheci-mentos da medicina popular e de sua força , o que lhe per-mite influenciar os acontecimentos para que sigam o bomcaminho.

Diferentemente do colocado por Favret-Saada(1985), as benzedeiras atuam em duas circunstânciasdistintas daquelas apresentadas pela autora em relaçãoaos desenfeitiçadores. A semelhança entre eles é queambos agem contra as forças do mal. Contudo, as benze-deiras, como vimos anteriormente, também agem deforma adivinhatória. Nesse processo de adivinhaçãodestacam-se duas situações: aquilo que se pede está numcurso normal e, nesse caso, a atuação da benzedeiraconsistirá em favorecê-lo – “Eu vou te dar uma força” – ;

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ou, aquilo que se deseja não está prestes a acontecer,mesmo havendo a vontade do cliente para que aconteça.Nesse último caso, nunca se diz que aquilo que se dese-ja não vai acontecer, mas sim que está amarrado, ouseja, que existem forças negativas lutando para que nãoaconteça o desejado pelo cliente. Aí a atuação da benze-deira consistirá, como no caso do desenfeitiçadores, emlutar contra essas forças.

Cliente: Dona Helena gostaria de saber de um dinhei-ro que tenho para receber da pensão e que está umpouco difícil de sair.Dona Helena [Realiza a oração no copo]: É, está bemamarrado [Fazendo um gesto de entrecruzar os dedosde uma mão na outra]. Mas agora vai desamarrar.

Outro aspecto do trabalho das benzedeiras que nãoencontramos nos desenfeitiçadores é a ação física sobreproblemas orgânicos que não estariam relacionados com omau-olhado, como nos casos de bócio, furúnculo, hemor-róidas, impingem ou irritação no nível epidérmico. Nessassituações, o mau-olhado não é considerado a causa dosmales.

Se o mal não é remetido diretamente a uma causa mís-tica, os procedimentos utilizados na terapêutica sempre in-cluem rezas, mas as receitas de ervas indicadas como formade tratamento geralmente são ensinadas por um ser celestialque transmitiu o conhecimento à benzedeira. Podemos afir-mar, então, que a atuação desta sempre se reveste de aspectossagrados. Porém, o fato de serem terapêuticas vinculadas ao

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sagrado não implica que se coloque como origem da doençao mau-olhado. De fato, diferentemente dos desenfeitiçadores,cujos procedimentos, segundo Favret-Saada (1985), se restrin-gem àqueles casos originados pelas forças do mal, a atuaçãodas benzedeiras pode se estender a situações que, como nosprocedimentos já citados, não seriam originadas pelas forçasdo mal, como no caso do mau-olhado.

Olha o Olho!

Ainda que o trabalho da benzedeira possa ser dife-renciado nos quatro tipos aqui citados, o seu dia-a-diaconsiste na luta contra o mau-olhado. A maior parte dademanda de Dona Helena está ligada a essa questão.Existe algo que escapa ao controle da pessoa e sobre oqual se desejaria poder influenciar: o/a parceiro/a que seafastou, ou que nunca se aproximou, um serviço quenão se consegue, os negócios que vão mal, uma maré deazar que se abateu sobre a pessoa ou a família. A expli-cação desses fatos, a linha que costura essas diferentessituações, aquilo que explica a coincidência é o mau-olhado, que teria sua causa, sua origem no ciúme e nainveja. Assim, quando o marido abandona a mulher,quando a pessoa foi mal num negócio, quando não seconsegue concretizar algo almejado, quando as coisasestavam indo bem e começaram a piorar, é a esse uni-verso que será remetida a explicação. Na seqüência,apresentamos algumas falas de benzedeiras que eviden-ciam essa situação:

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Dona Helena: Carregada, não, minha filha? Ciúmes,inveja, tu está meio agitada, nervosa, teus filhos tam-bém são agitados. Muito olho...

Dona Terezinha: Esta oração é muito forte; combateuco'a reza p'a tirar aqueles... zolho grosso, essas coisaque fizeram... tava ansim... não miorava!

Dona Terezinha: É, esse é o olho grande e a inveja,então, é... dizem quebranto, né? E... é isso que...qu'eu faço, qu'eu benzo.

Dona Maria Nair: ...o que que a gente faz? A genteacende u'a velinha para que lhe tire todo o mal, olhogrande, inveja – o mal que tá com a pessoa – ...inve-ja, olho grande, sobre a criação, sobre a lavoura, so-bre tudo... tá... e Santo Expedito, que é das causa ur-gente, qu'ele venceu a guerra... tá... Tu vence tudo:emprego, p'a casamento, p'a pagar conta... tudo quetu quer.

Todavia, a referência ao mau-olhado pode ser feitade maneira alusiva através de suas conseqüências. A frase“Está muito carregada/o” é freqüente nos tratamentos deDona Helena. Estar carregado implica ter sido alvo doolho grande que instalou energias negativas no corpo docliente.

Se consideramos a feitiçaria um conjunto de cren-ças estruturadas sobre o origem da infelicidade ou dosinfortúnios, compartilhada por um grupo social, e queinclui práticas que possibilitam tanto detectar como tra-tar o mal (Augé, 1974), podemos dizer, então, que desde

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o momento, em que a benzedeira trabalha para detectaro mau-olhado, encontramo-nos no campo da feitiçaria eque a benzedeira se revela um agente de combate. De-vemos ressaltar que esse campo da feitiçaria tem algu-mas características especiais, ele está organizado emrazão de uma figura: o feiticeiro sempre presente nas fa-las, mas, ao mesmo tempo, sempre uma figura ausente,pois ninguém se assume como ocupando tal lugar. Comorevela Favret-Saada (1985), o feiticeiro não é uma pessoaque assim se denomina, essa não é uma posição passívelde enunciação.

Na benzedura, o feiticeiro não existe. Existe aquelecausador de mau-olhado, mas isto, como já comentamosacima, não o coloca no lugar do feiticeiro, daquele que fazdisso uma profissão, pois, o causador do mau-olhado podeter agido de forma não intencional.

A atribuição das mais diversas situações ao mau-olha-do não significa que se deixem de considerar outras situa-ções causais. Por exemplo, nunca observamos referênciasa essa causa quando a questão era uma doença grave ou amorte. Nesses casos, as causas orgânicas ganham priorida-de, e, ainda que em certos momentos se estabeleça umcontraponto com o discurso médico, como estratégia dabenzedeira de transferir a autoridade deste para elamesma, em outras situações se observa uma indicação deprocura pelo médico. Esse trabalho complementar ao tra-balho médico não se restringe aos casos citados acima, eletambém pode ser encontrado em situações de pouco risco,como no seguinte exemplo:

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Cliente [Uma moça de 20-25 anos com um nenén decolo]: A senhora benze para conjuntivite? [Fazendoreferência à criança].

Dona Eva: Você já levou no médico?

Cliente: Sim.

Dona Eva: A benza é pra tudo. Senta aqui [Mostrando obanco onde os pacientes sentam para serem benzidos].

Mesmo as próprias benzedeiras relatam situações emque, afetadas por alguma doença, como numa pneumonia,procuraram os serviços de um médico ou de uma enfermei-ra conhecida. Apesar de atribuirem, em diversas situações,a origem da doença a uma causa espiritual ou metafísica,isso não implica negar a explicação científica da doença.

Esse mesmo procedimento foi constatado por Glik(1988) em relação aos membros dos Grupos CarismáticosCristãos e dos Grupos Metafísicos "Nova Era" por ela estu-dados. A autora observou que as explicações científicasdas doenças eram integradas a um esquema mais amplo decausa e efeito, o qual incluía a referencia a um Deus, favo-recendo, assim, que os participantes desses grupos não he-sitassem em procurar os cuidados da medicina oficialquando se defrontavam com certas doenças de origem or-gânicas.

Aquilo que os nossos olhos pode configurar uma con-tradição não é encarado como tal pelo grupo pesquisado.Para essas pessoas não existe nenhuma imcompatibilidadeem ir ao médico para tratar da conjuntivite do filho e, aomesmo tempo, procurar uma benzedura que garanta que otratamento efetuado chegue a bom termo.

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Tambiah (1993) estudou sobre isso e considera umadas maiores contribuições de Malinowski suas observaçõesem relação aos Trobiandeses, onde mostra como eles en-trelaçam na vida cotidiana os fios da magia e da atividadeprática. Com efeito, em certas atividades, como a agricul-tura, a pesca ou a caça, ações técnicas e mágico-religiosasse misturam de uma tal maneira que fica difícil diferenciá-las em aspectos técnicos e aspectos expressivos.

No trabalho de Evans-Pritchard (1978) sobre osAzande fica bem exemplificada essa complementaridadeentre um conhecimento empírico e uma crença. Nessa po-pulação estudada, a bruxaria constitui parte de seu cotidia-no. Se um rapaz vai caminhando pela selva e tropeça numtoco de árvore, causando-lhe uma ferida que por sua locali-zação torna-se difícil de manter limpa e gera uma infeção,ele vai atribuir o acidente à bruxaria. Se uma pessoa, apósdesavenças com seus irmãos, se enforca numa árvore, umzande vai dizer que ela se matou porque estava embruxado.

Contudo, a explicação da bruxaria não elimina o co-nhecimento empírico de causa e efeito. De fato, o rapazque tropeçou no toco não considera que foi a bruxaria queo colocou na trilha, mas sim que ela explica o porquê delenão ter visto aquele toco em particular, já que sempre pres-tou atenção nos tocos durante o caminho. Do mesmomodo, o zande vai dizer que a causa da morte do suicidafoi enforcamento, que, por sua vez, tinha relação com abriga entre os irmãos, mas o mundo acabaria se todas aspessoas que brigassem com os irmãos se suicidassem.Assim, a bruxaria vai explicar as coincidências, sem comisso excluir o mundo dos sentidos. As duas explicações se

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complementam. O que a bruxaria viria a explicar é a ca-deia causal que permite fazer a ligação entre o sujeito e umconjunto de acontecimentos naturais, de uma maneira talque produz como resultado o mal da pessoa.

A tendência em querer separar processos que sãocontínuos e que se entrelaçam como as diferentes coresque o pintor mistura para realizar uma tela estaria muito li-gada à estrutura do pensamento de nossa sociedade, emque o racional se impõe e, portanto, se tenta mantê-lo afas-tado das impurezas, ou pelo menos manter a ilusão de queassim se faz. Isso tem como conseqüência que, entre nós,as crenças pareçam estar flutuando no ar sem que ninguémas assuma como próprias. Essa realidade pode ser observa-da em situações simples e individuais, como o uso de amu-letos; na torcida por um time de futebol ou quando, numasituação especial, o sujeito se submete a um exame e umamigo lhe diz: “fico torcendo”. Ou até situações mais es-pecíficas, como a procura de terapêuticas populares disfar-çada de interesse científico, como se pode observar na re-portagem da revista Veja (1996) entitulada “Candomblé tu-cano”. Nela se atribui a Ruth Cardoso a frase: “Não tenhonenhuma ligação mística com a umbanda e o candomblé,gosto de assistir aos cultos como pesquisadora”. Segundo amesma reportagem, a participação do professor José ArthurGiannotti é por ele atribuída a um interesse estético: “Ocandomblé não é uma religião de fé, e sim de comporta-mento, vou aos cultos porque são impressionantes”.

Tambiah (1993), retomando os trabalhos de Lévy-Bruhl, postula a existência de um pensamento místico e umpensamento lógico. Nos povos primitivos seria mais visível

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o pensamento místico, enquanto na cultura ocidental seriamais visível o pensamento lógico, mas ambos existem nasduas culturas.

Tambiah (1993) também relaciona esses dois tipos depensamento com o processo primário e o processo secun-dário da obra freudiana. Ambas formas de pensamento, se-gundo a psicanálise, existiriam em todas as pessoas, embo-ra possa predominar uma delas.

Acreditamos que a tentativa de utilização da psicanáli-se como uma ferramenta a mais para compreender essesprocessos é viável. No entanto, a comparação realizada traza seguinte dificuldade: tanto nas sociedades tribais como nassociedades complexas, os dois tipos de pensamento, o mís-tico e o lógico, são conscientes para a população, ainda queum deles seja mais visível; já o processo primário e o proces-so secundário, segundo a psicanálise, seriam duas formas defuncionamento: a primeira é característica do consciente e,a segunda, do inconsciente, ficando, portanto, seu acessobarrado à consciência do sujeito (Freud, 1973a).

Contudo, essa ruptura entre dois tipos de organizaçãodo pensamento que Tambiah (1993) assinala está muitopróxima do que, na psicanálise, é conhecido com o nomede renegação, processo psíquico caracterizado pela exis-tência de duas crenças opostas sem que isso implique a re-pressão de nenhuma delas. É a isso que Favret-Saada(1985) se refere quando diz que toda narrativa de feitiçarianos coloca o paradoxo de saber como se pode, simultanea-mente, não creer em absoluto e acreditar totalmente.

A questão de saber como é possível, no século XX, seenvolver no discurso da feitiçaria não é a única

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problemática que nos coloca a coexistência desses dois ti-pos de pensamentos. Talvez por nos angustiarmos mais éque não percebemos inicialmente que essa dupla crençatambém está presente quando estudamos uma terapêuticapopular como a benzedura.

Essa situação nos incomodou durante vários meses emnosso trabalho de campo. Dona Helena, em conversas man-tidas durante e após as benzeduras referiu-se algumas vezesà procura do auxílio de outras pessoas para a cura de algummal-estar dela própria. Foi o caso, por exemplo, quando, du-rante uns dias muito frios no inverno de 1996, ela contraiuo que denominou uma gripe forte, sobre o que comentou:

Aí passou o tempo e a coisa piorou, até achei que erapontada. Passou dois dia e veio uma vizinha que játrabalhou como enfermeira no hospital e eu falei praela. Ela aí me deu uma injeção e no outro dia já esta-va um pouco melhor.

Noutra situação, presenciamos uma discussão entreDona Helena e o marido em razão deste último não que-rer ir ao médico para se tratar de dores que vinha sentindono peito.

Já em entrevistas que havíamos realizado com outrasbenzedeiras, notamos aquilo que, a nosso ver, se constituíauma contradição entre um discurso que criticava a atuaçãomédica e a procura, em certas situações, por esse tipo deatendimento.

Inicialmente, inclinamo-nos pela saída mais fácil pararesolver o impasse. Atribuímos tal atitude a uma certa falsi-

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dade por parte das entrevistadas, as quais teriam um discur-so “para inglês ver”, no qual a medicina oficial era desvalo-rizada como forma de convencimento sobre as benesses dabenzedura, e um outro discurso, o verdadeiro, o autêntico,que revelaria crença no valor das terapêuticas oficiais.

