A Coisa Em Si Mesma Toda Nua

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  • 54 BOTIJL - A VIDA SEXUAL DE .IMMANUEL KANT , ,

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    fluido medular tm dores nas costas : 'alis, esta dissipao de energia devida a uma excessiva emisso de smen era ,apeli-dada de consumpo dorsal ou tabes dorsalis '''' , '

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    Claro que haver quem sugira que uma aclnul ao de esperma nociva para a sade e que ele pode estragar-se, como ',-o .mau. sangue de antigamente, rissot defendia, porm, que \' graas castidade o esperma .rebombeado. ,no sangue, .a '

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    circulao torna-se mais animada, a nutrio mais precisa, e' ~'" todas as outras funes se processam de uma maneira mais' perfeita. Conservar o seu esperma o mesmo que tomar um perptuo elixir da juventude. Como dizia o mdico Franois--Mercure Van Helmont, no sculo XVII : Se o smen no foi emitido, transforma-se numa fora espi ri tual. . 'Kant est de acordo. Os fluid os reciclam-se. Eles no nos envenenam. Pelo contrrio, vivificam-nos. At os mais humildes. Saliva, suor, esperma: preciso guardar tudo. S assim seremos capazes dos mais sublimes feitos, Conservar o esperma melhora a voz, toda a gente o sabe. Em Roma, os oradores eram aco nselhados' a absterem-se de fazer amor na vspera de um concurso de elo-quncia, de um j ulga mento ou de uma assembleia poltica, E o que a fil osofia se no esse confronto quotidiano com o pen-sa mento de outrem, a exigi.r uma argumentao permanente? Para escrever a Critica da Razo Pura, um pouco cada dia, necessria tanta energia como para um concurso de eloqun-cia. Nem pensar em fazer amor na vspera !

    (431 CharlesAndr Vandennonde, Dicionrio porrtil de solide, 1760, no artigo tabes dorsa tis: .A causa desta doena um cansao extremo provocado por uma evacuao excessiva de smen. como vemos nos jovens casados, nos jovens libertinos, quando chegam a puber dade, e de uma fonna geral cm todos aqueles que praticam o uso imoderado das mulheres .

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    Sexta Palestra

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    A COISA EM SI MESMA TODA NUA ,

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    o SUBLIME E O OBSCENO

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    Quando se censura em Kant a sua vida tranquila, O que no se lhe perdoa no fundo o facto de nunca ter t ido crises. Um homem que desconhece o que uma cri$e a inda pode ser considerado um homem? E que tipo de , filsofo ser algum que no sofreu uma revoluo interior, essa viragem na vida em que se impe a causa da Verdade? Aos momen -tos em que o ser faz uma reviravolta, debaixo de uma tor-menta S]iiritual, os Gregos chamavam epistrophe e os cris- ': tos conversio. A histria dos filsofos narra- nos as " converses de Santo Agostinho no jardim de Milo, de Descartes durante uma noite num qu arto aquecido, de Jea n--Jacques Rousseau na estrada de Vincennes, de Nietzsche no caminho de Sils-Mari al44l ,

    Que crise conh ec,eu Kant? No sobram vest igios de uma . ,

    uOI ca.

    (441 Santo Agostinho confessou terse convertido ao cristianismo ao ler O Evangelho num jardim de Milo. Rousseau teve a revelao do seu Discurso sobre a origem do desigual dade aquando de uma insolao na estrada do Castelo de Vincennes. Descartes apercebeu .se da sua vocao filosfica durante uma noite passada num quarto, perto de Ulm. Nietzsche intuiu a ideia do Eterno RetornQ na margem do lago de Sils Maria, em Grisons.

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  • 56 BOlUL - A VIDA SEXUAL DE IMMANUEL KANT

    o fundador da filosofia critica no teria vivido um s momento critico ... e assim nasceria um belo paradoxo!

    Mas esta viso inexacta. Kant falou longamente de uma crise exis(.encial que assola

    por vezes o individuo. Essa experincia de momentos privile-giados, para Kant o sublime.

    Mas o que o sublime (das Erhaben.e)? E quando somos esmagados, pulverizados em presena do

    que nos ultrapassa. Deixamos de existir. uma pequena morte, a vivncia do Transcendente no divino ...

    Kant d-nos os seguintes exemplos: .Rochedos audaciosamente inclinados e como que ameaa-

    '. dores, nuvens de tempestade reunindo-se no cu e avanando no meio de relmpagos e troves, ciclones espalhando atrs de . . .,

    si a devastao, o imenso oceano erguido pelo temporal, vul-ces no auge do seu poder destrutivo, a catarata de um grande rio, etc . 14~1 ._

    O que estes .fenmenos naturais tm de mais notvel que Kant nunca os observou! Como que ele poderia ter visto os vulces, os ciclones e o imenso oceano erguido pelo temporal, se nem sequer navegou no mar Bltico?

    Devemos ento supor que foi uma experincia intima a transtornar a sua vida. . . Das Erhabene uma noo capital, um conceito-chave do

    kantismo, que se define em funo do conceito de belo. A opo-

    .sio belo/sublime estrutura o universo de Kant, como as dico-.tomias cru/cozinhado, duro/mole, seco/hmido, et., ordenam O. universo das tribos selvagens. Na selva kantiana, nunca nos

    perderemos se levarmos connosco a bssola de dois plos: belo/sublime. .~ .

    Existem diversos' tipos de sublime. Do sublime da natureza acabmos de ver alg~ns exemplos. Mas exisi~ tambm um

    .' . . ' . .

    sublime humano. E, dentro deste, um sublime sexual. E a viso 'do sexo. Mais precisariJente a viso do sexo feminino ; da vulva. , : . /

    (4 5) en'rica da Faculdade de Julgar. 28. '.

