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A Comunicação e o Gosto: uma abordagem marxista Marco Schneider Universidade de São Paulo ˝ U USP

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A Comunicação e o Gosto: uma abordagemmarxista

Marco SchneiderUniversidade de São Paulo U USP

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Índice

1 Resumo 4

2 Resumo 6

3 Introdução 8

4 FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA 194.1 Uma Pedagogia da opressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . 214.2 A Estética e a fome . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 264.3 O Modelo metodológico de Lopes . . . . . . . . . . . . . . . 324.4 Epistemologia e filosofia da ciência: contra a neutralidade ax-

iológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 374.5 A História de uma lógica revolucionária . . . . . . . . . . . . 524.6 Diretrizes para uma crítica da economia política da comunicação 58

5 FETICHE DO VALOR E LUTA DE CLASSES 675.1 O Valor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 705.2 O Princípio da totalidade, a economia e o sujeito social . . . . 755.3 A Esfinge . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 805.4 A Luta de classes hoje . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88

6 CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DA COMUNICAÇÃO 976.1 Estudos Culturais na Sociedade do Espetáculo . . . . . . . . . 996.2 A Economia e o gosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1076.3 Necessidade e consumo (ou a jibóia) . . . . . . . . . . . . . . 1126.4 Solvência e consumo cidadão . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1206.5 Representação, realidade e comunicação . . . . . . . . . . . 126

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A Comunicação e o Gosto 3

7 A DIMENSÃO POLÍTICA DO GOSTO 1367.1 A Dialética do gosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1407.2 Gosto, ideologia e inconsciência de classe . . . . . . . . . . . 1457.3 O Valor de uso, o gosto e a cultura . . . . . . . . . . . . . . . 1547.4 Baudrillard e o fetiche do fetiche do fetiche . . . . . . . . . . 1627.5 O Cavalo de Tróia do cavalo de Tróia . . . . . . . . . . . . . 1737.6 Lenin e a Microsoft . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1787.7 Por Uma Pedagogia da autonomia . . . . . . . . . . . . . . . 183

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS 187

9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1939.1 A História de uma lógica revolucionária . . . . . . . . . . . . 2089.2 Diretrizes para uma crítica da economia política da comunicação215

10 FETICHE DO VALOR E LUTA DE CLASSES 22410.1 O Valor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22810.2 O Princípio da totalidade, a economia e o sujeito social . . . . 23310.3 A Esfinge . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23810.4 A Luta de classes hoje . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247

11 CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DA COMUNICAÇÃO 25611.1 Estudos Culturais na Sociedade do Espetáculo . . . . . . . . . 25811.2 A Economia e o gosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26711.3 Necessidade e consumo (ou a jibóia) . . . . . . . . . . . . . . 27211.4 Solvência e consumo cidadão . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28011.5 Representação, realidade e comunicação . . . . . . . . . . . 287

12 A DIMENSÃO POLÍTICA DO GOSTO 29812.1 A Dialética do gosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30212.2 Gosto, ideologia e inconsciência de classe . . . . . . . . . . . 30712.3 O Valor de uso, o gosto e a cultura . . . . . . . . . . . . . . . 31712.4 Baudrillard e o fetiche do fetiche do fetiche . . . . . . . . . . 32612.5 O Cavalo de Tróia do cavalo de Tróia . . . . . . . . . . . . . 33712.6 Lenin e a Microsoft . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34312.7 Por Uma Pedagogia da autonomia . . . . . . . . . . . . . . . 348

13 CONSIDERAÇÕES FINAIS 352

14 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 359

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Capítulo 1

Resumo

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A Comunicação e o Gosto 5

[...] nosso gosto [...] nada mais é senão a vantagem de descobrir comsutileza e presteza a medida de prazer que cada coisa deve dar às pessoas.(Montesquieu)1 Todos dizem que o gosto é anterior a todas as regras; poucossabem o porquê. O gosto, o bom gosto é tão velho quanto o mundo, o homeme a virtude; os séculos apenas o aperfeiçoaram. (Diderot)2

Nós, homens modernos, somos os herdeiros da vivissecção de consciên-cia e auto-sevícia de milênios: nisso temos nosso mais longo exercício, nossaaptidão artística talvez, em todo caso nosso refinamento, nossa perversão dogosto. (Nietzsche)3

O trabalho não é bom, ninguém pode duvidar / Trabalhar, só obrigado, porgosto ninguém vai lá (Noel Rosa e Ismael Silva)4

0 MONTESQUIEU, Charles de Secondar, Baron de. O Gosto. São Paulo: Iluminuras,2005, p. 12.

2 DIDEROT, “Peensées Détachées sur la peinture, la sculpture, l’architecture et la poésiepour servir de suite aux salons”, in Oeuvres complètes de Diderot, 12, Paris: Garnier Frères,librairies-Éditeurs, 1876, p. 76. Esta e as demais citações de originais em língua estrangeira aolongo desta tese foram traduzidas pelo seu autor.

3 NIETZSCHE, Obras incompletas, in Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.355.

4 Canção “O que será de mim”.

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Capítulo 2

Resumo

O objetivo desta pesquisa é demonstrar a contibuição que o conceito gosto –cuja origem, em diversas línguas, revela uma íntima relação entre as noçõessabor e saber – pode trazer para a compreensão e para o desmonte dos dis-positivos objetivos e subjetivos mediante os quais se opera a subordinação daspessoas ao capital, processo em meio ao qual a comunicação de massa de-sempenha um papel relevante. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisateórica – tecnicamente, de uma pesquisa bibliográfica –, que articula reflexõessobre o gosto nos terrenos da filosofia, da estética e da sociologia com o debatepolítico e epistemológico mais amplo em torno do marxismo, e com o debatepolítico e epistemológico mais específico no campo da comunicação. O re-sultado pretendido com o trabalho é a fundamentação teórica de um alertaveemente quanto à urgência de se criar alternativas para o potencial catas-trófico da situação social planetária. Neste sentido são apresentadas algumassugestões práticas, com destaque para uma nova educação, calcada nas noçõesde autonomia e sabor, oposta à instrumentalidade dominante.

Palavras-chave: gosto; marxismo; comunicação de massa; inconsciênciade classe; educação.

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Abstract

The goal of this research is to demonstrate the contribution that the concepttaste – which origin, in many languages, reveals an inner relation between thenotions flavour and knowledge – can bring to the understanding and the dis-assembling of the objective and subjective devices through which operates thesubordination of people to capital, a process within which mass-communicationperforms an important role. Methodologically, it is a theoretical research –technicaly, a bibliographicone –, that articulates reflexions about taste in thefields of philosophy, aesthetics and sociology with the political and epistemo-logical wider debate around marxism, and with the political and epistemologi-cal specific debate in the field of communication. The result of the work shouldbe the theoretical foundation of a vehement alert about the urgency to createalternatives for the catastrophic potencial of the contemporary global socialreality. Following this direction, there are a few practical proposals, speciallyfor a new education, based on the notions autonomy and flavour, opposed tothe dominant intrumentality.

Key-words: taste; marxism; mass-communication; class-unconsciousness;education.

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Capítulo 3

Introdução

É impossível controlar o modo estabelecido de reprodução so-cietária sem entender a relação entre os fatores objetivos e subje-tivos pelos quais o capital afirma seu domínio. (Mészáros)1

O conceito gosto, do qual pouco se tem falado ultimamente, merece maisatenção, a começar por sua importância prática vital. Que importância é essa?Ora, viver requer entre outras coisas a faculdade de o sujeito humano relacionar-se com o mundo selecionando coisas, idéias e pessoas, conforme sua pro-priedade, real ou aparente, de colaborarem para a satisfação de necessidades edesejos, e para a realização de projetos. Esta seleção envolve uma hierarquiza-ção, em parte consciente, em parte inconsciente, de valores éticos, utilitários,intelectuais e sensíveis.

A indústria cultural torna-se, cada vez mais, o agente hegemônico na dis-posição e no posicionamento dos elementos dessa seleção em meio ao universosociocultural atual: é a provedora de repertórios de práticas, idéias, objetos eatributos, verdadeiros ou falsificados. O gosto é a bússola da seleção.

Só que o gosto é um assunto muito complicado e cheio de contradições:gosta-se ou não de alimentos, lugares, coisas, pessoas, idéias e obras de arte,como se fossem entes da mesma natureza. Segundo Williams, Wordsworthse indignava com aqueles que “conversariam gravemente conosco sobre umgosto por poesia (...) como se fosse algo tão indiferente quanto um gosto por‘rope-dancing’, ou Frontiniac ou Sherry.” 2

1 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 933.2 WILLIAMS, Raymond. Key words, p. 313. Esta e todas as outras citações diretas,

referentes a originais em língua estrangeira, que constam no presente trabalho, foram traduzidaspelo seu autor.

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A Comunicação e o Gosto 9

Essa amplitude de aplicações do termo já é em si um tema para reflexão,cujo ponto de partida pode ser a hipótese de que “o conceito do gosto é origi-nariamente um conceito mais moral do que estético”, conforme sugere Gadamer.3

Gadamer atribui ao espanhol Balthasar Gracian a primeira reflexão maissistemática sobre o gosto, reflexão por sinal muito instigante intelectualmente.4

Nos termos de Gadamer:

Gracian parte do princípio de que o gosto, sensível, o mais an-imalesco e o mais íntimo de nossos sentidos, já contém o pontode partida da diferenciação que se realiza no julgamento espiri-tual das coisas. O diferenciar do gosto, que é, de uma forma maisimediata, o usufruir da receptividade e da rejeição, não é, pois,na verdade, um mero instinto, mas já mantém o meio termo entreo instinto e a liberdade espiritual. O que justamente caracterizao gosto é que ele mesmo, com relação a isso, ganha a distânciada escolha e do julgamento, o que pertence à exigência mais em-inente da vida. É assim que Gracian vê no gosto uma “espiritual-ização da animalidade” e indica, com razão, que a formação (cul-tura) procede não somente do espírito (ingenio) mas já também dogosto (gusto).5

Mas isto ainda não explica por que o conceito do gosto, usualmente asso-ciado a considerações de ordem estética, teria uma origem “moral”, a não serque possamos incluir um termo mediador entre a estética e a moral. Que termoseria este? Um termo que é ainda mais usualmente associado ao gosto do quea estética: a alimentação.

Bourdieu nos ajuda a esclarecer este ponto: “A relação com o alimento – anecessidade e o prazer primários [...] é a base de toda estetização da prática ede toda estética.” 6

Uma boa pista para compreendermos isto ainda melhor pode ser encon-trada na seguinte “notação” de Nietzsche, citado por Agamben, e que apontaem um sentido um tanto diferente daquele identificado por Gadamer ao co-mentar o pensamento de Gracian: “[...] a propósito da palavra grega sophos,

3 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Traços fundamentais de uma hermenêu-tica filosófica, p. 82.

4 Outro autor que afirma o mesmo é Luc Ferry. Cf. FERRY, Luc. Homo Aestheticus. Ainvenção do gosto na era democrática.

5 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Traços fundamentais de uma hermenêu-tica filosófica, p. 82.

6 BOURDIEU, Pierre. Distinction. A Social Critique of the Judgement of taste, p. 196.Este ponto será desenvolvido logo a seguir.

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10 Marco Schneider

‘sábio’: ‘Etimologicamente, pertence à família de sapio, degustar, sapiens, odegustante, saphes, perceptível ao gosto.” 7

Temos então que as noções de sabor e saber são mais íntimas do quesupúnhamos. Mas isso não é misterioso, se pensarmos bem, assim como ofato de um termo que supostamente teria sua origem na moral ter se desdo-brado para a estética e a alimentação, ou ainda que o que tenha ocorrido sejaexatamente o contrário, como é mais provável: da alimentação à moral, pas-sando pela estética, aqui entendida ainda não como a ciência ou teoria do belo,mas como a percepção da medida e do tipo de prazer que as coisas podem nosdespertar.

Seja qual for o sentido correto da evolução do termo, se a moral vem dealgum lugar terrestre, o Bem e o Mal só podem ter vindo do bom e do ruim,ainda que através de inumeráveis mediações. E o bom e o ruim são certa-mente resultantes do tato, do olfato e do paladar / gosto, antes de serem davisão e da audição, sentidos que se desenvolveram em uma etapa mais tardiana evolução da vida. Entretanto, é na alimentação, matriz do gosto, que seproduzem e reproduzem as condições necessárias para a ação dos outros sen-tidos – incluindo o tato, o mais primitivo de todos – e do resto das atividadeshumanas. Daí Gracian estar certo ao afirmar que o gosto “já contém o pontode partida da diferenciação que se realiza no julgamento espiritual das coisas.”8

Desses novos dados surge uma pergunta: por que se tornou “natural” que seconceba sabor e saber como níveis distintos e até antagônicos da experiênciavital? Por que se deu esta cisão, que carrega o gosto de uma significação tãonebulosa?

Outro conjunto de questões surge da constatação de que embora o gostovarie muito de pessoa para pessoa, há padrões que se repetem, no espaço eno tempo, nas classes sociais e nos gêneros, nas faixas etárias e nas idiossin-crasias, bem como transversalmente. O gosto tem assim um quê de singulare ao mesmo tempo universal. Por esta razão, Ferry chega mesmo a ponto dedimensionar a discussão em torno do gosto como filosoficamente essencial,

7 AGAMBEN, Giorgio. Gosto. In: Enciclopédia Einaudi. 25. Criatividade – Visão, p. 139.No mesmo artigo e na mesma página, Agamben ainda nos informa que, além do grego, “emlatim e nas línguas modernas que deles derivam, há um vocábulo etimológica e semanticamenteligado à esfera do gosto que designa o ato do conhecimento”. Por fim, na pág. 156, é men-cionado um tratado indiano de poética que aponta na mesma direção. Além disso, a palavrahebraica ta’am, traduzida por gosto, remete igualmente às noções de sabor e de significado.Poder-se-ia aventar a hipótese de uma constante antropológica?

8 A propósito, “na variável angolana da língua portuguesa, a aproximação é muito grande.Diz-se: ‘isso sabe a doce de coco’, ou seja, isso tem o sabor, o gosto do doce de coco”, conformeanotação de Baccega por ocasião da orientação do presente trabalho.

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A Comunicação e o Gosto 11

partindo do princípio metodológico de que a estética é um locus privilegiadopara a observação de uma característica central da modernidade, que ele chamade “subjetivação do mundo”: “[...] a estética é por excelência o campo den-tro do qual os problemas levantados pela subjetivação do mundo, caracterís-tica dos Tempos Modernos, podem ser observados, por assim dizer, em estadoquimicamente puro.” 9

Tal “subjetivação do mundo” teria sua primeira grande expressão no cog-ito cartesiano, isto é, no momento em que a verdade passa a depender nãomais da doutrina ou da autoridade, mas do juízo questionador de um indivíduoracional, de um sujeito, de uma subjetividade, que deve ser capaz de compat-ibilizar a particularidade de seu raciocínio singular com a universalidade darazão. Essa tensão dialética entre particular, singular e universal encontrariasua forma mais pura na questão do belo:

Se o objeto belo é concebido como puramente subjetivo, numparadoxo que mal ousamos formular, tanto se parece com umacontradição lógica, se apenas pode ser apreendido por essa facul-dade inapreensível que é o gosto, como seria possível obter con-senso sobre a beleza de uma obra de arte ou da natureza? No en-tanto, numerosos são os que amam as “belas paisagens”, as obrasde Homero e de Shakespeare, os pintores italianos...10

Ou seja, o problema do consenso em torno da beleza traz em seu bojoum outro mais abrangente, de ordem filosófica e política, centrado na tensãodialética entre a subjetividade e a objetividade, e entre o indivíduo e a coletivi-dade, que seria para Ferry “o problema central da modernidade”:

A investigação sobre os critérios do belo (do gosto), que car-acterizou toda estética moderna, mostra-se ainda mais essencial:pois é em seu nível que se coloca de modo mais difícil, mais deci-sivo, o problema central da modernidade em geral: como funda-mentar a verdade na subjetividade, a transcendência na imanên-cia? Em outros termos: como pensar o liame (social, é claro,mas não somente social) numa sociedade que pretende partir dosindivíduos para reconstruir o coletivo? (...) é no domínio da es-tética que se lê essa questão em estado puro, porque nela é maisforte a tensão entre o individual e o coletivo, entre o subjetivoe o objetivo. O belo é ao mesmo tempo o que nos reúne mais

9 FERRY, Luc. Homo Aestheticus. A invenção do gosto na era democrática, pp. 17-8.10 Idem ibidem, p. 43.

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12 Marco Schneider

facilmente e mais misteriosamente. Contrariamente a tudo quepodíamos esperar, o consenso em torno das grandes obras de arteé tão amplo quanto em qualquer outro domínio. Parodiando umargumento de Hume, poder-se-ia dizer que há menos desacordoquanto à grandeza de um Bach ou de um Shakespeare do que so-bre a validade da física de Einstein (para não mencionar a física deNewton). No entanto, estamos no próprio cerne da mais intensa,da mais confessa subjetividade.11

Retomando o gosto à luz dessas reflexões, cabe acrescentar que ele é tam-bém, e simultaneamente, espontâneo e cultivado, marca distintiva da nossa in-dividualidade e (hoje) efeito massificado da impregnante repetição midiática.Por essas razões, pode ser entendido como expressão da contradição entre o in-divíduo autônomo e o indivíduo autômato, ou melhor, entre as próprias noçõesde autonomia e automatismo, ou ainda entre o caráter automático da autonomiaindividual, que a nega, e o caráter autônomo do automatismo, que o disfarçaprecisamente quando o fortalece – na aparente liberdade do gosto dos con-sumidores – que “não se discute”, dada a sua suposta legitimidade intrínseca,natural.

A propósito desse suposto caráter inato dos gostos, Bourdieu denuncia,com ironia, o que ele tem de ideológico:

A ideologia do gosto inato deve sua plausibilidade e eficáciaao fato de que, como todas as estratégias geradas na luta de classesdo dia a dia, ela naturaliza diferenças reais, convertendo as difer-enças no modo de aquisição da cultura em diferenças da natureza;ela só reconhece como legítima a relação com a cultura (ou a lin-guagem) que menos se aproxima das marcas visíveis de sua gê-nese, que não tenha nada de “acadêmico” [...], mas que manifeste,por sua desenvoltura e naturalidade, que cultura verdadeira é na-tureza – um novo mistério da imaculada concepção.12

O gosto, portanto, é necessariamente resultado de cultivo, de educação, deum entre inúmeros modos possíveis “de aquisição da cultura”. Escamoteareste fato é pressupor que, paralelamente ao que se considera bom ou maugosto, haveria pessoas naturalmente superiores e inferiores,13 o que por si só

11 Idem ibidem, p. 45.12 BOURDIEU, Pierre. Distinction. A Social Critique of the Judgement of taste, p.68.13 “Ofende mais o nosso orgulho ataques aos nossos gostos do que a nossas opiniões.” La

Rochefoucauld, apud Bourdieu, Distinction, p. 257.

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legitimaria a dominação de classe. Outro efeito ideológico dessa mistificaçãoé que serve de justificação pseudodemocrática para que se negue automatica-mente legitimidade a qualquer crítica negativa dirigida a um produto que vendamuito, como se a escolha de amplos contingentes da população por um filmeou uma canção fosse decisivo quanto ao seu valor estético, dado que a escolhaseria natural, espontânea, e não o resultado da formação do público associadaà velha estratégia da repetição, além de outros fatores motivacionais envolvi-dos.14 Assim, qualquer crítica a determinado produto midiático de grande pop-ularidade soa como arrogante, elitista, antipopular. Isso pode, de fato, ocorrer,mas não necessariamente.

Isso tudo merece investigação, a começar pela própria forma como estadeverá ser realizada – e o capítulo 2 da presente pesquisa trata precisamentede questões metodológicas, com ênfase em uma reflexão sobre epistemologia,ética, dialética e marxismo. No capítulo 3, a partir de uma discussão cen-tral do marxismo contemporâneo – a integração ou não da classe operária e oproblema da estratégia revolucionária –, é assumida uma posição teórica quedeve servir de fundamento para uma abordagem marxista atual nos estudosem comunicação. Essa abordagem será desenvolvida no quarto capítulo, empolêmica com algumas tendências teóricas em voga; no capítulo 5, busca-sedesvelar em detalhe a complexidade do gosto e de seu papel politicamente de-cisivo, e no último, por fim, a comunicação é articulada à educação em termoscrítico-propositivos.

Em um nível menos abstrato, trata-se de estudar a dimensão política dogosto num tempo em que a comunicação adquire uma capilaridade social in-édita, seja no sentido de contribuir para a sobrevida do capitalismo tardio,seja para a elaboração de alternativas “sociometabólicas” (Mészáros) ao cap-ital, que não cresce e se concentra cada vez mais – com todas as conhecidasconseqüências destrutivas implicadas no processo – porque as pessoas gostamdaquilo que ele faz produzir; as pessoas gostam daquilo que ele faz produzirporque 1) gostar, como foi sucintamente demonstrado, é necessário à vida, éinevitável; 2) só se pode gostar de algo que existe, ainda que em sonho; 3) sóexiste o que é produzido; 4) sob o comando do capital, que está em toda parte,só se produz o que possa estar direta ou indiretamente relacionado com seupróprio crescimento e concentração (mesmo os sonhos), o que significa cadavez mais lidar com escalas exorbitantes. Deste modo, o gosto das pessoas, oumelhor, as pessoas inteiras tornam-se reféns dessas escalas exorbitantes de pro-

14 Por outro lado, a singularidade de cada indivíduo deve exercer algum papel na formaçãodos gostos. Esta é, por exemplo, a posição de Hume. Cf. HUME, David. Of the Standardof taste. Documento eletrônico: http://www.utm.edu/research/hume/wri/essays/standard.htmAcesso em: mai 2005.

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14 Marco Schneider

dução e venda lucrativa. Tornam-se triplamente reféns: enquanto produtoras,enquanto consumidoras e enquanto excluídas do processo.

Alguém poderia levantar aqui uma velha objeção ao que foi dito acima,tirando da cartola o “poder” do consumidor, sua liberdade de escolha etc. –passe de mágica que desconsidera o fato de determinada demanda só influ-enciar a qualidade e a quantidade de determinada oferta na medida em quefor solvente – e a solvência não depende das disposições psicoculturais doconsumidor – e que permitir ao capital investido neste ciclo particular de pro-dução e circulação expandir-se, ou seja, se os compradores devolverem aosprodutores e vendedores, no tempo mais curto possível, mais dinheiro do queaquele investido neste ciclo (ou em outro negócio), permitindo a realizaçãomonetária da parte da mais-valia a que se chama lucro,15 isto é, reconvertendoem dinheiro o capital – constante e variável16 – investido, acrescido do valormonetário correspondente à parte não paga do salário dos trabalhadores queo valor do produto contém. Em outras palavras, haja a demanda que houver,só será atendida se atender a esse imperativo. Assim, muitas coisas não serãoproduzidas, não devido a uma ausência de demanda ou a uma impossibilidadetécnica, de idéias, sentimentos ou recursos produtivos, mas ao fato de não pos-sibilitarem a conversão ótima de capital em mais capital. Ao longo do tempo,é somente o conjunto de produtos e serviços que atende a esse imperativo quese torna a única referência possível da demanda. O mesmo, é claro, vale paraa produção de bens simbólicos em escala industrial, que é o que nos interessaem particular.

Sobre esta noção, “bem simbólico”, tão importante para os estudos de co-municação, cabe aqui questionarmos sua “transparência”: a antropologia en-sina que todos os bens são simbólicos, sejam ou não “materiais”, pois só assimsão bens. Mas a verdade dessa afirmação traz o risco de indiferenciar uma sériede características distintivas dos bens, como seu caráter vital ou acessório – ali-

15 A mais valia consiste basicamente no fato de o valor do salário conter apenas uma partedo valor da força de trabalho transferida para os produtos, sendo a parte restante, não paga aostrabalhadores, a mais valia. O lucro é o resultado da subtração de parte da mais valia paradespesas com juros sobre empréstimos, impostos, publicidade etc..

16 O capital constante divide-se em fixo e circulante. O primeiro diz respeito às instalaçõesindustriais; o segundo, à maquinaria, às ferramentas (instrumentos de trabalho) e à matériaprima (objetos de trabalho) empregada. Esta última é totalmente consumida no processo pro-dutivo, se incorporando na totalidade ao produto, de forma transformada. Os três primeiroselementos do capital constante (fixo e circulante) são apenas parcialmente consumidos em cadaciclo produtivo de modo diferenciado. Já capital variável corresponde à força de trabalho (naforma de energia humana) e aos salários (na forma monetária) trocados por dispêndio de forçade trabalho.

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mentos ou artigos de luxo, para utilizar um exemplo extremo –,17 ou ainda suaspropriedades materiais e os diversos modos, mais diretos ou indiretos, comoessas propriedades contribuem para fazer de algo um bem. Em outras palavras,sem desprezar a importante contribuição da antropologia para o nosso estudo,que consiste, resumidamente, em suas inúmeras e convincentes demonstraçõesdo caráter simbólico (ou “cultural”) de qualquer bem,18 propomos a seguintedistinção conceitual: bens materiais são aqueles cuja principal utilidade residediretamente, imediatamente, primariamente em sua própria materialidade, oumelhor, na propriedade de esta materialidade em si mesma suprir algum tipo denecessidade ou desejo, mesmo que abstraídas as suas funções simbólicas – ex:roupa / vestir; alimento / alimentar; adorno / enfeitar; tinta / colorir etc. Queessas necessidades ou desejos sejam culturalmente mediados em nada alteraessa relação imediata entre a materialidade desses bens e sua utilidade. Benssimbólicos, por sua vez, são aqueles bens cuja propriedade de suprir algumtipo de necessidade ou desejo não reside diretamente em sua materialidade,mas é por ela mediada: bandeira branca (tecido pintado de branco preso auma haste de madeira) / declaração de paz; véu negro cobrindo a face de umamulher (tecido pintado de preto) / demonstração de luto; livro (papel e tinta) /leitura. Por economia, analisemos somente o último exemplo: a história lidanão é propriedade do papel nem da tinta, embora seja mediada por essas sub-stâncias. Aqui, abstraída a função simbólica do “bem”, a materialidade queresta nem ao menos é útil.19

Tendo isto em conta, e considerando a complexidade da produção “sim-bólica”, bem como sua centralidade em meio à totalidade das atividades econômi-cas (e extra-econômicas) na atualidade, incluindo suas especificidades tec-

17 A este propósito, Marx define “produto de luxo” como “todo aquele que não é necessárioà reprodução da força de trabalho”. Ver MARX, Karl. O Capital. Livro III, p. 118. Essanoção de “necessidade”, contudo, não é essencialista, mas histórica: “Lembremos que estaquantidade de valor (o salário) necessário para a reprodução da força de trabalho não está apenasdeterminado pelas necessidades [biológicas] (...), mas também por um mínimo histórico (Marxassinalava: os operários ingleses precisam de cerveja e os operários franceses de vinho) e,portanto, historicamente variável. Lembremos também que esse mínimo é duplamente históricoenquanto não está definido pelas necessidades históricas da classe operária reconhecidas pelaclasse capitalista, mas por necessidades históricas impostas pela luta da classe operária (duplaluta de classes: contra o aumento da jornada de trabalho e contra a diminuição dos salários).”Cf. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado, pp. 56, 57.

18 Ver, por exemplo, Lévi-Strauss (1992 e 1996), Geertz (1978) e Sahlins (2003).19 Temos ainda casos intermediários ou híbridos, como o caviar: materialmente, ovas de

esturjão, que servem, não necessariamente nessa ordem, como alimentação, como fruição gas-tronômica e como signo de status; roupa de grife – vestimenta, “elegância” e signo de status etc.Tendemos a crer que o que predomina nesses casos é a função simbólica, mas isso é somenteuma hipótese.

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nológicas, administrativas, políticas e sociais, entenderemos a base concretado rico conceito “infotelecomunicação”, de Dênis do Moraes:

Podemos unir os prefixos dos três setores convergentes (in-formática, telecomunicações e comunicação) em uma só palavra,que designa a conjunção de poderes estratégicos relacionados aomacrocampo multimídia: infotelecomunicação. Ela comporta asreciprocidades e interdependências entre os suportes técnicos, bemcomo as ações coordenadas para a concorrência sem fronteiras.O paradigma infotelecomunicacional constitui vetor decisivo paraa expansão transnacional dos impérios mediáticos, tendo por es-copo a comercialização de uma diversidade de produtos e serviçoscom tecnologias avançadas. Os conglomerados reconfiguram-secomo arquipélagos transcontinentais, cujos parâmetros são a pro-dutividade, a competitividade, a lucratividade e a racionalidadegerencial. Para tanto, buscam conferir escala a seus produtos, porintermédio de alianças e parcerias entre si e com grupos region-ais; absorvem firmas menores ou concorrentes, diversificam in-vestimentos em áreas conexas. O cenário daí resultante não pode-ria ser outro: uma brutal concentração de atividades nas mãos depoucas companhias (quase todas baseadas nos Estados Unidos daAmérica) e uma aglomeração de patrimônios e ativos sem prece-dentes.20

Originalmente, as tecnologias e empresas de informática lidavam com oprocessamento de dados, ou signos; as de telecomunicações, com a transmis-são destes dados ou signos à distância; e as de comunicações, as indústriasculturais, com a produção dos dados, ou signos, a serem comunicados. Hoje,graças à revolução digital, esses dispositivos tecnológicos, práticas produtivase estruturas empresariais até então distintos se fundiram em um único e gigan-tesco complexo tecno-empresarial, cuja centralidade econômica e ideológicasupera a de seus elementos constitutivos, quando tomados isoladamente.21

Podemos agora, em uma primeira aproximação, formular o objetivo geraldesta pesquisa como sendo demonstrar a importância teórica e política do es-tudo do conceito gosto para a compreensão e para uma eventual superação dasubordinação das pessoas ao capital, processo em meio ao qual as infoteleco-municações (doravante ITCs) desempenham um papel destacado. O papel das

20 MORAES, Dênis de. A Comunicação sob domínio dos impérios multimídias. In: DOW-BOR, Ladislau et al.: Desafios da comunicação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, pp. 13-4.

21 Sobre este assunto, ver também RAMONET, Ignacio. O Poder midiático. In: MORAES,Dênis de (org.). Por uma outra comunicação.

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ITCs neste processo é assim o objeto da pesquisa, cujo estudo articula reflexõesmais gerais em torno do marxismo com outras mais específicas dos subcam-pos da economia política da comunicação e da epistemologia da comunicação,partindo de uma associação do gosto – encruzilhada onde se encontram e sedebatem a sensibilidade e a razão dos sujeitos, divididos no universo maior dopatrimônio econômico e simbólico comum – com a categoria econômica valorde uso, isto é, de um entendimento do gosto como expressão e medida dovalor de uso dos bens materiais e simbólicos (ainda que abstraído o seu carátermercantil), definível unicamente a partir de sua propriedade de satisfazer ne-cessidades humanas, “do estômago ou da fantasia”,22 expressão gradualmentesubordinada, ao longo da conquista da hegemonia global pelo capital, à se-gunda propriedade dos bens quando convertidos em mercadorias, seu valor detroca.

Tal conversão gera uma outra, a do gosto, em substrato sensível da ideolo-gia23 hegemônica, aquela que em última análise legitima o sistema do trabalhoassalariado voltado para a produção e a troca de mercadorias, que é a base dareprodução ampliada do capital. Nas palavras de Gramsci, “(...) uma econo-mia de troca modifica também os hábitos fisiológicos e a escala psicológicados gostos e dos graus finais de utilidade, que, desta forma, surgem como ‘su-perestruturas’ e não como dados econômicos primários (...)”.24

A mais grave conseqüência desse processo é a reificação e a internalizaçãoda dominação de classe por parte dos trabalhadores, devido ao afastamentoentre a produção material e seu controle, conforme demonstra Mészáros aocomparar o capitalismo com modos de produção anteriores:

As unidades básicas das formas antigas de controle sociometabólicoeram caracterizadas por um grau elevado de auto-suficiência norelacionamento entre a produção material e seu controle. [...] Aose livrar das restrições subjetivas e objetivas da auto-suficiência, o

22 “A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas pro-priedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenhamdo estômago ou da fantasia.” (MARX, Karl. O Capital. Livro I, v. 1, p. 41).

23 Dada a variedade de significados que a noção de “ideologia” adquiriu através dos tem-pos, sua utilização deve ser feita com cautela, tendo-se o cuidado de discernir o que estamosquerendo dizer em cada caso. Neste momento, empregamos o termo no sentido neutro, nãovalorativo, de “visão de mundo”. Löwy (1985), por exemplo, em uma formulação original,distingue ideologias, enquanto visões sociais de mundo conservadoras, de utopias, enquantovisões sociais de mundo subversivas, sendo ambas produzidas pelas classes sociais (p. 29).O problema da distinção é desconsiderar a existência de utopias conservadoras. Ou estas mu-dariam de nome e se tornariam ideologias? Seja como for, esse é só um exemplo do caráterpolissêmico do conceito, tema que retomaremos no local apropriado.

24 GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da história, p. 308.

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capital se transforma no mais dinâmico e no mais competente ex-trator do trabalho excedente em toda a história. Além do mais, asrestrições subjetivas e objetivas da auto-suficiência são eliminadasde uma forma inteiramente reificada, com todas as mistificaçõesinerentes à noção de “trabalho livre contratual”. Ao contrário daescravidão e da servidão, esta noção aparentemente absolve o cap-ital do peso da dominação forçada, já que a “escravidão assalari-ada” é internalizada pelos sujeitos trabalhadores e não tem deser imposta e constantemente reimposta externamente a eles soba forma de dominação política, a não ser em situações de gravecrise.25

Em outras palavras, quando não se trata de violência pura e simples, a“escravidão assalariada” é “internalizada’ pelos sujeitos trabalhadores”. Comoisto se dá? Menos através do convencimento racional do que da captura dogosto, mediante a qual a ordem do capital se inscreve no corpo e na mente,na sensibilidade e no juízo, no estômago e na fantasia das pessoas.26 Hoje, asITCs ocupam uma posição privilegiada nesta captura. Porém, como a ordemdo capital não está isenta de conflitos e contradições – muito pelo contrário –,o gosto pode ao mesmo tempo tornar-se o substrato sensível de práxis contra-hegemônicas. E as ITCs podem, em tese, ser instrumentalizadas nesse sentido.

Se essas idéias, que formam o conjunto central de hipóteses da presentepesquisa, possuem fundamento, é por si só evidente a importância das questõessuscitadas para os estudos de comunicação, na medida em que demandamsoluções teóricas e práticas vitais, e porque a busca dessas soluções deve con-duzir a um exame crítico do instrumental epistemológico, teórico e metodológicodisponível, se não em sua totalidade, o que não é tecnicamente possível emuma única tese, ao menos de parte relevante.

25 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, 2002, pp. 101-2.26 Isto não é o mesmo que identificar a captura do gosto com a captura do desejo, através da

sedução, como se o convencimento racional não desempenhasse aí nenhuma função. Por issofrisamos que a inscrição da ordem do capital no corpo e na mente se dá através da captura dessefugidio ponto de tangência entre sensibilidade e razão, que é o gosto, o qual, por sua vez, éelemento mediador entre o desejo e seu objeto, tópico que será desenvolvido mais adiante.

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Capítulo 4

FUNDAMENTAÇÃOMETODOLÓGICA

O ecletismo é uma autofrustração, não porque haja somenteuma direção a percorrer com proveito, mas porque há muitas: énecessário escolher. (Geertz)1

O esforço de se desenvolver um questionamento cientificamente rigorosoacerca do papel das ITCs na subordinação das pessoas ao capital mediantea captura do gosto, bem como do potencial emancipatório do gosto e daspróprias ITCs, só faz algum sentido se admitirmos – em caráter hipotético,por ora – que o gosto é um princípio norteador das atividades humanas emgeral, conforme exposto sumariamente acima. Nietzsche, que ao que tudo in-dica teria concordado com isso, chegou mesmo a escrever: “E vós me dizeis,amigos, que de gostos e sabores não se discute? Mas a vida inteira é umadiscussão de gostos e sabores! O gosto: é, ao mesmo tempo, peso, balança epesador; e ai de todo vivente que quisesse viver sem discutir de peso e balançae pesadores!” 2

Mas para discutir o gosto, precisamos primeiro conhecer sua natureza, na-tureza eminentemente cultural, isto é, social e histórica; e precisamos elabo-rar uma conceituação que permita pensar o gosto em sua complexidade nãoaparente. Essa conceituação, todavia, não deve ser formulada no início da re-flexão, mas somente em sua conclusão. Parafraseando o que nos diz Bakhtin,sobre suas pesquisas em lingüística:

1 GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 15.2 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1986, p. 129.

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[...] o que é a linguagem? O que é a palavra? Não se trata,evidentemente, de formular perfeitas definições desses conceitosde base. Uma tal formulação só poderia mesmo ser realizada nofim da pesquisa (supondo-se que uma definição científica possa al-guma vez ser considerada como perfeita). No início de nosso itin-erário, convém propor, ao invés de definições, diretrizes metodológ-icas: é indispensável, antes de mais nada, conquistar o objeto realde nossa pesquisa, é indispensável isolá-lo de seu contexto e de-limitar previamente suas fronteiras.3

Tendo isto em conta, a diretriz metodológica que orienta a busca, ou mel-hor, a produção de um conhecimento do gosto, esse “conceito de base” dapresente pesquisa, parte da identificação do papel central das ITCs em suaconstituição.

Ainda dialogando com as reflexões metodológicas de Bakhtin,

Algumas vezes é extremamente importante expor um fenô-meno bem conhecido e aparentemente bem estudado a uma luznova, reformulando-o como problema, isto é, iluminando novosaspectos dele através de uma série de questões bem orientadas.Isso é particularmente útil nos domínios em que a pesquisa desabasob o peso de uma massa de descrições e de classificações metic-ulosas e detalhadas, mas destituídas de qualquer orientação. Umaproblematização renovada pode colocar em evidência um casoaparentemente limitado e de interesse secundário como um fenô-meno cuja importância é fundamental para todo o campo de es-tudo. Pode-se assim, graças a um problema bem colocado, trazerà luz um potencial metodológico oculto.4

De qual “fenômeno” se trata aqui? Do papel educacional das ITCs, ou,empregando a terminologia de Bourdieu e Passeron, de sua ação pedagógica,enquanto agente formador de habitus, isto é, de “um sistema de esquemas depercepção, de pensamento, de apreciação e de ação [...]”.5

3 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem, p. 69.4 Idem ibidem, p. 142.5 “Habitus” é um conceito denso de Bourdieu, que possui mais do que uma definição

possível. A que foi reproduzida acima está em A Reprodução (Cf. BOURDIEU, Pierre,PASSERON, Claude. A Reprodução, p. 47) e é nesse sentido que o termo é empregado aolongo do presente trabalho. Esse esclarecimento é necessário pois, por exemplo, em uma pas-sagem de outra obra, Bourdieu define “as capacidades que definem o habitus” nos seguintestermos: “É na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, a capacidade de pro-

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A ação pedagógica em questão possui duas peculiaridades que merecemdestaque: 1) é efetuada insidiosamente em meio a práticas que não se mostramcomo pedagógicas, práticas na maioria das vezes aparentemente livres e in-ocentes, nas diversas modalidades de consumo infotelecomunicacional; 2) ailusão de liberdade dos praticantes oculta o caráter fundamentalmente opres-sor da ação pedagógica que se efetua nessas práticas, ilusão tornada verossímilmediante a captura do gosto dos praticantes, como veremos a seguir.

4.1 Uma Pedagogia da opressão

Em A Reprodução, Bourdieu e Passeron questionam a centralidade da indústriacultural na formação do habitus, atribuindo primeiro à família e em seguida àescola uma posição de antecedência determinante naquilo que pouco depoisviria a ser chamado de recepção midiática:

Constata-se [...] a ingenuidade que há em colocar o problemada eficiência diferencial das diferentes instâncias de violência sim-bólica (por exemplo, família, escola, meios de comunicação mod-ernos etc.) abstraindo, como os servidores do culto de toda aautoridade da Escola ou os profetas da onipotência das “comu-nicações de massa”, o fato da irreversibilidade dos processos deaprendizagem, que faz com que o habitus adquirido na família es-teja no princípio da recepção e da assimilação da mensagem esco-lar, e que o hábito adquirido na escola esteja no princípio do nívelde recepção e do grau de assimilação das mensagens produzidas edifundidas pela indústria cultural [...].6

Mais ou menos na mesma época, Marcuse – que poderia ter sido um pos-sível alvo do tratamento irônico empregado por Bourdieu e Passeron em re-lação aos “profetas da onipotência das comunicações de massa”, devido à suacrítica implacável à indústria cultural enquanto fazedora de um “homem uni-dimensional” – dizia porém mais ou menos o mesmo que eles sobre a nãocentralidade da mídia enquanto agente de “controle social”:

duzir práticas e obras classificáveis, e a capacidade de diferenciar e avaliar essas práticas eprodutos (gosto), que o mundo social representado, isto é, o espaço do estilo de vida, é consti-tuído.” BOURDIEU, Pierre. Distinction, p. 170. Não é exatamente o mesmo que a definiçãoanterior. Além disso, a título de curiosidade, no modelo da pág. seguinte (171), Bourdieu defineo gosto, entre aspas, como “sistema de esquemas de percepção e apreciação”. Fica a questão: ogosto é uma capacidade e ao mesmo tempo um sistema?

6 BOURDIEU, Pierre, PASSERON, Claude. A Reprodução, p. 54.

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A nossa insistência na profundidade e eficácia desses con-troles é passível da objeção de que superestimamos grandementeo poder de doutrinação dos “meios de informação” e de que aspessoas sentiriam e satisfariam por si as necessidades que lhessão agora impostas. A objeção foge ao âmago da questão. O pre-condicionamento não começa com a produção em massa de rádioe televisão e com a centralização de seu controle. As criaturasentram nessa fase já sendo de há muito receptáculos precondi-cionados [...]7

O que mais importa reter aqui da posição do autor alemão é o fato deMarcuse, sem reproduzir a caricatura dos que pensam a indústria cultural emtermos de “onipotência”, enfatizar e denunciar com veemência a função ide-ológica da “igualação das distinções de classe” operada pelos “meios de infor-mação”:

[...] a diferença decisiva está no aplanamento do contraste (ouconflito) entre as necessidades dadas e as possíveis, entre as satis-feitas e as insatisfeitas. Aí, a chamada igualação das distinções declasse revela sua função ideológica. Se o trabalhador e seu patrãoassistem ao mesmo programa de televisão e visitam os mesmospontos pitorescos, se a datilógrafa se apresenta tão atraentementepintada quanto a filha do patrão, se o negro possui um Cadillac, setodos lêem o mesmo jornal, essa assimilação não indica o desa-parecimento de classes, mas a extensão com que as necessidades esatisfações que servem à preservação do Estabelecimento é com-partilhada pela população subjacente.8

É oportuno retomar essa rica reflexão de Marcuse, resgatando o que elateria de válido para os dias de hoje, ou seja, a descrição correta e a denúncianecessária de um modo sutil e insidioso de controle social, que opera sob aaparência da mais ampla liberdade.9 Mais importante do que isso, contudo, éo fato de ele identificar a especificidade decisiva da ação pedagógica opressora

7 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da sociedade industrial; o homem unidimensional,pp. 28-9.

8 Idem ibidem.9 Além disso, ainda que a expressão “receptáculos precondicionados” seja totalmente in-

aceitável à luz do que de melhor se produziu no campo dos estudos de recepção, para nãomencionar a questionável legitimidade científica da noção de condicionamento, ao dizer que aspessoas só se expõem aos meios quando já estão “precondicionadas”, Marcuse corrobora a tesede Bourdieu e Passeron sobre a não centralidade da IC na formação dos habitus.

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da IC10, a saber, no sentido de efetuar no imaginário social um “aplanamentodo contraste (ou conflito) entre as necessidades dadas e as possíveis, entre assatisfeitas e as insatisfeitas”, demonstrando que é aí que “a chamada igualaçãodas distinções de classe revela sua função ideológica”, na “extensão com queas necessidades e satisfações que servem à preservação do Estabelecimentoé compartilhada pela população subjacente.” Em outros termos, trata-se dacaptura do gosto das classes dominadas pelas classes dominantes.

Esse último ponto nos remete à polêmica tese “frankfurtiana” da inte-gração da classe operária, (e do papel supostamente decisivo e 100% eficazdos “meios de informação” ou da “IC” nesse sentido), enfaticamente denun-ciada por Mészáros como “um truísmo ou um absurdo”.11 O argumento deMészáros parte do princípio de que, sob o regime do capital, uma integraçãoparcial da classe operária é inevitável, pois tanto o capital necessita de umadeterminada quantidade de trabalho para existir, quanto os trabalhadores sópodem se reproduzir na condição de trabalhadores. Ao mesmo tempo, umaintegração plena do proletariado é tecnicamente impraticável, dado o antago-nismo estrutural entre capital e trabalho:

Dizer [...] que a classe trabalhadora é “integrada” é um truísmoou um absurdo. É um truísmo porque a classe trabalhadora é nec-essariamente “integrada”, visto que não pode deixar de ser parteessencial da sociedade na qual, em qualquer época (e lugar) eladeve se reproduzir ao mesmo tempo em que produz e reproduz ascondições de existência da referida sociedade como um todo. E éum absurdo porque a categoria geral do trabalho, enquanto opostoe antagonista estrutural do capital, refere-se à totalidade do tra-balho, do qual só partes específicas podem ser eventualmente “in-tegradas” em uma sociedade particular em um determinado pontoda história.12

10 Não utilizamos nesse momento o conceito infotelecomunicações simplesmente pelo fatode ter sido criado bem depois de Bourdieu, Passeron ou Marcuse terem desenvolvido as idéiasacima expostas. A tese aqui defendida postula que as infotelecomunicações, que envolveme remodelam as indústrias culturais convencionais, aprofundam e intensificam o processo doque denominamos captura do gosto, anteriormente operado, em escala comparativamente maismodesta, pelas últimas.

11 Em O Poder da Ideologia e em outras obras, Mészáros denuncia o equívoco de Adorno,Horkheimer, Marcuse e Habermas no sentido de terem generalizado no tempo e no espaçoum fenômeno – “a integração da classe operária” – que seria limitado no tempo – ao curtoperíodo de bonança capitalista do pós-guerra (dos anos 50 aos anos 70) – e no espaço – EuropaOcidental, EUA, Japão e Austrália.

12 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 235. Acrescentamos que a “não-

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Não obstante, a eficácia relativa da IC no sentido de contribuir para uma in-tegração expressiva – ainda que parcial e datada – das massas é inquestionável,de modo que a pergunta que se poderia fazer hoje à argumentação de Bour-dieu e Passeron, na medida em que subestimam o papel das “comunicações demassa” em relação à prioridade, ou antecedência, da família e, em seguida, daescola na formação do habitus, é: o mesmo vale para uma situação na qual aIC, convertida em segmento das ITCs, está mais presente e começa a atuarmais cedo na história de vida de cada um do que nos anos 1960 e 70?

A resposta é negativa, pois a influência das ITCs sobre a família e so-bre a escola se torna decisiva, convertendo-se estas últimas, gradualmente, emelos de transmissão secundários da ação pedagógica opressora do capital.13

Esta, por sua vez, é primariamente mediada pelas ITCs, cuja razão de fundoé contribuir nos planos ideológico, psíquico (afetivo, emocional) e econômicopara a reprodução ampliada do capital, seja diretamente, mediante o estímuloao consumo em geral, e a venda de bens simbólicos e suportes para o seuconsumo, seja indiretamente, enquanto “aparelho ideológico” e formador dosgostos. Vivemos, enfim, em uma época na qual as sociedades humanas, glob-almente interconectadas, têm suas atividades vitais – econômicas, científicas,educacionais, militares, lúdicas etc. – visceralmente vinculadas às ITCs, pre-sentes virtualmente em todas as partes, na forma de informação, espetáculo,publicidade, jogos, sistemas de armazenamento, busca e transmissão de dadosetc.

Nesse caso, poderíamos encarar a ação pedagógica opressora do capi-tal, primariamente mediada pelas ITCs, do mesmo modo como Bourdieu ePasseron se referem à ação pedagógica “anônima e difusa” que era respon-sável pela “formação do habitus cristão na Idade-Média”, cuja eficácia se de-via sobretudo ao fato de os sujeitos envolvidos não perceberem o que estavaacontecendo, pois o trabalho pedagógico aí não se mostrava como tal à suaconsciência:

Um TP [trabalho pedagógico] é tanto mais tradicional quantoele é (1) menos delimitado como prática específica e autônomae (2) quanto é exercido por instâncias nas funções mais totais eindiferenciadas, isto é, quando se reduz mais completamente a

integração” diria respeito, por um lado, ao desemprego estrutural e conjuntural, variáveis emintensidade no tempo e no espaço, mas essencialmente inevitáveis sob o capitalismo, e, poroutro, à não aceitação da “escravidão assalariada”, de forma menos ou mais consciente e ativa,por parte da classe operária.

13 Ou não é verdade que, no fundo, família e escola vêm se convertendo cada vez mais emagências de formação para o mercado de trabalho?

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um processo de familiarização no qual o mestre transmite incon-scientemente pela conduta exemplar princípios que ele não dom-ina conscientemente a um receptor que os interioriza inconscien-temente. Ao termo, como se vê nas sociedades tradicionais, todo ogrupo e todo o meio ambiente como sistema das condições materi-ais de existências, enquanto são dotados de significação simbólicaque lhes confere um poder de imposição, exercem sem agentes es-pecializados nem momentos especificados uma AP [ação pedagóg-ica] anônima e difusa (por exemplo, formação do habitus cristão,na Idade Média, através do calendário das festas como catecismo ea organização do espaço cotidiano ou os objetos simbólicos comoo livro de piedade).14

Ou seja, dada a magnitude e capilaridade social das ITCs, poderíamos hojefalar em uma ação pedagógica opressora “anônima e difusa”, responsável pelaformação de gostos que contribuem, direta ou indiretamente, para a repro-dução contínua da subordinação do trabalho ao capital, de modo a viabilizara reprodução ampliada do último. Essa magnitude e essa capilaridade são tãoabrangentes que Canelas Rubim chega a afirmar que vivemos em uma “IdadeMídia”, fazendo um trocadilho com a noção historiográfica de “Idade Média”.Para demonstrar a verossimilhança da expressão, Canelas Rubim enumera asseguintes variáveis, em uma ordem não hierárquica, refletindo sobre as mes-mas com o objetivo de indicar os requisitos que permitiriam “definir a so-ciedade como estruturada e ambientada pela comunicação”, a ponto de “tornarpossível a caracterização de uma sociabilidade como Idade Mídia”:

1. Expansão quantitativa da comunicação, principalmente em sua modal-idade midiatizada [...] facilmente constatada através de dados sobrenúmeros dos meios disponíveis, tais como: quantidade das tiragens eaudiências, quantidade e dimensão de redes em operação etc; 2. Diver-sidade e novidade das modalidades de mídias [...] e da história recentede sua proliferação e diversificação; 3. Papel desempenhado pela comu-nicação midiatizada como modo (crescente e até majoritário) de expe-rienciar e conhecer a vida [...], retido através de dispositivos e procedi-mentos, qualitativos e quantitativos, a exemplo do número de horas queos meios ocupam no cotidiano das pessoas; 4. Presença e abrangênciadas culturas midiáticas como circuito cultural, o qual organiza e difunde

14 Ibid, p. 58. AP [ação pedagógica] distingue-se de TP [trabalho pedagógico] na medidaem que a primeira tem um sentido mais geral e abstrato, enquanto o último refere-se a práticasespecíficas.

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socialmente comportamentos, percepções, sentimentos, idéias, valoresetc.; a dominância e sobrepujamento da cultura midiatizada sobre osoutros circuitos culturais existentes, a exemplo do escolar-universitário,do popular etc.;15 5. Ressonâncias sociais da comunicação mediatizadasobre a produção da significação (intelectiva) e da sensibilidade (afe-tiva), sociais e individuais;16 6. Prevalência da mídia como esfera depublicização (hegemônica) [...] dentre os diferenciados “espaços públi-cos” socialmente existentes, articulados e concorrentes. Tal prevalênciapode ser constatada através de estudos acerca das modalidades de publi-cização e suas eficácias; 7. Mutações espaciais e temporais provocadaspelas redes midiáticas, na perspectiva de forjar uma vida planetária e emtempo real; 8. Aumento com os gastos com o item comunicações noorçamento doméstico [...]; 9. Crescimento vertiginoso dos setores volta-dos para a produção, circulação, difusão e consumo de bens simbólicos;e 10. Ampliação (percentual) dos trabalhadores da informação e da pro-dução simbólica no conjunto da população economicamente ativa.17

A presente pesquisa não vai tão longe a ponto de defender a tese de quevivemos em uma “sociedade estruturada e ambientada pela mídia”, mas a fac-ticidade dos dados elencados demonstra de modo inquestionável o papel cres-cente desempenhado pelas ITCs em uma sociedade (ainda) ambientada pelocapital, “ambientação” esta que tem na captura do gosto das massas um deseus principais fundamentos.

4.2 A Estética e a fome

A incompreensão da importância política decisiva do gosto talvez seja a razãode seu estudo permanecer em geral restrito, quando muito, à estética. A es-tética, ou uma certa erudição na estética do iluminismo, tornou-se assim umaespécie de refúgio do conceito gosto.18 O problema do gosto, porém, é atual e

15 Esse último ponto já havia sido pioneiramente (creio) destacado por Edgar Morin, aindanos anos 1960. Cf. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX.

16 Este sexto item é aquele que mais se aproxima do objeto desta tese.17 RUBIM, Antônio Albino Canelas. Comunicação e política, pp. 35-6.18 Entre os autores que dedicaram páginas importantes ao tema, estão “somente” Mon-

tesquieu (O Gosto), Voltaire (verbete Goût, no Dictionnaire Philosophique), Diderot (PeenséesDétachées sur la peinture, la sculpture, l’architecture et la poésie pour servir de suite aux sa-lons e Recherches Philosophiques sur L’Origine et la Nature du Beau), Hume (Of the delicacyof taste and passion e Of the Standard of taste) e Kant (Crítica da faculdade de juízo). Vertambém Agamben (1992), Auroux (1990) e Ferry (1994).

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transcende o campo da estética, embora, de fato, cada discurso em estética,19

restrinja-se ou não a obras de arte, seja necessariamente uma racionalizaçãodo gosto do esteta, uma mediação particular de uma experiência singular (afruição estética, que tem o seu hic et nunc) – mediada anteriormente pela for-mação e pelas disposições adquiridas do esteta – e uma pretensão universal(o caráter normativo do discurso). É claro que isso, por si só, não invalidao discurso estético, mas o obscurecimento da singularidade da experiência oempobrece, o mutila.20 Sobre esta “mutilação”, Teixeira Coelho, comentandoo breve ensaio de Montesquieu sobre o gosto para a Encyclopédie, de Diderote D’Alembert, nos informa que as “épocas posteriores a Montesquieu [...] ten-deram a esquecer-se, no campo da reflexão embora não da prática da arte, docomponente sensível, do gosto e da sensibilidade, por ele posto em destaque,e apostaram tudo no componente intelectual [...].” 21

Caberia, pois, reincorporar à reflexão estética a singularidade da experiên-cia fruitiva, que tem a ver com a noção de prazer. Para fazê-lo, é necessáriopercorrer um caminho que passa ao largo de uma estética “pura”, autocentrada,no sentido de desenvolver um discurso particular capaz de mediar a relaçãoentre a singularidade de cada experiência fruitiva e a universalidade do gostoenquanto conceito,22 universalidade que se revela no caráter social dos gostosparticulares. Em outras palavras, trata-se de desenvolver uma sociologia dogosto,23 enquanto parte de uma crítica da economia-política da comunicação.

19 Refiro-me agora a discursos em estética, não sobre estética, isto é, a discursos que emitemjuízos estéticos sobre algo da natureza ou das artes, e não a reflexões sobre a própria estética.

20 Do mesmo modo, o enclausuramento da noção do gosto no campo de uma estética “velha”impede que se aprecie adequadamente o seu valor heurístico.

21 COELHO, Teixeira, (posfácio). In: MONTESQUIEU, Charles de Secondar, Baron de. OGosto, p. 115.

22 Esse discurso não pode, por uma questão de coerência, ter propósitos normativos de or-dem puramente estética, não pode pretender impor, através de malabarismos intelectuais, a“universalidade” daquilo que sempre advém de um gosto singular; deve, ao contrário, sustentara preocupação em 1) investigar e demonstrar o universal em cada singular, 2) ser didático e3) assumir uma posição política. Nesse sentido, a própria noção de uma ciência estética de-veria ser atualizada, em termos de se produzir um tipo de reflexão científica que articulasse,de uma perspectiva histórica, uma 1) fisiologia da percepção, uma 2) sociologia da produção,da circulação e do consumo de bens reconhecidos como possuidores de valor estético, 3) umadescrição das especificidades técnicas (em sentido semiótico e material) desses bens e 4) umestudo do caráter político-ideológico desses bens enquanto significantes, bem como dos mo-mentos de produção/criação e consumo/recepção, sendo que o último item pode ser entendidocomo um aspecto do segundo. Essa tarefa, porém, extrapola os objetivos da presente pesquisa,ficando registrada somente como proposta a ser eventualmente desenvolvida a partir dos resul-tados obtidos.

23 Concordando, todavia, com o pensamento estético de Lukács, na medida em que “descar-tava sem hesitar a interpretação puramente ‘sociológica’. Sua preocupação central era eviden-

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Colocamos as coisas nesses termos por três razões: 1) não se trata de umaproposta meramente descritiva, mas reflexiva, crítica e programática; 2) poresta tese defender a idéia de que as determinações econômicas são, em últimainstância,24 decisivas na formação dos gostos; e 3) pela centralidade das ITCsnas sociedades atuais.

Esta crítica da economia-política da comunicação, focada em uma sociolo-gia do gosto, parte do princípio ontológico de que o gosto, além, ou antes, deser a expressão de um juízo estético, expressa uma escolha alimentar, acepçãoainda mais corrente do termo, e isso pela razão óbvia de que para se ocu-par, em ação e pensamento, com a arte, boa ou má, certamente foi (e é)necessário ocupar-se e pensar primeiro em como obter boa comida, de prefer-ência saborosa. E é nesse ponto que a estética, a alimentação e as demaissituações onde se usa empregar a noção de gosto, se tocam – no prazer, es-tando a alimentação na gênese do gosto, aqui entendido como o juiz dos praz-eres, como a faculdade de avaliá-los, de julgá-los, de estabelecer hierarquiasde prazeres etc.

Essa idéia se aproxima da seguinte hipótese defendida por Bourdieu emseu Distinction, resultado de uma vasta pesquisa teórica e empírica sobre ogosto:

[...] é provavelmente nos gostos alimentares que se pode en-contrar a marca mais forte e indelével do aprendizado infantil,as lições que por mais tempo resistem à distância ou ao colapsodo mundo nativo e mais duradouramente conservam nostalgia por

ciar, por meio de suas análises, a forma como uma experiência vivida, condicionada pelo hice nunc históricos, se interiorizava e se decantava através de múltiplas mediações, até atingir onível profundo da subjetividade em que ressoa uma vox humana de porte universal”. Ver TER-TULIAN, Nicolas. Lukács Hoje, in: PINASSI, Maria Orlanda e LESSA, Sérgio (orgs.) Lukácse a atualidade do marxismo, p. 44.

24 Esse ponto será amplamente debatido ao longo deste trabalho. Por ora, com o objetivo deintroduzir a posição a ser defendida, cabe reproduzir as esclarecedoras palavras de Mészárossobre o assunto: “Como se sabe, os críticos burgueses de Marx nunca deixaram de o acusar de‘determinismo econômico’. Porém, nada poderia estar mais distante da verdade. Isto porque oprograma marxiano é formulado exatamente como uma emancipação da ação humana do poderdas implacáveis determinações econômicas.

Quando Marx demonstrou que a força bruta do determinismo econômico, desencadeada pelasdesumanizadoras necessidades da produção do capital, impera sobre todos os aspectos da vidahumana, demonstrando ao mesmo tempo o caráter inerentemente histórico – ou seja, neces-sariamente transitório – do modo de reprodução predominante, ele tocou a ferida da ideologiaburguesa: o vazio de sua crença metafísica na ‘lei natural’ da permanência das relações deprodução vigentes. E, ao revelar as contradições inerentes a este modo de reprodução, eledemonstrou a necessária ruptura de seu determinismo econômico.” Cf. MÉSZÁROS, Istvan.Para além do capital, p. 1009.

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ele. O mundo nativo é, sobretudo, o mundo materno, o mundodos gostos primordiais e alimentos básicos, da relação arquetípicacom o bem cultural arquetípico, no qual o dar-prazer é uma parteintegral do prazer e da disposição seletiva rumo ao prazer que éadquirida através do prazer.25

Temos então que a origem do gosto – e da noção de gosto – está na fome,ou melhor, em sua satisfação. É também da fome que nasce sua dimensãopolítica. Vejamos.

A primeira fome, na história de cada indivíduo, é satisfeita mediante asucção do leite no seio materno. A primeira satisfação do estômago é, portanto,ao mesmo tempo, a primeira satisfação afetiva e a ocasião onde começa aemergir a própria sociabilidade, gradualmente mediada pela “fantasia”, istoé, 1) pela cultura em si, objetiva, exterior ao indivíduo; 2) pela interiorizaçãopsiquicamente estruturante da cultura; e 3) pelo imaginário, entendido tanto emsua dimensão subjetiva, psíquica, quanto na sua qualidade de produto social,cujo repertório de figuras é fornecido ou mediado pela cultura.

O afeto e a sociabilidade, a partir das sensações de bom e ruim, e dasnoções de sim e não, já se encontram intimamente ligados ao gosto desde asua gênese.26 Por isso, mais tarde, gosta-se ou não das pessoas, das idéias edas coisas, na medida em que, num primeiro momento, pareçam capazes desatisfazer, de um modo ou de outro, nossas necessidades afetivas, sejam elasquais forem, seja qual for o universo simbólico no qual estejamos inseridos,que fornecerá por assim dizer o molde e o arcabouço de mediações que lhesdará sua forma cultural específica.

Um movimento análogo reproduz a fome27 como fator primordial na orga-nização das sociedades humanas, como matriz das diversas formas possíveisde relação das pessoas umas com as outras e com a natureza não humana,a partir das atividades necessárias e pensadas de coleta, de caça e pesca, dodesenvolvimento da agricultura e da pecuária, do preparo de alimentos, desua conservação e distribuição etc. – a base daquilo que Marx denominava“metabolismo do homem com a natureza”, fundamento comum das diversas

25 BOURDIEU, Pierre. Distinction. A Social Critique of the Judgement of taste, p. 79.26 Os “talvez”, “como?”, “porquê” etc. derivam do “sim” e “não” elementares.27 Fome, aqui, vale tanto para a fome propriamente dita quanto para a sede. É conhecida

a importância econômica e política dos rios e poços d’água na formação das civilizações, im-portância esta que vem, aliás, infelizmente, voltando à pauta nos últimos anos.

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formas possíveis de sociabilidade, isto é, de alianças e antagonismos entre aspessoas.28

Com a inserção do indivíduo biológico (o bebê) na ordem simbólica,29 sobum prisma, e com a complexificação (da divisão do trabalho) das sociedades,sob outro, se passa a gostar ou não das pessoas e das coisas (objetos, ocasiões,lugares, idéias etc.), sem deixar de lado o efeito afetivo que provocam, con-forme sua propriedade (real ou aparente) de satisfazer gostos – juízos sintéti-cos de desejos mediados socialmente –, de modo a se integrarem organica-mente em uma estrutura significante qualquer que esteja disponível em umdado tempo-espaço histórico.

Fome de comida, fome de afeto, fome de sentido. Esta é a constituiçãogenética do gosto. Satisfeita sua primeira exigência (a do estômago, que vemde âmago, e aqui representa metonimicamente o corpo), as demais passamgradualmente a se emaranhar, sem que uma possa reivindicar o estatuto deinstância dominante sobre a outra.

É por isso que o gosto talvez seja um bom conceito para se pensar o fugidioe ao mesmo tempo tenso ponto de encontro entre sensibilidade e razão, entrecorpo e mente, ou, para sermos contemporâneos, entre natureza e cultura,30

que é onde se constitui, tanto em termos individuais quanto coletivos, nossa28 O que pressupõe necessariamente alguma forma de divisão do trabalho, divisão técnica

(real) e hierárquica (formal), o que, por sua vez, implica no risco da propriedade privada dosmeios de produção, bem como na possibilidade de sua superação.

29 “É apenas no processo de aquisição de uma língua estrangeira que a consciência já con-stituída – graças à língua materna – se confronta com uma língua toda pronta, que só lhe restaassimilar. Os sujeitos não ‘adquirem’ sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre oprimeiro despertar da consciência.” Bakhtin, op. cit., p. 108.

30 Sobre os conceitos “natureza” e “natureza humana” no pensamento de Marx, cf. Schmidt,1976. Sumariamente, se trata de uma concepção dinâmica, que pode ser resumida na noção deque a natureza humana consiste em fazer-se e refazer-se através da história, não sendo, portanto,algo dado e acabado. Uma tal concepção, ao mesmo tempo em que rompe com a visão de matizhobbesiano, com sinal negativo, ou rousseauísta, com sinal positivo, dá continuidade à visãorenascentista de Pico Della Miràndola, o qual afirma: “Os animais, desde o nascer, já trazem emsi [...] o que irão possuir depois [...] No homem, todavia, quando este estava por desabrochar, oPai infundiu todo tipo de semente, de tal sorte que tivesse toda e qualquer variedade de vida. Asque cada um cultivasse, essas cresceriam e produziriam nele os seus frutos. [...] ele se forja asi mesmo [...]”.PICO DELLA MIRÀNDOLA, Giovanni. A Dignidade do homem. São Paulo:Escala, s/data, pp. 40-41. Kosik, tratando da noção de práxis, formula uma idéia bastantesimilar: “A práxis na sua essência e universalidade é a revelação do segredo do homem comoser ontocriativo, como ser que cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreendea realidade (humana e não-humana, a realidade na sua totalidade). A práxis do homem não éatividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboraçãoda realidade.” KOSIK, Karel. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 222.

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especificidade em meio às demais espécies, não só no universo simbólico, masem sua totalidade.

Passemos mais uma vez a palavra a Bourdieu:

[...] as disposições que governam as escolhas entre os bens dacultura legítima não podem ser plenamente compreendidas [...] sea “cultura”, no sentido restrito, normativo de seu uso ordinário,não for reinserida na “cultura” em sentido antropológico, maisamplo, e se o gosto sofisticado pelos objetos mais refinados nãofor relacionado com o gosto elementar pelos sabores dos alimen-tos. O duplo sentido da palavra “gosto”, que usualmente servepara justificar a ilusão de geração espontânea que a disposiçãocultivada tende a provocar, ao apresentar-se como uma disposiçãoinata, deveria servir para nos lembrar que o gosto no sentido de“faculdade de julgar valores estéticos imediata e intuitivamente” éinseparável do gosto no sentido de capacidade de discernir os sa-bores dos alimentos, que implica em uma preferência por algunsdeles.31

Dito de outro modo, o gosto tanto é mediado pelo intercâmbio material docorpo humano com a natureza exterior quanto culturalmente, principalmenteconsiderando que este mesmo intercâmbio é, desde priscas eras, culturalmentemediado. São mediações dialeticamente articuladas, que culminam no gosto,juízo sintético – para o qual contribuem a percepção, a sensibilidade e a razão– de uma disposição integral (de um habitus), o qual, salvo limites externos,ou mesmo diante destes, orienta a ação, a práxis.

Esses processos, entretanto, não ocorrem no vazio ou na pura abstração,mas no mundo real, em meio ao qual, hoje, a comunicação pode ser enten-dida como “um novo ambiente”, uma nova “camada geo-tecno-social” (Ru-bim, 2000b), chamada de telerrealidade (Muniz Sodré, apud Rubim, 2000a),ciberespaço (Lévy, 2003), realidade virtual etc., cuja base material, ou “su-porte” (Breton e Proulx, 2002), é a infra-estrutura infotelecomunicacional, quesustenta o que Castells (2003) denomina “sociedade em rede”.

É nesse novo “ambiente”, desdobrado dos territórios geo-sociais conven-cionais e sobre eles refluindo – irrigando-os –, que se forma a maior parte da“fantasia”, a qual, embora não possa existir sem um “estômago” que a sus-tente, possui uma notável influência sobre ele. E é também nesse ambiente

31 BOURDIEU, Pierre. Distinction. A Social Critique of the Judgement of taste, p. 99. Esteargumento lembra o cerne do pensamento de Gracian, exposto acima.

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que as decisões, o dinheiro, as informações, a logística da produção, da circu-lação e do consumo dos objetos de satisfação do “estômago”, da comida aosremédios, transitam, possuindo uma influência ao menos igualmente notávelsobre a “fantasia”.

O problema é que para que se possa sobreviver sob o capitalismo da “IdadeMídia”, apesar da fartura de comida e de todas as possibilidades de “óciocriativo” abertas pelo avanço tecnológico produzido pela humanidade (massó acessível a uma ínfima minoria), morre-se de fome ou come-se mal, se éobrigado a trabalhar no que não se gosta e se é educado a gostar de uma sériede coisas – produtos, idéias, atitudes, práticas, pessoas – que legitimam a per-petuação do desgosto, enquanto o pensamento crítico é banido do imagináriocoletivo para os nichos de “radicais”.

A superação dessa situação exige uma reflexão teórica rigorosa sobre oproblema do gosto, reflexão que deve reconhecer a centralidade das ITCs naprodução e reprodução dos gostos sociais concretos. Essa reflexão, por suavez, deve ser desenvolvida a partir de uma base metodológica consistente.

É disso que trataremos agora.

4.3 O Modelo metodológico de Lopes

Conforme o modelo metodológico de Lopes32, o planejamento e a execuçãode uma pesquisa acadêmica devem levar em conta o fluxo interativo entreos níveis e as fases da pesquisa, a saber, os níveis epistemológico, teórico,metódico e técnico, e as fases da definição do objeto, da observação, da de-scrição, da interpretação e da conclusão.

Em termos metódicos, dado que esta é uma pesquisa teórica,33 exclusi-vamente bibliográfica, é importante que se tenha uma clara consciência, emprimeiro lugar, da natureza e da utilidade desse tipo de pesquisa. Estas dizemrespeito sobretudo ao maior domínio possível do conhecimento existente emdeterminada área de conhecimento, que deve servir de base para o desenvolvi-mento de um discernimento crítico acurado a seu respeito, bem como para a

32 Cf. LOPES, Maria Immacolata V. Pesquisa em comunicação, pp. 113-163.33 É importante fazer a defesa da pesquisa teórica no Brasil, contra a idéia de que se trataria

de um luxo para países ricos, restando a nós as pesquisas descritivas ou aplicadas. Essa últimaatitude só serve para reforçar nossa posição dependente na produção global de conhecimento.Sem teoria, não se explica nada. Produzir teoria é produzir o que Born Steinberger, em outrocontexto, denomina “autonomia cognitiva”. Cf. BORN STEINBERGER, Margarethe. A Éticado jornalismo latino-americano na geopolítica da pós-modernidade. In: DOWBOR, Ladislauet al.: Desafios da comunicação, p. 176.

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elaboração de novas hipóteses sobre um determinado conjunto de problemas,ou mesmo para a sua reformulação. Nos termos de Köche:

Na pesquisa bibliográfica o investigador irá levantar o con-hecimento disponível na área, identificando as teorias produzidase avaliando sua contribuição para auxiliar a compreender ou ex-plicar o problema objeto da investigação [...] Pode-se utilizar apesquisa bibliográfica para dominar o conhecimento disponível eutilizá-lo como base ou fundamentação na construção de um mod-elo teórico explicativo de um problema, isto é, como instrumentoauxiliar para a construção e fundamentação das hipóteses [...]34

Neste sentido, os textos com os quais dialogamos no decorrer de todoo trabalho constituem o objeto empírico da pesquisa, seu corpus; tecni-camente, sua seleção, bem como a justificação desta seleção, pertencem àfase de definição do objeto (empírico); sua leitura, a fase de observação; seufichamento, a coleta e classificação de dados; sua análise e discussão, a fasede interpretação. A conclusão da pesquisa e sua redação final (o relatório depesquisa, a tese propriamente dita) deverão ter verificado até que ponto ashipóteses elaboradas a partir da confrontação do objeto teórico da pesquisacom o material bibliográfico pesquisado possuem ou não fundamento, e emque grau os objetivos propostos terão sido atingidos.

Metodologicamente, trata-se aqui de explorar os limites de uma perspec-tiva crítica das ITCs, entendidas como o porta-voz das contradições do cap-ital e instância destacada de seu processo de reprodução ampliada; em outraspalavras, trata-se de cruzar dois níveis de estudo das ITCs: 1) o ideológico, istoé, as ITCs enquanto instância mediadora socialmente hegemônica de visões demundo, não só no nível discursivo mas também naquele sensível, referente àssimpatias e aversões que, somadas aos discursos de aprovação ou negação (juí-zos de gosto), constituem os gostos; e 2) o econômico, ou as ITCs enquantosistema produtor de mercadorias e de consumidores. Nos termos de Dênis deMoraes:

[...] as organizações de mídia projetam-se, a um só tempo,como agentes discursivos, com uma proposta de coesão ideológ-ica em torno da globalização, e como agentes econômicos proem-inentes nos mercados mundiais, vendendo os produtos e intensifi-

34 KÖCHE, José Carlos. Fundamentos de metodologia científica. Teoria da ciência eprática da pesquisa, p. 121.

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cando a visibilidade de seus anunciantes.35 Evidenciar esse duplopapel e suas interfaces parece-me fundamental para entendermosa sua forte incidência na atualidade.36

Buscando dar conta desses problemas, esta pesquisa articula duas instân-cias, uma que denomino profética e outra epistemológica. A “instância profética”não diz respeito a nenhum exercício místico de previsão do futuro, mas à di-mensão política da prática discursiva no campo da Comunicação (quiçá, no de-bate social mais amplo), considerando que “[...] o êxito da ação de imposiçãosimbólica do profeta é função do grau em que ele consegue explicitar e sis-tematizar os princípios que o grupo ao qual ele se endereça detém já no estadoprático.” 37 Que princípios seriam esses? Aqueles que dizem respeito à dimen-são política do gosto e ao papel das ITCs em sua realização (atual e potencial)ou recalque, a serem abordados a partir de uma re-problematização de certosaspectos epistemológicos do marxismo, com destaque 1) para o seu caráterrevolucionário, de instrumento de crítica e transformação radical da ordem docapital e de seus aparatos ideológicos, o que implica necessariamente na re-jeição da “neutralidade axiológica”, expressão epistemologicamente falaciosade um complexo ideológico que favorece a conservação dessa mesma ordem;e 2) para a noção de “determinação em última instância” da ordem econômicasobre as demais atividades humanas, idéias abandonadas ou rejeitadas por boaparte dos estudos atuais de Comunicação. Aliás, tanto a instância denominadaprofética quanto a epistemológica, interagindo todo o tempo, como deve ser naprática científica não positivista, envolvem também uma reflexão crítica desteabandono e desta rejeição.

Tecnicamente, a pesquisa teórica (bibliográfica) é o método mais adequadopara a obtenção dos objetivos aqui propostos, na medida em que só ela podefundamentar o domínio epistemológico necessário para sustentar e delimi-tar o alcance da abordagem aqui defendida de estudo do gosto e das ITCs,bem como para eventualmente confrontá-la com aquelas de filiação teóricae metodológica distintas, que parecem interessar-se pelo universo cultural ousimbólico como um campo que possui autonomia plena, ou quase isso. A estepropósito, cabe aqui citar José Paulo Netto:

35 A este propósito, vale lembrar com Oswaldo León, que “a mídia comercial mede seuslucros em dois sentidos: os que resultam da venda do produto a audiências e os que resultam davenda de audiências aos anunciantes [...]” Cf. LÉON, Oswaldo. Para Uma Agenda social emcomunicação. In: MORAES, Dênis de (org.). Por uma outra comunicação, p. 406.

36 MORAES, Dênis de. O Capital da mídia na lógica da globalização. In: MORAES, Dênisde (org.). Por uma outra comunicação, p. 191.

37 BOURDIEU, Pierre, PASSERON, Claude. A Reprodução, p. 57.

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[...] a realidade objetiva [...] tende a ser algo minimalista [...]uma vez que sua objetividade é reduzida a dimensões simbólicas,ocorrendo uma semiologização inclusive dos seus níveis materiais– a reificação do imaginário sinaliza otimamente esse processo dedesontologização da realidade.38

A participação nesse debate requer um estudo preliminar e aprofundado dadialética de Marx (que envolve um complexo quadro conceitual, cujas catego-rias chave são capital e trabalho, das quais derivam todas as demais, inclusivevalor e fetiche, luta de classes, ideologia etc.), o que foi realizado mediantea leitura (e releitura) o mais completa possível de sua obra e de algumas dasprincipais contribuições de autores marxistas sobre o tema, clássicos e con-temporâneos, que serão citados e debatidos ao longo deste trabalho.

Por que estudar a obra de Marx? Entre outros motivos, a serem abordadoslogo adiante, pelas discrepâncias entre os marxistas; não propriamente para de-scobrir algo como “o verdadeiro Marx”, mas para recorrer à fonte primária deum pensamento vigoroso que, além de ajudar a entender o mundo para mudá-lo(o que é cada vez mais urgente), tanta divergência causou entre seus simpati-zantes e detratores. Assim, metodologicamente, trata-se de aplicar à análise dacontribuição que Marx e alguns autores marxistas podem trazer para os estu-dos contemporâneos de comunicação, sobretudo em termos epistemológicos,o primeiro dos princípios do método de Descartes: a dúvida sistemática, asaudável desconfiança da autoridade intelectual, que traz consigo a exigênciade se pensar por conta própria. Não obstante, não se pode perder de vista,como ensina Lopes, que “[...] não se trata de ‘dominar tudo’, mas de se fazerum ‘uso útil’ de teorias e conceitos de diversas procedências, um uso que sejasobretudo bem fundamentado e pertinente à construção do objeto teórico.” 39

Ou seja, a pesquisa não tem a pretensão delirante do domínio de todo o con-38 PAULO NETTO, José. Georg Lukács: um exílio na pós-modernidade. In: Pinassi e Lessa

[orgs.]. Lukács e a atualidade do marxismo, pp. 95-6. A esta passagem, vem acoplada ailustrativa nota de rodapé: “É canônica, aqui, a formulação de Gianni Vattimo [de En torno ala posmodernidad]: ‘De fato, intensificar as possibilidades de informação acerca da realidadeem seus mais variados aspectos torna sempre menos concebível a própria idéia de uma reali-dade. No mundo dos meios de comunicação, talvez se efetive uma ‘profecia’ de Nietzsche: omundo real, no fim das contas, converte-se em fábula. [...] A realidade, para nós, é, sobretudo,o resultado do cruzamento e da ‘contaminação’ [...] das múltiplas imagens, interpretações, re-construções divulgadas pelos meios de comunicação.’ [...] Nesse terreno, são fundamentais ascontribuições de J. Baudrillard e de boa parte dos teóricos franceses da Nova História, aos quaisnão é estranha a influência de Foucault [...]”

39 LOPES, Maria Immacolata V. La Investigación de la comunicación: cuestiones episte-mológicas, teóricas y metodológicas. In: Diálogos de la Comunicación, n.56. Lima, Peru:1999. p. 21.

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hecimento existente sobre o marxismo, os métodos das ciências sociais e seusdesdobramentos nos estudos de comunicação – tarefa que, além de inexeqüívelno espaço de tempo de um doutorado, extrapola seus objetivos –, mas um con-hecimento consistente do método dialético e das obras seminais do pensamentonão dialético, bem como de suas principais ramificações teóricas nos estudosde comunicação no Brasil hoje.40

Fora do marxismo, a pesquisa bibliográfica mostrou-se também uma fer-ramenta produtiva para a obtenção do domínio teórico necessário para umadiscussão das diversas acepções do termo “gosto” nos campos da filosofia, daestética e da sociologia. Nesse sentido, nosso ponto de partida foi o ensaio deAgamben, “Gosto”, que mencionamos acima, o qual por sua vez parte de umtexto de Nietzsche, que aponta para uma aproximação entre as noções de sa-bor e saber em diversas línguas e culturas. Diversas outras obras nos camposda filosofia e da estética, que trouxeram contribuições importantes para a pre-sente pesquisa, serão citadas ao longo do trabalho. Um livro recente de MunizSodré, Estratégias Sensíveis, embora não trate diretamente do gosto, oferecepreciosas contribuições para este estudo, na medida em que problematiza umconhecimento calcado exclusivamente no logos, retraçando o desenvolvimentohistórico e epistemológico da própria noção de razão e de seu “outro”, que eledenomina afeto, propondo uma nova abordagem teórica para se pensar as no-vas sociabilidades que têm nos media um elemento decisivo. Por fim, o livroDistinction, de Bourdieu, é o trabalho que mais se aproxima de nossa pro-posta, pois a sua sociologia do gosto concede grande destaque a questões deordem econômica, metodológica e epistemológica, com a marcada presençade uma das categorias marxianas fundamentais, a luta de classes, ao longo detodo o seu desenvolvimento. Além disso, a noção de “unidade inconscientede classe”, como veremos no momento oportuno, é uma contribuição seminaldesta obra para a presente pesquisa.

40 Sobre o estruturalismo, a reflexão metodológica de Lévi-Strauss encontra-se suficiente-mente esclarecida no seu Antropologia Estrutural (I e II). Uma interessante e, por assim dizer,“civilizado” debate entre estruturalismo e marxismo encontra-se em Sahlins (Cultura e RazãoPrática). Um pequeno estudo, escrito no calor dos anos 60, mais agressivo em relação aoestruturalismo, mas nem por isso menos útil para se pensar o tema, é O Estruturalismo deLévi-Strauss. O Marxismo de Louis Althusser, de Caio Prado Jr. No que diz respeito ao pós-estruturalismo, nos detivemos em A Arqueologia do Saber, de Foucault. Quanto aos estudosespecíficos em comunicação, efetuamos um mapeamento da bibliografia utilizada nas últimaspublicações da Intercom e da Compós, e também nas disciplinas relacionadas com Metodolo-gia e Teoria da Comunicação nos cursos de pós-graduação em comunicação das duas principaisUniversidades do país, a saber, USP e UFRJ, onde se destacam autores como Bakhtin, Barthes,Benjamin, Bourdieu, Canclini, de Certeau, Eco, Hall, Lévi, Lopes, Martin-Barbero, Mattelard(Armand e Michèle), Morin, Sodré, Vattimo, Wallerstein etc.

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Encerrando as considerações sobre o modelo de Lopes, suas exigênciassão aqui atendidas:

• a) no nível epistemológico, através da vigilância epistemológica con-stante, com destaque para o momento da construção do objeto da pesquisa;

• b) no nível teórico, pela busca de rigor nas definições conceituais, evi-tando as armadilhas da “transparência” que a linguagem comum podetrazer para o discurso científico, e também pelo seu posicionamento emum quadro teórico de referências minuciosamente definido;

• c) nos níveis metódico e técnico, pela fundamentação teórica e pela ex-plicitação objetiva dos procedimentos adotados, bem como por sua ade-quação ao objeto e aos objetivos da pesquisa; e, last but not least,

• d) na medida em que os níveis e fases dessa pesquisa compõem umtodo orgânico e dinâmico, devidamente situado em seu contexto social, oqual, aliás, no que diz respeito ao “tempo histórico” da pesquisa, fornecea motivação central para a sua execução, sobretudo devido ao papel de-sempenhado pelas ITCs na e diante da crise econômica global, que nãosó gera desgosto sem precedentes como ameaça a própria sobrevivênciada espécie.

4.4 Epistemologia e filosofia da ciência: contra a neu-tralidade axiológica

Conforme sustenta Thiollent,41 Bourdieu, em A Profissão de Sociólogo, criticao fato de o debate em torno da neutralidade axiológica eventualmente encobrirum outro a seu ver mais importante, aquele sobre a neutralidade metodológica.A crítica é importante, na medida em que enfatiza uma discussão usualmentedeixada de lado, a saber, a de que métodos e mesmo técnicas de pesquisa nãosão neutros, isto é, estão necessariamente, saiba o pesquisador ou não, artic-ulados com teorias e epistemologias, e a vigilância epistemológica não podepermitir que essas articulações ocorram sem que o pesquisador tenha consciên-cia do fato. Mészáros diz algo muito parecido: “Em parte alguma o mito daneutralidade ideológica – a autoproclamada Wertfreiheit, ou neutralidade axi-ológica, da chamada ‘ciência social rigorosa’ – é mais forte do que no campoda metodologia.” 42

41 Cf. THIOLLENT, Michel J. M. Crítica metodológica, investigação social e enqueteoperária

42 MESZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 301.

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Isso, porém, não invalida o debate sobre a neutralidade axiológica emgeral; pelo contrário, o enriquece, sobretudo quando sabemos que as filiaçõesteóricas e epistemológicas das quais são derivados os métodos e técnicas depesquisa são fruto de decisões éticas e políticas, que derivam por sua vez deuma ou outra concepção do ser, do real, isto é, derivam de uma ontologia, aqual, sob uma perspectiva marxista-lukacsiana, traz em si, necessariamente, demodo consciente ou não, um ponto de vista de classe.

Sob esse prisma, quando Martino43 propõe que discussões de cunho ético,por pertencerem à competência da filosofia da ciência, sejam excluídas do de-bate epistemológico, o qual deveria se ater a questões relacionadas à classifi-cação e à relação entre as disciplinas,44 ao “exame da linguagem da ciência” ea “[...], sondar os princípios ontológicos, metodológicos e lógicos da ciência”,se esquece que discussões de cunho ético – ou sua ausência – têm influênciadecisiva na sondagem proposta, e que uma ontologia implica em uma ética, emrelação à qual, seja ela qual for, nenhum método pode ser, na prática, imune.

Que a epistemologia seja uma área do conhecimento menos abrangenteque a filosofia da ciência, que seja uma parte desta, como Martino propõe, oumesmo um ramo da ciência, inspirado na filosofia mas relativamente indepen-dente de suas questões mais abrangentes, está correto, na medida em que cabe àfilosofia da ciência discutir, entre outras coisas, a própria possibilidade de con-stituição de um saber científico, problema que, caso a epistemologia tivesse dese deter com ele, estaria pondo em questão sua própria razão de ser e, enfim,perdendo tempo. Martino tem assim razão ao afirmar que uma epistemologiaqualquer só é concebível partindo da premissa de que é possível a produção deum conhecimento de tipo científico,45 e em defender a posição de que o de-bate epistemológico em comunicação, para avançar, dever estabelecer antes demais nada os próprios limites do que venha a ser um debate epistemológico.Porém, a linha demarcatória que ele traça entre epistemologia e filosofia daciência (e teoria do conhecimento, sociologia do conhecimento etc.) faz umdesvio a nosso ver perigoso ao excluir da primeira a reflexão ética e, em última

43 MARTINO, Luiz C. As Epistemologias Contemporâneas e o Lugar da Comunicação. In:LOPES, Maria Immacolata V. (org.): Epistemologia da Comunicação, pp. 69-101.

44 Isso não seria uma questão a ser no mínimo compartilhada com a sociologia da ciência oucom a história da ciência? O excelente texto intitulado “Para Abrir as ciências sociais”, assi-nado pela Comissão Calouste Gulbekian para a Reestruturação das Ciências Sociais, presididapor Wallerstein, demonstra que a disciplinarização atual é fruto menos de questões de cunhoepistemológico do que político-acadêmico.

45 “A discussão epistemológica pressupõe [...] um certo posicionamento em relação a algunsproblemas filosóficos de fundo, justamente como o real e a objetividade.” MARTINO, Luiz C.Op. Cit., pp. 70-1.

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análise, política. Afinal, não confundir uma coisa com a outra, o que é correto,não nos autoriza a esquecer o fato de que são interdependentes.46

Ilyenkov, ao descrever criticamente a trajetória histórica do próprio termo“epistemologia”, nos dá excelentes subsídios para o desenvolvimento do de-bate:

[...] o isolamento de uma série de velhos problemas filosófi-cos em uma ciência filosófica especial47 (tanto faz se a reconhece-mos como a única forma de filosofia científica ou somente comouma das muitas divisões da filosofia) é um fato de origem recente.O termo em si só passou a ser empregado com mais freqüênciana última metade do século XIX, como designação de uma ciên-cia especial, de um campo especial de investigação que de modoalgum havia sido claramente distinguido nos sistemas filosóficosclássicos, nem constituído uma ciência especial ou mesmo umadivisão especial, embora seja um erro, é claro, afirmar que o con-hecimento em geral e o conhecimento científico em particular sótenham se tornado objeto de uma atenção mais detida com o de-senvolvimento da “epistemologia”.