Noutras palavras, perguntávamo-nos se as benzedeirasnão seriam impostoras que procuravam tirar partido da cre-dulidade alheia. Mas, optar por uma explicação desse tiponão solucionava o problema, pois em diversas situações asbenzedeiras também utilizavam sua terapêutica em membrosda família, como filhos, marido, cunhado, e elas próprias, emdiferentes circunstâncias, recorriam a suas receitas de ervas ea suas rezas, como se evidencia no seguinte relato:

Eu também tive problemas na bexiga, bexiga caída,não. Aí um dia voltei do médico e rasguei a receita.Saí no pátio e disse: Meu Deus, me dê um remédiodiante de meus olhos. Aí comecei a tomar um chá efiquei boa. (Dona Helena)

Lévi-Strauss (1972), bem no início do seu trabalho “Ofeiticeiro e sua magia”, falando da necessidade de existên-cia da tripla crença na magia, faz referência à técnica uti-lizada por certos xamãs, que consiste em colocar um seixoou pedrinha na boca e, depois de sugar o corpo do doente,o seixo é apresentado como o causador da doença. AquiLévi-Strauss está falando, ainda que de maneira indiretadessa dupla crença. O feiticeiro já sabe que o seixo é umtruque, mas mesmo assim ele acredita na eficácia de suamagia. O autor percebe a existência de uma problemática

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ao se colocar a pergunta: “Como se justifica este procedi-mento ante seus olhos [do xamã]?” (1972, p. 152). Maisadiante, ainda questiona: “Qual é a parte de credulidade equal a de crítica à atitude do grupo, respeito àqueles emque reconhecem poderes excepcionais?” (p.153).

Ainda que se tenha levantado a questão que nomomento nos ocupa, não foi este o eixo do estudo. No re-ferido trabalho, Lévi-Strauss procurou enfatizar essa trípli-ce crença como o alicerce para o que depois iria trabalharmais detidamente no capítulo da Eficácia Simbólica. Aindaassim, essa questão da dupla crença percorre todo o traba-lho, é especialmente tratada no terceiro exemplo sobre ofeiticeiro Quesalid, relato que Lévi-Strauss toma de umaautobiografia indígena recolhida por Franz Boas,

Ela nos mostra como Quesalid, que não acreditava nopoder dos xamãs, se aproxima deles com o desejo de des-mascará-los. Posteriormente, em função de sua freqüência,é convidado a introduzir-se no grupo como iniciante. Asimpressões de Quesalid, que o autor coloca, são “extrañamezcla de pantomima, prestidigitación y conocimentosempíricos” assim como também aprende a utilização desonhadores, uma espécie de espião cuja função era escu-tar as vidas privadas das pessoas. É neste grupo que ele,Quesalid, aprende a técnica de introduzir uma pequenapena na boca e, após as sucções feitas no paciente, mordera própria língua para apresentar a pena ensangüentadacomo causa da doença.

Será com essa técnica que Quesalid vai curar seusdoentes. Ele relata que, ao ir a uma aldeia vizinha, verificaque seus colegas xamãs não utilizam a técnica da pena.

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Eles se limitam a cuspir saliva na mão e mostrá-la aosdoentes como sendo o mal extraído de seus corpos.Quesalid aplica com sucesso sua técnica numa paciente,na qual um colega seu já tinha exercitado sem sucesso atécnica da saliva. Nesse momento, Lévi-Strauss aponta:

Foi aqui que, pela primeira vez, nosso herói vacilou.Por poucas que fossem as ilusões alimentadas até omomento em relação a sua técnica, tem encontradoagora uma ainda mais falsa, ainda mais mistificadora,ainda mais desonesta que a sua. (1972, p. 160)

O que o autor quer dizer com “vacilou”? Que pelaprimeira vez, ou talvez não seja tão primeira assim, Que-salid passa a acreditar em sua técnica. A outra é que é fal-sa. Nesse momento, fica clara a dupla crença de Quesalid.Ele pensa que sua técnica é um truque, mas, agora, acredi-ta que é verdadeira.

O que nos interessa aqui, muito mais que resgatar aracionalidade presente no pensamento mágico, é mostraressa duplicidade de pensamento na qual se situam umaafirmação tida como conhecimento e uma crença de con-teúdos diferentes. Mas como já observamos, a crença nãoé privilégio dos grupos populares, embora neles seja acei-ta de uma maneira mais explícita. Poderíamos ainda dizerque nos grupos populares ela se apresenta como um dis-curso admitido, o que em nosso meio social comumente édebatido em silêncio (Favret-Saada, 1985).

Essa convivência de duas crenças simultâneas não éalgo específico da benzedura. Nem é da benzedeira, a qual

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não deixa de acreditar em alguns processos médicos aomesmo tempo que continua acreditando na benzedura,nem da sua clientela. Diríamos mesmo que a possibilidadedessa dupla crença é um germe que vive em todas as pes-soas e que se materializa na conhecida frase: “Não acredi-to nas bruxas, mas que elas existem, existem”. No transcur-so de nosso trabalho de doutorado, por inúmeras vezes nosencontramos com essa expressão.

Assim, qualquer um pode ser pego pelo mau-olhado.Qualquer um pode ser pego pelo discurso da benzeduradesde o momento em que a possibilidade dessa duplacrença se faz presente. Mas em que se fundamenta essapossibilidade de uma pessoa, a despeito de se considerarpossuidora de um conhecimento que se manifesta contrá-rio à benzedura, ainda assim acreditar? Mannoni (1979) re-presenta essa dupla crença na frase: “Eu já sei... mas mes-mo assim”. Existe, aqui, a afirmação de um conhecimentojuntamente com uma crença que se lhe opõe sem que issoimplique sua anulação ou seu questionamento.

Favret-Saada (1985) relata o caso de uma família queassume o discurso da feitiçaria quando o pai adoece decâncer. Eles sabem o que significa essa doença, mas mes-mo assim acreditam que o pai possa se curar através do to-que do desenfeitiçador. A autora explica a existência dessacrença concomitante à existência de um conhecimentoque a negaria, como uma forma de satisfazer um desejoimpossível, ou seja, poder manter a convição de que seudoente sobreviveria (Favret-Saada, 1985).

Com efeito, qualquer um pode ser pego pela feitiça-ria uma vez que todo ser humano quer encobrir o real,controlar o imponderável, ser dono de seu destino.

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Assim, esse desejo do impossível constitui-se umatentativa das pessoas de poder negar o fato da fragilidadeda condição humana, de tentar encobrir o real por meio dapermanência de uma construção imaginária que, ao negara castração simbólica, possibilita a manutenção na crençada sua onipotência (Mannoni, 1979). Por isso, nos momen-tos em que as limitações do ser humano se fazem mais pre-sentes, como na situação de uma doença, a crença vai apa-recer também de maneira mais intensa, pois a insistênciacom a qual se apresenta o mal biológico conduz a que esteseja compreendido como uma declamação contínua, paracada um, de sua própria morte (Favret-Saada, 1985).

Porém, não é somente nessa situação, ainda que elaseja a principal, que a fragilidade humana se torna eviden-te. Ela também marca sua presença em diversos momentosdo cotidiano quando deparamos com algo da ordem doimpossível (impossível de modificar). Isso não significa quea pessoa não possa fazer determinadas coisas para atingiro objetivo procurado; contudo, ela não vai ter controle so-bre o resultado daquilo que almeja. As falas de algumasclientes nos ajudam a visualizar essa situação:

Cliente A: Moro numa chácara faz tempo. A outra vezo patrão ia ir embora mais terminou ficando. Agoravão vender e nós não temos para onde ir.Cliente B: Meus filhos não conseguem serviço. Não pas-saram no vestibular, nem num concurso. Veja, uma já éformada, num concurso que era fácil ela não passou.Cliente C: Meu marido foi embora. Ele pegou uma outra.Cliente D: Semana passada atravessou tudo o que ti-nha que atravessar.

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Vemos, então, que é justamente quando a pessoa re-conhece suas limitações para lidar com as situações davida que ela fica propensa a ser pega pelo discurso da ben-zedura. Não poderia ser diferente, pois o “mesmo assim”existe em função do “eu já sei” (Mannoni, 1979). É porquesabemos de nossa finitude, de nossas limitações, que pre-cisamos criar o “mas mesmo assim”. Desta forma, quandoesse conhecimento se reforça, é que precisamos sobrepor-lhe de maneira mais forte o “mas mesmo assim”.

É aqui que vai agir a benzedeira, sobre a realidade,sobre essa construção que tenta dar conta do mundo. Amorte de um ente querido, coloca a pessoa diante da suaimpotência, diante do real, uma vez que a morte racha arealidade que foi construída para ocultar o real, para fazerde conta que ele não existe. A crença na benzedura é, pois,uma tentativa de reconstruir essa realidade que foi rasgada,que se revela frágil, sem poder dar conta da ilusão deunidade que pretende manter.

Assim, para os que se encontram próximos dessa fen-da que a morte cria na realidade, a crença apresenta maisseu aspecto de tentativa de reconstrução; já para aquelesque estão afastados do evento traumático, a crença do ou-tro se torna inquietante ao assinalar que sua realidade nãoé tão sólida como ele gostaria que fosse. Pelo contrário,não somente se mostra extremamente frágil, como tambémnão é a única realidade existente. A crença vai mostrar queoutras realidades são possíveis e, em certas situações, atémesmo necessárias.

Vemos, então, que ambos autores, Favret-Saada(1985) e Mannoni (1979), coincidem ao considerar a pos-

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sibilidade de ser envolvido pelo discurso da feitiçaria (ben-zedura) como uma forma de se opor à fragilidade do ho-mem. Nesse sentido, todo mundo pode ser pego por essediscurso já que, de alguma forma, todos se defrontam coma sua impotência, a sua insignificância.

Pode-se tentar convencer o patrão de que não devevender a chácara; pode-se ajudar os filhos a conseguir umemprego, orientá-los quanto à melhor maneira de procu-rar; pode-se tentar ver entre os seus conhecidos se alguémsabe de alguma vaga, de algum serviço; pode-se jogartodo o charme que se tem na tentativa de reconquistar omarido. Nada disso, porém, garante o bom resultado;nada disso nos protege do infortínio que pode cruzar nos-so caminho; nada disso permite o controle sobre o impon-derável. E é justamente aí, nessa zona escura de incerte-zas, nesse mar de águas sombrias, nessa possibilidadesempre presente de que surja o imponderável que se loca-liza o lugar do mau-olhado e o trabalho específico da ben-zedeira (entre outros).

Na tentativa de encontrar-se a racionalidade do pen-samento de grupos culturais em que a presença de proces-sos mágico-religiosos fosse marcante, procurou-se igualá-los à suposta coerência existente nas sociedades comple-xas (Cf. Augé, 1974).

Porém, um olhar mais próximo deixa claro que alitambém existem fissuras, lugares onde convivem crençasdiversas. Como acabamos de observar, essas fissuras que sefazem presentes no grupo de benzedeiras e daquelas pes-soas que a elas recorrem em busca de ajuda não podem serconsideradas uma característica exclusiva desse grupo

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desde o momento em que qualquer um pode ser pego pelodiscurso do mau-olhado (Favret-Saada, 1985).

O Imponderável como o Lugar daBenzedura

A benzedura constitui-se, assim, o ponto de uniãoque permite não somente a idéia de domínio incontrolável,mas, fundamentalmente, explicar o inexplicável. Podería-mos mesmo dizer que todo o trabalho da benzedeira con-siste na recuperação de um elo perdido.

A diferença em relação à feitiçaria relatada por Fa-vret-Saada (1985) é que esta atua fundamentalmente sobrea repetição de determinados fatos: a morte das vacas, a in-fertilidade da mulher, a doença do filho; tudo isso remete-ria a uma mesma causa: a feitiçaria.

Um médico e um veterinário negariam a existênciade uma série de eventos, uma vez que cada um deles temsua explicação diferenciada. Agindo sobre cada um dos fe-nômenos, eles eliminam separadamente as distintas causasdo mal. Contudo, aos olhos dos camponeses, eles estariameliminando as causas, mas não a origem dos problemas.

Como afirma Lévy-Bruhl, essas pessoas, após sofre-rem um mal, mesmo conhecendo as causas, no sentidoque nosso grupo social dá a essa palavra, elas continuamprocurando a má influência que se abateu sobre elas. Oque lhes interessa sobretudo é a causa exterior à cadeia dosfenômenos (1963).

No caso das benzedeiras, não apenas a repetição seráindicativo de mau-olhado. Ele pode ser a causa de um úni-

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co acontecimento negativo, pois, ainda que seja uma situa-ção única na qual se apresenta o mal, mesmo ele não serepetindo, o imponderável está presente: “Por que entretantas mulheres casadas foi justamente eu que fui abando-nada?”. Como explicar que a demissão recaia sobre umdeterminado sujeito ainda que se saiba que vivemos umaépoca de grande desemprego.

Citamos aqui duas situações.

Dona Helena: E daí, como está a vida?Cliente: Está difícil. Tem um cara do lado de casa queeu desconfio que foi quem fez para que eu perdesseo serviço.

Cliente: Queria ver se venho na semana que vem, quevou no médico e dou uma escapada aqui. Ele estácom outra mulher e igual quer me controlar, não querse separar. Agora comprou um terreno perto da minhacasa e quer construir e ir morar lá com a outra.

Vemos, aqui, como o mau-olhado preenche a lacu-na tanto das coincidências indesejáveis como a dos infor-túnios.

Em certo sentido, então, a bruxaria tem afinidadescom o nosso “acaso” (Cf. Peirano, 1995, p. 128): visto aquida perspectiva popular, como um conjunto de pequenascausas independentes, mas que determinam um aconteci-mento qualquer.

É nesse acaso, nesse imponderável que se inscreve oespaço de atuação das benzedeiras. Elas vão trabalhar nes-

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se interstício onde as pequenas causas se articulam. É nes-se espaço onde vai se estabelecer a luta entre a benzedei-ra e as forças negativas que assumem o controle sobre asleis que regulam sua articulação. Uma vez que se acreditaem que as coincidências podem ser controladas, acredita-se também que esse controle pode ser tanto para o bemcomo para o mal.

Peirano (1995) aponta também diferenças entre oacaso e a bruxaria: 1) A bruxaria explica o infortúnio e oacaso algo auspicioso. 2) A explicação da bruxaria é cau-sal; no acaso, é indeterminada. 3) Existe um responsável nabruxaria; o acaso, ao contrário, seria devido a leis ignora-das que o determinaram. Contudo, para além das diferen-ças, é inegável que eles se assemelham por explicar um fe-nômeno a posteriori.

Ainda que o fenômeno negativo seja explicado a pos-teriori, o controle sobre o imponderável pode ser utilizadode forma antecipada. A forma reparatória, ou seja, intervironde o mal já se instalou e, portanto, produziu uma conse-qüência negativa (como, por exemplo, não ter conseguidoum emprego ou ser abandonada pelo marido), não é a úni-ca maneira pela qual a benzedura pode agir.

Se o mau-olhado pode ter controle sobre as coinci-dências, fazendo com que a pessoa obtenha um resultadonegativo, a bênção não somente pode livrar a pessoa des-sa carga que produz efeitos nocivos, como também outor-gar-lhe força para que o imponderável se torne possível e,assim, ela obtenha aquilo que deseja. Cabe assinalar,porém, que a detecção do mau-olhado é sempre uma de-dução a posteriori, que reenvia os efeitos estranhos ou ca-

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tastróficos ao suposto comportamento de um ser que ageem segredo (Favret-Saada, 1985, p. 243).

Nessa concepção de mundo não existiria então, oacaso, a coincidência. Tudo possui uma explicação. É cu-riosa a semelhança que isso tem com a sobredeterminaçãoem psicanálise. Nessa construção teórica também nãoexiste lugar para as coincidências, elas sempre podem serexplicadas a posteriori como produto do determinismo in-consciente.