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    SEXTA PALESTRA - A COiSA EM SI MESMA TODA NUA 57

    Vulco, tempestade, poder de devastao ... Est ali tudo! E o caminho para o assombro!

    Recordemos a deusa Demter, chorando o desaparecimento da sua filha Persfone. Prostrada, ela v chegar a velha Baubo, que levanta a saia e lhe mostra a sua vulva. Este espectculo sacode de riso a me enlutada. Que mudana de humor! O sublime um poderoso conversor.

    Entre os seus vrios nomes, necessrio pronunciar o mais M dificil: o obsceno, que da ordem do sagrado e do horrvel.

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    Trata-se da mesma ambivalncia : atraco e repulsa. Ns vivemos o espectculo pornogrfico nas mesmas con-

    dies do espectculo sublime: em segurana, espectadores protegidos, voyeurs confortveis.

    Inversamente, o sublime natural, o dos elementos que se precipitam, tambm pode desencadear afectos sexuais. No romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, Goethe narra como

    a tempestade e o trovo produzem nas damas habituadas ao ,

    recato dos sales - estamos no fim do sculo XV111 - efeitos formidveis : desmaios, gritos, suspiros. Estas mulheres temem a aniquilao, ao mesmo tempo que a desejam. A tempestade uma promessa de pequena morte. Apercebi-me, em certas mulheres dos nossos dias, de um medo semelhante em relao electricidade .

    Como o sublime, o obsceno anuncia a perda de si mesmo. O sublime ope-se ao belo, no tanto como o ser ao parecer, mas antes como o desaparecer ao aparecer .

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    ". I Uma soluo para esta perda : construir um invlucro. Os fil- '\ safos chamam' a esse casulo sistema e dedicam a sua vida ao '

    . - -

    :"{ projecto de o tecer. E um paliativo contra a fragilidade. Todos

    os fil~ofQS que construram sistemas viveram com uma sensa-o intensa de fragilidade e precariedade. Espinosa, Kant, Hegel: eles no eram nada em termos sociais, precisavam de um tecto e de paredes, uma coraa de conceitos.

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    58 B011JL - A VIDA SEXUAl DE IMMANUfL KANT , . I '.

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    A VERDADE SEM VEUS Qualquer trabalho de Kant comea pela distino entre'nmeno

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    e fenmeno. E tempo de falarmos disso, e particularmente da .coisa em si., das Ding aI! si,h. a coisa tal como Hac real-mente, a que Kant chama nmeno, algo que existe m~ sobre ~, '

    o qual nada podemos provar. Curiosa teoria do conhecimento! Como se a cincia tivesse ',.

    de lidar com 4(coisas~t objectos permanentes, estveis. A cin- \::. cia moderna no estuda as .coisas. isoladas mas relaes. flu-

    "

    xos, campos, sistemas. Existe no nmeno kantiano um sul-"': '. preendente fetichismo da .coisa.,

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    A Coisa o Sexo. bvio. Ns no podemos conhecer a Coisa em si, adverte-nos Kant: ns no somos capazes de o fazer, mas sobretudo ns no estamos autorizados a faz-lo. H muito de moral e de desejo nesta histria: .Cometemos um erro se confundirmos a aparncia com o fenmenolt, escreve Kant

    na Critica da Raz.o Pura. O que a noo de erro faz aqui

    sublinhar que a teoria do conhecimento inseparvel de uma conduta da razo, Ser metafsico pior do que cometer uma falha , um erro. Existe erro porque existe desejo: ns quere-mos ver a coisa como ela . Esta pulso (Triebl, esta forma de espreitar por baixo das saias da Realidade, uma obsesso de filsofo. A .critica. uma terapia inventada pelo doutor Kant para refrear esse desejo de ver, j que no pode erradic-lo.

    Ora no ser este vu lanado sobre a Coisa o cmulo do erotismo? Kant faz-nos entrever a verdade, num jogo que Nietzsche resumiu de forma poderosa: .J no acreditamos que a verdade continue a ser verdade sem os seus VUSI461 ...

    Este desejo voyeur de tudo conhecer, sempre frustrado, o que animava os sbios do sculo passado, que representavam

    [46) A Gaia Cincia, prercio.

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    SEXTA PALESffiA - A COISA EM SI MESMA TODA NUA 59

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    de bom grado o papel de ascetas ria sua vida profissional : nada

    de mulheres no laboratrio,. ou . na faculdade, nada de sexo,

    . nada a no ser a Verdade! . / ","

    Sabemos qual o reverso deste tipo de ascetismo: o bordel: A Verdade que se desejou nua e crua, atravs d.a experincia e da especula, vai ser contemplad, por fim, 'entre as pernas da prosttuta, profissional da .coi~~ em' si. Alis, os nossos

    '. .

    antepassados r.ev.elaram-nos o segredo, Contemplem a decora-o das suas faculdades, dos seus anfiteatros, Por todo O lad, nas paredes ou no tecto, h mulheres nuas ou com pouc~:. roupa! As musas, deusas e ninfas despidas dos frescos da:

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    Sorbonne saem direitinhas de um salo de bordel. O artista.' limitou-se ~ depilar a coisa em si dessas raparigas que foram rebaptizadas, por convenincia, com nomes como Razo,

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    Temperana, Justia ou Virtude, mas que na vida civil se cha-mavam Mimi, Lulu, IGki, Fernande, etc.

    O filsofo kantiano um cliente singular. Ele paga pela Coisa, mas probe-se de lhe tocar.

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