O estabelecimento da epistemologia como uma ciência espe-cial, esteve associado historicamente e essencialmente à ampla di-fusão do neokantianismo, que se tornou, durante o último terço doséculo XIX, a mais influente tendência do pensamento filosóficoburguês na Europa, sendo convertido na escola oficialmente re-conhecida de filosofia acadêmica, universitária [...]48

46 Quanto à distinção que Martino defende entre epistemologia e sociologia da ciência,Lopes, na trilha de Foucault e Bourdieu, parece pensar diferente: “A produção da ciência de-pende intrinsecamente das suas condições de produção. Essas são dadas pelo contexto discur-sivo que define as condições epistêmicas de produção do conhecimento e pelo contexto socialque define as condições institucionais e sociopolíticas dessa produção. A autonomia relativado ‘tempo lógico’ da ciência em relação ao ‘tempo histórico’ é que faz da sociologia da ciên-cia um instrumento imprescindível para ‘dar força e forma à crítica epistemológica ou críticado conhecimento, pois permite revelar os supostos inconscientes e as petições de princípio deuma tradição teórica’ (Bourdieu, 1975:99)” LOPES, Maria Immacolata V. Sobre o Estatutodisciplinar do campo da comunicação. In: LOPES, Maria Immacolata V. (org.) Epistemologiada Comunicação, pp. 278-9 (a última citação, entre aspas simples, de Bourdieu, refere-se a:BOURDIEU, Pierre. El ofício de sociólogo. México: Siglo XXI.).

47 Ilyenkov emprega as expressões teoria do conhecimento ou epistemologia indiferenciada-mente. Nesse caso, as ponderações de Martino a propósito de suas diferenças são importantes.

48 ILYENKOV, Dialectical Logic. Documento eletrônico:http://marx.org/archive/ilyenkov/works/essays/index.htm. Acesso em: jun. 2006.

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Assim, a mera possibilidade, justificada historicamente, de entendermosa epistemologia, ou melhor, sua difusão e legitimação acadêmica, como frutoda “mais influente tendência do pensamento filosófico burguês”, se não a in-valida enquanto parte ou subcampo digno de atenção da filosofia da ciência –e, de fato, isso não deve ocorrer –, proíbe qualquer neutralidade axiológica namaneira de abordá-la, caso não se queira correr o risco, sob a aparência de rigorcientífico, de se contrabandear para o campo epistemológico uma atitude po-liticamente conservadora ou reacionária. Essa advertência é particularmenteimportante para o presente trabalho, pois, como diz Zizek, “[...] no instanteem que alguém questiona seriamente o atual consenso liberal, é acusado deabandonar a objetividade científica por posições ideológicas ultrapassadas.”49 Ou seja: cumpre que o caráter necessariamente ideológico da ciência sejaconsciente, conforme defende Mészáros, pois “a questão não é opor a ciênciaà ideologia numa dicotomia positivista, mas estabelecer sua unidade pratica-mente viável a partir do novo ponto de vista histórico do projeto socialista.” 50

Ou, numa formulação mais elaborada:

Naturalmente, ninguém deseja negar que a “lógica” do de-senvolvimento científico tem um aspecto relativamente autônomocomo um momento importante do complexo geral das intermedi-ações dialéticas. Entretanto, esse reconhecimento não pode chegara ponto de tornar absoluta a lógica imanente do desenvolvimentocientífico, com a eliminação, de modo ideologicamente tenden-cioso, das importantes e muitas vezes problemáticas determinaçõessócio-históricas. Defender a absoluta imanência do progresso cien-tífico e de seu impacto sobre os desenvolvimentos sociais só podeservir aos propósitos da apologia social.51

Afinal, diria Zizek, “este é o ponto sobre o qual não se pode fazer con-cessões: hoje, a atual liberdade de pensamento ou significa a liberdade dequestionar o consenso ‘pós-ideológico’ democrático-liberal – ou não significanada.” 52

49 ZIZEK, Slavoj. Have Michael Hardt and Antonio Negri Rewritten the Communist man-ifesto for the Twenty-First Century? In: Rethinking Marxism, no. 3/4, 2001. Documentoeletrônico: http://lacan.com/zizek-empire.htm. Acesso em: dez. 2006.

50 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 68. A noção de “ideologia” que empre-garemos a partir de agora, salvo indicação em contrário, é a de Mészáros: consciência práticanecessária em uma sociedade dividida em classes antagônicas.

51 Idem ibidem, p. 254.52 ZIZEK, Slavoj. Repeating Lenin. Documento eletrônico. http://www.lacan.com/

replenin.htm. Acesso em: jun. 2006. A este propósito, pondera Mészáros: “Uma vez

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Temos então a defesa de um posicionamento político inseparável do fazercientífico, o que aproxima o debate epistemológico do debate político. Isto,porém, não é o mesmo que confundi-los, dado que cada um possui as suasespecificidades. Ainda assim, pode-se perguntar: essa posição não contrariaa exigência epistemológica da “objetividade” científica? A resposta é não, sepensarmos dialeticamente, como, aliás, faz Martino na seguinte passagem:

Híbrido de ciência e filosofia, a epistemologia guarda uma im-portante característica dessa última: nenhum panorama da filosofia,nenhuma tentativa de levantar e discutir as tradições de pensa-mento que se formam em torno de certos problemas fundadores,pode dar conta de realizar essa tarefa sem imediatamente inscrever-se nesse quadro. Em outras palavras, uma visão sobre o con-junto da filosofia não pode ser alcançada a partir da exterioridadeda tradição filosófica, pois não há visão da filosofia sem ser elamesma filosófica, então, parte integrante dessa tradição e de umacorrente de pensamento. Toda discussão e visão do campo filosó-fico significa uma tomada de posição em relação às outras cor-rentes que compõem a tradição filosófica.53 De modo que todadoutrina é simultaneamente a parte e o todo da reflexão filosófica.Ela é parte porque não é, nem pode ser, o único posicionamentopossível; ela é parte porque só pode inserir-se de modo parcial(tomando partido por certos princípios e verdades iniciais, sele-

que a estrutura parlamentar [...] é aceita como o horizonte limitador de toda intervenção políticaadmissível, a definição marxiana do objetivo socialista básico como a “emancipação econômicado trabalho” (à qual as estratégias historicamente mutáveis da ação política devem estar sub-ordinadas na qualidade de meios) é necessariamente descartada. Isto por que a ‘emancipaçãoeconômica do trabalho’, em seu sentido marxiano, e a política que a ela corresponde, são radi-calmente incompatíveis com uma estrutura política reguladora acriticamente aceita, que estipulacomo critério de ‘legitimidade’ e ‘constitucionalidade’ a observância estrita de regras que fa-vorecem a perpetuação das relações de propriedade estabelecidas, isto é, o contínuo domínio docapital sobre a sociedade.” Cf. O Poder da Ideologia, p. 416.

53 A partir desta reflexão de Martino, torna-se talvez possível defender a noção de “aposta”quanto a essa tomada de posição, dado que, em função do acúmulo de conhecimento (científico,filosófico, histórico etc.) que um teórico contemporâneo tem ao seu dispor, é rigorosamente im-possível dominar em profundidade todas as “correntes existentes”, o que inviabiliza a aplicaçãointegral de um dos princípios metodológicos de Descartes, a saber, aquele que defende a im-portância de se conhecer tudo o que existe sobre o tema para só então se tomar uma posiçãobaseada no próprio raciocínio. Conhecer tudo, ainda que sobre um só tema, não é possível, anão ser que se trate de um tema de dimensões insignificantes. E as apostas nesta ou naquelacorrente de pensamento se devem, basicamente, a três fatores: 1) o maior ou menor acessodo sujeito a um dado repertório de conhecimento, 2) o que ele considera racionalmente maisrealista e 3) seu gosto, isto é, seu juízo calcado em seus interesses (ethos) e simpatias (pathos).

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cionando seus problemas, fazendo suas opções por certos proced-imentos de resolução dos problemas etc.) Mas nenhuma delaspode realmente se posicionar sem produzir um conhecimento dotodo, de modo que a filosofia só existe a partir de um posiciona-mento e o todo da filosofia só pode aparecer a partir de uma desuas partes, ou seja, a partir de uma de suas correntes.54

Morin, por sua vez, em Ciência com Consciência,55 historiciza e recon-hece a importância que o ethos do conhecimento objetivo enquanto fim em simesmo exerceu para a libertação da ciência da tutela da Igreja e para os seusavanços; ao mesmo tempo, identifica com clareza os riscos que um tal ethospassou a acarretar a partir do momento em que a ciência torna-se subordinada àpolítica e à economia. Porém, sua proposta de uma reflexão ética por parte doscientistas como maneira de contornar tais riscos permanece impotente, na me-dida em que a esta “política” e a esta “economia” não são atribuídos os devidosnomes: economia de mercado e política de Estado capitalistas.56 Não se tratasomente de um problema terminológico, mas conceitual, que traz implicaçõesprofundas para a justa compreensão das verdadeiras causas da subordinaçãoda prática científica à economia e à política, bem como para a elaboração deestratégias que possam viabilizar a superação deste quadro. Pois, na realidade,o problema central aqui não é propriamente a subordinação da ciência, en-quanto conhecimento objetivamente rigoroso e logicamente fundamentado, àeconomia em si e à política em si, entendidas em termos abstratos. Se tomar-mos o termo “política” na acepção que Aristóteles lhe atribui na Ética a Nicô-maco, como a arte de administrar a polis para o bem geral,57 que mal haveriana subordinação da ciência ao bem geral? Quanto à “economia”, entendidacomo utilização ótima dos recursos disponíveis para atender a necessidadeshumanas, como oposto de desperdício, que mal haveria em a ciência submeter-se à economia? O problema é sua subordinação à lógica perdulária do capital,que submete todo o conjunto das atividades humanas (não só a ciência, mas asartes, os costumes, inclusive a política e a economia) ao seu imperativo cegode auto-expansão, o que tem conduzido a conseqüências extremamente destru-

54 MARTINO, Luiz C. As Epistemologias contemporâneas e o lugar da comunicação. In:LOPES, Maria Immacolata V. (org.) Epistemologia da Comunicação, pp. 72-3. Desseraciocínio de Martino, em si correto, não deve porém ser inferido que todas as correntes seequivalem. Retomaremos esse ponto logo adiante.

55 Cf. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Lisboa: Europa/América, 1982.56 Ou do capital, se quisermos, utilizando a terminologia proposta por Mészáros em Para

Além do Capital, dar conta das experiências fracassadas do “socialismo realmente existente”.57 Cf. ARISTÓTELES. Nicomachean Ethics. Documento eletrônico: http://www.sacred-

texts.com/cla/ari/nico/nico002.htm. Acesso em: jul. 2005.

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tivas, sobretudo a partir do pós-guerra, com o crescimento brutal do complexoindustrial militar nas nações mais ricas (e não só nelas), complexo este, aliás,que financia a maior parte da pesquisa acadêmica nos EUA e na Inglaterra.58

Einstein, lembra Mészáros, identificou com mais clareza tais riscos, cujascausas principais ele teria situado com precisão, não na “inconsciência” doscientistas (embora tenha apelado à sua consciência), mas na anarquia do mer-cado, para cuja solução ele não hesitava em dar um nome: socialismo. Mas éo próprio Mészáros quem, a nosso ver, oferece a mais refinada orientação paraa reflexão em torno dessa relação entre ciência e capital:

Não existe [...] nada na natureza da ciência e da tecnologia deonde se possa derivar a subordinação estrutural do valor de uso aovalor de troca, com todas as suas conseqüências destrutivas, emúltima instância, inevitáveis. Em contraste, a articulação históricada ciência e da tecnologia, o modo como elas moldam nossas vi-das hoje em dia, é totalmente ininteligível sem o reconhecimentode sua profunda inserção nas determinações socioeconômicas docapital, tanto na escala temporal quanto em relação às estruturascontemporâneas dominantes. Sem querer negar a dialética dasinterações recíprocas e a inevitável realimentação, o fato é que,no relacionamento entre a ciência e a tecnologia, por um lado, eos determinantes socioeconômicos – com o papel estruturalmentedominante do valor de troca –, por outro, o übergreifendes Mo-ment59 são estes últimos.60

Além disso, independente da tecnologia, para articularmos a relação entreciência e capitalismo com a questão da neutralidade axiológica, e dando umpasso adiante da historicização do problema efetuada por Morin, bem como daidentificação de Einstein do potencial destrutivo da ciência com a anarquia domercado, ambas corretas, mas ainda um tanto abstratas, cabe elevá-las à suaconcreticidade,61 a partir da compreensão do processo histórico de alienação e

58 Cf. MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, pp. 243-300.59 “übergreifendes Moment” – momento de importância fundamental, momento decisivo.60 Cf. MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 269. Ricardo Antunes, retomando a

crítica de Mészáros a Habermas sobre a idéia de a ciência ter se convertido na mais importanteforça produtiva em detrimento do trabalho, desenvolve a contraposição do autor húngaro (tec-nologização da ciência) à noção habermasiana de cientifização da tecnologia. Cf. ANTUNES,Ricardo. Os Sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho, pp.135-165.

61 A noção de concreticidade, em Kosik, diz respeito à totalidade do real enquanto articulaçãodialética da empiria – do fenomênico, do existente – com as leis dinâmicas que a regem –

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divisão do trabalho capitalistas, que fazem da ilusão de neutralidade da ciênciauma ilusão necessária. É o que faz Mészáros, ao argumentar:

[...] a ilusão da autodeterminação “não-ideológica” e da corre-spondente “neutralidade” da ciência é, em si, o resultado do pro-cesso histórico da alienação e da divisão do trabalho capitalistas.Não é um “erro” ou uma “confusão” que possam ser eliminadospelo “iluminismo filosófico”, como pretendem os positivistas lógi-cos e os filósofos analíticos. Antes, é uma ilusão necessária, comsuas raízes firmemente plantadas no solo social da produção demercadorias e que se reproduz constantemente sobre essa base,dentro do quadro estrutural das “mediações de segunda ordem”alienadas. Em conseqüência da divisão social do trabalho, a ciên-cia está de fato alienada (e privada) da determinação social dosobjetivos de sua própria atividade, que ela recebe “pronta”, soba forma de ditames materiais e objetivos de produção, do órgãoreificado de controle do metabolismo social como um todo, ouseja, do capital.62

Em suma, é rigorosamente ilógico pensar no quadro de uma epistemolo-gia de matriz marxiana63 evitando-se uma crítica radical da ordem do capital,mesmo tendo em conta o fracasso das experiências do chamado “socialismorealmente existente”. Este fracasso, por sinal, apresenta novos e imensos de-safios para a reflexão teórica e para a prática política, mas tais desafios devemser enfrentados, a não ser que nos conformemos com a perspectiva da destru-ição da espécie, ou que acreditemos seriamente na mão invisível do mercadoou em milagres. Não sendo este o caso, não se pode falar em marxismo semque se proponha um modelo alternativo à ordem do capital enquanto sistema

a “essência”. Esta concreticidade é cognoscível graças à mediação ativa da práxis humana,embora nunca seja imediata, integral e definitivamente cognoscível de uma forma acabada. Cf.KOSIK, Karel. Dialética do concreto.

62 Cf. MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 270. Essa reflexão é importante,pois nos lembra, mais uma vez, que para a solução dos graves problemas mencionados, nãobasta esclarecimento (iluminismo), mas uma transformação radical das relações de produção.No que diz respeito à presente pesquisa, isso delimita e precisa seu raio de ação teórico eprogramático: o nível ideológico do problema, ao qual aliás a questão do gosto encontra-seintimamente vinculada, não pode ser resolvido exclusivamente no nível da ideologia e do gosto,embora estes tenham o seu peso.

63 Se não explicitamente desenvolvida, certamente indicada em seus contornos gerais aolongo da obra de Marx e (em forma geralmente – mas nem sempre – polêmica) de váriosautores marxistas.

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“sociometabólico” (Mészáros). Este modelo alternativo tem dois nomes pos-síveis: socialismo ou comunismo. Não se inventou ainda uma outra perspec-tiva historicamente concebível que disponha da mesma consistência teórica.E a “necessidade de sua implementação não resulta de ponderações teóricasabstratas, mas da crise estrutural cada vez mais profunda do sistema do capitalglobal.” 64

Além da “neutralidade axiológica”, outra armadilha que se deve evitar éa das modas intelectuais, em relação às quais, no campo da comunicação, meparece legítimo aplicar a orientação de Bourdieu para o “espírito sociológico”,uma espécie de má vontade cultivada contra a pretensão de identificação au-tomática dos discursos dominantes com o que seria uma forma tácita e au-toritária de bom gosto:

Um meio tão fortemente integrado faz pesar sobre os que aí serealizam ou, talvez ainda mais, sobre os que, como os estudantes,aspiram a entrar nele, um sistema de exigências tanto mais efi-cazes na medida em que se apresentam como as regras implícitasde bom tom e bom gosto. Para resistir às insinuações malévolas eàs persuasões clandestinas de um consensus intelectual que se dis-simula sob as aparências do dissensus [...] não se deve ter medode encorajar, contra uma representação ingênua da neutralidadeética como benevolência universal, a opinião preconcebida de lu-tar contra todos os preconceitos da moda e transformar o mauhumor contra a atmosfera ambiente numa regra para orientar oespírito sociológico.65

Aceitando este conselho, mais ou menos consciente de seus riscos, pensoque cabe aqui defender a seguinte posição epistemológica: dado que uma ver-dade é sempre postulada por um sujeito histórico, inscrito em um determinadocampo “epistêmico” e em uma determinada ordem sócio-econômica, no casoem que esta é cindida em classes antagônicas, e é dentro dela que ele pensae elabora discursos, a verdade é necessariamente parcial, mas de uma par-cialidade específica,66 especificidade esta derivada do fato necessário de serem torno dos pólos dessa cisão constitutiva do seu momento histórico que

64 MESZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 50.65 BOURDIEU, Pierre et. Al. A Profissão de Sociólogo, 1999, p. 93.66 Parcialidade relacionada, direta ou indiretamente, de modo mais, ou menos, consciente,

a ponto de vista de classe, a este particular; em sociedades não divididas em classes antagôni-cas, a parcialidade seria de outra natureza. Neste caso, porém, haveria menos dificuldades dese atingir um universal compartilhado, dada a ausência de contradições substantivas entre ospostulantes. É claro que tudo isso só se aplica a objetos de discussão passíveis de entendimento

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as diversas correntes científicas e filosóficas orbitam, ainda que ocorram con-vergências lógicas entre os discursos dos representantes – conscientes ou in-conscientes – das classes antagônicas, pois embora o sejam, compartilham omesmo tempo-espaço histórico real, bem como tangências lógico-discursivas.Essa parcialidade necessária pode vir camuflada sob uma falsa objetividadeuniversal (abstrata) ou pode estar explícita, sendo neste último caso política eteoricamente assumida em sua perspectiva particular da totalidade.

Vejamos um exemplo teórico concreto da segunda posição:

O problema do pós-colonialismo é indubitavelmente crucial;entretanto, os “estudos pós-coloniais” tendem a traduzi-lo para aproblemática multiculturalista do direito das minorias colonizadasde narrarem suas experiências de vítimas dos poderosos mecanis-mos que reprimem a “alteridade”, de modo que, ao fim do dia,aprendemos que a causa da exploração pós-colonial é a nossa in-tolerância perante o Outro, e, mais ainda, que essa intolerância épara com o “Estrangeiro em Nós mesmos”, é nossa inabilidadepara confrontar o que reprimimos em nós mesmos e de nós mes-mos. A luta político-econômica é então imperceptivelmente trans-formada em um drama pseudopsicanalítico do sujeito incapaz deconfrontar seus traumas interiores.67

Do que se trata aqui? Numa chave marxiana “ortodoxa”, Zizek identi-fica a centralidade da “luta político-econômica” nos problemas pós-coloniais,que são então “despsicologizados”.68 Por “luta político-econômica” podemosentender a luta de classes, que “não é o horizonte último da significação, osignificado último de todo fenômeno social, mas a matriz formal que produzos diferentes horizontes ideológicos de entendimento.” 69

oposto em função de interesses de classe divergentes. A este respeito, como dizia o Lukácsde “História e Consciência de Classe”, a parcialidade do ponto de vista da burguesia é neces-sariamente incapaz de atingir a totalidade, devido à parcialidade de seus interesses e condiçõesde existência, calcados na exploração do homem pelo homem. Já a parcialidade do ponto devista do proletariado, porém, tende à universalidade, à totalidade, pois sua humanidade só poderealizar-se plenamente abolindo a exploração do homem pelo homem.

67 ZIZEK, Slavoj. Have Michael Hardt and Antonio Negri Rewritten the Communist man-ifesto for the Twenty-First Century? In: Rethinking Marxism, no. 3/4, 2001. Documentoeletrônico: http://lacan.com/zizek-empire.htm. Acesso em: jun. 2006.

68 Sob este prisma, o “direito das minorias colonizadas de narrarem suas experiências de víti-mas” revela-se um dado secundário, ou mesmo uma armadilha, para a compreensão e resoluçãoda questão pós-colonial.

69 ZIZEK, Slavoj. Repeating Lenin. Documento eletrônico: http://www.lacan.com/replenin.htm. Acesso em: mar. 2004. Aqui, a noção de “ideologia” parece sera mesma de Mészáros: “consciência (prática) necessária de classe”.

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Tendo em conta as observações precedentes, é possível agora afirmar cate-goricamente que nenhum campo de conhecimento (seja comunicação, econo-mia, antropologia etc.) que pretenda trabalhar a partir do horizonte do marx-ismo pode perder de vista o seu caráter não somente não contemplativo, masrevolucionário, sob o risco de esvaziar o que essa “corrente filosófica”, parautilizarmos a terminologia de Martino, tem de mais vigoroso em termos “ax-iológicos”: sua perspectiva, ou melhor, sua exigência emancipatória. É emnome desta exigência, ainda que esteja fora de moda, que o rigor científicodeve ser exercido, ou que não se fale em marxismo.

Neste sentido, cabe aqui lembrar a clássica formulação de Lukács:

A dialética materialista é uma dialética revolucionária. Essadeterminação é tão importante e de um peso tão decisivo para acompreensão de sua essência, que, antes mesmo de discorrermossobre o método dialético em si, temos de entendê-la para abordar-mos o problema de forma correta.70

É chegado o momento de refletirmos sobre a própria razão de ser dessa“dialética revolucionária”.

Sabemos que se faz ciência para se compreender melhor o real, e que o realnão se esgota nas aparências. Tal compreensão, contudo, não pode mais ser umfim em si mesma, não pode mais ser meramente contemplativa, nem tampoucosubordinada ao capital, sob o risco de destruição de suas próprias condiçõesde realização futura, a começar pela própria vida na Terra; urge, assim, que aciência se torne práxis emancipatória.

Sabemos também que o conhecimento é uma produção social, um patrimônioda humanidade – pois para o seu desenvolvimento não foram e são necessáriossomente os “gênios criadores”, mas gerações de sujeitos anônimos que per-mitiram e permitem a esses “gênios” trabalhar. Deve, portanto, servir a todos,constituindo-se em instrumento de libertação e melhoria da vida de todos. Esteé o fundamento lógico e histórico da parcialidade axiológica aqui defendida.Além disso, se Bourdieu está correto ao afirmar que mesmo o nível técnico daprática científica está impregnado, consciente ou inconscientemente, das teo-rias que o fundamentam, as quais, por sua vez, são desdobramentos lógicosconsciente ou inconscientemente desenvolvidos a partir de uma ontologia e deuma concepção da história e da sociedade contidos no campo epistêmico ou

70 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003,pp. 64-5.

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paradigmático dos quais se desdobram, como é que a neutralidade axiológ-ica pode ser efetivamente neutra, seja na totalidade de uma pesquisa, comopropõe em outros termos o positivismo, seja somente em seu desenvolvimento,segundo a solução de Weber? No dizer de Mészáros: “A dimensão ideológ-ica envolve tanto a formulação dos problemas em si quanto a elaboração dedeterminadas soluções para eles [...].” 71

Em outras palavras, de um ponto de vista marxista, a ciência deve ser en-tendida como um permanente processo de desvelamento emancipatório dascontradições opressivas do real-histórico e do real-lógico. Essa concepção nãoé fruto de um imperativo ético abstrato. Ao contrário, o imperativo ético con-creto da solidariedade socialista é logicamente inferido do ponto de vista marx-ista. Pois o homem, enquanto “ser genérico” (Marx), só se faz plenamentehumano sendo o sujeito consciente do seu próprio destino, de sua vida. Paraviver, precisa trabalhar, isto é, produzir e reproduzir, a partir de necessidadese projetos, suas condições – materiais e espirituais – de existência. O homemenquanto ser genérico se faz humano, portanto, sendo sujeito consciente doseu trabalho.

Com a complexificação da divisão do trabalho, que acarreta o desenvolvi-mento das necessidades para além daquelas estritamente naturais, a satisfaçãodas necessidades de cada um depende cada vez mais do trabalho dos outros.A partir de um dado estágio, ninguém mais é capaz de suprir o conjunto desuas necessidades individuais, diretamente, com o próprio trabalho: a satis-fação das necessidades de cada um depende, assim, de trabalho social. Comoo homem só pode viver em sociedade, o conjunto dos homens só se faz ple-namente humano quando todos os homens tornam-se sujeitos conscientes dotrabalho social, isto é, o planejam e executam conforme suas próprias decisões,conscientes e comuns. Deste modo, negar a um único indivíduo que seja a pos-sibilidade de exercer sua humanidade enquanto sujeito consciente, em colab-oração com outros sujeitos conscientes, negar-lhe o poder de participar con-scientemente da definição da forma e dos objetivos desse trabalho social, énegar-lhe a humanidade de que é potencialmente possuidor, transformando-ode sujeito em objeto de um mecanismo estranho e opressor, que atende at-ualmente pelo eufemismo “mercado”. É por isso que Marx afirmou que ahumanidade ainda vive na pré-história.

Entretanto, ao tomar conta do mundo, o “mercado”, isto é, o capital, aospoucos transfere sua composição classista original, ainda que sob formas di-versas, para o resto do planeta, convertendo, sob matizes variados, todas as

71 MÉSZÁROS, Istvan. Filosofia, ideologia e ciência social, p. 52. Nesta mesma obra, vera contundente crítica de Mészáros a Weber.

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classes hegemônicas em burguesia, e todas as classes exploradas em prole-tariado (muitas vezes sob a condição de “exército de reserva”), globalizandoassim as contradições de classe que lhe são inerentes, e isto, para além dasdiferenças étnicas, culturais etc.. É isso, aliás, o que finalmente permite pen-sar na realização das condições necessárias para a unificação internacional dotrabalho em sua luta contra o capital.

A comunicação, na teoria e na prática, tem uma importante tarefa a de-sempenhar nessa luta, tendo em conta o seu não desprezível papel (atual epotencial) na formação dos gostos e desgostos, sobretudo diante da percepçãode que as formas mais brutais de desgosto – fome, violência, carestia etc. –são intimamente dependentes da captura dos gostos, hegemonicamente efe-tuada pelas ITCs a serviço do capital, o que remonta à relevância teórica epolítica de nosso objeto de pesquisa.

Há ainda quem diga que não há alternativa ao capital, e não são poucos.É certo que não há nenhuma alternativa certa. Mas é igualmente certo quea colaboração entre as pessoas é uma marca tão forte na história quanto acompetição e o conflito, e, mesmo que assim não fosse, a exigência ética dasolidariedade socialista – que, para realizar-se, parte do movimento dialéticoque articula a colaboração de classe em meio ao conflito / luta de classes –não se sustenta somente em termos de imperativos políticos e morais externosao debate epistemológico, mas de questões internas – pois, como visto, essasquestões interferem, e isso é inevitável, na formulação do objeto, na orien-tação metodológica etc. Como lembra corretamente Ilyenkov: “A solução doproblema corresponde à sua formulação.” 72

A exigência ética da solidariedade socialista, além disso, é realista, porser cultivada pelo próprio individualismo reinante sob o regime do capital.Pois dado que o indivíduo não quer ter sua individualidade diminuída ou de-struída, fatalmente deve concluir que a solidariedade é a culminância racionaldo individualismo, sua realização radical, enquanto o egoísmo é o estágio in-fantil da individualidade – é ignorância, ressentimento ou covardia. Porque,ainda que houvesse uma “natureza humana” supra-histórica e essencialmenteegoísta, conforme a posição de Hobbes e muitos outros, o imperativo da vidaem sociedade e o atual estado de desenvolvimento da ciência e das tecnolo-gias (em termos positivos), bem como os riscos entrópicos que o capitalismoproduz em escala cada vez maior (em termos negativos), tornam o socialismoenquanto sistema político e a solidariedade enquanto princípio ético perspec-tivas racionais e mesmo necessárias, não só para uma maior racionalidade

72 Cf. ILYENKOV. Dialectical Logic. Documento eletrônico:http://marx.org/archive/ilyenkov/works/essays/index.htm. Acesso em: set. 2006.

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econômica em termos gerais, mas igualmente para uma maior satisfação deprazeres e ambições radicalmente individuais de sujeitos realistas que tenhamultrapassado o egoísmo infantil, ressentido e covarde da consciência burguesaespontânea.

Se isso está correto, não se trata, pois, da defesa de imperativos éticos quenada tenham a ver com a ciência, mas de uma encruzilhada histórica diante daqual a ciência e, portanto, o debate epistemológico, geral e em comunicação,não deveria se abster de ao menos considerar com seriedade.

Essa idéia encontra-se sintetizada no seguinte desafio proposto por EmirSader:

Trata-se, pelo trabalho intelectual, de decifrar o enigma domundo contemporâneo entre uma capacidade tecnológica que per-mite aos homens fazer coisas cada vez mais incríveis e uma grandemassa da humanidade que não consegue ter acesso sequer a bensbásicos para sua subsistência. Decifrar o enigma entre o potencialde transformações do mundo que a ciência e a tecnologia colo-cam à disposição da humanidade e o sentimento de impotênciatotal que as pessoas sentem.73

A comunicação poderia contribuir positivamente para reverter esse senti-mento de impotência, ou ao menos para acelerar essa reversão tão necessária,pois uma transformação profunda da sociedade é impensável sem a mobiliza-ção das massas, sem que elas tomem gosto por essa possibilidade. E as massassó podem ser mobilizadas se for possível demonstrar – racionalmente e emo-cionalmente – que uma tal transformação é desejável e viável.

O universo discursivo das ITCs, porém, não somente desconsidera a per-spectiva socialista, como também o risco de entropia sociometabólica a qualo capital nos conduz, limitando-se a dramatizar, quando o faz, apenas um deseus aspectos, o ecológico, e mesmo assim sem ir a fundo em suas causas: oproblema ecológico só pode ser resolvido em conjunto com o problema social,isto é, com o problema econômico de fundo, a subordinação do trabalho aocapital e seu imperativo cego de reprodução ampliada.

É preciso que as pessoas saibam disso e sintam essa urgência, é precisoque tomem conhecimento de que há condições técnicas e materiais para seresolver a maior parte dos males que afligem a humanidade e a vida no planetaem geral. A realidade atual, em si mesma, contribui para isso negativamente,na medida em que se torna cada vez mais óbvia a inviabilidade insuportável

73 SADER, Emir. Intelectuais na globalização. Jornal do Brasil. Sábado, 19 / 02 / 2005.Documento eletrônico: http://jbonline.terra.com.br. Acesso em: fev. 2005.

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do modelo vigente. Mas isso não basta. E é aí que se mostra mais uma vez adimensão política do gosto e o importante papel mediador da comunicação.

Por outro lado, se é um equívoco menosprezar a potência conservadoraou revolucionária do fator ideológico, por outro não devemos superestimaressas potências a despeito de suas bases materiais. Tendo isto em conta, econsiderando a viabilidade da emergência de um movimento de massas rev-olucionário, José Paulo Netto74 vislumbra que ele “catalisará protagonistasque haverão de se confrontar [...] com algo mais que representações simbóli-cas” e “colocará em cena exigências sociopolíticas que obrigarão diretamenteao reconhecimento dos referentes materiais das estruturas discursivas”,75 bemcomo deverá provocar a mudança de posição de “um segmento expressivo deintelectuais pós-modernos”, que atravessará “a zona que separa a produção dodiscurso da transformação da vida”.

Em suma, a orientação epistemológica da presente pesquisa entende queuma epistemologia marxista coerente, rigorosa e politicamente revolucionáriadeveria consistir na suprasunção dialética76 do que seriam, conforme Eagle-ton,77 duas epistemologias de matriz marxista distintas. A primeira parte deuma concepção do marxismo entendido como “a análise científica das for-mações sociais”;78 na segunda, o marxismo seria pensado como “idéias emluta ativa”.79 Eagleton argumenta que essas duas concepções do marxismoconduzem a duas epistemologias diferentes. A primeira seria mais contempla-tiva e “científica”, no sentido usual do termo, a ciência então entendida como acorrespondência o mais adequada possível entre a consciência e o objeto. Já nasegunda, “a consciência é [...] parte da realidade social, uma força dinâmicade sua transformação potencial.” 80 Isso, todavia, não pode significar queas “idéias em luta ativa”, enquanto “força dinâmica” de “transformação po-tencial” da “realidade social”, possam prescindir de uma “máxima acuidadepossível de cognição”, isto é, de cientificidade. Esta, por sua vez, não pode ser

74 PAULO NETTO, José. Georg Lukács: um exílio na pós-modernidade. In: Pinassi e Lessa[orgs.]. Lukács e a atualidade do marxismo, pp. 100-1.

75 Nesse ponto, o autor insere uma nota de rodapé que vale a pena reproduzir: “Com suabritânica ironia, T. Eagleton (...) observou que ‘(...) nem os financistas nem os semiólogos têmgrandes simpatias pelos referentes materiais’.”

76 Do alemão aufhebung – suspender, no triplo sentido de conservar, negar, elevar; o termoé por vezes traduzida como “superação dialética”.

77 EAGLETON, Terry. A Ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental, in: ZIZEK,Slavoj (org.). Um Mapa da ideologia, p. 179.

78 Idem, ibidem.79 Idem, ibidem.80 Idem, ibidem.

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meramente contemplativa. Veremos agora mais detidamente como nasceu e seconsolidou essa posição.

4.5 A História de uma lógica revolucionária

Considerações como as desenvolvidas no capítulo anterior, por si sós, não re-solvem os problemas lógicos da prática científica, mas estes só podem serresolvidos, e ainda assim sempre parcialmente, através da autocrítica e dopróprio debate entre os pares, pois não faz sentido uma exposição particulardesdobrar-se em um metadiscurso que tente justificar o quão lógica ela mesmaé. Sua logicidade geral – isto é, sua coerência interna e seu poder explica-tivo, desvelador, em relação ao objeto estudado – deverá emergir da própriaexposição. Além disso, a logicidade metodológica (ou seja, a coerência in-terna e o poder explicativo de uma estratégia de pesquisa e de seus momentos/ procedimentos articulados) não pode ser apresentada, a não ser em termosmuito genéricos, de modo descritivo e esquemático na forma didática de uma“fórmula científica”.

Por essas razões,81 ao invés de se tentar demonstrar o quão lógica a pre-sente pesquisa é, optou-se por situá-la no contexto mais amplo do debate epis-temológico em torno da própria noção do que venha a ser “lógica”. Essa ad-vertência é necessária, pois, além do fato de pouco se tocar no assunto, aomenos no campo da comunicação, “lógica” é um conceito cuja transparênciadeve ser desmistificada, para o seu próprio bem. Deste modo, mesmo con-siderando que discutir mais detidamente o que seria “A” lógica extrapole osobjetivos deste trabalho, cabe desfazer a transparência do conceito e, alémdisso, precisar em que sentido está sendo utilizado.82

Tomemos por referência o excelente Dialectical Logic, de Ilyenkov, quetraça uma história crítica da lógica ao longo do desenvolvimento da ciênciae da filosofia modernas, de Descartes a meados do século XX, com destaque

81 E também pelo fato desta pesquisa estar originalmente vinculada institucionalmente a umalinha de pesquisa que tem a epistemologia como um tópico central.

82 Na maioria das vezes, os adjetivos lógico ou científico são empregados sem maiores es-clarecimentos como sinônimos de verdadeiro. Mas o assunto é mais complexo. Hegel, por ex-emplo, propõe que a lógica seja dividida em três seções ou aspectos: 1. o abstrato ou racional; 2.o dialético ou que faz sentido negativamente (“negatively reasonable”, nos termos de Ilyenkov);e 3. o especulativo ou que faz sentido positivamente (“positively reasonable”). Ilyenkov faz aressalva de que para Hegel esses três aspectos não devem ser entendidos como partes sepa-radas da lógica, mas como momentos que compõem “qualquer conceito ou verdade em geral”.(HEGEL apud ILYENKOV, op. cit.). Temos ainda a lógica de inspiração matemática, a clássicasilogística aristotélica e outras acepções possíveis, como veremos agora.

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para a obra de Marx. A seguinte passagem desta obra nos fornece um excelenteponto de partida para pensarmos o assunto:

[...] o que é hoje chamado de lógica são doutrinas que diferemconsideravelmente em sua compreensão dos limites dessa ciência.Cada uma delas, é claro, não só se confere o título como o direitode ser considerada o único estágio moderno no desenvolvimentomundial do pensamento lógico.83

Ou seja, “lógica” é um conceito polissêmico. Ilyenkov, em uma per-spectiva histórica, demonstra a validade dessa assertiva cotejando diferentesacepções do que viria a ser a lógica, concebidas por ilustres representantesda filosofia clássica alemã. Por exemplo, para Kant, “a esfera da lógica édelimitada com bastante precisão: só lhe compete fornecer uma exaustiva ex-posição e uma prova estrita das regras formais de todo pensamento.” 84 Já paraSchelling, a lógica não seria “um esquema para produzir conhecimento”, masum meio para comunicá-lo “através de um sistema de termos rigorosamentedefinidos e não-contraditórios”. 85

Com Hegel, a matéria de estudo da lógica é radicalmente redimension-ada. Não consiste mais nas regras formais de todo o pensamento, nem em umsistema terminológico rigoroso, mas na “história da ciência e da técnica86 co-letivamente criadas pelas pessoas, um processo praticamente independente davontade e da consciência dos indivíduos separados, embora concebido a cadauma de suas etapas precisamente na atividade consciente dos indivíduos.”87 Aisto, Ilyenkov acrescenta:

Este processo, de acordo com Hegel, também envolvia, comouma fase, o ato de conceber o pensamento na atividade objetiva,e através da atividade na forma de coisas e eventos externos àconsciência. Nisto, nos termos de Lenin, ele “chegou bem pertodo materialismo”.88

Ainda na chave hegeliana, categorias lógicas são “etapas no processo dediferenciação do mundo, ou seja, de seu conhecimento, e pontos nodais auxil-iando a conhecê-lo e dominá-lo.” 89

83 ILYENKOV. Dialectical Logic. Documento eletrônico:http://marx.org/archive/ilyenkov/works/essays/index.htm. Acesso em: set. 2006.

84 Idem ibidem.85 Idem ibidem.86 Grifos de Ilyenkov.87 Idem ibidem.88 Idem ibidem. Acrescentamos que o conceito de práxis já está contido aí, em germe.89 Idem ibidem.

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As anotações de Lenin (citadas por Ilyenkov) a este respeito são bastanteinstrutivas. Nestas, lê-se que “na seqüência geral de desenvolvimento das cat-egorias lógicas”, antes de tudo o mais surgem as “impressões”; então são de-senvolvidos os conceitos de qualidade e quantidade. Em seguida, emergemas noções de identidade, diferença, grau, essência versus fenômeno e causali-dade. Esses “momentos [...] da cognição se movem [...] do sujeito ao objeto,sendo testados na prática e chegando através deste teste à verdade.”

Temos então que:

Categorias lógicas são estágios (passos) na cognição, desen-volvendo o objeto em sua necessidade, na seqüência natural dasfases de sua própria formação, e de modo algum dispositivos téc-nicos do homem impostos ao tema, como se fossem um balde debrinquedo com o qual as crianças fazem bolos de areia.90

A lógica, assim, seria não um conjunto de regras formais do pensamento(aplicáveis especulativamente ao bel prazer do pensador), nem um sistema declassificação terminológica rigoroso para a comunicação do pensamento, masa ciência cujo objeto é o próprio pensamento em sua relação com o mundo econsigo mesmo, o que envolve a percepção e a prática. A lógica seria, portanto,a ciência do conhecimento, e a dialética, seu método, a expressão formal oumetódica do desenvolvimento do conhecimento, podendo portanto ser enten-dida como o bom método do pensamento sobre o pensamento em seu processode conhecer o real, que envolve a si próprio mas não se esgota em si.

Uma definição complementar de dialética:

A dialética, de acordo com Hegel, era a forma (ou método ouesquema) do pensamento que envolvia tanto o processo de eluci-dar contradições quanto o de solucioná-las concretamente no cor-pus de um estágio mais elevado e profundo de conhecimento domesmo objeto, rumo a uma investigação da essência do assunto.91

Mas como aplicar este método? Caio Prado Jr.92 ensina que o que difer-encia essencialmente o pensamento dialético do metafísico é, além da maiorimportância atribuída ao movimento e ao devir do que ao ser, a anterioridadedeterminante da categoria relação para com a identidade. Em outras palavras,o que é, é constituído em seu devir e em suas múltiplas relações com o que

90 Idem ibidem.91 Idem ibidem.92 Cf. PRADO Jr. Caio. Dialética do Conhecimento.

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não é. Além disso, no processo (movimento) de conhecimento, a relação dosujeito com a essência do objeto é sempre mediada por sua aparência. Nos ter-mos de Hegel: “Eu tenho a certeza por meio de um outro, a saber: da Coisa; eessa está igualmente na certeza mediante um outro, a saber, mediante o Eu.” 93

Deste modo, “nosso objeto é [...] o silogismo que tem por extremos o interiordas coisas e o entendimento, e por meio termo, o fenômeno. Pois o movi-mento desse silogismo dá a ulterior determinação daquilo que o entendimentodivisa através desse meio termo [...]”94 Essa “determinação ulterior” que o“entendimento” apenas “divisa através desse meio termo” é o conceito, e “oque importa no estudo da ciência é assumir o esforço tenso do conceito”.95

Além disso, a compreensão da relação entre objetos diferentes é sempremediada por um terceiro elemento que não é nem o objeto A nem o objetoB, mas algo que lhes é comum. Ilyenkov ilustra esse processo da seguintemaneira:

Não faz sentido comparar [...] o gosto de um bife e a diagonalde um quadrado [...] Quando queremos estabelecer algum tipo derelação entre dois objetos, nunca comparamos as qualidades “es-pecíficas” que fazem de um objeto a “sílaba A” e de outro uma“mesa”, um “bife” ou um “quadrado”, mas somente aquelas pro-priedades que expressam um “terceiro” algo, diferente de sua ex-istência como coisas enumeradas. As coisas comparadas são vis-tas como diferentes modificações desta “terceira” propriedade co-mum a todas elas [...] Então, se não há um “terceiro” na naturezade duas coisas, comum a ambas, mesmo as diferenças entre elasse tornam sem sentido.96

Em que medida essas reflexões nos podem ser úteis? Na medida em queesclarecem alguns aspectos básicos da lógica dialética,97 de grande importân-cia para um estudo do gosto. Vejamos: a dialética considera o perceber ea prática como momentos do conhecimento; estabelece a anterioridade dasnoções de relação e de movimento para com a noção de identidade; demonstraque a relação entre essência e entendimento é mediada pelo fenômeno, pelaaparência. Em uma primeira aproximação, pensemos o gosto nessa chave:98

93 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Parte I. Petrópolis-RJ: Vozes, 1997, p. 74.94 Idem ibidem, p. 103.95 Idem ibidem, p. 53.96 Ilyenkov, op. cit.97 Das categorias “totalidade” e “contradição” trataremos mais adiante.98 Essa “dialética do gosto” será retomada e desenvolvida no capítulo 5.

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para começar, o gosto é usualmente tido como algo relacionado com a “per-sonalidade”, isto é, com a identidade mais íntima de cada indivíduo, como sefosse algo inato, acabado, fechado. Na realidade, é o contrário que ocorre,isto é, essa “personalidade” só pode ser entendida através do que a relaciona– ou não – com o que (quem) ela não é, com algum objeto (alguém) externoa ela, porque é o conjunto de suas relações com o que (quem) ela não é quea constitui. Essas relações, além de dinâmicas, são extremamente complexas,podendo mesmo ser de apreço ou de desapreço com o mesmo objeto em difer-entes momentos; nesse caso, cada momento é um elemento mediador da re-lação constitutiva da identidade (já que falamos nisso).

Como sabemos, o próprio conceito gosto traz em sua origem etimológicauma cisão interna, entre as noções de sabor e saber, tornados estranhos um aooutro. Além disso, só pode ser compreendido à luz da relação do sujeito (cin-dido em sujeito sensível e cognoscente) com o objeto degustável, relação estamediada por um “novo” terceiro elemento, aquele precisamente que cria noprimeiro a propensão para o segundo, e que cria o segundo para o primeiro: a“camada geo-tecno-social” onde ambos, sujeito e objeto, se situam, base mate-rial da cultura mediante a qual surgem as disposições do primeiro e a existênciado último, cultura esta que, por sua vez, só é realisticamente compreensível àluz de certas condições sociohistóricas de emergência e continuidade; estasenvolvem um complexo de fatores, com destaque, em termos históricos, paraas determinações da troca ou do uso, dialeticamente articuladas, com a pre-dominância da primeira a partir da hegemonia do capital, sendo o uso subor-dinado à troca mediado pelo gosto anteriormente produzido e pela reproduçãoou transformação das condições técnicas de produzi-lo (ao gosto e ao objeto),o que envolve uma série infindável de relações dinâmicas e, com freqüência,antagônicas e contraditórias. O mesmo se dá com o desenvolvimento dos con-ceitos – que só podem ser adequadamente compreendidos à luz de sua relaçãomuitas vezes antagônica e contraditória com o universo conceitual no qualfazem sentido e com o real extraconceitual, bem como com outros conceitosespecíficos, e, é claro, consigo mesmos. Em todas essas relações, a mediaçãode um terceiro elemento é sempre necessária para uma adequada compreensãode sua natureza / identidade dinâmica e para a superação de eventuais antino-mias internas ou externas (de um conceito consigo mesmo, entre um conceito eoutro conceito, entre um conceito e um universo conceitual ou entre conceitose fatores extraconceituais).

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Essa “lei” dialética se encontra implícita na teoria do valor de Marx, 99 naqual ele identifica o trabalho como sendo essa “terceira propriedade” comuma duas coisas diferentes – casa e cama, no exemplo de O Capital –, na ausênciado qual não seria possível comensurá-las.

Nesse ponto, nos deparamos com uma questão metodológica decisiva, essen-cial para que o método dialético seja fértil e realista, para que não se perca emespeculações vazias: a que “terceira propriedade” recorrer, dada a infinidadede escolhas possíveis? No caso de Marx, por que o trabalho, ao invés de out-ras mediações concebíveis, como a materialidade de ambas, a “substância”madeira, que é comum a mesa e cama, a “propriedade” de ambas serem úteisou o que for? Porque o trabalho é, em sua facticidade, a condição última, sema qual há madeira, mas não cama ou casa, portanto nada a ser usado. Porqueo trabalho é a interação humana teleológica com a natureza, visando à criaçãode um valor de uso, ou seja, ele tem como pressupostos o objetivo subjetiva-mente elaborado, que é o uso em potência, o material, que é a madeira, e aação necessária para converter o material em algo efetivamente útil.

Isso responde à questão metodológica da hierarquia das mediações (quesão potencialmente infinitas), a ser estabelecida no processo de produção doconhecimento: sua ordem de necessidade para que algo exista e seja com-preensível.

Bem antes de desenvolver sua teoria do valor, porém, Marx se viu diantede um dilema teórico, de cuja resolução dependeria toda a evolução de suaobra ulterior, a saber: como conciliar em uma síntese superior a dialética “ide-alista objetiva” de Hegel com a crítica que lhe era dirigida pelo materialismo“contemplativo” de Feuerbach?100

Sabemos que desde Engels,101 esse tópico tem sido exaustivamente vistoe revisto, o que torna desnecessário retomá-lo mais exaustivamente. Não ob-stante, é conveniente abordá-lo agora, de modo breve, já que teria sido a partir

99 “Ao desvendar o segredo da auto-expansão do valor, ou seja, o segredo da produção eda acumulação de mais-valia, no Capital, Marx empregou (e não por acaso, mas deliberada econscientemente) o conjunto da terminologia da lógica hegeliana [...] e de sua concepção dopensamento.” Cf. ILYENKOV. Op. Cit.

100 Não pretendemos aqui dizer que Marx tenha formulado a questão precisamente nessestermos, somente que é disso que se tratou. Sampaio e Celso Frederico, por exemplo, situam na“contestação feuerbachiana a Hegel”, “uma encruzilhada decisiva na evolução do pensamentomarxiano”, a partir da qual Marx iria desenvolver o conceito de práxis. Cf. SAMPAIO, Bene-dicto Arthur e Celso Frederico. Dialética e materialismo: Marx entre Hegel e Feuerbach, p.57.

101 Cf. ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.

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de sua confrontação com a crítica de Feuerbach a Hegel,102 que Marx introduza categoria de práxis, cuja importância seminal seria enriquecer o pensamentomaterialista, permitindo que se efetuasse um resgate logicamente coerente dasnoções de totalidade e de racionalidade histórica, categorias fundamentais dadialética hegeliana, ao mesmo tempo em que fornecia a essas categorias umasólida base materialista, depurando-as dos exageros e fantasias advindos deseu caráter abstratamente especulativo, bem como de suas conseqüências po-liticamente conciliatórias e conservadoras.

A categoria de práxis, enquanto “mediação material ativa”,103 dá assimnova vida ao método de Hegel, articulando-o com um materialismo agora nãomais contemplativo, como o de Feuerbach, mas que ao mesmo tempo se man-tém fiel à correta crítica deste último ao lado idealista e especulativo da di-alética hegeliana. É por isso que Sampaio e Celso Frederico argumentam, comelegância, que:

Nem Hegel, do fundo obscuro de suas metamorfoses ideais,nem Feuerbach, da superfície clara de suas constatações empíri-cas, jamais poderiam alcançar a noção de uma mediação materialativa, como a contida no conceito revolucionário de práxis. E éjustamente aí que se vai introduzir o núcleo racional de uma di-alética “desmistificada”, que se vai propor um materialismo racional[...]104

Marx, a partir deste movimento, pensando “a totalidade hegeliana no mundoda matéria”, terá estabelecido a base de “um novo materialismo, não mais em-pírico como o precedente, mas dialético.” 105 E revolucionário.

4.6 Diretrizes para uma crítica da economia políticada comunicação

Podemos agora, sem desconsiderar eventuais contribuições de outras matrizesteóricas, começar a demonstrar de que modo uma crítica da economia políticada comunicação pode auxiliar na elaboração de uma análise mais consistentedo papel das ITCs na perpetuação da fome de comida, afeto e sentido que

102 Que consistia, entre outras coisas, em Feuerbach negar o valor explicativo das “mediações”especulativas de Hegel.

103 Idem, ibidem.104 Idem, ibidem.105 Idem ibidem, pp. 59-60.

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geram tanto desgosto, apesar do espetáculo. Ao mesmo tempo, estaremostambém em condições de pensar sua contribuição potencial no sentido da su-peração dessa miséria intolerável, estúpida e contingente, razão pela qual umatal superação é historicamente concebível – mas só o é de modo realista paraalém do capital.

Diante dessas premissas, surge a questão metodológica “de fundo” da pre-sente pesquisa, que só agora pode ser adequadamente formulada: de que modoo marxismo, em especial a dialética materialista contida no pensamento eco-nômico maduro de Marx, pode ser útil para se pensar o gosto e a comunicaçãona atualidade?

Em primeiro lugar, considerando o gigantismo das ITCs à luz da lei di-alética da transformação de mudanças quantitativas em qualitativas. Comodizia Debord, “o espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que setoma imagem.”106

O capital se tornar imagem significa dizer que a espetacularização midiáticatornou-se uma das metamorfoses necessárias do capital em seu processo de re-produção ampliada, a tal ponto que hoje, em geral, se investe muito mais naimagem dos produtos e em sua difusão do que em sua produção. Essa idéia éamplamente confirmada pelos seguintes dados e argumentos de Dowbor:

No final das contas, considerando que uma considerável alíquotado preço da maioria dos produtos anunciados e consumidos, comfreqüência a maior parte do seu preço, deve-se aos custos compublicidade, no final das contas quem paga pelas atrações “gratu-itas” é o conjunto dos consumidores dos produtos anunciados nosintervalos comerciais, classificados ou sejam quais forem os es-paços publicitários da mídia em questão. Um exemplo concreto,já ‘clássico’, nos é fornecido pela Nike, que vende por preços queoscilam entre 70 e 130 dólares um par de tênis cujo custo físicode produção é da ordem de 10 dólares. Perguntada como con-seguia vender a 100 dólares um produto de menos de 10 dólares,a Nike, que apenas coordena o ciclo econômico, e não produz tê-nis nenhum, respondeu simplesmente: ‘Nós não vendemos tênis,vendemos emoções’. A Nike gasta fortunas com publicidade, oque permite associar o tênis produzido por jovens mal-pagas naÁsia, com os poderosos músculos de Michael Jordan. [...]

A publicidade deixa, assim, de ter uma dimensão dominante-mente informativa. Torna-se um elemento de valorização cultural,

106 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, tese 34. Documento eletrônico:http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540/. Acesso em: jun. 2005.

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de reconstrução de identidade para uma sociedade de identidadecada vez mais perdida. O elemento cultural deixa de ser supere-strutural e torna-se o processo central da reprodução econômica,o locus privilegiado de geração de lucro.107

Para entendermos isto melhor, devemos partir de três dados empíricos: aescala operacional global das ITCs, a velocidade que imprimem aos fluxos in-formacionais e materiais, e sua pregnância social inédita. Esses três fatores,em conjunto, por sua vez, geram dois efeitos principais: 1) ganho de escala,devido tanto à minimização do custo unitário das mercadorias, resultante nãosó da escala operacional, mas também da informatização de grande parte dosprocessos produtivos – alterando a composição orgânica do capital no sen-tido previsto por Marx, de substituição crescente de trabalho vivo por trabalhomorto – e da diminuição do tempo das rotações do capital, possibilitada pelaaceleração dos fluxos informacionais e materiais; e 2) posição hegemônica dasITCs em meio às demais instâncias de reprodução ideológica (religião, escolaetc.)108 e de formação dos gostos.

Relacionando então o gigantismo das ITCs e de seus efeitos com o gostoenquanto expressão e medida dos valores de uso, temos a tendência da subor-dinação do valor de uso ao valor de troca levada a um tal extremo que o gostotorna-se mais do que nunca refém do imperativo da reprodução ampliada docapital. Nos termos de Mészáros:

As mais variadas qualidades do valor de uso devem ser sub-sumidas a quantidades determinadas de valor de troca, antes quepossam adquirir legitimidade própria para serem produzidas; e de-vem constantemente provar a sua viabilidade – não em relação

107 DOWBOR, Ladislau. Economia da Comunicação. In Dowbor, Ladislau et al (orgs.):Desafios da Comunicação, pp. 50-51. O importante argumento contido na última sentençaserá retomado no capítulo 5.

108 Aqui, empregamos à noção de ideologia em uma acepção neutra, que corresponde a umavisão de mundo não-científica, mas não necessariamente “errada”, com ampla penetração pop-ular. É diferente do emprego que Marx e Engels, na maioria das vezes, faziam do termo, emuma acepção negativa. Nesta, só seriam ideológicas especificamente aquelas idéias que susten-tassem e legitimassem a dominação classista, direta ou indiretamente, mas não necessariamenteo conjunto das idéias dominantes de uma época. Assim, ao atribuirmos o adjetivo “ideológico”,em sua acepção negativa, a um pensamento dado, estamos considerando que este pensamento deum modo ou de outro legitima a subordinação do trabalho ao capital. Este ponto será estudadomais detidamente no capítulo 5 deste trabalho. Para um desenvolvimento dessa problemática,cf. LARRAIN, Jorge. Stuart Hall and the marxist concept of ideology. In: Stuart Hall: Di-alogues in Cultural Studies. Ver também SCHNEIDER, Marco. Mídia, Política e Ideologia.In: Revista Fronteiras, pp. 54-61.

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às necessidades humanas qualitativamente diferentes, mas sob oscritérios estritamente quantitativos da troca de mercadorias.109

Sem utilizar diretamente o conceito gosto, Marx, em diversas passagensde sua obra, antecipa essa tendência, que consiste mesmo na contradição cen-tral do capitalismo. Há uma formulação do Capítulo VI (inédito) do Capitalna qual isso fica particularmente claro. Nela, Marx destaca a importância daescala da produção e do imperativo da reprodução ampliada no processo emmeio ao qual o caráter de mercadoria, “como forma universalmente necessáriado produto”, faz a propriedade deste último de satisfazer necessidades hu-manas aparecer “como algo inteiramente fortuito, indiferente e não essencial”:

Este produto massivo terá que se realizar como valor de troca,sofrer a metamorfose da mercadoria não só como uma necessi-dade para a subsistência do produtor que produz como capitalista,mas também como necessidade para a renovação e continuidadedo próprio processo.110

A questão da escala é importante para compreendermos a amplitude e aintensidade das mudanças em curso. Numa produção em pequena escala,pode-se perfeitamente conceber a prioridade do consumo sobre a produção,ou do valor de uso sobre o valor de troca, desde que, claro, a produção sejaeconômica e tecnicamente viável. É o que acontecia nas oficinas de artesãosmedievais e mesmo nos primórdios do capitalismo. Ocorre que a partir domomento em que a escala operacional se agiganta, isto começa a se inverter.Emblemático, nesse sentido, é o momento fordista, quando eram fabricadasmilhões de cópias do mesmo modelo de automóvel. Percebeu-se, em seguida,que pequenas variações seriam possíveis, e o modelo único foi superado poruma variedade de modelos que, não obstante, como qualquer criança poderiaperceber, no dizer de Adorno e Horkheimer,111 eram praticamente os mesmos.O mesmo se deu no conjunto da produção capitalista, seja de roupas, alimen-tos, filmes ou canções.112

109 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, pp. 946-7.110 MARX, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultados do processo de produção

imediata. São Paulo: Moraes, s/data, p. 145.111 Cf. ADORNO, Theodor W. e Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1985.112 Cf. SCHNEIDER, Marco. 2003. Música e capital midiático: introdução a

uma crítica da economia política do gosto. Rio de Janeiro, RJ. Dissertação (Mestradoem Comunicação e Cultura). Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de

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Hoje, esse processo se globalizou, atingindo inclusive “produtos” que atébem pouco tempo atrás eram caracteristicamente regionais, marcados mesmopor um forte bairrismo, como os times de futebol, alguns dos quais chegama conquistar torcedores de outras cidades e mesmo países. Não é necessáriodizer que isto ocorre precisamente com aqueles clubes que mais investem cap-ital em jogadores, os quais se convertem em imagem espetacular. Esses jo-gadores, assim, atuam como uma mediação necessária do capital na etapa es-petacular de suas metamorfoses.

Tudo isso ocorre porque a necessidade do capital de crescer, a despeito dasconseqüências catastróficas já tornadas óbvias deste crescimento, impõe-se aoconjunto da humanidade com uma tal força que os gostos, maleáveis como assubjetividades individuais nas quais se formam e que são em parte por elesformadas, devem se adaptar a ela e não o contrário. Ou seja, o capital seconverteu em uma potência universal, que se confronta com cada indivíduonuma disparidade de forças absurda.

Por outro lado, uma mudança nos gostos seria um duro golpe no capital,se esta mudança vier associada a uma tomada de consciência de classe113 porparte dos produtores. Já na esfera do consumo, uma paralisia deliberada e cal-culada nas compras ou uma reorientação consciente certamente provocariamabalos consideráveis no sistema. Os gostos, entretanto, só poderiam mudar emescala substantiva com o auxílio das ITCs. Para isso, porém, estas têm quedeixar de ser um instrumento do capital.

Uma outra contribuição do marxismo nesse sentido está no fato de o marx-ismo trazer em seu bojo uma concepção da ciência (uma epistemologia), dasociedade e da história (uma ontologia) fundamentalmente dinâmicas, realis-tas e rigorosamente lógicas, não se limitando a buscar “compreender” o realhistórico – incluindo as superestruturas – como uma atividade que tem seu fimem si mesma, mas articulando teoria e prática em uma práxis, calcada emuma parcialidade axiológica crítica para com o presente e generosa para como futuro. Isto torna o marxismo não só atraente como necessário em umaépoca catastrófica, sobretudo se considerarmos nosso lugar de fala, a AméricaLatina, o Brasil e, mais especificamente, o eixo Rio-São Paulo. Aqui, hoje,talvez não interessem tanto, em si mesmas, as sutilezas volitivas das açõessociais, tampouco as funções ou estruturas dos fatos sociais ou dos discursospolissêmicos, como algo a ser meramente compreendido contemplativamentee, quando for o caso, ajustado por ações políticas pontuais, mas a busca do

Janeiro, e A Sociogênese do capital midiático através da música. Documento eletrônico:http://www.cubaliteraria.com/premio/contracorriente/esp/premio_7.htm. Acesso em: jun.2006.

113 Retomaremos esse tema adiante.

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ponto arquimedeano dessa realidade violenta e caótica,114 ponto através doqual a inflexão da ciência na política e desta nas massas – ação em meio a quala comunicação tem um papel decisivo a desempenhar – poderia alavancar suasuprasunção. Deste modo, uma outra contribuição teórica de peso do marx-ismo para os problemas apresentados, desta vez em um registro menos geral emais próximo da comunicação, encontra-se na célebre sentença de Marx sobrea “arma da crítica”. Nesta passagem, Marx se refere ao poder transformadorda teoria. Esta, embora por si só não baste para transformar a realidade mate-rial, a qual só pode ser materialmente transformada por forças materiais, “setransforma em uma força material no momento em que domina as massas.”115

Trata-se então de atualizar esta reflexão marxiana à luz da configuraçãoatual das ITCs. Uma boa orientação para esta tarefa pode ser encarar o seguintedesafio apresentado por Ramonet: “(...) não podemos fazer contra-informaçãocom um discurso efetivamente infantilizante. E a dificuldade está em construirum discurso de contra-informação que apresente também características desedução, ou seja, que não se dirija a uma pequena minoria, mas que possadirigir-se também às massas [...]”.116 Ramonet ainda argumenta, em defesadesta idéia, que não basta possuir “a verdade”,117 é necessário comunicá-la.

Mészáros, por seu turno, nos fornece mais alguns subsídios teóricos es-tratégicos para a investigação de nosso problema atual, com destaque para odiagnóstico de que “[...] as ideologias dominantes da ordem social estabele-cida desfrutam de uma importante posição privilegiada em relação a todas asvariedades de ‘contraconsciência’.” 118 Isto se dá porque as primeiras contam,no debate ideológico, com o apoio econômico, cultural e político do sistema,

114 “Marx jamais deixou de insistir que o potencial fundamentalmente subversivo e transfor-mador do processo histórico em desenvolvimento era o übergreifendes Moment da dialética dainteração social.” MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004, p.252.

115 MARX, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, apud MÉSZÁROS, Istvan. O Poder daIdeologia, pp. 169-70.

116 RAMONET, Ignacio. O Poder midiático. In: MORAES, Dênis de (org.). Por umaoutra comunicação, p. 249. Pouco antes deste trecho, Ramonet havia caracterizado o discursohegemônico na grande mídia como “infantilizante”, por ser construído de um modo similar àfala que usualmente dirigimos às crianças: breve, superficial e calcada no apelo emocional. Étambém importante acrescentar que, na seqüência direta desta passagem, seu autor esclarece en-faticamente que a contra-informação não deve tampouco consistir em “um discurso doutrinário,dogmático”.

117 Não cabe aqui entrarmos no mérito do debate filosófico em torno da noção de verdade. Opróprio Ramonet, em outra passagem do mesmo artigo, deixa claro que se refere a “verdadesfactuais”, facilmente demonstráveis, em oposição à manipulação conservadoramente tenden-ciosa de informações predominante na grande mídia.

118 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 233.

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o que lhes permite ditar as próprias condições do debate, bem como estabele-cer os critérios de validade dos argumentos envolvidos, o que “acaba trazendosérias conseqüências para os intelectuais que tentam articular alguma forma decontraconsciência, pois são obrigados a reagir às condições expostas, em umterreno escolhido por seus adversários.”119

Mais adiante, na mesma obra, Mészáros se aproxima ainda mais de Ra-monet ao destacar como uma das principais armas a serviço da ideologia domi-nante a mistificação, “por meio da qual as pessoas que sofrem as conseqüênciasda ordem estabelecida podem ser induzidas a endossar, ‘consensualmente’,valores e políticas práticas que são de fato absolutamente contrários a seus in-teresses vitais.” 120 A luta da contra-informação (ou da contra-consciência)contra a ideologia dominante é portanto uma luta desigual também pelo fato deque “o poder da mistificação sobre o adversário é um privilégio da ideologiadominante”.121

Eis alguns dos problemas que têm de ser enfrentados no campo da comu-nicação pelos “intelectuais que tentam articular alguma forma de contracon-sciência”. O desafio não é fácil, mas enfrentá-lo é necessário. E apesar de apresente pesquisa não ter a pretensão de apresentar uma solução definitiva paraele, pode talvez contribuir para a sua solução, delineando os contornos do quefazer e trazendo para o debate o importante papel do gosto na sedimentaçãodas ideologias, no confronto ideológico e no coração da própria economia.

Seguindo essa trilha, devemos então investigar a validade e os limites daseguinte hipótese: serão os imperativos político-ideológicos, mas sobretudocontábeis, da esfera produtiva do sistema, que norteiam, no âmbito das ITCs,esta subordinação inconsciente do gosto, que permanece restrito à esfera doconsumo, à lógica da reprodução ampliada do capital? A produção então deter-mina em última instância o consumo? A resposta só pode ser positiva, mas estaafirmação deve ser feita com uma certa cautela, pois, como já dizia Lukács:

Trata-se de um lugar-comum a afirmação de que, para a on-tologia marxista do ser social, cabe à produção uma importân-cia prioritária; mas, não obstante sua correção genérica, essa afir-mação – precisamente por ter sido radicalizada nas formulaçõesvulgares – obstaculizou freqüentemente a compreensão do autên-tico método de Marx e levou a um falso caminho. Devemos ex-aminar aqui [...] essa prioridade, e compreender melhor o con-

119 Idem ibidem.120 Idem ibidem, p. 472.121 Idem ibidem.

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ceito marxiano de momento predominante no âmbito de inter-ações complexas.122

Este ponto será amplamente discutido no local apropriado. Por ora, cabeantecipar a seguinte sentença de Marx, a nosso ver decisiva sobre a relaçãoessencial entre produção e consumo sob o regime do capital: “O volume dasmassas de mercadorias produzidas pela produção capitalista é estabelecidopela escala dessa produção e pelo imperativo de expansão contínua dela, enão por uma órbita predeterminada da oferta e da procura, das necessidades asatisfazer.” 123

Se assim é, devemos concluir que as ITCs, em função da concentraçãode capital intensiva de que são fruto, resultado da convergência tecnológica eempresarial, possibilitadas pela revolução digital, efetivamente contribuem demodo brutal para que a subordinação dos valores de uso dos bens simbólicosmassivos aos seus valores de troca tenda a ser total na esfera da produção eda circulação, o que torna o consumo necessariamente subordinado aos im-perativos do capital, no que pese a relativa importância prática e teórica das“recepções ativas”, das “reapropriações de sentido” etc.

Incorporando agora à reflexão um novo tópico, imprescindível para qual-quer estudo de comunicação que se desenvolva a partir da chave teórica aquiadotada, ou seja, a relação entre a luta de classes e a “cultura de massa”, éimportante considerar a seguinte orientação metodológica geral: “(...) haveriaque combinar na análise tanto os problemas de dominação política e cultural,pelos quais se constrói e exerce a hegemonia de uma classe ou setor de classe,com as diferentes realidades culturais vividas pelas classes em presença.”124

Entretanto, diante da configuração geral que identificamos na correlaçãode forças entre produção e consumo, nos parece que “os problemas de dom-inação política e cultural”, junto às “fortes tendências de homogeneização”,constituem o übergreifendes-Moment na dialética deste processo, na medidaem que contribuem para a manutenção do sistema em seu esforço de subor-dinar ou adaptar “as diferentes realidades culturais vividas pelas classes em

122 LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os Princípios ontológicos fundamentais deMarx, p. 66.

123 MARX, Karl. O Capital. Livro II, p. 86. No que pese a importância da famosa e sofisti-cada dialética produção / circulação / consumo desenvolvida nos Grundrisse, e que se refere aesta relação em geral, valendo para todas as épocas, a passagem aqui citada do livro 2 do Capitalé conclusiva quanto ao modo como a relação produção / consumo se dá sob o capitalismo. Alémdo mais, em todas as épocas, como práxis ou “mediação ativa” que ocupa ontologicamente umaposição de antecedência necessária em relação aos momentos da circulação e do consumo, aprodução é sempre o übergreifendes-Moment de qualquer ciclo econômico.

124 LOPES, Maria Immacolata V. Pesquisa em comunicação, p. 18.

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presença”. Cumpre, assim, entender em que medida essas realidades culturaiscontribuem para a reprodução ou para a superação do sistema, amalgamando-se confortavelmente, resistindo ou se opondo a ele, e ainda de que forma –reacionária, conservadora, progressista, revolucionária. Isto não significa a de-fesa da restrição dos estudos de comunicação aos aspectos da dominação etc.,apenas a ênfase necessária nesses aspectos, aliada à incorporação das conquis-tas dos estudos culturais, por exemplo, em uma perspectiva crítica que nãose limite a tentar entender como os pobres “se viram”, criam novos sentidosno consumo etc., mas que auxilie na compreensão do efetivo poder dessas vi-rações e criações no sentido de minar o capital.

Encerrando aqui o debate metodológico, podemos agora formular os ob-jetivos específicos da presente pesquisa, nos seguintes termos: 1) identificarde que modo as ITCs são peça chave na subordinação dos gostos aos imper-ativos políticos e contábeis do capital; 2) demonstrar que essa subordinação énecessária ao capital e, conseqüentemente, que seu fim é necessário para a su-peração do capital; 3) investigar como os estudos de comunicação têm, diretaou indiretamente, lidado com este problema; e 4) descobrir que lutas devemser prática e teoricamente travadas, em geral e no campo da comunicação, nosentido de se reverter este quadro. O último item corresponde ao “objetivoprático” da pesquisa.

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Capítulo 5

FETICHE DO VALOR ELUTA DE CLASSES

Lutas políticas e socioeconômicas constituem uma unidadedialética e conseqüentemente a negligência da dimensão socioe-conômica despoja a política de sua realidade. (Mészáros)1

Hoje, mais do que nunca, devemos retornar a Lênin: sim, a economia é odomínio chave, a batalha será decidida aí [...] mas a intervenção deverá ser deordem política, não econômica. (Zizek)2

Para atingir os objetivos propostos, é importante nesse momento da ex-posição efetuarmos um pequeno desvio em relação ao nosso objeto, que seráretomado em seguida. Esse desvio nos conduz ao debate em torno de umtópico polêmico da literatura marxista, a saber, o caráter complementar deduas categorias nucleares no pensamento de Marx: fetiche do valor e lutade classes. A tese aqui defendida é que esta complementaridade, negada porum importante autor marxista contemporâneo, Robert Kurz, é necessária parauma compreensão correta das contradições sociais do capitalismo, do papeldas ITCs nos dias de hoje, para a emergência de uma renovada consciência declasse e, conseqüentemente, para a elaboração de novas práxis para além docapital.

Quanto ao último ponto, há cerca de duas décadas, Perry Anderson obser-vou com acerto: “Mais do que uma ‘miséria da teoria’, o que o marxismo pos-terior ao marxismo ocidental continua a partilhar com seu predecessor é uma

1 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, 2002, p. 566.2 ZIZEK, Slavoj. Have Michael Hardt and Antonio Negri Rewritten the Communist man-

ifesto for the Twenty-First Century? In: Rethinking Marxism, no. 3/4, 2001. Documentoeletrônico: http://lacan.com/zizek-empire.htm. Acesso em: jun 2006.

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‘miséria da estratégia’.” 3 Ou seja, apesar da riqueza da fortuna teórica do“marxismo ocidental” nos campos da epistemologia, da estética e da filosofia,haveria uma carência de reflexões teóricas de cunho estratégico revolucionário.

Poucos anos antes de Anderson, o “velho” Lukács, em entrevista a Le-andro Konder, embora sem se dirigir propriamente ao “marxismo ocidental”,toca nessa questão ao criticar a herança “taticista” de Stalin: “A teoria ficareduzida à condição de escrava da prática e a prática perde sua profundidaderevolucionária. Os efeitos de semelhante situação são catastróficos.” 4

Ou seja, de um lado, um “desvio teoricista”, que ao reivindicar a atualidadeda crítica marxiana ao fetiche do valor, reivindica ao mesmo tempo o abandonoda noção de luta de classes. É o caso de Robert Kurz. De outro, o “taticismo”criticado por Lukács, que tem sido nas últimas décadas a marca de boa partedos partidos de esquerda. O quadro resultante é uma ausência de estratégiasrevolucionárias capazes de, à luz das vitórias obtidas e fracassos sofridos aolongo do século XX, oferecer alternativas realistas, isto é, factíveis e capazesde mobilizar as massas.

Um dos objetivos da presente pesquisa, como anteriormente mencionado, écontribuir, ainda que modestamente, para a elaboração desta estratégia, trazendopara o debate o papel das ITCs na subordinação do gosto ao capital, bem comoo potencial revolucionário dos gostos, cuja atualização depende em grandeparte de uma apropriação social das ITCs.

Neste ponto da investigação, iremos estudar a hipótese de esta “miséria daestratégia” dever-se, ao menos em parte, além de aos rumos no geral catastró-ficos tomados pelo “marxismo oriental”,5 a uma espécie de cisão teórica efe-tuada por algumas das principais correntes do “marxismo ocidental”: de umlado, o abandono da questão da “luta de classes”, presente na maior parte dosprincipais autores da “Escola de Frankfurt” (Adorno, Horkheimer, Marcuse eHabermas) e, hoje, em Robert Kurz, que em certa medida pode ser consideradouma espécie de herdeiro heterodoxo seu; de outro, o abandono da problemáticado fetichismo da mercadoria, em Althusser e em sua “escola”, e da crítica da

3 ANDERSON, Perry. A Crise da crise do marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 31.4 Ver “A Autocrítica do Marxismo”, entrevista concedida a Leandro Konder e publicada no

Jornal do Brasil, em 24-25 de agosto de 1969. In: PINASSI, Maria Orlanda e LESSA, Sérgio(orgs.) Lukács e a atualidade do marxismo, p. 126.

5 O processo em curso na China de hoje, por si só, mereceria uma série de estudos específi-cos. Infelizmente, tal tarefa foge aos objetivos deste trabalho e está além da minha competênciaatual. Para uma boa introdução ao tema, bem como para uma visão alternativa à noção decatástrofe referente aos destinos do modelo soviético, ver LOSURDO, Domenico. Fuga daHistória?

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economia política em geral, nos estudos neo-gramscianos de teor culturalista,que têm tido, ultimamente, maior influência no campo da comunicação.6

No primeiro caso, a adesão de grande parte do movimento operário alemãoao nazi-fascismo e, posteriormente, a políticas reformistas de cunho social-democrata é o que justificou o esvaziamento da crença dos intelectuais liga-dos à escola de Frankfurt e, provavelmente, de outros, no potencial revolu-cionário do proletariado. Em todos os casos, a desilusão com os destinos daURSS e com sua orientação hegemônica dos PCs do mundo contribuiu paraa cisão. Como uma das conseqüências desses fenômenos, questões de ordemeconômica ou político-estratégica cederam lugar a temáticas de cunho epis-temológico, estético etc.. E o campo de ação de boa parte dos intelectuaismarxistas deslocou-se dos partidos em direção à academia.7

Diante desta “miséria da estratégia”, que tem marcado o pensamento marx-ista nas últimas décadas, talvez seja o momento de revermos a teoria de Marxa partir dela própria, sem a pretensão de uma interpretação original, mas com oobjetivo de resgatar uma idéia central: só se pode entender o fetiche do valora partir da luta de classes e só se pode entender a última a partir do primeiro,tendo em vista as contradições entre forças produtivas8 e relações de pro-dução, que favorecem a gestação, o desenvolvimento e o colapso dos diversosmodos de produção9 através da história.10

É sabido que Marx morreu antes de desenvolver uma análise e uma ex-posição mais sistemáticas da luta de classes e de suas conexões profundascom o fetiche do valor. Contudo, isso não significa que não tenha deixado im-portantes indicações a este respeito ao longo de sua obra, especialmente em AGuerra Civil na França, A Luta de Classes na França e no 18 Brumário, semfalar no Manifesto Comunista e no próprio Capital.

Parte dessas indicações irá mediar a discussão que segue, confrontandoalguns princípios do marxismo “ortodoxo” de Lukács, um dos fundadores do“marxismo ocidental”, com a “heterodoxia” de Kurz, um importante pensadormarxista “ocidental” na atualidade.

Lukács, já nos primeiros ensaios de História e Consciência de Classe, maisvoltados para questões de método, destaca a herança hegeliana, na figura da

6 Sobre a história das linhas teóricas dominantes nos estudos de comunicação no Brasildesde a década de 50, ver LOPES, Maria Immacolata V. Pesquisa em comunicação, pp. 52-70.

7 Sobre uma análise mais extensa e aprofundada deste processo, e do próprio “marxismoocidental”, ver ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental.

8 Forças produtivas = ciência + meios de produção (instrumentos e objetos de trabalho) +força de trabalho (não necessariamente nesta ordem).

9 Modo de produção = forças produtivas + relações de produção.10 Cf. MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política, pp. 24-5.

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categoria dialética da totalidade, como o elemento central da essência revolu-cionária da “ciência marxista”, em detrimento dos motivos econômicos. Kurz,por sua vez, ao longo de sua obra, insiste que o “marxismo do movimento op-erário”, teoricamente orientado pelo “Marx da luta de classes”, estaria histori-camente superado, enquanto o “outro Marx”, o da crítica ao fetiche do valor,seria mais atual do que nunca: “O Marx dos operários e da luta de classes caiem desgraça, mas o crítico radical do fetichismo e da forma-valor continua depé e só agora passa a ser efetivo.” 11

Acreditamos que Lukács estivesse errado ao minimizar a importância dosmotivos econômicos em Marx,12 e Kurz ao abandonar a problemática da lutade classes no quadro de uma crítica ao capitalismo contemporâneo. É o que setentará demonstrar agora, partindo da idéia de que não se pode perder de vista anecessidade de repensarmos as noções de fetiche do valor e de luta de classespara além do economicismo e do sociologismo, reintegrando-as numa perspec-tiva dialética totalizante e materialista, que seria a do próprio Marx. Antes,porém, julgamos necessário alguns esclarecimentos de ordem conceitual, so-bre as principais categorias da crítica da economia política marxiana.13

5.1 O Valor

Comecemos pela noção de fetiche do valor. Fetiche do valor é tanto um con-ceito teórico, que busca explicar de modo crítico um fenômeno específico docapitalismo, quanto o nome atribuído por Marx ao próprio fenômeno. É, por-tanto, uma expressão que possui ao mesmo tempo um valor explicativo e umdescritivo.

Trata-se, em uma primeira aproximação, de um princípio de socializaçãoinvertido, que converte as pessoas em meros suportes para a produção e per-

11 KURZ, Robert. A Intelligentsia depois da luta de classes. Documento eletrônico:http://obeco.planetaclix.pt/rkurz38.htm. Acesso em: dez 2004.

12 Como ele próprio viria a admitir diretamente no prefácio a uma edição de 1967 da mesmaobra, conforme veremos a seguir, e indiretamente, na Ontologia do Ser Social. Como nosinforma Carlos Nelson Coutinho: “[...] o velho Lukács estava plenamente consciente da im-portância da crítica da economia política na constituição do método filosófico de Marx, o quenão lhe aparecia de modo tão claro em História e Consciência de Classe.” Ver Lukács, a Ontolo-gia e a Política. In: ANTUNES, Ricardo e DOMINGUES LEÃO RÊGO, Walquíria. Lukács.Um Galileu no século XX, p. 17.

13 As definições que seguem podem parecer desnecessárias para o leitor mais familiarizadocom as categorias da crítica da economia política marxianas. Optou-se por incluí-las nestemomento da exposição por razões didáticas, seguros de que um eventual prejuízo na fluênciada leitura daqueles que já dominam essas questões é compensado pelo esclarecimento prestadoàqueles que não as dominam.

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muta de mercadorias, com o fim de transformar valor em mais valor, de modoque o capital, em suas diversas encarnações – dinheiro, meios de produção,mercadorias –, se torna o verdadeiro sujeito social, cuja única meta é crescer,e as pessoas, objetos desse crescimento.

A mercadoria é uma coisa produzida pelo homem. Possui a propriedadede satisfazer necessidades humanas (seu valor de uso) e uma expressão devalor (seu valor de troca) que permite equipará-la ao valor de outras mer-cadorias em função da permuta.14 Mas nem todas as coisas úteis produzidaspelo homem são mercadorias: uma coisa só se torna mercadoria a partir domomento em que é produzida não para o uso, mas para a troca, e isto só ocorrequando deixa de ser útil para o seu produtor e permanece útil para outra pes-soa, que por sua vez deve dispor de uma outra mercadoria para trocar, quenão lhe seja útil mas que o seja para o primeiro elemento da permuta. A mer-cadoria é portanto uma coisa social, ou a materialização de trabalho humanoem um valor de uso passível de permuta por outras mercadorias. Embora atroca de mercadorias tenha existido antes do capitalismo, o capitalismo é oprimeiro modo de produção na história onde a quase totalidade das atividadesprodutivas é destinada à produção de mercadorias.

O dinheiro, por sua vez, também é uma mercadoria. Seu valor de usoprimário é sua propriedade social de equivalente universal, ou seja, de meiode circulação (ou troca), mercadoria “líquida”, passível de ser permutada porqualquer quantidade de qualquer outra mercadoria de valor equivalente ao seu.

Assim como a forma mercadoria, o dinheiro existia antes do capitalismo.Mas só se transforma em capital, transcendendo sua natureza original de meiode circulação, quando trocado pelas mercadorias meios de produção15 e forçade trabalho (na forma de salário) com o objetivo de se multiplicar, sendo aforça de trabalho a única mercadoria capaz de efetuar esse milagre de mul-tiplicação, já que transfere ao produto um valor superior ao seu próprio, quecorresponde, como aliás o valor de qualquer mercadoria, ao valor do conjuntode mercadorias necessárias à sua produção e reprodução: alimentos, roupas,habitação etc. Já os meios de produção não geram, somente transferem valor.

Mas o que, afinal, é o valor? Como mensurá-lo?O valor é, a princípio, uma referência para a troca: isto vale tanto daquilo.

O dinheiro, os meios de produção e as mercadorias, enquanto encarnações do14 O preço das mercadorias é a expressão monetária do seu valor, embora geralmente não

lhe corresponda exatamente em magnitude, devido a fatores cuja explanação escapa dos limitesdeste trabalho. Sobre este ponto, ver Marx, O Capital, capítulo III: O dinheiro ou a circulaçãodas mercadorias.

15 Recursos naturais, instrumentos de produção (instalações, máquinas e ferramentas) e ob-jetos de produção (matérias primas).

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capital, são formas materiais do valor. Sua substância é o trabalho humanoabstrato, trabalho qualitativamente indiferenciado e quantitativamente mensu-rável. Sua magnitude é determinada pelo tempo de trabalho médio social-mente necessário.

Trabalho abstrato é o trabalho enquanto dispêndio de energia humanaque todas as mercadorias têm em comum, independente da natureza do tra-balho e da mercadoria; é uma abstração das propriedades concretas das di-versas formas de trabalho humano, igualando-as enquanto substância do valor.Trabalho concreto, em oposição a trabalho abstrato, é a atividade humana efe-tiva, que produz valores de uso, isto é, coisas úteis. Não pode haver trabalhoabstrato sem trabalho concreto, embora possa haver trabalho concreto sem tra-balho abstrato, no caso de algo não ser produzido para a troca. Assim, não sãoas propriedades concretas do trabalho e do produto que diferenciam as noçõesde trabalho concreto e trabalho abstrato, mas sua função social. Se eu assarum pão para comê-lo, não há aí um átomo de trabalho abstrato nem de valor.Mas se o mesmo fruto da minha atividade de padeiro, um pão integralmenteidêntico ao primeiro, tiver sua existência destinada à venda, isto é, à troca pelamercadoria dinheiro, aí o pão terá valor, fruto do caráter abstrato do trabalhoempregado em sua produção. A mercadoria, assim, enquanto valor de uso, éfruto de trabalho concreto; enquanto valor, de trabalho abstrato. Deste modo,o caráter abstrato do trabalho humano, cuja centralidade econômica é especí-fica do modo de produção capitalista, produz valor, mas não valores de uso,enquanto seu caráter concreto produz valores de uso mas não produz valor.

Já o tempo de trabalho médio socialmente necessário, que determina amagnitude do valor das mercadorias, é nem mais nem menos do que o temponormalmente requerido para a produção de mercadorias em um dado está-gio de desenvolvimento das forças produtivas em um determinado universoeconômico. Não importa se um produtor individual contrai este tempo, ou,se pelo contrário, o dilata: o valor da mercadoria continua o mesmo. Por ex-emplo, se o tempo de trabalho médio socialmente necessário para a produçãode duas camisas e de duas cadeiras for de uma hora, o valor de duas camisase de duas cadeiras, expresso em seu valor de troca (duas camisas valem duascadeiras ou x dinheiro), será equivalente. Já se um trabalhador produzir duascamisas e outro, duas cadeiras, na metade do tempo, terão produzido o dobrode valor total, pois produziram quatro camisas e quatro cadeiras no tempo emque normalmente se produz duas. Se forem vendê-los no mercado, seu lucroserá acima da média, devido ao fato de o preço neste caso poder ser superiorao valor. Mas isso em nada irá alterar o valor unitário de cada camisa e de cadacadeira. No extremo oposto, se levarem o dobro do tempo para produzir as

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mesmas camisas e as mesmas cadeiras, terão produzido a metade do valor to-tal, sem alterar o valor unitário de cada produto. Se forem vendê-los no mesmomercado, terão prejuízo e assim por diante.16

O tempo de trabalho médio socialmente necessário é alterado periodica-mente pelo desenvolvimento das forças produtivas, isto é, quando a médiade tempo socialmente necessário para a produção de determinada mercadoriadiminui, em função do desenvolvimento de novas tecnologias, das habilidadesdo conjunto dos trabalhadores etc. Também pode ser retardado, em função deguerras ou desastres de amplas proporções.

O valor, como o capital, não é uma coisa, mas o princípio norteador ab-strato da forma como os homens produzem e reproduzem sua vida em so-ciedade sob o modo de produção capitalista. Ele só adquire essa função apartir da transformação da força de trabalho humana em mercadoria e das pes-soas em máquinas de trabalho abstrato, no circuito da produção de coisas úteismutuamente permutáveis, ou seja, mercadorias. Isto requer um determinadonível de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção,calcadas na alienação dos produtores dos meios de produção.

O valor, portanto, não se torna um fetiche somente por ser um princípioabstrato, mas na medida em que organiza o conjunto das relações sociais, sub-ordinando o homem ao imperativo de sua expansão contínua, a despeito detudo e de todos. É o coração e a alma do capital, encarnado ora em dinheiro,ora em meios de produção, ora em mercadorias.

O capitalismo, enfim, é o sistema social do capital, onde as pessoas nãoproduzem para consumir, mas são consumidas para produzir mais valor, ondea produção e o consumo humanos convertem-se de fins em meios para a trans-formação de valor em mais valor, ou de capital em mais capital, acima dequaisquer outros critérios.17 Esta transformação é a finalidade que orienta oconjunto das atividades humanas sob o capitalismo.18 Por isto diversos autores(Rubin, Kurz etc.) consideram a noção de fetiche do valor (ou fetichismo damercadoria) o cerne da teoria econômica de Marx.19 Esta, porém, é ao mesmo

16 Nesses exemplos, para uma maior clareza da exposição, os trabalhadores são proprietáriosdos instrumentos e objetos de produção necessários à produção das cadeiras e camisas, nãohavendo alienação de mais-valia. Na realidade, não é isso que ocorre.

17 A própria utilidade das coisas, seu valor de uso, torna-se refém de seu valor: em linguagemcomum, as coisas só são produzidas se a produção for mais lucrativa que a de outras coisas, oque faz da satisfação de necessidades humanas um fator secundário e subordinado do processo.Isto acaba determinando, em grande medida, ao longo do tempo, a própria noção social do queé ou não útil.