É nesse contexto que se compreende que a série deacontecimentos acima estaria ligada por alguma coisa. Omau-olhado vem a ser a explicação dessas coincidências.O acaso, o inexplicável, e, portanto, incontrolável, deixamlugar para o mau-olhado, que, apesar de perigoso e temi-do, é passível de ser entendido e, portanto, modificado.

O trabalho da benzedeira vai se dar, principalmente,na detecção daquelas forças das quais se originam as coin-cidências. Ao detectá-las, está em condição de agir sobreelas. O que corresponderia ao que Favret-Saada (1985) de-nominou a dupla demanda por parte daquele que procuraum desenfeitiçador: demanda de interpretação, de inicio;demanda terapêutica, depois.

Neste sentido é que podemos também aproximar asbenzedeiras do trabalho desenvolvido pelas parteiras estu-dadas por Pereira (1993, p. 103). Elas lidam com desordensnas relações, seja com o mundo humano, natural ou sobre-natural, que podem (ou não) se expressar como sintomascorporais.

Vemos, então, que o trabalho da benzedeira se faznuma outra área de atuação frente ao trabalho do médico,

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estabelecendo com ele certas diferenças. Isto já foi obser-vado por Rabelo (s.d., p. 38) ao colocar que a procura dosmédicos respondia a uma demanda de alívio de sintomas,enquanto as terapêuticas populares respondiam à necessi-dade mais profunda das pessoas de explicação e cura.

Embora essa população procure explicações da doen-ça tanto no atendimento médico como no popular, a auto-ra ressalta uma diferença quanto ao como e onde são utili-zadas as explicações do médico e do curandeiro. A expli-cação do médico pareceria ser utilizada preferencialmentepara legitimar o sofrimento da pessoa doente. Transformarsua experiência de aflição em uma inquestionável realida-de frente aos outros. A autora atribui isso ao status da bio-medicina como o paradigma médico dominante na socie-dade brasileira.

Na continuação, ela aponta que a principal diferençana maneira em que os médicos e os curandeiros constroemas idéias de causas está em que, enquanto os médicos con-sideram a doença algo objetivo que pode ser analisada se-parada do paciente, os curandeiros integram o corpo e osujeito. Para estes terapeutas, a cura se constitui uma expli-cação: a construção de uma narrativa na qual a doença élocalizada numa estrutura temporal de acontecimentos,que propicia a ambos, cliente e curandeiro, lidarem comsuas experiências de uma nova maneira (Rabelo s.d.).

Essas mesmas diferenças podem ser observadas emrelação à postura diante da morte. A morte de um pacien-te vai ser atribuída à vontade de Deus pelo curandeiro, nãorepresentando necessariamente o seu fracasso, uma vezque este, desde o início, se coloca como impotente diante

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das forças que invoca; como já referimos diversas vezes,ele é um mero intermediário.

O médico, por sua vez, só vence se consegue curar opaciente; ele não se submete a uma ordem superior, ao con-trário, propõe-se dominá-la; seu fracasso nesse intento dedominação, marcado pela morte do paciente, deixa a des-coberto sua impotência. De fato, naqueles casos em que sedefronta com a morte iminente do doente, o médico nãoconsidera de sua responsabilidade conduzir o paciente nomomento de passagem; pelo contrário, sua tarefa, nessascircunstâncias, será responsabilizar-se pela tarefa de oculta-mento (Sayd, 1993). Assim, os médicos já não têm a funçãode dar um sentido nem à morte nem à doença.

Verificamos, pois, a existência de diferenças básicasentre o atendimento médico e aquele oferecido pela ben-zedeira. O segundo responde a essa demanda profunda deexplanação da situação desorganizadora, situação esta quepode ser uma doença, mas também pode ser qualquer ou-tra coisa que traga à tona o imponderável. Neste sentido, acausa última de uma doença pode ser a mesma que produza quebra do motor de um caminhão. De fato, existe entrea benzedeira e seus pacientes uma ideologia comum noterreno da magia (Seppilli, 1972), que favorece o processode comunicação entre eles.

O paciente, no processo de benzedura, torna-se um ele-mento fundamental, uma vez que é indispensável na constru-ção da explanação do infortúnio. Quem foi o causador domau-olhado? Em que momento determinado isso aconteceu?É necessário que a explicação do mau-olhado fique integra-da nessa experiência única que é a vida desse sujeito em par-

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ticular. Essa procura de sentido utilizada pelos terapeutas po-pulares produz uma reorientação da conduta dos pacientes,assim como também naqueles que deles cuidam. Há umatransformação da perspectiva de como eles percebem omundo e as relações com os outros (Rabelo, s. d.).

Nessa procura de sentido, a idéia de sobredeterminaçãoé fundamental. Não existe acaso, portanto, toda situação quegera um desequilíbrio, seja de saúde, econômico, ou amoro-so, deve – talvez poderíamos dizer exige –, para sua recupe-ração, identificar a causa. É nisso que consiste o trabalho dabenzedeira, identificar através de seu dom e com a ajuda docliente a origem do mal. Este geralmente está localizado no“olho grande” originado por alguém próximo do cliente:

Cliente: Bênção.Dona Helena: A senhora anda muito carregada, muitonervosa. Nada dá certo, tudo dá errado, quando tuacha que vai dar certo dá errado. É muito olho, mui-ta inveja. É uma pessoa que mora perto de tua casa.

Outro cliente se queixa de um série de infortúnios:

Dona Helena: Isso aí é vizinho de perto, tem ciúmese inveja.Cliente: Sim, eu sei

Ou ainda noutro caso:

Dona Helena: Uma pessoa te fez mal. É uma pessoaque não gosta de ti.

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Cliente: Como é essa pessoa?Dona Helena. É uma pessoa que está perto de ti, éuma pessoa magra que ia na tua casa.

De fato, constatamos que o ciúme e a inveja, locali-zados em alguma pessoa do círculo de relações do cliente,revelam-se uma constante na explicação da origem do de-sequilíbrio que se produziu no cliente.

A lógica do sacrifício, desenvolvida por Girard(1990), tem diversos pontos de coincidência com as cons-truções da benzedura na identificação do causador do mal.Ainda que possamos discordar desse autor no que se refe-re à concepção de que a violência seria um componentenatural das sociedades humanas, consideramos que a lógi-ca do sacrifício, como um meio apaziguador dos conflitos,pode nos ajudar a compreender a lógica do mau-olhado.

O referido autor postula a existência de um instintomimético, que geraria comportamentos de apropriação mi-mética; noutras palavras, a pessoa desejaria aquilo que ooutro deseja, o que seria gerador de conflitos e violência.Esses conflitos seriam apaziguados, então, por meio do sa-crifício do bode expiatório.

Um dos aspectos fundamentais para que a escolha dobode expiatório tenha bons resultados, quer dizer, que seconsiga canalizar a agressão contida no grupo para umagente específico, é que:

1) exista um deslocamento das desavenças grupaispara esse agente externo;

2) que esse deslocamento seja parcialmente desco-nhecido;

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3) ao mesmo tempo, não se pode esquecer por com-pleto o vínculo com o objeto inicial nem o deslizamentoproduzido.

De fato, se o deslocamento estivesse presente namente do sujeito, ele não produziria efeitos, uma vez quea agressão colocada nele seria o mesmo que se fosse colo-cada no objeto original. Por outro lado, se não existisse ne-nhum vínculo entre esse objeto e o objeto original, nãoexistiria a ponte necessária para que a agressão se deslo-casse. Desta forma, Girard (1990) coloca a condição da efi-cácia do bode expiatório: ele não pode estar muito longemas tampouco muito perto. Neste sentido é que o deposi-tário da raiva, por ter sido causador dos infortúnios, é sem-pre um vizinho.

Isso fica evidenciado no seguinte diálogo que se desen-volveu após Dona Helena realizar uma bênção no cliente:

Dona Helena: Tudo carregado, as coisas lá não estãomuito boas.Cliente: É, não estão mesmo.Dona Helena: Sempre um encrencando com o outro.Se ele está chegando você diz que já vai dar proble-mas. É uma mulher que mora por ali. Do lado esquer-do, ou algo assim. Ela sempre está de olho em vocês.Porque tudo ia certo, vocês eram uma família maravi-lhosa, mas de golpe tudo desabou. Já não se acerta-vam mais.Cliente: É assim mesmo.Dona Helena: Tu não sabe quem ela é?Cliente: Deve ser a que mora do lado. Ela é crente.

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Dona Helena: E tu acredita em crente? [Passa a falarmal dos crentes, os quais seriam falsos, interesseiros].Cliente [Endossando as críticas feitas por Dona Hele-na]: A minha casa fica quase dentro da casa dela. Elaescuta tudo o que nós falamos.Dona Helena: É, minha filha. Essa mulher está fazen-do mal pra vocês.

A agressividade que seria irradiada para um membroda família – relembrar que a grande maioria da procura épor situações amorosas – é agora deslocada para o vizinhocausador dos infortúnios.

Assim, após a escolha desse bode expiatório, estabe-lece-se uma luta simbólica contra suas forças através dabenzedeira. Ao combater as forças do mau-olhado, são asdesavenças, as rivalidades entre os mais próximos que seprocuram eliminar.

De fato, se a violência está baseada no instinto mimé-tico acima referido, então fica clara a questão de que, nabenzedura, se trabalhe sempre com a inveja e o ciúmecomo os causadores do olho grande.

Numa outra perspectiva de análise, Lévy-Bruhl tam-bém assinala essa vinculação do mau-olhado com os sen-timentos de ciúme e inveja, ao considerar que o olho é so-mente um veículo, um instrumento utilizado para irradiar aenergia negativa que provém de má disposição do homemque tem o mau-olhado, da inveja que ele tem do possuidordaquilo que ele cobiça (1963, p. 184).

Essa construção do desejo, como o desejo do outro,permite entender a recomendação que, de uma forma obs-

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tinada, está presente no discurso da benzedeira: “A gentenão pode contar nada para ninguém”.

Essa frase representa a melhor estratégia de prevenção doolho grande. Quanto mais se fala, mais se é pego, pois, comovimos, o motor principal do olho grande são o ciúme e a inve-ja. Esses são os combustíveis com os quais ele se alimenta. Porisso, essa frase é constantemente repetida pela benzedeira aseus pacientes que caíram nas redes do mau-olhado.

Vejamos aqui alguns exemplos:

Dona Helena: Ela tem olho grande, você não contanada. Continua te dando, mas não fale de tua vida.Dona Helena: As coisas não estão dando certo. Iaindo bem e começou pra dar pra trás. Pra trás. É olho,meu filho. A gente não pode contar pra ninguém. Nãoexiste amigo. A gente agora não pode contar nada praninguém.Dona Helena: Tu tem um problema. Quando tu temalgo bom, não pode contar pra os outros. Elas não sãotuas amigas. Elas não gostam de ti. A tua vida é tua,não tem que contar pra os outros. Porque por trás fi-cam de tititi.

Esse comportamento, que aparentemente se apresen-ta sem nexo, ganha maior coerência ao considerar que aprática da benzedura, assim como a feitiçaria, se apresen-ta como um sistema mais ou menos decalcado do sistemasocial (Cf. Augé, 1974).

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O ciúme e a inveja tornam-se componentes cotidia-nos numa sociedade extremamente competitiva, onde so-mente os socialmente fortes podem correr o risco de reivin-dicar poder ou exibir riquezas (Cf. ibidem).

Por esse motivo, num grupo popular, o temor de de-monstrar prosperidade ou bem-estar, constitui-se uma fon-te de perigo; ao despertar a inveja e o ciúme, a pessoa setorna alvo fácil do mau-olhado. Realmente, viver num sis-tema no qual crescer economicamente está ligado à explo-ração do próximo, proclamar um certo bem-estar torna apessoa, imediatamente, alvo da inveja (Cf. Taussig, 1993).

Essa inveja pode recair tanto sobre o sujeito quanto so-bre sua família ou suas posses, pois o mau-olhado atinge osujeito como composto de tudo aquilo que de alguma formaleva seu nome: a mulher de fulano, o filho de fulano, o traba-lho de fulano, a casa de fulano etc (Cf. Favret-Saada, 1985).Isto fundamenta uma das práticas usadas para retirar o olhomau, uma vez identificada a pessoa causadora do olhogrande, escrever seu nome num papel e, em seguida, escre-ver sobre esse nome o nome da pessoa afetada.

A representação do sujeito se dá através de diversasimagens: o lugar que ele ocupa em relação aos outros, asvariadas imagens nas quais ele se espelha no transcurso desua vida, suas posses, sua profissão, seu jeito de ser, sua fa-mília etc. Todas essas representações aparecem, sob o efei-to ilusório de uma unidade, no nome com que se designao sujeito (Bleichmar, 1985). O eu do sujeito, ou seja, a ma-neira pela qual ele se representa, é uma imagem de totali-dade. Por isso, ao atacar qualquer uma dessas representa-ções parciais, está-se atacando a própria pessoa. E é por

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isso também que o nome da pessoa adquire, nos processosde benzedura e feitiçaria, um lugar de destaque; é ele queunifica as diferentes representações; é através do nome quea pessoa é referida e, portanto, pode se situar diante dosoutros. O sujeito é o seu nome.

As Narrativas

Com base nessa compreensão, a benzedeira vai terpor função a recuperação de uma ordem, a reconstruçãode um sentido através do qual o cliente adquira condiçõesde pensar. Assim, o paciente, em interação com o terapeu-ta, adquire uma linguagem e, com ela, a possibilidade derepresentar aquilo que lhe está acontecendo.

É a essa linguagem que Laplantine (1994) está se refe-rindo quando, em relação à umbanda, comenta que aque-le que procura um médium umbandista padece de uma fal-ta expressa no sintoma. A terapêutica da umbanda consis-tiria, portanto, em proporcionar ao doente aquelas signifi-cações das quais ele carece, produzindo, desta forma, umareorganização psicológica e social do indivíduo.

O que está implícito nesse aspecto da busca de sen-tido que continuamente ressaltamos em nosso trabalho éa necessidade humana de uma ordenação, a qual vai seroutorgada pela linguagem. Aquilo que escapa à lingua-gem, aquilo que se torna ininterpretável, não somente setorna impensável, como ameaça todo o pensamento jáexistente.

Ingenuamente, podemos pensar que a linguagem é omeio do qual nos utilizamos para expressar nossas idéias.

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Mas não, a linguagem é o berço onde nascem as diferen-tes idéias e, qualquer que ela seja, vai estar sempre ligada,amarrada a essa sua origem. Não falamos para expressar nos-sos pensamentos; ao contrário, pensamos porque podemosfalar. Sem a fala, o pensamento seria uma espécie de caos(Coelho, 1967).

A linguagem não é, pois, um simples instrumento dopensamento, como tampouco é algo natural. De início, alinguagem nos dá uma determinada realidade. Utilizandoa metáfora de Rocha (1985), seria semelhante a quando jo-gamos uma rede sobre o mar e esta produz sobre a águaum desenho determinado. A linguagem, ao ser jogada so-bre o real, também produz um desenho sobre ele; noutraspalavras, faz com que certas coisas se tornem significativase outras não.

É disso que se trata na benzedura, da construção deum código, da construção de uma linguagem. Assim,quando a benzedeira está realizando uma bênção, jogan-do uma brasa acessa na água, passando uma pomadanuma ferida que não cicatriza, ou receitando um chá, oque está em questão, o que está aqui se construindo é umalinguagem, e com isso um sentido.

A verdadeira questão não é saber se o contato de umbico de picanço cura as dores de dente mas se é pos-sível, de um determinado ponto de vista, fazer “iremjuntos” o bico do picanço e o dente do homem (con-gruência cuja fórmula terapêutica constitui apenasuma aplicação hipotética entre outras), e, através des-ses agrupamentos de coisas e de seres, introduzir um

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princípio de ordem no universo. Qualquer que seja aclassificação, esta possui uma virtude própria em re-lação à ausência de classificação. (Lévi-Strauss, 1989,p. 24)

Tanto a pomada ou o chá quanto a detecção do mau-olhado, causado pela inveja e o ciúme, constituem-se or-denadores de um mundo caótico. Como vimos anterior-mente, essa característica de ordenação não é exclusiva dopensamento primitivo; pelo contrário, ela é a base de todalinguagem e, portanto, de todo pensamento

Ainda que, na medicina, esses processos de significa-ção tendam a ser negados na medida em que se consideraque os medicamentos produzem seus efeitos de forma me-ramente objetiva, não podemos ignorar que esses mesmosmedicamentos também são carregados de significação. Seusignificado não se restringe a suas propriedades químicase, assim, ele também exerce uma ação simbólica sobre opaciente. Noutras palavras devemos considerar que o me-dicamento não possui uma significação intrinseca, natural,como se ele estivesse fora do sistema social; pelo contrário,ele deve ser visto como um objeto de um processo socialde produção de significado, possuindo, assim, significadosoutros que aqueles espontâneos (Lefèvre, 1991).

Não devemos acreditar, porém, que essa produção desentido é uma construção de mão única, que vai do tera-peuta popular ao cliente. Trata-se sempre de uma constru-ção conjunta. Se, por um lado, o terapeuta é um experien-te conhecedor das tradições e do universo mitológico, poroutro, o paciente também dispõe de conhecimentos a res-

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peito; aliás, é esse conhecimento que o faz procurar essetipo de ajuda e não outro. Mais fundamentalmente, é umaconstrução conjunta porque essa mitologia deve ser articu-lada com a vida deste sujeito em particular. É com os ele-mentos de sua história, juntamente com os elementos daprática da benzedura, que se (re)construirá a linguagempela qual vai se poder ler o que até o momento esteve forados códigos disponíveis do cliente.

Essa constatação coincide com as observações feitaspor Favret-Saada (1985) sobre o processo de identificaçãodo feiticeiro. Em seu trabalho, a autora mostra como o re-ferido processo é feito de forma conjunta entre o enfeitiça-do e o desenfeitiçador.

Gostaríamos de apresentar, a título de exemplos, al-gumas situações nas quais se podem perceber tais constru-ções de narrativas entre o cliente e o benzedor, pelas quaiso paciente consegue ordenar suas experiências num con-junto compreensível.

Numa primeira situação, encontramos uma moçacom aproximadamente trinta anos que procurou a bênçãona companhia de sua mãe, de cuja benzedura transcreve-mos um trecho.

Inicialmente Dona Helena benze a moça e, posterior-mente, pergunta:

Dona Helena: Como está indo?Cliente: Meu marido não consegue serviço. Ele foi aum monte de lugares e ninguém o chama. Esses diasfoi na Fiat. O pessoal falava que estavam contratandogente. Se inscreveu e nada.

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Dona Helena: Faz poucos dias um vizinho aqui pertofoi chamado da Fiat. O problema é que alguém tequer mal. Está desejando o mal pra vocês.Cliente: Será que é isso Dona Helena? [A cliente pa-rece estar um pouco incerta quanto à explicação].

Dona Helena benze novamente e diz:

É, você está muito carregada, minha filha!Cliente: Mas quem pode ser que queira nos fazer mal?Dona Helena: Foi alguém que foi atrás dele num diade chuva e pegou o rastro e virou. É por isso que nãoconsegue emprego. [Anteriormente, logo após o in-gresso, a cliente falara que morava numa casa comum pátio grande junto com outros vizinhos].Cliente: É, algo deve ter acontecido. Mas não tem nin-guém que não goste da gente. A gente se dá bem comtodos.Dona Helena: É, minha filha, pela frente é uma coisa,por trás é diferente. Tem uma pessoa que mora pertode vocês numa casa grande.Cliente: Tem um vizinho que mora na frente. Numacasa branca.Dona Helena: É, não disse? Numa casa grande, bran-ca. Eu nunca estive lá mais sei como é.

A partir disso a moça e a mãe conversam entre elassobre essa pessoa. Agora fica clara sua intervenção no de-semprego do marido. São comentadas, entre a mãe e afilha, todas as atitudes dessa pessoa em relação a eles. De

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como era uma pessoa que em diversas ocasiões pergunta-va sobre o desemprego do marido, sobre a situação econô-mica da família, uma vez que esta se encontrava com pro-blemas financeiros, sobre os filhos etc.

O interesse, que na época era visto como uma mani-festação da preocupação com o que acontecia com a famí-lia, transformou-se em curiosidade com a intenção (cons-ciente ou não) de prejudicar. Ele estava botando o olho.Assim, aquilo que não se podia entender fica claro agora.Sabendo a causa, fica também mais fácil modificar; a bên-ção vai ser a ferramenta. Acreditamos ser interessante des-tacar que a cliente vai ficando mais tensa, na medida emque a conversa se desenvolve. Seu rosto fica mais pálido ea pele de seus braços se arrepia, apesar do calor que fazia.

Uma outra situação:

Cliente: Rodei de novo.Dona Helena: Rodou de novo guria, O que é isso?...Então tu não veio aqui da última vez?Cliente: Vim [baixinho].Dona Helena: Não há de ser nada.Após a bênção o diálogo continua:Dona Helena. Eu vou te dizer por que tu roda. Porquetu é negativa.Cliente: Será?Dona Helena. É sim, quando tu perder a negatividadevai passar na primeira.

É dada nova bênção, na qual é incluída a expressão:“tirar negatividade”.

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Dona Helena: Olha aí, guria. Quando está te benzen-do tu fica no ar. Tu não pensa nas coisas boas.Cliente: A senhora viu?Dona Helena: É, eu estou enxergando tu quando eu tebenzo. Tu, quando eu benzo, tem que pensar nas coi-sas boas.

Nova bênção.

Dona Helena: Hoje é a primeira pessoa tão carregada.Cliente: Serviço eu não sei se vou conseguir logo?Dona Helena: Serviço, está sem serviço?

Dona Helena benze incluindo “serviço” quando diz:“Se está amarrada pro serviço, pra o teu curso”.

Dona Helena: Pois é, tem que tirar isso de tua cabeçaque vai melhorar.

No início dessa bênção, ao dizer que rodou de novo,a cliente está, de alguma forma, fazendo referência à inefi-cácia da benzedura anterior ao exame. Diante disso, DonaHelena se surpreende e procura desviar a causa para o fatode a pessoa não ter cumprido com seus deveres ao faltar àúltima bênção. Com a resposta negativa da cliente, DonaHelena fecha o diálogo com o “Não há de ser nada”. Apósa bênção o diálogo é retomado, porém, num outro rumo,no qual a causa de ter rodado é atribuída especificamenteà cliente: “Eu vou te dizer por que tu roda. Porque tu é ne-gativa”. A cliente coloca em dúvida essa afirmação, tentan-

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do manter a culpa na benzedura que fracassou: “Será?”. Aoque a benzedeira reafirma sua colocação: “É sim, quandotu perder a negatividade vai passar na primeira”.

A partir dessa colocação, é contra a negatividade quese vai lutar. Uma negatividade que, ainda sendo da clien-te, não é por ela controlada e precisa da ajuda da bênçãopara se libertar. Após a bênção, Dona Helena lhe assinalao comportamento, que faz que a bênção não tenha resul-tados positivos. Assim, é dito que para a bênção ter efeito,é necessária a colaboração do paciente, que é parte desseprocesso; sua atitude deve mudar para que a benzedurapossa ajudá-lo.

Dona Helena: Olha aí, guria. Quando está te benzen-do tu fica no ar. Tu não pensa nas coisas boas.Cliente: A senhora viu? [A cliente passa a aceitar essecomportamento que ela reconhece nela mesma comoo causador do fracasso no exame e como dificultadorpara a eficácia da benzedura].Dona Helena. É, eu estou enxergando tu quando eu tebenzo. Tu, quando eu benzo, tem que pensar nas coi-sas boas.

Nova bênção.

Dona Helena: Hoje é a primeira pessoa tão carregada.

Após a pessoa reconhecer sua parte no fracasso dabenzedura, Dona Helena novamente coloca essa negativi-dade como algo externo ao cliente. “Hoje é a primeira pes-

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soa tão carregada”. Isso não implica que a benzedeira im-ponha sua visão ao paciente, uma vez que, pelo fato de elavir, já está estabelecido que ela acredita poder beneficiar-seda bênção. O pedido aqui é que Dona Helena lhe propor-cione uma explicação do seu fracasso a fim de que, ao mes-mo tempo, lhe faça sentido e lhe possibilite vislumbrar al-guma saída para sua situação. Assim, ela, de alguma forma,está esperando uma explicação de Dona Helena, emboranão saiba qual. É essa justamente a função da benzedeira,poder, junto com o paciente, construir esse discurso.

Numa outra situação, apresentamos o diálogo deDona Helena com uma moça de aproximadamente trintaanos.

Dona Helena: É a primeira vez?Cliente: É.Dona Helena: Benzer contra tudo.Cliente: Principalmente saúde.Dona Helena: É casada?Cliente: Vivo junto faz dois anos.Dona Helena: É casada então, agora não tem maisisso de papel.

É realizada a bênção.

Dona Helena: Muito nervosa, agitada. Até um tempoandava bem, mas ultimamente está dando tudo errado.Vocês estavam bem, você estava bem com ele [o mari-do], e agora estão se bicando. É que tu fala de tua vidapara outras pessoas. Tu não tem que falar de tua vida

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pra os outros. Aí as pessoas ficam de olho; tua vida es-tava bem, não é minha filha?Cliente: SimDona Helena: Uma pessoa te fez mal. É uma pessoaque não gosta de ti.Cliente: Como é essa pessoa?Dona Helena: É uma pessoa que está perto de ti, éuma pessoa magra que ia na tua casa.Cliente: Eu ia na casa dela?Dona Helena: É.Cliente: A única pessoa amiga que eu tenho é essaque veio antes de mim. Fui eu que trouxe ela aqui.Dona Helena: Ela tem olho grande, você não contanada. Continua te dando, mais não fale de tua vida.Ela não consegue as coisas porque tem muito olhogrande, muita inveja.Cliente: Às vezes assim, me dói a cabeça, as pernas.Dona Helena [benze tocando as pernas]: Tem olho noteu trabalho.Cliente: Trabalho no Caridade [É um hospital filantró-pico localizado no centro da cidade].Dona Helena: Tu te dá bem no teu trabalho, é por issoque as pessoas têm olho em você.Cliente: São mulheres?Dona Helena: Sim.Cliente: Eu sinto que tem algo ruim. Porque eu faloalemão, e os médicos sempre me chamam quandotem alguma pessoa que não fala português.Dona Helena: É minha filha, aí as outras ficam cominveja porque os médicos preferem você e começa o

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olho. Essa tua amiga não consegue nada por causa doolho. Ela vê que tu te dá bem, que tu tem serviço efica com inveja.

Nesse caso podemos observar que, juntamente com aidentificação daquele que seria o causador do olho grande,existe também uma identificação de um aspecto na vida dacliente que seria o motivo da inveja e, portanto, do mau-olhado. Dona Helena coloca a causa do mal-estar na pre-ferência dos médicos pela cliente, que seria alguém de des-taque. As pessoas que no seu meio são valorizadas (os mé-dicos) preferem-na, e daí ela se torna alvo da inveja por teruma capacidade que as outras pessoas não têm e que de-sejariam ter. Desta forma, ela, que se sentia mal, que nãovalorizava sua vida, passa a atribuir esse seu mal-estar jus-tamente ao fato de ter coisas que os outros admiram, de servalorizada por aquilo que faz.

Nessa configuração toma espaço aquilo que se pode-ria chamar de lado positivo do olho grande: a vítima sofrede mau-olhado justamente por estar num lugar de privilé-gio, por ser alvo da admiração e valorização dos outros, teralgo que as outras pessoas não têm e desejariam ter. Destaforma, a pessoa portadora de mau-olhado se desloca do lu-gar daquele que é digno de pena para o de quem é admi-rado passando a ser motivo de inveja. Agora, por meio dabenzedura, ela poderá retirar o aspecto negativo do olhogrande, que é o que não lhe permite desfrutar tudo o quede bom possui. Noutras palavras, diríamos que esse pro-cesso permite ao cliente recompor seu narcisismo ao verespelhada no outro sua imagem de perfeição.

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Outra situação estudada é a de uma senhora de apro-ximadamente quarenta anos que tem uma filha de dez. Acliente fala da morte do marido, ocorrida há onze dias. Elemorreu pescando: seu corpo caiu na água e somentedepois de vinte-e-quatro horas é que foi encontrado. Acausa da morte não foi afogamento, mas infarto.

Na ocasião, percebemos que Dona Helena sabe escu-tar; ela inicialmente deixa a pessoa falar, não se angustiatentando dar uma resposta antecipada. A cliente está des-consolada. Chora continuamente. De início, Dona Helenadá-lhe o consolo clássico: “Deus quis assim, minha filha”.Depois disso, benze as roupas dos filhos, que a cliente dizestarem revoltados, e se dá o seguinte diálogo:

Cliente: Eu me represento que ele está sempre em vol-ta de mim. Eu sinto o cheiro dele. Porque ele já esta-va com cheiro, ficou 24 horas embaixo da água. Agente se dava tão bem. Era um homem tão bom, nãobebia, ficava sempre em casa. Nos domingos ficavatodo o dia em casa assistindo TV. Por que sinto issoDona Helena?Dona Helena: É ele minha filha. Ele morreu naque-la ânsia, morreu sozinho. Tem que acender umavela azul, vai até uma árvore grande, deixa a velano pé da árvore e pede para ele ficar. Mas tem queparar de chorar senão ele fica em roda tentando teconsolar, não pode ir embora. As lágrimas pesamnas asas dos anjos e eles não podem voar. Ele ficaassim, com as asinhas molhadas e não pode voarpra o céu. Tem que ter força. Eu também perdi meu

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primeiro marido com os filhos pequenos e com o fi-lho doente. Tinha minha mãe com oitenta anos, mascontinuei lutando.

Dona Helena se encontra diante de uma cliente quenão consegue se afastar da imagem do marido. A forte liga-ção com ele a impede de elaborar sua morte e, portanto,diminuir seu sofrimento, que é sentido como um abando-no do morto. Dona Helena, com sua afirmação de que éjustamente seu choro o que prejudica o marido morto, co-loca a cliente numa situação paradoxal, pois ela, com seuamor por ele, o prende na terra, impossibilitando-o de po-der estar numa situação melhor.