18 Segundo Kurz, também sob o “socialismo de caserna”. Ver KURZ, Robert. O Colapso damodernização.

19 Rubin chega mesmo a afirmar que a “‘teoria do fetichismo da mercadoria’ [...] poderia ser

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tempo uma teoria histórica e social, centrada na análise crítica do capital, masque não se restringe a ele. Neste sentido, a economia, entendida em sentidogeral, significando o modo como os homens produzem e reproduzem coletiva-mente suas condições de vida, ocupa uma posição metodológica de destaquena análise marxiana da sociedade e da história como um todo.

Com o objetivo de desfazer mal-entendidos resultantes de uma má leituradeste princípio metodológico, ou mesmo de uma boa leitura feita de má fé, jáesclarecia Engels:

De acordo com a concepção materialista da história, o ele-mento finalmente determinante é a produção e a reprodução davida social. Nem Marx nem eu asseveramos mais do que isso.Logo, se alguém torce isso, dizendo que o elemento econômico éo único determinante, ele transforma aquela proposição em umafrase sem sentido, abstrata e tola.20

Ou, na formulação de Kosik:

A economia não é apenas produção dos bens materiais: é atotalidade do processo de produção e reprodução do homem comoser humano-social. A economia não é apenas produção de bensmateriais; é ao mesmo tempo produção das relações sociais dentrodas quais esta produção se realiza.21

Esta noção geral de economia refere-se ao conjunto das forças produtivas edas relações de produção que compõe qualquer modo de produção. Já a teoriado fetiche do valor, partindo da noção geral, desvela a forma específica comose dá a “produção e a reprodução da vida social” sob o modo de produção capi-talista. Por outro lado, embora o fetiche do valor (ou fetichismo da mercadoria)seja uma especificidade do sistema do capital, o fetichismo em geral – enten-dido como o processo não consciente mediante o qual as pessoas atribuem aalgo ou alguém exterior a elas poderes sobre si próprias, poderes esses que,na realidade, são elas que possuem – atravessa toda a nossa “pré-história”,22

assumindo em cada época expressões variadas:

chamada, com maior exatidão, de teoria geral das relações de produção na economia mercantil-capitalista.” RUBIN, Isaak Illich. A Teoria marxista do valor, p. 16.

20 ENGELS, apud FERNANDES, Florestan (org.). Marx-Engels, p. 132.21 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 191.22 Para Marx, a modernidade ainda faz parte de nossa pré-história. A verdadeira história

humana, de sociedades livres e conscientes, ainda não começou.

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Nos modos de produção asiáticos, o Filho do Céu ou Imper-ador Divino assume essa função, e no feudalismo, o solo. O din-heiro, como uma das muitas formas do fetichismo, existe em todasessas sociedades, mas ainda não possui a função geral de represen-tar a socialização inconsciente, que adota outras formas. 23

Nesse sentido, “fetichismo” se converte praticamente em sinônimo de reifi-cação (coisificação), termo caro a Lukács, que significa a desistoricização, ounaturalização, das relações sociais, convertendo os sujeitos em objetos (coisas)de forças sociais que escapam ao seu controle. É, aliás, a partir do conceito dereificação que Lukács problematiza a consciência de classe como necessáriapara a práxis revolucionária, única atividade capaz de superar a reificação dasrelações sociais, conforme veremos mais detidamente adiante. O marxismoé então entendido como o fundamento teórico ou científico necessário dessaconsciência e dessa práxis. Mas o que exatamente municia o marxismo destacapacidade, desta potência? É neste ponto que a articulação da noção de fetichedo valor com a de luta de classes enquanto “motor da história” (Manifesto Co-munista) revela todo o seu vigor teórico e político, pois o primeiro só pode sersuperado pela ação consciente de um sujeito social revolucionário, ao mesmotempo em que cria as condições para a sua emergência. É por isso que umacrítica ao fetiche do valor, por mais acurada que seja, que abandone a questãoda luta de classes, revela-se uma crítica impotente.

5.2 O Princípio da totalidade, a economia e o sujeitosocial

Para Lukács, em História e Consciência de Classe, o que faz do marxismo umaciência revolucionária é, mais do que sua ênfase metodológica na economia, oponto de vista da totalidade:

A ciência proletária é revolucionária não somente pelo fato decontrapor à sociedade burguesa conteúdos revolucionários, mas,em primeiro lugar, devido à essência revolucionária do seu método.O domínio da categoria da totalidade é o portador do sentidorevolucionário na ciência. [...] com Marx a dialética hegelianatornou-se [...] uma “álgebra da revolução”.24

23 Cf. KURZ, Robert. Pequeno Glossário. In: KURZ, Robert. O Colapso da modernização.São Paulo: Paz e Terra, 1993.

24 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe, pp. 105-6.

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O ponto de vista da totalidade, além disso, só seria acessível a um sujeitosocial, a uma classe que fosse ela mesma uma totalidade, cujo interesse repre-sentasse o interesse universal da humanidade, a classe operária.

Lukács chega mesmo a afirmar que “todo o sistema do marxismo se desfazcom o princípio de que a revolução é o resultado de um ponto de vista em quea categoria da totalidade é dominante.”25

Mas por que atribuir à categoria da totalidade do método dialético estacentralidade revolucionária em detrimento da crítica da economia política? Seassim fosse, o marxismo não seria necessário, restando Hegel suficiente. Comodiz Kosik:

[...] a totalidade como meio conceitual para compreender osfenômenos sociais permanece abstrata se não se põe em evidên-cia que tal totalidade é totalidade de base e superestrutura, bemcomo de seu movimento, desenvolvimento e relações recíprocas,embora cabendo à base um papel determinante. 26

Löwy é ainda mais específico, quando afirma categoricamente que “a difer-ença entre a dialética materialista de Marx e a dialética idealista de Hegel estána importância determinante da economia no desenvolvimento histórico daobra de Marx”.27

O próprio Lukács, no prefácio de 1967 de História e Consciência de Classe(que não consistiu em mais uma “autocrítica” sob coação), reconhece o fato e“corrige” essa dessimetria – minimizar a importância da economia em relaçãoa uma hipertrofia da “totalidade”:

[...] surgia em mim um exagero hegeliano, porquanto op-unha a posição metodológica central da totalidade à prioridade daeconomia: “Não é o predomínio de motivos econômicos na expli-cação da história que distingue de maneira decisiva o marxismo daciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.” Esse para-doxo metodológico acentua-se ainda mais porque a totalidade eravista como a portadora categorial do princípio revolucionário daciência [...]28

Tal “exagero”, porém, era em parte justificável, tendo em vista a necessi-dade conjuntural de se combater o reducionismo economicista, de coloração

25 Idem ibidem p. 109.26 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 60.27 Cf. LÖWY, Michael. Ideologias e ciências sociais, p. 17.28 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe, p. 21.

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positivista, de boa parte da II Internacional. Mas como Marx inequivocamentepõe em primeiro plano a análise econômica para a compreensão tanto da com-posição da luta de classes quanto das transformações sociais e da mediaçãodas idéias de cada época (a “matéria prima” da consciência de classe), episte-mológica e politicamente nenhuma “ortodoxia” marxista deveria relevar esteponto, sintetizado na célebre passagem da Contribuição à crítica da econo-mia política, na qual Marx demonstra que é sobre a estrutura econômica dasociedade que se eleva a superestrutura, que o “modo de produção da vidamaterial condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectualem geral”, 29 que contradições entre forças produtivas e relações de produçãogestam períodos revolucionários etc.

Diversas outras passagens de Marx ou Engels poderiam ilustrar esse ponto:não é possível pensar o marxismo desconsiderando a questão da determinaçãoem última instância da economia, enquanto übergreifendes-Moment de ummodo de produção, sobre as demais instâncias de cada totalidade sócio-histórica.

Robert Kurz sabe disso, e este me parece o seu grande mérito:

O conceito de “economismo”, aqui, está longe de designar ummodo defeituoso ou insuficiente de reflexão teórica social, queporventura descure outras áreas da vida, complexos causais e con-textos motivacionais – o que tem vindo a tornar-se um fácil argu-mento para todo o serviço de ignorantes liberais, tanto da esquerdacomo da direita, que apenas aspiram a poder continuar a pensarnas categorias em vigor e, de tanta suposta multicausalidade econtingência, etc. já não querem percepcionar o núcleo lógicodo sistema. Antes é precisamente esse núcleo duro que é ani-mado por um economismo não apenas subjetivo ou teórico, masobjetivo e prático, como sua essência estruturante: simplesmenteum “economismo real” de critérios capitalistas intransigentes que,na sua unidimensionalidade, sistematicamente toma conta de to-das as outras “lógicas setoriais” que relegou para o seu exterior,acabando por cilindrá-las – e que se vai infiltrando em todos oscontextos motivacionais a todos os níveis.30

Kurz, porém, em sua defesa de que o essencial (e o atual) em Marx ésua crítica ao fetiche do valor, comete o equívoco de afirmar que não há nen-hum sujeito social enquanto totalidade além do próprio capital, o “sujeito au-tomático”. Quanto às classes sociais, para ele são um “fenômeno secundário”:

29 Cf. MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política, pp. 24-5.30 KURZ, Robert. Os Fantasmas reais da crise mundial. Documento eletrônico:

http://obeco.no.sapo.pt/rkurz175.htm. Acesso em: dez 2004.

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No lugar de um conceito da forma do sistema produtor de mer-cadorias e de sua condicionalidade histórica aparece [...] um con-ceito reduzido das “classes lutadoras”, como a suposta razão úl-tima da socialização; o constitutum tornou-se constituens, o fenô-meno secundário das classes sociais foi transformado num fatoinquestionável.31

Se Kurz pode ter alguma razão ao condenar a redução do complexo teóricoelaborado por Marx a um mero conflito entre “classes lutadoras”, entre “explo-radores e explorados”, equivoca-se tanto em termos históricos quanto lógicosem sua definição das classes sociais como “fenômeno secundário”, pois:

A relação de capital apenas surge durante o processo de pro-dução porque ela já existe no ato de circulação, nas condiçõeseconômicas fundamentalmente diversas em que se defrontam com-prador e vendedor, em sua relação de classe. Não é o dinheiroque, por sua natureza, estabelece essa relação; é antes a existênciadessa relação que pode transmutar uma simples função monetárianuma função de capital.32

Vejamos uma outra formulação de Marx a propósito da mesma questão:

O homem pode viver na medida apenas em que produz os seusmeios de subsistência, e só pode produzi-los na medida em que seencontre na posse de meios de produção, na posse das condiçõesobjetivas de trabalho. Compreende-se assim que se o operáriofor despojado dos meios de produção, também ficará privado dosmeios de subsistência e, inversamente, não pode criar nenhummeio de produção. Por conseguinte, o que no primeiro processo,antes de o dinheiro e a mercadoria se terem transformado real-mente em capital, lhes imprime desde o início o caráter de cap-ital não é nem sua condição de dinheiro nem a sua condição demercadoria, nem o valor de uso material destas mercadorias, queconsiste em servirem como meios de subsistência e de produção,mas sim o fato de que este dinheiro e esta mercadoria, estes meiosde produção e meios de subsistência, se defrontam com a capaci-dade de trabalho – despojada de toda a riqueza objetiva – como

31 KURZ, Robert. O Colapso da modernização. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 48. Cf.também, do mesmo autor, A Intelligentsia depois da luta de classes. Documento eletrônico:http://obeco.planetaclix.pt/rkurz38.htm. Acesso em: dez. 2004.

32 MARX, Karl. O Capital. Livro II, p. 45.

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poderes autônomos personificados nos seus possuidores; o fato deque, portanto, as condições materiais necessárias para a realizaçãodo trabalho estão alienadas (entfremdet. Al.) do próprio operário,ou, mais precisamente, se apresentam como fetiches dotados deuma vontade e alma próprias; o fato de as mercadorias figuraremcomo compradores de pessoas. [...] Não é o operário que comprameios de subsistência e meios de produção: são os meios de sub-sistência que compram o operário para o incorporarem nos meiosde produção.33

Ou seja, o “sujeito automático” não vem do céu, nem da pura lógica internada teoria, mas é o resultado histórico das formas como as relações sociaisfetichistas vêm se desenvolvendo e objetificando, desde o fim do “comunismoprimitivo”, através da luta de classes.

Em sua crítica ao “marxismo operário”, Kurz também argumenta que estenão teria atingido a compreensão do problema do valor, limitando-se a denun-ciar a exploração da mais-valia. Ora, a exploração da mais-valia é a princi-pal manifestação fenomênica do fetiche do valor, que só se tornou o núcleodo capitalismo na medida em que constitui a estrutura (pseudo) lógica para aapropriação de mais-valia por parte da burguesia (ou da burocracia). Sem estaapropriação, não haveria capitalismo, tampouco fetiche do valor. Que este pro-cesso de apropriação seja mais ou menos consciente, em nada altera o fato deque é o que move o capitalismo. Assim, ainda que o “marxismo operário” nãodomine plenamente a teoria, o que seria de fato um problema, não faz sentidodescolar a crítica ao valor em si da crítica à expropriação de mais-valia, ouseja, do motor da luta de classes sob o capitalismo.

Kurz também sugere que não se trata mais, em nome do fim do trabalho edo capital, portanto das classes, de opor o trabalhador ao capitalista, ou mesmoo trabalho ao capital, já que são os dois lados da mesma moeda fetichista, masde mobilizar todos aqueles para quem o fetichismo é intolerável; só que essessão necessariamente os subordinados ao trabalho ou à exclusão do mesmo.É por isso que Antunes, mesmo reconhecendo a relevância teórica de Kurz,condena sua posição com respeito à luta de classes, lamentando que

um autor tão instigante e responsável por uma das mais con-tundentes críticas ao capital e seu sentido destrutivo, se mostreobliterado para compreender as novas configurações da luta declasses, que não são os últimos combates,34 mas as formas de

33 Cf. MARX, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultados do processo de pro-dução imediata, pp. 70-71.

34 Alusão ao título de uma coletânea de artigos de Kurz.

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confrontação entre a totalidade do trabalho e o capital social to-tal, entre a classe trabalhadora em suas mais diversas clivagens eas personificações do capital. 35

Se isso está correto, a noção de fetichismo não pode ser contraposta à deluta de classes em uma perspectiva emancipatória, pois não é possível concebera superação do capital sem articular economia e política. Jogar fora a luta declasses é jogar fora o elemento político do marxismo.

A este propósito, há uma reflexão de Zizek que sintetiza de modo brilhanteo método desenvolvido (embora não sistematizado) por Marx para se desvelaressa articulação complexa:

A luta de classes “política” ocorre em pleno centro da econo-mia [...] enquanto, ao mesmo tempo, o domínio da economiaserve como a chave que nos permite decodificar as batalhas políti-cas. [...] primeiro, devemos avançar do espetáculo político parasua infra-estrutura econômica; depois, num segundo passo, de-vemos confrontar a dimensão irredutível da batalha política empleno coração da economia.36

Mas esta formulação, embora verdadeira, ainda permanece em um planomuito geral. Como, a partir daí, desenvolver a análise concreta das situaçõesconcretas, como diria Lenin, de modo a orientar a práxis revolucionária hoje?

5.3 A Esfinge

O desafio estratégico mencionado acima, do qual aparentemente nenhum marx-ista contemporâneo tem podido dar conta com a necessária competência, foiidentificado com precisão por Anderson:

O problema dessa estratégia permanece ainda hoje, como hácinqüenta anos, como a Esfinge a defrontar o marxismo no Oci-dente. É evidente que a liberdade da democracia capitalista, ma-gra mas real com sua cédula e carta de direitos, só pode cederà força de uma liberdade qualitativamente maior da democraciasocialista, exercida sobre o trabalho e a riqueza, a economia e

35 Cf. ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e anegação do trabalho, p. 164, nota 76.

36 ZIZEK, Slavoj. Repeating Lenin. Documento eletrônico:http://www.lacan.com/replenin.htm. Acesso em: mar. 2004.

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a família, bem como sobre a sociedade organizada. Mas comodominar as estruturas flexíveis e duráveis do Estado burguês, in-finitamente elásticas ao se ajustarem a acordos sobre os quais eleimediatamente repousa, e infinitamente rígidas em preservarem acoerção da qual ele depende finalmente? Que bloco de forças so-ciais pode ser mobilizado, por que meios, sempre se encarregandodos riscos de desconectar o ciclo das acumulações de capital nasnossas economias de mercado intrinsecamente interligadas? Sãoquestões que nos lembram constantemente que o problema da es-trutura e do sujeito – estruturas do poder econômico e políticooperativo, sujeitos de alguma insurgência calculável contra elas –é um problema não apenas para a teoria crítica, mas também paraa mais concreta de todas as práticas.37

Kurz, que considera o capitalismo à beira do colapso, provavelmente atribuiriaa dificuldade do marxismo em resolver os dilemas propostos por esta “esfinge”à incapacidade dos marxistas, em seu apego à luta de classes, de superaremteoricamente o fetiche do trabalho e do valor, embora reconheça que tal nãoteria sido possível no período “clássico” da revolução de outubro, muito menosno de Marx, pois as forças produtivas ainda não estariam maduras para o co-lapso sistêmico. Assim, fizeram mais ou menos o que se podia esperar, e bemmais que isto, no caso do gênio de Marx.

Hoje, porém, este amadurecimento teria ocorrido. Mas será que o prob-lema é mesmo o apego dos marxistas ao “Marx da luta de classes”? O próprioKurz, sempre que questionado sobre propostas de ação concretas, esquiva-secom a evasiva (justa) de que nenhum teórico individual é capaz de encon-trar soluções para problemas de tal magnitude, devendo contudo estimular areflexão dos movimentos sociais, os únicos capazes de transformações efeti-vas, nesse sentido. Em outras ocasiões, o mesmo Kurz propõe que a reflexãoteórica se volte para a questão do desenvolvimento de formas embrionárias desociabilidade não capitalistas dentro do capitalismo, que serviriam de modelosou laboratórios para sua efetivação em escala mais ampla, para além do capi-tal. Mas não se detém neste tema. Mais recentemente, ele tem insistido em seevitar comprometer o rigor crítico da teoria com soluções imediatistas.

Bem, nesse ponto, é importante voltarmos a Lenin, como propõe Zizek,não no sentido de repetirmos suas estratégias (datadas, em parte), mas no deretomarmos a necessária conexão entre teoria crítica e ação coletiva, ou seja, apráxis revolucionária, como o que de mais importante há a fazer. Mas de queforma? E qual o papel da comunicação e do gosto nessa história?

37 ANDERSON, Perry. A Crise da crise do marxismo, pp. 93-4.

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Antes de retomarmos essas questões, é importante nos determos um poucomais no presente debate com Kurz. Em dado momento,38 ele desenvolve umaimportante distinção entre, de um lado, a noção de classes sociais “mistifi-cadas como meta-sujeitos sociais” e, por outro lado, enquanto categoria socialanalítica. Cabe perguntar: a crítica (aliás correta) à “mistificação” invalida a“categoria social analítica”, ou mesmo prova de modo conclusivo a inexistên-cia ou falência das classes enquanto algo mais do que uma mistificação? Kurznão chega propriamente a afirmar isto, mas tal idéia é insinuada ao longo degrande parte de sua obra, o que a converte em uma bela teoria desprovida dequalquer base social de ação.

Sobre a importância desta base social para o sucesso da implementação deuma alternativa sociometabólica ao capital, que lhe seja superior, Mészáros écontundente:

[...] o resultado positivo não depende de reconhecerem os int-electuais que a justificação histórica do sistema do capital está su-perada, mas da força material de um sujeito social consciente ca-paz de erradicar o capital do processo sociometabólico, superandodesse modo a dominação da “riqueza estranha” sobre a sociedade.Se tal sujeito provar ser inferior à tarefa, não pode haver esperançapara o projeto socialista. Mas, neste caso, não haverá esperançade sobrevivência para a humanidade.39

Por outro lado, se Kurz estiver certo ao afirmar que a terceira revoluçãoindustrial (microeletrônica) conduz o capitalismo ao seu limite lógico – poiseliminando o trabalho abstrato elimina sua própria “substância geradora devalor” –, o conseqüente esvaziamento da classe operária torna inviável, queira-se ou não, sua possibilidade de ação transformadora. Mas, sendo assim, oque resta para uma perspectiva emancipatória concreta? Kurz dá a resposta:a elaboração de uma nova teoria radical que possa orientar os movimentossociais. Certo, mas quais “movimentos sociais”?

O que tornava a classe trabalhadora do século XIX, ou melhor, o proletari-ado industrial urbano, uma classe revolucionária era o fato de ser a produtorada parte mais substancial da riqueza social e ao mesmo tempo ser alienadadesta mesma riqueza; era o seu número; era a especificidade de a própria or-ganização coletiva da produção industrial agrupar os operários na forma deverdadeiros exércitos de produção, o que facilitava sua conversão em exérci-tos revolucionários. Esvaziado o proletariado em sua conformação “clássica”,

38 KURZ, Robert. O Colapso da modernização, p. 48.39 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 942.

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inviabilizada a perspectiva de tomada violenta do aparelho de Estado, estemesmo enfraquecido diante das contradições internas e externas de uma econo-mia globalizada, a quais movimentos sociais dirigir-se, e com qual perspectivade ação revolucionária?

Como esta questão permanece sem resposta, e nem mesmo é formuladacom a mesma insistência e rigor de outros momentos de seu pensamento, aproposta de Kurz de se elaborar uma nova teoria radical que possa orientar osmovimentos sociais converte-se, malgrado seu autor, em idealismo.

Portanto, se se tem por objetivo não somente uma teoria emancipatória,mas ações emancipatórias, e já que é ponto pacífico que a superação do mod-erno sistema produtor de mercadorias só pode ser fruto de práxis coletivas, faz-se necessário, junto à crítica fundamental à mistificação das classes enquantometa-sujeitos sociais, conservar a categoria social analítica “classe social” demodo a identificar, nos “movimentos sociais” atuais, aqueles aos quais, porseus interesses concretos de classe, ainda que não conscientes, e por sua forçaorganizacional e numérica concreta, ainda que potencial, a teoria deveria serapresentada enquanto orientação crítica da ação.

Se das táticas de ação de Marx para o século de XIX pode-se dizer quejá cumpriram sua missão histórica, nem por isso deixa de ser urgente, caso sequeira conservar e operacionalizar sua crítica ao fetiche do valor, o desenvolvi-mento de um projeto positivo de ação, caso contrário fica-se enclausurado emum idealismo criticista impotente.

Pode-se também perguntar: a crítica de Kurz ao Marx do movimento op-erário vale para “luta de classes” somente no que se refere ao proletariadoindustrial atual como sujeito social, como o sujeito histórico da revolução, outambém enquanto categoria de análise mais ampla e objeto de organizaçãopolítica?40 Ou seja, será que junto ao projeto da revolução operária clássica,também teria “vencido a validade” da tarefa de se buscar entender e superarcontradições sociais à luz da idéia de que os “sujeitos-mercadoria”, como querKurz, o são de formas variadas e conflitantes, tenham disso consciência ounão, de acordo com a posição que ocupam em meio às relações de produção?

Como, afinal, superar a “forma comum”, o “sujeito automático”, o capital?No séc. XIX, Marx acreditava que através de uma

[...] declaração da revolução permanente, da ditadura declasse do proletariado como ponto necessário de transição paraa supressão das diferenças de classe em geral, para a supressãode todas as relações de produção em que estas repousam, para

40 Em O Colapso da Modernização, o próprio Kurz destaca a importante distinção entreclasse social como categoria de análise e sujeito histórico.

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a supressão de todas as relações sociais que correspondem a es-sas relações de produção, para a subversão de todas as idéias quebrotam dessas relações sociais.41

Talvez seja uma solução estrategicamente datada. Mas devemos deliber-adamente nos esquivar, mesmo dentro dos limites do campo teórico, do esforçode elaborar uma estratégia de ação atual que vá além da teoria? E se a respostaé negativa, a noção de luta de classes deveria ser abandonada? Também não,pois “[...] a questão da crítica radical é inseparável daquela de um agente socialem relação ao qual é possível vislumbrar uma alternativa estrutural à ordemsocial dada.” 42

Não se pode negar que a posição de Kurz é coerente com sua leitura deMarx. Epistemologicamente, para ele, o que permanece vivo do pensamentode Marx não é o seu caráter revolucionário propositivo, enquanto fundamentoteórico para o desmantelamento da sociedade capitalista e a construção da so-cialista, mas seu caráter crítico radical e sua profundidade analítica:

A obra de Marx, de acordo com o seu significado atual, rep-resenta antes uma teoria negativa do colapso do que uma teoriapositiva do “desenvolvimento socialista”, embora tenha sido ex-plorada pelas ditaduras burocráticas para a legitimação do social-ismo de estado. Por isso, o arcabouço lógico e analítico do marx-ismo é a projeção teórica do capitalismo e de seu desenvolvimentoaté o seu futuro estado maduro de crise.43

É por ver as coisas deste modo que Kurz propõe, em diversos textos,44 adistinção entre o Marx da crítica ao fetiche do valor e o da luta de classes.Considerando mais de perto a obra de Marx, entretanto, a distinção se mostrasimplesmente inviável. Ou seja, ainda que no plano estritamente teórico, é

41 MARX, Karl. Las luchas de clases en Francia de 1848 a 1850. Docu-mento eletrônico: http://www.marxists.org/espanol/m-e/1850s/francia/index.htm. Acesso em: jun 2004. Os bolcheviques e aqueles que seguiram seu modelo,viram na ditadura do partido comunista a encarnação da ditadura do proletariado. Esta, porém,enquanto transição para a supressão do capital, jamais ocorreu.

42 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 234.43 KURZ, Robert. Marx 2000. Documento eletrônico: http://www.exit-

online.org/textanz1.php?tabelle=transnationales&index=1&posnr=678&backtext1=text1.php.Acesso em: jul. 2006.

44 O tema é recorrente, como pode ser constatado de modo inquestionável em uma entrevistarelativamente recente. Cf. KURZ, Robert. Entrevista a Sonia Montaño. In. Revista IHU On-Line, no. 188, 10.07,2006. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, S.Leopoldo, Porto Alegre,RS. Documento eletrônico: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz234.htm. Acesso em: jul. 2006.

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logicamente impossível insistir na crítica ao fetiche do valor abandonando anoção de luta de classes. Vejamos.

Kurz chega a afirmar que “a tentativa marxiana de transcender o capitalpor meio de uma mera absolutização da ‘classe operária’ [...] foi sempre umaconstrução enviesada, pois assim se intentava alcançar em totalidade o que eraum momento particular, imanente ao próprio capital.” 45

Será mesmo? Vejamos: “Proletariado e riqueza são antíteses. E nessacondição formam um todo. Ambos são formas do mundo da propriedade pri-vada. Do que aqui se trata é da posição que um e outra ocupam na antítese.Não basta esclarecê-los como os dois lados – ou extremos – de um todo.”46

Nesta passagem, Marx e Engels parecem refutar a crítica de Kurz, exata-mente por lhe darem razão. Ou seja, se trocarmos o conceito “propriedadeprivada” por “capital”, como aliás o próprio Marx viria a fazer mais tarde,percebemos uma antecipação do raciocínio de Kurz sobre o capital constituira única totalidade. O que se perde em Kurz, porém, são os pólos positivo enegativo desta totalidade, as classes em disputa, a antítese constitutiva e po-tencialmente supra-sunsora; o proletariado só é a classe universal na medidaem que seu interesse particular em se libertar do capital só pode ser efeti-vado na prática mediante a libertação universal de toda a humanidade. Emtermos dialéticos, é uma particularidade atual que carrega em si uma potênciauniversal, a qual só se atualiza no momento em que seu ser social de classese desvanece, carregando consigo as demais classes e a própria sociedade declasses. Por outro lado, como demonstra Mészáros sobre a atuação concreta daburguesia na manutenção do sistema, “a capacidade do capital de deslocar suascontradições opera por meio da atividade e da prática mediadora da classe quepositivamente identifica seus interesses com os limites objetivos deste sistemade controle sociometabólico.” 47

É verdade que ao chamar de “falsa imediatez sociologista” a expectativamarxiana (e marxista) de ver na classe operária do séc. XIX e início do XX“o” sujeito histórico da superação do capitalismo, Kurz certamente tem razão.Mas quando ele joga fora, junto a este sociologismo imediatista, a categoriaanalítica luta de classes e a práxis revolucionária potencial nela calcada, per-manentemente atualizada enquanto a sociedade permanece dividida em classes

45 KURZ, Robert. A Intelligentsia depois da luta de classes. Documento eletrônico:http://obeco.planetaclix.pt/rkurz38.htm. Acesso em: dez. 2004.

46 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo, 2003a,pp. 47-9.

47 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital. São Paulo e Campinas: Boitempo e Editorada Unicamp, 2002, p. 466.

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antagônicas, enfraquece sua própria crítica enquanto prática teórica emanci-patória.

Afinal, como disse Marx em uma outra circunstância: “alguns dos cidadãosque intervieram em nosso debate, ao intentarem atenuar as proporções dascoisas e apresentar esta relação fundamental entre o empregador capitalista eo operário como uma questão secundária, cometeram [...] um erro.” 48

Ou, como diria, hoje, Mészáros:

Acreditar, como dizem, que as contradições do capital e do tra-balho não existem, ou que nunca serão reconhecidas e que jamaissofrerão a ação daqueles que mais sentem seus impactos devasta-dores, exige que também se acredite que o povo nada mais é doque cegos idiotas para sempre hipnotizados pelas promessas da“circulação econômica” universalmente benéfica do capital, em-bora os fracassos monstruosos do sistema afetem diretamente avida de bilhões de pessoas. A avaliação feita por Marx do de-senvolvimento da consciência social é muito mais plausível, aoenfatizar que “o reconhecimento do produto como algo seu, e aconsciência de que sua separação das condições de realização éuma injustiça – uma relação imposta pela força – é um enormeavanço da consciência, ela própria o produto do modo de pro-dução capitalista e também o ANÚNCIO DO SEU DESTINO, talcomo a consciência do escravo de que ele não poderia ser a pro-priedade de outro reduziu a escravidão a uma existência artificial,hesitante, e tornou impossível para ela continuar a prover as basesda produção”.49

Kurz poderia argumentar que, efetivamente, as circunstâncias eram outrase que, hoje, o desemprego estrutural promovido pela revolução microeletrônica– que aumenta de forma brutal a parte constante do capital em relação à var-iável em sua composição orgânica – e a ausência da geração de novos merca-dos de massa compensatórios têm tornado o próprio trabalho abstrato obsoletocomo substância do valor (conseqüentemente o movimento operário), o querepresenta um curto-circuito no sistema, mas não propriamente uma alterna-tiva de socialização superior.

48 Cf. Salário, Preço e Lucro. Documento eletrônico. Disponível em:http://www.marxists.org/portugues/marx/1865/06/salario/index.htm. Acesso em: jul 2004.

49 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, pp. 716-7. As citações de Marx destapassagem são atribuídas por Mészáros ao título “Economic-works: 1861-1864”, p. 246. Asreflexões de Marx sobre o papel econômico da consciência do escravo são de uma importânciadecisiva para a presente pesquisa.

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Ainda assim, a acumulação de capital – que ocorre graças a uma gigan-tesca taxa de mais valia relativa – e sua concentração em cada vez menosmãos conduzem à formação de uma espécie de superburguesia transnacional ea uma pauperização crescente das demais classes e frações de classes em es-cala global (demos a estas o nome que quisermos), que a ela podem se opor e,de fato, se opõe, mesmo que ainda não sob a forma de movimentos conscientesde classe, nem de modo eficaz numa perspectiva para além do capital enquanto“forma comum”.

Todavia, este caráter não conscientemente classista50 dos movimentos so-ciais de resistência da atualidade não deveria nos surpreender, muito menos aKurz, que sabe muito bem que:

Uma organização social nunca desaparece antes que se desen-volvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nuncarelações de produção superiores se lhe substituem antes que ascondições materiais de existência destas relações se produzam nopróprio seio da velha sociedade. 51

Ou, numa formulação de nossos dias que aproxima a questão um poucomais do objeto da presente pesquisa: “Mesmo as palavras mais emotivas e elo-qüentes de exortação ideológica são impotentes caso não estejam sustentadaspor forças materiais dinâmicas e tendências objetivas de desenvolvimento.” 52

Ora, se essas “tendências objetivas de desenvolvimento” dizem respeito so-bretudo ao fato de a superação total do capital só poder concretamente realizar-se quando todo o mundo estiver a ele subordinado, numa economia global-mente integrada, o início do domínio completo da burguesia (transnacional)não poderia ser representado pela “guerra total” de Bush? Afinal, será quea “pura expressão política” da dominação burguesa era mesmo o Estado na-cional? Ou este foi necessário somente em seus primeiros estágios?

Se essa hipótese estiver correta, o problema da luta de classes não teriarealmente chegado ao fim; pelo contrário, parafraseando Kurz contra Kurz,“continua de pé e só agora passa a ser efetivo”. Talvez o que tenha acabado,em 1989, não seja “a luta de classes”, “o Manifesto”, como propõe Kurz, massimplesmente a práxis da Terceira Internacional, com toda a sua carga de re-ducionismo politicista, taticista, que caracterizou a legitimação ideológica doLeste e do sul “comunistas”. Por isso, mais do que falar em um Marx da críticaao fetiche do valor e em um “outro”, da luta de classes, é preciso distinguir uma

50 Que é um dado fundamental para esta tese.51 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política, pp. 24-5.52 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 426.

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epistemologia marxiana ainda insuperada de uma política datada, e sobretudoelaborar novas práxis.53

Nesse sentido, retomando Lukács, e aceitando o postulado de Kurz de queo movimento operário “clássico” teria atuado não para além, mas para dentrodo capital, poderíamos concluir que o proletariado ainda não se fez sujeitohistórico, isto é, sujeito consciente de seu próprio destino – por que, em está-gios anteriores de desenvolvimento do capitalismo, isto simplesmente não erapossível.

5.4 A Luta de classes hoje

Podemos agora afirmar que é na compreensão do conceito modo de pro-dução como totalidade histórica que as noções de fetiche do valor e luta declasses tornam-se fecundas em sua complementaridade dialética, compondo oarcabouço teórico para uma análise marxista rigorosa do conjunto das ativi-dades humanas, para além de qualquer economicismo ou sociologismo.

Nesta linha de raciocínio, ao invés de descartarmos a noção de luta declasses, seria talvez o momento de repensá-la em um outro patamar, para alémdos Estados nacionais e das formas convencionais de organização (sindicatose partidos), retomando em novas bases o internacionalismo original do movi-mento operário. Os fóruns sociais internacionais e ações similares podem rep-resentar um esboço nessa direção, não como manifestações do proletariadofabril em sua expressão clássica, mas como a confluência organizada54 dos

53 E é nesse ponto, como veremos adiante, que a presente discussão, embora extensa, semostra relevante e mesmo indispensável para a compreensão da dialética interna do gosto,entre sabor/prazer e saber/conhecimento, e de sua dialética externa, de complexo atualmentedeterminado pela economia mercantil, mediante a atuação das ITCs, mas potencialmente de-terminante de uma economia humanizada, passagem para a qual essas mesmas ITCs poderiamser instrumentalizadas, dentro de uma luta política mais ampla, para a qual, entre outros fatores,seria importante que fosse de algum modo recriado “o pathos dos primeiros movimentos daclasse trabalhadora”, na expressão de Lukács. Cf. LUKÁCS, apud MÉSZÁROS, Istvan. Paraalém do capital, p. 494.

54 Organização esta, diga-se de passagem, que tem nas novas tecnologias da comunicaçãoum suporte fundamental.

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não-proprietários dos meios de produção55 de todo o mundo num sentido niti-damente antiburguês:

[...] a transcendência do Estado e quem a desencadeia, o pro-letariado (ou, para utilizar um termo teoricamente mais preciso:o trabalho, o antagonista estrutural do capital), estão inseparavel-mente ligados e constituem o ponto central da teoria política deMarx. Não há qualquer romantismo em sublinhar sua importân-cia desse modo: apenas um alerta destinado àqueles que queremexpurgá-lo da estrutura conceitual de Marx, que deveriam perce-ber quanta coisa mais – de fato, quase todo o resto – teria que serjogado ao mar junto com eles.56

Ou seja, como vimos, a própria crítica ao fetiche do valor só é pensávelno quadro de uma sociedade dividida em classes antagônicas, mais especifi-camente em capitalistas e proletários, entendidos não somente como subje-tividades empíricas, mas igualmente enquanto personificações das categoriaseconômicas capital e trabalho.

O fetiche do valor, forma hegemônica de socialização sob o regime docapital, reproduz as classes em luta e é por elas produzido. Como pensar suasuperação sem a superação das classes? E como pensar esta superação seas eliminamos da reflexão crítica? É possível pensar as classes como “meta-sujeitos históricos”, sem cair na mistificação idealista ou em um “reducionismosociologista” qualquer; é possível conservar seu caráter de abstração teóricaessencial; pois é “a divisão social do trabalho” o que “constitui o fundamentogeral de toda produção de mercadorias”,57 e as classes são a causa e o efeitodesta divisão.

Kurz, como é sabido, pensa diferente.55 Sabemos que, hoje, com a pulverização acionária da propriedade dos meios de produção,

e com a hegemonia do capital financeiro na economia global, faz pouco sentido insistirmos nafigura do capitalista do século XIX enquanto “o burguês”. A burguesia, porém, é hoje consti-tuída por aqueles que detém o controle mais substantivo da terra, dos meios de produção (osprincipais acionistas e as “encarnações” do proprietário na forma de executivos) e dos aparatos– repressivos e ideológicos – de Estado (a burguesia gerencial e financeira e seus representantespolíticos), determinando, de maneira menos ou mais consciente, o destino da esmagadora maio-ria das pessoas, sob o imperativo cego da valorização do valor, nos limites da coação da concor-rência e das lutas intraclassistas e entre as classes. O pequeno-burguês, por sua vez, continua aser basicamente o pequeno proprietário. E quem é o proletariado de hoje? A “classe que vivedo trabalho”, conceito proposto por Ricardo Antunes. Ver ANTUNES, Ricardo. Os Sentidosdo trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.

56 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 571.57 MARX, Karl. O Capital. Livro I, v. 1, p. 406.

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Em artigo recente, refletindo sobre uma possível retomada na luta de classes,na Alemanha de hoje, e concluindo por sua improbabilidade, o autor alemão,embora reconheça a importância da greve, pondera, com razão, que sozinhaela só pode ser ineficaz, sendo necessário o desenvolvimento de outras formasde combate ao capital agregadas a ela, pois:

já não se pode continuar a falar do “braço forte” que faz parartodas as rodas. Os empregados estão enfraquecidos e estilhaçadospelo outsourcing.58 Antes de mais nada [...] domina na “consti-tuição orgânica do capital” (Marx), há muito tempo e cada vezmais, o emprego dos meios materiais cientificizados. Os preçosdestes quase não são rebaixáveis através de pressões, ao contráriodo preço do bem mão-de-obra. [...] A verdadeira “classe que criamais valia” está a encolher, é nisso que consiste o limite intrínsecoda acumulação. E é por isso que esta base se tornou demasiadoestreita para uma resistência social com força convincente.59

Em linhas gerais, o raciocínio é irretocável, a não ser por um ponto: será ooperário de fábrica realmente a única “classe que cria mais valia”? Não. Poisjá no capitalismo embrionário do século XIX, Marx podia afirmar que:

Há [...] ramos industriais autônomos em que o resultado doprocesso de produção não é nenhum produto, nenhuma mercado-ria. Entre eles, o único setor importante, do ponto de vista econômico,é o de transportes e comunicação, que abrange tanto o transportede mercadorias e pessoas quanto a transmissão de notícias, serviçopostal etc.60

E o que dizer das diversas novas formas de trabalho produtivo (do ponto devista do capital, isto é, geradores de mais-valia) do capitalismo contemporâneoao redor do planeta?61

58 “Outsourcing”: externalização de custos, terceirização de atividades.59 KURZ, Robert. O Caso está a ficar sério. Documento eletrônico: http://obeco.

planetaclix.pt/rkurz169.htm. Acesso em: jul 2007.60 Isso porque o valor que o dispêndio de força de trabalho envolvido nesses meios acrescenta

ao produto consiste em lhe proporcionar deslocamento espacial, além de acelerar a circulação,conseqüentemente os ciclos do capital, e portanto a realização da mais-valia e da reproduçãoampliada. É desnecessário mencionar o gigantesco crescimento desses setores do tempo deMarx aos dias de hoje, tanto em termos absolutos quanto relativos. Cf. MARX, Karl. OCapital. Livro II, p. 64.

61 Para um estudo mais aprofundado dessa questão, ver ANTUNES, Ricardo. Os Sentidosdo trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.

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Resta, em meio a este quadro, o desafio de se localizar o sujeito socialrevolucionário nos dias de hoje. Neste sentido, Mészáros nos fornece duasindicações metodológicas fundamentais. A primeira refere-se à necessidadede se identificar sua configuração sociológica e aos critérios que devem serconsiderados nessa identificação:

O sujeito da emancipação não pode ser arbitrária e voluntari-amente predefinido. Ele só estará apto para criar as condições desucesso se abranger a totalidade dos grupos sociológicos capazesde se aglutinar em uma força transformadora efetiva no âmbito deum quadro de orientação estratégica adequado. O denominadorcomum ou o núcleo estratégico de todos esses grupos não pode sero “trabalho industrial”, tenha ele colarinho branco ou azul, mas otrabalho como antagonista estrutural o capital. Isto é o que com-bina objetivamente os interesses variados e historicamente pro-duzidos da grande multiplicidade de grupos sociais que estão dolado emancipador da linha divisória das classes no interesse co-mum da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social docapital.62

Esse argumento é muito importante, pois não é somente, nem principal-mente, o número dos membros de uma massa (embora não seja um fator de-sprezível) o que lhe confere um potencial revolucionário, mas a posição es-tratégica que seus integrantes ocupam em meio às relações de produção de umdado modo de produção em um determinado momento histórico – e a univer-salidade de suas reivindicações.

Sobre esta questão, Marx nos diz algo fundamental, tomando como objetode análise o campesinato francês por ocasião do 18 Brumário:

Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem emcondições econômicas que as separam umas das outras, e opõemo seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outrasclasses da sociedade, estes milhões constituem uma classe. Masna medida em que existe entre os pequenos camponeses apenasuma ligação local e em que a similitude de seus interesses não criaentre eles comunidade alguma, ligação nacional alguma, nem or-ganização política, nessa exata medida não constituem uma classe.

62 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, 51.

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São, conseqüentemente, incapazes de fazer valer seu interesse declasse em seu próprio nome [...]63

Temos também, nesta passagem, um excelente exemplo do modo comoMarx articulava em suas análises a dimensão política com a econômica danoção de classe, além de uma expressiva ilustração da razão pela qual o meronúmero e a subordinação comum não bastam para a formação de uma con-sciência e para a implementação de uma ação revolucionária, questão que nosremete à segunda indicação metodológica de Mészáros mencionada acima,aquela que diz respeito ao papel “vital da ideologia socialista”:

O papel vital da ideologia socialista, como negação radical daordem estabelecida, consiste precisamente em identificar e ajudara ativar, através de sua orientação abrangente, todas aquelas me-diações potencialmente libertadoras e que tenham a capacidadede transcender essa ordem, mediações que, sem sua ativa inter-venção, permaneceriam adormecidas e dominadas pelo poder doisolamento da imediaticidade, gerenciada e manipulada pela ide-ologia dominante.64

Tendo isto em conta, se por um lado Kurz parece estar certo ao afirmarque a luta do movimento operário “clássico”, que ocorreu num estágio poucodesenvolvido do capitalismo, era voltada não contra o capital, mas contra resí-duos pré-capitalistas nas relações de trabalho e na organização da sociedadecomo um todo, esta verdade é limitada na medida em que, por outro lado,esta era uma etapa necessária na luta contra o capital, ainda que nem todosos combatentes, ou mesmo a sua maioria, soubessem disso.65 Além disso,sua alternativa de transformação social a partir da conscientização de “grandes

63 MARX, Karl. MARX, Karl. O 18 brumário de Luiz Bonaparte. Documento eletrônico:http://www.marxists.org. Acesso em: mar. 2006. Vemos aqui a diferença entre classe enquantosujeito econômico e classe enquanto sujeito político, o que Lukács, em termos hegelianos,definiria mais tarde como a diferença entre “classe-em-si” e “classe-para-si”. A passagem deuma à outra se dá mediante a emergência da consciência de classe, a qual, porém, não surgepor geração espontânea, mas em meio à própria luta de classes, seja mediante a atuação dosintelectuais marxistas junto ao proletariado, seja pela própria pressão das contradições acirradasno desenvolvimento do capitalismo. O fato é que essa questão merecia ser trazida de volta aodebate de hoje.

64 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 239. Mészáros refere-se a importantesmovimentos de conteúdo libertário mais particulares, isto é, sem apelo universal: negros, mul-heres, imigrantes, gays etc.

65 O que nos remete à relevância da formulação de Lukács, sobre uma consciência de classepossível, na passagem da consciência em si à consciência para si.

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movimentos de massa”, sem um lastro classista, é vaga e idealista, pois: 1)conceitualmente, “massa” é uma má alternativa para “classe”, ainda que a úl-tima categoria possa suscitar confusões, e 2) ao contrário do antigo proletari-ado fabril, as “massas” atuais, embora permaneçam sob o jugo do trabalhoabstrato e do capital, seja na forma do emprego, do subemprego ou do desem-prego, não dispõem de nenhuma organização estratégica;66 tampouco são, en-quanto massas, diretamente responsáveis pela produção de riqueza na forma demercadorias, o que as torna, do ponto de vista do “sujeito automático”, mais oumenos descartáveis conforme sejam mais ou menos produtivas e solventes.67

Ou seja, na prática, não há coações concretas que favoreçam sua organização,nada indica que razões subjetivas apontem nesse sentido e, por fim, servemcada vez menos para o capital, por isso são sistematicamente eliminadas.

Assim, é teoricamente necessário que se investigue, em meio à complexarede de cooperação e conflitos entre as classes e frações de classe atuais, quaisdeveriam ser apoiadas, estimuladas ou combatidas no sentido de se evitar o“aniquilamento das [...] classes em confronto”,68 que hoje traria consigo, maisdo que a barbárie, a própria entropia sociometabólica.

Uma leitura do Manifesto à luz do 18 Brumário nos ajudaria nessa in-vestigação, nos permitiria enxergar que a noção bipolar de duas classes emconfronto – a burguesia e o proletariado industrial do século XIX – é tantouma esquematização simplificada, datada e didática/motivacional (trata-se deum manifesto) sobre um processo muito mais complexo e dinâmico – que en-volve, em meio à luta entre as duas principais classes antagônicas, as lutas e

66 Com exceção dos movimentos sociais, cujo estudo, necessário e pertinente ao tema destetrabalho, extrapola nosso tempo e conhecimentos atuais. Podemos porém constatar que, namedida em que estão organizadas em movimentos sociais, perdem a qualidade de massas e,na medida em que se opõe, com graus variados de consciência, à burguesia enquanto “person-ificação de categorias econômicas”, adquirem no mesmo grau a qualidade de movimentos declasse.

67 O que, sem dúvida, representa um “tiro no pé” do próprio “sujeito automático”, já que,em face da superprodutividade atual, cai o valor unitário de cada mercadoria, e não havendouma demanda solvente – devido sobretudo ao “desemprego estrutural” (Kurz) crescente ger-ado pela revolução microeletrônica –, a gigantesca mais-valia relativa gerada na produção nãotem mais como se realizar na esfera da circulação, e o capital perde aos poucos sua capaci-dade fantasmagórica de completar novos ciclos e “rotações” (Marx, O Capital, livro 2) em seuprocesso de reprodução ampliada, de se expandir continuamente, o que conduz fatalmente aodesmoronamento do edifício capitalista, adiado ultimamente pela queima de excedentes atravésdas guerras e pela especulação nos mercados financeiros – dispositivos extremos que por si sóatestam a anormalidade do andamento normal das coisas, e que não têm como funcionar parasempre. Mas o que brotará dos escombros se nada eficaz for feito para “aliviar as dores doparto”?

68 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista, pp. 23-4.

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alianças internas e externas que envolvem diversas frações de classe – quantouma abstração teórica fundamental. Nos termos de Lukács:69

são corretas as fórmulas de Marx, que se baseiam no fun-damento de uma hipótese metodologicamente isolante de umasociedade composta apenas de capitalistas e proletários? Quala melhor maneira de interpretá-las? Os críticos ignoravam porcompleto o fato de que essa hipótese, em Marx, era apenas umahipótese metodológica para compreender o problema de maneiramais clara, antes de avançar para a questão mais abrangente, quesituava o problema em relação à totalidade da sociedade. 70

Resta, hoje, a questão: a que frações de classe, e não a que massas, deveriaa “conscientização” se dirigir? Em outros termos, é o que se pergunta Zizek:

O que fazer a propósito da importância crescente da “produçãoimaterial” hoje (ciber-trabalhadores)? Devemos insistir que so-mente aqueles envolvidos na produção material “real” constituema classe trabalhadora, ou damos o passo final e decidimos aceitarque os “trabalhadores simbólicos” são os (verdadeiros) proletáriosde hoje? Deve-se resistir a dar este passo, por que isto mas-cara a DIVISÃO entre produção imaterial e material, a CISÃOna classe operária (em regra geograficamente delimitada) entreciber-trabalhadores e trabalhadores materiais (programadores nosEUA e na Índia, sweat shops71 na China ou na Indonésia).72

Temos aí a divisão entre produção imaterial e material correspondendo re-spectivamente a uma elite operária e a uma massa operária menos qualificada,distribuídas pelo planeta de maneira bem delineada. Na seqüência desta pas-sagem, Zizek acrescenta:

Talvez, a figura do DESEMPREGADO seja aquela na qualmelhor se encaixa o proletário puro de hoje: a determinação sub-stancial do desempregado permanece a de um trabalhador, maseles estão impedidos de atualizá-la OU de renunciar a ela, de

69 Nesta passagem, Lukács critica alguns críticos de Rosa Luxemburgo.70 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe, pp. 111-2.71 Locais onde se trabalha sob condições degradantes, não obstante estarem vinculados a

grandes corporações transnacionais. Um exemplo típico são as fábricas da Nike na Indonésia.72 ZIZEK, Slavoj. Repeating Lenin. Documento eletrônico: http://www.lacan.

com/replenin.htm. Acesso em: mar. 2004.

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modo que permanecem suspensos na potencialidade de trabal-hadores que não podem trabalhar.73

Esta é certamente uma proposta temerária, pois os “desempregados crôni-cos” são tão desarticulados quanto os camponeses estudados por Marx no 18Brumário e tão “revolucionários” quanto o lumpesinato, por quem ele nãonutria maiores simpatias.74 Não obstante, é o esboço de uma análise, não im-porta por ora se correta ou equivocada, das sociedades contemporâneas sob oprisma da luta de classes. E esforços neste sentido são fundamentais, pois, seestamos todos subordinados ao capital, isto se dá de forma diferenciada, difer-ença esta mediada, sim, por “categorias sociais” 75 de cunho etário, étnico, degênero etc., mas, sobretudo, pela divisão de CLASSE – hoje integralmente de-terminada pela divisão internacional do trabalho. Por isso, “uma vez negada arealidade da luta de classes, todas as pretensões de radicalismo acabam juntocom esta negação.” 76

Assim, se uma “economia totalitária” (Kurz) faz com que as pessoas sósejam sujeitos de direito pela sua propriedade de vender ou comprar força detrabalho, ainda que esta esteja se tornando, conforme sustenta Kurz, cada vezmenos vendável, é a posição que cada um ocupa em meio à divisão socialdo trabalho, às relações de produção, isto é, sua posição de CLASSE, quedetermina seu “ser social”; é verdade que se trata de um processo fetichista,mas real, e “existente”, se quisermos ser hegelianos. Pois é a forma empírica,fenomênica, como se dá a objetificação dos sujeitos enquanto proprietários dosmeios de produção, latifundiários, rentistas nas mais diversas escalas, ou pro-dutores de mercadorias (e serviços), ou ainda no papel de excluídos da própriareprodução da vida, que os diferencia enquanto sujeitos de CLASSE, menosou mais conscientes. Isto faz com que todos, a despeito de estarem presos,como sustenta Kurz, na mesma imanência fetichista, possuam interesses an-tagônicos. É a este antagonismo e a seu potencial revolucionário que Marx serefere quando menciona o processo de alienação do próprio trabalho a que estásubmetida a classe trabalhadora (“o operário”), em oposição e complementari-dade ao capital (“o capitalista”):

Aqui o operário está logo de início num plano superior ao docapitalista, porquanto este último criou raízes nesse processo de

73 Idem, ibidem.74 No que, ao que tudo indica, ele tinha razão, se considerarmos os acontecimentos narrados

e analisados no 18 Brumário, para não falarmos dos pogromistas russos ou do nazifascismo.75 Cf. LÖWY, Michael. Ideologias e ciências sociais.76 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 163.

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alienação e nele encontra a sua satisfação absoluta, ao passo que,na sua condição de vítima do processo, o operário se acha de ime-diato numa situação de rebeldia e o sente como um processo desujeição. [...] A autovalorização do capital – a criação de mais-valia – é [...] objetivo determinante, predominante e avassaladordo capitalista, impulso e conteúdo absoluto de suas ações; na re-alidade, não é outra coisa senão o afã e a finalidade racionalizadosdo entesourador. Conteúdo absolutamente mesquinho e abstrato,que, sob certo ponto de vista, faz o capitalista aparecer como quesubmetido a uma servidão para com a relação do capital que éigual, embora também de outra maneira, à do seu pólo oposto, àdo operário.77

Sendo assim, é inaceitável a idéia de que, para que se possa desenvolverpráxis para além do “moderno sistema produtor de mercadorias” (Kurz), tenhase tornado inútil considerar esses antagonismos.

À luz dessas considerações, chegou o momento de nos reaproximarmos denosso objeto.

77 MARX, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultados do processo de produçãoimediata, p. 56.

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Capítulo 6

CRÍTICA DA ECONOMIAPOLÍTICA DACOMUNICAÇÃO

Nunca é demais enfatizar que a mistificação político-ideológicanão se alimenta de si mesma (se assim fosse, seria relativamentefácil suplantá-la), mas de uma contradição objetiva da base so-cioeconômica. (Mészáros)1

Se uma abordagem marxista da comunicação não pode consistir em umamera apologia metodológica da determinação em última instância da econo-mia sobre a superestrutura, a cultura, o universo simbólico ou como se queirachamar, tampouco deve deixar de reconhecer a efetividade contraditória dessadeterminação, mantendo sempre atual a análise crítica de seu caráter fetichista,voltada para a sua superação.

Para compreender bem isso, devemos entender “economia” em um duplosentido, ou melhor, em dois níveis de abstração: no primeiro, o termo remete,como vimos, à “produção e reprodução da vida social”, sejam quais forem ascircunstâncias; no segundo, aos diversos modos de produção que existiram eforam superados por outros.

No primeiro sentido, a “determinação em última instância” é insuperável;no segundo, passível de superação. Em outras palavras, é impossível haverhistória sem que se dê alguma forma de produção e reprodução da vida social,mas os homens só fazem história na medida em que o conjunto de suas ativi-

1 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 1026.

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dades físicas e intelectuais dirige-se no sentido de conservar ou transformarum modo de produção dado, tenham eles consciência disto ou não.

Assim, metodologicamente, no que diz respeito aos temas superestruturaiscom os quais os estudos de comunicação são usualmente identificados – nãoimporta aqui em qual chave teórica, fale-se em ideologias, discursos, proces-sos semióticos, práticas intersubjetivas ou o que for –, o marxismo consistenão em reduzir a superestrutura a mero reflexo da estrutura produtiva, masem estudar a totalidade de cada formação social, a partir dos limites e poten-cialidades materiais e espirituais que a estrutura favorece ou bloqueia, em seudinamismo, em sua complexidade, buscando, em meio aos aspectos contra-ditórios da totalidade concreta, o motor, ou, mais precisamente, a alavanca desua superação – pois um motor é um autômato e a alavanca revolucionária emação pressupõe um sujeito autônomo alavancador. É, aliás, por esta razão queKosik, ao refletir sobre a categoria da totalidade, destaca o caráter concreto daação criadora do homem:

[...] a totalidade de base e superestrutura permanece abstratase não se demonstra que é o homem, como sujeito histórico real,que no processo social de produção e reprodução cria a base ea superestrutura, forma a realidade social como totalidade de re-lações sociais, instituições e idéias; e nesta criação da realidadesocial objetiva cria ao mesmo tempo a si próprio, como ser históricoe social, dotado de sentidos e potencialidades humanas, e realizao infinito processo de “humanização do homem”.2

A esta “humanização do homem”, porém, se opõe em grande medida oregime do capital, que tem por imperativo último subordinar o conjunto davida sobre a Terra, o que envolve os “produtos do espírito”, ao princípio davalorização do valor, ou da reprodução ampliada do capital. É por esta razãoque, a nosso ver, no campo dos estudos de comunicação, ainda não surgiramalternativas satisfatórias à tese central do pensamento frankfurtiano, a saber,uma crítica implacável à subordinação da produção cultural (ou simbólica)à lógica da mercadoria.3 Pode-se perfeitamente discordar das consideraçõesestéticas de Adorno, de seu “aristocratismo”, de seu pessimismo, o que for,mas é um grave equívoco passar ao largo de sua principal contribuição teóricapara o campo da comunicação: a crítica à mercantilização da cultura.

2 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 60.3 Aliás, não se pode compreender adequadamente a extensão da crítica dos teóricos de

Frankfurt à mercantilização da cultura sem um conhecimento adequado da crítica marxianaao fetichismo da mercadoria.

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Esta crítica, contudo, sozinha, não dá conta das diversas formas de resistên-cia das audiências – menos ou mais conscientes – à dominação do capital, queocorrem no momento da recepção – ou da “decodificação” (Hall). Essas re-sistências, por sua vez, no que elas possuem de politicamente relevante, sãoa expressão, direta ou indireta, da luta de classes, assim como a ausência deuma reflexão mais acurada a seu respeito por parte de Adorno, Horkheimer,Marcuse ou Habermas relaciona-se com sua ilusão a respeito da “integraçãoda classe operária”.

É neste sentido que a contribuição dos Estudos Culturais é bem vinda aocampo da Comunicação, conforme veremos agora, buscando igualmente iden-tificar os seus limites.

6.1 Estudos Culturais na Sociedade do Espetáculo

Em comunicação, outrora, investigava-se de que forma e até que ponto osmeios de comunicação de massa influenciavam as pessoas; hoje se discutede que forma e até que ponto essa influência dos meios de comunicação émediada por fatores culturais de matriz não midiática, fatores estes que favore-cem leituras diferenciadas de um mesmo discurso, abalando assim as velhasteses sobre o poder manipulador uniformizante da indústria cultural em escalamassiva.

Essa mudança, promovida pelos Estudos Culturais, foi importante, no sen-tido de equilibrar os exageros daqueles que, à esquerda e à direita, viam nosmeios de comunicação um poder independente e total, praticamente negandointeligência às massas.4 Seu corolário é a noção de recepção ativa.

Em um merecido reconhecimento à contribuição de Gramsci e de Bakhtinpara o marxismo, incluindo a incorporação de seu pensamento pelo que demelhor se produziu no campo dos estudos culturais, é oportuno lembrar aquiuma carta de Engels, que nos deixou uma indicação reveladora sobre umadeficiência que ele reconhecia em sua obra e na de Marx, obra, como sabemos,em boa parte comum. É precisamente esta deficiência que Gramsci, Bakhtine, posteriormente, os Estudos culturais tentaram resolver.

Engels disse que faltou que ele e Marx definissem a forma como se dava apassagem do econômico para o ideológico, por terem se limitado a descrevero conteúdo do processo global:

Nós todos colocamos inicialmente – e tínhamos de fazê-lo– a ênfase principal, antes de mais nada, em derivar dos fatos

4 Cf. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados.

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econômicos básicos as concepções políticas, jurídicas e demaisconcepções ideológicas, bem como os atos mediados através de-las. Com isso negligenciamos o lado formal em função do con-teúdo: o modo e a maneira como essas concepções etc. surgem.Isso deu aos adversários um belo pretexto para erros e deformações[...]5

Hoje, definir a centralidade das ITCs, articulada aos demais fatores que de-terminam a forma desta passagem, isto é, a estrutura de suas mediações, bemcomo, partindo do simbólico, o sentido oposto e, enfim, sua dialética, é o quecumpre fazer em uma perspectiva marxista, ou materialista-dialética, da comu-nicação, pois, como ensina Kosik:

A dialética materialista como método de explicitação cientí-fica da realidade humano-social não significa [...] emparelhamentodos fenômenos de cultura aos equivalentes econômicos [...], nemredução da cultura a fator econômico. A dialética não é o métododa redução: é o método da reprodução espiritual e intelectualda realidade, é o método do desenvolvimento e da explicitaçãodos fenômenos culturais partindo da atividade prática objetiva dohomem histórico.6

Assim, dado o atual momento de desenvolvimento desta pesquisa, o objetogeral7 de uma ciência marxista da Comunicação poderia ser formulado nos

5 Na seqüência, Engels esclarece um mal entendido recorrente e defende um ponto de vistametodológico importante: “Relacionada com isso existe uma estúpida concepção dos ideólogos:já que negamos um desenvolvimento histórico independente às diversas esferas ideológicas quedesempenham um papel na história, negaríamos também qualquer eficácia história delas. Aquiestá subjacente a concepção vulgar, não-dialética, de causa e efeito como pólos opostos de modorígido, com o esquecimento absoluto da interação. Esses Senhores esquecem com freqüência equase deliberadamente que um elemento histórico, uma vez posto no mundo através de outrascausas, econômicas no final das contas, agora também reage sobre a sua circunstância e poderetroagir até mesmo sobre as suas próprias causas.” ENGELS, apud FERNANDES, Carta a F.Mehring, de Londres, em 14 de julho de 1893. In: FERNANDES, Florestan (org.). Marx-Engels, pp. 465-466. Sobre a hipótese de um desenvolvimento autônomo das idéias, Mészáros,na mesma linha de raciocínio de Engels, a refuta categoricamente: “[...] as várias ideologiase formas de consciência a elas correspondentes não possuem história própria, não têm umadinâmica independente de desenvolvimento, devendo ser entendidas como ligadas do modomais íntimo com os processos de desenvolvimento da vida material dos indivíduos reais.” Cf.MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 110.

6 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 39.7 Martino distingue o objeto de uma determinada pesquisa do objeto geral de uma disciplina

ou ciência nos seguintes termos: “O objeto de um certo trabalho de investigação é [...] a matéria

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seguintes termos: o papel das ITCs na dialética das mediações entre base esuperestrutura nas sociedades de classe contemporâneas, mediações estas quetêm na economia, até segunda ordem (ordem histórica), seu übergreifendes-Moment.8

Essa perspectiva nos afasta um pouco dos Estudos Culturais, embora hajapontos de convergência entre ambas as abordagens. Em nosso caso, as diversasformas como se opera a influência culturalmente mediada das ITCs sobre aspessoas não é o problema em si, mas o modo e o grau com que essa influênciacolabora ou não para a subordinação das pessoas ao capital. É o que não sepode perder de vista, assim como a possibilidade, em termos positivos, de umoutro uso dos meios.

Sob este prisma, o estudo das formas como as pessoas “ressignificam” osdiscursos midiáticos permanece válido na medida em que produz dados rel-evantes para que se compreenda concretamente como se dá a recepção dosmeios em estratos definidos da população. Porém, ao se deixar de lado aanálise crítica do conteúdo ideológico desses discursos, que é dinâmico, es-corregadio, cheio de sutilezas e não se deixa capturar tão facilmente, e ao se“antropologizar” em demasia o consumo – como se no momento em que nosdamos conta do fato de as mercadorias exercerem a função de “indexadoressimbólicos”,9 elas por um passe de mágica deixassem de ser “coágulos de tra-balho” (Marx) –, corre-se o risco de se camuflar as graves conseqüências damercantilização da cultura, com destaque para o fato de as ITCs serem funda-mentalmente conservadoras, muitas vezes reacionárias – com freqüência, ondemenos se espera.

intelectual que ele manipula e que só aparece nas elaborações teóricas pelas quais os fenômenosse apresentam à investigação científica [...] Por sua vez, o objeto de uma disciplina deve sercompreendido como o ponto de vista mais geral, responsável pelo recorte e pela abordagem pormeio da qual o fenômeno se apresenta ao trabalho de teorização. Ele funciona simultaneamentecomo um pano de fundo de onde se destacam as teorias e como princípio de diferença e deunidade do campo.” MARTINO, Luiz C. As Epistemologias contemporâneas e o lugar dacomunicação. In: LOPES, Maria Immacolata V. (org.) Epistemologia da Comunicação, p.87.

8 Como visto, momento de importância fundamental, momento em última instância pre-dominante, mas não único, não imune a influências freqüentemente fortes e eventualmentedecisivas de fatores de outra ordem – cultural, política, jurídica etc. É a ênfase na economiacomo o übergreifendes-Moment do processo que diferencia a posição aqui defendida daquelaapresentada por Martin-Barbero em “Dos Meios às Mediações”, obra que, no que pese umamoderação política a nosso ver excessiva, aliada a um excesso de culturalismo, é sob outrosaspectos, sobretudo aqueles históricos, bastante interessante.

9 Ver ROCHA, Everardo e BARROS, Carla. Cultura, mercado e bens simbólicos: notas parauma interpretação antropológica do consumo. In: TRAVANCAS, Isabel e FARIAS, Patrícia(orgs.) Antropologia e comunicação, pp. 181-208.

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Isso pode ser facilmente demonstrado: seja no jornalismo, na publicidade,na dramaturgia ou nas demais formas de distração, os problemas catastrófi-cos da realidade social jamais são apresentados como estruturais, como ex-pressões necessárias do capital, mas sempre como algo remediável sem quese altere substancialmente nada no que diz respeito à subsunção do trabalhoao capital10 e dos valores de uso aos valores de troca. Assim, por exemplo,podemos nos deparar, em uma telenovela, em uma matéria jornalística etc.,com a dramatização ou a informação referente a um empresário mau caráterou a um salário ruim, mas o problema permanece sempre no nível do adjetivo,do predicado, jamais nos próprios substantivos “empresário” e “salário”, queexpressam por si sós uma relação de exploração.

A realidade “normal” das relações capital / trabalho, deste modo, é apre-sentada como efetivamente normal, como não-problemática em termos estru-turais, ou seja, é re-legitimada, desta vez no plano do imaginário, no jornal-ismo, na publicidade etc. Temos então que as relações sociais sob o capital, otrabalho assalariado, a empresa privada, o Estado, o “mercado”, os preços, odinheiro e todo o resto, além de sua legitimação primária no direito burguês,recebem por assim dizer um reforço na esfera do imaginário espetacular: em-presas, empresários, empregos, salários, preços etc. não são somente reais navivência ordinária do dia a dia, mas hiper-reais em sua existência espetacular,na tele ou cinedramaturgia, no “secondlife”, na publicidade.

Fazendo uso das categorias de Peirce, isso ocorre tanto no registro do dis-curso verbal/simbólico quanto do imagético/icônico, e é neste último, con-forme sustenta Stuart Hall em outros termos,11 que o aspecto ideológico rea-cionário da semiose se mostra mais insidioso, dado o efeito de naturalidadederivado da aparência de realismo que o signo icônico pode provocar em umgrau, em geral, superior ao do discurso verbal.

10 Cabe aqui esclarecer, de modo sumário, duas noções muito importantes no pensamento deMarx, a subsunção formal e a subsunção real do trabalho ao capital. A subsunção formal refere-se ao processo histórico de alienação (no sentido jurídico de expropriação, que é o utilizado porMarx) do produtor dos meios de produção (instrumentos de trabalho – ferramentas e máquinas– e objetos de trabalho – matérias primas) e da obra produzida, que ocorreu nos primórdios darevolução industrial, em função da divisão social (vertical, hierárquica) do trabalho, possibili-tada pela acumulação primitiva de capital nas mãos da burguesia emergente. Já subsunção realdiz respeito à desqualificação das habilidades criativas do trabalhador como conseqüência da di-visão técnica (horizontal) do trabalho. Ambas são condições necessárias para que se estabeleçao fetichismo da mercadoria Cf. MARX, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultadosdo processo de produção imediata, da pág. 72 em diante.

11 Cf. HAAL, Stuart. Codificação/Decodificação. In: SOVIK, Liv (org.). Da Diáspora„ pp.392-3. Adiante, esse tópico será examinado mais extensamente.

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É por essas razões que uma leitura excessivamente culturalista da recepçãomidiática torna-se problemática. Pois se é verdade que “o trabalhador nãose produz a si próprio, [...] produz um poder independente”, 12 a recepçãomidiática é, a despeito de seu caráter ativo e altamente mediado, a formacomo “o sucesso desta produção, a sua abundância, regressa ao produtor comoabundância da despossessão”, 13 é o processo mediante o qual “as própriasforças que nos escaparam mostram-se-nos em todo o seu poderio.” 14

Em termos menos abstratos, é a parte da mais-valia investida em publici-dade e a parte do salário investido no consumo ordinário que sustentam o luxoextraordinário das imagens e sons que o trabalhador pode consumir semiot-icamente, com os olhos e os ouvidos, mas não com o resto do corpo: são astrabalhadoras pobres que pagam pela beleza do vestido de luxo, da maquiagemcara e até da forma física da modelo que elas admiram (ou desprezam, aquitanto faz) “de graça”. Pagam duplamente: ao produzirem o vestido de luxoe a mais-valia que custeia sua publicidade, no caso das costureiras, e ao con-sumirem os produtos baratos de massa, no caso das costureiras e dos demaistrabalhadores, permitindo que a mais-valia gerada nas unidades produtivas dosprodutos baratos de massa se realize em sua forma monetária, de modo queas donas ou acionistas dessas fábricas, ou as esposas ou filhas ou amantes dosdonos, comprem os vestidos de luxo anunciados, assegurando por sua vez arealização monetária da mais-valia produzida pelas costureiras, que irá custeara publicidade do vestido...

Ou seja, ainda que os produtos sejam “indexadores simbólicos”, não deixampor isso de ser “coágulos de trabalho” (Marx) – e este é, por assim dizer, seuübergreifendes-Moment. Quanto à espetacularização desses produtos, esta tempor objetivo primário, além de acelerar a circulação do capital, esconder estefato. Nos termos de Debord:

O espetáculo [...] é ao mesmo tempo o resultado e o projetodo modo de produção existente. Ele não é um suplemento aomundo real, a sua decoração readicionada. É o coração da irre-alidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares,informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de di-vertimentos, o espetáculo constitui o modelo presente da vida so-cialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha jáfeita na produção, e o seu corolário o consumo. Forma e conteúdo

12 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, tese 31. Documento eletrônico:http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540/. Acesso em: jun. 2005.

13 Idem, ibidem.14 Idem, ibidem.

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do espetáculo são identicamente a justificação total das condiçõese dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a pre-sença permanente desta justificação, enquanto ocupação da parteprincipal do tempo vivido fora da produção moderna.15

Se isso estiver correto, enquanto a cultura mediada pelas ITCs, assuma aforma que assumir, permanecer subordinada ao capital, é necessário insistirna perspectiva de uma crítica da economia política da comunicação. Por isso,todo e qualquer recepcionismo, ainda que marxista, ainda que levante dados decunho etnográfico relevantes, permanece no terreno dos efeitos derivados dalógica dominante do “sujeito automático” – e, até segunda ordem, totalizante–, o capital.

Nunca é demais lembrar: o marxismo ou é crítica radical ao capitalismo epráxis para além do capital, ou é uma teoria emasculada. É o próprio StuartHall, ilustre representante marxista da “Nova Esquerda” e dos Estudos Cultur-ais, buscando demonstrar as complexas e assimétricas relações entre culturapopular e classes sociais, quem afirma isso:

A cultura popular é um dos locais onde a luta a favor ou con-tra a cultura dos poderosos é engajada; é também o prêmio a serconquistado ou perdido nessa luta. É a arena do consentimento eda resistência. Não é a esfera onde o socialismo ou uma culturasocialista – já formada – pode simplesmente ser “expressa”. Masé um dos locais onde o socialismo pode ser constituído. É por issoque a cultura popular importa. No mais, para falar a verdade, eunão ligo a mínima para ela.16

Gramsci, cuja influência nos Estudos Culturais é notória,17 graças sobre-tudo a sua acurada percepção da complexidade da relação classe / cultura e àsimportantes pistas metodológicas que deixou no sentido de se estudar as cul-turas populares, Gramsci, é bom lembrar, além de ter sido um “teórico da cul-tura”, foi um líder revolucionário. E como não se pode falar de marxismo, in-clusive em uma linha gramsciana, desconsiderando seu caráter revolucionário,

15 Idem ibidem, tese no. 6.16 HALL, Stuart. Notas para uma desconstrução do popular. In: SOVIK, Liv (org.). Da Diás-

pora, p. 262. Vale frisar que, neste artigo, Hall não discute a cultura popular em termos de juízoestético. Ou seja, esse “eu não ligo a mínima para ela” não é uma consideração estética, masuma afirmação de caráter metodológico sobre a importância de se estudar o popular, no espectrodo marxismo, estar relacionada necessariamente ao objetivo da construção do socialismo.

17 Ver Hall, Da Diáspora, diversos artigos; ver também Lopes, Pesquisa em Comunicação,subcapítulo A Perspectiva gramsciana, pp. 63-70.

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sob o risco de aburguesá-lo, isto é, de esterilizá-lo enquanto práxis emanci-patória, não podemos deixar de lado, no campo da comunicação, a crítica daeconomia política.

Esse lembrete é necessário, se a tendência que Silas de Paula identificou jáhá dez anos permanecer influente: “a abordagem neogramsciana foi [...] redi-recionada para o que se tornou uma concepção acrítica do consumo cultural[...] exemplificada pelo viés da audiência ativa, que, apesar das evidentes van-tagens, negligencia os aspectos econômicos, tecnológicos e políticos da culturatelevisual.18

Lopes dizia, na mesma época, mais ou menos o mesmo, em forma dealerta:

A fim de que os estudos da linha gramsciana em Comunicaçãonão se esgotem em mais uma “onda” ou “moda” é necessárioapontar os riscos de alguns erros trazidos pela politização da in-vestigação em que este linha necessariamente redunda. Em primeirolugar está o risco de se privilegiar exclusivamente os modos dereelaboração/resistência/refuncionalização dos conteúdos cultur-ais pelas classes subalternas, outorgando escassa importância teóricaaos modos de presença das ideologias dominantes nos conteúdose práticas dessas classes.19

Como exemplo desses “riscos”, tomemos a seguinte passagem de um grandeexpoente dos estudos-culturais latino-americanos: “[...] neles [os meios de co-municação] não apenas se reproduzem ideologias, mas também se faz e refaza cultura das maiorias, não somente se comercializam formatos, mas recriam-se as narrativas nas quais se entrelaça o imaginário mercantil com a memóriacoletiva.” 20

Quando o autor nos diz isto dos meios de comunicação, a elegância dotexto e a provavelmente sincera indignação de Martin-Barbero com as maze-las sociais da América Latina não suprimem o fato deste “entrelaçamento”,predominantemente favorável ao capital, não ser ao menos apontado como tal,muito menos denunciado como algo escandaloso.21

18 SILAS DE PAULA. Estudos Culturais e Receptor Ativo. In: RUBIM, Antônio Albinocanelas et al. (orgs.) Produção e Recepção dos Sentidos Midiáticos, pp. 131-2.

19 LOPES, Maria Immacolata V. Pesquisa em comunicação, p. 70, nota 36.20 MARTIN-BARBERO, Jesus. Globalização comunicacional e transformação cultural. In:

MORAES, Dênis de (org.). Por uma outra comunicação, p. 63.21 Embora não deva ser descartada a hipótese de, em alguns casos, o imaginário mercantil,

diante de certas memórias populares de tipo marcadamente obscurantista, xenófobo, racista,

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Na realidade, o papel exercido pelas ITCs enquanto elemento socializadorou mediador hegemônico de parte do repertório simbólico existente misturao repertório das diversas classes de acordo com o interesse daquelas mais fa-vorecidas. É este, quase sempre, o vetor mais forte.

Stuart Hall sabe bem disto, e por isso afirma: “há uma luta contínua enecessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, no sen-tido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular [...]” 22

A cultura dominante consegue fazer isto porque as indústrias culturais, con-centradas em poucas mãos, “têm de fato o poder de retrabalhar e remodelarconstantemente aquilo que representam; e, pela repetição e seleção, impor eimplantar tais definições de nós mesmos de forma a ajustá-las mais facilmenteàs descrições da cultura dominante ou preferencial.” 23 É verdade que “es-sas definições não têm o poder de encampar nossas mentes [...] Contudo, elasinvadem e retrabalham as contradições internas dos sentimentos e percepçõesdas classes dominadas.” 24

Assim, parafraseando Martin-Barbero, talvez fosse mais realista dizer quenos meios de comunicação não apenas se faz e refaz a cultura das maiorias,mas que isto ocorre sob o vetor predominante da reprodução ideológica; nãosomente recriam-se as narrativas nas quais se entrelaça o imaginário mercantilcom a memória coletiva: esse “entrelaçamento” representa a subordinação da“memória coletiva” ao imaginário mercantil, condição para a comercializaçãode formatos etc.

Não se trata de uma mera inversão da ordem de importância dos fatores,sem maiores conseqüências, mas da ênfase metodologicamente necessária noselementos mais problemáticos da realidade discutida, que requerem uma críticae uma transformação – sem, contudo, perder de vista a complexidade do pro-cesso, que fica clara, bem como a importância dos estudos de recepção, naseguinte passagem de Baccega:

A recepção é outro tema importante. Entendida como ativi-dade inerente ao sujeito enunciatário, é ela que nos dá pistas doimpacto social que uma campanha publicitária, por exemplo, temnas mentes e corações. Através de seu estudo podemos descobrirquais são os processos que resultam do encontro dos discursos dosmeios de comunicação apropriados (transitoriamente) ou incor-

sexista, homofóbico, anti-semita etc., poder mediar o que Marx chamava de “missão civiliza-tória” do capital. Não parece, contudo, que Martin-Barbero esteja se referindo a isso.

22 Hall, op. cit., pp. 254-5.23 Idem, ibidem.24 Idem, ibidem.

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porados (com permanência na cultura) pelos sujeitos-receptoresimersos em suas práticas culturais.25

Isto tem relevância inclusive para se compreender a configuração atual daluta de classes, pois, conforme argumenta Bourdieu, “uma classe é definidatanto [...] pelo seu consumo [...] quanto por sua posição em meio às relaçõesde produção (mesmo que seja verdade que as últimas governem o primeiro)”.26

Por outro lado, no dizer de Turner, “[...] o pêndulo alcançou o ponto maispróximo possível da audiência [...]. Talvez seja o momento de se retornara uma postura de leitura mais politizada da mídia, do seu papel de ‘agenda-setter’ ideológica e de indústria capitalista chave neste mundo internacional-mente corporatizado.” 27

Em outras palavras, sem desconsiderar as contribuições mais importantesdos Estudos Culturais, talvez seja a hora de se dedicar um pouco mais deatenção à economia política da comunicação, cuja crítica deve partir, a nossover, de uma reflexão cuidadosa da própria noção de economia: sob o capital,em geral e no projeto socialista.

6.2 A Economia e o gosto

Um bom ponto de partida para uma crítica da economia política da comuni-cação é a identificação do caráter fetichista da produção de bens simbólicosquando subsumida ao capital,28 produção esta hoje operada predominante-mente pelas ITCs. O termo fetichismo, aqui, deve ser entendido em sua maisampla acepção, a saber, enquanto processo histórico de subsunção da culturaao princípio da valorização do valor e ao mesmo tempo de reprodução ide-ológica, processo funcional duplo que busca – com considerável sucesso – ad-equar o imaginário e a sensibilidade coletivos às necessidades de reproduçãoampliada do capital, contribuindo decisivamente na formação e no estímulodos gostos, isto é, em sua captura pelo capital, de modo a assegurar que amassa de mercadorias produzida, de todos os tipos, circule o mais rápido pos-sível e que as pessoas percebam as relações de capital como normais.

25 BACCEGA, Maria Aparecida. O Impacto da publicidade no campo comunicação /educação. In cadernos de Pesquisa ESPM, ano 1, n.3, (setembro/outubro 2005). São Paulo:ESPM, 2005, p. 15.

26 BOURDIEU, Pierre. Distinction. A Social Critique of the Judgement of taste, p. 483.27 TURNER, apud Silas de Paula. Estudos Culturais e Receptor Ativo. In: RUBIM, Antônio

Albino canelas et al. (orgs.) Produção e Recepção dos Sentidos Midiáticos. Petrópolis / RJ:Vozes, 1998, pp. 140.

28 O estudo de formas pregressas de fetichismo foge dos objetivos desta pesquisa.

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É claro que isso não se dá apenas mediante a captura do gosto, mas tam-bém devido à aceleração que a informática implementou nos processos produ-tivos e nos mecanismos de circulação de capital financeiro e mercadorias. Issonos remete à razão pela qual se optou aqui em utilizar o termo infotelecomuni-cações ao invés de indústria cultural: para dar conta tanto desta última quantodaquilo que no complexo das comunicações contemporâneas não diz respeitodiretamente à subsunção da cultura ao capital ou à reprodução ideológica, masàs mediações tecnológicas e empresariais do conjunto das atividades produti-vas e improdutivas sob o comando do capital, para além da indústria cultural.

Esta abordagem traz implícita uma recusa à positividade da categoria valoreconômico, entendido aqui não como um dado neutro, a ser apreendido em suapretensa materialidade por uma supostamente objetiva ciência econômica, mascomo uma abstração funcional destrutiva, que constitui o cerne das relaçõessociais regidas pelos imperativos do capital, conforme demonstramos poucoacima. Devemos, portanto, evitar o “abandono da crítica da economia política,substituída por uma simples economia entendida como ciência no sentido bur-guês”, no dizer de Lukács.29

O valor, assim, se revela em sua vacuidade substancial, em sua materiali-dade de sintoma histórico de um dado modo de produção, e não como categoriasuprahistórica que somente expressaria determinadas quantidades de trabalho,nem como um predicado, uma qualidade intrínseca às coisas. Trata-se antesde um conceito teórico e de uma noção prática do universo de permuta de mer-cadorias, conceito e noção resultantes de uma forma historicamente específicade extração de trabalho excedente enquanto fim em si mesma. Serve comocritério de comensurabilidade para a permuta de mercadorias, abstraídas assuas propriedades materiais, a despeito de seu valor de uso e das necessidadeshumanas,30 e serve para se pensar o processo, embora não possua existênciaempírica.31

29 LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os Princípios ontológicos fundamentais deMarx, p. 35.

30 Mais uma vez, vale aqui lembrar que a distinção conceitual de Marx entre valor e preço éfundamental para que se entenda corretamente sua teoria econômica. A demanda tem influênciadireta nos preços, não nos valores. Quanto a estes, a demanda só os pode influenciar indireta-mente, por exemplo no caso de um aumento de demanda que estimule o desenvolvimento denovas tecnologias, as quais aumentam a produtividade daquele ramo produtivo, reduzindo assimo valor unitário de cada produto mediante um acréscimo na extração de mais valia relativa.

31 Isso interessa diretamente a uma crítica da economia política da comunicação sobretudo namedida em que a escala de socialização dos bens simbólicos, conseqüentemente do repertóriode valores e referências culturais de uma sociedade, irá depender da propriedade desses bens devalorizarem valor, acima de quaisquer outros critérios.

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Por outro lado, economia, em sentido estrito – abstraído o caráter predom-inantemente mercantil que as relações econômicas e a própria noção de econo-mia adquiriram sob o sistema do capital –, significa o oposto de desperdício.É o que nos lembra Mészáros, destacando a relevância política decisiva destanoção: “o sucesso de qualquer modo de produção, inclusive o socialista, é in-concebível sem um sistema de administração de recursos racional e eficiente.O significado essencial do termo “economia” é, precisamente, o resumo destaproposição em uma palavra.” 32

Essa dimensão política33 da noção de economia remete ao caráter propria-mente humano das atividades econômicas, ou seja, à idéia de que se deve fazero melhor uso possível dos meios para que se atinja determinado fim. Remeteigualmente à discussão dos fins: quais são? Quem os determinou? A quegostos atendem?

É aí que se revela a diferença essencial entre a economia burguesa e oprojeto de uma economia verdadeiramente socialista: na primeira, os setoresadministrativos do sistema tratam coisas e pessoas indiscriminadamente, domodo mais eficiente possível, 34 visando a valorização do valor, restando asatisfação dos gostos restrita ao consumo e dependente do objetivo econômicofetichista visado; no segundo, as pessoas devem administrar as coisas e a simesmas distintamente, de modo eficiente, autônomo e colaborativo, visando asatisfação dos gostos, no consumo, é óbvio, mas também na produção, tantoquanto possível.

Numa acepção mais dilatada, economia refere-se ao conjunto dos proces-sos de produção, circulação e consumo de bens, ou seja, de coisas úteis. Esseprocesso ocorre, como não poderia deixar de ser, em algum território, físicoou virtual, cujos contornos vão da cidade ao planeta. Trata-se porém, comojá sabiam os clássicos, de contornos não só geográficos, mas políticos.35 Aeconomia é, assim, necessariamente economia política. A exclusão do se-gundo termo da expressão, que atribui uma autonomia fantasmática aos pro-cessos econômicos, é simplesmente um absurdo, ainda que sob a justificativa(duvidosa) de um “recorte metodológico”, e mesmo sabendo que os processoseconômicos se tornaram praticamente autônomos sob o capital.

32 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 512.33 “Política”, aqui, no sentido empregado por Aristóteles em Ética a Nicômaco, como visto

no segundo capítulo desta pesquisa.34 “Eficiência” que contraditoriamente resulta, cada vez mais, em desperdício, não só de

gente, mas até de coisas. Em sua análise crítica desta tendência alarmante, Mészáros desen-volveu o conceito de “taxa de utilização decrescente”. Ver MÉSZÁROS, Istvan. Para além docapital, pp. 634-700.

35 Aqui, “política” congrega as noções de unidade territorial e administrativa.

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É por Marx saber muito bem que os processos econômicos tanto determi-nam quanto são determinados por processos extra-econômicos, com os quaisse articulam dialeticamente, que Lukács lhe dirige os seguintes elogios: “[...]por mais audaciosas que sejam as abstrações que ele desenvolve nesse campo,[...] permanece sempre presente e ativa – nos problemas teóricos abstratos– a vivificante interação entre economia propriamente dita e realidade extra-econômica no quadro da totalidade do ser social.” 36

Em nosso caso, enfatizar a relevância de momentos extra-econômico eminteração com a economia, com destaque para o momento político, ou mel-hor, para o caráter imperativamente político da economia, significa assumir umposicionamento metodológico que põe em primeiro plano o fato de a economiacompor um conjunto de atividades concretas, mais ou menos conscientementeorientadas37 a partir de opções políticas de pessoas reais, o que por sua vez im-plica em levar em conta o conteúdo classista do objeto da análise econômica.Isso é fundamental para nós, na medida em que a questão do controle políticodas atividades econômicas traz ao centro do debate o gosto e a comunicação,em sua atualidade conservadora e em sua potência revolucionária – potên-cia concreta, pois embora o controle consciente do conjunto das atividadeseconômicas, sob quaisquer circunstâncias atualmente concebíveis, talvez sópossa ser parcial, isso não significa que estejamos eternamente condenados aosimperativos caóticos da economia capitalista, já que esta carrega em si desdeo início as contradições que permitiram que fosse concebida a sua superaçãoefetiva. A este propósito, propõe Mészáros:

O ethos positivo da nova sociedade apenas poderia ser encon-trado na auto-atividade emancipada dos seus membros e nos com-plexos institucionais e instrumentais correspondentes que respon-dem de forma flexível às necessidades dos indivíduos sociais, emvez de os opor por meio de sua própria – predeterminada – inér-cia material. Apenas em tal moldura institucional e instrumental

36 LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os Princípios ontológicos fundamentais deMarx, p. 43. Para Lukács, essa articulação possibilita a compreensão de aspectos da própriaeconomia e da realidade extra-econômica que, de outro modo, permaneceriam incompreen-síveis.

37 A orientação dessas atividades é “mais ou menos conscientemente orientada” porque acomplexidade das inter-relações entre as diversas atividades e agentes econômicos, sobretudose considerarmos o caráter caótico da economia capitalista globalizada, torna a possibilidade deum controle plenamente consciente (por quem?) uma impossibilidade prática, como aliás foitragicamente demonstrado pelas malfadadas experiências do chamado “socialismo realmenteexistente”, o qual nem chegou perto de arranhar o núcleo duro do sistema: o fetiche do valor.Isto foi demonstrado de forma magistral por Kurz (1993) e Mészáros (2002).