A partir desse encontro as lágrimas não mais serãoprova de amor, elas passam a ser a prova de que a clientese interessa mais por sua dor que pelo bem-estar do mari-do. A única maneira de ajudar seu marido é ela se ajudar eestar bem, com o que ele poderia se livrar das correntesque as lágrimas lhe impõem. Aqui vemos claramente comose produziu um efeito de ressignificação. Na continuação,Dona Helena se oferece como imagem de identificação naqual se pode ver a possibilidade de uma outra forma de en-frentar o problema.

Após a realização da bênção:

Dona Helena: Pronto minha jóia, fica tranqüila quevai dar certo.Cliente: Acendendo a vela, ele vai pra um lugar bom?Dona Helena: Sim, mas tu tem que parar de chorar,senão ele fica em volta de ti. Pode vir, sem ser sema-

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na que vem, na outra, que semana que vem eu ben-zo só de míngua. Não precisa trazer tua filha.

Novamente Dona Helena reafirma que tudo o quefizer somente ajudará se a atitude da cliente mudar. DonaHelena consegue também perceber, muito acertadamente,a necessidade de que a filha seja protegida do procedimen-to terapêutico da mãe.

Um aspecto que se deve ressaltar é a modificaçãoparcial da bênção em razão da situação particular do pa-ciente. Como já assinalamos, numa primeira aproximação,tem-se a idéia de existir uma bênção fixa, que seria recita-da, sem modificações, ante todos os clientes; no entanto,na prática, observamos que o texto sofre modificações,como constatado nos relatos anteriores.

Os Símbolos

Moscovici (1978), em seu trabalho sobre as represen-tações sociais da psicanálise, atribui o êxito dessa terapêu-tica aos processos de fala, pois a palavra não teria somen-te a função de conhecer ou explicitar um diagnóstico, elaé a própria ação – mas de onde lhe vem essa eficácia?(Moscovici, 1978, p. 156).

Indiscutivelmente, como já vimos anteriormente, essesprocessos de fala são fundamentais para possibilitar a ressig-nificação da problemática do paciente; contudo, devemostambém ter presente que essa construção das narrativas sedá no seio de um rito no qual se fazem presentes símbolosfortes, que dão substância a essas construções.

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De fato, essa fala não se dá isolada de um contexto ri-tual que, como já vimos, é composto de diversos elemen-tos. É a integração desses elementos que possibilitará suacompreensão (Cf. Leach, 1978). Assim, é a totalidade doprocesso que se constitui numa linguagem, e não mera-mente a fala da benzedeira.

Uma similar concepção de linguagem pode ser en-contrada em Barthes (1980), que afirma que a linguagem seconstitui em qualquer unidade ou síntese significativa, tan-to seja ela visual ou verbal.

Desta forma, diversos elementos se constituem signopleno de sentido ao serem tomados para significar algumacoisa. Barthes (1980) nos dá exemplo das rosas para signi-ficar a paixão. As rosas são o significante, a paixão o signi-ficado. As rosas existiam anteriormente, porém, ao juntar-se com paixão, formam um terceiro objeto: o signo. Aindaassim, não podemos confundir as rosas como significantecom as rosas como signo. O signo é pleno, o significante évazio. Por exemplo, uma pedra preta pode significar diver-sas coisas, mas, se a carregarmos de um significado defini-tivo em razão de uma convenção social, ela se transformanum signo.

Assim, diversos elementos se articulam para produzirum sentido no processo de benzedura, e da mesma formaque um significante somente se define na sua relação comum outro significante, também aqui cada elemento nãoproduz sentido por si, mas sim quando articulado dentrodo contexto ritual.

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A benzedeira

Como já vimos anteriormente, a própria benzedeirapode ser vista como um desses elementos simbólicos. Nes-te sentido, a forma pela qual se iniciaram na profissão pas-sa a ser um elemento significante no ritual. A aprendiza-gem é muitas vezes referida a uma experiência mística que,de alguma forma, lhes permitiu ter acesso ao domínio dosagrado, superando assim o mal que as afligia. Essa expe-riência não somente favorece um sentido como tambémconfirma a eficácia de um processo. Como nos afirmouDona Adelina, uma benzedeira: “Se foi bom pra mim, temque ser bom para os outros”.

O fato de muitas benzedeiras terem se iniciado emvirtude de uma doença que foi superada, funciona como aprova viva de que existe a possibilidade de cura e que ela,a benzedeira, pode realizar a repetição de sua cura mila-grosa. Sua vitória sobre a doença confirma a possibilidadede uma nova cura. Assim, ela se torna um símbolo deesperança ou inspiração (Cf. Glik, 1988).

Mas não é somente nesse sentido que a benzedeira secoloca como exemplo. A referência à obrigação de benzere o fato de que poderiam ter ganho muito dinheiro mas op-taram por não aceitá-lo colocam-nas ante aqueles que asprocuram como possuidoras de um bem superior aos bensmateriais, os quais desprezam por considerarem-nos semimportância, sem valor. Elas possuem um outro valor maiorque faz as pessoas relativizarem a importância da falta demobilidade social vertical.

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Continuando nessa linha de pensamento, Glik (1988)realiza uma comparação importante com a qual nos mos-tra que o curador como símbolo não se limita às terapêuti-cas populares. A figura do médico – homem branco, mun-dano, relativamente rico – também exerceria uma funçãosimbólica ao colocar este como detentor das muitas coisasque os membros do grupo de ajuda não têm.

A autora nos chama a atenção, pois, para esses pro-cessos de cura oficiais, nos quais também estão presentesos processos simbólicos comportamentais que, na maioriadas vezes, são tomados como naturais. Será que na medi-cina também se pode aplicar aquilo que Lévi-Strauss falaem relação a um xamã?

Quesalid não se converteu num grande feiticeiro por-que curava a seus doentes; pelo contrário, ele curavaa seus doentes porque se tinha convertido numgrande feiticeiro. (1972, p. 163)

Será que a necessidade de êxito financeiro dentro dogrupo médico não está ligada a obter um êxito profissional?Um bom consultório, um carro importado, o ser bem-suce-dido economicamente não funcionariam, em nossa socie-dade, como garantia do êxito profissional e, portanto, dacompetência do médico?

Em contrapartida, a qualidade de bondade e sacrifícioque a clientela atribui a Dona Helena e que faz com quetudo nela irradie sua qualidade de benfeitora tem, também,uma função simbólica. A bondade funciona como um pó-lo do sagrado que, por si só, mantém afastado o seu pólo

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oposto: a maldade. Podemos relembrar aqui a separaçãofeita por Durkheim entre um sagrado fasto, e outro nefastovendo neles duas forças que se repelem e se contradizem,onde qualquer contato entre eles é considerado a pior dasprofanações (1989, p. 485).

Assim, essa aura de bondade se transforma, em DonaHelena, num dos seus elementos terapêuticos, pois é tam-bém sua bondade que afasta as forças do mal.

O ambiente

Além da própria benzedeira, inúmeros são os elemen-tos simbólicos presentes no ritual. Já no início dos traba-lhos, às sete horas, como comentamos, o marido de DonaHelena entrega em torno de vinte e cinco fichas de madei-ra pintadas em cor cinza e com o número em preto. Cadapessoa ao entrar coloca a ficha numa caixinha. Essas fi-chas, repetimos, são de uma confecção de boa qualidade,semelhantes às distribuídas aos pacientes em alguns ambu-latórios da cidade. Esse procedimento favorece que DonaHelena seja colocada, pelos pacientes, no lugar do sujeitodo suposto poder.

Desde o procedimento em que alguém, que nãoaquele que vai efetuar a cura, distribua um número limita-do de fichas pela manhã, passando pelo pátio onde osclientes ficam sentados em bancos de madeira esperandoseu turno, até a própria aparência das fichas, tudo isso nosremete a uma equiparação da benzedeira com a figura domédico, apropriando-se, dessa forma, do prestígio e daautoridade social de que ele goza.

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Esses processos preliminares possibilitam, por simesmo, definir os lugares que ocupam o cliente e a benze-deira. Ainda que o cliente pertença a um grupo social maiselevado que a benzedeira, esses processos o colocamnuma posição de dependência em relação àquela. Fica, as-sim, estabelecida uma dissimetria imaginária, que, como jáfoi referido, é fundamental para a eficácia do atendimento.

A porta de ingresso na cozinha se constitui aqui um ele-mento ritual a mais. Ela possui uma significação importanteno processo. Já foi assinalado por Gennep (1978) como aporta constitui, em certos casos, o limite entre o exterior, o es-trangeiro e o mundo doméstico, servindo também para esta-belecer uma fronteira imaginária entre o sacro e o secular.

No caso observado, a porta externa da cozinha seconstitui o umbral que separa o lugar sagrado do mundo ex-terior e profano. Essa porta geralmente fica aberta, não sendopermitida a permanência de pessoas diante dela, pois é porela que saem as cargas negativas liberadas pelos clientes.Daí a razão tanto da necessidade da porta permanecer sem-pre aberta, impedindo que as cargas negativas fiquem den-tro da casa da benzedeira, como também da localização dacadeira em que o cliente se senta, a qual fica ao lado da por-ta, facilitando, assim, a saída das forças negativas.

De frente para a porta, atravessando o estreito corre-dor (Figura 11)1, encontra-se a pequena capela. Poderíamosrepresentá-la como um escudo que possibilitaria desfazerem parte essas cargas provindas da porta; mas, devemosconsiderar que, por sua localização, ela geralmente não é

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1. Ver página 70.

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vista por quem entra para receber a bênção, entretanto é aprimeira imagem que a pessoa observa ao atravessar a por-ta após a benzedura.

O elemento esquerdo

O elemento esquerdo pode ser visto como um outrosignificante do processo. Ele aparece em diversas situações,sempre representando forças negativas. É no lado esquerdoque geralmente mora o vizinho causador do mau-olhado.

É muito olho em cima de ti. Lá na tua casa alguémque mora do lado esquerdo de vocês. (Dona Helena)Do lado esquerdo da tua casa. É uma pessoa que tedava bem e depois foi ficando mal. (Dona Helena)

É relevante também destacar o posicionamento damão esquerda da benzedeira durante as bênçãos, geral-mente colocada no bolso ou nas costas, como tentandoafastar as possíveis forças negativas provindas dela.

No caso da bênção para possibilitar a união de parceirosque se separaram o elemento esquerdo também é significativo:

Estou benzendo [Nome da pessoa]. Aqui embaixo deteu pé esquerdo [nome do parceiro] será preso, quedele tu pode fazer objeto que tu quiser. Com nome deDeus, São Cosme Damião e do Anjo da Guarda Bom.

Vemos que nesse tipo de benzedura é indicado o péesquerdo do cliente. No presente caso, o que se procura,ao contrário das outras bênçãos, é forçar um comporta-

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mento em outra pessoa; diríamos enfeitiçá-la. Assim, essaé a única bênção que pode ser associada ao feitiço e estaé a razão de nela se incluir uma referência ao esquerdo.

Podemos considerar, então, que o elemento esquerdoé visto como uma irrupção de uma ordem, de um desenvol-vimento natural. Portanto, aquilo que tem por objetivo mo-dificar a ordem natural das coisas, o conjunto de forças quevisa a uma intervenção no curso normal dos acontecimentosé representado como tendo a sua origem no lado esquerdo.

A cruz

A cruz se constitui outro dos significantes observados nabenzedura. Ela está presente nos movimentos realizados coma tesoura enquanto se dá a bênção; nos movimentos com oovo na testa e no peito da criança, durante as benzeduras demíngua; na própria tesoura que, além de ser um utensílio quepode cortar a doença1, assume a forma de uma cruz quandoé colocada aberta sobre o copo na ocasião de interrupçãodos trabalhos (Figura 13); nos movimentos realizados ao co-locar um ungüento denominado Marazo (composto de ervase cachaça), na testa e no peito de clientes; nos movimentosrealizados com o dedo polegar na ocasião da benzedura debócio ou de íngua etc. Poderíamos dizer que não existe ben-zedura em que a referência à cruz não esteja presente.

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1. Leal (1992) faz referência ao possível simbolismo do fa-cão, o qual poderia cortar a doença.

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Efetivamente, a cruz tem um espaço muito forte nes-sa terapêutica, uma espécie de apropriação da cruz cristã.Duarte (1986) ainda coloca que o referido sinal, onde li-nhas de direções opostas se cruzam, estaria sugerindo aomesmo tempo centralidade e marginalidade, composição edissociação, e o elemento mais significativo que se podeextrair desse exemplo de cruzar é sua relação com umamedida ou equilíbrio.

Sobre esse tema, o autor ainda afirma que as princi-pais referências ao cruzamento passam por um núcleo depráticas associadas a rezadeiras ou benzedeiras, que têmcomo objeto a cura de alguma perturbação ou doençasofrida.

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Figura 13: Tesoura em cruz em cima do copo com água na benzedura com brasas.

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O número três

Duarte (1986), em seu trabalho, destaca que, junta-mente com a realização do sinal da cruz, realiza-se a invo-cação das três pessoas da Santíssima Trindade. Essa invoca-ção pode ser realizada explicitamente durante a encanta-ção ou implicitamente ao ser realizado o sinal da cruz –em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo. Ainda que areferência à Santíssima Trindade não seja uma constantenas rezas por nós observadas, o número três sempre o foi.

Três ou múltiplo de três é o número de vezes requeri-do na terapêutica da benzedura, tanto de Dona Helenacomo das outras benzedeiras entrevistadas. Em alguns ca-sos, foi referido que o número de vezes que a pessoa sedeve benzer deve ser ímpar, e, o número mínimo de vezesé três.

Três é o número de bênçãos realizadas em cada ses-são; três são as brasas utilizadas na benzedura; três são osdias da semana em que Dona Helena benze; três é onúmero preferido ao ser dada a receita de algum chá ou dealguma simpatia, como, por exemplo, três colheres de melutilizadas na segurança para chamar dinheiro; três vezes écortada a folha de grama na benzedura para cobreiro, mor-dida de bicho ou furúnculo.

Essa relevância do número três também foi observadapor Pereira (1993), na sua pesquisa sobre parteiras que, noscasos de terem que determinar a dosagem de algum ingre-diente o fazem quantificando-a em três ou um de seus múl-tiplos; assim, temos a presença de “três galhinhos”, “novecaroços” de tal ou qual planta.

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Chauí (1991) observou que o três é visto em váriasculturas como um número perfeito, possuidor de harmo-nia, podendo conter poderes mágicos, a autora comentaa reiterada presença desse número nos textos religiosos: aSantíssima Trindade; nas vezes que Pedro negou Cristo;nas virtudes cardeais (fé, esperança e caridade). Nas histó-rias infantis encontramos uma situação semelhante: trêssão os pedidos ao gênio da lâmpada, assim como tambémtrês vezes a madrasta vai à casa do anões em “Branca deNeve”. Diversas são as histórias em que o número de ir-mãos é três: “A gata borralheira”, “Três cisnes”, “Três plu-mas” etc. Também na cantiga popular de roda o númerotrês se evidencia:

Terezinha de Jesus/ De uma queda foi ao chão/ Acu-diram três cavalheiros/ Todos três chapéu na mão/ Oprimeiro foi seu pai/ O segundo, seu irmão/ O tercei-ro foi aquele a quem Tereza deu a mão...

E por que não incluir aqui também a referência aonúmero três presente num dos pilares da psicanálise? Esta-mos nos referindo aqui ao Complexo de Édipo e seu triân-gulo amoroso.

A presença marcante desse número sugere, assim,uma idéia de equilíbro. É de ressaltar também que, nas fa-mílias do interior, até a presente geração, o número de fi-lhos considerado ideal é três.

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A água e o fogo

Além dos elementos já citados, a água e o fogo apa-recem como relevantes na terapêutica da benzedura. À di-ferença dos anteriormente citados, esses elementos, ambosassociados à idéia de limpeza e purificação remetem dire-tamente às forças da natureza.

O calor do fogão à lenha, que envolve o pacientedesde o momento em que ele se senta na cadeira para serbenzido, se confunde com a própria força do ambiente noqual ele agora está e, assim, com a força de Dona Helena.

A água, por sua vez, não somente está presente demaneira material no copo onde as brasas que absorverama carga negativa da pessoa são apagadas, mas também demaneira simbólica na bênção, ao ser dito que todos os ma-les sejam dados e, portanto, levados pela água corrente. Aágua corrente limpa, purifica, leva com ela todas as impu-rezas, da mesma forma que as chuvas carregam todo o lixoacumulado das ruas.

Não podemos esquecer o papel purificador atribuídoà água no catolicismo. A mesma idéia da purificação dobatismo está contida nas benzeduras, feitas com águabenta, características da zona rural.

Estes elementos da natureza, por sua vez, remetem auma ordem natural, a um curso, a um fluxo que as coisasnaturalmente devem seguir, o que revela a própria con-cepção da bênção.

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Se tu tiveres amarrado pros negócios por bruxaria,olho grande, serás desamarrado. (Dona Helena)

Ele está amarrado, tudo tem um fim nesse mundo.(Dona Tereza)

A feitiçaria amarra, prende, segura a pessoa, impedin-do-a de fazer valer suas potencialidades. Essa amarraçãorepresenta as forças negativas que impedem o fluxo normaldos acontecimentos, fazendo que a pessoa não consiga al-cançar seus objetivos. Essa idéia está associada à do acú-mulo, um fator de desequilíbro e, como conseqüência, en-fraquecimento do sujeito.

Não pode ficar trancada, se a gente fica com as coi-sas trancadas é a gente que se prejudica. (Dona Tere-za)

Por isso a cura passa também por aqueles símbolosque representam o fluxo normal das forças da natureza epossibilitam recuperar o curso regular das coisas. Trata-se,aqui, da volta às origens, numa referência clara ao mitocosmogônico (Cf. Eliade, 1972).

A Ressignificação

Não é somente do catolicismo que se tomam de em-préstimo determinados símbolos. A medicina também éuma fonte da qual são retirados diversos elementos simbó-licos como, por exemplo, as fichas ou a sala de espera,

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com sua clara relação com os ambulatórios médicos. Masnão se limita a apenas isso, a própria utilização de medica-mentos industrializados de modo geral corresponde muitomais ao valor simbólico ali expresso do que a seu valorquímico. É interessante analisar um pouco mais essa idéia.

No caso da medicina oficial, acredita-se que o remédiotenha uma significação por si. Ele seria visto como a própriasubstância química que atua no organismo sem a interme-diação de nenhuma representação. Não se pretende que oremédio seja simbolizado. Se existe alguma representação,ela seria a descrição objetiva de seus efeitos químicos.

Já com as práticas alternativas a situação é outra: asfunções simbólicas nunca são isoladas das reações quími-cas das substâncias que são administradas. Deste modo, osremédios administrados nessas práticas terapêuticas sem-pre devem ter funções simbólicas para poder integrar-se noprocesso ritual, pois é somente desse lugar que podem teralgum efeito.

Na medicina, quando se encontram efeitos simbóli-cos na aplicação de medicamentos, estes são vistos comoum agregado, de parte dos leigos, ao efeito objetivo, natu-ral, do medicamento, que seria sua função principal.

Os pacientes da medicina oficial vêem o medicamen-to com um símbolo extremamente frágil, pois ele não re-presenta uma vontade superior, de alguém que detenhapoderes. Com efeito, por não pertencer à esfera do sagra-do, ao mundo das certezas, o medicamento é visto aquicomo parte de uma ordem artificial, do mundo dos ho-mens, no qual qualquer afirmação pode ser objeto de con-trovérsias (Cf. Lefèvre, 1991).

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O medicamento indicado pelo médico, portanto, estáimerso no campo da medicina, assim ele adquire um signi-ficado ligado ao poder da ordem médica. O ritual da ben-zedura vai se apropriar desse poder de que goza o remé-dio. Desta forma, os vários elementos advindos de outrosuniversos simbólicos, ao serem integrados no ritual da ben-zedura, são ressignificados, assumindo um caráter mágico.O remédio já não age pura e exclusivamente por suas ca-racterísticas químicas: nele também está presente a forçada benzedeira.

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4Benzedura e Psicanálise:

Encontros e Desencontros

“Familiarizando-nos com aquilo que inicialmente senos apresentava como estrangeiro (as terapias dos ou-tros, as outras terapias) é que podemos tornar estra-nho, tanto a nós próprios quanto aos outros, aquiloque antes nos parecia familiar.” (Laplantine & Rabey-ron 1, 1989)

A compressão do procedimento terapêutico das ben-zedeiras como uma forma de construção de narrativas quepermite ao cliente a reorganização de seu universo simbó-lico, o qual foi rachado ao defrontar-se com o imponderá-vel, nos leva ao segundo momento deste trabalho , devida-mente assinalado na epígrafe.

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Ao tornarmos familiar o estranho, somos forçados arelativizar aquilo que antes considerávamos familiar. É im-possível uma compreensão das terapêuticas populares semque isso cause um certo estranhamento frente a nossas prá-ticas psicológicas através das quais tentamos também fazeruma recomposição dos nossos universos simbólicos.

No campo da saúde, e principalmente da saúde men-tal, é praticamente impossível falar de terapêuticas popula-res sem fazer menção à diferenciação entre estas e as tera-pêuticas psicológicas, muitas vezes sustentada na afir-mação falaciosa da existência de um hiato que separa otratamento eficaz de um mero paliativo.

Se nosso objetivo é obter uma compreensão dessasterapêuticas somos forçados a realizar um contrapontocom as terapêuticas oficiais não no sentido de exaltar as di-ferenças, mas de procurar as suas semelhanças, os seuspontos de encontro; ou seja, se a benzedura e a psicanáli-se são práticas equiparáveis.

Xamanismo e Psicanálise: EquivalentesInvertidos

Para tal propósito, ainda que não seja o momentoaqui de discutir as diferenças e semelhanças entre a benze-dura e o xamanismo, consideramos importante utilizar,como ponto de partida, o conhecido artigo de Lévi-Strauss“A eficácia simbólica (1972). Nele, o trabalho do xamã e odo psicanalista são dados como equivalentes, porém, cominversão dos termos. No caso da técnica de Freud, existiriaum mito individual que o psicanalista extrai fazendo o pa-

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ciente falar, ao passo que o xamã inocularia no pacienteum mito coletivo por meio da recitação deste.

Segundo Lévi-Strauss, poderíamos esquematizar am-bas as técnicas da seguinte maneira:

Vamos tomar essa diferenciação como parâmetro,uma vez que ela é utilizada na psicologia para diferenciaras suas técnicas, principalmente as psicanalíticas, das tera-pêuticas populares.

As primeiras questões que se colocam são: será queesses processos se dão realmente assim? O psicanalista so-mente extrai coisas do paciente?

Para nós, a diferença entre ambas as técnicas não é tãoradical como, à primeira vista, poderia parecer. Em relaçãoao processo de inoculação presente na técnica utilizada peloxamã, pensamos que o mesmo se verifica na psicanálise,ainda que de uma maneira mais sutil, de uma forma muitomais leve, ao passo que, no caso do xamã, e no da benze-deira, esse procedimento é realizado de modo mais direto.

De fato, na prática psicanalítica, essa forma de escu-ta totalmente asséptica, neutra, somente acontece, e aindaassim, não totalmente como se professa, com um determi-

TÉCNICA XAMANÍSTICA TÉCNICA PSICANALÍTICA

Inoculação ExtraçãoMito Coletivo Mito individualXamã fala Psicanalista escutaPaciente escuta Paciente fala

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nado grupo sociocultural. Podemos dizer que quanto maispróximo o paciente se encontra de grupos intelectuais, tan-to mais fica oculto o papel ativo do psicanalista, ainda quenunca desapareça complemente.

Com efeito, nos distintos grupos sociais, a psicanálisevai apresentar certas variações. Portanto, a suposta não-in-terferência do analista vai tomar formas variadas segundoo grupo no qual a terapêutica é utilizada. Não devemos es-quecer, aliás, de que a prática da psicanálise não é um fe-nômeno universal na nossa sociedade ocidental; pelo con-trário, restringe-se a determinados grupos socioculturais.

Ruben C. Fernandes, na entrevista transcrita no artigo“A crença na psicanálise” (Cf. Nicéas, 1984), nos alerta so-bre isso ao comentar que, na Inglaterra e na França, a psi-canálise se restringe a pequenos grupos intelectuais; ele as-socia essa delimitação da área a fatores culturais, como apossibilidade de conviver com o absurdo ou a idéia de de-samparo, que são características ligadas a grupos intelec-tuais, enquanto, nas classes populares, a idéia de ummundo com autoridades estabelecidas é mais comum.

Os Efeitos da Significação

Lévi-Strauss (1972), ao comentar a cura1 de uma partu-riente pelo xamã e compará-la com a cura num processo psi-

1. A denominação de cura vai ser entendida aqui como aprodução de determinados efeitos que fazem a populaçãoassistida considerar o processo terapêutico eficaz.

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canalítico, diz que, em ambos os casos, se tenta levar à cons-ciência conflitos e resistências que tinham permanecido, atéentão, inconscientes, seja por repressão de forças psicológi-cas seja por ser sua natureza não psíquica e sim orgânica.

Julgamos necessário estendermo-nos mais sobre essaexplicação de cura que busca tornar consciente o incons-ciente. Freud (1973d) considerava a cura resultante do atode fazer consciente o inconsciente. E como diz ele ser issopossível? A resposta é: enlaçando os conteúdos inconscien-tes com seus representantes verbais. Poderíamos dizer que,em ambos os casos, trata-se de poder colocar em palavrasalguma experiência que até então não podia ser represen-tada. Dito de outro modo, dando possibilidade de construirnarrativas nas quais esses eventos ininterpretáveis se tor-nem passíveis de ser expressos por meio da linguagem, e,portanto, também pensados.

Mais adiante, Lévi-Strauss afirma que os conflitos e asresistências se dissolvem não pelo conhecimento (real ou su-posto) que o doente adquire, mas sim porque ele possibilitauma determinada experiência na qual os conflitos se re-atua-lizam numa ordem e num plano que permitem seu livre de-senvolvimento e conduzem a seu desenlace (1972, p. 179).

O autor afirma ainda que essa experiência vivida re-cebe, em psicanálise, o nome de ab-reação. Essa experiên-cia, porém, se refere muito mais à narrativa do que a algu-ma reação em si. Ainda que se concorde com que a teoriada ab-reação se encontra no início da psicanálise e que elaposteriormente foi abandonada por Freud, isso não invali-da a idéia de que aquilo que cura o paciente é a possibili-dade, obtida com ajuda do terapeuta, de poder colocar em

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palavras algo que até o momento era impossível de se re-presentar verbalmente.

Talvez o problema esteja relacionado com o que ascolocações de Lévi-Strauss (1972) deixam transparecer: aidéia de que na análise é a experiência com o analista queproduz a cura através da liberação de afetos. Contudo, umestudo mais demorado nos permite entender que esse novoexperienciar processos afetivos, de que o autor nos fala, estáestreitamente vinculada à produção de processos signifi-cantes. Qualquer que ele seja, todavia, devemos considerarque a figura do terapeuta, seja este xamã, benzedeira oupsicanalista, é fundamental para a realização do processo.

Como demostramos no capitulo anterior, o lugar queo terapeuta ocupa – seja ele uma benzedeira, um analistaou um xamã – é fundamental para que a cura possa acon-tecer. Mas não tanto no sentido de que se possa reviveruma experiência – no sentido de ab-reação, ou seja, quepossa se viver novamente um acontecimento, agora simcom descarga afetiva – mas sim que esse acontecimentopossa ser integrado na história do paciente.

Em nosso estudo sobre o trabalho das benzedeiras pu-demos observar que não basta uma explicação qualquer, oque se faz necessário é um sistema no qual esse aconteci-mento possa ser integrado, no qual forme, junto com todosos outros acontecimentos da vida, uma totalidade coerente;noutras palavras, se torne inteligível na história do doente.Assim, partindo dessas constatações, podemos considerarque Lévi-Strauss está apontando não para um conhecimen-to intelectual – não é disso do que se trata –, mas da produ-ção de um sentido que venha ao encontro do universo sim-

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bólico do doente. De fato, não se trata de encontrar a causaobjetiva de certos estados confusos e desorganizados, emo-ções ou representações, mas de articulá-los sob forma de to-talidade ou sistema (Cf. Goldgrub, 1995, p. 49).

Trata-se, na realidade, de que o doente tenha acesso aum conhecimento, não uma informação qualquer, mas umconhecimento que tenha o valor de verdade. É dessa formaque o doente integra esse escotoma de significação numanarrativa, num mito1; pouco importa então se essa narrativatoma como base o itinerário até a mansão de Muu, – comono caso ilustrado por Lévi-Strauss – a reconstrução daorigem do mau-olhado ou a reconstrução da história do pa-ciente tendo o mito do Édipo como eixo. É, pois, nesse sen-tido que Lévi-Strauss (1972) coloca que o conhecimento,real ou suposto, possa permitir uma experiência específica.

Mas, afinal das contas, em que consistiria a cura doque aqui denominamos feridas simbólicas?

Para a psicanálise, a cura vai depender das diferenteslinhas teóricas e até do momento no qual essas linhas seexplicitam. Numa ordem cronológica, temos Freud(1973d), que, como já referimos, postulou que curar era fa-zer consciente o inconsciente, através do enlaçar idéias in-conscientes com seus representantes verbais. Já paraMelanie Klein (1974), a cura seria alcançada por meio da

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1. Tomamos aqui o mito na acepção de Eliade: o mito contauma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorridono tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. (...) Ésempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata deque modo algo foi produzido e começou a ser (1986, p.11).

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eliminação das dissociações. Jacques Lacan (1983) é quemmais ênfase dá ao fato de que o psicanalista não deve sepreocupar com a cura do paciente.

Ainda que este postulado esteja claro quando a dis-cussão versa sobre cura e psicanálise, não é tão claro assimquando psicanalistas discutem situações clínicas em que areferência à cura, se não chega a ser um termo constante,é pelo menos recorrente.

Fazendo essa ressalva, poderíamos dizer que, paraLacan (1983), curar seria permitir integrar o significante dopaciente num plano simbólico. Ou seja, que o sujeito pos-sa integrar o trauma, aquilo até o momento ininterpretável,num contexto significativo e, assim, colocando-o em pala-vras, poder simbolizá-lo. Essa perspectiva de Lacan é a quemais se aproxima da nossa visão de cura como atribuiçãode sentido.