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pode-se levar a sério a categoria da totalização coletiva consciente– isto é: a complexa harmonização cooperativa – dos objetivoslivremente escolhidos dos indivíduos sociais, em agudo contrastecom o sistema regido pela ‘mão invisível’ do mercado, pois esteúltimo se caracteriza pela absoluta totalização inconsciente quefaz com que os objetivos próprios do capital prevaleçam por trásdo indivíduos particulares [...].38

Temos insistido que todos os esforços direcionados no sentido da imple-mentação de uma ordem econômica mais humana, isto é, conscientemente ori-entada, na medida técnica possível, pelo conjunto dos agentes econômicos,em nome da satisfação dos gostos de todos e não da valorização do valor,requer desde o princípio do seu empreendimento uma crítica radical da econo-mia política, capaz de desmistificar seus pressupostos, categorias e orientaçãoclassista. A razão desta insistência é que, como é sabido, a própria economiapolítica é uma ciência que se desenvolveu em grande parte como discurso ide-ológico apologético da burguesia em seu momento de conquista da hegemoniasocial. Perder isto de vista é perder-se no emaranhado dos efeitos da economiacapitalista sem atingir suas causas, é não atingir o ponto de vista da totalidade,ou seja, é não enxergar a dinâmica estrutural que a sustenta, cuja força motriz éo princípio cego da valorização do valor, o que dificulta a busca dos caminhosteóricos e práticos para superá-la.

Por tudo isso, e não por uma questão meramente retórica ou ideológica,deve-se ter o cuidado de distinguir o caráter positivo (embora pretensamenteneutro) da economia política enquanto ciência burguesa, da negatividade dacrítica da economia política fundada por Marx, a qual impõe ao estudo daeconomia o elemento histórico e revolucionário. Quero crer que o mesmocuidado é bem vindo no universo dos estudos em economia política da comu-nicação, ainda mais se considerarmos que uma instrumentalização dos disposi-tivos das ITCs é condição necessária para a viabilização do controle conscientedo conjunto das atividades econômicas pelos produtores associados.

Nesse ponto, Robert Kurz se mostra de acordo conosco:

[...] o que até agora foi forma inconsciente da sociabilidadeterá de ser extinto e substituído pela comunicação direta entre oshomens, numa forma muito mais organizada e ligada em rede. A“forma” inconscientemente reguladora será substituída pela “açãocomunicativa” (Habermas) dos homens, que refletirão consciente-

38 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, pp. 453-4.

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mente sua própria sociabilidade e as suas ações sociais, organizando-as com base nisso.39

Essa passagem de Kurz pode servir como uma boa definição do objetivogeral positivo de uma crítica da economia política da comunicação, enquantoo conjunto das atividades de produção, circulação e consumo de bens simbóli-cos, tal qual se dá na realidade, constitui o objeto desta crítica, sendo que omomento econômico é o que diz respeito aos meios e o político, aos fins –embora, em uma realidade invertida, seja o oposto que ocorra.

Recapitulando, na trilha aberta por Marx, é na articulação entre as catego-rias forças produtivas e relações de produção, que compõe a noção mais geralde modo de produção, que está contido o vínculo dinâmico e por assim dizervisceral entre economia e política. É a partir da análise deste vínculo que sedesenvolve a crítica da economia política de Marx, a qual situa no fetiche dovalor tanto a fonte de sua coesão sob o regime do capital quanto da dissoluçãopotencial deste regime. Essa dissolução, porém, não se dará sozinha na econo-mia, sendo necessárias intervenções no campo da política para “aliviar as doresdo parto” da mudança histórica, conforme a conhecida passagem do prefáciodo Capital.

A comunicação – conjunto de dispositivos técnicos e campo de batalha ide-ológico – deve ser um dos objetos dessas intervenções e ao mesmo tempo umdos agentes interventores. O gosto, por sua vez, deve ser pensado neste con-texto também como objeto dessas intervenções, no sentido de que as pessoastomem gosto por elas, mas também como a sua razão de ser, já que o objetivomaior das próprias intervenções consiste, em última análise, na satisfação dogosto de todos os que não obstarem a satisfação do gosto de todos.

6.3 Necessidade e consumo (ou a jibóia)

Iremos agora discutir um outro tópico bastante atual e, a nosso ver, polêmiconos estudos de comunicação, a questão do consumo. O que é o consumo hu-mano?40 Primariamente, e em termos mais gerais, é o ato de o ser humanosuprir alguma carência ou necessidade,41 incorporando a si algo que lhe eraexterior. Essa incorporação pode se dar na esfera estritamente material – o

39 KURZ, Robert. Dominação Sem Sujeito. Documento eletrônico:http://obeco.planetaclix.pt/rkurz86.htm. Acesso em: mai. 2005.

40 Não nos referimos aqui ao consumo produtivo fabril, quando matérias primas, energia etrabalho são consumidos na produção de mercadorias.

41 Para uma maior clareza na exposição, iremos agora abstrair da noção de gosto enquantoconceito que articula a noção de necessidade biológica e desejo socialmente mediado. Partire-

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consumo involuntário de oxigênio, por exemplo, de carga simbólica zero; emuma esfera material e simbólica – consumo de algo de algum modo carregadode pregnância simbólica, mas cuja razão de ser pertence à ordem das necessi-dades materiais: um sanduíche Big Bob, quando a fome e não a sociabilidadepredomina no ato do consumo; simbólica e material – consumo de algo cujacorporeidade possua em si mesma um valor de uso, apesar de seu consumo serorientado predominantemente por seu caráter simbólico: caviar / luxo; estrita-mente simbólica – consumo de algo cujo valor de uso pertença exclusivamenteà ordem simbólica, mas que possua algum resíduo corpóreo: livro, cd etc.42

Em um sentido econômico, em termos estritamente capitalistas, o consumoestá relacionado à operação de compra de um determinado serviço ou produto– em todos os casos, está relacionado à apropriação e ao uso, que devematender alguma carência ou necessidade humana.43

Marcuse, partindo do reconhecimento de caráter sócio-histórico dessas ne-cessidades, propõe uma distinção entre as verdadeiras e as falsas:

“Falsas” são aquelas superimpostas ao indivíduo por inter-esses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades que per-petuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça. Sua sat-isfação pode ser assaz agradável ao indivíduo, mas a felicidadedeste não é uma condição que tem de ser mantida e protegida casosirva para coibir o desenvolvimento da aptidão (dele e de outros)para reconhecer a moléstia do todo e aproveitar as oportunidadesde cura. Então, o resultado é euforia na infelicidade. A maioriadas necessidades comuns de descansar, distrair-se, comportar-see consumir de acordo com os anúncios, amar e odiar o que osoutros amam e odeiam, pertence a essa categoria de falsas neces-sidades.44

Debord apresenta o problema em termos parecidos:

mos, assim, da necessidade para retomamos adiante o gosto, mas desta vez tendo agregado àsua significação novos elementos.

42 Essa classificação pode ser lida como um desdobramento, no plano do consumo, da dis-tinção efetuada na Introdução da presente pesquisa, entre bens materiais e simbólicos.

43 Não confundir a noção de “uso” com um utilitarismo mais rasteiro. Ao afirmarmos queo consumo supre alguma necessidade ou carência, incluímos aí a necessidade humana de queas coisas façam algum sentido, e o próprio ato do consumo é co-responsável, junto a outrosfatores, pela produção de sentido. Por exemplo, ler (“consumir”) um livro é sempre, em algumgrau, interpretá-lo, julgá-lo, fazer associações, tecer considerações etc.

44 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da sociedade industrial; o homem unidimensional, p.26.

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Sem dúvida, a pseudonecessidade imposta no consumo mod-erno não pode ser oposta a nenhuma necessidade ou desejo autên-tico, que não seja, ele próprio, modelado pela sociedade e suahistória. Mas a mercadoria abundante está lá como a ruptura abso-luta de um desenvolvimento orgânico das necessidades sociais. Asua acumulação mecânica liberta um artificial ilimitado, peranteo qual o desejo vivo fica desarmado. A potência cumulativa deum artificial independente conduz, em toda parte, à falsificaçãoda vida social.45

Se substituirmos o termo falsificação por fetichização, talvez possamosabrir um novo horizonte teórico para o debate, ou melhor, resgatar uma per-spectiva crítica extremamente vigorosa e equivocadamente tida por superada.Qual a diferença? É que a fetichização da vida social não diz respeito a umafalsificação qualquer, mas a uma forma específica, contingente e funcional defalsificação, necessária à sobrevida do sistema.

Afinal, se as pessoas só podem consumir de acordo com o dinheiro quepossuem (cuja origem, para a maioria, é o salário)46 e com seu repertóriosimbólico, e se este é por sua vez estruturado pela sua cultura (entendida aquicomo conjunto de códigos indexadores do mundo, de que as pessoas dispõeme são herdeiras e reprodutoras, resultado de sua formação e do espaço socialque ocupam), na medida em que essa cultura é em grande parte alimentada,ou retroalimentada, pelas ITCs, estas acabam determinando em grande parteo próprio consumo, na medida em que atuam reorganizando de acordo comseus próprios fins políticos e contábeis o conjunto dos demais elementos quecompõem a cultura dos sujeitos (haja a recepção ativa que houver), sujeitosestes que ocupam uma posição de classe, isto é, uma posição concreta emmeio às relações de produção – uma posição econômica, portanto, e é esta, emúltima instância, que determina a fatia que lhes cabe do capital econômico esimbólico global disponível, e, conseqüentemente, seu gosto e seu consumo.Na formulação sintética de Bourdieu: “Se tudo leva a crer na existência deuma relação direta entre rendimento e consumo, é porque o gosto é sempre oproduto de condições econômicas idênticas àquelas nas quais ele atua”. 47

45 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo, tese 68. Documento eletrônico. Acesso em:julho de 2003. http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540/

46 Eis uma definição do salário em sua essência sócio-material: “[...] o salário é apenas umaparte do produto constantemente criado pelo operário, a parte que se transforma em meios desubsistência e portanto em meios para a conservação e o aumento da capacidade de trabalhonecessário ao capital para a sua autovalorização, para o seu processo vital”. Cf. MARX, Karl.Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata, p. 135.

47 BOURDIEU, Pierre. Distinction, p. 375.

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Ora, se o vetor que norteia a produção das ITCs é a acumulação de cap-ital e a manutenção da hegemonia política de determinados setores da classedominante, é necessariamente isto que todos temos que engolir sob a forma deespetáculo.

Quanto à problemática específica das práticas de resistência “populares”,vejamos uma perspicaz ponderação de Jameson:

Toda política cultural se confronta necessariamente com umaalternância retórica entre o orgulho desmedido da afirmação daforça do grupo cultural e a diminuição estratégica dessa força,e isso por razões políticas. Pois essa política pode ressaltar [...]imagens inspiradoras de heroísmo do subalterno [...] a fim de en-corajar o público alvo; ou pode insistir na miséria do grupo [...]para tornar a situação dos oprimidos mais conhecida [...] Masessas estratégias de representação são necessárias na arte políticae não podem ser conciliadas. Talvez correspondam a diferentesmomentos históricos de luta [...]48

Ou seja, pode ser que o tratamento retórico das classes subalternas (ou daschamadas minorias) enquanto oprimidas, perca de foco sua força e sua capaci-dade de resistência, fragilizando-as em termos de auto-representação e incen-tivo à luta, mas não é absolutamente seguro afirmar que a representação do sub-alterno enquanto resistente efetivamente o incentive à luta, e, com certeza, nãofragiliza em nada a força hegemônica para além de alguns setores da retóricaacadêmica. E, ainda que seja o caso de se optar por uma entre essas duasestratégias de representação, enquanto “arte política”, o momento históricoexige que se enxergue, no mínimo com perplexidade, o esmagamento gradualde qualquer perspectiva emancipatória coletiva séria e estrategicamente efi-caz, e que a maioria das práticas coletivas resistentes em curso, ao que tudoindica, não são mais que espetaculares, ou paliativas, ou acomadatórias, oureacionárias, ou histéricas, ou ainda suicidas. Vivemos um vazio de “resistên-cias” efetivamente capazes de transformar as relações de força vigentes. E istoé muito sério – e mais urgente do que ficar buscando cabelo em ovo.

Como teria dito Napoleão, o paladar humano pode, com o tempo, acostumar-se a qualquer coisa. Ora, admirar e estudar a criatividade das minorias, dos ex-cluídos, em sua capacidade de se acostumar com “qualquer coisa”, enquantonecessidade de, adaptando-se e recriando-se, lidar com situações adversas e in-evitáveis, é um gesto bastante louvável e cientificamente fecundo. Mas trans-

48 JAMESON, Fredric. A Cultura do dinheiro; ensaios sobe a globalização, p. 21.

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formar a necessidade em virtude, e pretender esgotar neste ponto a discussão,tolerando o intolerável, é indefensável.

É nessa perspectiva que lemos um discurso como o que segue, de Michelde Certeau:

[...] diante de uma produção racionalizada, expansionista, cen-tralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipototalmente diverso, qualificada como consumo, que tem como car-acterística suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade comas ocasiões, suas ‘piratarias’, sua clandestinidade, seu murmúrioincansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase nãose faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?) maspor uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos.

Já faz muito tempo que se vem estudando em outras sociedadesas inversões discretas e no entanto fundamentais ali provocadaspelo consumo. Assim o espetacular sucesso da colonização es-panhola no seio das etnias indígenas foi alterado pelo uso que delase fazia:49 mesmo subjugados, ou até consentindo, esses indíge-nas usavam as leis, as práticas ou as representações que lhes eramimpostas pela força ou pela sedução, para outros fins que não osdos conquistadores. Faziam com elas outras coisas: subvertiam-nas a partir de dentro – não rejeitando-as ou transformando-as(isto acontecia também), mas por cem maneiras de empregá-lasa serviço de regras, costumes ou convicções estranhas à coloniza-ção da qual não podiam fugir.50

49 “[...] o espetacular sucesso da colonização espanhola no seio das etnias indígenas foi alter-ado pelo uso que dela se fazia”? Foi mesmo? Substancialmente? Onde isto ocorreu? Quando?O que centenas de milhões de indígenas humilhados, massacrados, estropiados, desencarnadosdiriam disto? A prata de Potosi não ficou em Potosi, nem as almas. A idéia de Michel deCerteau só começará a fazer algum sentido relevante se o movimento de massas capitaneadopor Evo Morales conseguir melhorar de fato a vida daquela gente.

50 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, pp. 94-5. Poucas páginas antes, tratandoda questão do “trabalho científico sobre as culturas populares”, de Certeau faz menção a uma“urgência”: “Sem voltar a insistir sobre as implicações sócio-econômicas do lugar onde se pro-duz um estudo etnológico ou histórico, nem sobre a política que, desde as origens da pesquisacontemporânea, inscreveu o conceito popular numa problemática de repressão, é necessáriolevar em conta uma urgência: caso não se fique esperando que venha uma revolução trans-formar as leis da história, como vencer hoje a hierarquização social que organiza o trabalhocientífico sobre as culturas populares e ali se repete?” (idem ibidem, p. 87) Ora, sem entrar nomérito específico da questão, a forma como é feita a menção a se ficar “esperando que venhauma revolução transformar as leis da história” sugere que a própria idéia desta revolução estejafora de questão. E, de fato, se assim é, estamos na mesma situação dos indígenas colonizados

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O problema é que se os indígenas colonizados pelos espan-hóis “não podiam fugir da colonização”, e só lhes restava inven-tar “astúcias” etc. no “consumo”, esse não é o caso das massascontemporâneas. Ou não há saída para a fissura social, para aexploração de classe? Se não houver, ok, e que o mundo ex-ploda, enquanto etnólogos, secretarias municipais de turismo, aindústria cultural e as máfias locais (tráfico, milícias, bicheirosetc.) do terceiro mundo descobrem / revelam “astúcias” popu-lares e investem em livros e espetáculos folclóricos, ou contem-porâneos, ou ainda “híbridos” para os turistas e a burguesia localdeixarem em troca alguns dólares ou reais, de modo que uma ín-fima parte dos marginalizados seja integrada na “cidadania” doconsumo econômico mediante sua participação em grupos de per-cussão ou de circo. É o espetáculo da esmola pós-moderna naforma de ciência e “inclusão social”.

Isto, é claro, não desmerece o empenho de tantos teóricos eativistas sociais sinceros, apenas delimita de modo realista a ca-pacidade desse tipo de teoria e de ação, quando desvinculada deuma perspectiva de transformação mais radical, no sentido de pro-mover efetivamente inclusão social.

Neste sentido, o gosto social solvente ou em ato (no consumo)oculta o gosto potencial recalcado socialmente pela pré-seleção debens disponibilizados no mercado, determinada pela necessidadecapitalista de assegurar a reprodução ideológica e a valorizaçãodo valor. Como bem disse Kurz, “o mandamento da sensibilidade,por parte do consumo, já é a priori desmentido pela obrigação àinsensibilidade da produção do trabalho abstrato”, 51 no que pe-sem as “astúcias” dos consumidores.

A idéia de um consumo astucioso, resistente etc. parece desconsiderar umfato muito grave e que não deveria ser desconsiderado por intelectuais efetiva-mente preocupados com as mazelas sociais, fato este que Marx já diagnosti-cava e denunciava há mais de cento e cinqüenta anos:

pelos espanhóis, cuja sina feliz é promover “inversões discretas e no entanto fundamentais”na colonização, “pelo consumo” – na realidade, estamos pior, posto que a urgência atual dizrespeito não só a projetos científicos, mas ao risco de destruição da civilização e da própriabiosfera, que só pode ser enfrentado de modo radicalmente realista a partir de uma perspectivarevolucionária.

51 KURZ, Robert. O Colapso da modernização, p. 144.

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[...] assim como a indústria especula com o refinamento dascarências, especula da mesma forma com sua crueza, mas sobrea sua crueza artificialmente gerada, cuja verdadeira fruição é, porisso, a autonarcose, esta aparente satisfação da carência, esta civ-ilização no interior da crua barbárie da carência.52

Apesar disso, diz-se que as massas socialmente marginalizadas de recep-tores, que muitas vezes vivem diante de esgotos a céu aberto e em meio aenxames de tiros, interpretam as mensagens midiáticas de maneira ativa, emesmo, eventualmente, se apropriam dos sentidos hegemônicos, atribuindo-lhes significados imprevistos, criativos etc. Perfeitamente. Mas estudar istosó importa na medida em que contribui para a compreensão da configuraçãoatual da luta de classes, compreensão esta que deve orientar a práxis no sen-tido de uma alteração desta configuração, a favor da emancipação do trabalho.Caso contrário, citando Hall, “não interessa”.

Em outras palavras: é sabido que para exercer o seu domínio, o capitalfaz concessões ao trabalho; a hegemonia, como queria Gramsci, é o resultadode uma disputa dinâmica. Não obstante, é uma disputa entre forças desiguais,e superestimar a capacidade de resistência semiótica do oprimido, por assimdizer, a despeito das boas intenções de quem o faz, não contribui para efetiva-mente fortalecer sua posição e reverter o quadro, criando uma nova hegemoniaetc. Além disso, é tal atitude que justifica uma crítica como a seguinte: “Es-tudiosos da abordagem culturalista começaram a procurar sinais de energiaoposicional na cultura popular que eles não conseguiam encontrar na atividadepolítica em sentido estrito”.53

Vejamos uma outra maneira de se pensar a mercantilização da produçãosimbólica, ainda sob um certo viés antropológico relativamente influente nosestudos de comunicação contemporâneos:

Parto da idéia de que a cultura de massa é paradoxalmente uni-versal nas sociedades integradas ao modo de produção capitalista,ou mundo globalizado, mas extremamente diversificada em formae conteúdos. Existem expressões musicais de diversas ordens, esua especificidade não se anula em função da equivalência fun-dada no valor de troca. Isto é, música na cultura de massa não sereduz ao estatuto de mercadoria; mas enquanto mercadoria, alémde ser produto de trabalho, de interações sociais específicas, é po-

52 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos, p. 144.53 GITLIN, apud SILAS DE PAULA, op. cit., p. 131.

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tencialmente um continente de significados coletivamente atribuí-dos.54

Tudo o que autora diz é verdade, mas há um problema gravíssimo nestaverdade: realmente, nas sociedades capitalistas, “a cultura de massa é [...] ex-tremamente diversificada em forma e conteúdos” e a especificidade das vari-adas expressões musicais “não se anula em função da equivalência fundada novalor de troca”, e ainda bem que é assim, mas o simples fato de alguém ter dedizer isto significa que a tendência historicamente crescente à equivalência nãosó existe mas é imperativa. Se há diversidade nos produtos da indústria cul-tural, e mesmo “potencialmente um continente de significados coletivamenteatribuídos”, isso ocorre apesar de sua lógica interna, não graças a ela; ocorreporque produtores e consumidores, afinal, são bilhões e estão vivos, pensam,sentem e, de alguma maneira, interagem. Mas suas vidas, pensamentos e senti-mentos são impossibilitados de se desenvolverem em toda a sua potência, sãocoagidos à infantilidade, são cooptados pelo conformismo mercantil: tudo épermitido, desde que venda muito ou não prejudique as vendas.

Neste sentido, a variedade e a elasticidade cultural das sociedades humanasnão formam um obstáculo, são um “prato feito” para o capital, às vezes literal-mente, conforme demonstra Barber:

A cultura mundial americana – a cultura McWorld – é menoshostil do que indiferente à democracia: seu objetivo é uma so-ciedade universal de consumo que não seria composta nem portribos nem por cidadãos, todos maus clientes potenciais, mas so-mente por essa nova raça de homens e mulheres que são os con-sumidores. [...] Tal qual a jibóia, McWorld fantasia-se um instantecom as cores das culturas que ingurgita: a pop music, enriquecidapelos ritmos latinos e pelo reggae nos bairros de Los Angeles; osBig Mac, servidos com cerveja francesa em Paris ou fabricadoscom carne Búlgara na Europa do Leste [...]55

A imagem da jibóia, que adquire por um tempo a forma daquilo que de-vora, é uma excelente ilustração da captura do gosto pelo capital.

54 VIANA, Letícia C.R. Movimentos musicais e identidades sociais no contexto da culturade massa no Brasil: uma reflexão caleidoscópica. In: TRAVANCAS, Isabel e FARIAS, Patrícia(orgs.). Antropologia e Comunicação, p. 71.

55 BARBER, Benjamin R. Cultura McWorld. In: MORAES, Dênis de (org.). Por uma outracomunicação, pp. 41-2.

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6.4 Solvência e consumo cidadão

Canclini, por outro lado, identifica consumo e cidadania: “Lembrar que nóscidadãos também somos consumidores leva a descobrir na diversificação dosgostos uma das bases estéticas que justificam a concepção democrática dacidadania.” 56 Para ele, então, o fato de a jibóia ter assumido a forma do sapoque devora demonstra o quão democrática a jibóia é. Só pode ser isto, pois,se no mundo atual consumo pressupõe mercado, associar consumo a cidadaniaimplica em associar mercado a democracia. É exatamente essa a posição doneoliberalismo. Como acusa Barber:

Os advogados da privatização propugnam que os mercadossão, em essência, democráticos. É, uma vez mais, confundir asescolhas particulares do consumidor com os direitos cívicos docidadão. A liberdade de escolha entre 27 variedades de aspirinae a liberdade de optar por um sistema de saúde universal não sãocomparáveis. Mas a pretensa autonomia dos consumidores per-mite que os mercados mantenham um discurso populista: se vocênão gosta da homogeneidade do McWorls, não culpe os seus cri-adores, mas seus consumidores.

Como se os cerca de US$ 200 bilhões despendidos nos Es-tados Unidos em publicidade fossem apenas decoração! Comose os gostos dos consumidores fossem criados a partir de nada!Como se os desejos e as necessidades sobre as quais prosperamos mercados não fossem, eles mesmos, engendrados e moldadospor estes mesmos mercado!57

Nos termos de Mészáros:

[...] as condições reais pelas quais a esmagadora maioria dasociedade é excluída, de forma estruturalmente prejulgada e legal-mente protegida, da possibilidade de controlar o processo socioe-conômico de reprodução – inclusive, naturalmente, os critériosde regulação da distribuição e do consumo – são ficcionalizadoscomo “soberania do consumidor” individual.58

56 CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos, p. 34.57 BARBER, op. cit., p.50.58 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 109.

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Em um nível mais alto de abstração, Kurz discute o consumo a partir docaráter contraditório da constituição do sujeito moderno cindido em produ-tor e consumidor, caráter este determinado por uma estrutura de divisão dotrabalho na qual os pólos da produção e do consumo, necessariamente medi-ados pela circulação, se afastam cada vez mais, tornando-se independentes emesmo opostos. Em outras palavras, o sujeito, que é necessariamente produtore consumidor, torna-se uma auto-contradição, pois enquanto produtor é levadoa posicionar-se em relação ao produto de uma forma diametralmente opostaàquela que ele assume enquanto consumidor:

Como produtor, o sujeito-mercadoria ou sujeito da troca nãoestá interessado no valor de uso de seus produtos [...] pois não seproduz para o consumo próprio, mas sim para o mercado anôn-imo, e a finalidade do processo não é a satisfação de necessi-dades concretas, mas sim a transformação do trabalho em dinheiro(salário e lucro). [...]

Como outro lado de sua existência à maneira de Dr. Jekyll eMr. Hyde, no entanto, cada produtor, em seu alter ego de consum-idor, tem também um interesse exatamente oposto, pois, no papelde consumidor, está naturalmente muito interessado naquele valorde uso material que, em princípio, nada importa para ele no papelde produtor. Isso aplica-se tanto aos indivíduos como às empresas.[...] como indivíduos que comem, bebem, moram e se vestem, oshomens têm que ser sensíveis em pontos que, no papel de produ-tores, exigem sua insensibilidade.

Encontram-se, portanto, como produtores e consumidores, numaoposição recíproca constante. Assim, o produtor de gás tóxico oumacarrão contaminado cospe enojado seu vinho de glicol (ou tentasuicidar-se com ele), o gerente que fica desesperado com peçasde reserva defeituosas ou fornecidas contrárias ao contrato, tentavender, sem escrúpulos, mercadoria de péssima qualidade comose fosse de primeira, de modo que todos estão constantementemontando armadilhas uns para os outros, nas quais, em virtude doentrelaçamento social universal, acabam por cair eles mesmos.59

Outra grave conseqüência desta divisão é o convívio perverso de um super-consumo minoritário com um subconsumo massivo:

59 KURZ, Robert. O Dilema Estrutural dos Mercados Planejados. Documento eletrônico.http://obeco.planetaclix.pt/rkurz145.htm. Acesso em: mar. 2004.

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[...] a produção e o consumo adquirem uma independência euma existência separada extremamente problemáticas, de modoque, no final, o “excesso de consumo” mais absurdamente manip-ulado e desperdiçador, encontre seu corolário macabro na maisdesumana negação das necessidades elementares de incontáveismilhões de pessoas.60

Se Barber, Kurz e Mészáros estão certos, é espantoso o que se lê já naquarta capa da tradução brasileira de Invenções do Cotidiano: “[...] a multidãosem qualidades não é obediente e passiva, mas abre seu próprio caminho nouso dos produtos impostos, numa ampla liberdade em que cada um procuraviver do melhor modo possível a ordem social e a violência das coisas.” 61

Cada um procurar “viver do melhor modo possível a ordem social e a vio-lência das coisas” equivale, aqui, a uma “ampla liberdade”! Na realidade:

[...] a escravidão da sociedade burguesa é, em aparência, amaior liberdade, por ser a independência aparentemente perfeitado indivíduo, que toma o movimento desenfreado dos elementosestranhados de sua vida [...] por sua própria liberdade, quando naverdade é, muito antes, sua servidão e sua falta de humanidadecompletas e acabadas.62

Ninguém, enfim, há de discordar que as coisas só podem ser consumi-das após terem sido produzidas; para tanto, esta produção tem que ser antesde mais nada viável; a viabilidade de uma produção depende primeiramenteda disponibilidade de recursos naturais e humanos (matérias primas, pessoas,projetos e instrumentos produzidos por pessoas a partir dos recursos naturais),mas igualmente da forma como um dado modo de produção estabelece as re-lações de produção, isto é, a forma como serão distribuídas e consumidas asforças produtivas e os próprios produtos. Em outras palavras, 1) só se podeconsumir (comida, fórmula 1 ou música dodecafônica) o que é produzido, 2)só se pode produzir se houver recursos humanos e materiais para tanto, e 3)se esta produção atender aos imperativos mais ou menos conscientes da lógicaeconômica de um modo de produção dado. 63

60 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p.105.61 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, quarta capa. Citar um trecho de uma

quarta capa pode não parecer muito rigoroso, mas se justifica aqui na medida em que a citaçãoexpressa um aspecto marcante do pensamento do autor, corretamente identificado pela editora,que decidiu destacá-lo.

62 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, p. 135.63 Cf. MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 429.

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Ocorre que, embora todos os modos de produção, até hoje, tenham sido“automáticos”, e por isso geraram diversas formas de fetichismo, é específicodo capital “abandonar [...] a dominância do valor de uso característica de sis-temas auto-suficientes”.64

As conseqüências deste “abandono” são muito graves:

O que agora conta como “necessidade” não é a necessidadehumana dos produtores, mas os imperativos da própria valoriza-ção e reprodução do capital. Os valores de uso se legitimam emrelação (e em estrita subordinação) ao último. Sendo assim, otrabalhador somente pode obter acesso a uma determinada classee quantidade de valores de uso – correspondendo ela ou não àssuas necessidades reais – enquanto o capital [...] os legitima comoviáveis e lucrativos no interior da estrutura da homogeneizaçãocorrente. Por essa via o trabalhador internaliza as necessidadese os imperativos do capital como seus próprios, como insepa-ráveis da relação de troca, e por isso aceita a imposição dos val-ores de uso capitalisticamente viáveis como se emanassem desuas próprias necessidades.65 E, pior do que isso, simultanea-mente o trabalhador também se acorrenta à sorte do sistema pro-dutivo dominante pela internalização do que ele aceita serem suaspróprias necessidades “legítimas”. De tal modo que, no devidotempo, sob as condições do “capitalismo de consumidores” inter-nalizado, o trabalhador, se ousar desafiar a ordem estabelecida,tem de fato muito mais a perder que seus “grilhões externos”.66

Mesmo no que diz respeito a sociedades pré-capitalistas, na quais a pro-dução de bens estava relacionada a razões extra-econômicas, nem por isso ésensato supor que algo jamais tenha sido produzido para além dos limites deuma dada capacidade produtiva, limitada não só pelos recursos disponíveismas também pela dinâmica cultural da sociedade em questão, ancorada nas re-lações de produção do modo de produção vigente, ou melhor, em sua estruturaeconômica. Como ensina Kosik:

A objeção apresentada pela crítica, de que a teoria materialistada História só seria válida para a época capitalista – porque nesta

64 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 109.65 Neste ponto, Mészáros propõe, em uma nota que convém reproduzir: “Comparar o mito

apologético da ‘soberania do consumidor’ com a realidade de tais transformações.”66 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 628.

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é o interesse material que predomina e a economia conquista aautonomia, enquanto ao contrário na Idade Média predominava ocatolicismo e na Antiguidade, a política – equivale a uma evidenteincompreensão da teoria de Marx. A predominância da política naAntiguidade, do catolicismo na Idade Média e da economia e dosinteresses materiais na época moderna é explicável exatamentecom base na teoria materialista, através da exegese da estruturaeconômica de cada uma das sociedades citadas.67

Enfim, é somente a partir desse conjunto de premissas que faz sentido pen-sar em consumo, tanto em geral como no caso especificamente capitalista, ou,para sermos ainda mais precisos, na “Idade Mídia” em que vivemos: só se podeconsumir o que existe e se o consumo for efetivamente “autorizado” pelos im-perativos do modo de produção vigente. Hoje, o que “autoriza” o consumoé a solvência. Já dizia Marx: “A diferença da demanda efetiva, baseada nodinheiro, e da carente de efeito, baseada na minha carência, minha paixão,meu desejo etc., é a diferença entre ser e pensar, entre a pura representaçãoexistindo em mim e a representação tal como ela é para mim enquanto objetoefetivo fora de mim.” 68

Quer dizer, só se pode consumir efetivamente os produtos existentes sese puder pagar por eles; é verdade que boa parte do consumo midiático éaparentemente gratuita. Efetivamente, isso não é verdade. Para assistir a umatelenovela “de graça” na tv aberta a pessoa deve ao menos dispor de um apar-elho de tv, de corrente elétrica e, é óbvio, de uma habitação, própria ou alugada,ou viver com alguém que disponha dessas coisas. Além disso, sabemos muitobem que é a publicidade quem financia a programação “gratuita”. E quem fi-nancia a publicidade? A mais-valia extraída dos trabalhadores das empresasanunciantes e o salário dos consumidores dos produtos anunciados.

Para consumir, portanto, há que se pagar, ainda que o pagamento não es-teja imediatamente ligado a um consumo específico, como no caso da tv aberta.Aí, o pagamento é mediado por casa, corrente elétrica, aparelho de tv, além dacompra de parte dos produtos e serviços anunciados. Seja como for, de ummodo ou de outro, chega a conta. Para pagá-la, é necessário possuir algummeio de circulação; para tanto, a maioria de nós precisa trabalhar;69 em out-

67 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, pp. 113-4.68 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos, pp. 160-1.69 Se o que assegura o consumo moderno é a solvência, se o sistema é sustentado pela trans-

formação de dinheiro em mais dinheiro através da exploração do trabalho, e se o trabalho setorna supérfluo, o salário também se torna, o que faz do consumo uma prática tendencialmenteimpossível, assim como a circulação de mercadorias e a própria realização de mais-valia, apesarda superprodutividade e de uma gigantesca demanda (insolvente).

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ras épocas, o consumo dependia de fatores referentes a hierarquias sociais deordem extra-econômica,70 mas que nem por isso “flutuavam” acima de deter-minadas relações sociais concretas, ancoradas em um dado modo de produção(embora a função monetária fosse em geral inexistente ou periférica). Ou seja,só se pode consumir o que foi produzido, e conforme os limites estabelecidospela posição que se ocupa em meio às relações de produção, sejam estes limitesde ordem diretamente econômica (solvência) ou cultural (formação, ideologiaetc.). A produção e o consumo simbólicos em escala social não fogem à regra.

Pode-se então perceber, em uma abordagem do consumo calcada na críticada economia política da comunicação, que se trata de uma questão mais con-traditória e prenhe de conseqüências desagradáveis do que parecia até então,quando a abordávamos de um viés antropológico.

Ao mesmo tempo, é mais promissora:

o estado saudável ou “disfuncional” da economia capitalistaé, ao fim e ao cabo, determinado com fundamento nesta identi-dade estrutural [...] entre trabalho e “massa consumidora”, o queconfere ao trabalho, em ambas as situações, uma posição estratég-ica objetiva no sistema como um todo, mesmo que as pessoas en-volvidas não estejam ainda conscientes das potencialidades eman-cipadoras inerentes a esta posição.71

Tendo isto em conta, nunca é demais insistir no caráter histórico de umdado modo de produção, que traz em si, na base e na superestrutura, tantotendências dominantes quanto resquícios de modos de produção passados epotencialidades de modos de produção ainda por nascer. As contradições re-sultantes da convivência conflituosa entre “universos simbólicos” do passado,do presente e do futuro (isto é, concretamente potenciais), bem como aquelasdiretamente associadas à luta de classes atual, permanecem, deste modo, si-multaneamente, limitadas e possibilitadas pelas tendências dominantes de umdado modo de produção em um dado período histórico. Só podem, portanto,ser concretamente superadas junto à superação do modo de produção que aslimita (positiva e negativamente), e não através de discursos de fumaça como“consumo cidadão”.

Iremos agora dar mais alguns passos no sentido de pensar o papel es-tratégico da comunicação nesta superação (e no seu adiamento), tratando dascomplexas relações dos seus níveis discursivo e extradiscursivo, entre si e comas subjetividades objetivamente envolvidas no processo comunicacional.

70 Ainda depende, em parte, mas só como fator secundário à solvência.71 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital. São Paulo e Campinas: Boitempo e Editora

da Unicamp, 2002, pp. 672-3.

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6.5 Representação, realidade e comunicação

Uma crítica da economia política da comunicação deve também confrontar asrepresentações coletivas mediadas pelas ITCs e a realidade extradiscursiva,tanto nos aspectos e momentos desta última aos quais se referem os discursosmidiáticos mediadores das representações coletivas, quanto naqueles aos quaisos mesmos discursos midiáticos deixam de se referir, visando reconhecer seusefeitos ideológicos e identificar os interesses concretos (quais e de quem) emjogo, bem como a correlação de forças envolvida.

Um exemplo aproximado de como isso pode ser feito na prática pode serencontrado em um trabalho de Maia e França. A proposta das autoras, quereflete uma atitude relativamente difundida hoje – com a qual, aliás, simpati-zamos –, defende que a especificidade da comunicação consiste precisamenteno fato de que, para dar conta de seu objeto, não pode prescindir de algumaarticulação entre as ciências sociais e as ciências da linguagem, as quais,tomadas isoladamente, não seriam suficientes.

Maia e França partem de uma posição epistemológica similar a nossa, asaber, que embora o conhecimento do real (discursivo e extradiscursivo) sejanecessariamente mediado pela dimensão simbólica, pelo discurso (ainda queinterior), o real não se esgota no discurso: “Existe um ‘fora do texto’ que, emnossos estudos, requer um olhar talvez mais específico e, de fato, para além dotexto. O sujeito da comunicação é o sujeito da linguagem – mas é mais; é umsujeito social, um sujeito em relação. E tal relação é mediada pelo texto, masnão se resume a ele.” 72

Para exemplificar de que modo um estudo de comunicação pode articu-lar as ciências sociais e as da linguagem, elas descrevem em linhas geraisuma pesquisa em comunicação sobre eleições recentes no Brasil, da qual par-ticiparam, destacando as diferenças no tratamento dado ao mesmo tema porcientistas políticos, por sociólogos e por pesquisadores que adotam um “viéscomunicacional”. Assim, após apresentarem a abordagem dos cientistas políti-cos, voltadas a questões como “o atual quadro partidário no Brasil, a expressãoideológica das forças em disputa”, e a dos sociólogos, que discutem “o quadrode desemprego, violência, descrença na política tradicional, o novo perfil dosmovimentos sociais” etc., as autoras questionam:

E o viés comunicacional, como e por onde se constrói? Naapreensão de como [...] essas forças e valores se fazem discurso;

72 MAIA, Rousiley C.M. e FRANÇA, Vera V. A Comunidade e a conformação de umaabordagem comunicacional dos fenômenos. In: LOPES, Maria Immacolata V. (org.): Episte-mologia da Comunicação, p. 199.

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na identificação dos interlocutores e lugares de fala; nos movi-mentos que as diferentes intervenções vieram provocando no posi-cionamento dos atores, na caracterização do papel das diferentesmídias (do uso da Internet às novas cores do PT.) 73

Essas observações possuem uma grande importância metodológica e política,na medida em que remetem à dimensão ideológica das formas específicascomo a objetividade sócio-histórica é articulada discursivamente, na formade “verdades” que orientam a ação das massas ao impregnarem o senso co-mum, em certa medida compondo e regendo as subjetividades, a ponto de seconverterem com freqüência em uma espécie de dogmatismo tácito, incon-sciente – que seria um outro modo de se definir “reificação”. É o que nosensina Hegel sobre o “dogmatismo”, que “não é outra coisa senão a opinião deque o verdadeiro consiste numa proposição que é um resultado fixo, ou ainda,que é imediatamente conhecida.” 74 Marcuse diz algo similar, ao argumen-tar que o “conceito ritualizado é tornado imune à contradição” por “poderesque moldam o respectivo universo da locução”: “Assim, o fato de a formaexistente de liberdade ser servidão e de a forma existente de igualdade serdesigualdade [...] é impedido de ser expresso pela definição fechada dessesconceitos [...].” 75 Ilyenkov, por sua vez, partindo da distinção hegeliana entreuniversal-concreto e generalidade-abstrata,76 tece uma análise crítica contun-dente do que ele denomina “pensar abstratamente”, uma forma de pensamentoque se expressa somente por meio de frases feitas e clichês:

Pensar abstratamente significava ser escravizado pela forçade frases feitas e clichês correntes, por definições unilaterais evazias; significava enxergar nas coisas reais, intuídas, somenteuma parte insignificante de seu conteúdo real, somente aquelas de-terminações suas que já estavam “amalgamadas” [jelled] na con-sciência e funcionavam aí como estereótipos pré-fabricados. Daí a“força mágica” das frases feitas e expressões correntes, que impe-

73 Idem, p. 200.74 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Parte I, p. 42.75 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da sociedade industrial; o homem unidimensional, p.

96.76 “Hegel distinguia claramente a universalidade, que dialeticamente continha em si e em

suas determinações toda a riqueza do particular e do singular, da simples generalidade abstrata[...] de todos os objetos singulares de um mesmo tipo. [...] A tarefa do pensamento não estavalimitada a registrar empiricamente atributos comuns. O conceito central da lógica de Hegel eraentão o universal-concreto [...]” Cf. ILYENKOV. Op. cit.

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dem o acesso da pessoa pensante à realidade, ao invés de serviremcomo uma forma de expressá-la.77

Trata-se agora de se retomar a velha questão filosófica da relação entrerealidade e representação no arcabouço teórico do marxismo, isto é, em baseshistóricas concretas, dedicando uma atenção especial à mediação das ITCs naprodução das subjetividades e das representações coletivas que orientam a açãodas massas.

Vimos, com Hegel, o caráter fixo e fechado do dogmatismo. Já Mar-cuse demonstrou a função politicamente conservadora do conceito ritualizado.Ilyenkov, por fim, ensinou de que modo as frases feitas “impedem o acesso dapessoa pensante à realidade”. Estamos aqui no próprio coração da dimensãopolítica da subjetividade, e da intersubjetividade, tendo em vista o forte papelda linguagem e das comunicações na subjetivação de certas representações darealidade, isto é, na sua incorporação ao “mapa cognitivo” (Jameson) das mas-sas.78 É na capacidade de efetuar essa incorporação, junto à captura do gosto,que reside a potência conservadora ou revolucionária das ITCs.

Avançando um pouco mais nessa linha de investigação, Bourdieu nos forneceuma boa explicação para o caráter claramente classista das formas de subjeti-vação possíveis, na medida em que “a relação entre realidade e representaçãoé estabelecida através das disposições que são a forma internalizada das proba-bilidades associadas a uma dada posição na divisão do trabalho.” 79 Ou seja, arealidade da posição que o sujeito ocupa em meio às relações de produção (ou àdivisão de trabalho), mediante disposições internalizadas, cuja forma possívelé delimitada por essa posição, estabelece a relação entre realidade e represen-tação que ele poderá desenvolver. Temos assim descrito o processo atravésdo qual a posição de classe objetiva, mediada por disposições subjetivas, cujocampo de possibilidades é por esta posição de classe delimitado, estabelece arelação entre realidade e representação.

Ora, na medida em que a representação que se faz da realidade orienta aação sobre essa mesma realidade, somos remetidos a uma outra relação igual-mente importante, a saber, entre objetividade, subjetividade e práxis. A investi-gação dessa relação se mostra nesse momento necessária para uma compreen-são mais acurada da primeira. Iremos, portanto, abandonar por um instante otema da representação e investigar um pouco mais esta última.

77 Idem ibidem.78 Jameson defende que a tarefa do intelectual é realizar um “mapeamento cognitivo” da

época, empregando o conceito como “um código para ‘consciência de classe’ [...] de um tiponovo”. Cf. JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo. A Lógica cultural do capitalismo tardio,p. 413.

79 BOURDIEU, Pierre. Distinction, p. 409.

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Lukács, por exemplo, destaca o papel potencialmente revolucionário do“fator subjetivo” na história, potência esta determinada pelo desenvolvimentoeconômico (objetivo) apenas na medida em que este cria as condições para asua atualização:

[...] o desenvolvimento econômico pode certamente criar situ-ações objetivamente revolucionárias, mas não produz de fato aomesmo tempo o fator subjetivo que nos fatos e na prática é deter-minante. [...] O fator subjetivo na história, portanto, é certamenteem última análise, mas apenas em última análise, o produto do de-senvolvimento econômico, enquanto as alternativas frente às quaisé posto são provocadas por este processo, e todavia agem de modorelativamente livre, já que o seu sim ou não está ligado a ele so-mente pela possibilidade. Daí a grande importância da atividadehistórica do fator subjetivo (e com ele a ideologia).80

Em outras palavras, o desenvolvimento econômico determina as condiçõesde emergência de alternativas objetivas de ação, mas a escolha de uma dasalternativas possíveis, isto é, a opção por uma delas, é sempre o resultado diretode uma decisão subjetiva. Entretanto, se aceitarmos a tese de Bourdieu sobreo caráter classista das disposições subjetivas, perceberemos que Lukács deixade considerar um fato importante: o desenvolvimento econômico determinanão só as condições de emergência de alternativas objetivas de ação, mas aspróprias disposições subjetivas de ação, embora não o ato subjetivo da escolhade uma das alternativas objetivamente disponíveis de ação. Ou seja, a própriasubjetividade é objetivamente determinada pelo desenvolvimento econômico –o que este não pode determinar, senão muito indiretamente, somente em últimainstância, na medida em que “somente” estabelece o campo de possibilidadesobjetivas de ação e de disposições subjetivas para a ação, é a opção por umaou outra alternativa objetiva de ação, o ato em sua singularidade. Este, sim, éfruto direto de uma decisão subjetiva.

Zizek, em um ensaio sobre Lukács e a “Escola de Frankfurt”, nos fornecemais alguns elementos para desenvolvermos essa questão: “O ponto realmenteimportante não é a objetividade,81 mas a ‘totalidade’, entendida como processo

80 LUKÁCS, apud LESSA, Sérgio. Lukács: direito e política. In: PINASSI, Maria Orlandae LESSA, Sérgio (orgs.) Lukács e a atualidade do marxismo, p. 113.

81 Zizek refere-se nesta passagem às condições objetivas para um ato revolucionário.

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global de ‘mediação’ entre o aspecto subjetivo e o objetivo. [...] o Ato nuncapode ser reduzido ao reflexo de condições objetivas.” 82

Ora, pode-se ir mais longe: o momento decisivo, “o Ato”, é e só podeser subjetivo, pois, falando em “hegelianês”, a objetividade enquanto exterior(tanto como ser-outro-em-si – exterior, independente da subjetividade – ou ser-outro-para-si da subjetividade – exterior mas contemplada ou compreendidapela subjetividade) é mais ou menos burra e cega, embora relativamente pre-visível (enquanto para-nós – sujeitos do discurso filosófico, ou, no caso, cientí-fico), dados alguns padrões observáveis – na natureza e na sociedade/história,que não são “entidades” independentes, mas conceitos dialetizáveis. Porém,a própria emergência, do ventre da subjetividade, de uma ação decisiva, e desua maior ou menor possibilidade de sucesso, embora a ação nunca possa serreduzida “ao reflexo de condições objetivas”, dependem de condições objeti-vas, pois não é concebível qualquer subjetividade fora do concreto, do mundo,exterior (em si) ou interiorizado (para nós) – isto é, não representado ou rep-resentado – a não ser para os espíritas, crentes etc. –, embora seja plenamenteconcebível uma objetividade (burra e cega, não teleológica mas com alto graude sistematicidade e previsibilidade, ativa e aleatoriamente impregnante) inde-pendente de qualquer subjetividade, discurso, universo simbólico.

Que tais possibilidades ou impossibilidades de concepção se dêem no níveldo simbólico, da linguagem, não altera em nada as conclusões lógicas a que sechegou, permanecendo meras tautologias: só se concebe concebendo. É claroque o fato de só se conceber concebendo não pode ser deixado de lado, pois,como ensina Bourdieu:

É este o erro do objetivismo, que se esquece de incluir nadefinição completa do objeto a representação do objeto que eleteve que destruir de modo a atingir a definição “objetiva”; que seesquece de efetuar a redução final de sua redução, indispensávelpara agarrar a verdade objetiva dos fatos sociais, objetos cujo sertambém consiste em serem percebidos.83

No que pese a correção do argumento de Bourdieu, uma crítica parecida,embora aparentemente invertida, pode ser dirigida ao relativismo e ao subje-tivismo: a realidade objetiva dos fatos sociais também consiste naquilo que sãoaquém ou além da representação. Nos termos de Kosik:

82 Cf. ZIZEK, Slavoj. De História e Consciência de Classe a Dialética do Esclarecimento,e volta. Documento eletrônico: http://www.antivalor.cjb.net/. Acesso em: jun.2006.

83 BOURDIEU, Pierre. Distinction, p. 256.

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A teoria materialista distingue um duplo contexto de fatos: ocontexto da realidade, no qual os fatos existem originária e pri-mordialmente, e o contexto da teoria, em que os fatos são, em umsegundo tempo, mediatamente ordenados, depois de terem sidoprecedentemente arrancados do contexto originário do real. Comoé possível, porém, falar do contexto real, em que os fatos exis-tem de maneira primordial e originária, se tal contexto só podeser conhecido pela mediação de fatos que foram arrancados docontexto real? O homem não pode conhecer o contexto do real anão ser arrancando os fatos do contexto, isolando-os e tornando-os relativamente independentes. Eis aqui o fundamento de todoconhecimento: a cisão do todo. Todo conhecimento é uma cisãodialética [...] entre os fatos e o contexto (totalidade), cujo centroativamente mediador é o método da investigação.84

Em outras palavras, se a representação dos fatos é parte de sua realidadeobjetiva, esta não se esgota naquela.85 O que significa que há uma totalidadeconcreta cognoscível – que só é composta pelo conhecimento na medida emque ela própria o compõe –, não um nível fenomênico (Kant) ou existente(Hegel) cognoscível (Kant e Hegel) e um numênico (Kant) ou essência (Hegel)incognoscível (somente Kant), ou ainda várias realidades, conforme a vontadee o gosto de cada freguês (Nietzsche) – e que só é acessível mediante o ato deconhecer, que sobre ela incide como um raio que a revela, não que a distorce. Épor isso que Hegel, embora não tenha chegado a conceber o conceito de práxisenquanto mediação ativa, tem razão quando se opõe à concepção que defendeque: “o absoluto esteja de um lado e o conhecer de outro lado – para si eseparado do absoluto – e mesmo assim seja algo real. Pressupõe com isso queo conhecimento, que, enquanto fora do absoluto, está também fora da verdade,seja verdadeiro”. 86

Se entendermos este “absoluto” hegeliano como sinônimo da totalidadeconcreta do ser em seu devir, a disputa teórica que se trava, a partir daí, é pelarepresentação científica conceitual “mais correta” do ser (questão ontológica)e de como elaborá-la (questão metodológica), ou simplesmente pelo que é ou

84 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 57.85 Sem mencionar o fato de que a representação ainda não é o conceito, capaz de reproduzir

o real concreto, enquanto unidade do diverso, na mente.86 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Parte I, p. 64. Trata-se de uma crítica

implícita a Kant e a qualquer teoria do conhecimento que advogue a impossibilidade de con-hecermos o real – o que, por outro lado, não é o mesmo que reduzir a totalidade do existente aoconhecimento.

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deixa de ser “científico” (questão epistemológica). Esta posição epistemológ-ica, se não garante por si só o melhor método para que se elabore tal represen-tação, ao menos limpa o terreno de discussões inúteis, ao mesmo tempo emque conserva o caráter aberto do conhecimento e evita as armadilhas de certosdogmatismos entranhados no senso comum, que, eventualmente, insinuam-setambém no discurso científico.

Enfim, podemos dizer que não se concebe só concepções, mas também ob-jetividades, referentes, coisas, fenômenos extradiscursivos ou como se queirachamar, e cumpre conceber tais existências e relações corretamente, isto é,tais quais são em si, para que as subjetividades tomem as decisões corretas,no seu vir-a-ser de em-si (existentes mas sem noção de si mesmas) a para-si(conscientes de sua própria existência), mediante o vir-a-ser do outro (obje-tividade) em-si (exterior, independente das subjetividades) ao para-si das sub-jetividades (compreendido pelas subjetividades) em sua objetividade.

Kosik formula esse ponto em termos da “dialética da atividade e da pas-sividade do conhecimento humano”:

A dialética da atividade e da passividade do conhecimento hu-mano manifesta-se sobretudo no fato de que o homem, para con-hecer as coisas em si, deve primeiro transformá-las em coisas parasi; para conhecer as coisas como são independentemente de si, temprimeiro que submetê-las à própria práxis: para poder constatarcomo são elas quando não estão em contato consigo mesmo, temprimeiro de entrar em contato com elas. O conhecimento não écontemplação. A contemplação do mundo se baseia nos resulta-dos da práxis humana. O homem só conhece a realidade na me-dida em que ele cria a realidade humana e se comporta antes detudo como ser prático.87

Ilyenkov, por sua vez, nos oferece mais alguns subsídios fundamentais parauma compreensão adequada desta importante questão epistemológica, demon-strando, de um modo bastante similar ao de Kosik, a relação que se dá entrecontemplação e atividade no processo de conhecimento:

Na contemplação imediata (intuição) os aspectos objetivos da“natureza em si” estão grudados nos aspectos e formas que foramnela impressos pela atividade transformadora do homem, e to-das as características puramente objetivas da matéria natural, alémdisso, se oferecem à contemplação através da imagem que a matéria

87 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 28.

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natural adquiriu durante e como um resultado das atividades sub-jetivas do homem social. A contemplação diz diretamente respeitonão ao objeto mas à atividade objetiva (ou seja, atividade sobre ob-jetos), transformando-os, e aos resultados desta atividade (prática)subjetiva.

Um quadro da natureza puramente objetivo é então desveladoao homem não na contemplação, mas através da atividade e naatividade do homem produzindo socialmente sua própria vida.[...] Só a prática, conseqüentemente, é capaz de resolver quaisaspectos do objeto dado à contemplação pertencem ao objeto danatureza em si, e quais deles foram nele introduzidos pela ativi-dade transformadora do homem, ou seja, pelo sujeito.88

Em outras palavras, de um ponto de vista materialista, negar a transparên-cia do real não pode significar reduzi-lo a mera representação, de um lado, ou,de outro, a uma qualquer exterioridade (ao pensamento) incognoscível, mascompreender a relação concreta entre representação e realidade, que tem napráxis sua mediação ativa e no conceito sua possibilidade de solução discur-siva.

Podemos agora retomar a questão da relação entre representação e real-idade, articulando essas considerações com uma reflexão sobre os discursosmidiáticos, aqui entendidos como os atuais mediadores hegemônicos do con-hecimento coletivo, “falso” ou “verdadeiro”, do real.

Um bom ponto de partida para este movimento é o clássico artigo “Codi-ficação / Decodificação”, onde Stuart Hall discorre sobre a relação entre o queele denomina “evento histórico bruto” e o “discurso televisivo”. Para Hall,o fato de um evento não poder ser transmitido pela tv em sua forma bruta,isto é, em sua singularidade fenomênica no tempo e no espaço, mas somenteenquanto discurso (audiovisual, no caso da tv), faz como que o evento, con-vertido em discurso, em uma “forma-mensagem”, torne-se “sujeito a toda acomplexidade das ‘regras’ formais pelas quais a linguagem significa”.89

Deste modo, um evento extradiscursivo ou extratextual só pode ser coleti-vamente conhecido ao converter-se em evento comunicativo; para tanto, devesubmeter-se às regras da linguagem. Isso demonstra a importância das ciênciasda linguagem para os estudos de comunicação. Por outro lado, a “dominân-cia” das regras da linguagem no evento comunicativo não pode anular a sin-

88 ILYENKOV. Op. cit. Sobre esse tema, ver a “Segunda Tese sobre Feuerbach”, de Marx, àqual, aliás, Ilyenkov faz menção na seqüência da presente citação.

89 Cf. HALL, Stuart. Codificação/Decodificação. In: SOVIK, Liv (org.). Da Diáspora, pp.388-9.

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gularidade extradiscursiva do evento, tampouco “as relações sociais nas quaisas regras [da linguagem] são postas em funcionamento ou as conseqüênciaspolíticas e sociais do evento terem sido significadas dessa maneira.”90 Temosentão a determinação das relações sociais nas regras da linguagem que operama conversão do evento em “evento comunicativo”, numa “forma mensagem”específica, e a determinação desta forma sob a forma de “conseqüências políti-cas e sociais”.

Assim, não obstante as regras da linguagem ou do discurso serem, em úl-tima instância, subordinadas às “relações sociais” nas quais emergem e atuam,sua relativa dominância na conversão do fato bruto em evento comunicativo –que envolve, enquanto tal, sua codificação e suas possíveis decodificações –nem por isso é desprezível. Essas regras merecem, portanto, ser melhor com-preendidas.

Para fazê-lo, acompanhemos um pouco mais o pensamento de Hall a re-speito de algumas especificidades fundamentais da “forma-mensagem”, em es-pecial em sua variante televisiva, pois esta favorece, talvez mais do que qual-quer outra, a reificação, devido ao “realismo” de sua iconicidade: “O signotelevisivo é [...] um signo icônico, na terminologia de Peirce, porque ‘possuialgumas das propriedades da coisa representada’. [...] O cão, no filme, podelatir, mas não consegue morder!” 91

O signo icônico, porém, como as demais modalidades de signos,92 só podesignificar dentro de um determinado código, ou sistema de regras, menos oumais explícitas. Por esta razão os signos icônicos também são codificados,“mesmo que aqui os códigos trabalhem de forma diferente daquela de outrossignos.” 93 Assim, no caso do signo icônico da imagem televisiva, “[...] aaparente fidelidade da representação à coisa ou ao conceito representado – é oresultado, o efeito, de uma certa articulação específica da linguagem sobre o‘real’. É o resultado de uma prática discursiva.” 94

Ora, se “não há discurso inteligível sem a operação de um código”, a“aparente fidelidade da representação à coisa” na “forma mensagem” icônicanão se deve à transparência do real ser aí reproduzida diretamente, mas às es-pecificidades empíricas do signo icônico e ao código no qual ele atua. A partirdesta concepção, Hall desenvolve uma contundente crítica ao risco de reifi-

90 Idem, ibidem.91 Idem, ibidem pp. 392-3.92 Na terminologia de Peirce, além dos signos icônicos, temos os indiciais (que são uma

marca do referente, como uma pegada) e simbólicos (criados por convenção arbitrária, como anotação musical).

93 Idem, ibidem.94 Idem, ibidem.

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cação a ser realizado pela televisão, devido à atuação do que ele denomina“códigos naturalizados”:

Certos códigos podem [...] ser tão amplamente distribuídosem uma cultura ou comunidade de linguagem específica, e seremapreendidos tão cedo, que aparentam não terem sido construídos[...] mas serem dados “naturalmente”. Nesse sentido, simples sig-nos visuais parecem ter alcançado uma “quase-universalidade”,embora permaneçam evidências de que até mesmo códigos vi-suais aparentemente “naturais” sejam específicos de uma dadacultura.95 Isto não significa que nenhum código tenha interferido,mas, antes, que os códigos foram profundamente naturalizados.A operação de códigos naturalizados revela não a transparência e“naturalidade” da linguagem, mas a profundidade, o caráter habit-ual e a quase-universalidade dos códigos em uso. Eles produzemreconhecimentos aparentemente “naturais”. Isso produz o efeito(ideológico) de encobrir as práticas de codificação presentes.96

Hall ainda propõe, no mesmo artigo, uma nova compreensão das noçõesde “denotação” e “conotação”. Recusando a idéia de um sentido literal paraa primeira, mas conservando-a enquanto sentido “fixo” (em um dado contextosócio-histórico), que parece natural, ele conclui que a disputa política que setrava no campo discursivo visa a hegemonia significante da denotação.

Zizek diz algo bastante parecido, ao afirmar que a “[...] luta pela hegemo-nia ideológica e política é sempre a luta pela apropriação dos termos que sãoespontaneamente vivenciados como apolíticos [...]”.97

Essa importância atribuída a códigos naturalizados, a sentidos denotativosfixos, que parecem naturais, e à “apropriação de termos que são espontanea-mente vivenciados como apolíticos” nos reconduz à dimensão política do gosto,da qual trataremos mais detidamente a partir de agora.

95 A imagem de uma vaca, por exemplo, pode significar um animal sagrado, a noção debucolismo ou um valor de troca, conforme seja decodificada por um hindu, por um cidadão deuma grande cidade ou por um fazendeiro.

96 Idem, ibidem. Toda esse conjunto de conceitos e argumentos desenvolvidos por Hallpoderia ser visto como o esboço de uma teoria propriamente comunicacional da reificação, queagrega à sua problemática central as contribuições conceituais e metodológicas da semiótica.Neste ponto, os estudos culturais e a crítica da economia política da comunicação se encontram,em um terreno comum aparentemente fértil.

97 ZIZEK, Slavoj, apud AIDAR PRADO, José Luiz, O Campo da comunicação e a comu-nicação entre os campos na era da globalização. In: LOPES, Maria Immacolata V. (org.):Epistemologia da Comunicação, p. 148.

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Capítulo 7

A DIMENSÃO POLÍTICA DOGOSTO

É indispensável integrar a “vivência interior” na unidade davivência exterior objetiva. (Bakhtin)1

Vimos no início deste trabalho que o gosto está envolvido nas decisões queorientam a ação, na medida de nossa autonomia ou liberdade de escolha, poisnos diz o que parece ser, ou não, desejável. Vimos também que as ITCs ex-ercem atualmente a hegemonia em sua formação, predominantemente voltadapara contribuir de algum modo com a reprodução ampliada do capital.

Iremos agora desenvolver uma análise crítica de como o gosto participade nossas decisões, de como as ITCs se ocupam de sua formação e das con-seqüências políticas disso tudo, partindo da própria gênese do gosto. Isto re-quer que articulemos o que descobrimos até agora com a seguinte reflexão dosManuscritos de Marx, a qual, embora não trate diretamente do tema gosto, nosfornece excelentes pistas para fazê-lo:

[...] a força do meu ser é em si uma disposição subjetiva,porque o sentido de um objeto para mim só possui um sentidopara um sentido correspondente e vai tão longe quanto meu sen-tido; é por isto que os sentidos do homem social são diferentes dosdo homem que não vive em sociedade; é somente através do des-dobramento objetivo da riqueza do ser humano que a riqueza dossentidos humanos subjetivos, que um ouvido musical, um olhosensível à beleza das formas, em uma palavra, os sentidos capazes

1 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem, p. 48.

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de gozos humanos tornam-se os sentidos que se manifestam comoforça do ser humano e são ou desenvolvidos ou produzidos. Poisnão se trata apenas dos cinco sentidos, mas também daqueles ditosespirituais (vontade, amor etc...), em uma palavra, os sentidos hu-manos, o caráter humano dos sentidos, que só se formam graçasà existência de um objeto, através da natureza tornada humana.A formação dos cinco sentidos é o trabalho de toda a história domundo até o dia de hoje.2

Na verdade, no que pese o alto nível de abstração da passagem acima,Marx embasou suas reflexões sobre esse assunto na mais concreta educaçãodos sentidos, que se dá na práxis histórica. Kosik, partindo de Marx, depreendedessa relação dialética entre sentidos subjetivos e objetivos os contornos deuma autêntica teoria conhecimento:

[...] os dois elementos constitutivos de cada modo humano deapropriação do mundo são o sentido subjetivo e o sentido obje-tivo. Qual a intenção, qual a visão, qual o sentido que o homemdeve desenvolver, como deve “preparar-se” para compreender edescobrir o sentido objetivo da coisa? O processo de captaçãoe descobrimento do sentido da coisa é ao mesmo tempo criação,no homem, do correspondente sentido, graças ao qual ele podecompreender o sentido da coisa. É possível, portanto, compreen-der o sentido objetivo da coisa se o homem cria para si mesmoum sentido correspondente. Estes mesmos sentidos, por meio dosquais o homem descobre a realidade e o sentido dela, coisa, sãoum produto histórico-social.3

Ora, embora o gosto não diga respeito à compreensão racional do sentidoobjetivo das coisas, ele possui uma função prática tão simples quanto decisivana relação do sujeito com o objeto: é ele quem atribui ao último, de formapronta e imediata, a qualidade de útil ou inútil, belo ou feio, agradável oudesagradável. Ou seja, o gosto é o resultado de uma ação qualquer do ob-jeto sobre os sentidos, capaz de identificar e avaliar, na forma simples maisvigorosa de um sim ou um não, se o objeto possui o sentido objetivo de serdesejável ou indesejável para os sentidos subjetivos do sujeito. Porém, pornão dizer respeito à compreensão racional – embora não seja necessariamente

2 MARX, Karl e Friedrich Engels. Sur la litérature et l’art. Textes Choisis, pp. 171-2.Trecho dos Manuscrits économiques et philosophiques, Oeuvres, t. III, pp. 120-121, Mega.

3 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 29.

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incompatível com esta – o gosto pode estar errado, no caso de o sujeito nãoter desenvolvido os sentidos adequados à correta apreensão do sentido obje-tivo do objeto. O desenvolvimento desses sentidos é fruto da experiência, oumelhor, de um conjunto de experiências singulares. A oportunidade de se terou não essas experiências, e com que freqüência, e em qual contexto etc., sãofatores socialmente condicionados.

Trata-se então de pensar o gosto a partir da materialidade histórica, istoé, em transformação, dos sentidos humanos, tendo em conta o duplo sentidoda palavra sentidos: os sentidos, por assim dizer, semióticos e os sentidosfisiológicos, em uma dialética que passa longe de todo essencialismo de ordemsemiótica ou fisiológica, bem como do racionalismo normativo dos estetas emgeral.

Por este caminho, a questão do papel do gosto e das ITCs na reproduçãomaterial e ideológica da sociedade capitalista pode ser vista sob um novo ân-gulo.

No que tange exclusivamente à reprodução material, ao menos desde Sweezye Baran4 se conhece o papel necessário das marcas para o capitalismo contem-porâneo. Bem antes, Marx já havia se dado conta de que o “principal meiode abreviar o tempo de circulação [do capital] é o progresso dos transportese comunicações”.5 Mais recentemente, novas técnicas administrativas,6 viabi-lizadas pela revolução digital, junto às as novas mídias interativas, têm favore-cido uma aceleração espetacular nas rotações do capital, agilizando os cálcu-los, os fluxos de informação e capital, poupando despesas de armazenamento eminimizando o risco da superprodução ou da obsolescência não-planejada dosprodutos,7 o que reafirma, em novos termos, o importante papel da circulaçãona reprodução ampliada do capital.8

Quanto à reprodução ideológica propriamente dita,9 em meio à qual asITCs também têm um papel decisivo, não se trata de um fenômeno restrito,

4 Cf. RUBIM, Antônio Albino Canelas. Comunicação e política, pp. 30-1.5 MARX, Karl. O Capital. Livro III, p. 79.6 Cf. ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a

negação do trabalho.7 E, como era de se esperar, aumentando o desemprego, não tempo livre para a fruição.

Sobre a noção de “obsolescência planejada”, ver MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital,pp. 634-700.

8 Cf. MARX, Karl. O Capital. Livro II.9 Condição necessária para a reprodução material – a qual, por sua vez, em última instância

a determina.

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de um lado, às idéias ou à cultura, nem, de outro, ao puro desejo lacunar10

(ambos, em certa medida, capturáveis pela mídia), mas um fenômeno que sedá precisamente na síntese da contradição dialética entre esses dois pólos, eque tomamos a liberdade de denominar gosto.

Dissemos que o gosto é a síntese da contradição dialética entre cultura e de-sejo lacunar. Por quê? Porque, por um lado, é a cultura que fornece ao sujeitoo repertório de valores positivos e negativos sobre as coisas, que antecedemsua experiência pessoal e, em grande medida, a orientam. É a cultura que de-termina, de antemão, o que é para ser gostado ou não.11 Por outro lado, é aexperiência do sujeito que irá ou não corroborar essas determinações culturais,na medida em que a ação assim orientada preencherá ou não, menos ou maissatisfatoriamente, as demandas do desejo. O gosto é e não é culturalmentedeterminado, assim como é e não é determinado pelas experiências concre-tas do sujeito. A questão posta nesses termos, mostra-se contraditória. Nãose trata, porém, de uma contradição lógica, mas de uma contradição dialéticaconstitutiva do gosto em sua concreticidade.

Sobre a noção de “contradição dialética”, cabe aqui lembrar, com Ilyenkov:“A contradição enquanto a unidade concreta de opostos mutuamente exclu-dentes é o núcleo real da dialética, sua categoria central. [...] A dialéticasempre obriga a enxergar, por detrás da relação de uma coisa com outra coisa,sua própria relação consigo mesma, sua própria relação interna.” 12

Nos termos de Hegel:

O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-seque a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecerum falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugarda flor: essas formas não só se distinguem, mas também se re-pelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, suanatureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual,longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. Éessa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo.Mas a contradição de um sistema filosófico não costuma conceber-se desse modo; além disso, a consciência que apreende essa con-tradição não sabe geralmente libertá-la – ou mantê-la livre – de

10 Para a psicanálise, o desejo humano é lacunar pois não dispõe de objetos de satisfaçãodados aprioristicamente na natureza. A natureza desses objetos seria sempre cultural, ou sim-bólica.

11 Para uma maior clareza da exposição, abstraímos aqui a importante relação entre diferençasculturais e as cisões de classe – além das de gênero, étnicas, etárias etc. Sobre essas questões,ver Gramsci (s/data), Bourdieu (2000) e Hall (2003 b).

12 ILYENKOV, op. cit.

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sua unilateralidade; nem sabe reconhecer no que aparece sob aforma de luta e contradição contra si mesmo, momentos mutua-mente necessários.13

Tratemos agora de pensar o gosto nessa chave metodológica.

7.1 A Dialética do gosto

O gosto diz respeito a decisões práticas, orienta a ação do sujeito. É ao mesmotempo o resultado da ação do objeto sobre o sujeito e a mediação entre o desejodo sujeito e sua ação sobre o objeto. O objeto pode ainda não ser uma coisa ouuma pessoa, mas uma noção, pois o vazio do desejo é preenchido não só comcoisas, mas também com noções sobre a desejabilidade ou indesejabilidade dascoisas, das idéias, das pessoas. Essas noções são tanto oferecidas de antemãoao sujeito, prontas, pela própria cultura em meio à qual ele se faz sujeito,quanto podem ser refutadas ou refeitas pelo sujeito a partir de sua experiênciasingular.

O gosto é ao mesmo tempo uma percepção e um juízo: é um sentido, nãosomente na dupla acepção do termo, como dito acima, mas em uma acepçãotripla: a acepção sensível, a acepção significante e a acepção vetorial, esta úl-tima designação entendida como sinônimo de direção ou caminho a seguir. Éum sentido que se forma mediante sucessivas situações de satisfação de de-sejos, a começar pela sucção do seio materno, e que se atualiza e reconfiguraconforme a natureza dos objetos dessas satisfações. Mas dizer que o gosto sereconfigura implica reconhecer que o desejo se reconfigura, e assim é, pois asatisfação do desejo depende do objeto. Desejo e objeto determinam-se mutu-amente. E cada reconfiguração do desejo exige novos objetos, que por sua vez,graças à mediação da saciedade, despertarão novos desejos e assim por diante.

O desejo em si, sem objeto, ao deparar-se com um possível objeto de suasatisfação, faz dele um objeto para si, transformando a si mesmo mediante ocontato com o objeto: a cisão entre desejo e insatisfação foi suturada, seu vaziofoi preenchido e o gosto do sujeito começa a ser formado, o que é o mesmo quedizer que o próprio sujeito, enquanto identidade ou individualidade, começa aser formado. Cada momento de saciedade tem um sabor próprio, e é o con-hecimento, ou seja, o saber desses sabores que deverá orientar a ação do in-divíduo, na medida de sua autonomia. O saber dos sabores é o resultado dasaciedade, da suprasunção da contradição entre o desejo insatisfeito em si e oobjeto externo de satisfação em si, e os sabores são os elementos mediadores.

13 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Parte I. Petrópolis-RJ: Vozes, 1997, p.22.

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Por outro lado, o saber dos sabores torna-se por sua vez o elemento mediador eos sabores a suprasunção da contradição entre o desejo insatisfeito e o objeto,dado que o primeiro (saber dos sabores) orienta a ação do sujeito visando osúltimos (sabores). E o objeto, por fim, atua como elemento mediador entre ainsatisfação e a satisfação. O processo, enquanto há vida, não tem fim, pois ossabores e saberes da saciedade nunca bastam de uma vez por todas – a nega-tividade da saciedade é sua finitude, e o vazio do desejo sempre retorna, masnão da mesma forma, não em sua forma primária, dado que as saciedades que asucederam a cada vez o reconfiguram, convertendo-o de puro desejo em gosto,e de gosto em novos gostos, embora alguns se repitam praticamente idênticosaté o fim. Nos termos de Marx:

Ser (sein) sensível, isto é, ser efetivo, é ser objeto do sentido,ser objeto sensível, e, portanto, ter objetos sensíveis fora de si, terobjetos de sua sensibilidade. Ser sensível é ser padecente.

O homem enquanto ser objetivo sensível é, por conseguinte,um padecedor, e, porque é um ser que sente o seu tormento, umser apaixonado. A paixão (Leidenschaft, Passion) é a força hu-mana essencial que caminha energicamente em direção ao seu ob-jeto.14

O “tormento” que faz do homem “padecedor” advém do fato de que, porser sensível, isto é, efetivo, o homem necessita de objetos externos para a sat-isfação de suas necessidades e desejos. Tomemos o exemplo da fome, a qual,como sabemos, está na base da relevância do gosto para a vida em todos osseus desdobramentos: “A fome é uma carência natural; ela necessita, por con-seguinte, de uma natureza fora de si, de um objeto fora de si, para se satisfazer,para se saciar. A fome é a carência confessada de meu corpo por um objetoexistente (seienden) fora dele [...]”. 15

Ora, se a paixão é a “força humana essencial”, que move o sujeito para osobjetos de desejo, o gosto é, por assim dizer, o senso de orientação da paixãorumo a objetos determinados. Pois o gosto, que é ao mesmo tempo saber dossabores e sabor dos saberes, é desejo lacunar (ou pulsão) convertido em de-sejo civilizado, consciente, que é o que orienta a práxis de cada um – aindaque o desejo a ser satisfeito seja de uma ordem tão distante das necessidadesprimárias como aquele tipo, por exemplo, que se encontra em gestos de sacri-fício. Mas da mesma maneira que a negatividade da saciedade é sua finitude,a negatividade dos saberes é sua incompletude. O confronto da insatisfação

14 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos, p. 128.15 Idem ibidem, p. 127.

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surgida daí com o já sabido e saboreado gera o desejo de uma nova satisfaçãoe de um novo saber dos sabores, que conduz ao enriquecimento e à variedadedo desejo e do saber, isto é, do gosto, conseqüentemente dos objetos potenciaisde prazer, que são, enquanto meramente potenciais, o momento negativo desteestágio de desenvolvimento do gosto. Aqui, ele se vê obrigado a lidar com acontradição entre os limites atuais do saber e os novos gostos, os novos desejosconscientes criados, que demandam novos objetos, e a suprasunção dessa neg-atividade remete aos limites naturais da produção consciente de velhos e novosobjetos de prazer, estando a potência de realizá-la no caráter sócio-históricodessa produção.

No dizer de Marx:

[...] nem os objetos humanos são os objetos naturais assimcomo estes se oferecem imediatamente, nem o sentido humano,tal como é imediata e objetivamente, é sensibilidade humana, ob-jetividade humana. A natureza não está, nem objetiva nem sub-jetivamente, imediatamente disponível ao ser humano de modoadequado.

E como tudo que é natural tem que começar, assim também ohomem tem como seu ato de gênese a história, que é, porém, paraele, uma [história] sabida e, por isso, enquanto ato de gênese comconsciência, é ato de gênese que se supra-sume (sich aufheben-der Entstehungsakt). A história é a verdadeira história natural dohomem.16

Temos, enfim, no gosto, a expressão de duas cisões constitutivas do sujeitohumano: a mais simples e da qual vimos falando, entre sujeito (do desejo) eobjeto; e a segunda, de uma natureza mais complexa e contraditória, que é aessência da outra: entre o sujeito e ele próprio, entre o sujeito em si e o sujeitopara si, entre o sujeito do gosto cindido, sujeito ao vazio autoritário do desejo,preenchido eventualmente por objetos estranhos que lhe são ofertados em trocade trabalho forçado, sujeito sujeito aos saberes esclerosados, de um lado, e, deoutro, o sujeito do gosto suturado, o sujeito do saber dos sabores e do sabordos saberes em permanente processo de conscientização e enriquecimento.

Vimos falando em um indivíduo, em uma identidade individual, buscandouma maior clareza na exposição. Na realidade, do que se trata todo o tempo éda constituição do gosto do sujeito social, cindido além de tudo em classes an-tagônicas, cujas identidades, em permanente construção, são fruto da história

16 Idem ibidem, p. 128.

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ao mesmo tempo em que a produzem. O gosto cindido, bem como seu poten-cial de sutura, ocupam uma dimensão política fundamental nessa produção.

Em suma, o homem é o sujeito de um desejo lacunar que se confrontacom a exterioridade do objeto de desejo, o qual se reconforma de modo cul-turalmente mediado conforme o telos humano, que ora corresponde, ora secontrapõe aos objetivos particulares das pessoas, na dialética da satisfação eda insatisfação, no caráter aberto e produtivo da história.

Tendo em conta o aspecto empírico dessa produção como realização histórico-social do gosto, como cisão constitutiva e potência de sutura do sujeito social,negada desta vez pelas contradições sociais geradas no processo, que possi-bilitam e obstaculizam a práxis emancipatória como atualização da potênciade sutura, podemos agora formular as seguintes questões: para além da na-tureza bruta, isto é, nas sociedades humanas, o que determina quais objetosestarão disponíveis, e para quem – conseqüentemente, que desejos, que gos-tos: que sensibilidades, significados e linhas de ação? Por que certos gostosse tornam comuns a certos segmentos sociais e não a outros? Por que algunsgostos atravessam praticamente todos os segmentos sociais?

Propomos que a busca da resposta para essas questões deve partir da seguintereflexão de Marcuse:

Sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser trans-formada em poderoso instrumento de dominação. O alcance daescolha aberta ao indivíduo não é o fator decisivo para a determi-nação do grau de liberdade humana, mas o que pode ser escol-hido e o que é escolhido pelo indivíduo. O critério para a livreescolha jamais pode ser absoluto, mas tampouco é inteiramenterelativo. A eleição livre dos senhores não abole os senhores ou osescravos. A livre escolha entre ampla variedade de mercadoriase serviços não significa liberdade se esses serviços e mercadoriassustém os controles sociais sobre uma vida de labuta e temor – istoé, se sustém alienação. A reprodução espontânea, pelo indivíduo,de necessidades superimpostas não estabelece autonomia; apenastestemunha a eficácia dos controles.17

Marcuse, aqui, denuncia com veemência como “a liberdade pode ser trans-formada em poderoso instrumento de dominação”. O problema da argumen-tação de Marcuse é que se limita ao diagnóstico e à denúncia – embora ambosjustos – do problema. Não pode, porém, ir além, por ter perdido de vista a luta

17 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da sociedade industrial; o homem unidimensional, p.28.

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de classes. Ao reintroduzi-la na reflexão, contudo, abrimos a possibilidade deperceber o que é que a liberdade “da escolha aberta ao indivíduo”, isto é, aliberdade dos gostos, tem a ver não só com o “controle social”, mas tambémcom a sua contestação e potencial superação.

Seguindo esta trilha, nos deparamos com a complicada questão da con-sciência de classe e de sua relação com o gosto. A hipótese que iremos in-vestigar a partir de agora é que os gostos são, a princípio, um registro da in-consciência de classe, registro que corresponde às disposições “espontâneas”das classes sociais, entendidas aqui em sentido estritamente econômico.18 Nasatuais circunstâncias, isso faz do gosto, tendencialmente, como indicado naintrodução deste trabalho, o substrato sensível da ideologia hegemônica.

Por outro lado, a compreensão, por parte das classes subalternas, dos mecan-ismos reais que determinam a sua própria condição econômica, e do caráterhistórico e revogável dessas determinações, favorece a emergência da con-sciência política dessa condição econômica, conseqüentemente a consciênciade sua posição econômica e política de classe. Esta consciência é condiçãopara a sua conversão de classe social em sentido estritamente econômico (classeem si) a classe social em sentido também político (classe para si). Tal conver-são, contudo, para ser efetivamente eficaz no sentido de contribuir para a suaemancipação, e é neste ponto que pretendemos acrescentar algo novo ao de-bate, deve resgatar os gostos do cativeiro do capital, visando fortalecer a orga-nização da classe tornada consciente de si para a ação transformadora, pois osgostos, rearticulados com a consciência de classe, podem atuar como elemen-tos integradores e motivacionais; como substrato sensível de uma ideologiacontra-hegemônica, socialista, racional e não dogmática;19 como paixão, nosentido empregado por Marx,20 já que a paixão é o gosto em alta voltagem.

18 Sobre a distinção entre a noção de classe em sentido político e em sentido econômico, veracima, pp. 107-8, referência ao 18 Brumário, onde a distinção é explicitada.

19 O gosto é aqui importante porque a consciência da exploração sem a correspondente mo-tivação à ação, sem o pathos revolucionário, conduz em última análise ao niilismo; já a dis-posição à ação sem a consciência correta, conduz à mera rebeldia, que pode descambar em umesquerdismo infantil, inconseqüente e eventualmente perigoso, na medida em que favorece odogmatismo ou a reação; na pior das hipóteses, pode conduzir ao fascismo.

20 Ver passagem dos Manuscritos que reproduzimos pouco acima: “A paixão (Leidenschaft,Passion) é a força humana essencial que caminha energicamente em direção ao seu objeto.”MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos, p. 128.

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7.2 Gosto, ideologia e inconsciência de classe

A “consciência de classe” é – ou foi – um dos tópicos mais debatidos do legadomarxiano, junto à problemática da ideologia, da “falsa consciência” etc. Numaformulação controversa mas fundamental, Marx afirma: “Não se trata do queeste ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro podeimaginar de quando em vez como sua meta. Trata-se do que o proletariado ée do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ser.” 21

Uma leitura apressada desta passagem de A Sagrada Família pode justi-ficar as velhas críticas ao caráter fatalista da “missão histórica” atribuída aoproletariado pelo marxismo, que teria sido desmentida pela história etc. Talleitura, porém, pode ser evitada, considerando-se por exemplo que aquilo queo proletariado “será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ser”ainda não pôde ser feito, ou talvez não dê certo, ou “ele” pode jamais se darconta da “obrigação” etc.

Além dessas hipóteses, outras passagens de Marx e Engels refutam a acusaçãode fatalismo, deixando menos margens a dúvidas ao apresentarem uma con-cepção da ação revolucionária do proletariado como possibilidade real, comouma tendência histórica necessária, como uma potência concreta do seu ser,não como uma determinação absoluta, garantida, irrevogável e cuja vitória es-teja assegurada de antemão.22

Tendo isto em conta, e partindo da hipótese de que a substituição do cap-italismo por formas superiores de socialização não é de todo inviável, masao mesmo tempo sabendo que uma operação de tal magnitude traz consigo aexigência da ação revolucionária de um sujeito coletivo, cuja identidade cor-responde à posição que este ocupa em meio às relações de produção e, si-multaneamente, em meio à luta de classes, a consciência de classe permanecenecessária à ação revolucionária, ainda nos dias de hoje. Por isso é importanteatualizar o debate teórico a seu respeito.

Mészáros, em um texto intitulado Consciência de classe necessária e con-sciência de classe contingente,23 inicia sua reflexão comentando precisamentea passagem acima citada de A Sagrada Família, e confrontando-a com umaoutra, de Gramsci. Para Mészáros, ambas “ilustram, melhor que qualqueroutra coisa, o dilema central da teoria marxista das classes e da consciência

21 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família, p. 49.22 Sobre a certeza da vitória proletária, vale lembrar, como mencionado acima, a passagem

dos primeiros parágrafos do Manifesto Comunista, onde é aventado o risco do “aniquilamentodas classes em confronto”.

23 Cf. MÉSZÁROS, Istvan. Filosofia, ideologia e ciência social, pp. 75-119.

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de classe.” 24 Por esta razão, é pertinente conhecermos também o texto deGramsci:

Pode-se excluir a idéia de que, por si só, as crises econômicasproduzem diretamente eventos fundamentais; elas podem apenascriar circunstâncias mais favoráveis para a propagação de certasmaneiras de pensar, de colocar e resolver questões que envolvemtodo o desenvolvimento futuro da vida e do estado. O elementodecisivo em toda a situação é a força, permanentemente organi-zada e pré-ordenada por um longo período, que pode ser utilizadaquando se julgar que a situação é favorável (e ela é favorável ape-nas até o ponto em que esta força exista e seja plena de ardorcombatente);25 portanto, a tarefa essencial é a de atentar, pacientee sistematicamente, para a formação e o desenvolvimento dessaforça, tornando-a até mesmo mais homogênea, compacta, con-sciente de si mesma. 26

Na seqüência, Mészáros esclarece que a contradição entre a idéia de Marxde que o proletariado será “forçado a realizar sua tarefa histórica”, 27 e a deGramsci, que “insiste em que a própria situação histórica é favorável somentena medida em que o proletariado já tiver conseguido desenvolver uma forçaorganizada completamente consciente de si mesma”, é só aparente. 28 PorqueMarx e Gramsci estão tratando de coisas diferentes: o primeiro refere-se ao sersocial do proletariado, isto é, aos “determinantes complexos de uma ontologiasocial”, não a “crises econômicas’ – termos da polêmica de Gramsci contra o‘economicismo vulgar’.” 29 Ou seja, não são posições antagônicas, mas com-plementares, pois as crises econômicas são apenas um entre outros fatores quepodem favorecer a ação revolucionária das massas, embora não um dos menosimportantes. Para Gramsci, porém, ainda mais importante é a pré-existência,em relação às crises econômicas, de “uma força organizada completamenteconsciente de si mesma”, condição para que essas crises se tornem, efetiva-mente, um elemento desencadeador da ação revolucionária. Esta, por sua vez,

24 Idem ibidem, p. 75.25 O que é o mesmo que dizer plena de paixão, de gosto em alta voltagem.26 GRAMSCI, Antonio. The Modern Prince and other writing, apud MÉSZÁROS, ibidem,

p.76.27 MÉSZÁROS, Istvan. Filosofia, ideologia e ciência social. Ensaios de negação e afir-

mação. São Paulo: Editora Ensaio, p. 76.28 Idem ibidem.29 Idem ibidem.

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também faz parte do ser social do proletariado enquanto potência, cuja at-ualização depende em grande parte não só de crises econômicas em termosgenéricos, mas mais especificamente do desenvolvimento das forças produti-vas entrar em contradição com as relações de produção e da emergência daconsciência de classe.

A questão ainda não se encerra aí. Afinal, como se dá esta “emergên-cia” concretamente? A resposta para isso deve partir da constatação de que “aconsciência de classe, de acordo com Marx, é inseparável do reconhecimento– sob forma de consciência ‘verdadeira’ ou ‘falsa’ – do interesse de classe,baseado na posição social objetiva das diferentes classes na estrutura vigenteda sociedade.” 30 Mas o que há de efetivamente decisivo na relação entre“posição social objetiva” e consciência de classe “verdadeira” ou “falsa”? O“conceito de subordinação estrutural necessária do trabalho ao capital na so-ciedade de mercadorias. [...] O interesse de classe do proletariado é definidoem termos de mudança dessa subordinação estrutural.” 31

Dispomos então de um fundamento teórico sólido para o desenvolvimentode nossa investigação em seu estado atual. Porém, dada a vastidão de recur-sos à disposição das forças que se opõem a essa emergência, permanece oproblema de como a consciência “falsa” pode ser superada pela “verdadeira”,ou como a consciência contingente, imediata, pode elevar-se à consciêncianecessária, que parte da posição econômica de classe do proletariado mas émediada pelo conhecimento acerca da subordinação estrutural do trabalho aocapital e do interesse (ainda predominantemente inconsciente) do trabalho desuprasumir essa subordinação estrutural. Marx denominou esta “contradiçãoentre a contingência sociológica da classe [...] em um momento determinado[...] e de seu ser como constituinte do antagonismo estrutural do capitalismo[...] de contradição entre o ser e a existência do trabalho”,32 considerando que“o fator crucial na resolução dessa contradição é [...] o desenvolvimento deuma consciência de classe adequada ao ser social do trabalho.” 33

Temos, então, que a consciência de classe necessária não brota espontanea-mente do solo econômico, ao mesmo tempo em que certas condições econômi-cas são necessárias para o seu florescimento. Contudo, diante da hipótese deessas condições já terem sido atingidas, o desafio presente é descobrir (ou in-ventar) o que pode ser feito para estimular a emergência da consciência declasse necessária, articulada com um pathos que lhe corresponda, em uma es-

30 Idem ibidem, pp. 88-9.31 Idem ibidem, p. 92.32 Idem ibidem, p. 95.33 Idem ibidem, p. 95.

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cala que torne a perspectiva revolucionária efetivamente viável em um hori-zonte de tempo calculável em algumas décadas. 34

Enfrentar este desafio requer, metodologicamente, o exame atento de umdeterminado grupo de conceitos, que nos permita pensar adequadamente aquestão, bem como uma revisão dos esforços anteriores empreendidos no mesmosentido, ao menos daqueles mais relevantes, de modo a podermos identificarsua eventual atualidade. O exame pode começar pela controversa noção de“falsa consciência”, sinônimo, às vezes, de consciência de classe contingente,outras simplesmente de ideologia, um dos conceitos mais polissêmicos dasciências sociais.