De fato, isso não se diferencia muito das colocaçõesde Lévi-Strauss (1972) em relação ao que consistiria a curano xamanismo, e que acreditamos poder estender a outrasterapêuticas ditas populares.

Para levar mais adiante essa comparação, deveríamosiniciar por nos perguntarmos: em que consistiria aquiloque a psicanálise denominou processo traumático? Ou,noutras palavras, em que consiste a problemática que levao cliente a procurar uma terapêutica qualquer?

Temos afirmado que o cliente procura a ajuda de umprofissional em virtude de algo ininterpretável, indizível,daquilo que não pode se inscrever no discurso. É nessesentido que a integração num sistema mítico vai possibili-tar a superação do sofrimento, desde o momento em que o

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mito, enquanto uma construção simbólica, permite produ-zir palavras e, assim, possibilita que, pela palavra, esse in-dizível seja dito; que esse sofrimento encontre formas deser expresso (nomeado e integrado) ganhando foros de rea-lidade.

Entretanto, não será qualquer história que vai possibi-litar essa inscrição no universo simbólico; é necessário queela tenha um valor de verdade. Esse valor de verdade podeter sua origem no sobrenatural, como na situação em queuma receita é atribuída à indicação de um anjo – no casode Dona Helena – ou, também, pode ser absorvido do uni-verso da medicina oficial.

Esse último processo pode ser claramente observadono depoimento de uma parteira a Pereira (1993, p. 254):

Vizinha, a gente aprende muita coisa no Centro deSaúde, as enfermeiras são muito boas, ensinam, têm amaior paciência; é bom aprender (...) eu aprendi onome de todas partes da mulher, do canal pra ter oneném, o nome dos ossos, tudo; (...) a gente ficandosabida faz as coisas mais certas, imagine a senhoraque antes, logo depois da mulher parir, eu rezava parafechar as cadeiras, agora eu rezo para fechar os qua-dris.

Aquilo que no Posto de Saúde era entendido comoensino/aprendizagem, e, portanto, considerado uma açãotécnica, ganha agora um novo significado. De fato, os no-vos conhecimentos integrados na oração reatualizam aoração e os próprios conhecimentos. Estabelece-se um du-

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plo processo: por um lado, a terminologia anatômica – en-tendida como verdade científica – reforça o poder de atua-ção do símbolo, a oração ganha maior eficácia e a bênção,maior credibilidade; por outro, aparentemente, também écapaz de dar credibilidade e atribuir eficácia à terminolo-gia (que em princípio é só isso). Por esse mecanismo, o quese queria, por parte do médico, só a descrição da realida-de se revela na sua real dimensão – são outras tantas clas-sificações sociais, simbólicas.

Fica claro, assim, como para essa parteira a importân-cia da aprendizagem está em poder obter os conhecimen-tos que vão integrar a oração e possibilitar que ela não sejaquestionada, preservando seu valor de mito verdadeiro. Areza utilizada não é uma das rezas possíveis e sim a únicareza que, por ter o valor de verdade, não pode ser discuti-da. A verdade estaria afirmada tanto pelo universo do sa-grado como pelo universo científico da medicina. Dessemodo, não é uma reza qualquer, inventada pela terapeutapopular e que poderia ser mudada por sua livre vontade.

Estamos sendo remetidos aqui ao reconhecimento deuma ordem, de uma lei que se sobrepõe ao sujeito, no sen-tido de que independe de sua vontade. Não está nele o po-der de mudá-la. Essa ordem, que proporciona um códigovisto como natural, uma lei que regula, classifica e, portan-to, permite o surgimento da palavra; e é por meio dapalavra que se pode nomear o que até o momento era ino-minável, traumático.

Como vemos, isso não é muito diferente do que umpsicanalista faz. E poderíamos dizer que não somos os úni-cos a pensar assim.

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Lacan aborda o tema em questão ao fazer referênciaao tratamento dado por Melanie Klein a um menino dequatro anos cujo nível geral de desenvolvimento corres-pondia a uma criança de quinze a dezoito meses. Essacriança tinha um vocabulário muito restrito e em diversassituações o empregava mal, não tendo, segundo o autor,desejo de comunicar-se. A criança brincava com um trem,porém, fazia isso como se atravessasse a atmosfera, comose fosse invisível. Diante disso, Klein interpreta: Dick pe-queno trem, grande trem Papai-trem. Depois, a criança diz:station. Ao que Klein responde: A estação é Mamãe. Dickentrar na Mamãe. Lacan comenta que é a partir daí que acriança melhora, começando a se desenvolver e a estabe-lecer vínculos:

O desenvolvimento só ocorre na medida em que o su-jeito se integra ao sistema simbólico, aí se exercita, aíse afirma pelo exercício de uma palavra verdadeira.Não é nem mesmo necessário, vocês vão observar,que essa palavra seja a sua. (...) Sem dúvida, não équalquer uma – é aí que vemos a virtude da situaçãosimbólica do Édipo.É verdadeiramente a chave – uma chave muito redu-zida. Já lhes indiquei que havia, muito provavelmen-te, todo um molho de chaves. Talvez lhes faça um diauma conferência sobre o que nos dá, a esse respeito,o mito dos primitivos – não direi os menos primitivos,porque não são menores, sabem muito mais que nós.Quando estudamos uma mitologia, a que, por exem-plo, vai talvez aparecer a propósito de uma popula-

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ção sudanesa, vemos que o complexo de Édipo não épara eles senão uma piadinha. É um detalhezinho mí-nimo num mito imenso. O mito permite confrontaruma série de relações entre os sujeitos, de uma rique-za e de uma complexidade perto das quais o Édipoparece uma edição tão abreviada, que afinal, nemsempre é utilizável. (Lacan, 1983, p.104)

Isso significa que o desenvolvimento do sujeito, nes-se caso, passou por ele poder ser integrado num mito. Éjustamente dessa integração que estamos aqui falando.Mas como nos diz Lacan, o mito de Édipo é um dentre ou-tros, muitos mitos possíveis; logo, o fundamental seria queum mito ocupasse para o sujeito e sua cultura o lugar domito verdadeiro.

É o mito, como já dissemos, que permite produzir pa-lavras. Isso vai ao encontro da explicação dada por Lévi-Strauss em relação a por que a compreensão através domito expressa pelo xamã possibilitava ao paciente maisque uma resignação, uma cura; ao passo que nada seme-lhante se produz em nossos doentes, quando se lhes expli-ca a causa de suas desordens invocando secreções, micró-bios ou vírus (Cf. Lévi-Strauss, 1972, p. 178).

É que a explicação dos monstros forma parte de umsistema simbólico que simultaneamente é exterior e inte-rior ao sujeito. É uma relação de símbolo com a coisa sim-bolizada, ou, para empregar o vocabulário dos lingüistas,de significante a significado (Lévi-Strauss 1972, p. 179).Assim se dá ao paciente uma linguagem através da qualele possa expressar estados até então incapazes de seremformulados.

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Não acontece de forma diferente com as benzedeiras.Elas, pelo lugar privilegiado que ocupam, o lugar do sujei-to do suposto poder, ficam autorizadas a articular aquelesfatos que escapam à significação do cotidiano com um uni-verso mítico do qual são detentoras. Dona Helena, comoficou evidenciado no capítulo anterior, consegue integrarum conjunto de elementos, até então dispersos na vida dopaciente, na ordem mítica do mau-olhado.

Vemos, então, que o trabalho do xamã, da benzedei-ra ou do psicanalista é poder fazer o enlace entre o mito ea situação ininterpretável do cliente, e, dessa forma, possi-bilitar a inscrição do indizível no simbólico.

A psicanálise e o xamanismo guardam, segundo Lévi-Strauss, alguns paralelismos. Ambas as técnicas procuramproduzir uma experiência, que, como já dissemos, não setrata de reviver emoções que naquele primeiro momentonão eram sentidas, mas sim de ressignificar, de poder inte-grar essa experiência num outro sistema de códigos. Isso seconsegue, em ambas as técnicas, através da reconstruçãode um mito no qual essa experiência é agora integrada.

Mito Individual e Mito Coletivo

Associado à idéia de que na terapêutica xamanísticaexiste um processo de inoculação, enquanto na técnicapsicanalítica o procedimento seria de extração, Lévi-Strauss (1972) se refere ao fato de que, na psicanálise, omito seria um mito individual, o qual é construído peloindivíduo com situações do seu passado, enquanto, noxamanismo, encontraríamos um mito social, recebido do

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exterior, o qual não teria relação com a história dodoente.

Esta obra é extensamente comentada por Cardoso(1987) no seu prefácio à obra de Lacan O mito individual doneurótico para reafirmar a especificidade da psicanálise emrelação ao xamanismo. Ela assinala a existência, em nossacultura, de uma passagem do coletivo ao individual. Essapassagem estaria presente tanto nas artes como na terapêuti-ca psicanalítica. Nas artes ela poderia ser observada na per-da de sua função de representação para ter uma função figu-rativa. Não se procura mais significar o modelo, mas sim re-produzi-lo. Da mesma forma, na psicanálise, o mito coleti-vo vai ser substituído por um mito individual, criado pelo pa-ciente com elementos de sua história singular.

Sem desconsiderar os valores do individualismo pre-sentes na nossa cultura, cabe perguntar: será que o mito napsicanálise é tão individual assim? Pensamos que não. Di-ferentemente do mito relatado pelo xamã e pela benzedei-ra, o mito construído na clínica psicanalítica é integradopor um número maior de componentes individuais dahistória do sujeito, não obstante, sua estrutura está circuns-crita pelo mito coletivo do Édipo. É nessa estrutura que oscomponentes da história individual do sujeito vão se encai-xar. Essa estrutura vai ser de alguma forma dada pelo psi-canalista a seu paciente.

Assim, se considerarmos somente a participação dahistória do sujeito na construção mítica, poderíamos, sim,dizer que estamos diante de um mito individual. Contudo,cabe ainda perguntar se o fato de no mito de Édipo existirum maior espaço para os componentes individuais não

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deixa de responder a uma situação cultural? Noutras pala-vras: é em nossa cultura ocidental, na qual o individualis-mo ocupa um lugar de destaque junto com os valores de li-berdade e igualdade que são seus alicerces (Dumont,1970), que o mito do Édipo psicanalítico obteve um espa-ço maior (Bezerra, 1983).

Devemos ter claro, entretanto, que a colocação doÉdipo como um mito a ser dado ao paciente, para que esteintegre nele sua história, em nada desmerece a psicanálisenem questiona sua eficácia.

Se, por outro lado, consideramos como a benzedeirarealiza seu trabalho, vemos que este não se restringe a ino-cular no paciente um mito coletivo. De fato, temos obser-vado que é de fundamental importância para a efetividadeda benzedura que as construções narrativas sejam feitastanto com elementos oriundos da benzedeira como tam-bém com aqueles provindos do cliente. Neste sentido, es-taríamos diante de um mito coletivo, porém ele deve ser re-atualizado com elementos da história do cliente, reaproxi-mando essa terapêutica popular da psicanálise.

A Influência do Xamã Versus a Neutralidadedo Psicanalista

Esse aspecto do mito individual e do mito coletivo temrelação com a suposta participação do psicanalista e do te-rapeuta popular no processo terapêutico. No caso do pri-meiro, existe a suposição de um comportamento passivoem relação ao paciente, enquanto no do segundo, no casoa benzedura, ele teria claramente uma participação ativa.

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O analista possuiria, supostamente, uma neutralida-de, um tal distanciamento do paciente, que lhe permiti-ria uma empatia através da qual poderia obter a com-preensão dos sentimentos daquele. Simultaneamente,evitaria qualquer influência, no sentido de transporidéias ou sentimentos próprios ao paciente. Essa posiçãoé conhecida dentro da corrente Kleiniana como dissocia-ção instrumental. Noutras palavras, o psicanalista pos-suiria uma distância ótima que lhe permitiria, ao mesmotempo, sentir o que acontece com o paciente, e evitarqualquer envolvimento ou demonstrações que possaminfluenciá-lo.

O que aqui está em jogo é a suposição de que, nabenzedura, assim como em outras práticas de cura popula-res, o terapeuta fala e o doente escuta. Noutras palavras, oterapeuta popular fala por seu doente, diz a ele o que estáacontecendo e o que deve pensar e sentir. Já na psicanáli-se, é o doente quem fala e atribui sentimentos ao psicana-lista, enquanto este se limita a escutar. Mas será que essadiferença permanece tão nítida assim quando nos aproxi-mamos dessas terapêuticas?

No caso da análise, seria bom seguir a recomenda-ção de Geertz (1978) de observar não as teorias científicasnem suas descobertas, mas o que os praticantes da ciênciafazem.

Teoricamente, o psicanalista deve tentar ser total-mente neutro, não influenciando o paciente, permitindoque seja este quem determine as temáticas a serem aborda-das. Entretanto, isto não é o que acontece na maioria daspráticas que conhecemos. O papel do psicanalista deixa de

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ser idealmente passivo quando ele passa da teoria à práti-ca. As intervenções do analista são muito mais freqüentesdo que teoricamente se expressa, inclusive com recomen-dações diretas sobre comportamentos ou atitudes a tomar.

Claro que sempre fica o recurso, muito utilizadoquando um psicanalista não concorda com alguma afirma-ção em relação à psicanálise, de classificar as ações criti-cadas como um procedimento sugestivo e não psicanalíti-co (Stengers, 1990). Essa acusação também é feita quandose questiona a psicanálise, baseando-se, como no nossocaso, em procedimentos de analistas.

Não estamos afirmando, no entanto, que isso sejaum procedimento contínuo, mas sim que ele está pre-sente na maioria dos procedimentos psicanalíticos. O quenos leva quase que diretamente a um dos pontos privile-giados de discussão, quando se trata de tentar diferenciar,por parte dos profissionais dessa área, as terapêuticas psi-canalíticas das terapêuticas populares. Estamos falandoda sugestão.

Sugestão

A sugestão sempre foi um fantasma assombrando apsicanálise. Já desde o inicio de seus trabalhos, Freud sedefende contra essas acusações.

Na procura de uma neutralidade científica, inspiradanuma visão de ciência positivista, procurou-se afastar aomáximo as influências que o terapeuta pudesse gerar noseu paciente. Na psicanálise, isso encontra o fundamentono seu criador, uma vez que Freud, desde o início da psi-

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canálise, procurou dar a esta um status científico. Assim,Freud se preocupou em obter uma testemunha fidedignapara afastar a psicanálise da metafísica e elevá-la ao nívelde ciência. Nessa tarefa, dever-se-iam afastar todas as in-fluências que o terapeuta-pesquisador pudesse exercer so-bre seu paciente-testemunha (Stengers, 1990). Encontráva-mo-nos, portanto, diante de uma visão estereotipada daciência, na qual, baseados num modelo das ciências natu-rais, pretendíamos questionar o caráter científico de umadeterminada terapêutica apontando o que nela existiria desubjetivo, mostrando, desta maneira, a influência do pes-quisador sobre o objeto pesquisado.