O termo ideologia foi cunhado na passagem do século XVIII para o XIX,por Cabnis e Destutt de Tracy, para denominar seu projeto de uma teoria dasidéias.35 Algumas décadas depois, adquiriu, com Marx e Engels, um novosentido, claramente negativo. Ideologia, então, passou a designar especifi-camente as idéias que, de um modo ou de outro, legitimam a dominação declasse, estejam essas idéias situadas no discurso religioso, filosófico, jurídicoou econômico. A ideologia, porém, não deve ser confundida com a superestru-tura, pois esta última envolve também a ciência e as artes, as quais, para Marxe Engels, não eram ideologias.

Um sentido mais genérico do termo ideologia, popularizado por Engels, éexpresso na noção de “falsa consciência”.36 Aqui, é importante fazer algunsesclarecimentos. Em primeiro lugar, falsa consciência não é necessariamenteo mesmo que consciência contingente, dado que esta última pode, em um de-terminado momento, corresponder à consciência necessária. Assim, a falsaconsciência é a consciência contingente somente quando esta não correspondeà consciência necessária. Em segundo lugar, a noção de falsa consciênciapressupõe, de fato, uma consciência verdadeira, mas esta não está na ciên-cia, em termos genéricos, como pensa o positivismo, mas especificamente nacompreensão da subordinação estrutural do trabalho ao capital. Assim, falsa

34 Dizemos “em algumas décadas” porque “não temos um cronograma tão folgado para anecessária transformação da potencialidade em realidade. Isto deve acontecer com a agravantede uma enorme urgência.” Cf. MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 267.

35 Cf. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado, p. 81: “Sabe-se que aexpressão: ideologia, foi forjada por Cabnis, Destutt de Tracy e seus amigos, e que designavapor objeto a teoria (genérica) das idéias. Quando, 50 anos mais tarde, Marx retoma o termo,ele lhe confere, desde as suas Obras da Juventude, um sentido totalmente distinto. A ideologiaé, aí, um sistema de idéias, de representações que domina o espírito de um homem ou de umgrupo social.” Ver também HALL, Stuart. O interior da ciência; ideologia e a “sociologia doconhecimento”. In: Da Ideologia, e LÖWY, Michael. Ideologias e ciências sociais.

36 Ver LARRAIN, Jorge. Stuart Hall and the marxist concept of ideology. In: Stuart Hall:Dialogues in Cultural Studies.

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consciência não é sinônimo de uma ilusão qualquer, mas de uma forma de-terminada de ilusão, necessária a perpetuação do sistema e por ele mesmopossibilitada. Em uma observação no livro 3 do Capital, a respeito do seumétodo, Marx nos ajuda a entender melhor essa questão: “[...] as configu-rações do capital desenvolvidas neste livro abeiram-se gradualmente da formaem que aparecem na superfície da sociedade, na interação dos diversos capi-tais, na concorrência e ainda na consciência normal37 dos próprios agentes daprodução.” 38

Mais adiante, na mesma obra,ele aprofunda este ponto:

A relação entre uma porção de mais-valia, de renda monetária[...] com a terra é em si absurda e irracional; pois as magnitudesque aqui são aferidas, uma em relação à outra, são incomensu-ráveis – por um lado, um valor de uso particular, um pedaço deterra de tantos metros quadrados, e, por outro, o valor, especial-mente a mais-valia. Isso na verdade expressa apenas que, sobdeterminadas condições, a propriedade de tantos metros quadra-dos de terra permite ao proprietário conseguir à força uma certaquantidade de trabalho não-remunerado, que o capital conseguiuchafurdando nestes metros quadrados, como um porco em batatas.Mas, ao que parece, a expressão é a mesma se alguém desejassefalar da relação entre uma nota de cinco libras e o diâmetro daTerra.

Entretanto, a reconciliação das formas irracionais sob as quaiscertas relações econômicas aparecem e se afirmam na prática nãodiz respeito aos agentes ativos destas relações em sua vida cotidi-ana. E, como estão acostumados a se movimentar em meio a taisrelações, não acham nada estranho ali. Uma absoluta contradiçãonão lhes parece nem um pouco misteriosa. Sentem-se tão à von-tade quanto um peixe dentro dt’água, entre manifestações que es-tão separadas de suas conexões internas e são absurdas quandoisoladas. O que Hegel diz em relação a certas fórmulas matemáti-cas se aplica aqui: o que parece irracional ao senso comum éracional, e o que lhe parece racional é irracional.39

Isto ocorre porque, com o advento do capitalismo, radicaliza-se o processomediante o qual a consciência normal, imediata, contingente dos sujeitos ob-

37 Ou “contingente”.38 MARX, Karl. O Capital. Livro III, p. 30. O grifo (itálico) é meu.39 MARX, O Capital, livro 3, apud MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 478.

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jetificados passa a constituir-se em função da posição que ocupam enquantoforças produtivas (ou improdutivas) no circuito de produção e troca de mer-cadorias, ou seja, a partir de sua posição de classe.40 Para o marxismo, estaconsciência é consciência necessária quando compreende o caráter fetichistado processo e orienta a ação dos sujeitos objetificados no sentido de sua su-peração; é “falsa consciência” quando se rende à realidade “invertida”, quandonão compreende este caráter e não se empenha em superá-lo na prática. Con-tudo, essa inversão não é uma espécie de “falha” fortuita do pensamento, masuma forma coerente de pensamento derivada de uma realidade invertida: “Ainversão não está no pensamento acerca dos ‘objetos’ (mercadorias), mas nospróprios ‘objetos’ (mercadorias), de modo que as representações ideológicassão reflexos corretos de uma realidade por assim dizer ‘falsa’, e não espel-hamentos falsos ou invertidos da realidade.” 41

Nessa mesma linha de raciocínio, Mészáros pensa a “falsa consciência”como um momento subordinado da ideologia em um sentido mais amplo,42

enquanto consciência prática (de classe) necessária em uma sociedade divididaem classes antagônicas:

O reconhecimento das necessárias limitações da ideologia –originadas do papel que ela foi instada a desempenhar na preser-vação de sociedades profundamente divididas – significava quea questão da emancipação humana radical não poderia ser vis-lumbrada sem se considerar também a supressão final das formasdistorcidas de consciência social.43

Além disso, e isto é muito importante, “[...] a ideologia não é ilusão nemsuperstição religiosa de indivíduos mal-orientados, mas uma forma específicade consciência social, materialistamente ancorada e sustentada.” 44 É por issoque:

[...] se as causas identificáveis de mistificação ideológica fos-sem primariamente ideológicas, elas poderiam ser contrapostas e

40 Não que as consciências dos sujeitos sejam redutíveis a sua posição de classe. O quese quer dizer é que esta posição é o fator em última instância determinante do complexo demediações que formam as consciências.

41 MAAR, Wolfgang Leo, A Reificação como realidade social. Práxis, trabalho e críticaimanente em hcc, in: ANTUNES, Ricardo e DOMINGUES LEÃO RÊGO, Walquíria. Lukács.Um Galileu no século XX, p. 45.

42 Cf. MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 67.43 Idem, p. 469.44 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 65.

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revertidas na esfera da própria ideologia. [...] o impacto maciçoda ideologia dominante na vida social como um todo só pode serapreendido em termos da profunda afinidade estrutural existenteentre as mistificações e inversões práticas, por um lado, e suasconceituações intelectuais ideológicas, por outro.45

Nesse sentido, o pensamento de Mészáros aproxima-se e complementa odo seu antigo mestre, o “velho” Lukács, de Ontologia do ser social:

[...] a correção ou falsidade [de uma ideação] não bastam parafazer de uma opinião uma ideologia. Nem uma opinião individualcorreta ou errônea, nem uma hipótese, uma teoria etc., científica,correta ou errônea são em si e por si uma ideologia: podem apenas[...] tornar-se [uma ideologia]. Somente após se tornar veículoteórico ou prático para combater os conflitos sociais, quaisquerque sejam eles, grandes ou pequenos, episódicos ou decisivos parao destino da humanidade, elas são ideologia.46

Essa compreensão do conceito, para Mészáros, é decisiva, pois “sem sereconhecer a determinação das ideologias pela época como a consciência so-cial prática das sociedades de classe, a estrutura interna permanece completa-mente ininteligível.”47

Mészáros, assim, emprega o conceito em um sentido mais neutro, na linhade Lênin, Gramsci e Lukács, diferente – mas não oposto – do sentido nega-tivo popularizado por Marx e Engels.48 Nesta acepção neutra, ideologia cor-responde àquelas idéias capazes de mobilizar amplos contingentes da popu-lação, sejam falsas ou verdadeiras, permanecendo diretamente atrelada à lutade classes. Neste registro, podemos tranqüilamente falar em uma ideologiasocialista – o que para Marx e Engels não faria sentido – e em uma ideologiaburguesa – o que para Marx e Engels seria uma redundância. Em todos os ca-sos, a ideologia não é uma mera ilusão, correspondendo sempre, ainda que deforma altamente mediada, a um determinado estágio da articulação dialéticaentre forças produtivas e relações de produção, ou, em outras palavras, da lutade classes.

45 Idem ibidem, p. 479.46 LUKÁCS, apud LESSA, Sérgio. Lukács: direito e política. In: PINASSI, Maria Orlanda e

LESSA, Sérgio (orgs.) Lukács e a atualidade do marxismo, p. 108. A esta citação de Lukácssegue o comentário de Lessa: “Não é, portanto, o conteúdo gnosiológico de uma ideação que atorna ideologia, mas sim sua função social específica: ser veículo dos conflitos sociais (...)”.

47 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 67.48 Cf. WILLIAMS, Raymond. Key words, pp. 154-5.

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Agora podemos retomar a questão da passagem da consciência de classecontingente, enquanto falsa consciência, à consciência de classe necessária.Talvez tenha sido o “jovem” Lukács, em História e Consciência de Classe,quem avançou mais nesse sentido, em seu esforço de teorizar a ideologia apartir da forma concreta como aquilo que ele denominava consciência “psi-cológica” poderia elevar-se, na prática, à consciência “atribuída”. 49

Tratando das diferenças ideológicas (na acepção neutra, não faz mal lem-brar) entre, de um lado, os operários empíricos, e de outro o proletariado en-quanto “classe universal”, Lukács diferenciou a “consciência psicológica” dosprimeiros da “consciência atribuída” da última, enxergando no partido comu-nista bolchevique a mediação entre contingência e necessidade, por ser a in-corporação atuante, a mediação ativa, o portador da verdadeira consciência declasses do proletariado, à qual as massas operárias empíricas fatalmente teriamque ascender.

A idéia do Partido como encarnação da consciência de classe “atribuída”do proletariado, contudo, se pode ter feito algum sentido conjuntural, em ter-mos teóricos e práticos, por ocasião da revolução de Outubro e até meados dadécada de 20, revelou-se a longo prazo irrealista e mesmo trágica, dado queo Partido, enquanto mediação singular entre o particular– o proletariado em-pírico – e o universal – o proletariado enquanto “classe universal”, ao invésde superar dialeticamente sua contradição, efetuando sua conciliação em umnível superior – a extinção de todas as classes e a superação da sociedade declasses –, por assim dizer estagnou a contradição em um estágio a longo prazoinsustentável, mediante a subordinação do particular e do universal concretosao “universal abstrato” encarnado na hipostasia do singular. Em termos menosabstratos, o Partido converteu-se, de unidade organizacional revolucionária,em unidade gerencial de extração de trabalho excedente sob uma forma estati-zada, ainda que em nome de uma quimérica “acumulação primitiva socialista”.Como bem questionou Kurz (1993), acumulação de quê? De capital! Acu-mulação de recursos ou de riquezas a serem distribuídos, ainda que de modomenos desigual do que nos estados capitalistas, como legitimação de uma “re-

49 As noções de consciência de classe psicológica e atribuída, em Lukács, correspondem,respectivamente, às noções de consciência contingente e necessária, em Marx. Nos termos deMészáros: “[...] a famosa distinção de Lukács entre a consciência de classe ‘atribuída’ ou ‘im-putada’ e a consciência ‘psicológica’ tem sua origem na idéia marxiana que opõe consciência declasse verdadeira ou necessária – ‘atribuída ao proletariado’ em virtude de ele ser ‘conscientede sua tarefa histórica’[...] – à contingência do ‘que este ou aquele proletário, ou mesmo todoo proletariado, no momento, considera como sua meta’.” Cf. MÉSZÁROS, Istvan. Filosofia,ideologia e ciência social, p. 86

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lação social” (Rubin, 1980) ainda calcada na extração de trabalho excedentecomo fim em si mesmo, apesar dos discursos apologéticos.

Enfim, os rumos tomados pelo estalinismo e pelos demais PCs por eleorientados desacreditaram, até segunda ordem, a elegante mas problemáticaarticulação entre método dialético e estratégia revolucionária de Lukács, emHistória e Consciência de Classe.50 A esperança de Rosa Luxemburgo deque essa consciência emergiria quase que espontaneamente das massas, nodecorrer da própria luta, mostrou-se igualmente irrealista.

Permanecemos, assim, com nosso dilema: como efetuar, na práxis, a pas-sagem da consciência de classe contingente/psicológica à consciência de classenecessária/atribuída? Não se pretende aqui resolver de uma vez por todas ascomplicadas implicações dessa problemática. Mas talvez o projeto gramscianode composição gradual de um bloco histórico não putchista, que aproxime in-telectuais e trabalhadores, visando a conquista da hegemonia ideológica nasociedade civil mais do que a conquista do estado, siga sendo a mais fértil parase pensar a questão nos dias de hoje.51 Para atualizar esse projeto, contudo, éabsolutamente necessário destacar a centralidade econômica e ideológica queas ITCs exercem na sociedade civil – e, em certa medida, no estado. O quesignifica ocupá-las, aparelhá-las, conquistá-las, socializá-las.52

Há um argumento de Bourdieu que indica um caminho aparentementepromissor para articular esse projeto com a abordagem aqui desenvolvida dogosto: “uma aderência imediata, no nível mais profundo do habitus, aos gostose desgostos, às simpatias e aversões, às fantasias e fobias é o que forja, maisdo que opiniões declaradas, a unidade inconsciente de uma classe.” 53

É a partir desta perspectiva que o gosto adquire uma dimensão políticamerecedora de atenção – a partir do momento em que é inserido na prob-lemática da (in)consciência de classe. Pois, como sabemos, o gosto não ésomente uma categoria estética e gastronômica, mas também política, namedida em que disposições, simpatias, aversões e indiferenças, ideológicasou personalistas, são politicamente decisivas, seja no jogo político liberal dademocracia representativa, seja para o projeto socialista da democracia di-

50 Não obstante, o esgotamento do papel histórico do partido comunista de inspiraçãobolchevique (“marxista-leninista”) é um tema controverso. Sobre este tema, ver ZIZEK, Slavoj.Às Portas da revolução e Repeating Lenin. Ver também MAZZEO, Antônio Carlos. Sinfo-nia Inacabada. A Política dos comunistas no Brasil.

51 Embora, ao que saibamos, Gramsci não tenha colocado a questão em termos de consciênciade classe contingente ou necessária.

52 Este ponto será retomado adiante.53 BOURDIEU, Pierre. Distinction, p. 77. Em uma obra anterior, A Reprodução, a expressão

“inconsciência de classe” é mencionada, mas só de passagem, na pág. 194. Ao que me consta,Bourdieu não teria desenvolvido essa idéia.

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reta;54 e é também uma categoria econômica, pois o gosto está diretamenteligado à questão do valor de uso dos bens materiais ou simbólicos, pelo papelque desempenha imediatamente no consumo e mediatamente na produção.

Iremos agora investigar a hipótese de que, pelas razões que fazem do gostouma categoria econômica, talvez seja no terreno da economia que a dimen-são política do gosto se mostre ainda mais decisiva que no próprio terreno dapolítica.

7.3 O Valor de uso, o gosto e a cultura

Dissemos na introdução deste trabalho que o gosto pode ser entendido comoexpressão e medida do valor de uso dos bens materiais e simbólicos, tantoconsiderando seu caráter de mercadoria quanto dele abstraindo. Sabemos tam-bém que os gostos, conseqüentemente os valores de uso, são econômica e cul-turalmente mediados. Desenvolveremos agora este ponto, partindo do seguinteensinamento de Rosdolsky sobre o pensamento econômico de Marx:

[...] para julgar se o valor de uso tem significação econômicaou não, a referência é a relação que ele estabelece com as relaçõessociais de produção. Na medida em que influi nessas relaçõesou recebe sua influência, é uma categoria econômica. Mas, foradisso, em seu caráter meramente “natural”, está fora da esfera deconsiderações da economia política.55

Ou seja, um valor de uso tem significação econômica somente na me-dida em que sua materialidade influi nas relações sociais de produção ou épor elas influenciada, seja na esfera do consumo, seja na esfera da produção– considerando-se, neste último caso, o consumo produtivo na esfera da pro-dução.56 Nem sua materialidade, tampouco sua propriedade de satisfazer ne-

54 Alguém poderia levantar aqui a objeção de que legitimamos a atuação de elementos ir-racionais na prática política, inclusive em uma perspectiva socialista. Ocorre que o gosto nãoé necessariamente irracional, mas mais propriamente arracional, conceito que Morin (1982)utiliza para referir-se à pura facticidade de certos aspectos da realidade, os quais, por não seremexatamente “racionais”, nem por isso são “irracionais”, como a dureza da madeira, a altura damontanha, a paixão humana etc. Creio que é à racionalidade não aparente deste elemento “ar-racional”, enquanto motivação necessária à ação, mesmo diante de circunstâncias adversas, queGramsci (sem data) se referia com a célebre defesa do “otimismo da vontade” a despeito do“pessimismo da razão”.

55 ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx, p. 79.56 “Cometemos” a redação redundante – “consumo produtivo na esfera da produção” – para

evitar a confusão entre a expressão “consumo produtivo” enquanto categoria econômica clás-

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cessidades humanas, tomadas em si mesmas, bastam para fazer dele uma cat-egoria econômica.

Pode-se aqui objetar que este ensinamento de Rosdolsky é tautológico,pois, em última instância, o valor de uso de qualquer coisa sempre possui al-guma influência nas relações sociais de produção, ou é por elas, em algumamedida, influenciado. Ocorre que esta influência pode ser tão mediada ou in-significante a ponto de ser tornar desprezível. Por exemplo: o valor de uso deuma manga, que eu colho para comer da única mangueira existente no sítiode um parente, encontra-se em sua propriedade de satisfazer o meu desejode comer manga. Mas isto não faz dele uma categoria econômica, pois a in-significância do episódio para as relações sociais de produção é tanta – não énula, pois, mal ou bem, a manga contribui para a minha alimentação, portantopara a reprodução da minha força de trabalho –, assim como a influência dasrelações sociais de produção no ato de eu colher a manga da árvore e comê-la –minha viagem ao sítio durante as férias pressupõe a própria noção de trabalhoe férias, a existência de estradas e meios de transporte etc. –, que podemosdesprezá-la. O mesmo não acontece se me refiro a um sítio que tenha na pro-dução de mangas para o comércio uma de suas atividades, ao qual me dirijocom o intuito de comprá-las para revendê-las, ou se pensarmos no valor de usode um alimento substancialmente necessário à saúde e disponível em quanti-dade significativa para influir na reprodução da força de trabalho de quem odevora. Seu valor de uso, nesses dois casos, é uma categoria econômica, sendoque no último assim permanece, ainda que fora do âmbito de uma economiacapitalista.

Diante dessas considerações, para compreendermos melhor a dimensãoeconômica do valor de uso sem nos limitarmos aos seus aspectos mais óbvios,seria útil redimensionar a própria noção de “uso” ou “utilidade”, para além doutilitarismo vulgar, parta este de um essencialismo fisiológico rasteiro, partada concepção do ser humano como um eterno calculista obsessivo, que sópensa em otimizar recursos e desempenhos, ao modo capitalista.

sica, referente ao consumo de matérias primas, ao desgaste da maquinaria etc. no processo pro-dutivo, e a noção derivada de “consumo produtivo”, noção econômica de origem mais recentee presente em estudos de marketing e comunicação, que se referem à interação, ao feedbackentre consumidor e produtor viabilizado pelas novas tecnologias de comunicação interativas,as quais possibilitam que o próprio ato do consumo em parte oriente a quantidade (escala) e aqualidade (tipo) da produção, ou seja, que “a oferta” “conheça”, mais rápido e mais “de perto”,“a demanda”, minimizando o risco de superprodução, suprimindo ou diminuindo custos de es-tocagem, superando em certo grau o modelo fordista de produção massificada, mas, acima detudo, como visto acima, favorecendo a aceleração dos ciclos e rotações do capital.

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Refutando esta noção, e ao mesmo tempo conservando a atribuição de mo-mento predominante ao “modo de produção”, Lukács nos recorda uma instru-tiva reflexão de Marx sobre as hordas mongólicas, o roubo e a produção:

[...] quando Marx [...] atribui o papel de momento predomi-nante ao modo de produção, isso não deve ser entendido no sen-tido de um praticismo ou utilitarismo econômicos. O modo deagir determinado pela produção pode ter inclusive um caráter de-strutivo, como Marx indica, dando como exemplo as devastaçõesdas hordas mongólicas na Rússia. Mas até mesmo um tal modo deagir resulta das relações de produção, da economia pastoril, cujacondição fundamental era constituída pela existência de grandesextensões desabitadas. Logo após, Marx se refere à rapina comomodo de vida de determinados povos primitivos. Todavia, não seesquece de observar: “Mas, para poder saquear, é necessário queexista algo que saquear, isto é, produção.”

É evidente que a produção, enquanto momento predominante,é aqui entendida no sentido mais lato, no sentido ontológico, comoprodução e reprodução da vida humana, que até mesmo em seusestágios extremamente primitivos (a economia pastoril dos mongóis)vai muito além da mera conservação (biológica), não podendoportanto deixar de ter um acentuado caráter econômico-social.[...] o que está em jogo aqui são os homens, cujas capacidades,hábitos etc., tornam possíveis determinados modos de produção;essas capacidades, porém, são por seu turno geradas sobre a basede modos de produção concretos. Essa constatação nos envia àteoria geral de Marx, segundo a qual o desenvolvimento essencialdo homem é determinado pela maneira como ele produz. Mesmoo modo de produção mais bárbaro ou mais alienado plasma oshomens de determinado modo, um modo que desempenha nasinter-relações entre grupos humanos – ainda que essas possamaparecer imediatamente como “extra-econômicas” – o papel de-cisivo em última instância.57

Nos termos de Mészáros:

A advertência dialética sobre a natureza das determinaçõeseconômicas, que prevalecem “somente em última análise”, tem

57 LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os Princípios ontológicos fundamentais deMarx, pp. 72-3.

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como objetivo enfatizar que, ao mesmo tempo em que o conceitodas “condições materiais de vida” ocupa, estrutural e genetica-mente, uma posição essencial no sistema marxiano – isto é, tantoem relação à gênese histórica das formas mais complexas de in-tercâmbio humano, como diante do fato de que as condições ma-teriais constituam a pré-condição de vida humana estruturalmentenecessária em todas as formas concebíveis de sociedade –, tal con-ceito não é, de forma alguma, capaz, por si só, de explicar as com-plexidades do próprio desenvolvimento social.58

Portanto, ainda que concordando, por exemplo, com a crítica de fundo daantropologia estrutural ao funcionalismo e ao marxismo vulgar – a saber, quea ordem simbólica não pode ser reduzida a um mero reflexo automático de im-pulsos biológicos inatos ou de um utilitarismo econômico rasteiro –, nenhumantropólogo sério há de negar que as diversas ordens simbólicas estudadas poreles mesmos ou por seus pares possui também algum sentido prático, útil, queassegure a “produção e a reprodução da vida social” (Marx), ainda que isto nãose dê de modo imediatamente biológico ou dentro dos parâmetros de utilitáriosestreitos.

A este propósito, Marshall Sahlins, que ocupa boa parte de seu excelentelivro “Cultura e Razão Prática” tentando demonstrar que, nas sociedades hu-manas, a cultura não ocupa um papel subordinado ao que ele chama de “razãoprática”, tem certa hora que admitir, em outros termos, que “a natureza é sem-pre suprema”:

Mesmo em condições materiais muito semelhantes, as ordense finalidades culturais podem ser muito diferentes. Porque ascondições materiais, se indispensáveis, são potencialmente “ob-jetivas” e “necessárias” de muitas maneiras diferentes, de acordocom a seleção cultural pelas quais elas se tornam “forças” efetivas.Claro que, em um certo sentido, a natureza é sempre suprema.Nenhuma sociedade pode viver de milagres, enganando-se comilusões. Nenhuma sociedade pode deixar de prover meios paraa continuação biológica da população ao determiná-la cultural-mente – não pode negligenciar a obtenção de abrigo na construçãode casas, ou de alimentação ao distinguir comestíveis de não-comestíveis.59

58 MÉSZÁROS, Istvan. Filosofia, ideologia e ciência social, p. 78.59 SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática, p. 168.

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O que Sahlins parece não ter compreendido, porém, é que a base econômicade um dado modo de produção, sua infra-estrutura, não se limita às suas“condições materiais”, que são apenas uma parte sua, mas às formas comoas pessoas se organizam e atuam sobre essas condições. É dessas formas práti-cas que derivam as superestruturas, a cultura, que a partir de então sobre elasatua, contribuindo para a sua manutenção ou transformação e, conseqüente-mente, para a sua própria manutenção ou transformação, e assim por diante.É, aliás, ninguém menos que o próprio Lévi-Strauss quem afirma categorica-mente; “[...] a análise dos mitos de uma sociedade, ainda que formal, atesta oprimado das infra-estruturas.” 60

Em outras palavras, a noção de determinação em última instância da infra-estrutura econômica sobre a superestrutura é outra forma de designar o fato deo inevitável metabolismo do homem com a natureza61 ser a condição necessáriapara tudo o que se pensa, crê, concebe etc., enquanto a recíproca não é ver-dadeira, ou seja, embora, para que esse metabolismo (que é uma categoria uni-versal) se dê, seja necessário algum tipo de pensamento, crença, concepção,nenhum pensamento, crença ou concepção singulares tem o direito de reivin-dicar o estatuto de única condição necessária para que o metabolismo se dê.Este, enquanto universal, é necessário; aqueles, enquanto singulares, são con-tingentes. Por outro lado, para cada modo de produção particular, há partic-ularidades infra-estruturais contingentes igualmente determinadas pelo princí-pio universal de que pensamentos, crenças, concepções, ou seja, elementossuperestruturais, enquanto universais, são condições necessárias para que ometabolismo se dê em alguma forma singular. Porém, ainda assim, a universal-idade do conceito e da facticidade do metabolismo do homem com a naturezacomo condição absolutamente necessária da vida faz de ambos universais (emnível epistemológico, quanto ao conceito, e ontológico, quanto à facticidade)em última instância determinantes de quaisquer outros, como pensamentos,crenças, concepções etc., que só podem então existir no plural, na forma demediações contingentes, enquanto singulares (únicas no tempo e no espaço)ou particulares (típicas, singulares conceitualmente), mas jamais como uma

60 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural Dois, pp. 180-1, nota 41.61 Em meio ao qual o trabalho é a categoria principal. Nos termos de Ilyenkov (op. cit.):

“A concepção materialista a essência do homem enxerga (em total acordo com o dados daantropologia, etnologia e da arqueologia) a forma universal da vida humana no trabalho, natransformação direta da natureza (tanto a exterior quanto a sua própria) que o homem socialrealiza com o auxílio de ferramentas feitas por ele mesmo. É por isso que Marx sentida tantasimpatia pela famosa definição de Benjamin Franklin (citado em Life of Johnson, de Boswell)sobre o homem como um animal fazedor-de-ferramentas: um animal fazedor-de-ferramentas esó então um animal que também pensa, fala, compõe música, obedece a normas morais e assimpor diante.”

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particularidade universal na forma de O pensamento, A crença, A concepção,etc., a não ser no terreno lamacento da teologia, enquanto podemos sem medode incorrer em desvios metafísicos falar nO metabolismo do homem com anatureza, que é um modo poético de se dizer História, com agá maiúsculo, queenvolve a primeira natureza – biológica – e a segunda natureza – social. É umacategoria social cuja universalidade não se deixa englobar por nenhuma outracategoria social. É, portanto, o mais alto nível de totalização social a que sepode chegar, em meio ao qual podem ocorrer as mediações que forem, massempre subordinadas a essa totalidade. Nos termos de Lukács:

Quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinadacategoria com relação a outra, entendemos simplesmente o seguinte:a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é onto-logicamente impossível. É algo semelhante à tese central de todomaterialismo, segundo a qual o ser tem prioridade ontológica emrelação à consciência. Do ponto de vista ontológico, isso significasimplesmente que pode existir o ser sem a consciência, enquantotoda consciência deve ter como pressuposto, como fundamento,algo que é. Mas disso não deriva nenhuma hierarquia de valorentre ser e consciência [...] O mesmo vale, no plano ontológico,para a prioridade da produção e da reprodução do ser humano emrelação a outras funções. Quando Engels, no discurso pronunci-ado junto à tumba de Marx, fala do “fato elementar [...] de que oshomens devem primeiro de tudo comer, beber, ter um teto e vestir-se, antes de ocupar-se de política, de ciência, de arte, de religiãoetc.”, está falando precisamente de uma relação de prioridade on-tológica. E o próprio Marx o afirma claramente, no prefácio àContribuição à Crítica da Economia Política. Onde é sobretudoimportante o fato de que ele considere “o conjunto das relações deprodução” como a “base real” a partir da qual se explicita o con-junto das formas de consciência; e como essas, por seu turno, sãocondicionadas pelo processo social, político e espiritual da vida.62

62 LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os Princípios ontológicos fundamentais deMarx, p. 40-1. Pouco antes, na mesma obra (pp. 14-5), Lukács dizia , sobre os ManuscritosEconômico Filosóficos, que “sua originalidade inovadora reside, não em último lugar, no fatode que, pela primeira vez na história da filosofia, as categorias econômicas aparecem como ascategorias da produção e da reprodução da vida humana, tornando assim possível uma descriçãoontológica do ser social sobre bases materialistas. Mas o fato de que a economia seja o centroda ontologia marxiana não significa, absolutamente, que sua imagem do mundo seja fundadasobre o ‘economicismo’. (Isso surge apenas em seus epígonos, que perderam toda noção do

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Ou, em uma outra formulação bastante similar:

Para o materialismo, a prioridade do ser é, antes de mais nada,a constatação de um fato: há um ser sem consciência, mas nãohá consciência sem ser. Disto, porém, não se segue uma sub-ordinação hierárquica da consciência ao ser. Pelo contrário, so-mente esta prioridade e o seu reconhecimento concreto, teórico eprático, por parte da consciência, cria a possibilidade de dominarrealmente o ser com a consciência. O simples fato do trabalhoilustra esta situação com meridiana evidência.63

Ou seja, pense-se (ou creia-se ou conceba-se) o que se pensar, se nadafor feito, ou melhor, se certas atividades práticas absolutamente necessáriase universais – alimentação, proteção contra as intempéries, cuidados com asaúde etc. – não forem realizadas de alguma forma eficaz, em pouco temponão haverá mais pensamentos, crenças, concepções. Por outro lado, não é ver-dadeira a recíproca “faça-se o que se fizer, se certos pensamentos (ou crençasetc.) absolutamente necessários não forem pensados de forma eficaz, em poucotempo não haverá mais atividades práticas”, a não ser na medida em queesses pensamentos sejam necessários à eficácia dessas práticas, ou seja, pen-samentos só adquirem o estatuto de necessários e não contingentes quandonecessários a certas práticas necessárias, isto é, enquanto contingentes a práti-cas necessárias: quanto. Portanto, mesmo pensamentos necessários são contin-gentes, ou seja, determinados por uma necessidade prática que os transcende.64

Toda e qualquer ordem simbólica é, assim, a seu modo, “útil”, na medidaem que organiza as referências das ações necessárias – sem as quais as açõesnão necessárias mas de algum modo desejadas, também ordenadas pela ordemsimbólica, não seriam realizáveis –, e toda determinação emanada dessa or-dem também o é, ainda que de forma não aparente, imediata ou consciente. A

método filosófico de Marx; um fato que contribuiu bastante para desorientar e comprometer omarxismo no plano filosófico).”

63 LUKÁCS, apud Oldrini. Em Busca das raízes da ontologia (marxista) de Lukács. In:PINASSE e LESSA (orgs.), Lukács e a atualidade do marxismo, p. 71.

64 É claro que tudo isso só faz algum sentido partindo do pressuposto de que a reprodução davida e da vida humana em particular, em sua universalidade, é necessária. Diante do pensamentode que não o é, ou seja, diante do niilismo, o que foi exposto acima perderia o sentido, nãofosse pelo fato de que o niilismo é uma posição teoricamente indefensável, na medida em quesó se legitima na prática, seja a do suicídio, seja a do homicídio, e não é disso que se trataaqui, pelo contrário, mas da vida, da emancipação da vida humana de seu estágio alienado,estranhado do vivente, ainda que o suicídio ou mesmo o homicídio, conforme as “astúcias darazão”, eventualmente desempenhem seu papel na trama.

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utilidade de uma dada ordem simbólica não se limita a suas funções econômi-cas diretas, de favorecer a produção e reprodução do ser humano, mas tam-bém ao seu papel na satisfação dos gostos e paixões. Combater o utilitarismomais rasteiro não deve portanto conduzir à defesa de alguma espécie de “inu-tilitarismo”. Trata-se, então, de redimensionar a própria noção de utilidade,que não pode ser restringir à biologia, ao cálculo econômico ou mesmo a umpragmatismo rasteiro. Por exemplo, a poesia é útil por causa das satisfaçõesintelectuais e afetivas que provoca.

Neste ponto, devemos refletir sobre um importante alerta metodológico deKosik, que nos lembra da centralidade das categorias práxis e trabalho paraque o primado da economia na dialética materialista não seja confundido comum economicismo qualquer. Kosik ilustra sua argumentação relacionando pre-cisamente poesia e economia. Ele nos lembra, em primeiro lugar, que “a poesianão é uma realidade de ordem inferior à economia: também ela é do mesmomodo realidade humana, embora de gênero e de formas diversos, com tarefa esignificados diferentes”.65 Na seqüência, acrescenta:

A economia não gera a poesia, nem direta nem indiretamente,nem imediata nem mediatamente: é o homem que cria a economiae a poesia como produtos da práxis humana. [...] Somente sobre abase desta determinação materialista do homem como sujeito ob-jetivo – ou seja, como ser que, dos materiais da natureza e em har-monia com as leis da natureza como pressuposto imprescindível,cria uma nova realidade, uma realidade social humana – pode-mos explicar a economia como a estrutura fundamental da obje-tivação66 humana, como a ossatura das relações humanas, comoa característica elementar da objetivação humana, como o funda-mento econômico que determina a superestrutura. O primado daeconomia não decorre de um superior grau de realidade de algunsprodutos humanos, mas do significado central da práxis e do tra-balho na criação da realidade humana.67

Nesse sentido, atrelar o problema do gosto ao valor de uso retém o que háde teoricamente fértil na noção econômica de interesse ou necessidade, mas se

65 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do concreto, pp. 121.66 Não confundir objetivação com objetificação. O primeiro conceito diz respeito ao ato de

o homem realizar sua humanidade materializando seus desejos e pensamentos subjetivos ematos, situações e coisas objetivos, a partir da transformação de situações e coisas objetivas pré-existentes, mediante a práxis e o trabalho. Já objetificação diz respeito ao processo mediante oqual o homem se converte de sujeito em objeto da práxis de outrem.

67 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do concreto, pp. 121-2.

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livra dos a priori biologistas ou utilitaristas mais rasteiros, dado que os inter-esses ou necessidades podem ser os mais diversos; são sempre culturalmentemediados, mas são também biologicamente mediados, em muitos aspectos demodo inconsciente, às vezes de modo consciente e racional. Além disso, éimportante não se perder de vista que cultura, biologia e razão não são en-tidades abstratas, mas conceitos que pretendem expressar aspectos concretosda práxis humana, cuja história não se desenrola somente no campo simbólico,mas também no mundo exterior às idéias.

Por isso, pode ser produtivo pensar o gosto enquanto categoria econômica,enquanto expressão do valor de uso dos bens materiais ou simbólicos, relacio-nando o valor de uso de um bem à sua propriedade de satisfazer o gosto, aoinvés de meramente atender a exigências biológicas ou a presumidos cálculosutilitaristas. Afinal, ao falarmos em gosto, falamos na seleção de objetos desatisfação sensível e intelectual em um sentido mais amplo, sem desconsid-erar o caráter determinante do universo simbólico ou cultural onde o processoocorre, mas ao mesmo tempo não reduzindo o processo a uma mera atual-ização de “imperativos estruturais inconscientes e invariáveis” deste universosimbólico ou cultural – quando isto é tudo o que ocorre, quando a satisfação dogosto não traz também consigo uma abertura sensível e cognitiva em relaçãoa estes imperativos, estamos no terreno do gosto enquanto substrato sensívelda ideologia, em sua acepção negativa, no sentido de falsa consciência, deilusão funcional do sistema – que é, como sabemos, um momento possível danoção marxiana de consciência contingente. A superação da falsa consciênciasó é possível mediante a superação da subsunção do trabalho ao capital, baseoperacional do fetiche do valor, encarnado no fetiche da mercadoria.

Há, entretanto, um autor que em apenas algumas poucas linhas refuta aprópria validade dos conceitos valor de uso, falsa consciência e fetiche damercadoria. Trata-se de Baudrillard, recentemente falecido. Por sua influêncianos estudos de comunicação, nos parece útil, agora, discutir alguns de seusargumentos a este respeito.

7.4 Baudrillard e o fetiche do fetiche do fetiche

Caminhando em um sentido diametralmente oposto ao que vimos trilhando,Baudrillard praticamente descarta alguns conceitos-chave da teoria social deMarx, com os seguintes argumentos:

O que significa o conceito “fetichismo da mercadoria”, senãoa idéia de uma “falsa consciência”, de uma consciência dedicada

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ao culto do valor de troca [...] o que supõe em alguma parte ofantasma ideal de uma consciência não alienada, ou de um estatutoobjetivo “verdadeiro” do objeto: seu valor de uso? 68

Ele não percebe, entretanto, que a despeito de sua intenção irônica (sug-erida pelas aspas que envolvem o termo verdadeiro), a resposta da questãoformulada já está contida em sua própria formulação: a verdade (sem aspas)de um objeto encontra-se precisamente em seu valor de uso, isto é, em sua pro-priedade de satisfazer o gosto. Se este gosto é orientado por fins utilitários ime-diatos ou por sensibilidades altamente mediadas, isso não muda nada quantoa esta verdade simples. Pois a própria contradição dialética do gosto faz comque sua objetividade, sua efetividade, sua “verdade” consista na tensão entreo caráter objetivo e o subjetivo de um valor de uso qualquer. Como vimos, asolução desta contradição reside no movimento de objetivação dessa subjetivi-dade mediante a saciedade do desejo lacunar propiciada pela ação do objetosobre o sujeito, seguida pela apropriação do objeto pelo sujeito. Esta apropri-ação pode se dar de tal modo que o objeto se desvanece ao tornar-se parte dosujeito, como no caso da alimentação, ou permanece em si tal qual era, mas setorna diferente para nós, como na diferença que há entre uma habitação vaziae uma ocupada, ou entre um livro não lido e um livro lido.

Dito deste modo, parece que o pólo subjetivo e particular da contradiçãoé o seu momento predominante. Mas isso só é verdadeiro na aparência. Poiso universo dos objetos, em sua concreticidade, bem como as formas efetivasde apropriação, são, em princípio, universais, já que são comuns a todos.69

Essa universalidade objetiva dos objetos concretos, porém, é cindida em váriasformas particulares, determinadas 1) pelas diversas disposições dos sujeitossingulares em meio à luta, mais aberta ou mais velada, entre as classes sociaise suas frações; 2) pelas conseqüentes formas de fruição que lhes são ou nãoacessíveis (incentivadas, interditadas ou desestimuladas); e 3) pela disponibil-idade de um repertório simbólico (bens, códigos e juízos de valor) específico,em um determinado estágio do desenvolvimento histórico da sociedade. En-tretanto, apesar do caráter histórico de todos esses fatores, o “estatuto objetivoverdadeiro do objeto”, além de suas propriedades físicas, permanece e só podepermanecer em seu valor de uso (onde mais buscá-lo?), potencialmente uni-

68 BAUDRILLARD, Jean. Pour Une Critique de l’Économie Politique du Signe, p. 97.Este livro de Baudrillard, aliás, é citado algumas vezes por Sahlins em defesa da supremacia dacultura sobre a “razão prática”. Nosso debate com Baudrillard se restringe às posições a nossover antimarxistas que ele defende nesse livro.

69 Diferenças derivadas das singularidades individuais (inatas ou adquiridas) têm poucarelevância, em escala social, na definição da utilidade das coisas.

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versal, efetivamente histórico e parcial nas formas específicas de atualizaçãodessa potência, mas nem por isso falso.

Quanto a essa dialética entre potência universal e efetividade particular,tomemos um exemplo empírico. Vamos admitir que seja verdadeira a idéiaamplamente difundida de que as classes cultas, modernas e contemporâneas,tendem a privilegiar experiências de prazer mais mediatas, e as classes “popu-lares” as mais imediatas. Novamente temos a impressão de que o pólo subje-tivo e particular é o dominante. Porém, essas distinções (particulares) aparente-mente subjetivas são uma reprodução, no campo da estética, de formas dedistinção classista bastante objetivas, que remetem ao universal cindido e semanifestam nas oposições raro/comum, nobre/vulgar, refinado/grosseiro etc.,identificáveis tanto no gosto artístico quanto na gastronomia, nas falas, nosgestos, na decoração, no modo de se abrir a boca quando se ri, conformeBourdieu demonstra exaustivamente em seu Distinction. A própria noção dedistinção de classe, aliás, pode ser vista sob o prisma da potência universalconcreta do homem como ser genérico, cindida em efetividades particulares,que são as classes. A concreticidade atual deste universal, ou totalidade, sedá na forma contraditória da unidade do diverso. Tal contradição, porém, nãopode permanecer estática, dada a natureza específica da relação entre essesparticulares, as classes, que é de antagonismo estrutural.

Dito isso, a verdade dos objetos permanece, sim, em seu valor de uso, masesta não é uma verdade do tipo matemático, é uma verdade histórica, determi-nada pela luta de classes. Além disso, reconhecer o fato de ser do interesse daspessoas que fazem as coisas em uma sociedade que essas coisas atendam às ne-cessidades destas pessoas, sejam elas fisiológicas ou simbólicas, do estômagoou da fantasia, esse reconhecimento não é nenhum “fantasma ideal”. Não seestá agora discutindo, quando falamos em fetiche ou alienação, se as necessi-dades humanas bio-historicamente determinadas são falsas ou verdadeiras sobum prisma universal-abstrato, somente que universalmente não são levadas emconsideração, ou o são como mera contingência para a transformação de capi-tal em mais capital. É por isso que um dos maiores desafios para a efetivaçãodo projeto socialista consiste em descobrir “como solapar o processo produ-tivo capitalista constantemente renovado pela homogeneização orientada paraa quantidade e o valor de troca e substituí-lo pelo processo qualitativo orien-tado para a necessidade e o valor de uso?”70

Baudrillard, todavia, não se limita a questionar a verdade do “valor deuso”. No mesmo lance, ele também põe em dúvida o valor de uso dos con-ceitos falsa consciência e fetichismo da mercadoria. Conforme a sua argu-

70 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 629.

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mentação, ambos seriam praticamente sinônimos – o que está rigorosamenteerrado, pois a falsa consciência é um fenômeno derivado do fetichismo da mer-cadoria. Este, por sua vez, não consiste em nenhum “culto” ao valor de troca,ao qual se oporia uma fantasmática consciência não alienada como o seu outronecessário, mas em um processo social bastante concreto, que pode ser corre-tamente apreendido por qualquer consciência empírica, desde que interessada.

Na realidade, Baudrillard parece se ressentir da ausência da semiótica nopróprio coração da teoria do valor de Marx, que é a teoria do fetichismo damercadoria (ou do valor). O problema é que a teoria do valor de Marx nãoprecisa da semiótica, pois o fato de o valor de uso estar carregado das maisvariadas significações simbólicas em nada altera que se trata de propriedadedistinta do valor de troca, e é na supremacia desta propriedade sobre aquela,característica exclusiva do modo de produção capitalista, que se dá o caráterfetichista deste modo de produção, no qual as coisas não são produzidas paraa satisfação de necessidades humanas (pelo seu valor de uso), mas por si mes-mas como etapas da transformação de trabalho em capital, convertendo-se ovalor de uso em propriedade derivada do valor econômico. Como esclareceMészáros:

Para tornar a produção de riqueza a finalidade da humanidade,foi necessário separar o valor de uso do valor de troca, sob asupremacia do último. Esta característica, na verdade, foi um dosgrandes segredos do sucesso da dinâmica do capital, já que as lim-itações das necessidades dadas não tolhiam seu desenvolvimento.O capital estava orientado para a produção e a reprodução ampli-ada do valor de troca, e portanto poderia se adiantar à demandaexistente por uma extensão significativa e agir como um estímulopoderoso para ela.71

E já que Baudrillard mencionou fantasmagorias, embora as situando nolugar errado, retomemos a passagem clássica de Marx sobre o assunto:

Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, as-sume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Paraencontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença.Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria,figuras autônomas que mantém relações entre si e com os sereshumanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, nomundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está

71 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 606.

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sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são geradoscomo mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias.Esse fetichismo do mundo das mercadorias decorre [...] do carátersocial próprio do trabalho que produz mercadorias.72

Um pouco adiante, Marx acrescenta: “Para este [os participantes da troca],a própria atividade social possui a forma de uma atividade das coisas sob cujocontrole se encontram, ao invés de as controlarem.”73

Portanto, quanto à questão “de uma ‘falsa consciência’ [...] que supõeem alguma parte o fantasma ideal de uma consciência não alienada”, não hánenhum “fantasma ideal”, nem mistério: consciência não alienada, em Marx,significa simplesmente a compreensão do processo capitalista concreto – e deseus desdobramentos superestruturais –, como um modo de produção histori-camente dado, que expropria trabalho produzindo mais valia etc., e consciên-cia alienada, falsa consciência, o desconhecimento deste processo, a crençaem sua inevitabilidade, sua naturalização, seu “direito” de determinar todas asatividades humanas, legitimado pela aparência de liberdade na superfície domercado (aparência esta, por sinal, que tanto tem deslumbrado antropólogos eteóricos da comunicação recentemente). Consciência não alienada, em Marx,não tem nada a ver com fantasmas ideais, mas com o simples reconhecimentode que, no capitalismo, o trabalhador (que, não se deve esquecer, é tambémconsumidor, e seu consumo está diretamente condicionado por sua condiçãode trabalhador, o que inclui o seu salário) não domina os meios de produção, aciência e os frutos do trabalho, mas é por eles dominado; ou seja, não é donodo seu nariz; significa que as coisas não são produzidas pelo homem para sat-isfazer suas necessidades, sejam elas fisiológicas ou espirituais, mais apenaspara multiplicar capital; significa que o trabalho, na aparência “livre”, é tra-balho forçado, e ocupa a maior parte do tempo de vida do sujeito em troca demerda. Significa que, sob tais condições, a falsa consciência é a que reifica oprocesso ao invés de compreendê-lo como estágio histórico passível de super-ação, conduzindo a ação do sujeito neste sentido.

No desenvolvimento de sua crítica à noção de fetiche, Baudrillard ilus-tra sua posição com uma descrição do efeito social benéfico do “mana”, umelemento central no pensamento mágico dos bantos. Ora, se o mana geraresultados benéficos para os indivíduos e para o coletivo, não poderia comjustiça ser pejorativamente designado de fetiche. A questão, porém, não éessa, pois Marx não utilizou o termo fetiche em estudos etnográficos ou et-nológicos; além disso, o fato de a antropologia contemporânea tê-lo descartado

72 MARX, Karl. O Capital. Livro I, v. 1, p. 81.73 Idem, p. 83.

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não é motivo para que não possa ter outras aplicações teóricas, como alegoria,onde se mostre útil. É como se Baudrillard, em sua defesa politicamente cor-reta do “pensamento mágico” des tribus bantous, de repente descobrisse que a“força difusa” do mana, ou melhor, seu fluxo, não mais fosse “desviado” parao “proveito” do “indivíduo ou do grupo”, mas que, ao contrário, toda atividadedo indivíduo ou do grupo fosse desviada para o proveito do mana.

Retomando a questão do valor de uso, se a realidade positiva é a do fetiche,só podemos conceber negativamente o “statut objectif ‘vrai’ de l’object” des-fetichizado, para além da realidade imediata. Pois se o próprio uso, sob ocapital, permanece atrelado ao fetiche, na medida em que o reproduz, este éo seu übergreifendes Moment sob o capital. Só o objeto que seja fruto de tra-balho não alienado, executado pelo homem livre para o homem livre, não parao capital, está imune ao fetichismo da mercadoria, que não é um problemasubjetivo, psicológico, dos consumidores: é uma dado objetivo da realidadeeconômica, facilmente perceptível na contemplação do fato tão banal de quequase todos os objetos que possuem algum valor de uso “possuem” tambémum preço em dinheiro, um valor de troca, como se este último fizesse partede sua composição química. A naturalidade com que encaramos o fato de ascoisas terem um preço é o sintoma mais óbvio da falsa consciência, expressãodo fetiche da mercadoria ou do fetiche do dinheiro.

Fetiche do dinheiro, fetiche da mercadoria, fetiche do valor: diversas ex-pressões particulares, articuladas entre si, de uma totalidade social fetichista:se nem os meios de produção, nem as mercadorias, nem o capital pertencem aquem os produz, o sistema é fetichista; enquanto as coisas não são feitas parasatisfazer necessidades humanas (sejam quais forem), ou melhor, o gosto, masos gostos são formados para que as coisas sejam feitas, como meros estágiospara a multiplicação do capital, para sua concentração e reprodução ampliada,o sistema é fetichista; na medida em que os produtores não só não determinamquanto ou o quê será produzido, como também não têm suas necessidadessupridas e seus gostos satisfeitos a contento pelo que é produzido, o sistemaé fetichista, autônomo, auto-reprodutor, só se interessando pelas necessidadesde quem produz e de quem consome – que, aliás, são as mesmas pessoas –na exata proporção em que lhe possam ser proveitosas em termos políticos econtábeis. As coisas são, deste modo, tornadas fetiches. E seus valores de usorefletem este processo.

O conceito de fetiche permanece, pois, útil para compreender, denunciar ecombater um sistema onde, na prática, não se produz para viver, mas se vivepara produzir; onde não se produz para se consumir, mas se é consumido paraproduzir; onde quem produz não determina a coisa que será produzida, mas

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é pela coisa determinado. O não reconhecimento deste mecanismo é a alien-ação, a “fausse conscience” mencionada por Baudrillard, à qual não se opõenenhuma consciência ideal, mas tão somente a compreensão do e o combateao processo.

A sujeição do sujeito (o trabalho vivo) ao objeto (o trabalho morto) noprocesso de valorização do valor é a chave para a compreensão do fetichismo,se não na antropologia ou na semiótica, na crítica da economia política deMarx. Em seus próprios termos:

No processo de trabalho efetivo, o operário consome os meiosde trabalho como veículo do seu trabalho e o objeto de trabalhocomo a matéria na qual o seu trabalho se representa. É precisa-mente por isto que transforma os meios de produção na forma,adequada para um fim, do produto.

Do ponto de vista do processo de valorização, contudo, ascoisas apresentam-se de maneira diferentes. Não é o operário queemprega os meios de produção, são os meios de produção queempregam o operário. Não é o trabalho vivo que se realiza no tra-balho material como seu órgão objetivo; é o trabalho material quese conserva e se acrescenta pela sucção do trabalho vivo, graçasao qual se converte num valor que se valoriza, em capital, e fun-ciona como tal. Os meios de produção aparecem já unicamentecomo sorvedouros do maior quantum possível de trabalho vivo.74

Fetiche, portanto, é a expressão conceitual da conversão do trabalho vivo– a única mercadoria capaz de produzir um valor superior ao seu próprio – àcondição de principal mediação nas metamorfoses pelas quais passa, no cursode sua reprodução ampliada, o verdadeiro sujeito do processo, o “sujeito au-tomático”, o capital, o único “fantasma” dessa história toda.

Mas a crítica de Baudrillard não pára aí, estendendo-se praticamente a to-dos os conceitos mais importantes da teoria social de Marx. Mais adiante, namesma obra, nosso autor relaciona o conceito de fetiche ao de produção ide-ológica, propondo a superação das categorias infra-estrutura e superestrutura,sobre as quais ele afirma, com a ironia que lhe é peculiar, tratar-se de uma“teoria fetiche”.75 Sugere por sua vez “uma teoria mais abrangente das forçasprodutivas, todas elas hoje estruturalmente implicadas no sistema do capital”.

74 MARX, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultados do processo de produçãoimediata, pp. 53-4.

75 “Teoria fetiche” é a de Baudrillard, pois chamar a teoria do fetiche de fetiche é que éfetiche.

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Por que “uma teoria mais abrangente”? O fato de o pensamento ser produzidopelo cérebro, que é corpo, desqualifica a filosofia ou a lingüística, por ex-emplo, como disciplinas autônomas? A filosofia então nos permite conhecerestruturalmente os mecanismos orgânicos do cérebro? Tanto quanto a neurolo-gia nos diz algo de útil sobre a validade epistemológica de certas idéias! Comodizia Ilyenkov:

Os resultados exatos de uma investigação química sobre a com-posição das cores empregadas na pintura da Madonna Sistina setornariam uma tremenda mentira a partir do momento em que oquímico os visse como a única explicação científica da síntese semigual criada pelo pincel de Rafael.76

Por outro viés, a indústria metalúrgica ou petroquímica não estão direta-mente vinculadas à produção do pensamento pós-moderno de Baudrillard ouda Igreja Universal do Reino de Deus. Poderíamos, talvez, pensar numa es-trutura mais abrangente das forças produtivas tomando como exemplo a tec-nologia, que é ciência aplicada, é ao mesmo tempo superestrutura e base. Mastal relação já está estabelecida nas noções de base e superestrutura e em suainteração dialética, cuja importância reside precisamente em enfatizar, ao con-trário de todos os idealismos, o papel preponderante da estrutura econômicaem qualquer formação social, como condição necessária e em última instân-cia determinante das diversas manifestações da existência social. Se fizermosuma leitura correta deste princípio metodológico, entenderemos que a supere-strutura não é um epifenômeno reflexo da base, mas a expressão do conjuntode possibilidades de simbolização que esta última, enquanto responsável pelascondições da própria existência, viabiliza; a base, a infra-estrutura é o queestabelece aquilo que Rappaport, citado por Sahlins,77 chama de “limites deviabilidade”. A dialética do método desenvolvido por Marx está em identificare esclarecer como base e superestrutura se relacionam e transformam histori-camente, sendo a ênfase metodológica atribuída à base ao mesmo tempo umareação ao idealismo vigente quando de sua formulação e expressão científicado princípio materialista elementar de que o ser antecede a consciência: parahaver símbolos (vivos), alguém deve estar vivo para poder simbolizar.78 Comoalguém pode estar vivo sem produção material?

76 ILYENKOV. Op cit.77 SAHLINS. Op. cit., p. 168.78 Ainda que alguém “opte” por morrer de fome, conforme alguma interpelação cultural, tem

que estar vivo para poder morrer, tem que estar alimentado para realizar seu projeto. E, de todaforma, uma civilização cuja coletividade fosse marcada por esse tipo de prática não teria vidalonga.

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Isto, porém, de forma alguma significa afirmar que pode haver produçãomaterial, portanto vida humana, sem cultura, ou que a cultura é secundária noprocesso. Metodologicamente, enfim, não se trata de estabelecer abstratamentequem determina o quê, mas de desvendar, em meio à dialética de um complexode determinações, em cada situação concreta com a qual se está lidando, os fa-tores que devem ser estudados, a base ou superestrutura, e, principalmente,suas conexões. É o que, a seu modo, faz Foucault (que não pode ser corre-tamente acusado de marxismo ortodoxo) em sua “Arqueologia do Saber”, aorelacionar as formações discursivas (o saber, as epistemes) a suas “condiçõesde emergência”, digamos, empíricas ou históricas (base), e lógicas (superestru-turas), sem que uma prevaleça sobre a outra (embora, em Foucault, tambémhaja uma certa “queda” pela última).

Por outro lado, a proposta de Baudrillard, “de uma teoria mais abrangentedas forças produtivas”, faz sentido, desde que não tomemos as forças produti-vas em geral, mas somente o conjunto de forças produtivas onde, efetivamente,estrutura e superestrutura tornaram-se uma só e a mesma coisa: a indústriacultural capitalista, ou melhor, as ITCs, o conjunto de meios de produção (ecirculação e reprodução) de signos, dispositivo principal para a reproduçãoampliada de capital hoje em dia, bem como dos discursos de legitimação. Naspalavras de Rubim:

Ao invés da antiga localização “superestrutural – recorrenteinclusive em autores não-marxistas –, a comunicação e sua derivadacultura midiática passam a ocupar também um estatuto [...] decomponente “infra-estrutural”, porque imprescindível à realiza-ção e reprodução (inclusive econômica) do capitalismo.79

Desconsiderando as ITCs, porém, não faz sentido afirmar que os conceitosestrutura e superestrutura não tenham relevância teórica atual, ou que sejamuma coisa só, pois possuem qualidades e padrões operacionais distintos, inde-pendentemente da afecção recíproca.80 Afinal, ainda hoje, a produção mate-rial é predominante e caracteristicamente industrial, enquanto a produção sim-bólica, com exceção daquela advinda do universo das ITCs, é em grande parte,

79 RUBIM, Antônio Albino Canelas. Contemporaneidade, (idade) mídia e democracia. In:DOWBOR, Ladislau et al.: Desafios da comunicação, p. 31.

80 Baudrillard, por todo o livro, parece melindrado com o que ele chama de “marxismohereditário”, por este tender a tomar seu objeto, os signos, como uma dimensão reflexa, supere-strutural do sistema. Daí sua implicância com a divisão conceitual de estrutura e superestrutura.O problema é que o seu ataque ao “marxismo hereditário”, que deve querer dizer marxismovulgar, acaba sendo um ataque a algumas categorias chave do mais autêntico marxismo. E,diga-se de passagem, um ataque fraco, como tentamos demonstrar aqui.

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por assim dizer, artesanal, pré-capitalista, seja qual for sua coloração políticaou estética. É inclusive graças a este fato que ainda resta alguma autonomiaao que Bourdieu define como campo de produção simbólica, do qual Bau-drillard, recentemente falecido, fazia parte e sem o qual não poderia ter escritoseus livros com tanta originalidade. Esse campo, cuja socialização de sua pro-dução é em parte mediada pela indústria cultural, consiste, materialmente, nasacademias, nos produtores simbólicos independentes (escritores, compositoresetc.), nas instituições jurídicas, religiosas e políticas: na superestrutura.

Poder-se-ia objetar que esta distinção tornou-se obsoleta, em função dacrescente importância do “trabalho imaterial” em todos os setores da econo-mia, ou seja, na infra-estrutura. Mas a incorporação em larga escala da pro-dução simbólica ao trabalho assalariado não invalida a divisão conceitual entrebase/estrutura/infra-estrutura e superestrutura, apenas reforça o fato de que sobo capitalismo a totalidade das atividades humanas é gradualmente incorporadaà sua lógica econômica, é absorvida pela infra-estrutura.

Ricardo Antunes, ao debater o que denomina “nova polissemia” ou “novamorfologia do trabalho”, contrariando a noção corrente de “fim do trabalho”,afirma que, de fato,

[...] o mundo do trabalho hoje é caracterizado também pelaampliação do que Marx chamou de trabalho imaterial, realizadonas esferas da comunicação, publicidade e marketing, que sãopróprias da sociedade do logos, da marca, do simbólico, do in-volucral e do supérfluo. É o que o discurso empresarial chama de“sociedade do conhecimento”.81

E acrescenta:

[...] é preciso [...] partir de uma concepção ampliada do tra-balho, abarcando a totalidade dos assalariados, homens e mul-heres que vivem da venda de sua força de trabalho e não se re-stringindo aos trabalhadores manuais diretos; devemos incorporar

81 ANTUNES, Ricardo. “Afinal, quem é a classe trabalhadora hoje?”. In: Margem Esquerda,no. 7, 2006, p. 59. Vale destacar que, no mesmo artigo, pouco antes, Antunes, ao comentarsobre a obsolescência de se “tratar de modo independente os três setores tradicionais da econo-mia (indústria, agricultura e serviços), dada a enorme interpenetração entre essas atividades” (p.57), faz a seguinte ressalva: “Vale aqui o registro, até pelas conseqüências políticas: reconhecera interdependência setorial é muito diferente de falar em sociedade pós-industrial, concepçãocarregada de significação política”. (p.57). Sobre a noção de “sociedade da informação”, verMattelart, Armand, “Rumo a que ‘nova ordem da informação?”’. In: Tramonte et al. (orgs.), AComunicação na Aldeia global, pp. 237-245.

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a totalidade do trabalho social e coletivo, que vende sua força detrabalho como mercadoria, seja ela material ou imaterial, em trocade salário.82

Além disso, a divisão da produção em material (estrutural) e simbólica(superestrutural), aqui não importa se dentro ou fora do âmbito das ITCs,continua realizando na prática social o princípio radicalizado pelo capitalismoda divisão do trabalho entre manual e intelectual, cujas graves conseqüênciaschamaram a atenção de Marx:

A manufatura [...] deforma o trabalhador monstruosamentelevando-o artificialmente a desenvolver uma habilidade parcial, àcusta da repressão de um mundo de instintos e capacidades pro-dutivas [...] As forças intelectuais da produção só se desenvolvemnum sentido, por ficarem inibidas em relação a tudo que não seenquadre em sua unilateralidade. O que perdem os trabalhadoresparciais, concentra-se no capital que se confronta com eles.83 Adivisão manufatureira do trabalho opõe-lhes as forças intelectuaisdo processo material de produção como propriedade de outrem ecomo poder que os domina. [...] Esse processo desenvolve-se namanufatura, que mutila o trabalhador, reduzindo-o a uma fraçãode si mesmo, e completa-se na indústria moderna, que faz da ciên-cia uma força produtiva independente de trabalho, recrutando-apara servir ao capital.84

A essas observações, Marx acrescenta, em nota de pé de página, a seguintecitação:

O homem de saber e o trabalhador produtivo se separam com-pletamente um do outro, e a ciência em vez de permanecer empoder do trabalho, em mãos do trabalhador, para aumentar suasforças produtivas em seu benefício, colocou-se contra Ele em quasetoda parte [...] O conhecimento torna-se um instrumento que podeseparar-se do trabalho e opor-se a ele.85

82 Idem, p. 61.83 Essa “transferência de forças intelectuais” do produtor simbólico para o capital é o que

chamo de acumulação de capital midiático, que é a própria base operacional e a razão de ser daindústria cultural, atingindo sua máxima potência social na produção de gosto social midiático,pois não só o produtor é alienado de suas forças intelectuais, mas o consumidor também.

84 Marx, Karl, O Capital, Livro 1, volume I, pp. 412-414.85 MARX, Karl. O Capital, Livro 1, volume I. Cf. W. Thompson, An inquiry into the

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O mesmo não valeria em parte para a subsunção da produção simbólica aocapital?

De todo modo, fora da esfera das ITCs, o trabalho intelectual conservaainda uma forma pré-capitalista, não industrial (embora seja aplicado na indús-tria, não é produzido de forma industrial), e sobrevive com relativa autonomiaem relação ao capital nas academias, na política, nas artes etc., como super-estrutura, enquanto o trabalho material pertence à ordem da infra-estrutura.O único espaço social onde ambas as instâncias encontram-se concretamenteimbricadas, pode-se dizer fundidas, é nas ITCs.86 Fora delas (embora o en-sino esteja, em parte, caminhando na mesma direção), não faz sentido abolira divisão teórica base / superestrutura, que não é nenhuma “teoria fetiche” secorretamente compreendida, permanecendo uma ferramenta crítica e analíticapoderosa.

7.5 O Cavalo de Tróia do cavalo de Tróia

Cabe agora investigar a seguinte hipótese: caso permaneça produtivo o em-prego dos conceitos valor de uso, falsa consciência, fetiche, junto ao par con-ceitual base e superestrutura, tanto para os estudos sociais em sentido maisgeral, quanto para aqueles mais específicos, como os do campo da Comuni-cação Social, essa verdade traz consigo uma espécie de bifurcação metodológ-ica: ou se dedica atenção especial às inúmeras mediações de ordem extra-econômica que atuam no âmbito das ITCs, assumindo-se a posição de que osinteresses políticos e econômicos envolvidos são somente dois fatores a maisentre tantos outros, de peso equivalente; ou se admite que, embora as medi-ações extra-econômicas, envolvidas nos processos de produção, circulação econsumo das ITCs, não devam ser deixadas de lado, publicidade, entreteni-mento e informação vêm se convertendo, de forma cada vez mais abrangente,no cavalo de tróia de determinados interesses políticos e econômicos, cujo pesoé decisivo para uma compreensão adequada desses mesmos processos e de seupapel predominantemente conservador.

Nos termos de Ramonet:

Principle of the Distribution of Wealth, Londres, 1824, p. 274. Para uma visão contemporâneado tema, ver ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e anegação do trabalho.

86 Cabe aqui uma ressalva: mesmo no âmbito das ITCs, a divisão entre trabalho materiale imaterial está presente. O que se quer destacar é a crescente relevância econômica, infra-estrutural, das ITCs, que são ao mesmo tempo um conjunto de dispositivos tecnológicos debusca, transmissão, processamento e armazenamento de dados, e um conjunto de dispositivosde produção/codificação e recepção/decodificação de sentidos.

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Antes podíamos dizer que uma empresa jornalística vendiainformação aos cidadãos, enquanto hoje uma empresa midiáticavende consumidores a seus anunciantes. Quer dizer, a AOL-TimeWarner, por exemplo, vende a seus anunciantes – Nike, Ford, Gen-eral Motors – o número de consumidores que possui. Essa é arelação dominante.87

Desdobrando esse raciocínio, logo percebemos que as ITCs exercem umtriplo papel nas sociedades contemporâneas: 1) enquanto dispositivo de pro-dução, circulação e consumo de bens materiais e simbólicos, constituem umsetor econômico de ponta; 2) enquanto dispositivo de sedução, participam ati-vamente na geração da demanda pelos bens materiais e simbólicos existentes,sejam aqueles diretamente produzidos por elas (produtos da indústria cultural eequipamentos necessários ao seu consumo), aqueles nos quais elas participamna produção (tudo que envolva informática e telecomunicações) e aqueles queelas simplesmente anunciam (qualquer mercadoria); e 3) enquanto dispositivode (in)formação, socializa, em diversas escalas, um determinado repertório derepresentações do real, que incluem os bens materiais e simbólicos, junto asistemas classificatórios,88 ou códigos de valorativos, que dispõem esses bense representações, uns em relação aos outros, em hierarquias entrecruzadas,menos ou mais complexas, dependendo do caso.89

Este é um dos lados da moeda, o lado mais forte atualmente, o lado dahegemonia. Não obstante, o fato de os interesses hegemônicos serem emgrande parte contraditórios, entre si e, sobretudo, com os interesses da maio-ria das pessoas – que vivem do trabalho e compõem a massa consumidora –,mesmo que estas últimas não tenham clara consciência desses interesses, essesimples fato representa uma espécie de cavalo de tróia do cavalo de tróia.

Um exemplo dessa contradição está no jornalismo, principalmente no tele-jornalismo. Seu objetivo último é cativar imensas audiências para os anun-

87 Cf. RAMONET, Ignacio. O Poder midiático. In: MORAES, Dênis de (org.). Por umaoutra comunicação, p. 248.

88 Poder-se-ia aqui objetar que as ITCs somente reproduzem alguns dos sistemas classifi-catórios preexistentes, contribuindo para que se tornem hegemônicos. Isso foi verdade em seusprimórdios. Hoje, são as pessoas que reproduzem os sistemas tornados hegemônicos pelasITCs; as variedades de opiniões existentes, as divergências de gostos etc., derivam do simplesfato de as pessoas serem diversas e de estarem vivas, e por isso serem capazes, em parte, dealterar esses sistemas.

89 Isso está na moda, aquilo é popular, a outra coisa é chique, fulano é radical, sicranoé realista, certo ambiente é clean, um outro é carregado, tal projeto é viável ou utópico etc.Sobre um estudo da forma como esses e outros atributos, das coisas, pessoas e situações, sãovivenciados pelas diversas classes e frações de classe, ver BOURDIEU, Pierre. Distinction.

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ciantes dos intervalos comerciais. Mas para fazê-lo, é necessário que os pro-gramas possuam e conservem credibilidade junto à população, o que requerque estejam minimamente comprometidos com a verdade factual, ainda quea divulgação desta verdade entre em choque com os interesses particulares daempresa de comunicação que produz o telejornal ou de setores mais amplos docapital dos quais ela é aliada. Além disso, há, entre os jornalistas, muitos quenão pensam “como o patrão”, que possuem, em graus variados, consciência declasse, além de uma relativa autonomia produtiva.

No campo da música, do cinema e até da teledramaturgia, é inegável que,apesar de todas as tendências dominantes, canções, filmes e programas efeti-vamente inventivos e autênticos conseguem, aqui ou ali, aparecer no universodas ITCs.90

No caso da publicidade: para ser convincente, deve agradar. Assim, nabusca da atenção da audiência, a despeito dos apelos grosseiros mais óbviose de seu conteúdo ideológico fatalmente integrado, ela não deixa também deeventualmente socializar experiências formais que, de outro modo, talvez per-manecessem restritas aos nichos de vanguarda, ou a culturas distantes, con-tribuindo assim para uma maior abertura no repertório de referências culturaise na sensibilidade estética das audiências.91

Nesse ponto, Adorno entra em rota de colisão conosco, já que, para ele,“os padrões estéticos inconscientes das massas são precisamente aqueles deque a sociedade necessita para se perpetuar e perpetuar seu domínio sobre asmassas.” 92

É uma sentença intrigante, mas com a qual não podemos concordar inte-gralmente. Porque se Adorno acerta na definição de um dos aspectos consti-tutivos do controle social, talvez mesmo do aspecto predominante nos últimostempos, por outro lado não se dá conta que o momento revolucionário, que ex-iste em estado latente como potência concreta, igualmente pressupõe “padrõesestéticos inconscientes”, mas de uma natureza não integrada, não mimética,que podem ser identificados no gosto das massas por alguns produtos das ITCs,ou por alguns elementos de todos eles, para não falar de formas estéticas de

90 Ver MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. O Espírito do tempo. Ver tambémECO, Umberto. Apocalípticos e integrados, principalmente o subcapítulo intitulado Cahiersde Doléances.

91 Além disso, é possível supor que o aspecto atraente dos produtos oferecidos, bem comosua quantidade, podem sem querer contribuir para a emergência da consciência de classe, se aspessoas puderem sentir que há algo errado no fato de tudo aquilo existir e estar disponível, masnão para elas.

92 Cf. ADORNO, Aesthetic Theory, apud MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p.157, nota 35.

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resistência ou híbridas / experimentais, no campo da produção simbólica extramidiática.

Há um importante artigo de Fredric Jameson que aponta nessa direção,cujo norte é, sem perder o gume crítico em relação às mercadorias culturaisda indústria cultural e de sua importância política e econômica, distinguir ocavalo de Tróia do cavalo de Tróia, o grão revolucionário na cultura de massa,mesmo em produtos cujo caráter ideologicamente reacionário é mais ou menosóbvio. Nas palavras de Jameson:

[...] as obras de cultura de massa não podem ser ideológi-cas sem serem, em certo ponto e ao mesmo tempo, implícita ouexplicitamente utópicas: não podem manipular a menos que ofer-eçam um grão genuíno de conteúdo, como paga ao público prestesa ser tão manipulado. Mesmo a “falsa consciência” de um fenô-meno monstruoso como o nazismo nutriu-se de imaginários co-letivos de tipo utópico, sob roupagem tanto socialista como na-cionalista. [...] as obras de cultura de massa, mesmo que suafunção se encontre na legitimação da ordem existente – ou deoutra ainda pior – não podem cumprir sua tarefa sem desviar afavor dessa última as mais profundas e fundamentais esperanças efantasias da coletividade, não importa se de forma distorcida.93

Mais adiante, o autor sintetiza este ponto da seguinte maneira:

Em meio a uma sociedade privatizada e psicologizada, obcecadapelas mercadorias e bombardeada pelos slogans ideológicos dosgrandes negócios, trata-se de reacender algum sentido do inerradicávelimpulso na direção da coletividade, que pode ser detectado, nãoimporta quão vaga e debilmente, nas mais degradadas obras dacultura de massa, tão certo como nos clássicos do modernismo.Eis a indispensável precondição de qualquer intervenção marxistasignificativa na cultura contemporânea.94

93 JAMESON, Fredric. Reificação e utopia na cultura de massa. In: As Marcas do visível,p. 30. O trecho refere-se a uma análise empreendida pelo autor do filme “Tubarão”, na qualJameson demonstra que produtos como esse só obtém sucesso na medida em que, de algumaforma, trazem em si um “potencial utópico e transcendente”. Jameson também coteja o livroe o filme “Tubarão”, o primeiro escrito por Peter Blanchley e o segundo dirigido por StevenSpilberg, em 1975 – ambos obtiveram enorme sucesso comercial.

94 Idem ibidem, pp. 34-5.

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Essa hipótese de Jameson é muito importante no sentido de não se perderde vista o caráter contraditório interno da cultura de massa, reflexo das con-tradições sociais mais amplas, e para que não se caia no pessimismo imobi-lizante de Adorno.

Cabe então desvendar o que pode haver no gosto das massas de substratosensível da ideologia, não só enquanto “falsa consciência” ou “generalidadeabstrata”, mas também enquanto consciência de classe necessária (Marx) ouatribuída (Lukács), isto é, revolucionária. Esse desvendamento é necessáriopara que se possa pensar em deslocar o gosto da esfera passiva do consumo àesfera ativa da produção, reorientando a produção social – material e simbólica– no sentido da satisfação de gostos não cooptados pelas formas integradorasdo capital.

Recapitulemos. Dado que a dimensão política decisiva do gosto está emsua própria dimensão econômica, quando Bourdieu menciona uma “unidadeinconsciente de classe”, forjada no “nível mais profundo dos habitus etc.”, eleoferece um excelente ponto de partida para se enfrentar o conjunto de questõesacima proposto, no quadro de uma atualização da problemática da consciênciade classe e da ideologia.

Trata-se, primeiro, de pensar a noção de gosto cindido em prazer e con-hecimento, a qual, por sua vez, remete à negatividade dialética da inconsciên-cia de classe, dado que, se esta é positivamente, imediatamente, atualmente,fator constituinte da classe-em-si, negativamente, mediatamente ou potencial-mente o é da classe-para-si, capaz de extinguir a si mesma e a todas as classes,portanto a sociedade de classes, promovendo a sutura no gosto em prazer econhecimento, articulados em um nível superior. Ou seja, a noção de incon-sciência de classe deve ser entendida, ao mesmo tempo, 1) como tensão entresua positividade de não-reflexão atual e sua negatividade de reflexão potencial,e 2) como identidade de classe inconsciente, pulsional, passível de simboliza-ção, de exteriorização, de objetivação na práxis, de incorporação à consciênciaportanto, convertendo nesse momento a consciência em si em consciência parasi, através dessa práxis transformadora.

O gosto, este saber dos sabores e vice-versa, é o substrato sensível de ide-ologias e práxis hegemônicas somente em sua positividade atual, passiva eimediata. Sua negatividade dialética, ativa e mediata, consiste em sua potên-cia concreta de despertar práxis contra-hegemônicas. Ou seja, o gosto cindido,em um primeiro momento, não diz respeito diretamente, imediatamente, à con-sciência de classe necessária, mas mediatamente, isto é, enquanto momento deuma mediação possível da consciência de classe contingente à necessária. Diz,assim, respeito ao momento que Lukács denominava consciência de classe

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possível, na passagem da consciência em si à consciência para si. Porque ogosto cindido traz em si um pathos revolucionário recalcado sob as mil man-ifestações do ethos conformista da ideologia hegemônica. Em um segundomomento, porém, diante de circunstâncias objetivas mais favoráveis, a tensãoentre esse pathos e esse ethos pode resultar em sutura, em uma unidade supe-rior de sensibilidade e consciência, a qual deverá servir imediatamente comosustentação psicológica e motivacional da consciência de classe necessária.

Uma idéia parecida com essa está implícita nas esperançosas palavras deMuniz Sodré: “[...] no bojo das novas condições de existência geradas pelaciência e pela tecnologia, a força ético-política da paixão de viver poderia im-pedir que a integração harmônica da máquina seja equivalente à assimilaçãodo capital como ‘natureza’ à consciência do homem”.95

Quanto à ideologia, no recorte proposto, ela, em qualquer acepção quese queira, é sempre uma formulação do gostos. Estes, por sua vez, não sãovariáveis reflexas de estruturas inconscientes invariáveis, mas estruturaçõeshistoricamente variáveis das subjetividades e das práticas intersubjetivas, am-bas determinadas positiva e negativamente, em última instância, pelos vetoreseconômicos contraditórios de cada formação social; em outras palavras, lim-itadas em suas possibilidades de objetivação pelas contradições entre o modode produção hegemônico, os resquícios de sua pré-história e de seus estágiospassados, e as possibilidades de superação de si que em si carrega. “Modo deprodução” é a forma como as pessoas produzem e reproduzem em sociedadesuas condições de vida. Se essas formas não são determinadas pela vontade dossujeitos, mas por imperativos cegos, os gostos como todo o resto permanecemlimitados por estes imperativos. É necessário libertá-los.

7.6 Lenin e a Microsoft

O gosto é a inconsciência sensível da ideologia e na ideologia; dela provém eao mesmo tempo a sustenta; é sua inscrição no corpo. E a assimilação reifi-cante dos gostos ao modo de vida capitalista foi a única forma, além da violên-cia, de minimizar as contradições de seu desenvolvimento, e é a única formade assegurar sua sobrevida insana e destrutiva. As ideologias só “colam” seseduzirem os gostos.

O gosto só se torna restrito à esfera do consumo a partir do momento emque é subordinado aos imperativos do capital na esfera da produção.96 O fim

95 SODRÉ, Muniz. Estratégias Sensíveis, p. 71.96 Raymond Williams nota, a propósito, “que a idéia do gosto não pode hoje ser separada da

idéia do CONSUMIDOR.” (Cf. Key Words, pp. 314-15.)

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dessa subordinação constitui talvez o objetivo principal do projeto socialista.Nos termos de Marx, “em uma sociedade futura, na qual o antagonismo declasse tenha deixado de existir, na qual não haverá mais classes, o uso não maisserá determinado pelo tempo mínimo de produção; mas o tempo de produçãoserá determinado pelo grau de sua utilidade social.” 97

Assim, para além dos limites do fetiche do valor (em um nível mais alto deabstração) ou da solvência monetária (em um nível mais imediato), se é o gostoque efetivamente orienta o consumo, ele passaria a constituir não somente aúnica meta da produção, mas carregaria a própria produção de inspiração, nosentido empregado por Abraham Kook (1865-1935)98 e seus comentadores:99

As árvores que dão o fruto [...] se tornaram matéria inferior e perderamseu gosto. Esta é a queda da ‘Terra’, em função da qual esta foi amaldiçoada,quando Adão foi igualmente amaldiçoado por seu pecado. Mas todo defeito édestinado a ser corrigido. Assim, estamos seguros que chegará o dia em quea criação retornará ao seu estado original, quando o gosto da árvore será omesmo que o do fruto. A ‘Terra’ se arrependerá de seu pecado e os caminhosda vida prática não mais obstruirão o deleite do ideal, que é sustentado pelosdegraus intermediários apropriados em seu caminho rumo à realização, e iráestimular sua emergência de potência em ato.

A própria penitência, que ativa o espírito interior submerso nas profun-dezas do caótico e do antitético à meta ideal,100 possibilitará que a aspiração

97 MARX, A Miséria da Filosofia, apud MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 176.98 Segundo Gershom Scholem, o último grande cabalista.99 Fazendo a ressalva de que obviamente o teor místico das citações a seguir deve ser ab-

straído para que sua inserção nesta tese faça sentido, tomo a liberdade de reproduzir uma pas-sagem de minha dissertação de mestrado (Cf. Schneider, 2003), que ilustra com uma bela ale-goria essa importante relação entre gosto, inspiração, produção e consumo. O texto que segue,em corpo reduzido e recuo igual ao das demais citações diretas ao longo deste trabalho, é daautoria de Abraham Kook (The Lights of Penitence, The Moral Principles, Lights of Holiness,Essays, Letters and Poems). Os comentários em itálico sobre o Rav Kook foram conseguidosatravés da Internet junto à Yeshivat Har Etzion – Virtual Beit Midrash – e-mail: [email protected] [email protected], por intermédio de Ezra Bick – [email protected], em 2002. Os co-mentários são de Rav Hillel Rachmani.

100 Esta passagem sobre a “penitência” adquire um significado materialista extraordinário selida à luz do seguinte trecho de A Sagrada Família (p. 49), de Marx e Engels, citado acima:“[...] o homem se perdeu a si mesmo no proletariado, mas ao mesmo tempo ganhou comisso não apenas a consciência teórica dessa perda, como também, sob a ação de uma penúriaabsolutamente imperiosa – a expressão prática da necessidade –, que já não pode mais serevitada nem embelezada, foi obrigado à revolta contra essas desumanidades; por causa dissoo proletariado pode e deve libertar-se a si mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmosem supra-sumir suas próprias condições de vida. Ele não pode supra-sumir suas própriascondições de vida sem supra-sumir todas as condições de vida desumana da sociedade atual,

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do ideal penetre em todas as influências condicionantes, e em todas elas serádegustado o esplendor da meta ideal. Ela o fará alargando a extensão da açãopara o ideal de justiça. O homem não mais sofrerá a desgraça da indolência nocaminho para a vida verdadeira.101

Nesta passagem, Rav Kook lida com o famoso midrash102 concernente ao“pecado da Terra durante os Seis Dias da Criação”. No terceiro dia, Deusordenou à Terra que “produza ÁRVORES FRUTÍFERAS que dêem frutos”.A Terra desviou-se do comando original e limita-se a produzir “árvores quedão frutos”. Aos olhos dos Sábios, a Terra pecou por não produzir “árvoresfrutíferas”, isto é, árvores cujos troncos e galhos tenham o gosto do fruto. Aoinvés disso, temos somente o exterior marrom usado para fogueiras, enquantosomente o fruto possui um gosto bom. [...] Rav Kook explica este midrashcomo uma parábola: fruto = os fins; gosto [ta’am]103 = a inspiração; árvore =os meios para que se atinja os fins. [...] Originalmente os meios para se atingiros fins deveriam estar plenos do mesmo sentimento de prazer e inspiração queresulta dos fins. A satisfação dos fins penetraria o processo dos meios. Porém,o pecado da Terra deixou toda a inspiração nos fins, restando os meios semgosto.[...]

A Terra, pois, “pecou” (isto é, falhou), já que os troncos e galhos das ár-vores não possuem o gosto dos frutos. Se os troncos e galhos simbolizam osmeios para se atingir a meta (o fruto), e deveriam ser da mesma ordem de in-spiração (de gosto, sabor/saber) que os fins, não o são porque a Terra falhou. Éaqui, pois, um problema ontológico da matéria (da imanência). Por outro lado,a missão do homem seria redimir o pecado da Terra (e o seu próprio, pois araiz da palavra hebraica que designa o primeiro homem, Adam, é a mesma deAdamá, a Terra) e restaurar a ordem “divina”, tornando os meios de se atingirum fim tão inspiradores (saborosos e plenos de significado) quanto este.104

Está dito aí que, através de sua prática, a princípio penosa, o homem devetranscender o “pecado original da Terra”, redimindo-a e redimindo-se, e es-

que se resumem em sua própria situação. Não é por acaso que ele passa pela escola do trabalho,que é dura mas forja resistência.”

101 KOOK, Abraham Isaac. The Lights of penitence; the moral principles, lights of holiness,essays, letters and poems, 1978, pp. 59-60. Na p. 121 da mesma obra, o tema é retomado: “Aprópria Terra tinha medo e não fez crescer a árvore em sua perfeição, de modo que seu gostofosse o mesmo que o do seu fruto [...] A humanidade tem medo dos luminosos e exaltadosvalores da liberdade; este mundo teme a emergência do mundo que virá...”

102 Tópico narrativo da tradição oral talmúdica judaica, que inclui também suas interpretações.103 O termo hebraico “ta’am”, gosto, também relaciona as noções de sabor e significado.104 Afinal, como pergunta Abraham Kook, em verso: “Por que desperdiçar sua substância no

que não alimenta / e o seu labor no que não satisfaz?” “Radiante is the world soul”. In: KOOK,Abraham Isaac. Op. cit., p. 376.

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tabelecer aquela ordenada por Deus, segundo a qual os meios têm que serinspiradores e sagrados, isto é, plenos de sabor e significado.

Mas, em termos materialistas, no que consiste o “pecado da Terra”? Naausência de gosto (sabor, significado e inspiração) nos meios de se obter satis-fação, devido à escassez, à brutalidade dos elementos e das feras, à resistência,com freqüência extrema, da natureza face ao homem, fatores com os quais ele,“ser padecente”, tem de lidar em busca mesmo da satisfação das necessidadesmais elementares, o que gera, além de desgosto, medo, dor e trabalho pesado.Este último, no entanto, é a condição de sua própria superação: se todos osmeios para que se atinja qualquer fim poderiam ser simplesmente chamadosde trabalho, a “condenação divina” que pesa sobre o homem – ganharás teupão com o suor de tua face – reproduz, de modo invertido,105 uma condenaçãoreal, mas historicamente superável a partir de sua própria contradição interna:a ausência de gosto – de sabor, de significado e de inspiração – no trabalhonão-livre, em todas as suas formas históricas.

Um dos principais objetivos do projeto socialista não é a extinção do tra-balho não-livre em sua forma atual, ou seja, o fim da escravidão assalariada,carente de sabor e de significado? É disso que se trata quando falamos de res-gatar o gosto cooptado pelo capital da esfera do consumo e inseri-lo na esferada produção, como inspiração, na execução, da forma menos penosa que sepuder, de tarefas coletivamente determinadas por pessoas livres e conscientes.

As ITCs podem ser instrumentalizadas no sentido de solucionar este prob-lema. É Zizek, partindo de Lênin, que nos dá uma pista de como isso pode serefetivamente posto em prática:

As idéias de Lenin sobre como a estrada para o socialismocorre através do terreno do capitalismo monopolista podem pare-cer perigosamente ingênuas hoje: “O capitalismo criou um aparatocontábil na forma de bancos, sindicatos, correios, associações deconsumidores e organizações de empregados de escritório. Sem

105 Cabe aqui reproduzir uma célebre reflexão de Marx – tão citada quanto descontextualizadae, por isso, mal interpretada, restando seu significado, conforme Mészáros, “tendenciosamenteignorado” – sobre a religião como o “ópio do povo”: “A miséria religiosa é ao mesmo tempoa expressão da miséria real e um protesto contra essa miséria real. A religião é o suspiro dosoprimidos, o coração de um mundo sem coração, o espírito de um mundo sem espírito. Areligião é o ópio do povo. [...] A exigência de se abandonar as ilusões sobre o presente estadode coisas é a exigência de se abandonar um estado de coisas que necessita de ilusões. Portanto,a crítica da religião é, em estado embrionário, a crítica do vale de lágrimas cujo halo é a religião[...]. Assim, a crítica do céu se transforma na crítica da terra, a crítica da religião na crítica dodireito e a crítica da teologia na crítica da política.” MARX, Contribuição à crítica da filosofiado direito de Hegel, apud MÉSZÁROS, o Poder da Ideologia, p. 469, nota 22.

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grandes bancos o socialismo seria impossível. [...] nossa tarefaagora é meramente podar aquilo que capitalisticamente mutilaesse excelente aparato, torná-lo ainda maior, ainda mais democrático,ainda mais inclusivo. [...] seria [...] algo como o esqueleto dasociedade socialista.” [...] E se alguém substituísse o (obvia-mente datado) exemplo do banco central pela World Wide Web[...]? Dorothy Sayers sustentou que a Poética de Aristóteles é efe-tivamente a teoria das histórias de detetive avant la lettre – comoo pobre Aristóteles ainda não conhecia as histórias de detetive,ele teve que fazer menção aos únicos exemplos que lhe estavamdisponíveis, as tragédias... Nessa mesma linha de raciocínio,Lenin estaria efetivamente desenvolvendo a teoria do papel daWorld Wide Web, porém, dado que ele não conhecia a WWW, eleteve que fazer menção aos desafortunados bancos centrais. Conse-qüentemente, alguém pode também dizer que “sem a World WideWeb o socialismo seria impossível. [...] nossa tarefa agora é mer-amente podar aquilo que capitalisticamente mutila esse excelenteaparato, torná-lo ainda maior, ainda mais democrático, ainda maisinclusivo” [...] Não haveria na World Wide Web um potencial ex-plosivo também para o próprio capitalismo? A lição do monopólioda Microsoft não seria precisamente a de Lenin: ao invés de com-bater o seu monopólio através do aparato do estado (recorde-sea divisão da Micrsoft Corporation por decisão judicial), não se-ria mais “lógico” simplesmente SOCIALIZÁ-LA, tornando-a gra-tuitamente acessível?106

Isto é, as ITCs, em meio às quais a Microsoft Corporation ocupa um dospapéis mais ilustres, podem e devem ser instrumentalizadas em termos não sóideológicos mas, considerando-se a sua centralidade no conjunto da economia,administrativos e logísticos. Esta operação é absolutamente fundamental pois,como bem lembra Mészáros:

Não basta [...] argumentar a favor de uma nova orientaçãoideológico-política caso se mantenham tal como hoje as formasinstitucionais e organizacionais relevantes. Se, em sua respostapor inércia às circunstâncias históricas que já não são as mes-mas, a desorientação corrente é a manifestação combinada dosfatores prático-institucional e ideológico, seria ingênuo esperar

106 ZIZEK, Slavoj. Repeating Lenin. Documento eletrônico:http://www.lacan.com/replenin.htm. Acesso em: mar. 2004.

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uma solução no que muitos gostam de descrever como “clarifi-cação ideológica”. De fato, enquanto os dois devem desenvolver-se juntos nessa reciprocidade dialética, o “ubergreifendes Mo-ment” (momento predominante) na conjuntura atual é a estruturaprático/institucional da estratégia socialista, que precisa reestruturar-se de acordo com as novas condições.107

É por esta razão, não somente por uma questão de método, que temos in-sistido na defesa da noção de “determinação em última instância” da economiasobre o conjunto das atividades humanas (incluindo a formação dos gostos),conseqüentemente na pertinência atual de se pensar a comunicação nesses ter-mos. Isso, como visto, implica entre outras coisas em conservar a clássicarelação dialética entre base e superestrutura. Nessa linha de raciocínio, e bus-cando efetuar uma “análise concreta da situação concreta”, identificamos nasITCs atuais um momento no qual a produção simbólica é absorvida pela base,não o contrário, como apregoam os defensores da “sociedade da informação”.A disputa ideológica contra a ideologia hegemônica, portanto, para ter algumachance de sucesso, deve ser articulada com um disputa político-jurídica pelasocialização da propriedade das ITCs.

7.7 Por Uma Pedagogia da autonomia

O que se tentou fazer ao longo da presente pesquisa foi demonstrar em detalheque a subsunção formal do trabalho de produção simbólica ao capital (a sub-sunção real ainda não se efetivou plenamente) é o que determina, em últimainstância, a natureza da produção midiática, conseqüentemente da parte maisabundante do repertório cultural socializado, assim como dos gostos que sãopor ela educados. Chegou o momento de retomarmos a questão da educação,abordada no início deste trabalho.

A função essencial da educação, mais do que transmitir conteúdos, é, oudeveria ser, estimular o desejo de se adquirir conhecimento. Por isso toda ed-ucação é necessariamente uma educação do gosto, pois o gosto é ao mesmotempo expressão de sabor (prazer ou desprazer) e saber (conhecimento ou ig-norância). Nos termos de Montesquieu:

107 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, pp. 787-8. Por outro lado, em função dabrutal capacidade de exercício da violência nas mãos do capital, Mészáros argumenta: “A vi-olência pode ser usada seletivamente, contra grupos limitados do trabalho, mas não contra aorganização de um movimento de massa revolucionário. Por isso é tão importante o desenvolvi-mento da ‘consciência comunista de massa’ (para usar a expressão de Marx), em contraste coma vulnerabilidade da orientação sectária estreita.” (Idem ibidem, p. 846).

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A definição mais geral do gosto, sem considerar se se tratade um bom gosto ou de um mau gosto, um gosto adequado ounão, é que gosto é aquilo que nos liga a uma coisa por meio dosentimento, o que não impede que ele possa aplicar-se às coisasdo intelecto, cujo conhecimento dá tanto prazer à alma que essaé mesmo a única felicidade que certos filósofos conseguem com-preender. A alma conhece por meio das idéias e dos sentimentos;ela sente prazer por meio das idéias e dos sentimentos, pois, emb-ora possamos estabelecer uma oposição entre idéia e sentimento,quando a alma vê uma coisa ela a sente, e não há coisas tão in-telectuais que ela não possa ver ou que acredite não ver e, porconseguinte, que não sinta.108

Sociedades divididas em classes, porém, fazem com que o acesso dos su-jeitos aos objetos e formas disponíveis de conhecimento e prazer se dê, apesarda proclamada “igualdade de oportunidades”, não só de um modo socialmentedesigual109 mas também como uma experiência de níveis distintos, cindidos eaté antagônicos da vida. Em outras palavras, além de o acesso ao conheci-mento e ao prazer ser desigualmente socializado, em função de determinaçõesclassistas, conhecimento e prazer parecem a muitos vivências antagônicas.

A tradição autoritária – ainda que “liberal”, na aparência – da educaçãoformal nas sociedades contemporâneas, por sua vez, reproduz e reforça tanto acisão das diversas classes sociais como esta outra, entre prazer e conhecimento,opondo o último ao primeiro e idolatrando-o somente em sua variante positiva,instrumental,110 acrítica, como qualificação profissional para o mercado, istoé, subordinação do trabalho ao capital.

108 MONTESQUIEU, Charles de Secondar, Baron de. O Gosto, p. 17.109 “Baran e Sweezy enfatizaram esse aspecto: ‘O igualitarismo da ideologia capitalista é uma

de suas forças, que não se deve descartar levianamente. Desde a mais tenra infância as pessoasaprendem por todos os meios concebíveis que todos têm oportunidades iguais e que as de-sigualdades com que se deparam não são o resultado de instituições injustas, mas de seus dotesnaturais superiores ou inferiores’. Portanto, assegurar a manutenção da gritante desigualdade edos privilégios na educação, por exemplo, é algo que ‘se deve buscar indiretamente, garantindoamplos recursos para a subsistência da parte do sistema que atende à oligarquia, deixando, aomesmo tempo, faminta a parte que atende às classes baixas e aos trabalhadores. Isto garante adesigualdade geral que é o coração e a essência de todo o sistema’. Assim, é possível sustentara mitologia da igualdade – pelo menos na forma da proclamada ‘igualdade de oportunidades’ –e perpetuar seu oposto diametral na ordem vigente sob o domínio do capital.” Cf. MÉSZÁROS,Istvan. Para além do capital, pp. 273-4. As citações de Baran e Sweezy, entre aspas simples,são do livro Monopoly Capital.

110 Cf. PARO, Victor Henrique. Administração escolar. Introdução crítica.

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Temos então, no conjunto, além de uma apropriação socialmente desigualdos objetos degustáveis, a reprodução da cisão entre sabor e saber, e aindauma desqualificação das formas de prazer desvinculadas do consumo, bemcomo das variantes não instrumentais do conhecimento. O prazer é, assim,banido para a esfera do “tempo livre” – fora do ensino e fora do trabalho,que, portanto, não são livres – do qual se ocupa, como um agente ou aparelhoclassificador, legislador, (auto) legitimador, indutor, a indústria cultural – oque levou Adorno e Horkheimer, na trilha de Marx, a se questionarem o quão“livre” o “tempo livre” é.

Por outro lado, entendida a educação não somente como formação profis-sional para o mercado de trabalho, mas como o processo através do qual oindivíduo biológico se constitui enquanto sujeito social e cultural, tornando-se apto a se apropriar da parte que quiser ou puder do patrimônio simbólicoproduzido e acumulado pela humanidade, portanto de humanizar-se o maisplenamente possível, surge uma nova série de questões: como educar quemmuitas vezes não tem interesse consciente em nada disso, ou prazer em fazê-lo? Como educar quem foi educado a não gostar de ser educado? Como es-timular a emergência dessa consciência e desse prazer, ou seja, desse gosto?Como fazer para que o aluno perceba que “[...] aqueles que apreciam comgosto as obras do espírito têm uma infinidade de sensações que os demais nãoconhecem”?111 Como contribuir para a emergência de autonomias cognitivassedentas de saborear saberes? Como desenvolver uma pedagogia dialógicacom quem entende liberdade como a faculdade de seguir os impulsos ime-diatos ou de moldar-se conforme os ditames do jogo aparentemente livre domercado? Como escapar “[...] da estreita instrumentalidade e determinaçõesfetichistas das práticas educacionais dominantes, administradas em subordi-nação às necessidades de expansão do capital (que, como já sabemos, precisamser internalizadas pelos indivíduos como ‘suas próprias necessidades’).” 112

Se tomarmos a liberdade de estender o conceito de educação – entendidacomo a própria constituição do sujeito, em sua humanidade degustante, istoé, de sujeito do prazer e do conhecimento, através de sua inserção em umadeterminada cultura – para além dos muros da escola, podemos afirmar que asITCs vêm ocupando cada vez mais um papel destacado nesse processo. Afinal,parece não haver dúvidas que a cultura hegemônica das últimas décadas é achamada cultura de massa.113

111 MONTESQUIEU, Charles de Secondar, Baron de. O Gosto, p. 49.112 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, pp. 48-9.113 Cf. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX; o espírito do tempo. Caso pareça

contraditório o emprego alternado dos termos cultura de massa e indústria cultural, dado queAdorno e Horkheimer cunharam o último precisamente em oposição à noção de uma cultura de

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O objetivo aqui, porém, não foi analisar em detalhe as especificidadesdessa cultura em sua empiria, mas seu fundamento econômico totalitário, bus-cando atualizar a perspectiva crítica fundada por Adorno e Horkheimer na Di-alética do Esclarecimento,114 onde foi cunhado o termo indústria cultural ese começou a problematizar as conseqüências sociais da mercantilização dacultura, sob um viés marxista.

A idéia chave desta problemática está contida no conceito reificação, oqual, além de remeter à objetificação (coisificação) dos sujeitos, também dizrespeito ao ato de se representar e legitimar como natural, necessário (no sen-tido de inevitável), o que é contingente, passível de crítica e transformaçãomediante a práxis humana. O fundamento moderno da reificação (ou das for-mas modernas de reificação), como é sabido, é o fetichismo da mercadoria,expressão material do fetiche do valor, da subordinação da atividade humanaao imperativo cego de auto-expansão do capital.

Aplicando a noção de subsunção do trabalho ao capital à produção sim-bólica, vemos como suas conseqüências políticas são profundas, tanto no quetange a forma e conteúdo das mercadorias em geral, e da mercadoria culturalem particular, quanto na formação do gosto, na educação dos receptores tor-nados consumidores.

É necessário combater esse estado de coisas, mediante a implementação,nas escolas e nas ITCs, de uma verdadeira pedagogia da autonomia, que fa-voreça a sutura do sujeito cindido em produtor e consumidor, de modo queas pessoas, em conjunto, conforme seus próprios gostos conscientes, decidamnão mais o que querem consumir no “tempo livre”, de acordo com a oferta domercado e com seus salários, mas decidam o que querem consumir medianteo controle comum dos meios de produção, das formas de se trabalhar e dotempo.

massa, que supostamente brotaria espontaneamente das massas, acredito que se possa escapardesta armadilha entendendo a cultura de massa como uma expressão equivocada, mas útil,posto que consagrada, para o conjunto da produção da indústria cultural.

114 Cf. ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética doesclarecimento.

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Capítulo 8

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A produção simbólica foi atirada das nuvens macias da superestrutura para aterra dura da estrutura econômica, que passa a determinar sua qualidade e suaquantidade, de acordo com sua propriedade de valorizar valor. Conseqüen-temente, a educação do gosto em escala social é igualmente determinada poresse imperativo. Mas isto não elimina o papel desempenhado por esses pro-dutos em nível superestrutural, isto é, enquanto juízos ideológicos: sua funçãoconservadora, aí, é reificar afetos e mundivisões adequados (ou inofensivos)aos imperativos econômicos e políticos hegemônicos.1

Tendo isto em conta, um estudo de comunicação de matriz marxista nãopode se esquecer, como temos insistido, que:

O marxismo não é uma filosofia de gabinete que pode ser prat-icada independentemente das condições predominantes no movi-mento socialista internacional. Ao contrário, é uma visão de mundoque, desde o início, rejeitou conscientemente a idéia de uma merainterpretação do mundo e se comprometeu com a luta árdua paramodificá-lo: tarefa cuja realização é inconcebível sem a imple-mentação bem-sucedida de estratégias políticas adequadas. Por-tanto, o estado real dos instrumentos estratégicos necessários ao

1 Dado que as ITCs são, em última análise, um elo fundamental na fase contemporânea dereprodução ampliada do capital, a única explicação plausível para a existência de discursos nasITCs que se oponham a este processo é serem elas, como as demais instâncias sociais, atraves-sadas pela luta de classes, expressão maior do conjunto de antagonismos e contradições carac-terísticos do modo de produção capitalista. Em outras palavras, nas ITCs o trabalho tambémfaz valer a sua voz, embora não predominantemente. Além disso, se um discurso ideologica-mente discordante é eficiente midiaticamente enquanto suporte da valorização do valor, ou nãoa prejudica, ele passa, até segunda ordem.

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movimento da classe trabalhadora não pode ser uma questão in-diferente para a teoria marxiana.2

Além disso,

[...] se deve insistir, com Rosa Luxemburgo, que “o socialismo[...] deve ser criado pelas massas, deve ser realizado por todoproletário”.

Evidentemente, tais objetivos não podem ser obtidos sem otrabalho da ideologia emancipadora, através da qual a estrutura demotivação necessária para a transformação de “toda a maneira deser” dos indivíduos sociais é definida e constantemente redefinida.Não de cima, mas por uma atividade própria conscientemente bus-cada.3

Sob este prisma, o debate contemporâneo sobre a comunicação tem diantede si algumas tarefas fundamentais: 1) a disputa política pela democratiza-ção das ITCs e pela não instrumentalização dos cursos de comunicação emum sentido estritamente técnico-profissionalizante; 2) a produção de contra-informação, efetivamente comprometida com os interesses da “classe que vivedo trabalho”, em oposição às práticas correntes do jornalismo hegemônico;3) a propaganda das alternativas direta ou indiretamente voltadas para a con-strução de formas societais contra-hegemônicas, onde quer que se manifestem,seja na política representativa convencional (partidos e sindicatos), nas artes,nos movimentos sociais, nas mídias etc.; 4) a educação, no sentido mais amplodo termo, ou seja, enquanto humanização do indivíduo biológico mediante suainserção em um universo simbólico no qual ele se constitui enquanto sujeito;5) a defesa e a divulgação de toda arte de popular autêntica, autenticidadeesta que, a princípio, infelizmente, só pode ser definida em termos negativose muito gerais: arte não mercantil, vinculada a coletividades orgânicas;4 6) apopularização das diversas variedades das artes eruditas.

2 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 110.3 Idem, p. 329.4 “[...] a criação cultural autêntica depende para sua existência de vida coletiva autêntica,

da vitalidade do grupo social ‘orgânico’, qualquer que seja sua forma (e tais grupos podemabranger da pólis clássica à aldeia camponesa, da comunidade do gueto aos valores comuns deuma aguerrida burguesia pré-revolucionária). O capitalismo sistematicamente dissolve o tecidode todo grupo social coeso, sem exceção, inclusive a sua própria classe dominante e, dessemodo, problematiza a produção estética e a invenção lingüística cuja fonte está na vida grupal.O resultado [...] é a fissão dialética da antiga expressão estética em dois modos, modernismo ecultura de massa, igualmente dissociados da práxis grupal. Ambos os modos atingiram um níveladmirável de virtuosismo técnico; mas é sonhar acordado esperar que qualquer dessas estruturas

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Todas essas tarefas envolvem questões mais pontuais, entre as quais pode-se destacar, não necessariamente nesta ordem: 1. a luta pela inclusão digitaluniversal; 2. a intensificação da militância virtual; 3. o apoio à implementaçãode tvs e rádios públicas; 4. a ênfase (tática e não de princípios) no pluralismode conteúdos;5 5. a popularização da importante distinção conceitual entrecensura e controle social dos conteúdos midiáticos; 6. o incentivo à prolifer-ação de mídias independentes; 7. a proposta de criação de disciplinas voltadasà leitura crítica das ITCs e dos seus produtos, no ensino médio, nas comu-nidades carentes, nos sindicatos e onde mais for possível; 8. um maior em-penho no sentido de se estimular a articulação dos movimentos voltados paraa democratização da comunicação – FNDC, Cris Brasil, Núcleo Piratininga deComunicação, Intervozes etc. – entre si e com os demais “novos” e “velhos”movimentos sociais; 9. a mobilização para a emergência de um movimentomassivo de pressão no sentido de se criar mecanismos legais que asseguremum maior rigor, sob controle social, na cessão e renovação de concessões decanais a empresas privadas.

A importância dessas tarefas aponta no sentido de uma compreensão daimportância decisiva das ITCs enquanto base material para a produção de uma

semióticas possa ser retransformada, por fé, milagre ou mero talento, naquilo que poderia serchamado, na sua forma forte, de arte política, ou, num sentido mais geral, essa cultura autênticae viva da qual virtualmente perdemos a memória, tão rara se tornou a experiência. [...] A únicaprodução cultural autêntica de hoje parece ser aquela que pode recorrer à experiência coletivados bolsões marginais da vida social do sistema mundial: a literatura e blues negros, o rockda classe trabalhadora inglesa, a literatura da mulher, a literatura gay, o roman québécois, aliteratura do Terceiro Mundo; e essa produção é possível apenas até onde tais formas de vidaou solidariedade coletivas não tenham sido totalmente penetradas pelo mercado e pelo sistemade mercadorias. Esse não é necessariamente um prognóstico negativo, a menos que se acreditenum sistema total crescentemente abrangente; o que estilhaça tal sistema – que, inquestion-avelmente, tem sido montado por toda parte desde o desenvolvimento do capitalismo industrial– é, porém, muito precisamente a prática coletiva ou, para pronunciar seu nome tradicional enão mencionável, a luta de classes. No entanto, a relação entre luta de classes e produção cul-tural não é imediata; não se reinventa um acesso à arte política e à produção cultural autênticacrivando o discurso artístico individual de signos políticos e de classe. Em vez disso, a luta declasses e o vagaroso e intermitente desenvolvimento da genuína consciência de classe são elespróprios o processo através do qual um grupo novo e orgânico constitui a si mesmo, por meiodo qual o coletivo abre caminho na atomização reificada (Sartre a chama “serialidade”) da vidasocial capitalista.” Cf. JAMESON, Fredric. Reificação e utopia na cultura de massa. In: AsMarcas do visível, pp. 23-4.

5 Em princípio, a noção pura e simples de “pluralismo” não basta; tudo vale? Não é dissoque se trata aqui, mas de, sob essa palavra de ordem, articular diversos agentes que se opõemao caráter oligopolista das mídias, para o desenvolvimento de ações contra-hegemônicas nestesetor.

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“estrutura de motivação necessária” da “ideologia emancipadora”, cuja eficá-cia depende de sua capacidade de formar e mobilizar os gostos.

Nos termos de Mészáros:

[...] temos de enfrentar a pressão de determinações objetivasque se tornam “internalizadas” – e, portanto, também transfor-madas em motivos, sem por isso perder seu caráter de determi-nações objetivas [...] A internalização desarmante das restriçõesobjetivas encontradas talvez seja a função mais importante da ide-ologia dominante. Ela se realiza – na forma de fusão e confusão[...] de coerção externa com motivação interna – pregando asabedoria acomodadora do “não há alternativa” [...] a necessi-dade brutal de se submeter ao poder da competição coerciva émistificadoramente metamorfoseada em algo que pode reclamarpara si o elevado status de motivação interna consciente e livre-mente adotada, o que nenhum ser racional poderia (ou deveria)questionar mesmo em seus pensamentos, e muito menos a ela seopor ativamente.

Compreensivelmente, portanto, a ideologia socialista de iní-cio não poderia ser outra senão a “contraconsciência”, para sercapaz de negar as práticas materiais e ideológicas dominantes daordem estabelecida. Nas circunstâncias de hegemonia ideológicado capital, as premissas fundamentais da alternativa socialista nãopodem deixar de ser articuladas como uma contraconsciência quedesafia a coercitividade internalizada e como uma rejeição clara– ainda que necessariamente limitada – do poder das restrições,sócio-historicamente contingentes, que são elevadas a um statusabsoluto para negar toda alternativa; e esta rejeição deve se darnão importa quão reais tais restrições possam ser dentro de seuspróprios termos de referência.6

O que Mészáros chama aqui de “coercitividade internalizada” é o quetemos denominado captura do gosto pelo capital. É necessário resgatar ogosto. Para tanto, os meios de produção e irradiação de cultura teriam queser desconectados do imperativo da valorização do valor.

Cumpre, assim, socializar todo o aparato tecnológico e logístico das ITCsem uma lógica operacional diferente daquela calcada na reprodução ampliadado capital. Isso não será obtido sem luta, em meio à qual a ocupação jurídica

6 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, pp. 530-2.

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e ideológica do vasto território das infotelecomunicações é decisiva. Resu-mindo:

1. gostar ou não de algo pressupõe a decodificação intelectual e/ou sen-sível do objeto (seu enquadramento em um código simbólico ou em umpadrão sinestésico, ou ambos) e a experiência de prazer ou desprazerresultante;7

2. essa experiência é sempre o resultado de uma comparação predominan-temente inconsciente deste objeto com outros anteriormente “degusta-dos”;

3. essa experiência, portanto, é fruto dos momentos singulares da históriade vida de cada sujeito particular, embora essa história de vida sejasócio-historicamente – universalmente – determinada;

4. cada configuração / totalidade sócio-histórica é o resultado de um dadoestágio de desenvolvimento de um determinado modo de produção;

5. cada modo de produção produz necessidades específicas, e meios, menosou mais eficazes, de satisfazê-las;

6. só se pode gostar ou não do que existe;8 para que algo exista, são necessáriascertas condições prévias;

7. essas condições são, sempre, os recursos naturais, humanos e tecnológi-cos disponíveis, e, na atualidade, a forma como são operacionalizadossegundo as leis econômicas que regem o modo de produção capitalista;

8. essas leis podem ser resumidas no princípio de “valorização do valor”ou da “reprodução ampliada” do capital;

9. a valorização do valor começa cada um de seus ciclos com a produçãode mais-valia e o encerra com sua realização, mediante a venda da mer-cadoria (cujo valor é superior ao dos seus componentes originais, namedida em que contém trabalho excedente – não pago);

7 “[...] primeiramente, para que uma vontade se forme é necessário que esteja presente umarepresentação de prazer e de desprazer. Em segundo lugar: que uma excitação violenta produzauma sensação de prazer ou de desprazer, é assunto do intelecto interpretador, que, por sinal, namaior parte do tempo, opera sem que o saibamos. Em terceiro lugar: não há prazer, desprazere vontade a não ser nos seres intelectuais; a enorme maioridade dos organismos os ignora.”NIETZCHE, Friedrich. Le gai savoir, p. 173.

8 “[...] acredita-se que a necessidade cria a coisa; mas é a coisa, com freqüência, que criaa necessidade.” Idem ibidem, p. 203. Aqui, as palavras de Nietzsche soam curiosamentemarxistas.

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10. para que haja venda, deve haver demanda solvente;

11. para que haja demanda solvente, é necessário que haja renda, lucro ousalário; renda, lucro e salário são as expressões econômicas das classessociais em conflito;

12. para que haja demanda solvente, é necessário que haja alguma necessi-dade a ser satisfeita; a satisfação das necessidades só importa na medidaem que contribui para a valorização do valor;

13. para haver necessidades, é necessário que haja vida; para haver vidahumana, é necessário que os homens estejam organizados em sociedade,o que pressupõe algum tipo de cultura e, nos estágios mais avançados,de divisão do trabalho;

14. cada tipo de cultura irá modelar as necessidades, para além daquelasestritamente biológicas; a divisão de trabalho, ou de classes, quandoatinge um grau elevado de complexidade, traz consigo uma distribuiçãodesigual do patrimônio cultural, conseqüentemente “necessidades” àsvezes distintas nas distintas classes sociais;

15. a cultura hegemônica das sociedades contemporâneas é ancorada noprincípio da valorização do valor, ou seja, praticamente tudo é permi-tido desde que atenda a esse princípio;

16. a conseqüência atual deste princípio é a abundância de mercadorias ea pauperização crescente das massas; a despeito disso, adequar os gos-tos (“necessidades”), de todas as formas possíveis, aos imperativos dereprodução ampliada do capital é vital para o capitalismo;

17. é esta a principal função das ITCs, seja legitimando o sistema, seja es-timulando o consumo; as ITCs, em sua materialidade, também fornecema base operacional do sistema;

18. os gostos não podem ser totalmente cooptados; e podem ser resgatados;

19. as ITCs são um excelente aparato.

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Capítulo 9

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Sabemos que se faz ciência para se compreender melhor o real, e que oreal não se esgota nas aparências. Tal compreensão, contudo, não podemais ser um fim em si mesma, não pode mais ser meramente contempla-tiva, nem tampouco subordinada ao capital, sob o risco de destruição desuas próprias condições de realização futura, a começar pela própria vidana Terra; urge, assim, que a ciência se torne práxis emancipatória.

Sabemos também que o conhecimento é uma produção social, um patrimônioda humanidade – pois para o seu desenvolvimento não foram e são necessáriossomente os “gênios criadores”, mas gerações de sujeitos anônimos quepermitiram e permitem a esses “gênios” trabalhar. Deve, portanto, servira todos, constituindo-se em instrumento de libertação e melhoria da vidade todos. Este é o fundamento lógico e histórico da parcialidade axiológ-ica aqui defendida. Além disso, se Bourdieu está correto ao afirmar quemesmo o nível técnico da prática científica está impregnado, conscienteou inconscientemente, das teorias que o fundamentam, as quais, por suavez, são desdobramentos lógicos consciente ou inconscientemente desen-volvidos a partir de uma ontologia e de uma concepção da história e dasociedade contidos no campo epistêmico ou paradigmático dos quais sedesdobram, como é que a neutralidade axiológica pode ser efetivamenteneutra, seja na totalidade de uma pesquisa, como propõe em outros termoso positivismo, seja somente em seu desenvolvimento, segundo a soluçãode Weber? No dizer de Mészáros: “A dimensão ideológica envolve tanto

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a formulação dos problemas em si quanto a elaboração de determinadassoluções para eles [...].” 1

Em outras palavras, de um ponto de vista marxista, a ciência deve ser en-tendida como um permanente processo de desvelamento emancipatóriodas contradições opressivas do real-histórico e do real-lógico. Essa con-cepção não é fruto de um imperativo ético abstrato. Ao contrário, o imper-ativo ético concreto da solidariedade socialista é logicamente inferido doponto de vista marxista. Pois o homem, enquanto “ser genérico” (Marx),só se faz plenamente humano sendo o sujeito consciente do seu própriodestino, de sua vida. Para viver, precisa trabalhar, isto é, produzir e re-produzir, a partir de necessidades e projetos, suas condições – materiaise espirituais – de existência. O homem enquanto ser genérico se faz hu-mano, portanto, sendo sujeito consciente do seu trabalho.

Com a complexificação da divisão do trabalho, que acarreta o desenvolvi-mento das necessidades para além daquelas estritamente naturais, a sat-isfação das necessidades de cada um depende cada vez mais do trabalhodos outros. A partir de um dado estágio, ninguém mais é capaz de supriro conjunto de suas necessidades individuais, diretamente, com o própriotrabalho: a satisfação das necessidades de cada um depende, assim, detrabalho social. Como o homem só pode viver em sociedade, o con-junto dos homens só se faz plenamente humano quando todos os homenstornam-se sujeitos conscientes do trabalho social, isto é, o planejam e ex-ecutam conforme suas próprias decisões, conscientes e comuns. Destemodo, negar a um único indivíduo que seja a possibilidade de exercersua humanidade enquanto sujeito consciente, em colaboração com out-ros sujeitos conscientes, negar-lhe o poder de participar conscientementeda definição da forma e dos objetivos desse trabalho social, é negar-lhea humanidade de que é potencialmente possuidor, transformando-o desujeito em objeto de um mecanismo estranho e opressor, que atende at-ualmente pelo eufemismo “mercado”. É por isso que Marx afirmou quea humanidade ainda vive na pré-história.

Entretanto, ao tomar conta do mundo, o “mercado”, isto é, o capital, aospoucos transfere sua composição classista original, ainda que sob formasdiversas, para o resto do planeta, convertendo, sob matizes variados, to-das as classes hegemônicas em burguesia, e todas as classes exploradasem proletariado (muitas vezes sob a condição de “exército de reserva”),

1 MÉSZÁROS, Istvan. Filosofia, ideologia e ciência social, p. 52. Nesta mesma obra, vera contundente crítica de Mészáros a Weber.

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globalizando assim as contradições de classe que lhe são inerentes, e isto,para além das diferenças étnicas, culturais etc.. É isso, aliás, o que fi-nalmente permite pensar na realização das condições necessárias para aunificação internacional do trabalho em sua luta contra o capital.

A comunicação, na teoria e na prática, tem uma importante tarefa a de-sempenhar nessa luta, tendo em conta o seu não desprezível papel (at-ual e potencial) na formação dos gostos e desgostos, sobretudo diante dapercepção de que as formas mais brutais de desgosto – fome, violência,carestia etc. – são intimamente dependentes da captura dos gostos, hege-monicamente efetuada pelas ITCs a serviço do capital, o que remonta àrelevância teórica e política de nosso objeto de pesquisa.

Há ainda quem diga que não há alternativa ao capital, e não são poucos. Écerto que não há nenhuma alternativa certa. Mas é igualmente certo que acolaboração entre as pessoas é uma marca tão forte na história quanto acompetição e o conflito, e, mesmo que assim não fosse, a exigência éticada solidariedade socialista – que, para realizar-se, parte do movimentodialético que articula a colaboração de classe em meio ao conflito / lutade classes – não se sustenta somente em termos de imperativos políticose morais externos ao debate epistemológico, mas de questões internas –pois, como visto, essas questões interferem, e isso é inevitável, na formu-lação do objeto, na orientação metodológica etc. Como lembra correta-mente Ilyenkov: “A solução do problema corresponde à sua formulação.”2

A exigência ética da solidariedade socialista, além disso, é realista, porser cultivada pelo próprio individualismo reinante sob o regime do cap-ital. Pois dado que o indivíduo não quer ter sua individualidade dimin-uída ou destruída, fatalmente deve concluir que a solidariedade é a cul-minância racional do individualismo, sua realização radical, enquanto oegoísmo é o estágio infantil da individualidade – é ignorância, ressenti-mento ou covardia. Porque, ainda que houvesse uma “natureza humana”supra-histórica e essencialmente egoísta, conforme a posição de Hobbese muitos outros, o imperativo da vida em sociedade e o atual estadode desenvolvimento da ciência e das tecnologias (em termos positivos),bem como os riscos entrópicos que o capitalismo produz em escala cadavez maior (em termos negativos), tornam o socialismo enquanto sistemapolítico e a solidariedade enquanto princípio ético perspectivas racionais e

2 Cf. ILYENKOV. Dialectical Logic. Documento eletrônico:http://marx.org/archive/ilyenkov/works/essays/index.htm. Acesso em: set. 2006.

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mesmo necessárias, não só para uma maior racionalidade econômica emtermos gerais, mas igualmente para uma maior satisfação de prazeres eambições radicalmente individuais de sujeitos realistas que tenham ultra-passado o egoísmo infantil, ressentido e covarde da consciência burguesaespontânea.

Se isso está correto, não se trata, pois, da defesa de imperativos éticos quenada tenham a ver com a ciência, mas de uma encruzilhada histórica di-ante da qual a ciência e, portanto, o debate epistemológico, geral e em co-municação, não deveria se abster de ao menos considerar com seriedade.

Essa idéia encontra-se sintetizada no seguinte desafio proposto por EmirSader:

Trata-se, pelo trabalho intelectual, de decifrar o enigma domundo contemporâneo entre uma capacidade tecnológica quepermite aos homens fazer coisas cada vez mais incríveis e umagrande massa da humanidade que não consegue ter acesso se-quer a bens básicos para sua subsistência. Decifrar o enigmaentre o potencial de transformações do mundo que a ciênciae a tecnologia colocam à disposição da humanidade e o senti-mento de impotência total que as pessoas sentem.3

A comunicação poderia contribuir positivamente para reverter esse senti-mento de impotência, ou ao menos para acelerar essa reversão tão necessária,pois uma transformação profunda da sociedade é impensável sem a mo-bilização das massas, sem que elas tomem gosto por essa possibilidade. Eas massas só podem ser mobilizadas se for possível demonstrar – racional-mente e emocionalmente – que uma tal transformação é desejável e viável.

O universo discursivo das ITCs, porém, não somente desconsidera a per-spectiva socialista, como também o risco de entropia sociometabólica aqual o capital nos conduz, limitando-se a dramatizar, quando o faz, ape-nas um de seus aspectos, o ecológico, e mesmo assim sem ir a fundoem suas causas: o problema ecológico só pode ser resolvido em conjuntocom o problema social, isto é, com o problema econômico de fundo, asubordinação do trabalho ao capital e seu imperativo cego de reproduçãoampliada.

É preciso que as pessoas saibam disso e sintam essa urgência, é precisoque tomem conhecimento de que há condições técnicas e materiais para

3 SADER, Emir. Intelectuais na globalização. Jornal do Brasil. Sábado, 19 / 02 / 2005.Documento eletrônico: http://jbonline.terra.com.br. Acesso em: fev. 2005.

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se resolver a maior parte dos males que afligem a humanidade e a vidano planeta em geral. A realidade atual, em si mesma, contribui para issonegativamente, na medida em que se torna cada vez mais óbvia a inviabil-idade insuportável do modelo vigente. Mas isso não basta. E é aí que semostra mais uma vez a dimensão política do gosto e o importante papelmediador da comunicação.

Por outro lado, se é um equívoco menosprezar a potência conservadoraou revolucionária do fator ideológico, por outro não devemos superesti-mar essas potências a despeito de suas bases materiais. Tendo isto emconta, e considerando a viabilidade da emergência de um movimento demassas revolucionário, José Paulo Netto4 vislumbra que ele “catalisaráprotagonistas que haverão de se confrontar [...] com algo mais que repre-sentações simbólicas” e “colocará em cena exigências sociopolíticas queobrigarão diretamente ao reconhecimento dos referentes materiais das es-truturas discursivas”,5 bem como deverá provocar a mudança de posiçãode “um segmento expressivo de intelectuais pós-modernos”, que atrav-essará “a zona que separa a produção do discurso da transformação davida”.

Em suma, a orientação epistemológica da presente pesquisa entende queuma epistemologia marxista coerente, rigorosa e politicamente revolu-cionária deveria consistir na suprasunção dialética6 do que seriam, con-forme Eagleton,7 duas epistemologias de matriz marxista distintas. Aprimeira parte de uma concepção do marxismo entendido como “a análisecientífica das formações sociais”;8 na segunda, o marxismo seria pensadocomo “idéias em luta ativa”.9 Eagleton argumenta que essas duas con-cepções do marxismo conduzem a duas epistemologias diferentes. Aprimeira seria mais contemplativa e “científica”, no sentido usual dotermo, a ciência então entendida como a correspondência o mais ade-quada possível entre a consciência e o objeto. Já na segunda, “a con-

4 PAULO NETTO, José. Georg Lukács: um exílio na pós-modernidade. In: Pinassi e Lessa[orgs.]. Lukács e a atualidade do marxismo, pp. 100-1.

5 Nesse ponto, o autor insere uma nota de rodapé que vale a pena reproduzir: “Com suabritânica ironia, T. Eagleton (...) observou que ‘(...) nem os financistas nem os semiólogos têmgrandes simpatias pelos referentes materiais’.”

6 Do alemão aufhebung – suspender, no triplo sentido de conservar, negar, elevar; o termoé por vezes traduzida como “superação dialética”.

7 EAGLETON, Terry. A Ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental, in: ZIZEK,Slavoj (org.). Um Mapa da ideologia, p. 179.

8 Idem, ibidem.9 Idem, ibidem.

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sciência é [...] parte da realidade social, uma força dinâmica de sua trans-formação potencial.” 10 Isso, todavia, não pode significar que as “idéiasem luta ativa”, enquanto “força dinâmica” de “transformação potencial”da “realidade social”, possam prescindir de uma “máxima acuidade pos-sível de cognição”, isto é, de cientificidade. Esta, por sua vez, não podeser meramente contemplativa. Veremos agora mais detidamente comonasceu e se consolidou essa posição.

9.1 A História de uma lógica revolucionária

Considerações como as desenvolvidas no capítulo anterior, por si sós, nãoresolvem os problemas lógicos da prática científica, mas estes só podemser resolvidos, e ainda assim sempre parcialmente, através da autocríticae do próprio debate entre os pares, pois não faz sentido uma exposiçãoparticular desdobrar-se em um metadiscurso que tente justificar o quãológica ela mesma é. Sua logicidade geral – isto é, sua coerência interna eseu poder explicativo, desvelador, em relação ao objeto estudado – deveráemergir da própria exposição. Além disso, a logicidade metodológica(ou seja, a coerência interna e o poder explicativo de uma estratégia depesquisa e de seus momentos / procedimentos articulados) não pode serapresentada, a não ser em termos muito genéricos, de modo descritivo eesquemático na forma didática de uma “fórmula científica”.

Por essas razões,11 ao invés de se tentar demonstrar o quão lógica a pre-sente pesquisa é, optou-se por situá-la no contexto mais amplo do debateepistemológico em torno da própria noção do que venha a ser “lógica”.Essa advertência é necessária, pois, além do fato de pouco se tocar noassunto, ao menos no campo da comunicação, “lógica” é um conceitocuja transparência deve ser desmistificada, para o seu próprio bem. Destemodo, mesmo considerando que discutir mais detidamente o que seria “A”lógica extrapole os objetivos deste trabalho, cabe desfazer a transparênciado conceito e, além disso, precisar em que sentido está sendo utilizado.12

10 Idem, ibidem.11 E também pelo fato desta pesquisa estar originalmente vinculada institucionalmente a uma

linha de pesquisa que tem a epistemologia como um tópico central.12 Na maioria das vezes, os adjetivos lógico ou científico são empregados sem maiores es-

clarecimentos como sinônimos de verdadeiro. Mas o assunto é mais complexo. Hegel, por ex-emplo, propõe que a lógica seja dividida em três seções ou aspectos: 1. o abstrato ou racional; 2.o dialético ou que faz sentido negativamente (“negatively reasonable”, nos termos de Ilyenkov);e 3. o especulativo ou que faz sentido positivamente (“positively reasonable”). Ilyenkov faz a

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Tomemos por referência o excelente Dialectical Logic, de Ilyenkov, quetraça uma história crítica da lógica ao longo do desenvolvimento da ciên-cia e da filosofia modernas, de Descartes a meados do século XX, comdestaque para a obra de Marx. A seguinte passagem desta obra nosfornece um excelente ponto de partida para pensarmos o assunto:

[...] o que é hoje chamado de lógica são doutrinas quediferem consideravelmente em sua compreensão dos limitesdessa ciência. Cada uma delas, é claro, não só se confere otítulo como o direito de ser considerada o único estágio mod-erno no desenvolvimento mundial do pensamento lógico.13

Ou seja, “lógica” é um conceito polissêmico. Ilyenkov, em uma perspec-tiva histórica, demonstra a validade dessa assertiva cotejando diferentesacepções do que viria a ser a lógica, concebidas por ilustres representantesda filosofia clássica alemã. Por exemplo, para Kant, “a esfera da lógica édelimitada com bastante precisão: só lhe compete fornecer uma exaustivaexposição e uma prova estrita das regras formais de todo pensamento.”14 Já para Schelling, a lógica não seria “um esquema para produzir con-hecimento”, mas um meio para comunicá-lo “através de um sistema determos rigorosamente definidos e não-contraditórios”. 15

Com Hegel, a matéria de estudo da lógica é radicalmente redimension-ada. Não consiste mais nas regras formais de todo o pensamento, nemem um sistema terminológico rigoroso, mas na “história da ciência e datécnica16 coletivamente criadas pelas pessoas, um processo praticamenteindependente da vontade e da consciência dos indivíduos separados, em-bora concebido a cada uma de suas etapas precisamente na atividade con-sciente dos indivíduos.”17 A isto, Ilyenkov acrescenta:

Este processo, de acordo com Hegel, também envolvia,como uma fase, o ato de conceber o pensamento na atividade

ressalva de que para Hegel esses três aspectos não devem ser entendidos como partes sepa-radas da lógica, mas como momentos que compõem “qualquer conceito ou verdade em geral”.(HEGEL apud ILYENKOV, op. cit.). Temos ainda a lógica de inspiração matemática, a clássicasilogística aristotélica e outras acepções possíveis, como veremos agora.

13 ILYENKOV. Dialectical Logic. Documento eletrônico:http://marx.org/archive/ilyenkov/works/essays/index.htm. Acesso em: set. 2006.

14 Idem ibidem.15 Idem ibidem.16 Grifos de Ilyenkov.17 Idem ibidem.

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objetiva, e através da atividade na forma de coisas e even-tos externos à consciência. Nisto, nos termos de Lenin, ele“chegou bem perto do materialismo”.18

Ainda na chave hegeliana, categorias lógicas são “etapas no processo dediferenciação do mundo, ou seja, de seu conhecimento, e pontos nodaisauxiliando a conhecê-lo e dominá-lo.” 19

As anotações de Lenin (citadas por Ilyenkov) a este respeito são bastanteinstrutivas. Nestas, lê-se que “na seqüência geral de desenvolvimento dascategorias lógicas”, antes de tudo o mais surgem as “impressões”; entãosão desenvolvidos os conceitos de qualidade e quantidade. Em seguida,emergem as noções de identidade, diferença, grau, essência versus fenô-meno e causalidade. Esses “momentos [...] da cognição se movem [...]do sujeito ao objeto, sendo testados na prática e chegando através desteteste à verdade.”

Temos então que:

Categorias lógicas são estágios (passos) na cognição, de-senvolvendo o objeto em sua necessidade, na seqüência naturaldas fases de sua própria formação, e de modo algum dispos-itivos técnicos do homem impostos ao tema, como se fossemum balde de brinquedo com o qual as crianças fazem bolos deareia.20

A lógica, assim, seria não um conjunto de regras formais do pensamento(aplicáveis especulativamente ao bel prazer do pensador), nem um sis-tema de classificação terminológica rigoroso para a comunicação do pen-samento, mas a ciência cujo objeto é o próprio pensamento em sua re-lação com o mundo e consigo mesmo, o que envolve a percepção e aprática. A lógica seria, portanto, a ciência do conhecimento, e a dialética,seu método, a expressão formal ou metódica do desenvolvimento do con-hecimento, podendo portanto ser entendida como o bom método do pen-samento sobre o pensamento em seu processo de conhecer o real, queenvolve a si próprio mas não se esgota em si.

Uma definição complementar de dialética:18 Idem ibidem. Acrescentamos que o conceito de práxis já está contido aí, em germe.19 Idem ibidem.20 Idem ibidem.

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A Comunicação e o Gosto 211

A dialética, de acordo com Hegel, era a forma (ou métodoou esquema) do pensamento que envolvia tanto o processo deelucidar contradições quanto o de solucioná-las concretamenteno corpus de um estágio mais elevado e profundo de conheci-mento do mesmo objeto, rumo a uma investigação da essênciado assunto.21

Mas como aplicar este método? Caio Prado Jr.22 ensina que o que diferen-cia essencialmente o pensamento dialético do metafísico é, além da maiorimportância atribuída ao movimento e ao devir do que ao ser, a anteriori-dade determinante da categoria relação para com a identidade. Em outraspalavras, o que é, é constituído em seu devir e em suas múltiplas relaçõescom o que não é. Além disso, no processo (movimento) de conhecimento,a relação do sujeito com a essência do objeto é sempre mediada por suaaparência. Nos termos de Hegel: “Eu tenho a certeza por meio de umoutro, a saber: da Coisa; e essa está igualmente na certeza mediante umoutro, a saber, mediante o Eu.” 23 Deste modo, “nosso objeto é [...] osilogismo que tem por extremos o interior das coisas e o entendimento,e por meio termo, o fenômeno. Pois o movimento desse silogismo dáa ulterior determinação daquilo que o entendimento divisa através dessemeio termo [...]”24 Essa “determinação ulterior” que o “entendimento”apenas “divisa através desse meio termo” é o conceito, e “o que importano estudo da ciência é assumir o esforço tenso do conceito”.25

Além disso, a compreensão da relação entre objetos diferentes é sempremediada por um terceiro elemento que não é nem o objeto A nem o objetoB, mas algo que lhes é comum. Ilyenkov ilustra esse processo da seguintemaneira:

Não faz sentido comparar [...] o gosto de um bife e a di-agonal de um quadrado [...] Quando queremos estabelecer al-gum tipo de relação entre dois objetos, nunca comparamos asqualidades “específicas” que fazem de um objeto a “sílaba A”e de outro uma “mesa”, um “bife” ou um “quadrado”, massomente aquelas propriedades que expressam um “terceiro”algo, diferente de sua existência como coisas enumeradas. As

21 Idem ibidem.22 Cf. PRADO Jr. Caio. Dialética do Conhecimento.23 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Parte I. Petrópolis-RJ: Vozes, 1997, p. 74.24 Idem ibidem, p. 103.25 Idem ibidem, p. 53.

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coisas comparadas são vistas como diferentes modificaçõesdesta “terceira” propriedade comum a todas elas [...] Então,se não há um “terceiro” na natureza de duas coisas, comuma ambas, mesmo as diferenças entre elas se tornam sem sen-tido.26

Em que medida essas reflexões nos podem ser úteis? Na medida em queesclarecem alguns aspectos básicos da lógica dialética,27 de grande im-portância para um estudo do gosto. Vejamos: a dialética considera operceber e a prática como momentos do conhecimento; estabelece a an-terioridade das noções de relação e de movimento para com a noção deidentidade; demonstra que a relação entre essência e entendimento é me-diada pelo fenômeno, pela aparência. Em uma primeira aproximação,pensemos o gosto nessa chave:28 para começar, o gosto é usualmentetido como algo relacionado com a “personalidade”, isto é, com a identi-dade mais íntima de cada indivíduo, como se fosse algo inato, acabado,fechado. Na realidade, é o contrário que ocorre, isto é, essa “personali-dade” só pode ser entendida através do que a relaciona – ou não – com oque (quem) ela não é, com algum objeto (alguém) externo a ela, porqueé o conjunto de suas relações com o que (quem) ela não é que a con-stitui. Essas relações, além de dinâmicas, são extremamente complexas,podendo mesmo ser de apreço ou de desapreço com o mesmo objeto emdiferentes momentos; nesse caso, cada momento é um elemento mediadorda relação constitutiva da identidade (já que falamos nisso).

Como sabemos, o próprio conceito gosto traz em sua origem etimológicauma cisão interna, entre as noções de sabor e saber, tornados estranhosum ao outro. Além disso, só pode ser compreendido à luz da relaçãodo sujeito (cindido em sujeito sensível e cognoscente) com o objeto de-gustável, relação esta mediada por um “novo” terceiro elemento, aqueleprecisamente que cria no primeiro a propensão para o segundo, e que criao segundo para o primeiro: a “camada geo-tecno-social” onde ambos, su-jeito e objeto, se situam, base material da cultura mediante a qual surgemas disposições do primeiro e a existência do último, cultura esta que, porsua vez, só é realisticamente compreensível à luz de certas condições so-ciohistóricas de emergência e continuidade; estas envolvem um complexode fatores, com destaque, em termos históricos, para as determinações

26 Ilyenkov, op. cit.27 Das categorias “totalidade” e “contradição” trataremos mais adiante.28 Essa “dialética do gosto” será retomada e desenvolvida no capítulo 5.

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da troca ou do uso, dialeticamente articuladas, com a predominância daprimeira a partir da hegemonia do capital, sendo o uso subordinado à trocamediado pelo gosto anteriormente produzido e pela reprodução ou trans-formação das condições técnicas de produzi-lo (ao gosto e ao objeto), oque envolve uma série infindável de relações dinâmicas e, com freqüên-cia, antagônicas e contraditórias. O mesmo se dá com o desenvolvimentodos conceitos – que só podem ser adequadamente compreendidos à luz desua relação muitas vezes antagônica e contraditória com o universo con-ceitual no qual fazem sentido e com o real extraconceitual, bem comocom outros conceitos específicos, e, é claro, consigo mesmos. Em todasessas relações, a mediação de um terceiro elemento é sempre necessáriapara uma adequada compreensão de sua natureza / identidade dinâmicae para a superação de eventuais antinomias internas ou externas (de umconceito consigo mesmo, entre um conceito e outro conceito, entre umconceito e um universo conceitual ou entre conceitos e fatores extracon-ceituais).

Essa “lei” dialética se encontra implícita na teoria do valor de Marx, 29

na qual ele identifica o trabalho como sendo essa “terceira propriedade”comum a duas coisas diferentes – casa e cama, no exemplo de O Capital–, na ausência do qual não seria possível comensurá-las.

Nesse ponto, nos deparamos com uma questão metodológica decisiva,essencial para que o método dialético seja fértil e realista, para que nãose perca em especulações vazias: a que “terceira propriedade” recorrer,dada a infinidade de escolhas possíveis? No caso de Marx, por que o tra-balho, ao invés de outras mediações concebíveis, como a materialidadede ambas, a “substância” madeira, que é comum a mesa e cama, a “pro-priedade” de ambas serem úteis ou o que for? Porque o trabalho é, em suafacticidade, a condição última, sem a qual há madeira, mas não cama oucasa, portanto nada a ser usado. Porque o trabalho é a interação humanateleológica com a natureza, visando à criação de um valor de uso, ou seja,ele tem como pressupostos o objetivo subjetivamente elaborado, que é ouso em potência, o material, que é a madeira, e a ação necessária paraconverter o material em algo efetivamente útil.

Isso responde à questão metodológica da hierarquia das mediações (quesão potencialmente infinitas), a ser estabelecida no processo de produção

29 “Ao desvendar o segredo da auto-expansão do valor, ou seja, o segredo da produção eda acumulação de mais-valia, no Capital, Marx empregou (e não por acaso, mas deliberada econscientemente) o conjunto da terminologia da lógica hegeliana [...] e de sua concepção dopensamento.” Cf. ILYENKOV. Op. Cit.

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do conhecimento: sua ordem de necessidade para que algo exista e sejacompreensível.

Bem antes de desenvolver sua teoria do valor, porém, Marx se viu diantede um dilema teórico, de cuja resolução dependeria toda a evolução desua obra ulterior, a saber: como conciliar em uma síntese superior a di-alética “idealista objetiva” de Hegel com a crítica que lhe era dirigida pelomaterialismo “contemplativo” de Feuerbach?30

Sabemos que desde Engels,31 esse tópico tem sido exaustivamente vistoe revisto, o que torna desnecessário retomá-lo mais exaustivamente. Nãoobstante, é conveniente abordá-lo agora, de modo breve, já que teriasido a partir de sua confrontação com a crítica de Feuerbach a Hegel,32

que Marx introduz a categoria de práxis, cuja importância seminal se-ria enriquecer o pensamento materialista, permitindo que se efetuasseum resgate logicamente coerente das noções de totalidade e de racionali-dade histórica, categorias fundamentais da dialética hegeliana, ao mesmotempo em que fornecia a essas categorias uma sólida base materialista,depurando-as dos exageros e fantasias advindos de seu caráter abstrata-mente especulativo, bem como de suas conseqüências politicamente con-ciliatórias e conservadoras.

A categoria de práxis, enquanto “mediação material ativa”,33 dá assimnova vida ao método de Hegel, articulando-o com um materialismo agoranão mais contemplativo, como o de Feuerbach, mas que ao mesmo tempose mantém fiel à correta crítica deste último ao lado idealista e especu-lativo da dialética hegeliana. É por isso que Sampaio e Celso Fredericoargumentam, com elegância, que:

Nem Hegel, do fundo obscuro de suas metamorfoses ideais,nem Feuerbach, da superfície clara de suas constatações em-píricas, jamais poderiam alcançar a noção de uma mediaçãomaterial ativa, como a contida no conceito revolucionário de

30 Não pretendemos aqui dizer que Marx tenha formulado a questão precisamente nessestermos, somente que é disso que se tratou. Sampaio e Celso Frederico, por exemplo, situam na“contestação feuerbachiana a Hegel”, “uma encruzilhada decisiva na evolução do pensamentomarxiano”, a partir da qual Marx iria desenvolver o conceito de práxis. Cf. SAMPAIO, Bene-dicto Arthur e Celso Frederico. Dialética e materialismo: Marx entre Hegel e Feuerbach, p.57.

31 Cf. ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.32 Que consistia, entre outras coisas, em Feuerbach negar o valor explicativo das “mediações”

especulativas de Hegel.33 Idem, ibidem.

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práxis. E é justamente aí que se vai introduzir o núcleo racionalde uma dialética “desmistificada”, que se vai propor um mate-rialismo racional [...]34

Marx, a partir deste movimento, pensando “a totalidade hegeliana nomundo da matéria”, terá estabelecido a base de “um novo materialismo,não mais empírico como o precedente, mas dialético.” 35 E revolu-cionário.

9.2 Diretrizes para uma crítica da economia políticada comunicação

Podemos agora, sem desconsiderar eventuais contribuições de outras ma-trizes teóricas, começar a demonstrar de que modo uma crítica da econo-mia política da comunicação pode auxiliar na elaboração de uma análisemais consistente do papel das ITCs na perpetuação da fome de comida,afeto e sentido que geram tanto desgosto, apesar do espetáculo. Ao mesmotempo, estaremos também em condições de pensar sua contribuição po-tencial no sentido da superação dessa miséria intolerável, estúpida e con-tingente, razão pela qual uma tal superação é historicamente concebível –mas só o é de modo realista para além do capital.

Diante dessas premissas, surge a questão metodológica “de fundo” dapresente pesquisa, que só agora pode ser adequadamente formulada: deque modo o marxismo, em especial a dialética materialista contida nopensamento econômico maduro de Marx, pode ser útil para se pensar ogosto e a comunicação na atualidade?

Em primeiro lugar, considerando o gigantismo das ITCs à luz da lei di-alética da transformação de mudanças quantitativas em qualitativas. Comodizia Debord, “o espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação quese toma imagem.”36

O capital se tornar imagem significa dizer que a espetacularização midiáticatornou-se uma das metamorfoses necessárias do capital em seu processode reprodução ampliada, a tal ponto que hoje, em geral, se investe muito

34 Idem, ibidem.35 Idem ibidem, pp. 59-60.36 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, tese 34. Documento eletrônico:

http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540/. Acesso em: jun. 2005.

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mais na imagem dos produtos e em sua difusão do que em sua produção.Essa idéia é amplamente confirmada pelos seguintes dados e argumentosde Dowbor:

No final das contas, considerando que uma considerávelalíquota do preço da maioria dos produtos anunciados e con-sumidos, com freqüência a maior parte do seu preço, deve-seaos custos com publicidade, no final das contas quem pagapelas atrações “gratuitas” é o conjunto dos consumidores dosprodutos anunciados nos intervalos comerciais, classificadosou sejam quais forem os espaços publicitários da mídia emquestão. Um exemplo concreto, já ‘clássico’, nos é fornecidopela Nike, que vende por preços que oscilam entre 70 e 130dólares um par de tênis cujo custo físico de produção é da or-dem de 10 dólares. Perguntada como conseguia vender a 100dólares um produto de menos de 10 dólares, a Nike, que ape-nas coordena o ciclo econômico, e não produz tênis nenhum,respondeu simplesmente: ‘Nós não vendemos tênis, vendemosemoções’. A Nike gasta fortunas com publicidade, o que per-mite associar o tênis produzido por jovens mal-pagas na Ásia,com os poderosos músculos de Michael Jordan. [...]

A publicidade deixa, assim, de ter uma dimensão domi-nantemente informativa. Torna-se um elemento de valorizaçãocultural, de reconstrução de identidade para uma sociedade deidentidade cada vez mais perdida. O elemento cultural deixade ser superestrutural e torna-se o processo central da repro-dução econômica, o locus privilegiado de geração de lucro.37

Para entendermos isto melhor, devemos partir de três dados empíricos:a escala operacional global das ITCs, a velocidade que imprimem aosfluxos informacionais e materiais, e sua pregnância social inédita. Essestrês fatores, em conjunto, por sua vez, geram dois efeitos principais:1) ganho de escala, devido tanto à minimização do custo unitário dasmercadorias, resultante não só da escala operacional, mas também dainformatização de grande parte dos processos produtivos – alterando acomposição orgânica do capital no sentido previsto por Marx, de substi-tuição crescente de trabalho vivo por trabalho morto – e da diminuição

37 DOWBOR, Ladislau. Economia da Comunicação. In Dowbor, Ladislau et al (orgs.):Desafios da Comunicação, pp. 50-51. O importante argumento contido na última sentençaserá retomado no capítulo 5.

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do tempo das rotações do capital, possibilitada pela aceleração dos fluxosinformacionais e materiais; e 2) posição hegemônica das ITCs em meioàs demais instâncias de reprodução ideológica (religião, escola etc.)38 ede formação dos gostos.

Relacionando então o gigantismo das ITCs e de seus efeitos com o gostoenquanto expressão e medida dos valores de uso, temos a tendência dasubordinação do valor de uso ao valor de troca levada a um tal extremoque o gosto torna-se mais do que nunca refém do imperativo da repro-dução ampliada do capital. Nos termos de Mészáros:

As mais variadas qualidades do valor de uso devem sersubsumidas a quantidades determinadas de valor de troca, antesque possam adquirir legitimidade própria para serem produzi-das; e devem constantemente provar a sua viabilidade – nãoem relação às necessidades humanas qualitativamente difer-entes, mas sob os critérios estritamente quantitativos da trocade mercadorias.39

Sem utilizar diretamente o conceito gosto, Marx, em diversas passagensde sua obra, antecipa essa tendência, que consiste mesmo na contradiçãocentral do capitalismo. Há uma formulação do Capítulo VI (inédito) doCapital na qual isso fica particularmente claro. Nela, Marx destaca a im-portância da escala da produção e do imperativo da reprodução ampliadano processo em meio ao qual o caráter de mercadoria, “como forma uni-versalmente necessária do produto”, faz a propriedade deste último desatisfazer necessidades humanas aparecer “como algo inteiramente fortu-ito, indiferente e não essencial”:

38 Aqui, empregamos à noção de ideologia em uma acepção neutra, que corresponde a umavisão de mundo não-científica, mas não necessariamente “errada”, com ampla penetração pop-ular. É diferente do emprego que Marx e Engels, na maioria das vezes, faziam do termo, emuma acepção negativa. Nesta, só seriam ideológicas especificamente aquelas idéias que susten-tassem e legitimassem a dominação classista, direta ou indiretamente, mas não necessariamenteo conjunto das idéias dominantes de uma época. Assim, ao atribuirmos o adjetivo “ideológico”,em sua acepção negativa, a um pensamento dado, estamos considerando que este pensamento deum modo ou de outro legitima a subordinação do trabalho ao capital. Este ponto será estudadomais detidamente no capítulo 5 deste trabalho. Para um desenvolvimento dessa problemática,cf. LARRAIN, Jorge. Stuart Hall and the marxist concept of ideology. In: Stuart Hall: Di-alogues in Cultural Studies. Ver também SCHNEIDER, Marco. Mídia, Política e Ideologia.In: Revista Fronteiras, pp. 54-61.

39 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, pp. 946-7.

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Este produto massivo terá que se realizar como valor detroca, sofrer a metamorfose da mercadoria não só como umanecessidade para a subsistência do produtor que produz comocapitalista, mas também como necessidade para a renovação econtinuidade do próprio processo.40

A questão da escala é importante para compreendermos a amplitude ea intensidade das mudanças em curso. Numa produção em pequena es-cala, pode-se perfeitamente conceber a prioridade do consumo sobre aprodução, ou do valor de uso sobre o valor de troca, desde que, claro, aprodução seja econômica e tecnicamente viável. É o que acontecia nasoficinas de artesãos medievais e mesmo nos primórdios do capitalismo.Ocorre que a partir do momento em que a escala operacional se agiganta,isto começa a se inverter. Emblemático, nesse sentido, é o momentofordista, quando eram fabricadas milhões de cópias do mesmo modelode automóvel. Percebeu-se, em seguida, que pequenas variações seriampossíveis, e o modelo único foi superado por uma variedade de modelosque, não obstante, como qualquer criança poderia perceber, no dizer deAdorno e Horkheimer,41 eram praticamente os mesmos. O mesmo se deuno conjunto da produção capitalista, seja de roupas, alimentos, filmes oucanções.42

Hoje, esse processo se globalizou, atingindo inclusive “produtos” queaté bem pouco tempo atrás eram caracteristicamente regionais, marca-dos mesmo por um forte bairrismo, como os times de futebol, alguns dosquais chegam a conquistar torcedores de outras cidades e mesmo países.Não é necessário dizer que isto ocorre precisamente com aqueles clubesque mais investem capital em jogadores, os quais se convertem em im-agem espetacular. Esses jogadores, assim, atuam como uma mediaçãonecessária do capital na etapa espetacular de suas metamorfoses.

Tudo isso ocorre porque a necessidade do capital de crescer, a despeitodas conseqüências catastróficas já tornadas óbvias deste crescimento, impõe-

40 MARX, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultados do processo de produçãoimediata. São Paulo: Moraes, s/data, p. 145.

41 Cf. ADORNO, Theodor W. e Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1985.

42 Cf. SCHNEIDER, Marco. 2003. Música e capital midiático: introdução auma crítica da economia política do gosto. Rio de Janeiro, RJ. Dissertação (Mestradoem Comunicação e Cultura). Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio deJaneiro, e A Sociogênese do capital midiático através da música. Documento eletrônico:http://www.cubaliteraria.com/premio/contracorriente/esp/premio_7.htm. Acesso em: jun.2006.

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se ao conjunto da humanidade com uma tal força que os gostos, maleáveiscomo as subjetividades individuais nas quais se formam e que são emparte por eles formadas, devem se adaptar a ela e não o contrário. Ouseja, o capital se converteu em uma potência universal, que se confrontacom cada indivíduo numa disparidade de forças absurda.

Por outro lado, uma mudança nos gostos seria um duro golpe no capital,se esta mudança vier associada a uma tomada de consciência de classe43

por parte dos produtores. Já na esfera do consumo, uma paralisia deliber-ada e calculada nas compras ou uma reorientação consciente certamenteprovocariam abalos consideráveis no sistema. Os gostos, entretanto, sópoderiam mudar em escala substantiva com o auxílio das ITCs. Para isso,porém, estas têm que deixar de ser um instrumento do capital.

Uma outra contribuição do marxismo nesse sentido está no fato de omarxismo trazer em seu bojo uma concepção da ciência (uma episte-mologia), da sociedade e da história (uma ontologia) fundamentalmentedinâmicas, realistas e rigorosamente lógicas, não se limitando a buscar“compreender” o real histórico – incluindo as superestruturas – comouma atividade que tem seu fim em si mesma, mas articulando teoria eprática em uma práxis, calcada em uma parcialidade axiológica críticapara com o presente e generosa para com o futuro. Isto torna o marxismonão só atraente como necessário em uma época catastrófica, sobretudose considerarmos nosso lugar de fala, a América Latina, o Brasil e, maisespecificamente, o eixo Rio-São Paulo. Aqui, hoje, talvez não interessemtanto, em si mesmas, as sutilezas volitivas das ações sociais, tampoucoas funções ou estruturas dos fatos sociais ou dos discursos polissêmicos,como algo a ser meramente compreendido contemplativamente e, quandofor o caso, ajustado por ações políticas pontuais, mas a busca do pontoarquimedeano dessa realidade violenta e caótica,44 ponto através do quala inflexão da ciência na política e desta nas massas – ação em meio a quala comunicação tem um papel decisivo a desempenhar – poderia alavan-car sua suprasunção. Deste modo, uma outra contribuição teórica de pesodo marxismo para os problemas apresentados, desta vez em um registromenos geral e mais próximo da comunicação, encontra-se na célebre sen-tença de Marx sobre a “arma da crítica”. Nesta passagem, Marx se refere

43 Retomaremos esse tema adiante.44 “Marx jamais deixou de insistir que o potencial fundamentalmente subversivo e transfor-

mador do processo histórico em desenvolvimento era o übergreifendes Moment da dialética dainteração social.” MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004, p.252.

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ao poder transformador da teoria. Esta, embora por si só não baste paratransformar a realidade material, a qual só pode ser materialmente trans-formada por forças materiais, “se transforma em uma força material nomomento em que domina as massas.”45

Trata-se então de atualizar esta reflexão marxiana à luz da configuraçãoatual das ITCs. Uma boa orientação para esta tarefa pode ser encararo seguinte desafio apresentado por Ramonet: “(...) não podemos fazercontra-informação com um discurso efetivamente infantilizante. E a di-ficuldade está em construir um discurso de contra-informação que apre-sente também características de sedução, ou seja, que não se dirija a umapequena minoria, mas que possa dirigir-se também às massas [...]”.46 Ra-monet ainda argumenta, em defesa desta idéia, que não basta possuir “averdade”,47 é necessário comunicá-la.

Mészáros, por seu turno, nos fornece mais alguns subsídios teóricos es-tratégicos para a investigação de nosso problema atual, com destaque parao diagnóstico de que “[...] as ideologias dominantes da ordem social es-tabelecida desfrutam de uma importante posição privilegiada em relaçãoa todas as variedades de ‘contraconsciência’.” 48 Isto se dá porque asprimeiras contam, no debate ideológico, com o apoio econômico, cul-tural e político do sistema, o que lhes permite ditar as próprias condiçõesdo debate, bem como estabelecer os critérios de validade dos argumentosenvolvidos, o que “acaba trazendo sérias conseqüências para os intelec-tuais que tentam articular alguma forma de contraconsciência, pois sãoobrigados a reagir às condições expostas, em um terreno escolhido porseus adversários.”49

45 MARX, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, apud MÉSZÁROS, Istvan. O Poder daIdeologia, pp. 169-70.

46 RAMONET, Ignacio. O Poder midiático. In: MORAES, Dênis de (org.). Por umaoutra comunicação, p. 249. Pouco antes deste trecho, Ramonet havia caracterizado o discursohegemônico na grande mídia como “infantilizante”, por ser construído de um modo similar àfala que usualmente dirigimos às crianças: breve, superficial e calcada no apelo emocional. Étambém importante acrescentar que, na seqüência direta desta passagem, seu autor esclarece en-faticamente que a contra-informação não deve tampouco consistir em “um discurso doutrinário,dogmático”.

47 Não cabe aqui entrarmos no mérito do debate filosófico em torno da noção de verdade. Opróprio Ramonet, em outra passagem do mesmo artigo, deixa claro que se refere a “verdadesfactuais”, facilmente demonstráveis, em oposição à manipulação conservadoramente tenden-ciosa de informações predominante na grande mídia.

48 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 233.49 Idem ibidem.

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Mais adiante, na mesma obra, Mészáros se aproxima ainda mais de Ra-monet ao destacar como uma das principais armas a serviço da ideologiadominante a mistificação, “por meio da qual as pessoas que sofrem asconseqüências da ordem estabelecida podem ser induzidas a endossar,‘consensualmente’, valores e políticas práticas que são de fato absoluta-mente contrários a seus interesses vitais.” 50 A luta da contra-informação(ou da contra-consciência) contra a ideologia dominante é portanto umaluta desigual também pelo fato de que “o poder da mistificação sobre oadversário é um privilégio da ideologia dominante”.51

Eis alguns dos problemas que têm de ser enfrentados no campo da comu-nicação pelos “intelectuais que tentam articular alguma forma de contra-consciência”. O desafio não é fácil, mas enfrentá-lo é necessário. E ape-sar de a presente pesquisa não ter a pretensão de apresentar uma soluçãodefinitiva para ele, pode talvez contribuir para a sua solução, delineandoos contornos do que fazer e trazendo para o debate o importante papeldo gosto na sedimentação das ideologias, no confronto ideológico e nocoração da própria economia.

Seguindo essa trilha, devemos então investigar a validade e os limites daseguinte hipótese: serão os imperativos político-ideológicos, mas sobre-tudo contábeis, da esfera produtiva do sistema, que norteiam, no âmbitodas ITCs, esta subordinação inconsciente do gosto, que permanece re-strito à esfera do consumo, à lógica da reprodução ampliada do capital?A produção então determina em última instância o consumo? A respostasó pode ser positiva, mas esta afirmação deve ser feita com uma certacautela, pois, como já dizia Lukács:

Trata-se de um lugar-comum a afirmação de que, para a on-tologia marxista do ser social, cabe à produção uma importân-cia prioritária; mas, não obstante sua correção genérica, essaafirmação – precisamente por ter sido radicalizada nas formu-lações vulgares – obstaculizou freqüentemente a compreensãodo autêntico método de Marx e levou a um falso caminho. De-vemos examinar aqui [...] essa prioridade, e compreender mel-hor o conceito marxiano de momento predominante no âmbitode interações complexas.52

50 Idem ibidem, p. 472.51 Idem ibidem.52 LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os Princípios ontológicos fundamentais de

Marx, p. 66.

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Este ponto será amplamente discutido no local apropriado. Por ora, cabeantecipar a seguinte sentença de Marx, a nosso ver decisiva sobre a re-lação essencial entre produção e consumo sob o regime do capital: “Ovolume das massas de mercadorias produzidas pela produção capitalistaé estabelecido pela escala dessa produção e pelo imperativo de expansãocontínua dela, e não por uma órbita predeterminada da oferta e da procura,das necessidades a satisfazer.” 53

Se assim é, devemos concluir que as ITCs, em função da concentraçãode capital intensiva de que são fruto, resultado da convergência tecnológ-ica e empresarial, possibilitadas pela revolução digital, efetivamente con-tribuem de modo brutal para que a subordinação dos valores de uso dosbens simbólicos massivos aos seus valores de troca tenda a ser total na es-fera da produção e da circulação, o que torna o consumo necessariamentesubordinado aos imperativos do capital, no que pese a relativa importânciaprática e teórica das “recepções ativas”, das “reapropriações de sentido”etc.

Incorporando agora à reflexão um novo tópico, imprescindível para qual-quer estudo de comunicação que se desenvolva a partir da chave teóricaaqui adotada, ou seja, a relação entre a luta de classes e a “culturade massa”, é importante considerar a seguinte orientação metodológicageral: “(...) haveria que combinar na análise tanto os problemas de dom-inação política e cultural, pelos quais se constrói e exerce a hegemoniade uma classe ou setor de classe, com as diferentes realidades culturaisvividas pelas classes em presença.”54

Entretanto, diante da configuração geral que identificamos na correlaçãode forças entre produção e consumo, nos parece que “os problemas dedominação política e cultural”, junto às “fortes tendências de homogeneiza-ção”, constituem o übergreifendes-Moment na dialética deste processo, namedida em que contribuem para a manutenção do sistema em seu esforçode subordinar ou adaptar “as diferentes realidades culturais vividas pelasclasses em presença”. Cumpre, assim, entender em que medida essas re-alidades culturais contribuem para a reprodução ou para a superação do

53 MARX, Karl. O Capital. Livro II, p. 86. No que pese a importância da famosa e sofisti-cada dialética produção / circulação / consumo desenvolvida nos Grundrisse, e que se refere aesta relação em geral, valendo para todas as épocas, a passagem aqui citada do livro 2 do Capitalé conclusiva quanto ao modo como a relação produção / consumo se dá sob o capitalismo. Alémdo mais, em todas as épocas, como práxis ou “mediação ativa” que ocupa ontologicamente umaposição de antecedência necessária em relação aos momentos da circulação e do consumo, aprodução é sempre o übergreifendes-Moment de qualquer ciclo econômico.

54 LOPES, Maria Immacolata V. Pesquisa em comunicação, p. 18.

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sistema, amalgamando-se confortavelmente, resistindo ou se opondo aele, e ainda de que forma – reacionária, conservadora, progressista, rev-olucionária. Isto não significa a defesa da restrição dos estudos de comu-nicação aos aspectos da dominação etc., apenas a ênfase necessária nessesaspectos, aliada à incorporação das conquistas dos estudos culturais, porexemplo, em uma perspectiva crítica que não se limite a tentar entendercomo os pobres “se viram”, criam novos sentidos no consumo etc., masque auxilie na compreensão do efetivo poder dessas virações e criaçõesno sentido de minar o capital.

Encerrando aqui o debate metodológico, podemos agora formular os ob-jetivos específicos da presente pesquisa, nos seguintes termos: 1) iden-tificar de que modo as ITCs são peça chave na subordinação dos gostosaos imperativos políticos e contábeis do capital; 2) demonstrar que essasubordinação é necessária ao capital e, conseqüentemente, que seu fimé necessário para a superação do capital; 3) investigar como os estudosde comunicação têm, direta ou indiretamente, lidado com este problema;e 4) descobrir que lutas devem ser prática e teoricamente travadas, emgeral e no campo da comunicação, no sentido de se reverter este quadro.O último item corresponde ao “objetivo prático” da pesquisa.

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Capítulo 10

FETICHE DO VALOR ELUTA DE CLASSES

Lutas políticas e socioeconômicas constituem uma unidadedialética e conseqüentemente a negligência da dimensão so-cioeconômica despoja a política de sua realidade. (Mészáros)1

Hoje, mais do que nunca, devemos retornar a Lênin: sim, a economia é odomínio chave, a batalha será decidida aí [...] mas a intervenção deveráser de ordem política, não econômica. (Zizek)2

Para atingir os objetivos propostos, é importante nesse momento da ex-posição efetuarmos um pequeno desvio em relação ao nosso objeto, queserá retomado em seguida. Esse desvio nos conduz ao debate em tornode um tópico polêmico da literatura marxista, a saber, o caráter comple-mentar de duas categorias nucleares no pensamento de Marx: fetiche dovalor e luta de classes. A tese aqui defendida é que esta complementari-dade, negada por um importante autor marxista contemporâneo, RobertKurz, é necessária para uma compreensão correta das contradições soci-ais do capitalismo, do papel das ITCs nos dias de hoje, para a emergênciade uma renovada consciência de classe e, conseqüentemente, para a elab-oração de novas práxis para além do capital.

Quanto ao último ponto, há cerca de duas décadas, Perry Anderson obser-vou com acerto: “Mais do que uma ‘miséria da teoria’, o que o marxismo

1 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, 2002, p. 566.2 ZIZEK, Slavoj. Have Michael Hardt and Antonio Negri Rewritten the Communist man-

ifesto for the Twenty-First Century? In: Rethinking Marxism, no. 3/4, 2001. Documentoeletrônico: http://lacan.com/zizek-empire.htm. Acesso em: jun 2006.

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posterior ao marxismo ocidental continua a partilhar com seu predecessoré uma ‘miséria da estratégia’.” 3 Ou seja, apesar da riqueza da fortunateórica do “marxismo ocidental” nos campos da epistemologia, da es-tética e da filosofia, haveria uma carência de reflexões teóricas de cunhoestratégico revolucionário.

Poucos anos antes de Anderson, o “velho” Lukács, em entrevista a Le-andro Konder, embora sem se dirigir propriamente ao “marxismo oci-dental”, toca nessa questão ao criticar a herança “taticista” de Stalin: “Ateoria fica reduzida à condição de escrava da prática e a prática perdesua profundidade revolucionária. Os efeitos de semelhante situação sãocatastróficos.” 4

Ou seja, de um lado, um “desvio teoricista”, que ao reivindicar a atuali-dade da crítica marxiana ao fetiche do valor, reivindica ao mesmo tempoo abandono da noção de luta de classes. É o caso de Robert Kurz. Deoutro, o “taticismo” criticado por Lukács, que tem sido nas últimas dé-cadas a marca de boa parte dos partidos de esquerda. O quadro resul-tante é uma ausência de estratégias revolucionárias capazes de, à luz dasvitórias obtidas e fracassos sofridos ao longo do século XX, oferecer al-ternativas realistas, isto é, factíveis e capazes de mobilizar as massas.

Um dos objetivos da presente pesquisa, como anteriormente mencionado,é contribuir, ainda que modestamente, para a elaboração desta estratégia,trazendo para o debate o papel das ITCs na subordinação do gosto aocapital, bem como o potencial revolucionário dos gostos, cuja atualizaçãodepende em grande parte de uma apropriação social das ITCs.

Neste ponto da investigação, iremos estudar a hipótese de esta “misériada estratégia” dever-se, ao menos em parte, além de aos rumos no geralcatastróficos tomados pelo “marxismo oriental”,5 a uma espécie de cisãoteórica efetuada por algumas das principais correntes do “marxismo oci-dental”: de um lado, o abandono da questão da “luta de classes”, presentena maior parte dos principais autores da “Escola de Frankfurt” (Adorno,

3 ANDERSON, Perry. A Crise da crise do marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 31.4 Ver “A Autocrítica do Marxismo”, entrevista concedida a Leandro Konder e publicada no

Jornal do Brasil, em 24-25 de agosto de 1969. In: PINASSI, Maria Orlanda e LESSA, Sérgio(orgs.) Lukács e a atualidade do marxismo, p. 126.

5 O processo em curso na China de hoje, por si só, mereceria uma série de estudos específi-cos. Infelizmente, tal tarefa foge aos objetivos deste trabalho e está além da minha competênciaatual. Para uma boa introdução ao tema, bem como para uma visão alternativa à noção decatástrofe referente aos destinos do modelo soviético, ver LOSURDO, Domenico. Fuga daHistória?

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Horkheimer, Marcuse e Habermas) e, hoje, em Robert Kurz, que em certamedida pode ser considerado uma espécie de herdeiro heterodoxo seu; deoutro, o abandono da problemática do fetichismo da mercadoria, em Al-thusser e em sua “escola”, e da crítica da economia política em geral, nosestudos neo-gramscianos de teor culturalista, que têm tido, ultimamente,maior influência no campo da comunicação.6

No primeiro caso, a adesão de grande parte do movimento operário alemãoao nazi-fascismo e, posteriormente, a políticas reformistas de cunho social-democrata é o que justificou o esvaziamento da crença dos intelectuaisligados à escola de Frankfurt e, provavelmente, de outros, no potencialrevolucionário do proletariado. Em todos os casos, a desilusão com osdestinos da URSS e com sua orientação hegemônica dos PCs do mundocontribuiu para a cisão. Como uma das conseqüências desses fenômenos,questões de ordem econômica ou político-estratégica cederam lugar atemáticas de cunho epistemológico, estético etc.. E o campo de ação deboa parte dos intelectuais marxistas deslocou-se dos partidos em direçãoà academia.7

Diante desta “miséria da estratégia”, que tem marcado o pensamentomarxista nas últimas décadas, talvez seja o momento de revermos a teo-ria de Marx a partir dela própria, sem a pretensão de uma interpretaçãooriginal, mas com o objetivo de resgatar uma idéia central: só se podeentender o fetiche do valor a partir da luta de classes e só se pode en-tender a última a partir do primeiro, tendo em vista as contradições entreforças produtivas8 e relações de produção, que favorecem a gestação, odesenvolvimento e o colapso dos diversos modos de produção9 atravésda história.10

É sabido que Marx morreu antes de desenvolver uma análise e uma ex-posição mais sistemáticas da luta de classes e de suas conexões profun-das com o fetiche do valor. Contudo, isso não significa que não tenhadeixado importantes indicações a este respeito ao longo de sua obra, es-

6 Sobre a história das linhas teóricas dominantes nos estudos de comunicação no Brasildesde a década de 50, ver LOPES, Maria Immacolata V. Pesquisa em comunicação, pp. 52-70.

7 Sobre uma análise mais extensa e aprofundada deste processo, e do próprio “marxismoocidental”, ver ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental.

8 Forças produtivas = ciência + meios de produção (instrumentos e objetos de trabalho) +força de trabalho (não necessariamente nesta ordem).

9 Modo de produção = forças produtivas + relações de produção.10 Cf. MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política, pp. 24-5.

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pecialmente em A Guerra Civil na França, A Luta de Classes na França eno 18 Brumário, sem falar no Manifesto Comunista e no próprio Capital.

Parte dessas indicações irá mediar a discussão que segue, confrontandoalguns princípios do marxismo “ortodoxo” de Lukács, um dos fundadoresdo “marxismo ocidental”, com a “heterodoxia” de Kurz, um importantepensador marxista “ocidental” na atualidade.

Lukács, já nos primeiros ensaios de História e Consciência de Classe,mais voltados para questões de método, destaca a herança hegeliana, nafigura da categoria dialética da totalidade, como o elemento central da es-sência revolucionária da “ciência marxista”, em detrimento dos motivoseconômicos. Kurz, por sua vez, ao longo de sua obra, insiste que o “marx-ismo do movimento operário”, teoricamente orientado pelo “Marx da lutade classes”, estaria historicamente superado, enquanto o “outro Marx”, oda crítica ao fetiche do valor, seria mais atual do que nunca: “O Marxdos operários e da luta de classes cai em desgraça, mas o crítico radi-cal do fetichismo e da forma-valor continua de pé e só agora passa a serefetivo.” 11

Acreditamos que Lukács estivesse errado ao minimizar a importância dosmotivos econômicos em Marx,12 e Kurz ao abandonar a problemática daluta de classes no quadro de uma crítica ao capitalismo contemporâneo.É o que se tentará demonstrar agora, partindo da idéia de que não sepode perder de vista a necessidade de repensarmos as noções de fetichedo valor e de luta de classes para além do economicismo e do sociol-ogismo, reintegrando-as numa perspectiva dialética totalizante e materi-alista, que seria a do próprio Marx. Antes, porém, julgamos necessárioalguns esclarecimentos de ordem conceitual, sobre as principais catego-rias da crítica da economia política marxiana.13

11 KURZ, Robert. A Intelligentsia depois da luta de classes. Documento eletrônico:http://obeco.planetaclix.pt/rkurz38.htm. Acesso em: dez 2004.

12 Como ele próprio viria a admitir diretamente no prefácio a uma edição de 1967 da mesmaobra, conforme veremos a seguir, e indiretamente, na Ontologia do Ser Social. Como nosinforma Carlos Nelson Coutinho: “[...] o velho Lukács estava plenamente consciente da im-portância da crítica da economia política na constituição do método filosófico de Marx, o quenão lhe aparecia de modo tão claro em História e Consciência de Classe.” Ver Lukács, a Ontolo-gia e a Política. In: ANTUNES, Ricardo e DOMINGUES LEÃO RÊGO, Walquíria. Lukács.Um Galileu no século XX, p. 17.

13 As definições que seguem podem parecer desnecessárias para o leitor mais familiarizadocom as categorias da crítica da economia política marxianas. Optou-se por incluí-las nestemomento da exposição por razões didáticas, seguros de que um eventual prejuízo na fluênciada leitura daqueles que já dominam essas questões é compensado pelo esclarecimento prestadoàqueles que não as dominam.

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10.1 O Valor

Comecemos pela noção de fetiche do valor. Fetiche do valor é tantoum conceito teórico, que busca explicar de modo crítico um fenômenoespecífico do capitalismo, quanto o nome atribuído por Marx ao própriofenômeno. É, portanto, uma expressão que possui ao mesmo tempo umvalor explicativo e um descritivo.

Trata-se, em uma primeira aproximação, de um princípio de socializaçãoinvertido, que converte as pessoas em meros suportes para a produção epermuta de mercadorias, com o fim de transformar valor em mais valor,de modo que o capital, em suas diversas encarnações – dinheiro, meios deprodução, mercadorias –, se torna o verdadeiro sujeito social, cuja únicameta é crescer, e as pessoas, objetos desse crescimento.

A mercadoria é uma coisa produzida pelo homem. Possui a propriedadede satisfazer necessidades humanas (seu valor de uso) e uma expressãode valor (seu valor de troca) que permite equipará-la ao valor de outrasmercadorias em função da permuta.14 Mas nem todas as coisas úteis pro-duzidas pelo homem são mercadorias: uma coisa só se torna mercadoriaa partir do momento em que é produzida não para o uso, mas para a troca,e isto só ocorre quando deixa de ser útil para o seu produtor e permaneceútil para outra pessoa, que por sua vez deve dispor de uma outra mer-cadoria para trocar, que não lhe seja útil mas que o seja para o primeiroelemento da permuta. A mercadoria é portanto uma coisa social, ou a ma-terialização de trabalho humano em um valor de uso passível de permutapor outras mercadorias. Embora a troca de mercadorias tenha existidoantes do capitalismo, o capitalismo é o primeiro modo de produção nahistória onde a quase totalidade das atividades produtivas é destinada àprodução de mercadorias.

O dinheiro, por sua vez, também é uma mercadoria. Seu valor de usoprimário é sua propriedade social de equivalente universal, ou seja, demeio de circulação (ou troca), mercadoria “líquida”, passível de ser per-mutada por qualquer quantidade de qualquer outra mercadoria de valorequivalente ao seu.

14 O preço das mercadorias é a expressão monetária do seu valor, embora geralmente nãolhe corresponda exatamente em magnitude, devido a fatores cuja explanação escapa dos limitesdeste trabalho. Sobre este ponto, ver Marx, O Capital, capítulo III: O dinheiro ou a circulaçãodas mercadorias.

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Assim como a forma mercadoria, o dinheiro existia antes do capitalismo.Mas só se transforma em capital, transcendendo sua natureza original demeio de circulação, quando trocado pelas mercadorias meios de pro-dução15 e força de trabalho (na forma de salário) com o objetivo dese multiplicar, sendo a força de trabalho a única mercadoria capaz de efe-tuar esse milagre de multiplicação, já que transfere ao produto um valorsuperior ao seu próprio, que corresponde, como aliás o valor de qualquermercadoria, ao valor do conjunto de mercadorias necessárias à sua pro-dução e reprodução: alimentos, roupas, habitação etc. Já os meios deprodução não geram, somente transferem valor.

Mas o que, afinal, é o valor? Como mensurá-lo?

O valor é, a princípio, uma referência para a troca: isto vale tanto daquilo.O dinheiro, os meios de produção e as mercadorias, enquanto encarnaçõesdo capital, são formas materiais do valor. Sua substância é o trabalhohumano abstrato, trabalho qualitativamente indiferenciado e quantitativa-mente mensurável. Sua magnitude é determinada pelo tempo de trabalhomédio socialmente necessário.

Trabalho abstrato é o trabalho enquanto dispêndio de energia humanaque todas as mercadorias têm em comum, independente da natureza dotrabalho e da mercadoria; é uma abstração das propriedades concretas dasdiversas formas de trabalho humano, igualando-as enquanto substância dovalor. Trabalho concreto, em oposição a trabalho abstrato, é a atividadehumana efetiva, que produz valores de uso, isto é, coisas úteis. Não podehaver trabalho abstrato sem trabalho concreto, embora possa haver tra-balho concreto sem trabalho abstrato, no caso de algo não ser produzidopara a troca. Assim, não são as propriedades concretas do trabalho e doproduto que diferenciam as noções de trabalho concreto e trabalho ab-strato, mas sua função social. Se eu assar um pão para comê-lo, não háaí um átomo de trabalho abstrato nem de valor. Mas se o mesmo fruto daminha atividade de padeiro, um pão integralmente idêntico ao primeiro,tiver sua existência destinada à venda, isto é, à troca pela mercadoria din-heiro, aí o pão terá valor, fruto do caráter abstrato do trabalho empregadoem sua produção. A mercadoria, assim, enquanto valor de uso, é frutode trabalho concreto; enquanto valor, de trabalho abstrato. Deste modo,o caráter abstrato do trabalho humano, cuja centralidade econômica é es-pecífica do modo de produção capitalista, produz valor, mas não valores

15 Recursos naturais, instrumentos de produção (instalações, máquinas e ferramentas) e ob-jetos de produção (matérias primas).

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de uso, enquanto seu caráter concreto produz valores de uso mas não pro-duz valor.