Freud vai se lançar à procura dessa neutralidade ilu-sória e, desde então, a sugestão passa a ser uma presençatemida tanto nas sessões psicanalíticas quanto em todaaquela ampla variedade de terapêuticas que, de algumaforma, tomam a psicanálise como uma referência. Tendocomo orientação esse modelo de ciência baseada emDescartes, na procura do almejado conhecimento objetivo,tenta excluir o sujeito no processo científico do conheci-mento, esquecendo-se de que não há atitude totalmenteneutra e objetiva: há esforço de se conseguir, ou de seaproximar de uma postura de neutralidade e objetividade(Rodrigues, 1979).

Stengers(1990), afirma que Freud aceitaria o fato deque a neurose de transferência implica um poder sugestivode parte do terapeuta em relação ao paciente, porém, essepoder seria utilizado, segundo Freud, não para influenciá-lo, e sim para tornar visível a verdade de seus mecanismosde defesa inconscientes.

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De fato, o próprio Freud afirmava que a sugestão temuma participação na psicanálise somente se considerar-mos esta como a influência que uma pessoa pode exercersobre outra por meio dos fenômenos transferências, a qualé utilizada para induzir o paciente a realizar um trabalhopsíquico que resulta necessariamente numa melhora cons-tante de sua situação psíquica (Freud, 1987b). Ou seja, atransferência-sugestão não teria como intuito produzir al-guma mudança de comportamento específico, mas sim ob-jetiva o incentivo a realizar um trabalho psicológico, estesim responsável pelas mudanças.

Todavia, Stengers (1990) afirma que ainda assim exis-te o risco do psicanalista fazer, sem se dar conta, que a ver-dade do paciente seja um reflexo do que ele quer.

Esse aspecto da terapêutica, que tanto incomoda apsicanálise, parece ser um ponto fundamental no próprioprocesso terapêutico. Embora Freud, como já dissemos,tentasse afastar qualquer influência por parte do terapeuta,paradoxalmente, em diversas ocasiões, colocava essa in-fluência como um dos componentes do tratamento1. So-mente a título de exemplo citaremos duas passagens. Notexto As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica(1987a), ele refere-se aos progressos da psicanálise e dizque antigamente era preciso pressionar o paciente paraque ele dissesse tudo de si, mas que atualmente as coisasseriam mais cordiais:

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1. O que de forma muito adequada foi chamado por Popper(1982) de efeito de Édipo.

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O tratamento compõe-se de duas partes – o que o mé-dico infere e diz ao doente, e o que o doente elaborade quanto ouviu. O mecanismo de nosso auxílio é fá-cil de entender; damos ao doente a idéia antecipado-ra consciente, a idéia do que ele espera encontrar e,então, ele acha a idéia inconsciente reprimida, em simesmo, no fundamento de sua similaridade com aidéia antecipadora. É esta a ajuda intelectual que lhetorna mais fácil superar as resistências entre conscien-te e inconsciente. (Freud, 1910, p. 127-8)

Aqui fica claro o processo sugestivo que está implica-do na tratamento. É através dele que o paciente construiusua narrativa, a qual se encontra delimitada pelas inferên-cias do psicanalista. Podemos, assim, inferir que é atravésdesse processo que o psicanalista transforma um mito co-letivo num mito individual. O terapeuta dá ao pacienteuma estrutura, a qual deve ser completada por este comsuas recordações individuais; recordações estas que, a par-tir desse momento, vão significar um acontecimento atualque até então permanecia incompreensível.

Pode-se argumentar contra isso que esse artigo foiuma comunicação proferida por Freud no Segundo Con-gresso de Psicanálise em Nurembergue. Porém, ainda quepossa parecer um trabalho mais superficial, revela a visãodaquilo que Freud pensava ser a função do analista.

Outro argumento que se pode contrapor à afirmaçãode que existiria uma influência, por parte do terapeuta, quede alguma maneira delimita o mito a ser construído pelopaciente é o de que essas afirmações datam de um perío-

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do inicial na teoria psicanalítica; mas isso não expressa emsi uma verdade. Uma afirmação semelhante pode ser ob-servada num dos últimos trabalhos de Freud:

... assim como o arqueólogo ergue as paredes do pré-dio a partir dos alicerces que permanecem em pé (...)assim também o analista procede quando extrai suasinferências a partir dos fragmentos de lembranças, dasassociações e do comportamento do sujeito da análi-se (Freud, 1987c, p. 293).

Mais adiante, no mesmo artigo, Freud continua:

O caminho que parte da construção do analista deve-ria terminar na recordação do paciente, mas nemsempre ele conduz tão longe. Com bastante freqüên-cia não conseguimos fazer o paciente recordar o quefoi reprimido. Em vez disso, se a análise é correta-mente efetuada, produzimos nele uma convicção se-gura da verdade da construção, a qual alcança o mes-mo resultado terapêutico que uma lembrança recap-turada. (1987c., p. 300)

Cabe perguntar até que ponto é possivel continuarpensando que, na psicanálise, se trata de um mito indivi-dual feito com elementos da história do paciente? Aindaque esses elementos estejam presentes, não podemos con-tinuar afirmando que na análise o paciente fala e o analis-ta escuta. Ele também recebe do exterior elementos para aelaboração desse seu mito individual.

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Por outra parte, também observamos na terapêuticada benzedura que o cliente contribui com elementos desua própria história para a construção da explicação domau-olhado. Isso não significa que consideramos essaspráticas idênticas; indubitavelmente, a proporção de ele-mentos individuais é maior na psicanálise que na benzedu-ra, contudo, são processos nos quais não se observa umadiferença qualitativa, e sim quantitativa.

A Crença na Psicanálise

A perspectiva das terapêuticas populares serem umaterapêutica a mais no tratamento de diferentes sofrimentosleva a que os praticantes da psicanálise procurem se dife-renciar delas através de diferentes estratégias. A diferencia-ção colocada por Lévi-Strauss (1972) de que se trata deequivalentes exatos, porém com inversão de todos os ter-mos não parece ser suficiente pois, ainda que diferencieambas as técnicas, a psicanálise parece carecer de uma di-ferenciação que a coloque, aos olhos da nossa sociedade,numa posição de proeminência em termos dos efeitos queela provoca.

Parece que, para os psicanalistas, se torna um fator re-levante demostrar que a psicanálise produz benefícios queas terapêuticas populares não conseguem alcançar.

Uma diferenciação aponta para os resultados de ambasas terapêuticas. Birman, no artigo de Nicéas et al. (1984),sustenta que, enquanto as terapêuticas populares possuiriamum sistema classificatório bastante fechado, com categoriaspredefinidas, a psicanálise, pelo contrário, possuiria um sis-

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tema muito mais aberto no qual se poderia realizar uma am-pla gama de combinações, teoricamente infinitas.

Contudo, a lógica da psicanálise não é tão aberta as-sim. De fato, como já comentamos, ela contempla umamaior participação dos componentes individuais; o que,corresponde a uma sociedade onde o individualismo seconstitui um valor quase supremo. Porém, justamente porser uma teoria nascida no verso do individualismo, a psica-nálise exclui, a priori, a variante dada pela benzedeira oupelo pai-de-santo. Elas não seriam consideradas combina-tórias possíveis. O que nos mostra, de forma clara, que es-sas pretensas combinatórias infinitas estão delimitadas porvalores sociais dos quais a psicanálise, assim como qual-quer outra ciência, não escapa.

Uma outra diferença entre essas duas terapêuticas,apontada freqüentemente pelos defensores da idéia de quea psicanálise teria um lugar especial em relação às terapêu-ticas populares, é que se, por um lado, existe uma seme-lhança entre o psicanalista e o terapeuta popular em queambos se colocam ante o paciente como sujeitos do supos-to saber, por outro, se diferenciariam desde o momento emque o psicanalista não acredita nesse lugar e vai trabalharpara que o paciente desfaça essa ilusão referente a ele.Noutras palavras, defende-se a tese de que o psicanalistanão crê na psicanálise como portadora da verdade atravésda qual se vai alcançar a salvação, enquanto nas terapêu-ticas populares a resposta à demanda do paciente estariadentro desse sistema de crenças no qual ele acredita.

Porém, será que se pode continuar afirmando issoquando observamos nas associações psicanalíticas um cul-

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to ao mestre e à sua autoridade? Os ensinamentos do mes-tre são tomados como a palavra sagrada, levando ao esta-belecimento de saberes constituídos. A obra psicanalíticapassa então a ser sacralizada. Começa-se a crer nesse“mestre”, na palavra dele, e termina-se por tornar o saberdele igual à verdade (Nicéas et al., 1984, p. 13).

Birmam, concordando com essa afirmativa, a com-pleta dizendo que o acesso ao inconsciente pode ser vistocomo o acesso ao sagrado por parte de uns eleitos, e, por-tanto quanto mais o analista ascende na carreira institucio-nal, mais próximo está de ser detentor máximo do acessoao sagrado (Cf. Nicéas et al., 1984, p. 16)

Não obstante, Birman, nesse mesmo texto (cf. Nicéaset al., 1984), encontra uma forma de continuar diferencian-do a psicanálise das terapêuticas populares ao considerarque tais conseqüências – culto ao mestre, idealização deuma pessoa, atribuição de um valor de verdade a sua pala-vra –não seriam um efeito da adesão à psicanálise; ou sejanão seria um fenômeno inerente à psicanálise, mas umefeito do processo da formação psicanalítica, da institucio-nalização da psicanálise.

Assim, nesse debate coordenado por Nicéas, Birmanpretende atribuir essa posição de fiel, de crente, por partedo analista, à sua formação, e não à posição em que suaanálise o teria colocado. Ele dá a entender que é o proces-so de formação o responsável pelo endeusamento dos mes-tres, e por isso, ao colocar sua palavra no lugar da verda-de, as teorias se transformam em dogmas.

Neste ponto, surgem-nos as seguintes questões: exis-tem psicanalistas que não tenham passado por um proces-

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so de formação? Essa característica que se atribui à forma-ção não seria própria do exercício dessa profissão? Pararespondê-las, acreditamos ser necessário aprofundar umpouco mais essa temática.

A tentativa de desautorizar outras terapêuticas não serestringe àquelas denominadas de populares. Dentro dopróprio mundo psi, são intermináveis os confrontos entreas diferentes linhas teóricas. Cada uma colocando-se comoa possuidora do verdadeiro caminho para produzir os efei-tos esperados no paciente. Essas brigas tomam as mais di-ferentes formas, desde discussões em mesas-redondas atécríticas veladas (e por vezes não tão veladas) a colegas deprofissão.

O dogmatismo dos defensores dos diferentes ladosleva a que seus procedimentos sejam semelhantes àquelesapresentados por grupos religiosos nos quais existe a ne-cessidade de converter, de demonstrar ao outro, e talvez,principalmente, a si mesmo, que se possui a teoria verda-deira, a original, a única que é copia fiel do real. É essa teo-ria que é o fato.

Ao ser um dogma, uma verdade universal na qual aidéia passa a ser tomada pelo real, fecha-se toda possibili-dade de questioná-la. Qualquer assinalamento de umacontradição na teoria, de alguma falha, passa a ser vistocomo uma heresia, e quem a proferiu, como um inimigo aser combatido.

Desta maneira, as diferentes teorias científicas, no seuafã de objetividade, tentam excluir qualquer aspecto quepossa interferir na sua pretensa neutralidade. Passam assima adquirir um caráter de doutrina onde precisam regenerar-

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se através de sua fonte, de seu fundador (Morin, 1982). Nomundo psicanalítico, essa recitação quase litúrgica é muitofácil de ser encontrada: “Freud disse..., Klein disse..., La-can, no semanário X aborda essa questão....” O livro domestre passa a ser uma referência bíblica no sentido de queele é a palavra através da qual se emite a verdade. Daí anecessidade de que todo trabalho sempre se fundamentena sua obra.

Realmente, não existiria uma teoria neutra, ela sem-pre cria de modo artificial um produto convencional que édado como natural e, assim, por detrás desse natural seconsegue ocultar seu caráter ideológico (Barthes, 1986;Saffioti & Almeida, 1995). Por exemplo, uma determinadalinha psicológica toma a sua linguagem como natural, aúnica possuidora de sentido, a única que dá conta da realsituação do paciente. Ela é vista como a projeção do real,e torna-se o fato posto em palavras.

Essa teoria é natural, por exemplo, no sentido de queseria a descrição óbvia, lógica e única de uma patologia.Enquanto a linguagem utilizada pelas outras linhas teóricasou pelas outras terapêuticas seria caraterizada como umainvenção daquelas pessoas que a sustentam, sem nenhumaoutra ligação com o real. Ela não seria natural, mas e simartificial, criada.

Esses discursos dogmáticos, na verdade, se colocam àmargem da cultura à qual pertencem, e, assim, se preten-dem sem quaisquer ligações sociopolíticas. Paradoxalmen-te, sua própria pretensão de neutralidade, segundo a qualnão estaria incluída na teoria uma determinada visão domundo, coloca e desqualifica qualquer outro discurso so-

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bre o funcionamento psíquico, tornando-se assim umaforte ferramenta ideológica.

Tratar-se-ia, então, de assumir essa teoria, no caso apsicanalítica, como uma narrativa, entre outras, através daqual procuramos dar conta de um conjunto de situações.

Essa perspectiva já vem sendo adotada em diferentesáreas das ciências humanas. Na história, por exemplo,existe uma tendência na qual, deixando de lado a procurade um estatuto científico, a preocupação se concentra naconstrução de modelos rigorosos sem se importar com queeles se perpetuem (Silva, 1993).

Esse caminho parece ser mais difícil para o mundopsi. A aceitação dessa posição cria, aqui, uma problemáti-ca que nas outras áreas não se apresenta. O trabalho clíni-co se propõe a produzir efeitos no seu paciente. Para queisso aconteça, faz-se necessário que o terapeuta ocupe, emrelação ao paciente, o lugar daquele que detém uma ver-dade, uma verdade que, como já vimos, é fundamentalpara a cura.

Se o papel da clínica seria a cura do que já denomi-namos feridas simbólicas, as quais ameaçam a produçãode sentido, faz-se necessária uma outra matriz que possibi-lite o seu restabelecimento. A função da clínica será, pois,possibilitar o acesso a essa nova matriz de significação.“Não sei o que se passa comigo; Não sei o que acontece;A vida já não tem sentido para mim”.

Neste ponto, perguntamo-nos se é possível ocuparesse lugar de possuidor da verdade, condição necessáriapara possibilitar ao paciente, acesso a essa nova matriz designificação, sem que, de algum modo, o terapeuta não

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passe a acreditar que ele é o único a ter acesso a essa ver-dade, e sua terapêutica a única eficaz.

Noutras palavras, a crença na psicanálise seria partenecessária de seu processo terapêutico. Desse modo, umavez mais o psicanálise se aproxima de suas irmãs renega-das, as terapêuticas populares.

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Sobre o livro

Formato: 135 x 185mmMancha: 90 x135mm

Tipologia: Optima (texto)Fritz Quadrata(título)

Equipe de realização

Assistente de Produção GráficaLuzia Bianchi

Copy Desk Nelson Luis Barbosa

RevisãoJosé Romão

Mariza Inês Mortari Renda

Criação da capaMarcos Horta

Projeto GráficoCássia Letícia Carrara Domiciano

Napoleon Akihito Fujisawa

DiagramaçãoAndré José Sofiatti