Já o tempo de trabalho médio socialmente necessário, que determinaa magnitude do valor das mercadorias, é nem mais nem menos do queo tempo normalmente requerido para a produção de mercadorias em umdado estágio de desenvolvimento das forças produtivas em um determi-nado universo econômico. Não importa se um produtor individual contraieste tempo, ou, se pelo contrário, o dilata: o valor da mercadoria con-tinua o mesmo. Por exemplo, se o tempo de trabalho médio socialmentenecessário para a produção de duas camisas e de duas cadeiras for de umahora, o valor de duas camisas e de duas cadeiras, expresso em seu valorde troca (duas camisas valem duas cadeiras ou x dinheiro), será equiva-lente. Já se um trabalhador produzir duas camisas e outro, duas cadeiras,na metade do tempo, terão produzido o dobro de valor total, pois produzi-ram quatro camisas e quatro cadeiras no tempo em que normalmente seproduz duas. Se forem vendê-los no mercado, seu lucro será acima damédia, devido ao fato de o preço neste caso poder ser superior ao valor.Mas isso em nada irá alterar o valor unitário de cada camisa e de cadacadeira. No extremo oposto, se levarem o dobro do tempo para produziras mesmas camisas e as mesmas cadeiras, terão produzido a metade dovalor total, sem alterar o valor unitário de cada produto. Se forem vendê-los no mesmo mercado, terão prejuízo e assim por diante.16

O tempo de trabalho médio socialmente necessário é alterado periodica-mente pelo desenvolvimento das forças produtivas, isto é, quando a médiade tempo socialmente necessário para a produção de determinada mer-cadoria diminui, em função do desenvolvimento de novas tecnologias,das habilidades do conjunto dos trabalhadores etc. Também pode ser re-tardado, em função de guerras ou desastres de amplas proporções.

O valor, como o capital, não é uma coisa, mas o princípio norteadorabstrato da forma como os homens produzem e reproduzem sua vida emsociedade sob o modo de produção capitalista. Ele só adquire essa funçãoa partir da transformação da força de trabalho humana em mercadoria edas pessoas em máquinas de trabalho abstrato, no circuito da produção decoisas úteis mutuamente permutáveis, ou seja, mercadorias. Isto requerum determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas e das

16 Nesses exemplos, para uma maior clareza da exposição, os trabalhadores são proprietáriosdos instrumentos e objetos de produção necessários à produção das cadeiras e camisas, nãohavendo alienação de mais-valia. Na realidade, não é isso que ocorre.

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relações de produção, calcadas na alienação dos produtores dos meios deprodução.

O valor, portanto, não se torna um fetiche somente por ser um princípioabstrato, mas na medida em que organiza o conjunto das relações soci-ais, subordinando o homem ao imperativo de sua expansão contínua, adespeito de tudo e de todos. É o coração e a alma do capital, encarnadoora em dinheiro, ora em meios de produção, ora em mercadorias.

O capitalismo, enfim, é o sistema social do capital, onde as pessoas nãoproduzem para consumir, mas são consumidas para produzir mais valor,onde a produção e o consumo humanos convertem-se de fins em meiospara a transformação de valor em mais valor, ou de capital em mais cap-ital, acima de quaisquer outros critérios.17 Esta transformação é a finali-dade que orienta o conjunto das atividades humanas sob o capitalismo.18

Por isto diversos autores (Rubin, Kurz etc.) consideram a noção de fetichedo valor (ou fetichismo da mercadoria) o cerne da teoria econômica deMarx.19 Esta, porém, é ao mesmo tempo uma teoria histórica e social,centrada na análise crítica do capital, mas que não se restringe a ele. Nestesentido, a economia, entendida em sentido geral, significando o modocomo os homens produzem e reproduzem coletivamente suas condiçõesde vida, ocupa uma posição metodológica de destaque na análise marxi-ana da sociedade e da história como um todo.

Com o objetivo de desfazer mal-entendidos resultantes de uma má leituradeste princípio metodológico, ou mesmo de uma boa leitura feita de máfé, já esclarecia Engels:

De acordo com a concepção materialista da história, o el-emento finalmente determinante é a produção e a reproduçãoda vida social. Nem Marx nem eu asseveramos mais do queisso. Logo, se alguém torce isso, dizendo que o elemento

17 A própria utilidade das coisas, seu valor de uso, torna-se refém de seu valor: em linguagemcomum, as coisas só são produzidas se a produção for mais lucrativa que a de outras coisas, oque faz da satisfação de necessidades humanas um fator secundário e subordinado do processo.Isto acaba determinando, em grande medida, ao longo do tempo, a própria noção social do queé ou não útil.

18 Segundo Kurz, também sob o “socialismo de caserna”. Ver KURZ, Robert. O Colapso damodernização.

19 Rubin chega mesmo a afirmar que a “‘teoria do fetichismo da mercadoria’ [...] poderia serchamada, com maior exatidão, de teoria geral das relações de produção na economia mercantil-capitalista.” RUBIN, Isaak Illich. A Teoria marxista do valor, p. 16.

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econômico é o único determinante, ele transforma aquela proposiçãoem uma frase sem sentido, abstrata e tola.20

Ou, na formulação de Kosik:

A economia não é apenas produção dos bens materiais: éa totalidade do processo de produção e reprodução do homemcomo ser humano-social. A economia não é apenas produçãode bens materiais; é ao mesmo tempo produção das relaçõessociais dentro das quais esta produção se realiza.21

Esta noção geral de economia refere-se ao conjunto das forças produti-vas e das relações de produção que compõe qualquer modo de produção.Já a teoria do fetiche do valor, partindo da noção geral, desvela a formaespecífica como se dá a “produção e a reprodução da vida social” sob omodo de produção capitalista. Por outro lado, embora o fetiche do valor(ou fetichismo da mercadoria) seja uma especificidade do sistema do cap-ital, o fetichismo em geral – entendido como o processo não conscientemediante o qual as pessoas atribuem a algo ou alguém exterior a elaspoderes sobre si próprias, poderes esses que, na realidade, são elas quepossuem – atravessa toda a nossa “pré-história”,22 assumindo em cadaépoca expressões variadas:

Nos modos de produção asiáticos, o Filho do Céu ou Im-perador Divino assume essa função, e no feudalismo, o solo.O dinheiro, como uma das muitas formas do fetichismo, ex-iste em todas essas sociedades, mas ainda não possui a funçãogeral de representar a socialização inconsciente, que adota out-ras formas. 23

Nesse sentido, “fetichismo” se converte praticamente em sinônimo dereificação (coisificação), termo caro a Lukács, que significa a desistori-cização, ou naturalização, das relações sociais, convertendo os sujeitosem objetos (coisas) de forças sociais que escapam ao seu controle. É, al-iás, a partir do conceito de reificação que Lukács problematiza a consciên-cia de classe como necessária para a práxis revolucionária, única atividade

20 ENGELS, apud FERNANDES, Florestan (org.). Marx-Engels, p. 132.21 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 191.22 Para Marx, a modernidade ainda faz parte de nossa pré-história. A verdadeira história

humana, de sociedades livres e conscientes, ainda não começou.23 Cf. KURZ, Robert. Pequeno Glossário. In: KURZ, Robert. O Colapso da modernização.

São Paulo: Paz e Terra, 1993.

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capaz de superar a reificação das relações sociais, conforme veremos maisdetidamente adiante. O marxismo é então entendido como o fundamentoteórico ou científico necessário dessa consciência e dessa práxis. Mas oque exatamente municia o marxismo desta capacidade, desta potência? Éneste ponto que a articulação da noção de fetiche do valor com a de luta declasses enquanto “motor da história” (Manifesto Comunista) revela todoo seu vigor teórico e político, pois o primeiro só pode ser superado pelaação consciente de um sujeito social revolucionário, ao mesmo tempo emque cria as condições para a sua emergência. É por isso que uma críticaao fetiche do valor, por mais acurada que seja, que abandone a questão daluta de classes, revela-se uma crítica impotente.

10.2 O Princípio da totalidade, a economia e o su-jeito social

Para Lukács, em História e Consciência de Classe, o que faz do marxismouma ciência revolucionária é, mais do que sua ênfase metodológica naeconomia, o ponto de vista da totalidade:

A ciência proletária é revolucionária não somente pelo fatode contrapor à sociedade burguesa conteúdos revolucionários,mas, em primeiro lugar, devido à essência revolucionária doseu método. O domínio da categoria da totalidade é o porta-dor do sentido revolucionário na ciência. [...] com Marx a di-alética hegeliana tornou-se [...] uma “álgebra da revolução”.24

O ponto de vista da totalidade, além disso, só seria acessível a um sujeitosocial, a uma classe que fosse ela mesma uma totalidade, cujo interesserepresentasse o interesse universal da humanidade, a classe operária.

Lukács chega mesmo a afirmar que “todo o sistema do marxismo se des-faz com o princípio de que a revolução é o resultado de um ponto de vistaem que a categoria da totalidade é dominante.”25

Mas por que atribuir à categoria da totalidade do método dialético estacentralidade revolucionária em detrimento da crítica da economia política?Se assim fosse, o marxismo não seria necessário, restando Hegel sufi-ciente. Como diz Kosik:

24 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe, pp. 105-6.25 Idem ibidem p. 109.

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[...] a totalidade como meio conceitual para compreen-der os fenômenos sociais permanece abstrata se não se põeem evidência que tal totalidade é totalidade de base e super-estrutura, bem como de seu movimento, desenvolvimento erelações recíprocas, embora cabendo à base um papel deter-minante. 26

Löwy é ainda mais específico, quando afirma categoricamente que “adiferença entre a dialética materialista de Marx e a dialética idealista deHegel está na importância determinante da economia no desenvolvimentohistórico da obra de Marx”.27

O próprio Lukács, no prefácio de 1967 de História e Consciência deClasse (que não consistiu em mais uma “autocrítica” sob coação), re-conhece o fato e “corrige” essa dessimetria – minimizar a importância daeconomia em relação a uma hipertrofia da “totalidade”:

[...] surgia em mim um exagero hegeliano, porquanto op-unha a posição metodológica central da totalidade à prioridadeda economia: “Não é o predomínio de motivos econômicosna explicação da história que distingue de maneira decisiva omarxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da to-talidade.” Esse paradoxo metodológico acentua-se ainda maisporque a totalidade era vista como a portadora categorial doprincípio revolucionário da ciência [...]28

Tal “exagero”, porém, era em parte justificável, tendo em vista a ne-cessidade conjuntural de se combater o reducionismo economicista, decoloração positivista, de boa parte da II Internacional. Mas como Marxinequivocamente põe em primeiro plano a análise econômica para a com-preensão tanto da composição da luta de classes quanto das transfor-mações sociais e da mediação das idéias de cada época (a “matéria prima”da consciência de classe), epistemológica e politicamente nenhuma “orto-doxia” marxista deveria relevar este ponto, sintetizado na célebre pas-sagem da Contribuição à crítica da economia política, na qual Marxdemonstra que é sobre a estrutura econômica da sociedade que se elevaa superestrutura, que o “modo de produção da vida material condiciona

26 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 60.27 Cf. LÖWY, Michael. Ideologias e ciências sociais, p. 17.28 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe, p. 21.

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o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral”, 29 quecontradições entre forças produtivas e relações de produção gestam perío-dos revolucionários etc.

Diversas outras passagens de Marx ou Engels poderiam ilustrar esse ponto:não é possível pensar o marxismo desconsiderando a questão da determi-nação em última instância da economia, enquanto übergreifendes-Momentde um modo de produção, sobre as demais instâncias de cada totalidadesócio-histórica.

Robert Kurz sabe disso, e este me parece o seu grande mérito:

O conceito de “economismo”, aqui, está longe de desig-nar um modo defeituoso ou insuficiente de reflexão teórica so-cial, que porventura descure outras áreas da vida, complexoscausais e contextos motivacionais – o que tem vindo a tornar-se um fácil argumento para todo o serviço de ignorantes lib-erais, tanto da esquerda como da direita, que apenas aspirama poder continuar a pensar nas categorias em vigor e, de tantasuposta multicausalidade e contingência, etc. já não querempercepcionar o núcleo lógico do sistema. Antes é precisamenteesse núcleo duro que é animado por um economismo não ape-nas subjetivo ou teórico, mas objetivo e prático, como sua es-sência estruturante: simplesmente um “economismo real” decritérios capitalistas intransigentes que, na sua unidimension-alidade, sistematicamente toma conta de todas as outras “lóg-icas setoriais” que relegou para o seu exterior, acabando porcilindrá-las – e que se vai infiltrando em todos os contextosmotivacionais a todos os níveis.30

Kurz, porém, em sua defesa de que o essencial (e o atual) em Marx ésua crítica ao fetiche do valor, comete o equívoco de afirmar que não hánenhum sujeito social enquanto totalidade além do próprio capital, o “su-jeito automático”. Quanto às classes sociais, para ele são um “fenômenosecundário”:

No lugar de um conceito da forma do sistema produtorde mercadorias e de sua condicionalidade histórica aparece

29 Cf. MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política, pp. 24-5.30 KURZ, Robert. Os Fantasmas reais da crise mundial. Documento eletrônico:

http://obeco.no.sapo.pt/rkurz175.htm. Acesso em: dez 2004.

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[...] um conceito reduzido das “classes lutadoras”, como asuposta razão última da socialização; o constitutum tornou-se constituens, o fenômeno secundário das classes sociais foitransformado num fato inquestionável.31

Se Kurz pode ter alguma razão ao condenar a redução do complexo teóricoelaborado por Marx a um mero conflito entre “classes lutadoras”, en-tre “exploradores e explorados”, equivoca-se tanto em termos históricosquanto lógicos em sua definição das classes sociais como “fenômeno se-cundário”, pois:

A relação de capital apenas surge durante o processo deprodução porque ela já existe no ato de circulação, nas condiçõeseconômicas fundamentalmente diversas em que se defrontamcomprador e vendedor, em sua relação de classe. Não é o din-heiro que, por sua natureza, estabelece essa relação; é antesa existência dessa relação que pode transmutar uma simplesfunção monetária numa função de capital.32

Vejamos uma outra formulação de Marx a propósito da mesma questão:

O homem pode viver na medida apenas em que produz osseus meios de subsistência, e só pode produzi-los na medidaem que se encontre na posse de meios de produção, na possedas condições objetivas de trabalho. Compreende-se assimque se o operário for despojado dos meios de produção, tam-bém ficará privado dos meios de subsistência e, inversamente,não pode criar nenhum meio de produção. Por conseguinte,o que no primeiro processo, antes de o dinheiro e a mercado-ria se terem transformado realmente em capital, lhes imprimedesde o início o caráter de capital não é nem sua condiçãode dinheiro nem a sua condição de mercadoria, nem o valorde uso material destas mercadorias, que consiste em serviremcomo meios de subsistência e de produção, mas sim o fato deque este dinheiro e esta mercadoria, estes meios de produção emeios de subsistência, se defrontam com a capacidade de tra-balho – despojada de toda a riqueza objetiva – como poderes

31 KURZ, Robert. O Colapso da modernização. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 48. Cf.também, do mesmo autor, A Intelligentsia depois da luta de classes. Documento eletrônico:http://obeco.planetaclix.pt/rkurz38.htm. Acesso em: dez. 2004.

32 MARX, Karl. O Capital. Livro II, p. 45.

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A Comunicação e o Gosto 237

autônomos personificados nos seus possuidores; o fato de que,portanto, as condições materiais necessárias para a realizaçãodo trabalho estão alienadas (entfremdet. Al.) do próprio op-erário, ou, mais precisamente, se apresentam como fetichesdotados de uma vontade e alma próprias; o fato de as mer-cadorias figurarem como compradores de pessoas. [...] Não éo operário que compra meios de subsistência e meios de pro-dução: são os meios de subsistência que compram o operáriopara o incorporarem nos meios de produção.33

Ou seja, o “sujeito automático” não vem do céu, nem da pura lógica in-terna da teoria, mas é o resultado histórico das formas como as relaçõessociais fetichistas vêm se desenvolvendo e objetificando, desde o fim do“comunismo primitivo”, através da luta de classes.

Em sua crítica ao “marxismo operário”, Kurz também argumenta que estenão teria atingido a compreensão do problema do valor, limitando-se adenunciar a exploração da mais-valia. Ora, a exploração da mais-valia éa principal manifestação fenomênica do fetiche do valor, que só se tornouo núcleo do capitalismo na medida em que constitui a estrutura (pseudo)lógica para a apropriação de mais-valia por parte da burguesia (ou daburocracia). Sem esta apropriação, não haveria capitalismo, tampoucofetiche do valor. Que este processo de apropriação seja mais ou menosconsciente, em nada altera o fato de que é o que move o capitalismo.Assim, ainda que o “marxismo operário” não domine plenamente a teoria,o que seria de fato um problema, não faz sentido descolar a crítica ao valorem si da crítica à expropriação de mais-valia, ou seja, do motor da luta declasses sob o capitalismo.

Kurz também sugere que não se trata mais, em nome do fim do trabalhoe do capital, portanto das classes, de opor o trabalhador ao capitalista, oumesmo o trabalho ao capital, já que são os dois lados da mesma moedafetichista, mas de mobilizar todos aqueles para quem o fetichismo é in-tolerável; só que esses são necessariamente os subordinados ao trabalhoou à exclusão do mesmo. É por isso que Antunes, mesmo reconhecendoa relevância teórica de Kurz, condena sua posição com respeito à luta declasses, lamentando que

33 Cf. MARX, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultados do processo de pro-dução imediata, pp. 70-71.

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238 Marco Schneider

um autor tão instigante e responsável por uma das maiscontundentes críticas ao capital e seu sentido destrutivo, semostre obliterado para compreender as novas configuraçõesda luta de classes, que não são os últimos combates,34 masas formas de confrontação entre a totalidade do trabalho e ocapital social total, entre a classe trabalhadora em suas maisdiversas clivagens e as personificações do capital. 35

Se isso está correto, a noção de fetichismo não pode ser contraposta àde luta de classes em uma perspectiva emancipatória, pois não é possívelconceber a superação do capital sem articular economia e política. Jogarfora a luta de classes é jogar fora o elemento político do marxismo.

A este propósito, há uma reflexão de Zizek que sintetiza de modo bril-hante o método desenvolvido (embora não sistematizado) por Marx parase desvelar essa articulação complexa:

A luta de classes “política” ocorre em pleno centro da econo-mia [...] enquanto, ao mesmo tempo, o domínio da econo-mia serve como a chave que nos permite decodificar as batal-has políticas. [...] primeiro, devemos avançar do espetáculopolítico para sua infra-estrutura econômica; depois, num se-gundo passo, devemos confrontar a dimensão irredutível dabatalha política em pleno coração da economia.36

Mas esta formulação, embora verdadeira, ainda permanece em um planomuito geral. Como, a partir daí, desenvolver a análise concreta das situ-ações concretas, como diria Lenin, de modo a orientar a práxis revolu-cionária hoje?

10.3 A Esfinge

O desafio estratégico mencionado acima, do qual aparentemente nenhummarxista contemporâneo tem podido dar conta com a necessária com-petência, foi identificado com precisão por Anderson:

34 Alusão ao título de uma coletânea de artigos de Kurz.35 Cf. ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a

negação do trabalho, p. 164, nota 76.36 ZIZEK, Slavoj. Repeating Lenin. Documento eletrônico:

http://www.lacan.com/replenin.htm. Acesso em: mar. 2004.

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A Comunicação e o Gosto 239

O problema dessa estratégia permanece ainda hoje, comohá cinqüenta anos, como a Esfinge a defrontar o marxismono Ocidente. É evidente que a liberdade da democracia capi-talista, magra mas real com sua cédula e carta de direitos, sópode ceder à força de uma liberdade qualitativamente maior dademocracia socialista, exercida sobre o trabalho e a riqueza, aeconomia e a família, bem como sobre a sociedade organi-zada. Mas como dominar as estruturas flexíveis e duráveis doEstado burguês, infinitamente elásticas ao se ajustarem a acor-dos sobre os quais ele imediatamente repousa, e infinitamenterígidas em preservarem a coerção da qual ele depende final-mente? Que bloco de forças sociais pode ser mobilizado, porque meios, sempre se encarregando dos riscos de desconec-tar o ciclo das acumulações de capital nas nossas economiasde mercado intrinsecamente interligadas? São questões quenos lembram constantemente que o problema da estrutura e dosujeito – estruturas do poder econômico e político operativo,sujeitos de alguma insurgência calculável contra elas – é umproblema não apenas para a teoria crítica, mas também para amais concreta de todas as práticas.37

Kurz, que considera o capitalismo à beira do colapso, provavelmenteatribuiria a dificuldade do marxismo em resolver os dilemas propostospor esta “esfinge” à incapacidade dos marxistas, em seu apego à luta declasses, de superarem teoricamente o fetiche do trabalho e do valor, em-bora reconheça que tal não teria sido possível no período “clássico” darevolução de outubro, muito menos no de Marx, pois as forças produti-vas ainda não estariam maduras para o colapso sistêmico. Assim, fizerammais ou menos o que se podia esperar, e bem mais que isto, no caso dogênio de Marx.

Hoje, porém, este amadurecimento teria ocorrido. Mas será que o prob-lema é mesmo o apego dos marxistas ao “Marx da luta de classes”? Opróprio Kurz, sempre que questionado sobre propostas de ação concretas,esquiva-se com a evasiva (justa) de que nenhum teórico individual é capazde encontrar soluções para problemas de tal magnitude, devendo contudoestimular a reflexão dos movimentos sociais, os únicos capazes de trans-formações efetivas, nesse sentido. Em outras ocasiões, o mesmo Kurzpropõe que a reflexão teórica se volte para a questão do desenvolvimento

37 ANDERSON, Perry. A Crise da crise do marxismo, pp. 93-4.

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240 Marco Schneider

de formas embrionárias de sociabilidade não capitalistas dentro do capi-talismo, que serviriam de modelos ou laboratórios para sua efetivação emescala mais ampla, para além do capital. Mas não se detém neste tema.Mais recentemente, ele tem insistido em se evitar comprometer o rigorcrítico da teoria com soluções imediatistas.

Bem, nesse ponto, é importante voltarmos a Lenin, como propõe Zizek,não no sentido de repetirmos suas estratégias (datadas, em parte), mas node retomarmos a necessária conexão entre teoria crítica e ação coletiva,ou seja, a práxis revolucionária, como o que de mais importante há afazer. Mas de que forma? E qual o papel da comunicação e do gostonessa história?

Antes de retomarmos essas questões, é importante nos determos um poucomais no presente debate com Kurz. Em dado momento,38 ele desenvolveuma importante distinção entre, de um lado, a noção de classes sociais“mistificadas como meta-sujeitos sociais” e, por outro lado, enquanto cat-egoria social analítica. Cabe perguntar: a crítica (aliás correta) à “misti-ficação” invalida a “categoria social analítica”, ou mesmo prova de modoconclusivo a inexistência ou falência das classes enquanto algo mais doque uma mistificação? Kurz não chega propriamente a afirmar isto, mastal idéia é insinuada ao longo de grande parte de sua obra, o que a converteem uma bela teoria desprovida de qualquer base social de ação.

Sobre a importância desta base social para o sucesso da implementação deuma alternativa sociometabólica ao capital, que lhe seja superior, Mészárosé contundente:

[...] o resultado positivo não depende de reconheceremos intelectuais que a justificação histórica do sistema do cap-ital está superada, mas da força material de um sujeito so-cial consciente capaz de erradicar o capital do processo so-ciometabólico, superando desse modo a dominação da “riquezaestranha” sobre a sociedade. Se tal sujeito provar ser inferiorà tarefa, não pode haver esperança para o projeto socialista.Mas, neste caso, não haverá esperança de sobrevivência para ahumanidade.39

Por outro lado, se Kurz estiver certo ao afirmar que a terceira revolução in-dustrial (microeletrônica) conduz o capitalismo ao seu limite lógico – pois

38 KURZ, Robert. O Colapso da modernização, p. 48.39 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 942.

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A Comunicação e o Gosto 241

eliminando o trabalho abstrato elimina sua própria “substância geradorade valor” –, o conseqüente esvaziamento da classe operária torna inviável,queira-se ou não, sua possibilidade de ação transformadora. Mas, sendoassim, o que resta para uma perspectiva emancipatória concreta? Kurz dáa resposta: a elaboração de uma nova teoria radical que possa orientar osmovimentos sociais. Certo, mas quais “movimentos sociais”?

O que tornava a classe trabalhadora do século XIX, ou melhor, o proletari-ado industrial urbano, uma classe revolucionária era o fato de ser a pro-dutora da parte mais substancial da riqueza social e ao mesmo tempo seralienada desta mesma riqueza; era o seu número; era a especificidade de aprópria organização coletiva da produção industrial agrupar os operáriosna forma de verdadeiros exércitos de produção, o que facilitava sua con-versão em exércitos revolucionários. Esvaziado o proletariado em suaconformação “clássica”, inviabilizada a perspectiva de tomada violentado aparelho de Estado, este mesmo enfraquecido diante das contradiçõesinternas e externas de uma economia globalizada, a quais movimentossociais dirigir-se, e com qual perspectiva de ação revolucionária?

Como esta questão permanece sem resposta, e nem mesmo é formuladacom a mesma insistência e rigor de outros momentos de seu pensamento,a proposta de Kurz de se elaborar uma nova teoria radical que possa orien-tar os movimentos sociais converte-se, malgrado seu autor, em idealismo.

Portanto, se se tem por objetivo não somente uma teoria emancipatória,mas ações emancipatórias, e já que é ponto pacífico que a superação domoderno sistema produtor de mercadorias só pode ser fruto de práxiscoletivas, faz-se necessário, junto à crítica fundamental à mistificaçãodas classes enquanto meta-sujeitos sociais, conservar a categoria socialanalítica “classe social” de modo a identificar, nos “movimentos sociais”atuais, aqueles aos quais, por seus interesses concretos de classe, aindaque não conscientes, e por sua força organizacional e numérica concreta,ainda que potencial, a teoria deveria ser apresentada enquanto orientaçãocrítica da ação.

Se das táticas de ação de Marx para o século de XIX pode-se dizer quejá cumpriram sua missão histórica, nem por isso deixa de ser urgente,caso se queira conservar e operacionalizar sua crítica ao fetiche do valor,o desenvolvimento de um projeto positivo de ação, caso contrário fica-seenclausurado em um idealismo criticista impotente.

Pode-se também perguntar: a crítica de Kurz ao Marx do movimentooperário vale para “luta de classes” somente no que se refere ao prole-

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tariado industrial atual como sujeito social, como o sujeito histórico darevolução, ou também enquanto categoria de análise mais ampla e objetode organização política?40 Ou seja, será que junto ao projeto da revoluçãooperária clássica, também teria “vencido a validade” da tarefa de se buscarentender e superar contradições sociais à luz da idéia de que os “sujeitos-mercadoria”, como quer Kurz, o são de formas variadas e conflitantes,tenham disso consciência ou não, de acordo com a posição que ocupamem meio às relações de produção?

Como, afinal, superar a “forma comum”, o “sujeito automático”, o capi-tal? No séc. XIX, Marx acreditava que através de uma

[...] declaração da revolução permanente, da ditadura declasse do proletariado como ponto necessário de transição paraa supressão das diferenças de classe em geral, para a supressãode todas as relações de produção em que estas repousam, paraa supressão de todas as relações sociais que correspondem aessas relações de produção, para a subversão de todas as idéiasque brotam dessas relações sociais.41

Talvez seja uma solução estrategicamente datada. Mas devemos deliber-adamente nos esquivar, mesmo dentro dos limites do campo teórico, doesforço de elaborar uma estratégia de ação atual que vá além da teoria? Ese a resposta é negativa, a noção de luta de classes deveria ser abandon-ada? Também não, pois “[...] a questão da crítica radical é inseparáveldaquela de um agente social em relação ao qual é possível vislumbraruma alternativa estrutural à ordem social dada.” 42

Não se pode negar que a posição de Kurz é coerente com sua leitura deMarx. Epistemologicamente, para ele, o que permanece vivo do pensa-mento de Marx não é o seu caráter revolucionário propositivo, enquantofundamento teórico para o desmantelamento da sociedade capitalista e aconstrução da socialista, mas seu caráter crítico radical e sua profundi-dade analítica:

40 Em O Colapso da Modernização, o próprio Kurz destaca a importante distinção entreclasse social como categoria de análise e sujeito histórico.

41 MARX, Karl. Las luchas de clases en Francia de 1848 a 1850. Docu-mento eletrônico: http://www.marxists.org/espanol/m-e/1850s/francia/index.htm. Acesso em: jun 2004. Os bolcheviques e aqueles que seguiram seu modelo,viram na ditadura do partido comunista a encarnação da ditadura do proletariado. Esta, porém,enquanto transição para a supressão do capital, jamais ocorreu.

42 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 234.

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A Comunicação e o Gosto 243

A obra de Marx, de acordo com o seu significado atual,representa antes uma teoria negativa do colapso do que umateoria positiva do “desenvolvimento socialista”, embora tenhasido explorada pelas ditaduras burocráticas para a legitimaçãodo socialismo de estado. Por isso, o arcabouço lógico e analíticodo marxismo é a projeção teórica do capitalismo e de seu de-senvolvimento até o seu futuro estado maduro de crise.43

É por ver as coisas deste modo que Kurz propõe, em diversos textos,44 adistinção entre o Marx da crítica ao fetiche do valor e o da luta de classes.Considerando mais de perto a obra de Marx, entretanto, a distinção semostra simplesmente inviável. Ou seja, ainda que no plano estritamenteteórico, é logicamente impossível insistir na crítica ao fetiche do valorabandonando a noção de luta de classes. Vejamos.

Kurz chega a afirmar que “a tentativa marxiana de transcender o capitalpor meio de uma mera absolutização da ‘classe operária’ [...] foi sempreuma construção enviesada, pois assim se intentava alcançar em totalidadeo que era um momento particular, imanente ao próprio capital.” 45

Será mesmo? Vejamos: “Proletariado e riqueza são antíteses. E nessacondição formam um todo. Ambos são formas do mundo da propriedadeprivada. Do que aqui se trata é da posição que um e outra ocupam naantítese. Não basta esclarecê-los como os dois lados – ou extremos – deum todo.”46

Nesta passagem, Marx e Engels parecem refutar a crítica de Kurz, exata-mente por lhe darem razão. Ou seja, se trocarmos o conceito “propriedadeprivada” por “capital”, como aliás o próprio Marx viria a fazer mais tarde,percebemos uma antecipação do raciocínio de Kurz sobre o capital con-stituir a única totalidade. O que se perde em Kurz, porém, são os pólospositivo e negativo desta totalidade, as classes em disputa, a antítese con-

43 KURZ, Robert. Marx 2000. Documento eletrônico: http://www.exit-online.org/textanz1.php?tabelle=transnationales&index=1&posnr=678&backtext1=text1.php.Acesso em: jul. 2006.

44 O tema é recorrente, como pode ser constatado de modo inquestionável em uma entrevistarelativamente recente. Cf. KURZ, Robert. Entrevista a Sonia Montaño. In. Revista IHU On-Line, no. 188, 10.07,2006. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, S.Leopoldo, Porto Alegre,RS. Documento eletrônico: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz234.htm. Acesso em: jul. 2006.

45 KURZ, Robert. A Intelligentsia depois da luta de classes. Documento eletrônico:http://obeco.planetaclix.pt/rkurz38.htm. Acesso em: dez. 2004.

46 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo, 2003a,pp. 47-9.

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stitutiva e potencialmente supra-sunsora; o proletariado só é a classe uni-versal na medida em que seu interesse particular em se libertar do capitalsó pode ser efetivado na prática mediante a libertação universal de toda ahumanidade. Em termos dialéticos, é uma particularidade atual que car-rega em si uma potência universal, a qual só se atualiza no momento emque seu ser social de classe se desvanece, carregando consigo as demaisclasses e a própria sociedade de classes. Por outro lado, como demon-stra Mészáros sobre a atuação concreta da burguesia na manutenção dosistema, “a capacidade do capital de deslocar suas contradições opera pormeio da atividade e da prática mediadora da classe que positivamenteidentifica seus interesses com os limites objetivos deste sistema de cont-role sociometabólico.” 47

É verdade que ao chamar de “falsa imediatez sociologista” a expectativamarxiana (e marxista) de ver na classe operária do séc. XIX e início doXX “o” sujeito histórico da superação do capitalismo, Kurz certamentetem razão. Mas quando ele joga fora, junto a este sociologismo imedi-atista, a categoria analítica luta de classes e a práxis revolucionária po-tencial nela calcada, permanentemente atualizada enquanto a sociedadepermanece dividida em classes antagônicas, enfraquece sua própria críticaenquanto prática teórica emancipatória.

Afinal, como disse Marx em uma outra circunstância: “alguns dos cidadãosque intervieram em nosso debate, ao intentarem atenuar as proporções dascoisas e apresentar esta relação fundamental entre o empregador capital-ista e o operário como uma questão secundária, cometeram [...] um erro.”48

Ou, como diria, hoje, Mészáros:

Acreditar, como dizem, que as contradições do capital edo trabalho não existem, ou que nunca serão reconhecidas eque jamais sofrerão a ação daqueles que mais sentem seusimpactos devastadores, exige que também se acredite que opovo nada mais é do que cegos idiotas para sempre hipno-tizados pelas promessas da “circulação econômica” univer-salmente benéfica do capital, embora os fracassos monstruososdo sistema afetem diretamente a vida de bilhões de pessoas. A

47 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital. São Paulo e Campinas: Boitempo e Editorada Unicamp, 2002, p. 466.

48 Cf. Salário, Preço e Lucro. Documento eletrônico. Disponível em:http://www.marxists.org/portugues/marx/1865/06/salario/index.htm. Acesso em: jul 2004.

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A Comunicação e o Gosto 245

avaliação feita por Marx do desenvolvimento da consciênciasocial é muito mais plausível, ao enfatizar que “o reconheci-mento do produto como algo seu, e a consciência de que suaseparação das condições de realização é uma injustiça – umarelação imposta pela força – é um enorme avanço da consciên-cia, ela própria o produto do modo de produção capitalista etambém o ANÚNCIO DO SEU DESTINO, tal como a con-sciência do escravo de que ele não poderia ser a propriedadede outro reduziu a escravidão a uma existência artificial, hesi-tante, e tornou impossível para ela continuar a prover as basesda produção”.49

Kurz poderia argumentar que, efetivamente, as circunstâncias eram out-ras e que, hoje, o desemprego estrutural promovido pela revolução mi-croeletrônica – que aumenta de forma brutal a parte constante do capitalem relação à variável em sua composição orgânica – e a ausência da ger-ação de novos mercados de massa compensatórios têm tornado o própriotrabalho abstrato obsoleto como substância do valor (conseqüentemente omovimento operário), o que representa um curto-circuito no sistema, masnão propriamente uma alternativa de socialização superior.

Ainda assim, a acumulação de capital – que ocorre graças a uma gigan-tesca taxa de mais valia relativa – e sua concentração em cada vez menosmãos conduzem à formação de uma espécie de superburguesia transna-cional e a uma pauperização crescente das demais classes e frações declasses em escala global (demos a estas o nome que quisermos), que a elapodem se opor e, de fato, se opõe, mesmo que ainda não sob a forma demovimentos conscientes de classe, nem de modo eficaz numa perspectivapara além do capital enquanto “forma comum”.

Todavia, este caráter não conscientemente classista50 dos movimentossociais de resistência da atualidade não deveria nos surpreender, muitomenos a Kurz, que sabe muito bem que:

Uma organização social nunca desaparece antes que se de-senvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de con-ter; nunca relações de produção superiores se lhe substituem

49 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, pp. 716-7. As citações de Marx destapassagem são atribuídas por Mészáros ao título “Economic-works: 1861-1864”, p. 246. Asreflexões de Marx sobre o papel econômico da consciência do escravo são de uma importânciadecisiva para a presente pesquisa.

50 Que é um dado fundamental para esta tese.

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antes que as condições materiais de existência destas relaçõesse produzam no próprio seio da velha sociedade. 51

Ou, numa formulação de nossos dias que aproxima a questão um poucomais do objeto da presente pesquisa: “Mesmo as palavras mais emotivase eloqüentes de exortação ideológica são impotentes caso não estejamsustentadas por forças materiais dinâmicas e tendências objetivas de de-senvolvimento.” 52

Ora, se essas “tendências objetivas de desenvolvimento” dizem respeitosobretudo ao fato de a superação total do capital só poder concretamenterealizar-se quando todo o mundo estiver a ele subordinado, numa econo-mia globalmente integrada, o início do domínio completo da burgue-sia (transnacional) não poderia ser representado pela “guerra total” deBush? Afinal, será que a “pura expressão política” da dominação bur-guesa era mesmo o Estado nacional? Ou este foi necessário somente emseus primeiros estágios?

Se essa hipótese estiver correta, o problema da luta de classes não teriarealmente chegado ao fim; pelo contrário, parafraseando Kurz contraKurz, “continua de pé e só agora passa a ser efetivo”. Talvez o que tenhaacabado, em 1989, não seja “a luta de classes”, “o Manifesto”, comopropõe Kurz, mas simplesmente a práxis da Terceira Internacional, comtoda a sua carga de reducionismo politicista, taticista, que caracterizou alegitimação ideológica do Leste e do sul “comunistas”. Por isso, mais doque falar em um Marx da crítica ao fetiche do valor e em um “outro”,da luta de classes, é preciso distinguir uma epistemologia marxiana aindainsuperada de uma política datada, e sobretudo elaborar novas práxis.53

Nesse sentido, retomando Lukács, e aceitando o postulado de Kurz deque o movimento operário “clássico” teria atuado não para além, maspara dentro do capital, poderíamos concluir que o proletariado ainda não

51 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política, pp. 24-5.52 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 426.53 E é nesse ponto, como veremos adiante, que a presente discussão, embora extensa, se

mostra relevante e mesmo indispensável para a compreensão da dialética interna do gosto,entre sabor/prazer e saber/conhecimento, e de sua dialética externa, de complexo atualmentedeterminado pela economia mercantil, mediante a atuação das ITCs, mas potencialmente de-terminante de uma economia humanizada, passagem para a qual essas mesmas ITCs poderiamser instrumentalizadas, dentro de uma luta política mais ampla, para a qual, entre outros fatores,seria importante que fosse de algum modo recriado “o pathos dos primeiros movimentos daclasse trabalhadora”, na expressão de Lukács. Cf. LUKÁCS, apud MÉSZÁROS, Istvan. Paraalém do capital, p. 494.

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se fez sujeito histórico, isto é, sujeito consciente de seu próprio destino –por que, em estágios anteriores de desenvolvimento do capitalismo, istosimplesmente não era possível.

10.4 A Luta de classes hoje

Podemos agora afirmar que é na compreensão do conceito modo de pro-dução como totalidade histórica que as noções de fetiche do valor e lutade classes tornam-se fecundas em sua complementaridade dialética, com-pondo o arcabouço teórico para uma análise marxista rigorosa do con-junto das atividades humanas, para além de qualquer economicismo ousociologismo.

Nesta linha de raciocínio, ao invés de descartarmos a noção de luta declasses, seria talvez o momento de repensá-la em um outro patamar, paraalém dos Estados nacionais e das formas convencionais de organização(sindicatos e partidos), retomando em novas bases o internacionalismooriginal do movimento operário. Os fóruns sociais internacionais e açõessimilares podem representar um esboço nessa direção, não como mani-festações do proletariado fabril em sua expressão clássica, mas como aconfluência organizada54 dos não-proprietários dos meios de produção55

de todo o mundo num sentido nitidamente antiburguês:

[...] a transcendência do Estado e quem a desencadeia, oproletariado (ou, para utilizar um termo teoricamente mais pre-ciso: o trabalho, o antagonista estrutural do capital), estão in-separavelmente ligados e constituem o ponto central da teoria

54 Organização esta, diga-se de passagem, que tem nas novas tecnologias da comunicaçãoum suporte fundamental.

55 Sabemos que, hoje, com a pulverização acionária da propriedade dos meios de produção,e com a hegemonia do capital financeiro na economia global, faz pouco sentido insistirmos nafigura do capitalista do século XIX enquanto “o burguês”. A burguesia, porém, é hoje consti-tuída por aqueles que detém o controle mais substantivo da terra, dos meios de produção (osprincipais acionistas e as “encarnações” do proprietário na forma de executivos) e dos aparatos– repressivos e ideológicos – de Estado (a burguesia gerencial e financeira e seus representantespolíticos), determinando, de maneira menos ou mais consciente, o destino da esmagadora maio-ria das pessoas, sob o imperativo cego da valorização do valor, nos limites da coação da concor-rência e das lutas intraclassistas e entre as classes. O pequeno-burguês, por sua vez, continua aser basicamente o pequeno proprietário. E quem é o proletariado de hoje? A “classe que vivedo trabalho”, conceito proposto por Ricardo Antunes. Ver ANTUNES, Ricardo. Os Sentidosdo trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.

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política de Marx. Não há qualquer romantismo em sublinharsua importância desse modo: apenas um alerta destinado àque-les que querem expurgá-lo da estrutura conceitual de Marx,que deveriam perceber quanta coisa mais – de fato, quase todoo resto – teria que ser jogado ao mar junto com eles.56

Ou seja, como vimos, a própria crítica ao fetiche do valor só é pensávelno quadro de uma sociedade dividida em classes antagônicas, mais es-pecificamente em capitalistas e proletários, entendidos não somente comosubjetividades empíricas, mas igualmente enquanto personificações dascategorias econômicas capital e trabalho.

O fetiche do valor, forma hegemônica de socialização sob o regime docapital, reproduz as classes em luta e é por elas produzido. Como pensarsua superação sem a superação das classes? E como pensar esta superaçãose as eliminamos da reflexão crítica? É possível pensar as classes como“meta-sujeitos históricos”, sem cair na mistificação idealista ou em um“reducionismo sociologista” qualquer; é possível conservar seu caráterde abstração teórica essencial; pois é “a divisão social do trabalho” o que“constitui o fundamento geral de toda produção de mercadorias”,57 e asclasses são a causa e o efeito desta divisão.

Kurz, como é sabido, pensa diferente.

Em artigo recente, refletindo sobre uma possível retomada na luta declasses, na Alemanha de hoje, e concluindo por sua improbabilidade, oautor alemão, embora reconheça a importância da greve, pondera, comrazão, que sozinha ela só pode ser ineficaz, sendo necessário o desen-volvimento de outras formas de combate ao capital agregadas a ela, pois:

já não se pode continuar a falar do “braço forte” que fazparar todas as rodas. Os empregados estão enfraquecidos e es-tilhaçados pelo outsourcing.58 Antes de mais nada [...] dominana “constituição orgânica do capital” (Marx), há muito tempoe cada vez mais, o emprego dos meios materiais cientificiza-dos. Os preços destes quase não são rebaixáveis através depressões, ao contrário do preço do bem mão-de-obra. [...] Averdadeira “classe que cria mais valia” está a encolher, é nissoque consiste o limite intrínseco da acumulação. E é por isso

56 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 571.57 MARX, Karl. O Capital. Livro I, v. 1, p. 406.58 “Outsourcing”: externalização de custos, terceirização de atividades.

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que esta base se tornou demasiado estreita para uma resistên-cia social com força convincente.59

Em linhas gerais, o raciocínio é irretocável, a não ser por um ponto: será ooperário de fábrica realmente a única “classe que cria mais valia”? Não.Pois já no capitalismo embrionário do século XIX, Marx podia afirmarque:

Há [...] ramos industriais autônomos em que o resultado doprocesso de produção não é nenhum produto, nenhuma mer-cadoria. Entre eles, o único setor importante, do ponto de vistaeconômico, é o de transportes e comunicação, que abrangetanto o transporte de mercadorias e pessoas quanto a trans-missão de notícias, serviço postal etc.60

E o que dizer das diversas novas formas de trabalho produtivo (do pontode vista do capital, isto é, geradores de mais-valia) do capitalismo con-temporâneo ao redor do planeta?61

Resta, em meio a este quadro, o desafio de se localizar o sujeito social rev-olucionário nos dias de hoje. Neste sentido, Mészáros nos fornece duasindicações metodológicas fundamentais. A primeira refere-se à neces-sidade de se identificar sua configuração sociológica e aos critérios quedevem ser considerados nessa identificação:

O sujeito da emancipação não pode ser arbitrária e volun-tariamente predefinido. Ele só estará apto para criar as condiçõesde sucesso se abranger a totalidade dos grupos sociológicoscapazes de se aglutinar em uma força transformadora efetivano âmbito de um quadro de orientação estratégica adequado.O denominador comum ou o núcleo estratégico de todos esses

59 KURZ, Robert. O Caso está a ficar sério. Documento eletrônico: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz169.htm. Acesso em: jul 2007.

60 Isso porque o valor que o dispêndio de força de trabalho envolvido nesses meios acrescentaao produto consiste em lhe proporcionar deslocamento espacial, além de acelerar a circulação,conseqüentemente os ciclos do capital, e portanto a realização da mais-valia e da reproduçãoampliada. É desnecessário mencionar o gigantesco crescimento desses setores do tempo deMarx aos dias de hoje, tanto em termos absolutos quanto relativos. Cf. MARX, Karl. OCapital. Livro II, p. 64.

61 Para um estudo mais aprofundado dessa questão, ver ANTUNES, Ricardo. Os Sentidosdo trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.

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grupos não pode ser o “trabalho industrial”, tenha ele colar-inho branco ou azul, mas o trabalho como antagonista estru-tural o capital. Isto é o que combina objetivamente os inter-esses variados e historicamente produzidos da grande multi-plicidade de grupos sociais que estão do lado emancipador dalinha divisória das classes no interesse comum da alternativahegemônica do trabalho à ordem social do capital.62

Esse argumento é muito importante, pois não é somente, nem principal-mente, o número dos membros de uma massa (embora não seja um fatordesprezível) o que lhe confere um potencial revolucionário, mas a posiçãoestratégica que seus integrantes ocupam em meio às relações de produçãode um dado modo de produção em um determinado momento histórico –e a universalidade de suas reivindicações.

Sobre esta questão, Marx nos diz algo fundamental, tomando como objetode análise o campesinato francês por ocasião do 18 Brumário:

Na medida em que milhões de famílias camponesas vivemem condições econômicas que as separam umas das outras, eopõem o seu modo de vida, os seus interesses e sua culturaaos das outras classes da sociedade, estes milhões constituemuma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenoscamponeses apenas uma ligação local e em que a similitudede seus interesses não cria entre eles comunidade alguma, lig-ação nacional alguma, nem organização política, nessa exatamedida não constituem uma classe. São, conseqüentemente,incapazes de fazer valer seu interesse de classe em seu próprionome [...]63

Temos também, nesta passagem, um excelente exemplo do modo comoMarx articulava em suas análises a dimensão política com a econômica

62 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, 51.63 MARX, Karl. MARX, Karl. O 18 brumário de Luiz Bonaparte. Documento eletrônico:

http://www.marxists.org. Acesso em: mar. 2006. Vemos aqui a diferença entre classe enquantosujeito econômico e classe enquanto sujeito político, o que Lukács, em termos hegelianos,definiria mais tarde como a diferença entre “classe-em-si” e “classe-para-si”. A passagem deuma à outra se dá mediante a emergência da consciência de classe, a qual, porém, não surgepor geração espontânea, mas em meio à própria luta de classes, seja mediante a atuação dosintelectuais marxistas junto ao proletariado, seja pela própria pressão das contradições acirradasno desenvolvimento do capitalismo. O fato é que essa questão merecia ser trazida de volta aodebate de hoje.

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da noção de classe, além de uma expressiva ilustração da razão pela qualo mero número e a subordinação comum não bastam para a formaçãode uma consciência e para a implementação de uma ação revolucionária,questão que nos remete à segunda indicação metodológica de Mészárosmencionada acima, aquela que diz respeito ao papel “vital da ideologiasocialista”:

O papel vital da ideologia socialista, como negação radicalda ordem estabelecida, consiste precisamente em identificare ajudar a ativar, através de sua orientação abrangente, todasaquelas mediações potencialmente libertadoras e que tenhama capacidade de transcender essa ordem, mediações que, semsua ativa intervenção, permaneceriam adormecidas e domi-nadas pelo poder do isolamento da imediaticidade, gerenciadae manipulada pela ideologia dominante.64

Tendo isto em conta, se por um lado Kurz parece estar certo ao afir-mar que a luta do movimento operário “clássico”, que ocorreu num está-gio pouco desenvolvido do capitalismo, era voltada não contra o capital,mas contra resíduos pré-capitalistas nas relações de trabalho e na orga-nização da sociedade como um todo, esta verdade é limitada na medidaem que, por outro lado, esta era uma etapa necessária na luta contra ocapital, ainda que nem todos os combatentes, ou mesmo a sua maioria,soubessem disso.65 Além disso, sua alternativa de transformação social apartir da conscientização de “grandes movimentos de massa”, sem um las-tro classista, é vaga e idealista, pois: 1) conceitualmente, “massa” é umamá alternativa para “classe”, ainda que a última categoria possa suscitarconfusões, e 2) ao contrário do antigo proletariado fabril, as “massas”atuais, embora permaneçam sob o jugo do trabalho abstrato e do capi-tal, seja na forma do emprego, do subemprego ou do desemprego, nãodispõem de nenhuma organização estratégica;66 tampouco são, enquantomassas, diretamente responsáveis pela produção de riqueza na forma de

64 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 239. Mészáros refere-se a importantesmovimentos de conteúdo libertário mais particulares, isto é, sem apelo universal: negros, mul-heres, imigrantes, gays etc.

65 O que nos remete à relevância da formulação de Lukács, sobre uma consciência de classepossível, na passagem da consciência em si à consciência para si.

66 Com exceção dos movimentos sociais, cujo estudo, necessário e pertinente ao tema destetrabalho, extrapola nosso tempo e conhecimentos atuais. Podemos porém constatar que, namedida em que estão organizadas em movimentos sociais, perdem a qualidade de massas e,na medida em que se opõe, com graus variados de consciência, à burguesia enquanto “person-

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mercadorias, o que as torna, do ponto de vista do “sujeito automático”,mais ou menos descartáveis conforme sejam mais ou menos produtivas esolventes.67 Ou seja, na prática, não há coações concretas que favoreçamsua organização, nada indica que razões subjetivas apontem nesse sentidoe, por fim, servem cada vez menos para o capital, por isso são sistemati-camente eliminadas.

Assim, é teoricamente necessário que se investigue, em meio à complexarede de cooperação e conflitos entre as classes e frações de classe atuais,quais deveriam ser apoiadas, estimuladas ou combatidas no sentido de seevitar o “aniquilamento das [...] classes em confronto”,68 que hoje trariaconsigo, mais do que a barbárie, a própria entropia sociometabólica.

Uma leitura do Manifesto à luz do 18 Brumário nos ajudaria nessa in-vestigação, nos permitiria enxergar que a noção bipolar de duas classesem confronto – a burguesia e o proletariado industrial do século XIX –é tanto uma esquematização simplificada, datada e didática/motivacional(trata-se de um manifesto) sobre um processo muito mais complexo edinâmico – que envolve, em meio à luta entre as duas principais classesantagônicas, as lutas e alianças internas e externas que envolvem diver-sas frações de classe – quanto uma abstração teórica fundamental. Nostermos de Lukács:69

são corretas as fórmulas de Marx, que se baseiam no fun-damento de uma hipótese metodologicamente isolante de umasociedade composta apenas de capitalistas e proletários? Quala melhor maneira de interpretá-las? Os críticos ignoravam

ificação de categorias econômicas”, adquirem no mesmo grau a qualidade de movimentos declasse.

67 O que, sem dúvida, representa um “tiro no pé” do próprio “sujeito automático”, já que,em face da superprodutividade atual, cai o valor unitário de cada mercadoria, e não havendouma demanda solvente – devido sobretudo ao “desemprego estrutural” (Kurz) crescente ger-ado pela revolução microeletrônica –, a gigantesca mais-valia relativa gerada na produção nãotem mais como se realizar na esfera da circulação, e o capital perde aos poucos sua capaci-dade fantasmagórica de completar novos ciclos e “rotações” (Marx, O Capital, livro 2) em seuprocesso de reprodução ampliada, de se expandir continuamente, o que conduz fatalmente aodesmoronamento do edifício capitalista, adiado ultimamente pela queima de excedentes atravésdas guerras e pela especulação nos mercados financeiros – dispositivos extremos que por si sóatestam a anormalidade do andamento normal das coisas, e que não têm como funcionar parasempre. Mas o que brotará dos escombros se nada eficaz for feito para “aliviar as dores doparto”?

68 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista, pp. 23-4.69 Nesta passagem, Lukács critica alguns críticos de Rosa Luxemburgo.

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por completo o fato de que essa hipótese, em Marx, era ape-nas uma hipótese metodológica para compreender o problemade maneira mais clara, antes de avançar para a questão maisabrangente, que situava o problema em relação à totalidade dasociedade. 70

Resta, hoje, a questão: a que frações de classe, e não a que massas, deveriaa “conscientização” se dirigir? Em outros termos, é o que se perguntaZizek:

O que fazer a propósito da importância crescente da “pro-dução imaterial” hoje (ciber-trabalhadores)? Devemos insistirque somente aqueles envolvidos na produção material “real”constituem a classe trabalhadora, ou damos o passo final e de-cidimos aceitar que os “trabalhadores simbólicos” são os (ver-dadeiros) proletários de hoje? Deve-se resistir a dar este passo,por que isto mascara a DIVISÃO entre produção imaterial ematerial, a CISÃO na classe operária (em regra geografica-mente delimitada) entre ciber-trabalhadores e trabalhadoresmateriais (programadores nos EUA e na Índia, sweat shops71

na China ou na Indonésia).72

Temos aí a divisão entre produção imaterial e material correspondendorespectivamente a uma elite operária e a uma massa operária menos qual-ificada, distribuídas pelo planeta de maneira bem delineada. Na seqüênciadesta passagem, Zizek acrescenta:

Talvez, a figura do DESEMPREGADO seja aquela na qualmelhor se encaixa o proletário puro de hoje: a determinaçãosubstancial do desempregado permanece a de um trabalhador,mas eles estão impedidos de atualizá-la OU de renunciar aela, de modo que permanecem suspensos na potencialidade detrabalhadores que não podem trabalhar.73

70 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe, pp. 111-2.71 Locais onde se trabalha sob condições degradantes, não obstante estarem vinculados a

grandes corporações transnacionais. Um exemplo típico são as fábricas da Nike na Indonésia.72 ZIZEK, Slavoj. Repeating Lenin. Documento eletrônico: http://www.lacan.

com/replenin.htm. Acesso em: mar. 2004.73 Idem, ibidem.

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Esta é certamente uma proposta temerária, pois os “desempregados crôni-cos” são tão desarticulados quanto os camponeses estudados por Marx no18 Brumário e tão “revolucionários” quanto o lumpesinato, por quem elenão nutria maiores simpatias.74 Não obstante, é o esboço de uma análise,não importa por ora se correta ou equivocada, das sociedades contem-porâneas sob o prisma da luta de classes. E esforços neste sentido são fun-damentais, pois, se estamos todos subordinados ao capital, isto se dá deforma diferenciada, diferença esta mediada, sim, por “categorias sociais”75 de cunho etário, étnico, de gênero etc., mas, sobretudo, pela divisão deCLASSE – hoje integralmente determinada pela divisão internacional dotrabalho. Por isso, “uma vez negada a realidade da luta de classes, todasas pretensões de radicalismo acabam junto com esta negação.” 76

Assim, se uma “economia totalitária” (Kurz) faz com que as pessoassó sejam sujeitos de direito pela sua propriedade de vender ou comprarforça de trabalho, ainda que esta esteja se tornando, conforme sustentaKurz, cada vez menos vendável, é a posição que cada um ocupa emmeio à divisão social do trabalho, às relações de produção, isto é, suaposição de CLASSE, que determina seu “ser social”; é verdade que setrata de um processo fetichista, mas real, e “existente”, se quisermos serhegelianos. Pois é a forma empírica, fenomênica, como se dá a objeti-ficação dos sujeitos enquanto proprietários dos meios de produção, lat-ifundiários, rentistas nas mais diversas escalas, ou produtores de mer-cadorias (e serviços), ou ainda no papel de excluídos da própria repro-dução da vida, que os diferencia enquanto sujeitos de CLASSE, menosou mais conscientes. Isto faz com que todos, a despeito de estarem pre-sos, como sustenta Kurz, na mesma imanência fetichista, possuam inter-esses antagônicos. É a este antagonismo e a seu potencial revolucionárioque Marx se refere quando menciona o processo de alienação do própriotrabalho a que está submetida a classe trabalhadora (“o operário”), emoposição e complementaridade ao capital (“o capitalista”):

Aqui o operário está logo de início num plano superior aodo capitalista, porquanto este último criou raízes nesse pro-cesso de alienação e nele encontra a sua satisfação absoluta, aopasso que, na sua condição de vítima do processo, o operáriose acha de imediato numa situação de rebeldia e o sente como

74 No que, ao que tudo indica, ele tinha razão, se considerarmos os acontecimentos narradose analisados no 18 Brumário, para não falarmos dos pogromistas russos ou do nazifascismo.

75 Cf. LÖWY, Michael. Ideologias e ciências sociais.76 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 163.

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um processo de sujeição. [...] A autovalorização do capital – acriação de mais-valia – é [...] objetivo determinante, predom-inante e avassalador do capitalista, impulso e conteúdo abso-luto de suas ações; na realidade, não é outra coisa senão o afãe a finalidade racionalizados do entesourador. Conteúdo abso-lutamente mesquinho e abstrato, que, sob certo ponto de vista,faz o capitalista aparecer como que submetido a uma servidãopara com a relação do capital que é igual, embora também deoutra maneira, à do seu pólo oposto, à do operário.77

Sendo assim, é inaceitável a idéia de que, para que se possa desenvolverpráxis para além do “moderno sistema produtor de mercadorias” (Kurz),tenha se tornado inútil considerar esses antagonismos.

À luz dessas considerações, chegou o momento de nos reaproximarmosde nosso objeto.

77 MARX, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultados do processo de produçãoimediata, p. 56.

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Capítulo 11

CRÍTICA DA ECONOMIAPOLÍTICA DACOMUNICAÇÃO

Nunca é demais enfatizar que a mistificação político-ideológicanão se alimenta de si mesma (se assim fosse, seria relativa-mente fácil suplantá-la), mas de uma contradição objetiva dabase socioeconômica. (Mészáros)1

Se uma abordagem marxista da comunicação não pode consistir em umamera apologia metodológica da determinação em última instância da econo-mia sobre a superestrutura, a cultura, o universo simbólico ou como sequeira chamar, tampouco deve deixar de reconhecer a efetividade con-traditória dessa determinação, mantendo sempre atual a análise crítica deseu caráter fetichista, voltada para a sua superação.

Para compreender bem isso, devemos entender “economia” em um duplosentido, ou melhor, em dois níveis de abstração: no primeiro, o termoremete, como vimos, à “produção e reprodução da vida social”, sejamquais forem as circunstâncias; no segundo, aos diversos modos de pro-dução que existiram e foram superados por outros.

No primeiro sentido, a “determinação em última instância” é insuperável;no segundo, passível de superação. Em outras palavras, é impossívelhaver história sem que se dê alguma forma de produção e reprodução

1 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 1026.

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da vida social, mas os homens só fazem história na medida em que oconjunto de suas atividades físicas e intelectuais dirige-se no sentido deconservar ou transformar um modo de produção dado, tenham eles con-sciência disto ou não.

Assim, metodologicamente, no que diz respeito aos temas superestrutu-rais com os quais os estudos de comunicação são usualmente identifi-cados – não importa aqui em qual chave teórica, fale-se em ideologias,discursos, processos semióticos, práticas intersubjetivas ou o que for –, o marxismo consiste não em reduzir a superestrutura a mero reflexoda estrutura produtiva, mas em estudar a totalidade de cada formaçãosocial, a partir dos limites e potencialidades materiais e espirituais que aestrutura favorece ou bloqueia, em seu dinamismo, em sua complexidade,buscando, em meio aos aspectos contraditórios da totalidade concreta, omotor, ou, mais precisamente, a alavanca de sua superação – pois ummotor é um autômato e a alavanca revolucionária em ação pressupõe umsujeito autônomo alavancador. É, aliás, por esta razão que Kosik, ao re-fletir sobre a categoria da totalidade, destaca o caráter concreto da açãocriadora do homem:

[...] a totalidade de base e superestrutura permanece ab-strata se não se demonstra que é o homem, como sujeito históricoreal, que no processo social de produção e reprodução cria abase e a superestrutura, forma a realidade social como totali-dade de relações sociais, instituições e idéias; e nesta criaçãoda realidade social objetiva cria ao mesmo tempo a si próprio,como ser histórico e social, dotado de sentidos e potenciali-dades humanas, e realiza o infinito processo de “humanizaçãodo homem”.2

A esta “humanização do homem”, porém, se opõe em grande medida oregime do capital, que tem por imperativo último subordinar o conjunto davida sobre a Terra, o que envolve os “produtos do espírito”, ao princípioda valorização do valor, ou da reprodução ampliada do capital. É por estarazão que, a nosso ver, no campo dos estudos de comunicação, ainda nãosurgiram alternativas satisfatórias à tese central do pensamento frankfur-tiano, a saber, uma crítica implacável à subordinação da produção cultural

2 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 60.

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(ou simbólica) à lógica da mercadoria.3 Pode-se perfeitamente discordardas considerações estéticas de Adorno, de seu “aristocratismo”, de seupessimismo, o que for, mas é um grave equívoco passar ao largo de suaprincipal contribuição teórica para o campo da comunicação: a crítica àmercantilização da cultura.

Esta crítica, contudo, sozinha, não dá conta das diversas formas de re-sistência das audiências – menos ou mais conscientes – à dominação docapital, que ocorrem no momento da recepção – ou da “decodificação”(Hall). Essas resistências, por sua vez, no que elas possuem de politica-mente relevante, são a expressão, direta ou indireta, da luta de classes,assim como a ausência de uma reflexão mais acurada a seu respeito porparte de Adorno, Horkheimer, Marcuse ou Habermas relaciona-se comsua ilusão a respeito da “integração da classe operária”.

É neste sentido que a contribuição dos Estudos Culturais é bem vinda aocampo da Comunicação, conforme veremos agora, buscando igualmenteidentificar os seus limites.

11.1 Estudos Culturais na Sociedade do Espetáculo

Em comunicação, outrora, investigava-se de que forma e até que ponto osmeios de comunicação de massa influenciavam as pessoas; hoje se discutede que forma e até que ponto essa influência dos meios de comunicaçãoé mediada por fatores culturais de matriz não midiática, fatores estes quefavorecem leituras diferenciadas de um mesmo discurso, abalando assimas velhas teses sobre o poder manipulador uniformizante da indústria cul-tural em escala massiva.

Essa mudança, promovida pelos Estudos Culturais, foi importante, nosentido de equilibrar os exageros daqueles que, à esquerda e à direita,viam nos meios de comunicação um poder independente e total, prati-camente negando inteligência às massas.4 Seu corolário é a noção derecepção ativa.

Em um merecido reconhecimento à contribuição de Gramsci e de Bakhtinpara o marxismo, incluindo a incorporação de seu pensamento pelo que

3 Aliás, não se pode compreender adequadamente a extensão da crítica dos teóricos deFrankfurt à mercantilização da cultura sem um conhecimento adequado da crítica marxianaao fetichismo da mercadoria.

4 Cf. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados.

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de melhor se produziu no campo dos estudos culturais, é oportuno lem-brar aqui uma carta de Engels, que nos deixou uma indicação reveladorasobre uma deficiência que ele reconhecia em sua obra e na de Marx, obra,como sabemos, em boa parte comum. É precisamente esta deficiênciaque Gramsci, Bakhtin e, posteriormente, os Estudos culturais tentaramresolver.

Engels disse que faltou que ele e Marx definissem a forma como se davaa passagem do econômico para o ideológico, por terem se limitado a de-screver o conteúdo do processo global:

Nós todos colocamos inicialmente – e tínhamos de fazê-lo – a ênfase principal, antes de mais nada, em derivar dosfatos econômicos básicos as concepções políticas, jurídicase demais concepções ideológicas, bem como os atos media-dos através delas. Com isso negligenciamos o lado formal emfunção do conteúdo: o modo e a maneira como essas con-cepções etc. surgem. Isso deu aos adversários um belo pre-texto para erros e deformações [...]5

Hoje, definir a centralidade das ITCs, articulada aos demais fatores quedeterminam a forma desta passagem, isto é, a estrutura de suas mediações,bem como, partindo do simbólico, o sentido oposto e, enfim, sua dialética,é o que cumpre fazer em uma perspectiva marxista, ou materialista-dialética,da comunicação, pois, como ensina Kosik:

5 Na seqüência, Engels esclarece um mal entendido recorrente e defende um ponto de vistametodológico importante: “Relacionada com isso existe uma estúpida concepção dos ideólogos:já que negamos um desenvolvimento histórico independente às diversas esferas ideológicas quedesempenham um papel na história, negaríamos também qualquer eficácia história delas. Aquiestá subjacente a concepção vulgar, não-dialética, de causa e efeito como pólos opostos de modorígido, com o esquecimento absoluto da interação. Esses Senhores esquecem com freqüência equase deliberadamente que um elemento histórico, uma vez posto no mundo através de outrascausas, econômicas no final das contas, agora também reage sobre a sua circunstância e poderetroagir até mesmo sobre as suas próprias causas.” ENGELS, apud FERNANDES, Carta a F.Mehring, de Londres, em 14 de julho de 1893. In: FERNANDES, Florestan (org.). Marx-Engels, pp. 465-466. Sobre a hipótese de um desenvolvimento autônomo das idéias, Mészáros,na mesma linha de raciocínio de Engels, a refuta categoricamente: “[...] as várias ideologiase formas de consciência a elas correspondentes não possuem história própria, não têm umadinâmica independente de desenvolvimento, devendo ser entendidas como ligadas do modomais íntimo com os processos de desenvolvimento da vida material dos indivíduos reais.” Cf.MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 110.

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A dialética materialista como método de explicitação cien-tífica da realidade humano-social não significa [...] emparel-hamento dos fenômenos de cultura aos equivalentes econômi-cos [...], nem redução da cultura a fator econômico. A dialéticanão é o método da redução: é o método da reprodução es-piritual e intelectual da realidade, é o método do desenvolvi-mento e da explicitação dos fenômenos culturais partindo daatividade prática objetiva do homem histórico.6

Assim, dado o atual momento de desenvolvimento desta pesquisa, o ob-jeto geral7 de uma ciência marxista da Comunicação poderia ser for-mulado nos seguintes termos: o papel das ITCs na dialética das me-diações entre base e superestrutura nas sociedades de classe contem-porâneas, mediações estas que têm na economia, até segunda ordem (or-dem histórica), seu übergreifendes-Moment.8

Essa perspectiva nos afasta um pouco dos Estudos Culturais, embora hajapontos de convergência entre ambas as abordagens. Em nosso caso, asdiversas formas como se opera a influência culturalmente mediada dasITCs sobre as pessoas não é o problema em si, mas o modo e o grau comque essa influência colabora ou não para a subordinação das pessoas aocapital. É o que não se pode perder de vista, assim como a possibilidade,em termos positivos, de um outro uso dos meios.

Sob este prisma, o estudo das formas como as pessoas “ressignificam”os discursos midiáticos permanece válido na medida em que produz da-

6 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 39.7 Martino distingue o objeto de uma determinada pesquisa do objeto geral de uma disciplina

ou ciência nos seguintes termos: “O objeto de um certo trabalho de investigação é [...] a matériaintelectual que ele manipula e que só aparece nas elaborações teóricas pelas quais os fenômenosse apresentam à investigação científica [...] Por sua vez, o objeto de uma disciplina deve sercompreendido como o ponto de vista mais geral, responsável pelo recorte e pela abordagem pormeio da qual o fenômeno se apresenta ao trabalho de teorização. Ele funciona simultaneamentecomo um pano de fundo de onde se destacam as teorias e como princípio de diferença e deunidade do campo.” MARTINO, Luiz C. As Epistemologias contemporâneas e o lugar dacomunicação. In: LOPES, Maria Immacolata V. (org.) Epistemologia da Comunicação, p.87.

8 Como visto, momento de importância fundamental, momento em última instância pre-dominante, mas não único, não imune a influências freqüentemente fortes e eventualmentedecisivas de fatores de outra ordem – cultural, política, jurídica etc. É a ênfase na economiacomo o übergreifendes-Moment do processo que diferencia a posição aqui defendida daquelaapresentada por Martin-Barbero em “Dos Meios às Mediações”, obra que, no que pese umamoderação política a nosso ver excessiva, aliada a um excesso de culturalismo, é sob outrosaspectos, sobretudo aqueles históricos, bastante interessante.

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dos relevantes para que se compreenda concretamente como se dá a re-cepção dos meios em estratos definidos da população. Porém, ao se deixarde lado a análise crítica do conteúdo ideológico desses discursos, que édinâmico, escorregadio, cheio de sutilezas e não se deixa capturar tãofacilmente, e ao se “antropologizar” em demasia o consumo – como se nomomento em que nos damos conta do fato de as mercadorias exercerema função de “indexadores simbólicos”,9 elas por um passe de mágicadeixassem de ser “coágulos de trabalho” (Marx) –, corre-se o risco dese camuflar as graves conseqüências da mercantilização da cultura, comdestaque para o fato de as ITCs serem fundamentalmente conservadoras,muitas vezes reacionárias – com freqüência, onde menos se espera.

Isso pode ser facilmente demonstrado: seja no jornalismo, na publicidade,na dramaturgia ou nas demais formas de distração, os problemas catastró-ficos da realidade social jamais são apresentados como estruturais, comoexpressões necessárias do capital, mas sempre como algo remediável semque se altere substancialmente nada no que diz respeito à subsunção dotrabalho ao capital10 e dos valores de uso aos valores de troca. Assim,por exemplo, podemos nos deparar, em uma telenovela, em uma matériajornalística etc., com a dramatização ou a informação referente a um em-presário mau caráter ou a um salário ruim, mas o problema permanecesempre no nível do adjetivo, do predicado, jamais nos próprios substan-tivos “empresário” e “salário”, que expressam por si sós uma relação deexploração.

A realidade “normal” das relações capital / trabalho, deste modo, é ap-resentada como efetivamente normal, como não-problemática em termosestruturais, ou seja, é re-legitimada, desta vez no plano do imaginário,no jornalismo, na publicidade etc. Temos então que as relações soci-

9 Ver ROCHA, Everardo e BARROS, Carla. Cultura, mercado e bens simbólicos: notas parauma interpretação antropológica do consumo. In: TRAVANCAS, Isabel e FARIAS, Patrícia(orgs.) Antropologia e comunicação, pp. 181-208.

10 Cabe aqui esclarecer, de modo sumário, duas noções muito importantes no pensamento deMarx, a subsunção formal e a subsunção real do trabalho ao capital. A subsunção formal refere-se ao processo histórico de alienação (no sentido jurídico de expropriação, que é o utilizado porMarx) do produtor dos meios de produção (instrumentos de trabalho – ferramentas e máquinas– e objetos de trabalho – matérias primas) e da obra produzida, que ocorreu nos primórdios darevolução industrial, em função da divisão social (vertical, hierárquica) do trabalho, possibili-tada pela acumulação primitiva de capital nas mãos da burguesia emergente. Já subsunção realdiz respeito à desqualificação das habilidades criativas do trabalhador como conseqüência da di-visão técnica (horizontal) do trabalho. Ambas são condições necessárias para que se estabeleçao fetichismo da mercadoria Cf. MARX, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultadosdo processo de produção imediata, da pág. 72 em diante.

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ais sob o capital, o trabalho assalariado, a empresa privada, o Estado, o“mercado”, os preços, o dinheiro e todo o resto, além de sua legitimaçãoprimária no direito burguês, recebem por assim dizer um reforço na esferado imaginário espetacular: empresas, empresários, empregos, salários,preços etc. não são somente reais na vivência ordinária do dia a dia, mashiper-reais em sua existência espetacular, na tele ou cinedramaturgia, no“secondlife”, na publicidade.

Fazendo uso das categorias de Peirce, isso ocorre tanto no registro dodiscurso verbal/simbólico quanto do imagético/icônico, e é neste último,conforme sustenta Stuart Hall em outros termos,11 que o aspecto ide-ológico reacionário da semiose se mostra mais insidioso, dado o efeitode naturalidade derivado da aparência de realismo que o signo icônicopode provocar em um grau, em geral, superior ao do discurso verbal.

É por essas razões que uma leitura excessivamente culturalista da re-cepção midiática torna-se problemática. Pois se é verdade que “o trabal-hador não se produz a si próprio, [...] produz um poder independente”, 12

a recepção midiática é, a despeito de seu caráter ativo e altamente medi-ado, a forma como “o sucesso desta produção, a sua abundância, regressaao produtor como abundância da despossessão”, 13 é o processo medi-ante o qual “as próprias forças que nos escaparam mostram-se-nos emtodo o seu poderio.” 14

Em termos menos abstratos, é a parte da mais-valia investida em publici-dade e a parte do salário investido no consumo ordinário que sustentamo luxo extraordinário das imagens e sons que o trabalhador pode con-sumir semioticamente, com os olhos e os ouvidos, mas não com o restodo corpo: são as trabalhadoras pobres que pagam pela beleza do vestidode luxo, da maquiagem cara e até da forma física da modelo que elasadmiram (ou desprezam, aqui tanto faz) “de graça”. Pagam duplamente:ao produzirem o vestido de luxo e a mais-valia que custeia sua publici-dade, no caso das costureiras, e ao consumirem os produtos baratos demassa, no caso das costureiras e dos demais trabalhadores, permitindoque a mais-valia gerada nas unidades produtivas dos produtos baratosde massa se realize em sua forma monetária, de modo que as donas ou

11 Cf. HAAL, Stuart. Codificação/Decodificação. In: SOVIK, Liv (org.). Da Diáspora„ pp.392-3. Adiante, esse tópico será examinado mais extensamente.

12 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, tese 31. Documento eletrônico:http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540/. Acesso em: jun. 2005.

13 Idem, ibidem.14 Idem, ibidem.

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acionistas dessas fábricas, ou as esposas ou filhas ou amantes dos donos,comprem os vestidos de luxo anunciados, assegurando por sua vez arealização monetária da mais-valia produzida pelas costureiras, que irácustear a publicidade do vestido...

Ou seja, ainda que os produtos sejam “indexadores simbólicos”, não deixampor isso de ser “coágulos de trabalho” (Marx) – e este é, por assim dizer,seu übergreifendes-Moment. Quanto à espetacularização desses produtos,esta tem por objetivo primário, além de acelerar a circulação do capital,esconder este fato. Nos termos de Debord:

O espetáculo [...] é ao mesmo tempo o resultado e o pro-jeto do modo de produção existente. Ele não é um suplementoao mundo real, a sua decoração readicionada. É o coraçãoda irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formasparticulares, informação ou propaganda, publicidade ou con-sumo direto de divertimentos, o espetáculo constitui o mod-elo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmaçãoonipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário oconsumo. Forma e conteúdo do espetáculo são identicamentea justificação total das condições e dos fins do sistema exis-tente. O espetáculo é também a presença permanente destajustificação, enquanto ocupação da parte principal do tempovivido fora da produção moderna.15

Se isso estiver correto, enquanto a cultura mediada pelas ITCs, assuma aforma que assumir, permanecer subordinada ao capital, é necessário insi-stir na perspectiva de uma crítica da economia política da comunicação.Por isso, todo e qualquer recepcionismo, ainda que marxista, ainda quelevante dados de cunho etnográfico relevantes, permanece no terreno dosefeitos derivados da lógica dominante do “sujeito automático” – e, atésegunda ordem, totalizante –, o capital.

Nunca é demais lembrar: o marxismo ou é crítica radical ao capitalismo epráxis para além do capital, ou é uma teoria emasculada. É o próprio Stu-art Hall, ilustre representante marxista da “Nova Esquerda” e dos EstudosCulturais, buscando demonstrar as complexas e assimétricas relações en-tre cultura popular e classes sociais, quem afirma isso:

15 Idem ibidem, tese no. 6.

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A cultura popular é um dos locais onde a luta a favor oucontra a cultura dos poderosos é engajada; é também o prêmioa ser conquistado ou perdido nessa luta. É a arena do con-sentimento e da resistência. Não é a esfera onde o socialismoou uma cultura socialista – já formada – pode simplesmenteser “expressa”. Mas é um dos locais onde o socialismo podeser constituído. É por isso que a cultura popular importa. Nomais, para falar a verdade, eu não ligo a mínima para ela.16

Gramsci, cuja influência nos Estudos Culturais é notória,17 graças sobre-tudo a sua acurada percepção da complexidade da relação classe / culturae às importantes pistas metodológicas que deixou no sentido de se estu-dar as culturas populares, Gramsci, é bom lembrar, além de ter sido um“teórico da cultura”, foi um líder revolucionário. E como não se pode falarde marxismo, inclusive em uma linha gramsciana, desconsiderando seucaráter revolucionário, sob o risco de aburguesá-lo, isto é, de esterilizá-loenquanto práxis emancipatória, não podemos deixar de lado, no campoda comunicação, a crítica da economia política.

Esse lembrete é necessário, se a tendência que Silas de Paula identificou jáhá dez anos permanecer influente: “a abordagem neogramsciana foi [...]redirecionada para o que se tornou uma concepção acrítica do consumocultural [...] exemplificada pelo viés da audiência ativa, que, apesar dasevidentes vantagens, negligencia os aspectos econômicos, tecnológicos epolíticos da cultura televisual.18

Lopes dizia, na mesma época, mais ou menos o mesmo, em forma dealerta:

A fim de que os estudos da linha gramsciana em Comu-nicação não se esgotem em mais uma “onda” ou “moda” énecessário apontar os riscos de alguns erros trazidos pela poli-tização da investigação em que este linha necessariamente re-

16 HALL, Stuart. Notas para uma desconstrução do popular. In: SOVIK, Liv (org.). Da Diás-pora, p. 262. Vale frisar que, neste artigo, Hall não discute a cultura popular em termos de juízoestético. Ou seja, esse “eu não ligo a mínima para ela” não é uma consideração estética, masuma afirmação de caráter metodológico sobre a importância de se estudar o popular, no espectrodo marxismo, estar relacionada necessariamente ao objetivo da construção do socialismo.

17 Ver Hall, Da Diáspora, diversos artigos; ver também Lopes, Pesquisa em Comunicação,subcapítulo A Perspectiva gramsciana, pp. 63-70.

18 SILAS DE PAULA. Estudos Culturais e Receptor Ativo. In: RUBIM, Antônio Albinocanelas et al. (orgs.) Produção e Recepção dos Sentidos Midiáticos, pp. 131-2.

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dunda. Em primeiro lugar está o risco de se privilegiar exclusi-vamente os modos de reelaboração/resistência/refuncionalizaçãodos conteúdos culturais pelas classes subalternas, outorgandoescassa importância teórica aos modos de presença das ideolo-gias dominantes nos conteúdos e práticas dessas classes.19

Como exemplo desses “riscos”, tomemos a seguinte passagem de umgrande expoente dos estudos-culturais latino-americanos: “[...] neles [osmeios de comunicação] não apenas se reproduzem ideologias, mas tam-bém se faz e refaz a cultura das maiorias, não somente se comercializamformatos, mas recriam-se as narrativas nas quais se entrelaça o imagináriomercantil com a memória coletiva.” 20

Quando o autor nos diz isto dos meios de comunicação, a elegância dotexto e a provavelmente sincera indignação de Martin-Barbero com asmazelas sociais da América Latina não suprimem o fato deste “entre-laçamento”, predominantemente favorável ao capital, não ser ao menosapontado como tal, muito menos denunciado como algo escandaloso.21

Na realidade, o papel exercido pelas ITCs enquanto elemento socializadorou mediador hegemônico de parte do repertório simbólico existente mis-tura o repertório das diversas classes de acordo com o interesse daquelasmais favorecidas. É este, quase sempre, o vetor mais forte.

Stuart Hall sabe bem disto, e por isso afirma: “há uma luta contínua enecessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, nosentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular[...]” 22 A cultura dominante consegue fazer isto porque as indústrias cul-turais, concentradas em poucas mãos, “têm de fato o poder de retrabal-har e remodelar constantemente aquilo que representam; e, pela repetiçãoe seleção, impor e implantar tais definições de nós mesmos de forma aajustá-las mais facilmente às descrições da cultura dominante ou prefer-encial.” 23 É verdade que “essas definições não têm o poder de encampar

19 LOPES, Maria Immacolata V. Pesquisa em comunicação, p. 70, nota 36.20 MARTIN-BARBERO, Jesus. Globalização comunicacional e transformação cultural. In:

MORAES, Dênis de (org.). Por uma outra comunicação, p. 63.21 Embora não deva ser descartada a hipótese de, em alguns casos, o imaginário mercantil,

diante de certas memórias populares de tipo marcadamente obscurantista, xenófobo, racista,sexista, homofóbico, anti-semita etc., poder mediar o que Marx chamava de “missão civiliza-tória” do capital. Não parece, contudo, que Martin-Barbero esteja se referindo a isso.

22 Hall, op. cit., pp. 254-5.23 Idem, ibidem.

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nossas mentes [...] Contudo, elas invadem e retrabalham as contradiçõesinternas dos sentimentos e percepções das classes dominadas.” 24

Assim, parafraseando Martin-Barbero, talvez fosse mais realista dizerque nos meios de comunicação não apenas se faz e refaz a cultura dasmaiorias, mas que isto ocorre sob o vetor predominante da reproduçãoideológica; não somente recriam-se as narrativas nas quais se entrelaçao imaginário mercantil com a memória coletiva: esse “entrelaçamento”representa a subordinação da “memória coletiva” ao imaginário mercan-til, condição para a comercialização de formatos etc.

Não se trata de uma mera inversão da ordem de importância dos fatores,sem maiores conseqüências, mas da ênfase metodologicamente necessárianos elementos mais problemáticos da realidade discutida, que requeremuma crítica e uma transformação – sem, contudo, perder de vista a com-plexidade do processo, que fica clara, bem como a importância dos estu-dos de recepção, na seguinte passagem de Baccega:

A recepção é outro tema importante. Entendida como ativi-dade inerente ao sujeito enunciatário, é ela que nos dá pistas doimpacto social que uma campanha publicitária, por exemplo,tem nas mentes e corações. Através de seu estudo podemosdescobrir quais são os processos que resultam do encontro dosdiscursos dos meios de comunicação apropriados (transitori-amente) ou incorporados (com permanência na cultura) pelossujeitos-receptores imersos em suas práticas culturais.25

Isto tem relevância inclusive para se compreender a configuração atualda luta de classes, pois, conforme argumenta Bourdieu, “uma classe édefinida tanto [...] pelo seu consumo [...] quanto por sua posição emmeio às relações de produção (mesmo que seja verdade que as últimasgovernem o primeiro)”. 26

Por outro lado, no dizer de Turner, “[...] o pêndulo alcançou o pontomais próximo possível da audiência [...]. Talvez seja o momento de seretornar a uma postura de leitura mais politizada da mídia, do seu papel

24 Idem, ibidem.25 BACCEGA, Maria Aparecida. O Impacto da publicidade no campo comunicação /

educação. In cadernos de Pesquisa ESPM, ano 1, n.3, (setembro/outubro 2005). São Paulo:ESPM, 2005, p. 15.

26 BOURDIEU, Pierre. Distinction. A Social Critique of the Judgement of taste, p. 483.

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de ‘agenda-setter’ ideológica e de indústria capitalista chave neste mundointernacionalmente corporatizado.” 27

Em outras palavras, sem desconsiderar as contribuições mais importantesdos Estudos Culturais, talvez seja a hora de se dedicar um pouco mais deatenção à economia política da comunicação, cuja crítica deve partir, anosso ver, de uma reflexão cuidadosa da própria noção de economia: sobo capital, em geral e no projeto socialista.

11.2 A Economia e o gosto

Um bom ponto de partida para uma crítica da economia política da co-municação é a identificação do caráter fetichista da produção de benssimbólicos quando subsumida ao capital,28 produção esta hoje operadapredominantemente pelas ITCs. O termo fetichismo, aqui, deve ser enten-dido em sua mais ampla acepção, a saber, enquanto processo histórico desubsunção da cultura ao princípio da valorização do valor e ao mesmotempo de reprodução ideológica, processo funcional duplo que busca –com considerável sucesso – adequar o imaginário e a sensibilidade co-letivos às necessidades de reprodução ampliada do capital, contribuindodecisivamente na formação e no estímulo dos gostos, isto é, em sua cap-tura pelo capital, de modo a assegurar que a massa de mercadorias pro-duzida, de todos os tipos, circule o mais rápido possível e que as pessoaspercebam as relações de capital como normais.

É claro que isso não se dá apenas mediante a captura do gosto, mas tam-bém devido à aceleração que a informática implementou nos processosprodutivos e nos mecanismos de circulação de capital financeiro e mer-cadorias. Isso nos remete à razão pela qual se optou aqui em utilizaro termo infotelecomunicações ao invés de indústria cultural: para darconta tanto desta última quanto daquilo que no complexo das comuni-cações contemporâneas não diz respeito diretamente à subsunção da cul-tura ao capital ou à reprodução ideológica, mas às mediações tecnológicase empresariais do conjunto das atividades produtivas e improdutivas sobo comando do capital, para além da indústria cultural.

27 TURNER, apud Silas de Paula. Estudos Culturais e Receptor Ativo. In: RUBIM, AntônioAlbino canelas et al. (orgs.) Produção e Recepção dos Sentidos Midiáticos. Petrópolis / RJ:Vozes, 1998, pp. 140.

28 O estudo de formas pregressas de fetichismo foge dos objetivos desta pesquisa.

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Esta abordagem traz implícita uma recusa à positividade da categoriavalor econômico, entendido aqui não como um dado neutro, a ser apreen-dido em sua pretensa materialidade por uma supostamente objetiva ciên-cia econômica, mas como uma abstração funcional destrutiva, que consti-tui o cerne das relações sociais regidas pelos imperativos do capital, con-forme demonstramos pouco acima. Devemos, portanto, evitar o “aban-dono da crítica da economia política, substituída por uma simples econo-mia entendida como ciência no sentido burguês”, no dizer de Lukács.29

O valor, assim, se revela em sua vacuidade substancial, em sua materiali-dade de sintoma histórico de um dado modo de produção, e não como cat-egoria suprahistórica que somente expressaria determinadas quantidadesde trabalho, nem como um predicado, uma qualidade intrínseca às coisas.Trata-se antes de um conceito teórico e de uma noção prática do universode permuta de mercadorias, conceito e noção resultantes de uma formahistoricamente específica de extração de trabalho excedente enquanto fimem si mesma. Serve como critério de comensurabilidade para a permutade mercadorias, abstraídas as suas propriedades materiais, a despeito deseu valor de uso e das necessidades humanas,30 e serve para se pensar oprocesso, embora não possua existência empírica.31

Por outro lado, economia, em sentido estrito – abstraído o caráter pre-dominantemente mercantil que as relações econômicas e a própria noçãode economia adquiriram sob o sistema do capital –, significa o opostode desperdício. É o que nos lembra Mészáros, destacando a relevânciapolítica decisiva desta noção: “o sucesso de qualquer modo de produção,inclusive o socialista, é inconcebível sem um sistema de administração derecursos racional e eficiente. O significado essencial do termo “econo-mia” é, precisamente, o resumo desta proposição em uma palavra.” 32

29 LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os Princípios ontológicos fundamentais deMarx, p. 35.

30 Mais uma vez, vale aqui lembrar que a distinção conceitual de Marx entre valor e preço éfundamental para que se entenda corretamente sua teoria econômica. A demanda tem influênciadireta nos preços, não nos valores. Quanto a estes, a demanda só os pode influenciar indireta-mente, por exemplo no caso de um aumento de demanda que estimule o desenvolvimento denovas tecnologias, as quais aumentam a produtividade daquele ramo produtivo, reduzindo assimo valor unitário de cada produto mediante um acréscimo na extração de mais valia relativa.

31 Isso interessa diretamente a uma crítica da economia política da comunicação sobretudo namedida em que a escala de socialização dos bens simbólicos, conseqüentemente do repertóriode valores e referências culturais de uma sociedade, irá depender da propriedade desses bens devalorizarem valor, acima de quaisquer outros critérios.

32 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 512.

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Essa dimensão política33 da noção de economia remete ao caráter pro-priamente humano das atividades econômicas, ou seja, à idéia de que sedeve fazer o melhor uso possível dos meios para que se atinja determi-nado fim. Remete igualmente à discussão dos fins: quais são? Quem osdeterminou? A que gostos atendem?

É aí que se revela a diferença essencial entre a economia burguesa e o pro-jeto de uma economia verdadeiramente socialista: na primeira, os setoresadministrativos do sistema tratam coisas e pessoas indiscriminadamente,do modo mais eficiente possível, 34 visando a valorização do valor, re-stando a satisfação dos gostos restrita ao consumo e dependente do obje-tivo econômico fetichista visado; no segundo, as pessoas devem adminis-trar as coisas e a si mesmas distintamente, de modo eficiente, autônomo ecolaborativo, visando a satisfação dos gostos, no consumo, é óbvio, mastambém na produção, tanto quanto possível.

Numa acepção mais dilatada, economia refere-se ao conjunto dos proces-sos de produção, circulação e consumo de bens, ou seja, de coisas úteis.Esse processo ocorre, como não poderia deixar de ser, em algum ter-ritório, físico ou virtual, cujos contornos vão da cidade ao planeta. Trata-se porém, como já sabiam os clássicos, de contornos não só geográfi-cos, mas políticos.35 A economia é, assim, necessariamente economiapolítica. A exclusão do segundo termo da expressão, que atribui uma au-tonomia fantasmática aos processos econômicos, é simplesmente um ab-surdo, ainda que sob a justificativa (duvidosa) de um “recorte metodológico”,e mesmo sabendo que os processos econômicos se tornaram praticamenteautônomos sob o capital.

É por Marx saber muito bem que os processos econômicos tanto deter-minam quanto são determinados por processos extra-econômicos, comos quais se articulam dialeticamente, que Lukács lhe dirige os seguinteselogios: “[...] por mais audaciosas que sejam as abstrações que ele desen-volve nesse campo, [...] permanece sempre presente e ativa – nos prob-lemas teóricos abstratos – a vivificante interação entre economia propri-

33 “Política”, aqui, no sentido empregado por Aristóteles em Ética a Nicômaco, como vistono segundo capítulo desta pesquisa.

34 “Eficiência” que contraditoriamente resulta, cada vez mais, em desperdício, não só degente, mas até de coisas. Em sua análise crítica desta tendência alarmante, Mészáros desen-volveu o conceito de “taxa de utilização decrescente”. Ver MÉSZÁROS, Istvan. Para além docapital, pp. 634-700.

35 Aqui, “política” congrega as noções de unidade territorial e administrativa.

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amente dita e realidade extra-econômica no quadro da totalidade do sersocial.” 36

Em nosso caso, enfatizar a relevância de momentos extra-econômico eminteração com a economia, com destaque para o momento político, oumelhor, para o caráter imperativamente político da economia, significaassumir um posicionamento metodológico que põe em primeiro plano ofato de a economia compor um conjunto de atividades concretas, maisou menos conscientemente orientadas37 a partir de opções políticas depessoas reais, o que por sua vez implica em levar em conta o conteúdoclassista do objeto da análise econômica. Isso é fundamental para nós,na medida em que a questão do controle político das atividades econômi-cas traz ao centro do debate o gosto e a comunicação, em sua atualidadeconservadora e em sua potência revolucionária – potência concreta, poisembora o controle consciente do conjunto das atividades econômicas, sobquaisquer circunstâncias atualmente concebíveis, talvez só possa ser par-cial, isso não significa que estejamos eternamente condenados aos imper-ativos caóticos da economia capitalista, já que esta carrega em si desdeo início as contradições que permitiram que fosse concebida a sua super-ação efetiva. A este propósito, propõe Mészáros:

O ethos positivo da nova sociedade apenas poderia ser en-contrado na auto-atividade emancipada dos seus membros enos complexos institucionais e instrumentais correspondentesque respondem de forma flexível às necessidades dos indiví-duos sociais, em vez de os opor por meio de sua própria –predeterminada – inércia material. Apenas em tal moldura in-stitucional e instrumental pode-se levar a sério a categoria datotalização coletiva consciente – isto é: a complexa harmo-nização cooperativa – dos objetivos livremente escolhidos dosindivíduos sociais, em agudo contraste com o sistema regido

36 LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os Princípios ontológicos fundamentais deMarx, p. 43. Para Lukács, essa articulação possibilita a compreensão de aspectos da própriaeconomia e da realidade extra-econômica que, de outro modo, permaneceriam incompreen-síveis.

37 A orientação dessas atividades é “mais ou menos conscientemente orientada” porque acomplexidade das inter-relações entre as diversas atividades e agentes econômicos, sobretudose considerarmos o caráter caótico da economia capitalista globalizada, torna a possibilidade deum controle plenamente consciente (por quem?) uma impossibilidade prática, como aliás foitragicamente demonstrado pelas malfadadas experiências do chamado “socialismo realmenteexistente”, o qual nem chegou perto de arranhar o núcleo duro do sistema: o fetiche do valor.Isto foi demonstrado de forma magistral por Kurz (1993) e Mészáros (2002).

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pela ‘mão invisível’ do mercado, pois este último se caracter-iza pela absoluta totalização inconsciente que faz com que osobjetivos próprios do capital prevaleçam por trás do indivíduosparticulares [...].38

Temos insistido que todos os esforços direcionados no sentido da im-plementação de uma ordem econômica mais humana, isto é, consciente-mente orientada, na medida técnica possível, pelo conjunto dos agenteseconômicos, em nome da satisfação dos gostos de todos e não da val-orização do valor, requer desde o princípio do seu empreendimento umacrítica radical da economia política, capaz de desmistificar seus pressu-postos, categorias e orientação classista. A razão desta insistência é que,como é sabido, a própria economia política é uma ciência que se desen-volveu em grande parte como discurso ideológico apologético da burgue-sia em seu momento de conquista da hegemonia social. Perder isto devista é perder-se no emaranhado dos efeitos da economia capitalista sematingir suas causas, é não atingir o ponto de vista da totalidade, ou seja,é não enxergar a dinâmica estrutural que a sustenta, cuja força motriz é oprincípio cego da valorização do valor, o que dificulta a busca dos camin-hos teóricos e práticos para superá-la.

Por tudo isso, e não por uma questão meramente retórica ou ideológica,deve-se ter o cuidado de distinguir o caráter positivo (embora pretensa-mente neutro) da economia política enquanto ciência burguesa, da nega-tividade da crítica da economia política fundada por Marx, a qual impõeao estudo da economia o elemento histórico e revolucionário. Quero crerque o mesmo cuidado é bem vindo no universo dos estudos em economiapolítica da comunicação, ainda mais se considerarmos que uma instru-mentalização dos dispositivos das ITCs é condição necessária para a vi-abilização do controle consciente do conjunto das atividades econômicaspelos produtores associados.

Nesse ponto, Robert Kurz se mostra de acordo conosco:

[...] o que até agora foi forma inconsciente da sociabili-dade terá de ser extinto e substituído pela comunicação diretaentre os homens, numa forma muito mais organizada e ligadaem rede. A “forma” inconscientemente reguladora será substi-tuída pela “ação comunicativa” (Habermas) dos homens, que

38 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, pp. 453-4.

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refletirão conscientemente sua própria sociabilidade e as suasações sociais, organizando-as com base nisso.39

Essa passagem de Kurz pode servir como uma boa definição do obje-tivo geral positivo de uma crítica da economia política da comunicação,enquanto o conjunto das atividades de produção, circulação e consumode bens simbólicos, tal qual se dá na realidade, constitui o objeto destacrítica, sendo que o momento econômico é o que diz respeito aos meiose o político, aos fins – embora, em uma realidade invertida, seja o opostoque ocorra.

Recapitulando, na trilha aberta por Marx, é na articulação entre as cat-egorias forças produtivas e relações de produção, que compõe a noçãomais geral de modo de produção, que está contido o vínculo dinâmico epor assim dizer visceral entre economia e política. É a partir da análisedeste vínculo que se desenvolve a crítica da economia política de Marx,a qual situa no fetiche do valor tanto a fonte de sua coesão sob o regimedo capital quanto da dissolução potencial deste regime. Essa dissolução,porém, não se dará sozinha na economia, sendo necessárias intervençõesno campo da política para “aliviar as dores do parto” da mudança histórica,conforme a conhecida passagem do prefácio do Capital.

A comunicação – conjunto de dispositivos técnicos e campo de batalhaideológico – deve ser um dos objetos dessas intervenções e ao mesmotempo um dos agentes interventores. O gosto, por sua vez, deve ser pen-sado neste contexto também como objeto dessas intervenções, no sentidode que as pessoas tomem gosto por elas, mas também como a sua razão deser, já que o objetivo maior das próprias intervenções consiste, em últimaanálise, na satisfação do gosto de todos os que não obstarem a satisfaçãodo gosto de todos.

11.3 Necessidade e consumo (ou a jibóia)

Iremos agora discutir um outro tópico bastante atual e, a nosso ver, polêmiconos estudos de comunicação, a questão do consumo. O que é o consumohumano?40 Primariamente, e em termos mais gerais, é o ato de o ser hu-

39 KURZ, Robert. Dominação Sem Sujeito. Documento eletrônico:http://obeco.planetaclix.pt/rkurz86.htm. Acesso em: mai. 2005.

40 Não nos referimos aqui ao consumo produtivo fabril, quando matérias primas, energia etrabalho são consumidos na produção de mercadorias.

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mano suprir alguma carência ou necessidade,41 incorporando a si algoque lhe era exterior. Essa incorporação pode se dar na esfera estrita-mente material – o consumo involuntário de oxigênio, por exemplo, decarga simbólica zero; em uma esfera material e simbólica – consumo dealgo de algum modo carregado de pregnância simbólica, mas cuja razãode ser pertence à ordem das necessidades materiais: um sanduíche BigBob, quando a fome e não a sociabilidade predomina no ato do consumo;simbólica e material – consumo de algo cuja corporeidade possua emsi mesma um valor de uso, apesar de seu consumo ser orientado pre-dominantemente por seu caráter simbólico: caviar / luxo; estritamentesimbólica – consumo de algo cujo valor de uso pertença exclusivamente àordem simbólica, mas que possua algum resíduo corpóreo: livro, cd etc.42

Em um sentido econômico, em termos estritamente capitalistas, o con-sumo está relacionado à operação de compra de um determinado serviçoou produto – em todos os casos, está relacionado à apropriação e ao uso,que devem atender alguma carência ou necessidade humana.43

Marcuse, partindo do reconhecimento de caráter sócio-histórico dessasnecessidades, propõe uma distinção entre as verdadeiras e as falsas:

“Falsas” são aquelas superimpostas ao indivíduo por inter-esses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades queperpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça.Sua satisfação pode ser assaz agradável ao indivíduo, mas afelicidade deste não é uma condição que tem de ser mantidae protegida caso sirva para coibir o desenvolvimento da ap-tidão (dele e de outros) para reconhecer a moléstia do todo eaproveitar as oportunidades de cura. Então, o resultado é eu-foria na infelicidade. A maioria das necessidades comuns dedescansar, distrair-se, comportar-se e consumir de acordo com

41 Para uma maior clareza na exposição, iremos agora abstrair da noção de gosto enquantoconceito que articula a noção de necessidade biológica e desejo socialmente mediado. Partire-mos, assim, da necessidade para retomamos adiante o gosto, mas desta vez tendo agregado àsua significação novos elementos.

42 Essa classificação pode ser lida como um desdobramento, no plano do consumo, da dis-tinção efetuada na Introdução da presente pesquisa, entre bens materiais e simbólicos.

43 Não confundir a noção de “uso” com um utilitarismo mais rasteiro. Ao afirmarmos queo consumo supre alguma necessidade ou carência, incluímos aí a necessidade humana de queas coisas façam algum sentido, e o próprio ato do consumo é co-responsável, junto a outrosfatores, pela produção de sentido. Por exemplo, ler (“consumir”) um livro é sempre, em algumgrau, interpretá-lo, julgá-lo, fazer associações, tecer considerações etc.

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os anúncios, amar e odiar o que os outros amam e odeiam,pertence a essa categoria de falsas necessidades.44

Debord apresenta o problema em termos parecidos:

Sem dúvida, a pseudonecessidade imposta no consumo mod-erno não pode ser oposta a nenhuma necessidade ou desejoautêntico, que não seja, ele próprio, modelado pela sociedadee sua história. Mas a mercadoria abundante está lá como aruptura absoluta de um desenvolvimento orgânico das neces-sidades sociais. A sua acumulação mecânica liberta um artifi-cial ilimitado, perante o qual o desejo vivo fica desarmado. Apotência cumulativa de um artificial independente conduz, emtoda parte, à falsificação da vida social.45

Se substituirmos o termo falsificação por fetichização, talvez possamosabrir um novo horizonte teórico para o debate, ou melhor, resgatar umaperspectiva crítica extremamente vigorosa e equivocadamente tida por su-perada. Qual a diferença? É que a fetichização da vida social não dizrespeito a uma falsificação qualquer, mas a uma forma específica, contin-gente e funcional de falsificação, necessária à sobrevida do sistema.

Afinal, se as pessoas só podem consumir de acordo com o dinheiro quepossuem (cuja origem, para a maioria, é o salário)46 e com seu repertóriosimbólico, e se este é por sua vez estruturado pela sua cultura (entendidaaqui como conjunto de códigos indexadores do mundo, de que as pessoasdispõem e são herdeiras e reprodutoras, resultado de sua formação e doespaço social que ocupam), na medida em que essa cultura é em grandeparte alimentada, ou retroalimentada, pelas ITCs, estas acabam determi-nando em grande parte o próprio consumo, na medida em que atuamreorganizando de acordo com seus próprios fins políticos e contábeis oconjunto dos demais elementos que compõem a cultura dos sujeitos (hajaa recepção ativa que houver), sujeitos estes que ocupam uma posição de

44 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da sociedade industrial; o homem unidimensional, p.26.

45 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo, tese 68. Documento eletrônico. Acesso em:julho de 2003. http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540/

46 Eis uma definição do salário em sua essência sócio-material: “[...] o salário é apenas umaparte do produto constantemente criado pelo operário, a parte que se transforma em meios desubsistência e portanto em meios para a conservação e o aumento da capacidade de trabalhonecessário ao capital para a sua autovalorização, para o seu processo vital”. Cf. MARX, Karl.Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata, p. 135.

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classe, isto é, uma posição concreta em meio às relações de produção –uma posição econômica, portanto, e é esta, em última instância, que de-termina a fatia que lhes cabe do capital econômico e simbólico globaldisponível, e, conseqüentemente, seu gosto e seu consumo. Na formu-lação sintética de Bourdieu: “Se tudo leva a crer na existência de umarelação direta entre rendimento e consumo, é porque o gosto é sempre oproduto de condições econômicas idênticas àquelas nas quais ele atua”.47

Ora, se o vetor que norteia a produção das ITCs é a acumulação de cap-ital e a manutenção da hegemonia política de determinados setores daclasse dominante, é necessariamente isto que todos temos que engolir soba forma de espetáculo.

Quanto à problemática específica das práticas de resistência “populares”,vejamos uma perspicaz ponderação de Jameson:

Toda política cultural se confronta necessariamente comuma alternância retórica entre o orgulho desmedido da afir-mação da força do grupo cultural e a diminuição estratégicadessa força, e isso por razões políticas. Pois essa política poderessaltar [...] imagens inspiradoras de heroísmo do subalterno[...] a fim de encorajar o público alvo; ou pode insistir namiséria do grupo [...] para tornar a situação dos oprimidosmais conhecida [...] Mas essas estratégias de representaçãosão necessárias na arte política e não podem ser conciliadas.Talvez correspondam a diferentes momentos históricos de luta[...]48

Ou seja, pode ser que o tratamento retórico das classes subalternas (ou daschamadas minorias) enquanto oprimidas, perca de foco sua força e suacapacidade de resistência, fragilizando-as em termos de auto-representaçãoe incentivo à luta, mas não é absolutamente seguro afirmar que a represen-tação do subalterno enquanto resistente efetivamente o incentive à luta,e, com certeza, não fragiliza em nada a força hegemônica para além dealguns setores da retórica acadêmica. E, ainda que seja o caso de se op-tar por uma entre essas duas estratégias de representação, enquanto “artepolítica”, o momento histórico exige que se enxergue, no mínimo com

47 BOURDIEU, Pierre. Distinction, p. 375.48 JAMESON, Fredric. A Cultura do dinheiro; ensaios sobe a globalização, p. 21.

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perplexidade, o esmagamento gradual de qualquer perspectiva emanci-patória coletiva séria e estrategicamente eficaz, e que a maioria das práti-cas coletivas resistentes em curso, ao que tudo indica, não são mais queespetaculares, ou paliativas, ou acomadatórias, ou reacionárias, ou histéri-cas, ou ainda suicidas. Vivemos um vazio de “resistências” efetivamentecapazes de transformar as relações de força vigentes. E isto é muito sério– e mais urgente do que ficar buscando cabelo em ovo.

Como teria dito Napoleão, o paladar humano pode, com o tempo, acostumar-se a qualquer coisa. Ora, admirar e estudar a criatividade das minorias,dos excluídos, em sua capacidade de se acostumar com “qualquer coisa”,enquanto necessidade de, adaptando-se e recriando-se, lidar com situ-ações adversas e inevitáveis, é um gesto bastante louvável e cientifica-mente fecundo. Mas transformar a necessidade em virtude, e pretenderesgotar neste ponto a discussão, tolerando o intolerável, é indefensável.

É nessa perspectiva que lemos um discurso como o que segue, de Michelde Certeau:

[...] diante de uma produção racionalizada, expansion-ista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma pro-dução de tipo totalmente diverso, qualificada como consumo,que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamentoem conformidade com as ocasiões, suas ‘piratarias’, sua clan-destinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtospróprios (onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de uti-lizar aqueles que lhe são impostos.

Já faz muito tempo que se vem estudando em outras so-ciedades as inversões discretas e no entanto fundamentais aliprovocadas pelo consumo. Assim o espetacular sucesso dacolonização espanhola no seio das etnias indígenas foi alter-ado pelo uso que dela se fazia:49 mesmo subjugados, ou atéconsentindo, esses indígenas usavam as leis, as práticas ou asrepresentações que lhes eram impostas pela força ou pela se-dução, para outros fins que não os dos conquistadores. Faziam

49 “[...] o espetacular sucesso da colonização espanhola no seio das etnias indígenas foi alter-ado pelo uso que dela se fazia”? Foi mesmo? Substancialmente? Onde isto ocorreu? Quando?O que centenas de milhões de indígenas humilhados, massacrados, estropiados, desencarnadosdiriam disto? A prata de Potosi não ficou em Potosi, nem as almas. A idéia de Michel deCerteau só começará a fazer algum sentido relevante se o movimento de massas capitaneadopor Evo Morales conseguir melhorar de fato a vida daquela gente.

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com elas outras coisas: subvertiam-nas a partir de dentro – nãorejeitando-as ou transformando-as (isto acontecia também), maspor cem maneiras de empregá-las a serviço de regras, cos-tumes ou convicções estranhas à colonização da qual não po-diam fugir.50

O problema é que se os indígenas colonizados pelos es-panhóis “não podiam fugir da colonização”, e só lhes restavainventar “astúcias” etc. no “consumo”, esse não é o caso dasmassas contemporâneas. Ou não há saída para a fissura social,para a exploração de classe? Se não houver, ok, e que o mundoexploda, enquanto etnólogos, secretarias municipais de tur-ismo, a indústria cultural e as máfias locais (tráfico, milícias,bicheiros etc.) do terceiro mundo descobrem / revelam “astú-cias” populares e investem em livros e espetáculos folclóricos,ou contemporâneos, ou ainda “híbridos” para os turistas e aburguesia local deixarem em troca alguns dólares ou reais, demodo que uma ínfima parte dos marginalizados seja integradana “cidadania” do consumo econômico mediante sua partici-pação em grupos de percussão ou de circo. É o espetáculo daesmola pós-moderna na forma de ciência e “inclusão social”.

Isto, é claro, não desmerece o empenho de tantos teóricose ativistas sociais sinceros, apenas delimita de modo realista acapacidade desse tipo de teoria e de ação, quando desvinculadade uma perspectiva de transformação mais radical, no sentidode promover efetivamente inclusão social.

50 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, pp. 94-5. Poucas páginas antes, tratandoda questão do “trabalho científico sobre as culturas populares”, de Certeau faz menção a uma“urgência”: “Sem voltar a insistir sobre as implicações sócio-econômicas do lugar onde se pro-duz um estudo etnológico ou histórico, nem sobre a política que, desde as origens da pesquisacontemporânea, inscreveu o conceito popular numa problemática de repressão, é necessáriolevar em conta uma urgência: caso não se fique esperando que venha uma revolução trans-formar as leis da história, como vencer hoje a hierarquização social que organiza o trabalhocientífico sobre as culturas populares e ali se repete?” (idem ibidem, p. 87) Ora, sem entrar nomérito específico da questão, a forma como é feita a menção a se ficar “esperando que venhauma revolução transformar as leis da história” sugere que a própria idéia desta revolução estejafora de questão. E, de fato, se assim é, estamos na mesma situação dos indígenas colonizadospelos espanhóis, cuja sina feliz é promover “inversões discretas e no entanto fundamentais”na colonização, “pelo consumo” – na realidade, estamos pior, posto que a urgência atual dizrespeito não só a projetos científicos, mas ao risco de destruição da civilização e da própriabiosfera, que só pode ser enfrentado de modo radicalmente realista a partir de uma perspectivarevolucionária.

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Neste sentido, o gosto social solvente ou em ato (no con-sumo) oculta o gosto potencial recalcado socialmente pela pré-seleção de bens disponibilizados no mercado, determinadapela necessidade capitalista de assegurar a reprodução ideológ-ica e a valorização do valor. Como bem disse Kurz, “o man-damento da sensibilidade, por parte do consumo, já é a prioridesmentido pela obrigação à insensibilidade da produção dotrabalho abstrato”, 51 no que pesem as “astúcias” dos consum-idores.

A idéia de um consumo astucioso, resistente etc. parece desconsiderarum fato muito grave e que não deveria ser desconsiderado por intelectuaisefetivamente preocupados com as mazelas sociais, fato este que Marx jádiagnosticava e denunciava há mais de cento e cinqüenta anos:

[...] assim como a indústria especula com o refinamentodas carências, especula da mesma forma com sua crueza, massobre a sua crueza artificialmente gerada, cuja verdadeira fruiçãoé, por isso, a autonarcose, esta aparente satisfação da carência,esta civilização no interior da crua barbárie da carência.52

Apesar disso, diz-se que as massas socialmente marginalizadas de re-ceptores, que muitas vezes vivem diante de esgotos a céu aberto e emmeio a enxames de tiros, interpretam as mensagens midiáticas de maneiraativa, e mesmo, eventualmente, se apropriam dos sentidos hegemôni-cos, atribuindo-lhes significados imprevistos, criativos etc. Perfeitamente.Mas estudar isto só importa na medida em que contribui para a com-preensão da configuração atual da luta de classes, compreensão esta quedeve orientar a práxis no sentido de uma alteração desta configuração,a favor da emancipação do trabalho. Caso contrário, citando Hall, “nãointeressa”.

Em outras palavras: é sabido que para exercer o seu domínio, o capitalfaz concessões ao trabalho; a hegemonia, como queria Gramsci, é o resul-tado de uma disputa dinâmica. Não obstante, é uma disputa entre forçasdesiguais, e superestimar a capacidade de resistência semiótica do oprim-ido, por assim dizer, a despeito das boas intenções de quem o faz, nãocontribui para efetivamente fortalecer sua posição e reverter o quadro,

51 KURZ, Robert. O Colapso da modernização, p. 144.52 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos, p. 144.

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criando uma nova hegemonia etc. Além disso, é tal atitude que justi-fica uma crítica como a seguinte: “Estudiosos da abordagem culturalistacomeçaram a procurar sinais de energia oposicional na cultura popularque eles não conseguiam encontrar na atividade política em sentido es-trito”.53

Vejamos uma outra maneira de se pensar a mercantilização da produçãosimbólica, ainda sob um certo viés antropológico relativamente influentenos estudos de comunicação contemporâneos:

Parto da idéia de que a cultura de massa é paradoxalmenteuniversal nas sociedades integradas ao modo de produção cap-italista, ou mundo globalizado, mas extremamente diversifi-cada em forma e conteúdos. Existem expressões musicais dediversas ordens, e sua especificidade não se anula em funçãoda equivalência fundada no valor de troca. Isto é, música nacultura de massa não se reduz ao estatuto de mercadoria; masenquanto mercadoria, além de ser produto de trabalho, de in-terações sociais específicas, é potencialmente um continentede significados coletivamente atribuídos.54

Tudo o que autora diz é verdade, mas há um problema gravíssimo nestaverdade: realmente, nas sociedades capitalistas, “a cultura de massa é [...]extremamente diversificada em forma e conteúdos” e a especificidade dasvariadas expressões musicais “não se anula em função da equivalênciafundada no valor de troca”, e ainda bem que é assim, mas o simples fatode alguém ter de dizer isto significa que a tendência historicamente cres-cente à equivalência não só existe mas é imperativa. Se há diversidade nosprodutos da indústria cultural, e mesmo “potencialmente um continentede significados coletivamente atribuídos”, isso ocorre apesar de sua lóg-ica interna, não graças a ela; ocorre porque produtores e consumidores,afinal, são bilhões e estão vivos, pensam, sentem e, de alguma maneira,interagem. Mas suas vidas, pensamentos e sentimentos são impossibili-tados de se desenvolverem em toda a sua potência, são coagidos à infan-tilidade, são cooptados pelo conformismo mercantil: tudo é permitido,desde que venda muito ou não prejudique as vendas.

53 GITLIN, apud SILAS DE PAULA, op. cit., p. 131.54 VIANA, Letícia C.R. Movimentos musicais e identidades sociais no contexto da cultura

de massa no Brasil: uma reflexão caleidoscópica. In: TRAVANCAS, Isabel e FARIAS, Patrícia(orgs.). Antropologia e Comunicação, p. 71.

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Neste sentido, a variedade e a elasticidade cultural das sociedades hu-manas não formam um obstáculo, são um “prato feito” para o capital, àsvezes literalmente, conforme demonstra Barber:

A cultura mundial americana – a cultura McWorld – émenos hostil do que indiferente à democracia: seu objetivo éuma sociedade universal de consumo que não seria compostanem por tribos nem por cidadãos, todos maus clientes potenci-ais, mas somente por essa nova raça de homens e mulheres quesão os consumidores. [...] Tal qual a jibóia, McWorld fantasia-se um instante com as cores das culturas que ingurgita: a popmusic, enriquecida pelos ritmos latinos e pelo reggae nos bair-ros de Los Angeles; os Big Mac, servidos com cerveja francesaem Paris ou fabricados com carne Búlgara na Europa do Leste[...]55

A imagem da jibóia, que adquire por um tempo a forma daquilo que de-vora, é uma excelente ilustração da captura do gosto pelo capital.

11.4 Solvência e consumo cidadão

Canclini, por outro lado, identifica consumo e cidadania: “Lembrar quenós cidadãos também somos consumidores leva a descobrir na diversi-ficação dos gostos uma das bases estéticas que justificam a concepçãodemocrática da cidadania.” 56 Para ele, então, o fato de a jibóia ter assum-ido a forma do sapo que devora demonstra o quão democrática a jibóia é.Só pode ser isto, pois, se no mundo atual consumo pressupõe mercado,associar consumo a cidadania implica em associar mercado a democracia.É exatamente essa a posição do neoliberalismo. Como acusa Barber:

Os advogados da privatização propugnam que os mercadossão, em essência, democráticos. É, uma vez mais, confundiras escolhas particulares do consumidor com os direitos cívicosdo cidadão. A liberdade de escolha entre 27 variedades de as-pirina e a liberdade de optar por um sistema de saúde universal

55 BARBER, Benjamin R. Cultura McWorld. In: MORAES, Dênis de (org.). Por uma outracomunicação, pp. 41-2.

56 CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos, p. 34.

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não são comparáveis. Mas a pretensa autonomia dos consum-idores permite que os mercados mantenham um discurso pop-ulista: se você não gosta da homogeneidade do McWorls, nãoculpe os seus criadores, mas seus consumidores.

Como se os cerca de US$ 200 bilhões despendidos nos Es-tados Unidos em publicidade fossem apenas decoração! Comose os gostos dos consumidores fossem criados a partir de nada!Como se os desejos e as necessidades sobre as quais pros-peram os mercados não fossem, eles mesmos, engendrados emoldados por estes mesmos mercado!57

Nos termos de Mészáros:

[...] as condições reais pelas quais a esmagadora maioriada sociedade é excluída, de forma estruturalmente prejulgada elegalmente protegida, da possibilidade de controlar o processosocioeconômico de reprodução – inclusive, naturalmente, oscritérios de regulação da distribuição e do consumo – são fic-cionalizados como “soberania do consumidor” individual.58

Em um nível mais alto de abstração, Kurz discute o consumo a partir docaráter contraditório da constituição do sujeito moderno cindido em pro-dutor e consumidor, caráter este determinado por uma estrutura de divisãodo trabalho na qual os pólos da produção e do consumo, necessariamentemediados pela circulação, se afastam cada vez mais, tornando-se inde-pendentes e mesmo opostos. Em outras palavras, o sujeito, que é neces-sariamente produtor e consumidor, torna-se uma auto-contradição, poisenquanto produtor é levado a posicionar-se em relação ao produto de umaforma diametralmente oposta àquela que ele assume enquanto consumi-dor:

Como produtor, o sujeito-mercadoria ou sujeito da trocanão está interessado no valor de uso de seus produtos [...] poisnão se produz para o consumo próprio, mas sim para o mer-cado anônimo, e a finalidade do processo não é a satisfação denecessidades concretas, mas sim a transformação do trabalhoem dinheiro (salário e lucro). [...]

57 BARBER, op. cit., p.50.58 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 109.

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Como outro lado de sua existência à maneira de Dr. Jekylle Mr. Hyde, no entanto, cada produtor, em seu alter ego deconsumidor, tem também um interesse exatamente oposto, pois,no papel de consumidor, está naturalmente muito interessadonaquele valor de uso material que, em princípio, nada importapara ele no papel de produtor. Isso aplica-se tanto aos indiví-duos como às empresas. [...] como indivíduos que comem,bebem, moram e se vestem, os homens têm que ser sensíveisem pontos que, no papel de produtores, exigem sua insensibil-idade.

Encontram-se, portanto, como produtores e consumidores,numa oposição recíproca constante. Assim, o produtor de gástóxico ou macarrão contaminado cospe enojado seu vinho deglicol (ou tenta suicidar-se com ele), o gerente que fica deses-perado com peças de reserva defeituosas ou fornecidas con-trárias ao contrato, tenta vender, sem escrúpulos, mercadoriade péssima qualidade como se fosse de primeira, de modo quetodos estão constantemente montando armadilhas uns para osoutros, nas quais, em virtude do entrelaçamento social univer-sal, acabam por cair eles mesmos.59

Outra grave conseqüência desta divisão é o convívio perverso de umsuper-consumo minoritário com um subconsumo massivo:

[...] a produção e o consumo adquirem uma independên-cia e uma existência separada extremamente problemáticas,de modo que, no final, o “excesso de consumo” mais absur-damente manipulado e desperdiçador, encontre seu coroláriomacabro na mais desumana negação das necessidades elementaresde incontáveis milhões de pessoas.60

Se Barber, Kurz e Mészáros estão certos, é espantoso o que se lê já naquarta capa da tradução brasileira de Invenções do Cotidiano: “[...] amultidão sem qualidades não é obediente e passiva, mas abre seu própriocaminho no uso dos produtos impostos, numa ampla liberdade em que

59 KURZ, Robert. O Dilema Estrutural dos Mercados Planejados. Documento eletrônico.http://obeco.planetaclix.pt/rkurz145.htm. Acesso em: mar. 2004.

60 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p.105.

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cada um procura viver do melhor modo possível a ordem social e a vio-lência das coisas.” 61

Cada um procurar “viver do melhor modo possível a ordem social e a vio-lência das coisas” equivale, aqui, a uma “ampla liberdade”! Na realidade:

[...] a escravidão da sociedade burguesa é, em aparência,a maior liberdade, por ser a independência aparentemente per-feita do indivíduo, que toma o movimento desenfreado dos ele-mentos estranhados de sua vida [...] por sua própria liberdade,quando na verdade é, muito antes, sua servidão e sua falta dehumanidade completas e acabadas.62

Ninguém, enfim, há de discordar que as coisas só podem ser consumidasapós terem sido produzidas; para tanto, esta produção tem que ser antes demais nada viável; a viabilidade de uma produção depende primeiramenteda disponibilidade de recursos naturais e humanos (matérias primas, pes-soas, projetos e instrumentos produzidos por pessoas a partir dos recursosnaturais), mas igualmente da forma como um dado modo de produçãoestabelece as relações de produção, isto é, a forma como serão distribuí-das e consumidas as forças produtivas e os próprios produtos. Em outraspalavras, 1) só se pode consumir (comida, fórmula 1 ou música dode-cafônica) o que é produzido, 2) só se pode produzir se houver recursoshumanos e materiais para tanto, e 3) se esta produção atender aos imper-ativos mais ou menos conscientes da lógica econômica de um modo deprodução dado. 63

Ocorre que, embora todos os modos de produção, até hoje, tenham sido“automáticos”, e por isso geraram diversas formas de fetichismo, é es-pecífico do capital “abandonar [...] a dominância do valor de uso carac-terística de sistemas auto-suficientes”.64

As conseqüências deste “abandono” são muito graves:

O que agora conta como “necessidade” não é a necessi-dade humana dos produtores, mas os imperativos da própria

61 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, quarta capa. Citar um trecho de umaquarta capa pode não parecer muito rigoroso, mas se justifica aqui na medida em que a citaçãoexpressa um aspecto marcante do pensamento do autor, corretamente identificado pela editora,que decidiu destacá-lo.

62 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, p. 135.63 Cf. MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 429.64 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 109.

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valorização e reprodução do capital. Os valores de uso selegitimam em relação (e em estrita subordinação) ao último.Sendo assim, o trabalhador somente pode obter acesso a umadeterminada classe e quantidade de valores de uso – corre-spondendo ela ou não às suas necessidades reais – enquantoo capital [...] os legitima como viáveis e lucrativos no inte-rior da estrutura da homogeneização corrente. Por essa viao trabalhador internaliza as necessidades e os imperativos docapital como seus próprios, como inseparáveis da relação detroca, e por isso aceita a imposição dos valores de uso cap-italisticamente viáveis como se emanassem de suas própriasnecessidades.65 E, pior do que isso, simultaneamente o tra-balhador também se acorrenta à sorte do sistema produtivodominante pela internalização do que ele aceita serem suaspróprias necessidades “legítimas”. De tal modo que, no dev-ido tempo, sob as condições do “capitalismo de consumidores”internalizado, o trabalhador, se ousar desafiar a ordem estab-elecida, tem de fato muito mais a perder que seus “grilhõesexternos”.66

Mesmo no que diz respeito a sociedades pré-capitalistas, na quais a pro-dução de bens estava relacionada a razões extra-econômicas, nem por issoé sensato supor que algo jamais tenha sido produzido para além dos lim-ites de uma dada capacidade produtiva, limitada não só pelos recursosdisponíveis mas também pela dinâmica cultural da sociedade em questão,ancorada nas relações de produção do modo de produção vigente, ou mel-hor, em sua estrutura econômica. Como ensina Kosik:

A objeção apresentada pela crítica, de que a teoria mate-rialista da História só seria válida para a época capitalista –porque nesta é o interesse material que predomina e a econo-mia conquista a autonomia, enquanto ao contrário na IdadeMédia predominava o catolicismo e na Antiguidade, a política– equivale a uma evidente incompreensão da teoria de Marx. Apredominância da política na Antiguidade, do catolicismo naIdade Média e da economia e dos interesses materiais na época

65 Neste ponto, Mészáros propõe, em uma nota que convém reproduzir: “Comparar o mitoapologético da ‘soberania do consumidor’ com a realidade de tais transformações.”

66 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 628.

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moderna é explicável exatamente com base na teoria material-ista, através da exegese da estrutura econômica de cada umadas sociedades citadas.67

Enfim, é somente a partir desse conjunto de premissas que faz sentidopensar em consumo, tanto em geral como no caso especificamente cap-italista, ou, para sermos ainda mais precisos, na “Idade Mídia” em quevivemos: só se pode consumir o que existe e se o consumo for efeti-vamente “autorizado” pelos imperativos do modo de produção vigente.Hoje, o que “autoriza” o consumo é a solvência. Já dizia Marx: “A difer-ença da demanda efetiva, baseada no dinheiro, e da carente de efeito,baseada na minha carência, minha paixão, meu desejo etc., é a diferençaentre ser e pensar, entre a pura representação existindo em mim e a rep-resentação tal como ela é para mim enquanto objeto efetivo fora de mim.”68

Quer dizer, só se pode consumir efetivamente os produtos existentes sese puder pagar por eles; é verdade que boa parte do consumo midiáticoé aparentemente gratuita. Efetivamente, isso não é verdade. Para assistira uma telenovela “de graça” na tv aberta a pessoa deve ao menos disporde um aparelho de tv, de corrente elétrica e, é óbvio, de uma habitação,própria ou alugada, ou viver com alguém que disponha dessas coisas.Além disso, sabemos muito bem que é a publicidade quem financia aprogramação “gratuita”. E quem financia a publicidade? A mais-valiaextraída dos trabalhadores das empresas anunciantes e o salário dos con-sumidores dos produtos anunciados.

Para consumir, portanto, há que se pagar, ainda que o pagamento nãoesteja imediatamente ligado a um consumo específico, como no caso datv aberta. Aí, o pagamento é mediado por casa, corrente elétrica, apar-elho de tv, além da compra de parte dos produtos e serviços anunciados.Seja como for, de um modo ou de outro, chega a conta. Para pagá-la, énecessário possuir algum meio de circulação; para tanto, a maioria de nósprecisa trabalhar;69 em outras épocas, o consumo dependia de fatores ref-

67 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, pp. 113-4.68 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos, pp. 160-1.69 Se o que assegura o consumo moderno é a solvência, se o sistema é sustentado pela trans-

formação de dinheiro em mais dinheiro através da exploração do trabalho, e se o trabalho setorna supérfluo, o salário também se torna, o que faz do consumo uma prática tendencialmenteimpossível, assim como a circulação de mercadorias e a própria realização de mais-valia, apesarda superprodutividade e de uma gigantesca demanda (insolvente).

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erentes a hierarquias sociais de ordem extra-econômica,70 mas que nempor isso “flutuavam” acima de determinadas relações sociais concretas,ancoradas em um dado modo de produção (embora a função monetáriafosse em geral inexistente ou periférica). Ou seja, só se pode consumir oque foi produzido, e conforme os limites estabelecidos pela posição quese ocupa em meio às relações de produção, sejam estes limites de ordemdiretamente econômica (solvência) ou cultural (formação, ideologia etc.).A produção e o consumo simbólicos em escala social não fogem à regra.

Pode-se então perceber, em uma abordagem do consumo calcada na críticada economia política da comunicação, que se trata de uma questão maiscontraditória e prenhe de conseqüências desagradáveis do que parecia atéentão, quando a abordávamos de um viés antropológico.

Ao mesmo tempo, é mais promissora:

o estado saudável ou “disfuncional” da economia capital-ista é, ao fim e ao cabo, determinado com fundamento nestaidentidade estrutural [...] entre trabalho e “massa consumi-dora”, o que confere ao trabalho, em ambas as situações, umaposição estratégica objetiva no sistema como um todo, mesmoque as pessoas envolvidas não estejam ainda conscientes daspotencialidades emancipadoras inerentes a esta posição.71

Tendo isto em conta, nunca é demais insistir no caráter histórico de umdado modo de produção, que traz em si, na base e na superestrutura, tantotendências dominantes quanto resquícios de modos de produção passa-dos e potencialidades de modos de produção ainda por nascer. As con-tradições resultantes da convivência conflituosa entre “universos simbóli-cos” do passado, do presente e do futuro (isto é, concretamente poten-ciais), bem como aquelas diretamente associadas à luta de classes at-ual, permanecem, deste modo, simultaneamente, limitadas e possibili-tadas pelas tendências dominantes de um dado modo de produção em umdado período histórico. Só podem, portanto, ser concretamente superadasjunto à superação do modo de produção que as limita (positiva e negativa-mente), e não através de discursos de fumaça como “consumo cidadão”.

Iremos agora dar mais alguns passos no sentido de pensar o papel es-tratégico da comunicação nesta superação (e no seu adiamento), tratando

70 Ainda depende, em parte, mas só como fator secundário à solvência.71 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital. São Paulo e Campinas: Boitempo e Editora

da Unicamp, 2002, pp. 672-3.

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das complexas relações dos seus níveis discursivo e extradiscursivo, entresi e com as subjetividades objetivamente envolvidas no processo comuni-cacional.

11.5 Representação, realidade e comunicação

Uma crítica da economia política da comunicação deve também con-frontar as representações coletivas mediadas pelas ITCs e a realidadeextradiscursiva, tanto nos aspectos e momentos desta última aos quais sereferem os discursos midiáticos mediadores das representações coletivas,quanto naqueles aos quais os mesmos discursos midiáticos deixam de sereferir, visando reconhecer seus efeitos ideológicos e identificar os inter-esses concretos (quais e de quem) em jogo, bem como a correlação deforças envolvida.

Um exemplo aproximado de como isso pode ser feito na prática pode serencontrado em um trabalho de Maia e França. A proposta das autoras,que reflete uma atitude relativamente difundida hoje – com a qual, aliás,simpatizamos –, defende que a especificidade da comunicação consisteprecisamente no fato de que, para dar conta de seu objeto, não pode pre-scindir de alguma articulação entre as ciências sociais e as ciências dalinguagem, as quais, tomadas isoladamente, não seriam suficientes.

Maia e França partem de uma posição epistemológica similar a nossa, asaber, que embora o conhecimento do real (discursivo e extradiscursivo)seja necessariamente mediado pela dimensão simbólica, pelo discurso(ainda que interior), o real não se esgota no discurso: “Existe um ‘forado texto’ que, em nossos estudos, requer um olhar talvez mais específicoe, de fato, para além do texto. O sujeito da comunicação é o sujeito dalinguagem – mas é mais; é um sujeito social, um sujeito em relação. E talrelação é mediada pelo texto, mas não se resume a ele.” 72

Para exemplificar de que modo um estudo de comunicação pode articularas ciências sociais e as da linguagem, elas descrevem em linhas geraisuma pesquisa em comunicação sobre eleições recentes no Brasil, da qualparticiparam, destacando as diferenças no tratamento dado ao mesmotema por cientistas políticos, por sociólogos e por pesquisadores que ado-tam um “viés comunicacional”. Assim, após apresentarem a abordagem

72 MAIA, Rousiley C.M. e FRANÇA, Vera V. A Comunidade e a conformação de umaabordagem comunicacional dos fenômenos. In: LOPES, Maria Immacolata V. (org.): Episte-mologia da Comunicação, p. 199.

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dos cientistas políticos, voltadas a questões como “o atual quadro par-tidário no Brasil, a expressão ideológica das forças em disputa”, e a dossociólogos, que discutem “o quadro de desemprego, violência, descrençana política tradicional, o novo perfil dos movimentos sociais” etc., as au-toras questionam:

E o viés comunicacional, como e por onde se constrói?Na apreensão de como [...] essas forças e valores se fazemdiscurso; na identificação dos interlocutores e lugares de fala;nos movimentos que as diferentes intervenções vieram provo-cando no posicionamento dos atores, na caracterização do pa-pel das diferentes mídias (do uso da Internet às novas cores doPT.) 73

Essas observações possuem uma grande importância metodológica e política,na medida em que remetem à dimensão ideológica das formas específi-cas como a objetividade sócio-histórica é articulada discursivamente, naforma de “verdades” que orientam a ação das massas ao impregnarem osenso comum, em certa medida compondo e regendo as subjetividades,a ponto de se converterem com freqüência em uma espécie de dogma-tismo tácito, inconsciente – que seria um outro modo de se definir “reifi-cação”. É o que nos ensina Hegel sobre o “dogmatismo”, que “não é outracoisa senão a opinião de que o verdadeiro consiste numa proposição queé um resultado fixo, ou ainda, que é imediatamente conhecida.” 74 Mar-cuse diz algo similar, ao argumentar que o “conceito ritualizado é tornadoimune à contradição” por “poderes que moldam o respectivo universo dalocução”: “Assim, o fato de a forma existente de liberdade ser servidãoe de a forma existente de igualdade ser desigualdade [...] é impedido deser expresso pela definição fechada desses conceitos [...].” 75 Ilyenkov,por sua vez, partindo da distinção hegeliana entre universal-concreto egeneralidade-abstrata,76 tece uma análise crítica contundente do que ele

73 Idem, p. 200.74 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Parte I, p. 42.75 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da sociedade industrial; o homem unidimensional, p.

96.76 “Hegel distinguia claramente a universalidade, que dialeticamente continha em si e em

suas determinações toda a riqueza do particular e do singular, da simples generalidade abstrata[...] de todos os objetos singulares de um mesmo tipo. [...] A tarefa do pensamento não estavalimitada a registrar empiricamente atributos comuns. O conceito central da lógica de Hegel eraentão o universal-concreto [...]” Cf. ILYENKOV. Op. cit.

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denomina “pensar abstratamente”, uma forma de pensamento que se ex-pressa somente por meio de frases feitas e clichês:

Pensar abstratamente significava ser escravizado pela forçade frases feitas e clichês correntes, por definições unilateraise vazias; significava enxergar nas coisas reais, intuídas, so-mente uma parte insignificante de seu conteúdo real, somenteaquelas determinações suas que já estavam “amalgamadas”[jelled] na consciência e funcionavam aí como estereótipospré-fabricados. Daí a “força mágica” das frases feitas e ex-pressões correntes, que impedem o acesso da pessoa pensanteà realidade, ao invés de servirem como uma forma de expressá-la.77

Trata-se agora de se retomar a velha questão filosófica da relação entrerealidade e representação no arcabouço teórico do marxismo, isto é, embases históricas concretas, dedicando uma atenção especial à mediaçãodas ITCs na produção das subjetividades e das representações coletivasque orientam a ação das massas.

Vimos, com Hegel, o caráter fixo e fechado do dogmatismo. Já Mar-cuse demonstrou a função politicamente conservadora do conceito ritu-alizado. Ilyenkov, por fim, ensinou de que modo as frases feitas “impe-dem o acesso da pessoa pensante à realidade”. Estamos aqui no própriocoração da dimensão política da subjetividade, e da intersubjetividade,tendo em vista o forte papel da linguagem e das comunicações na subje-tivação de certas representações da realidade, isto é, na sua incorporaçãoao “mapa cognitivo” (Jameson) das massas.78 É na capacidade de efe-tuar essa incorporação, junto à captura do gosto, que reside a potênciaconservadora ou revolucionária das ITCs.

Avançando um pouco mais nessa linha de investigação, Bourdieu nosfornece uma boa explicação para o caráter claramente classista das for-mas de subjetivação possíveis, na medida em que “a relação entre real-idade e representação é estabelecida através das disposições que são aforma internalizada das probabilidades associadas a uma dada posição na

77 Idem ibidem.78 Jameson defende que a tarefa do intelectual é realizar um “mapeamento cognitivo” da

época, empregando o conceito como “um código para ‘consciência de classe’ [...] de um tiponovo”. Cf. JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo. A Lógica cultural do capitalismo tardio,p. 413.

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divisão do trabalho.” 79 Ou seja, a realidade da posição que o sujeitoocupa em meio às relações de produção (ou à divisão de trabalho), me-diante disposições internalizadas, cuja forma possível é delimitada poressa posição, estabelece a relação entre realidade e representação que elepoderá desenvolver. Temos assim descrito o processo através do quala posição de classe objetiva, mediada por disposições subjetivas, cujocampo de possibilidades é por esta posição de classe delimitado, estab-elece a relação entre realidade e representação.

Ora, na medida em que a representação que se faz da realidade orienta aação sobre essa mesma realidade, somos remetidos a uma outra relaçãoigualmente importante, a saber, entre objetividade, subjetividade e práxis.A investigação dessa relação se mostra nesse momento necessária parauma compreensão mais acurada da primeira. Iremos, portanto, abandonarpor um instante o tema da representação e investigar um pouco mais estaúltima.

Lukács, por exemplo, destaca o papel potencialmente revolucionário do“fator subjetivo” na história, potência esta determinada pelo desenvolvi-mento econômico (objetivo) apenas na medida em que este cria as condiçõespara a sua atualização:

[...] o desenvolvimento econômico pode certamente criarsituações objetivamente revolucionárias, mas não produz defato ao mesmo tempo o fator subjetivo que nos fatos e naprática é determinante. [...] O fator subjetivo na história, por-tanto, é certamente em última análise, mas apenas em últimaanálise, o produto do desenvolvimento econômico, enquantoas alternativas frente às quais é posto são provocadas por esteprocesso, e todavia agem de modo relativamente livre, já queo seu sim ou não está ligado a ele somente pela possibilidade.Daí a grande importância da atividade histórica do fator subje-tivo (e com ele a ideologia).80

Em outras palavras, o desenvolvimento econômico determina as condiçõesde emergência de alternativas objetivas de ação, mas a escolha de uma dasalternativas possíveis, isto é, a opção por uma delas, é sempre o resultadodireto de uma decisão subjetiva. Entretanto, se aceitarmos a tese de Bour-dieu sobre o caráter classista das disposições subjetivas, perceberemos

79 BOURDIEU, Pierre. Distinction, p. 409.80 LUKÁCS, apud LESSA, Sérgio. Lukács: direito e política. In: PINASSI, Maria Orlanda

e LESSA, Sérgio (orgs.) Lukács e a atualidade do marxismo, p. 113.

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que Lukács deixa de considerar um fato importante: o desenvolvimentoeconômico determina não só as condições de emergência de alternativasobjetivas de ação, mas as próprias disposições subjetivas de ação, emb-ora não o ato subjetivo da escolha de uma das alternativas objetivamentedisponíveis de ação. Ou seja, a própria subjetividade é objetivamente de-terminada pelo desenvolvimento econômico – o que este não pode deter-minar, senão muito indiretamente, somente em última instância, na me-dida em que “somente” estabelece o campo de possibilidades objetivas deação e de disposições subjetivas para a ação, é a opção por uma ou outraalternativa objetiva de ação, o ato em sua singularidade. Este, sim, é frutodireto de uma decisão subjetiva.

Zizek, em um ensaio sobre Lukács e a “Escola de Frankfurt”, nos fornecemais alguns elementos para desenvolvermos essa questão: “O ponto real-mente importante não é a objetividade,81 mas a ‘totalidade’, entendidacomo processo global de ‘mediação’ entre o aspecto subjetivo e o obje-tivo. [...] o Ato nunca pode ser reduzido ao reflexo de condições objeti-vas.” 82

Ora, pode-se ir mais longe: o momento decisivo, “o Ato”, é e só podeser subjetivo, pois, falando em “hegelianês”, a objetividade enquanto ex-terior (tanto como ser-outro-em-si – exterior, independente da subjetivi-dade – ou ser-outro-para-si da subjetividade – exterior mas contempladaou compreendida pela subjetividade) é mais ou menos burra e cega, em-bora relativamente previsível (enquanto para-nós – sujeitos do discursofilosófico, ou, no caso, científico), dados alguns padrões observáveis – nanatureza e na sociedade/história, que não são “entidades” independentes,mas conceitos dialetizáveis. Porém, a própria emergência, do ventre dasubjetividade, de uma ação decisiva, e de sua maior ou menor possibili-dade de sucesso, embora a ação nunca possa ser reduzida “ao reflexo decondições objetivas”, dependem de condições objetivas, pois não é conce-bível qualquer subjetividade fora do concreto, do mundo, exterior (em si)ou interiorizado (para nós) – isto é, não representado ou representado – anão ser para os espíritas, crentes etc. –, embora seja plenamente conce-bível uma objetividade (burra e cega, não teleológica mas com alto graude sistematicidade e previsibilidade, ativa e aleatoriamente impregnante)independente de qualquer subjetividade, discurso, universo simbólico.

81 Zizek refere-se nesta passagem às condições objetivas para um ato revolucionário.82 Cf. ZIZEK, Slavoj. De História e Consciência de Classe a Dialética do Esclarecimento,

e volta. Documento eletrônico: http://www.antivalor.cjb.net/. Acesso em: jun.2006.

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Que tais possibilidades ou impossibilidades de concepção se dêem nonível do simbólico, da linguagem, não altera em nada as conclusões lóg-icas a que se chegou, permanecendo meras tautologias: só se concebeconcebendo. É claro que o fato de só se conceber concebendo não podeser deixado de lado, pois, como ensina Bourdieu:

É este o erro do objetivismo, que se esquece de incluir nadefinição completa do objeto a representação do objeto que eleteve que destruir de modo a atingir a definição “objetiva”; quese esquece de efetuar a redução final de sua redução, indispen-sável para agarrar a verdade objetiva dos fatos sociais, objetoscujo ser também consiste em serem percebidos.83

No que pese a correção do argumento de Bourdieu, uma crítica pare-cida, embora aparentemente invertida, pode ser dirigida ao relativismo eao subjetivismo: a realidade objetiva dos fatos sociais também consistenaquilo que são aquém ou além da representação. Nos termos de Kosik:

A teoria materialista distingue um duplo contexto de fatos:o contexto da realidade, no qual os fatos existem originária eprimordialmente, e o contexto da teoria, em que os fatos são,em um segundo tempo, mediatamente ordenados, depois deterem sido precedentemente arrancados do contexto origináriodo real. Como é possível, porém, falar do contexto real, emque os fatos existem de maneira primordial e originária, se talcontexto só pode ser conhecido pela mediação de fatos queforam arrancados do contexto real? O homem não pode con-hecer o contexto do real a não ser arrancando os fatos do con-texto, isolando-os e tornando-os relativamente independentes.Eis aqui o fundamento de todo conhecimento: a cisão do todo.Todo conhecimento é uma cisão dialética [...] entre os fatos eo contexto (totalidade), cujo centro ativamente mediador é ométodo da investigação.84

Em outras palavras, se a representação dos fatos é parte de sua realidadeobjetiva, esta não se esgota naquela.85 O que significa que há uma total-idade concreta cognoscível – que só é composta pelo conhecimento na

83 BOURDIEU, Pierre. Distinction, p. 256.84 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 57.85 Sem mencionar o fato de que a representação ainda não é o conceito, capaz de reproduzir

o real concreto, enquanto unidade do diverso, na mente.

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medida em que ela própria o compõe –, não um nível fenomênico (Kant)ou existente (Hegel) cognoscível (Kant e Hegel) e um numênico (Kant)ou essência (Hegel) incognoscível (somente Kant), ou ainda várias re-alidades, conforme a vontade e o gosto de cada freguês (Nietzsche) – eque só é acessível mediante o ato de conhecer, que sobre ela incide comoum raio que a revela, não que a distorce. É por isso que Hegel, emboranão tenha chegado a conceber o conceito de práxis enquanto mediaçãoativa, tem razão quando se opõe à concepção que defende que: “o abso-luto esteja de um lado e o conhecer de outro lado – para si e separado doabsoluto – e mesmo assim seja algo real. Pressupõe com isso que o con-hecimento, que, enquanto fora do absoluto, está também fora da verdade,seja verdadeiro”. 86

Se entendermos este “absoluto” hegeliano como sinônimo da totalidadeconcreta do ser em seu devir, a disputa teórica que se trava, a partir daí, épela representação científica conceitual “mais correta” do ser (questão on-tológica) e de como elaborá-la (questão metodológica), ou simplesmentepelo que é ou deixa de ser “científico” (questão epistemológica). Estaposição epistemológica, se não garante por si só o melhor método paraque se elabore tal representação, ao menos limpa o terreno de discussõesinúteis, ao mesmo tempo em que conserva o caráter aberto do conheci-mento e evita as armadilhas de certos dogmatismos entranhados no sensocomum, que, eventualmente, insinuam-se também no discurso científico.

Enfim, podemos dizer que não se concebe só concepções, mas tambémobjetividades, referentes, coisas, fenômenos extradiscursivos ou comose queira chamar, e cumpre conceber tais existências e relações corre-tamente, isto é, tais quais são em si, para que as subjetividades tomemas decisões corretas, no seu vir-a-ser de em-si (existentes mas sem noçãode si mesmas) a para-si (conscientes de sua própria existência), medi-ante o vir-a-ser do outro (objetividade) em-si (exterior, independente dassubjetividades) ao para-si das subjetividades (compreendido pelas subje-tividades) em sua objetividade.

Kosik formula esse ponto em termos da “dialética da atividade e da pas-sividade do conhecimento humano”:

86 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Parte I, p. 64. Trata-se de uma críticaimplícita a Kant e a qualquer teoria do conhecimento que advogue a impossibilidade de con-hecermos o real – o que, por outro lado, não é o mesmo que reduzir a totalidade do existente aoconhecimento.

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A dialética da atividade e da passividade do conhecimentohumano manifesta-se sobretudo no fato de que o homem, paraconhecer as coisas em si, deve primeiro transformá-las emcoisas para si; para conhecer as coisas como são independen-temente de si, tem primeiro que submetê-las à própria práxis:para poder constatar como são elas quando não estão em con-tato consigo mesmo, tem primeiro de entrar em contato comelas. O conhecimento não é contemplação. A contemplaçãodo mundo se baseia nos resultados da práxis humana. O homemsó conhece a realidade na medida em que ele cria a realidadehumana e se comporta antes de tudo como ser prático.87

Ilyenkov, por sua vez, nos oferece mais alguns subsídios fundamentaispara uma compreensão adequada desta importante questão epistemológ-ica, demonstrando, de um modo bastante similar ao de Kosik, a relaçãoque se dá entre contemplação e atividade no processo de conhecimento:

Na contemplação imediata (intuição) os aspectos objetivosda “natureza em si” estão grudados nos aspectos e formasque foram nela impressos pela atividade transformadora dohomem, e todas as características puramente objetivas da matérianatural, além disso, se oferecem à contemplação através da im-agem que a matéria natural adquiriu durante e como um re-sultado das atividades subjetivas do homem social. A contem-plação diz diretamente respeito não ao objeto mas à atividadeobjetiva (ou seja, atividade sobre objetos), transformando-os,e aos resultados desta atividade (prática) subjetiva.

Um quadro da natureza puramente objetivo é então desve-lado ao homem não na contemplação, mas através da atividadee na atividade do homem produzindo socialmente sua própriavida. [...] Só a prática, conseqüentemente, é capaz de resolverquais aspectos do objeto dado à contemplação pertencem aoobjeto da natureza em si, e quais deles foram nele introduzi-dos pela atividade transformadora do homem, ou seja, pelosujeito.88

87 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 28.88 ILYENKOV. Op. cit. Sobre esse tema, ver a “Segunda Tese sobre Feuerbach”, de Marx, à

qual, aliás, Ilyenkov faz menção na seqüência da presente citação.

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A Comunicação e o Gosto 295

Em outras palavras, de um ponto de vista materialista, negar a transparên-cia do real não pode significar reduzi-lo a mera representação, de um lado,ou, de outro, a uma qualquer exterioridade (ao pensamento) incognoscível,mas compreender a relação concreta entre representação e realidade, quetem na práxis sua mediação ativa e no conceito sua possibilidade de soluçãodiscursiva.

Podemos agora retomar a questão da relação entre representação e reali-dade, articulando essas considerações com uma reflexão sobre os discur-sos midiáticos, aqui entendidos como os atuais mediadores hegemônicosdo conhecimento coletivo, “falso” ou “verdadeiro”, do real.

Um bom ponto de partida para este movimento é o clássico artigo “Cod-ificação / Decodificação”, onde Stuart Hall discorre sobre a relação entreo que ele denomina “evento histórico bruto” e o “discurso televisivo”.Para Hall, o fato de um evento não poder ser transmitido pela tv em suaforma bruta, isto é, em sua singularidade fenomênica no tempo e no es-paço, mas somente enquanto discurso (audiovisual, no caso da tv), fazcomo que o evento, convertido em discurso, em uma “forma-mensagem”,torne-se “sujeito a toda a complexidade das ‘regras’ formais pelas quais alinguagem significa”.89

Deste modo, um evento extradiscursivo ou extratextual só pode ser cole-tivamente conhecido ao converter-se em evento comunicativo; para tanto,deve submeter-se às regras da linguagem. Isso demonstra a importânciadas ciências da linguagem para os estudos de comunicação. Por outrolado, a “dominância” das regras da linguagem no evento comunicativonão pode anular a singularidade extradiscursiva do evento, tampouco “asrelações sociais nas quais as regras [da linguagem] são postas em fun-cionamento ou as conseqüências políticas e sociais do evento terem sidosignificadas dessa maneira.”90 Temos então a determinação das relaçõessociais nas regras da linguagem que operam a conversão do evento em“evento comunicativo”, numa “forma mensagem” específica, e a determi-nação desta forma sob a forma de “conseqüências políticas e sociais”.

Assim, não obstante as regras da linguagem ou do discurso serem, emúltima instância, subordinadas às “relações sociais” nas quais emergem eatuam, sua relativa dominância na conversão do fato bruto em evento co-municativo – que envolve, enquanto tal, sua codificação e suas possíveis

89 Cf. HALL, Stuart. Codificação/Decodificação. In: SOVIK, Liv (org.). Da Diáspora, pp.388-9.

90 Idem, ibidem.

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decodificações – nem por isso é desprezível. Essas regras merecem, por-tanto, ser melhor compreendidas.

Para fazê-lo, acompanhemos um pouco mais o pensamento de Hall a re-speito de algumas especificidades fundamentais da “forma-mensagem”,em especial em sua variante televisiva, pois esta favorece, talvez mais doque qualquer outra, a reificação, devido ao “realismo” de sua iconicidade:“O signo televisivo é [...] um signo icônico, na terminologia de Peirce,porque ‘possui algumas das propriedades da coisa representada’. [...] Ocão, no filme, pode latir, mas não consegue morder!” 91

O signo icônico, porém, como as demais modalidades de signos,92 sópode significar dentro de um determinado código, ou sistema de regras,menos ou mais explícitas. Por esta razão os signos icônicos também sãocodificados, “mesmo que aqui os códigos trabalhem de forma diferentedaquela de outros signos.” 93 Assim, no caso do signo icônico da im-agem televisiva, “[...] a aparente fidelidade da representação à coisa ouao conceito representado – é o resultado, o efeito, de uma certa articu-lação específica da linguagem sobre o ‘real’. É o resultado de uma práticadiscursiva.” 94

Ora, se “não há discurso inteligível sem a operação de um código”, a“aparente fidelidade da representação à coisa” na “forma mensagem” icônicanão se deve à transparência do real ser aí reproduzida diretamente, mas àsespecificidades empíricas do signo icônico e ao código no qual ele atua. Apartir desta concepção, Hall desenvolve uma contundente crítica ao riscode reificação a ser realizado pela televisão, devido à atuação do que eledenomina “códigos naturalizados”:

Certos códigos podem [...] ser tão amplamente distribuí-dos em uma cultura ou comunidade de linguagem específica,e serem apreendidos tão cedo, que aparentam não terem sidoconstruídos [...] mas serem dados “naturalmente”. Nesse sen-tido, simples signos visuais parecem ter alcançado uma “quase-universalidade”, embora permaneçam evidências de que atémesmo códigos visuais aparentemente “naturais” sejam es-

91 Idem, ibidem pp. 392-3.92 Na terminologia de Peirce, além dos signos icônicos, temos os indiciais (que são uma

marca do referente, como uma pegada) e simbólicos (criados por convenção arbitrária, como anotação musical).

93 Idem, ibidem.94 Idem, ibidem.

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pecíficos de uma dada cultura.95 Isto não significa que nenhumcódigo tenha interferido, mas, antes, que os códigos foramprofundamente naturalizados. A operação de códigos natu-ralizados revela não a transparência e “naturalidade” da lin-guagem, mas a profundidade, o caráter habitual e a quase-universalidade dos códigos em uso. Eles produzem reconhec-imentos aparentemente “naturais”. Isso produz o efeito (ide-ológico) de encobrir as práticas de codificação presentes.96

Hall ainda propõe, no mesmo artigo, uma nova compreensão das noçõesde “denotação” e “conotação”. Recusando a idéia de um sentido literalpara a primeira, mas conservando-a enquanto sentido “fixo” (em um dadocontexto sócio-histórico), que parece natural, ele conclui que a disputapolítica que se trava no campo discursivo visa a hegemonia significanteda denotação.

Zizek diz algo bastante parecido, ao afirmar que a “[...] luta pela hegemo-nia ideológica e política é sempre a luta pela apropriação dos termos quesão espontaneamente vivenciados como apolíticos [...]”.97

Essa importância atribuída a códigos naturalizados, a sentidos denota-tivos fixos, que parecem naturais, e à “apropriação de termos que sãoespontaneamente vivenciados como apolíticos” nos reconduz à dimensãopolítica do gosto, da qual trataremos mais detidamente a partir de agora.

95 A imagem de uma vaca, por exemplo, pode significar um animal sagrado, a noção debucolismo ou um valor de troca, conforme seja decodificada por um hindu, por um cidadão deuma grande cidade ou por um fazendeiro.

96 Idem, ibidem. Toda esse conjunto de conceitos e argumentos desenvolvidos por Hallpoderia ser visto como o esboço de uma teoria propriamente comunicacional da reificação, queagrega à sua problemática central as contribuições conceituais e metodológicas da semiótica.Neste ponto, os estudos culturais e a crítica da economia política da comunicação se encontram,em um terreno comum aparentemente fértil.

97 ZIZEK, Slavoj, apud AIDAR PRADO, José Luiz, O Campo da comunicação e a comu-nicação entre os campos na era da globalização. In: LOPES, Maria Immacolata V. (org.):Epistemologia da Comunicação, p. 148.

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Capítulo 12

A DIMENSÃO POLÍTICADO GOSTO

É indispensável integrar a “vivência interior” na unidadeda vivência exterior objetiva. (Bakhtin)1

Vimos no início deste trabalho que o gosto está envolvido nas decisõesque orientam a ação, na medida de nossa autonomia ou liberdade de es-colha, pois nos diz o que parece ser, ou não, desejável. Vimos tambémque as ITCs exercem atualmente a hegemonia em sua formação, predom-inantemente voltada para contribuir de algum modo com a reproduçãoampliada do capital.

Iremos agora desenvolver uma análise crítica de como o gosto participade nossas decisões, de como as ITCs se ocupam de sua formação e dasconseqüências políticas disso tudo, partindo da própria gênese do gosto.Isto requer que articulemos o que descobrimos até agora com a seguintereflexão dos Manuscritos de Marx, a qual, embora não trate diretamentedo tema gosto, nos fornece excelentes pistas para fazê-lo:

[...] a força do meu ser é em si uma disposição subjetiva,porque o sentido de um objeto para mim só possui um sentidopara um sentido correspondente e vai tão longe quanto meusentido; é por isto que os sentidos do homem social são difer-entes dos do homem que não vive em sociedade; é somenteatravés do desdobramento objetivo da riqueza do ser humano

1 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem, p. 48.

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que a riqueza dos sentidos humanos subjetivos, que um ou-vido musical, um olho sensível à beleza das formas, em umapalavra, os sentidos capazes de gozos humanos tornam-se ossentidos que se manifestam como força do ser humano e sãoou desenvolvidos ou produzidos. Pois não se trata apenas doscinco sentidos, mas também daqueles ditos espirituais (von-tade, amor etc...), em uma palavra, os sentidos humanos, ocaráter humano dos sentidos, que só se formam graças à ex-istência de um objeto, através da natureza tornada humana. Aformação dos cinco sentidos é o trabalho de toda a história domundo até o dia de hoje.2

Na verdade, no que pese o alto nível de abstração da passagem acima,Marx embasou suas reflexões sobre esse assunto na mais concreta ed-ucação dos sentidos, que se dá na práxis histórica. Kosik, partindo deMarx, depreende dessa relação dialética entre sentidos subjetivos e obje-tivos os contornos de uma autêntica teoria conhecimento:

[...] os dois elementos constitutivos de cada modo humanode apropriação do mundo são o sentido subjetivo e o sentidoobjetivo. Qual a intenção, qual a visão, qual o sentido que ohomem deve desenvolver, como deve “preparar-se” para com-preender e descobrir o sentido objetivo da coisa? O processode captação e descobrimento do sentido da coisa é ao mesmotempo criação, no homem, do correspondente sentido, graçasao qual ele pode compreender o sentido da coisa. É possível,portanto, compreender o sentido objetivo da coisa se o homemcria para si mesmo um sentido correspondente. Estes mesmossentidos, por meio dos quais o homem descobre a realidade eo sentido dela, coisa, são um produto histórico-social.3

Ora, embora o gosto não diga respeito à compreensão racional do sentidoobjetivo das coisas, ele possui uma função prática tão simples quanto de-cisiva na relação do sujeito com o objeto: é ele quem atribui ao último,de forma pronta e imediata, a qualidade de útil ou inútil, belo ou feio,agradável ou desagradável. Ou seja, o gosto é o resultado de uma açãoqualquer do objeto sobre os sentidos, capaz de identificar e avaliar, na

2 MARX, Karl e Friedrich Engels. Sur la litérature et l’art. Textes Choisis, pp. 171-2.Trecho dos Manuscrits économiques et philosophiques, Oeuvres, t. III, pp. 120-121, Mega.

3 KOSIK, Karel. Dialética do concreto, p. 29.

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forma simples mais vigorosa de um sim ou um não, se o objeto possuio sentido objetivo de ser desejável ou indesejável para os sentidos subje-tivos do sujeito. Porém, por não dizer respeito à compreensão racional –embora não seja necessariamente incompatível com esta – o gosto podeestar errado, no caso de o sujeito não ter desenvolvido os sentidos ade-quados à correta apreensão do sentido objetivo do objeto. O desenvolvi-mento desses sentidos é fruto da experiência, ou melhor, de um conjuntode experiências singulares. A oportunidade de se ter ou não essas ex-periências, e com que freqüência, e em qual contexto etc., são fatoressocialmente condicionados.

Trata-se então de pensar o gosto a partir da materialidade histórica, isto é,em transformação, dos sentidos humanos, tendo em conta o duplo sentidoda palavra sentidos: os sentidos, por assim dizer, semióticos e os sentidosfisiológicos, em uma dialética que passa longe de todo essencialismo deordem semiótica ou fisiológica, bem como do racionalismo normativo dosestetas em geral.

Por este caminho, a questão do papel do gosto e das ITCs na reproduçãomaterial e ideológica da sociedade capitalista pode ser vista sob um novoângulo.

No que tange exclusivamente à reprodução material, ao menos desdeSweezy e Baran4 se conhece o papel necessário das marcas para o cap-italismo contemporâneo. Bem antes, Marx já havia se dado conta deque o “principal meio de abreviar o tempo de circulação [do capital] éo progresso dos transportes e comunicações”.5 Mais recentemente, no-vas técnicas administrativas,6 viabilizadas pela revolução digital, junto àsas novas mídias interativas, têm favorecido uma aceleração espetacularnas rotações do capital, agilizando os cálculos, os fluxos de informação ecapital, poupando despesas de armazenamento e minimizando o risco dasuperprodução ou da obsolescência não-planejada dos produtos,7 o quereafirma, em novos termos, o importante papel da circulação na repro-dução ampliada do capital.8

4 Cf. RUBIM, Antônio Albino Canelas. Comunicação e política, pp. 30-1.5 MARX, Karl. O Capital. Livro III, p. 79.6 Cf. ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a

negação do trabalho.7 E, como era de se esperar, aumentando o desemprego, não tempo livre para a fruição.

Sobre a noção de “obsolescência planejada”, ver MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital,pp. 634-700.

8 Cf. MARX, Karl. O Capital. Livro II.

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Quanto à reprodução ideológica propriamente dita,9 em meio à qual asITCs também têm um papel decisivo, não se trata de um fenômeno re-strito, de um lado, às idéias ou à cultura, nem, de outro, ao puro de-sejo lacunar10 (ambos, em certa medida, capturáveis pela mídia), mas umfenômeno que se dá precisamente na síntese da contradição dialética entreesses dois pólos, e que tomamos a liberdade de denominar gosto.

Dissemos que o gosto é a síntese da contradição dialética entre cultura edesejo lacunar. Por quê? Porque, por um lado, é a cultura que fornece aosujeito o repertório de valores positivos e negativos sobre as coisas, queantecedem sua experiência pessoal e, em grande medida, a orientam. Éa cultura que determina, de antemão, o que é para ser gostado ou não.11

Por outro lado, é a experiência do sujeito que irá ou não corroborar es-sas determinações culturais, na medida em que a ação assim orientadapreencherá ou não, menos ou mais satisfatoriamente, as demandas do de-sejo. O gosto é e não é culturalmente determinado, assim como é e nãoé determinado pelas experiências concretas do sujeito. A questão postanesses termos, mostra-se contraditória. Não se trata, porém, de uma con-tradição lógica, mas de uma contradição dialética constitutiva do gostoem sua concreticidade.

Sobre a noção de “contradição dialética”, cabe aqui lembrar, com Ilyenkov:“A contradição enquanto a unidade concreta de opostos mutuamente ex-cludentes é o núcleo real da dialética, sua categoria central. [...] A di-alética sempre obriga a enxergar, por detrás da relação de uma coisa comoutra coisa, sua própria relação consigo mesma, sua própria relação in-terna.” 12

Nos termos de Hegel:

O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a florparecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua ver-dade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem,

9 Condição necessária para a reprodução material – a qual, por sua vez, em última instânciaa determina.

10 Para a psicanálise, o desejo humano é lacunar pois não dispõe de objetos de satisfaçãodados aprioristicamente na natureza. A natureza desses objetos seria sempre cultural, ou sim-bólica.

11 Para uma maior clareza da exposição, abstraímos aqui a importante relação entre diferençasculturais e as cisões de classe – além das de gênero, étnicas, etárias etc. Sobre essas questões,ver Gramsci (s/data), Bourdieu (2000) e Hall (2003 b).

12 ILYENKOV, op. cit.

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mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém,ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos daunidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todossão igualmente necessários. É essa igual necessidade que con-stitui unicamente a vida do todo. Mas a contradição de umsistema filosófico não costuma conceber-se desse modo; alémdisso, a consciência que apreende essa contradição não sabegeralmente libertá-la – ou mantê-la livre – de sua unilateral-idade; nem sabe reconhecer no que aparece sob a forma deluta e contradição contra si mesmo, momentos mutuamentenecessários.13

Tratemos agora de pensar o gosto nessa chave metodológica.

12.1 A Dialética do gosto

O gosto diz respeito a decisões práticas, orienta a ação do sujeito. É aomesmo tempo o resultado da ação do objeto sobre o sujeito e a mediaçãoentre o desejo do sujeito e sua ação sobre o objeto. O objeto pode aindanão ser uma coisa ou uma pessoa, mas uma noção, pois o vazio do desejoé preenchido não só com coisas, mas também com noções sobre a dese-jabilidade ou indesejabilidade das coisas, das idéias, das pessoas. Essasnoções são tanto oferecidas de antemão ao sujeito, prontas, pela própriacultura em meio à qual ele se faz sujeito, quanto podem ser refutadas ourefeitas pelo sujeito a partir de sua experiência singular.

O gosto é ao mesmo tempo uma percepção e um juízo: é um sentido,não somente na dupla acepção do termo, como dito acima, mas em umaacepção tripla: a acepção sensível, a acepção significante e a acepçãovetorial, esta última designação entendida como sinônimo de direção oucaminho a seguir. É um sentido que se forma mediante sucessivas situ-ações de satisfação de desejos, a começar pela sucção do seio materno,e que se atualiza e reconfigura conforme a natureza dos objetos dessassatisfações. Mas dizer que o gosto se reconfigura implica reconhecer queo desejo se reconfigura, e assim é, pois a satisfação do desejo depende doobjeto. Desejo e objeto determinam-se mutuamente. E cada reconfigu-ração do desejo exige novos objetos, que por sua vez, graças à mediaçãoda saciedade, despertarão novos desejos e assim por diante.

13 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Parte I. Petrópolis-RJ: Vozes, 1997, p.22.

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O desejo em si, sem objeto, ao deparar-se com um possível objeto de suasatisfação, faz dele um objeto para si, transformando a si mesmo medianteo contato com o objeto: a cisão entre desejo e insatisfação foi suturada,seu vazio foi preenchido e o gosto do sujeito começa a ser formado, oque é o mesmo que dizer que o próprio sujeito, enquanto identidade ouindividualidade, começa a ser formado. Cada momento de saciedade temum sabor próprio, e é o conhecimento, ou seja, o saber desses sabores quedeverá orientar a ação do indivíduo, na medida de sua autonomia. O saberdos sabores é o resultado da saciedade, da suprasunção da contradiçãoentre o desejo insatisfeito em si e o objeto externo de satisfação em si, e ossabores são os elementos mediadores. Por outro lado, o saber dos saborestorna-se por sua vez o elemento mediador e os sabores a suprasunçãoda contradição entre o desejo insatisfeito e o objeto, dado que o primeiro(saber dos sabores) orienta a ação do sujeito visando os últimos (sabores).E o objeto, por fim, atua como elemento mediador entre a insatisfação e asatisfação. O processo, enquanto há vida, não tem fim, pois os sabores esaberes da saciedade nunca bastam de uma vez por todas – a negatividadeda saciedade é sua finitude, e o vazio do desejo sempre retorna, mas nãoda mesma forma, não em sua forma primária, dado que as saciedades quea sucederam a cada vez o reconfiguram, convertendo-o de puro desejo emgosto, e de gosto em novos gostos, embora alguns se repitam praticamenteidênticos até o fim. Nos termos de Marx:

Ser (sein) sensível, isto é, ser efetivo, é ser objeto do sen-tido, ser objeto sensível, e, portanto, ter objetos sensíveis forade si, ter objetos de sua sensibilidade. Ser sensível é ser pade-cente.

O homem enquanto ser objetivo sensível é, por conseguinte,um padecedor, e, porque é um ser que sente o seu tormento,um ser apaixonado. A paixão (Leidenschaft, Passion) é a forçahumana essencial que caminha energicamente em direção aoseu objeto.14

O “tormento” que faz do homem “padecedor” advém do fato de que, porser sensível, isto é, efetivo, o homem necessita de objetos externos para asatisfação de suas necessidades e desejos. Tomemos o exemplo da fome,a qual, como sabemos, está na base da relevância do gosto para a vidaem todos os seus desdobramentos: “A fome é uma carência natural; ela

14 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos, p. 128.

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necessita, por conseguinte, de uma natureza fora de si, de um objeto forade si, para se satisfazer, para se saciar. A fome é a carência confessada demeu corpo por um objeto existente (seienden) fora dele [...]”. 15

Ora, se a paixão é a “força humana essencial”, que move o sujeito paraos objetos de desejo, o gosto é, por assim dizer, o senso de orientaçãoda paixão rumo a objetos determinados. Pois o gosto, que é ao mesmotempo saber dos sabores e sabor dos saberes, é desejo lacunar (ou pulsão)convertido em desejo civilizado, consciente, que é o que orienta a práxisde cada um – ainda que o desejo a ser satisfeito seja de uma ordem tãodistante das necessidades primárias como aquele tipo, por exemplo, quese encontra em gestos de sacrifício. Mas da mesma maneira que a neg-atividade da saciedade é sua finitude, a negatividade dos saberes é suaincompletude. O confronto da insatisfação surgida daí com o já sabido esaboreado gera o desejo de uma nova satisfação e de um novo saber dossabores, que conduz ao enriquecimento e à variedade do desejo e do saber,isto é, do gosto, conseqüentemente dos objetos potenciais de prazer, quesão, enquanto meramente potenciais, o momento negativo deste estágiode desenvolvimento do gosto. Aqui, ele se vê obrigado a lidar com a con-tradição entre os limites atuais do saber e os novos gostos, os novos de-sejos conscientes criados, que demandam novos objetos, e a suprasunçãodessa negatividade remete aos limites naturais da produção conscientede velhos e novos objetos de prazer, estando a potência de realizá-la nocaráter sócio-histórico dessa produção.

No dizer de Marx:

[...] nem os objetos humanos são os objetos naturais as-sim como estes se oferecem imediatamente, nem o sentido hu-mano, tal como é imediata e objetivamente, é sensibilidade hu-mana, objetividade humana. A natureza não está, nem objetivanem subjetivamente, imediatamente disponível ao ser humanode modo adequado.

E como tudo que é natural tem que começar, assim tam-bém o homem tem como seu ato de gênese a história, que é,porém, para ele, uma [história] sabida e, por isso, enquanto atode gênese com consciência, é ato de gênese que se supra-sume(sich aufhebender Entstehungsakt). A história é a verdadeirahistória natural do homem.16

15 Idem ibidem, p. 127.16 Idem ibidem, p. 128.

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A Comunicação e o Gosto 305

Temos, enfim, no gosto, a expressão de duas cisões constitutivas do su-jeito humano: a mais simples e da qual vimos falando, entre sujeito (dodesejo) e objeto; e a segunda, de uma natureza mais complexa e contra-ditória, que é a essência da outra: entre o sujeito e ele próprio, entre osujeito em si e o sujeito para si, entre o sujeito do gosto cindido, sujeitoao vazio autoritário do desejo, preenchido eventualmente por objetos es-tranhos que lhe são ofertados em troca de trabalho forçado, sujeito sujeitoaos saberes esclerosados, de um lado, e, de outro, o sujeito do gosto sutu-rado, o sujeito do saber dos sabores e do sabor dos saberes em permanenteprocesso de conscientização e enriquecimento.

Vimos falando em um indivíduo, em uma identidade individual, buscandouma maior clareza na exposição. Na realidade, do que se trata todo otempo é da constituição do gosto do sujeito social, cindido além de tudoem classes antagônicas, cujas identidades, em permanente construção,são fruto da história ao mesmo tempo em que a produzem. O gosto cin-dido, bem como seu potencial de sutura, ocupam uma dimensão políticafundamental nessa produção.

Em suma, o homem é o sujeito de um desejo lacunar que se confrontacom a exterioridade do objeto de desejo, o qual se reconforma de modoculturalmente mediado conforme o telos humano, que ora corresponde,ora se contrapõe aos objetivos particulares das pessoas, na dialética dasatisfação e da insatisfação, no caráter aberto e produtivo da história.

Tendo em conta o aspecto empírico dessa produção como realização histórico-social do gosto, como cisão constitutiva e potência de sutura do sujeito so-cial, negada desta vez pelas contradições sociais geradas no processo, quepossibilitam e obstaculizam a práxis emancipatória como atualização dapotência de sutura, podemos agora formular as seguintes questões: paraalém da natureza bruta, isto é, nas sociedades humanas, o que determinaquais objetos estarão disponíveis, e para quem – conseqüentemente, quedesejos, que gostos: que sensibilidades, significados e linhas de ação?Por que certos gostos se tornam comuns a certos segmentos sociais e nãoa outros? Por que alguns gostos atravessam praticamente todos os seg-mentos sociais?

Propomos que a busca da resposta para essas questões deve partir daseguinte reflexão de Marcuse:

Sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode sertransformada em poderoso instrumento de dominação. O al-cance da escolha aberta ao indivíduo não é o fator decisivo para

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a determinação do grau de liberdade humana, mas o que podeser escolhido e o que é escolhido pelo indivíduo. O critériopara a livre escolha jamais pode ser absoluto, mas tampouco éinteiramente relativo. A eleição livre dos senhores não aboleos senhores ou os escravos. A livre escolha entre ampla var-iedade de mercadorias e serviços não significa liberdade seesses serviços e mercadorias sustém os controles sociais so-bre uma vida de labuta e temor – isto é, se sustém alienação.A reprodução espontânea, pelo indivíduo, de necessidades su-perimpostas não estabelece autonomia; apenas testemunha aeficácia dos controles.17

Marcuse, aqui, denuncia com veemência como “a liberdade pode sertransformada em poderoso instrumento de dominação”. O problema daargumentação de Marcuse é que se limita ao diagnóstico e à denúncia –embora ambos justos – do problema. Não pode, porém, ir além, por terperdido de vista a luta de classes. Ao reintroduzi-la na reflexão, contudo,abrimos a possibilidade de perceber o que é que a liberdade “da escolhaaberta ao indivíduo”, isto é, a liberdade dos gostos, tem a ver não só como “controle social”, mas também com a sua contestação e potencial su-peração.

Seguindo esta trilha, nos deparamos com a complicada questão da con-sciência de classe e de sua relação com o gosto. A hipótese que ire-mos investigar a partir de agora é que os gostos são, a princípio, um reg-istro da inconsciência de classe, registro que corresponde às disposições“espontâneas” das classes sociais, entendidas aqui em sentido estrita-mente econômico.18 Nas atuais circunstâncias, isso faz do gosto, ten-dencialmente, como indicado na introdução deste trabalho, o substratosensível da ideologia hegemônica.

Por outro lado, a compreensão, por parte das classes subalternas, dosmecanismos reais que determinam a sua própria condição econômica, edo caráter histórico e revogável dessas determinações, favorece a emergên-cia da consciência política dessa condição econômica, conseqüentementea consciência de sua posição econômica e política de classe. Esta con-sciência é condição para a sua conversão de classe social em sentido

17 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da sociedade industrial; o homem unidimensional, p.28.

18 Sobre a distinção entre a noção de classe em sentido político e em sentido econômico, veracima, pp. 107-8, referência ao 18 Brumário, onde a distinção é explicitada.

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estritamente econômico (classe em si) a classe social em sentido tam-bém político (classe para si). Tal conversão, contudo, para ser efetiva-mente eficaz no sentido de contribuir para a sua emancipação, e é nesteponto que pretendemos acrescentar algo novo ao debate, deve resgataros gostos do cativeiro do capital, visando fortalecer a organização daclasse tornada consciente de si para a ação transformadora, pois os gostos,rearticulados com a consciência de classe, podem atuar como elementosintegradores e motivacionais; como substrato sensível de uma ideologiacontra-hegemônica, socialista, racional e não dogmática;19 como paixão,no sentido empregado por Marx,20 já que a paixão é o gosto em alta volt-agem.

12.2 Gosto, ideologia e inconsciência de classe

A “consciência de classe” é – ou foi – um dos tópicos mais debatidos dolegado marxiano, junto à problemática da ideologia, da “falsa consciên-cia” etc. Numa formulação controversa mas fundamental, Marx afirma:“Não se trata do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que oproletariado inteiro pode imaginar de quando em vez como sua meta.Trata-se do que o proletariado é e do que ele será obrigado a fazer histori-camente de acordo com o seu ser.” 21

Uma leitura apressada desta passagem de A Sagrada Família pode justi-ficar as velhas críticas ao caráter fatalista da “missão histórica” atribuídaao proletariado pelo marxismo, que teria sido desmentida pela históriaetc. Tal leitura, porém, pode ser evitada, considerando-se por exemploque aquilo que o proletariado “será obrigado a fazer historicamente deacordo com o seu ser” ainda não pôde ser feito, ou talvez não dê certo,ou “ele” pode jamais se dar conta da “obrigação” etc.

Além dessas hipóteses, outras passagens de Marx e Engels refutam aacusação de fatalismo, deixando menos margens a dúvidas ao apresentarem

19 O gosto é aqui importante porque a consciência da exploração sem a correspondente mo-tivação à ação, sem o pathos revolucionário, conduz em última análise ao niilismo; já a dis-posição à ação sem a consciência correta, conduz à mera rebeldia, que pode descambar em umesquerdismo infantil, inconseqüente e eventualmente perigoso, na medida em que favorece odogmatismo ou a reação; na pior das hipóteses, pode conduzir ao fascismo.

20 Ver passagem dos Manuscritos que reproduzimos pouco acima: “A paixão (Leidenschaft,Passion) é a força humana essencial que caminha energicamente em direção ao seu objeto.”MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos, p. 128.

21 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família, p. 49.

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uma concepção da ação revolucionária do proletariado como possibili-dade real, como uma tendência histórica necessária, como uma potênciaconcreta do seu ser, não como uma determinação absoluta, garantida, ir-revogável e cuja vitória esteja assegurada de antemão.22

Tendo isto em conta, e partindo da hipótese de que a substituição do cap-italismo por formas superiores de socialização não é de todo inviável,mas ao mesmo tempo sabendo que uma operação de tal magnitude trazconsigo a exigência da ação revolucionária de um sujeito coletivo, cujaidentidade corresponde à posição que este ocupa em meio às relações deprodução e, simultaneamente, em meio à luta de classes, a consciênciade classe permanece necessária à ação revolucionária, ainda nos dias dehoje. Por isso é importante atualizar o debate teórico a seu respeito.

Mészáros, em um texto intitulado Consciência de classe necessária e con-sciência de classe contingente,23 inicia sua reflexão comentando precisa-mente a passagem acima citada de A Sagrada Família, e confrontando-acom uma outra, de Gramsci. Para Mészáros, ambas “ilustram, melhorque qualquer outra coisa, o dilema central da teoria marxista das classese da consciência de classe.” 24 Por esta razão, é pertinente conhecermostambém o texto de Gramsci:

Pode-se excluir a idéia de que, por si só, as crises econômi-cas produzem diretamente eventos fundamentais; elas podemapenas criar circunstâncias mais favoráveis para a propagaçãode certas maneiras de pensar, de colocar e resolver questõesque envolvem todo o desenvolvimento futuro da vida e do es-tado. O elemento decisivo em toda a situação é a força, perma-nentemente organizada e pré-ordenada por um longo período,que pode ser utilizada quando se julgar que a situação é fa-vorável (e ela é favorável apenas até o ponto em que estaforça exista e seja plena de ardor combatente);25 portanto, atarefa essencial é a de atentar, paciente e sistematicamente,para a formação e o desenvolvimento dessa força, tornando-a

22 Sobre a certeza da vitória proletária, vale lembrar, como mencionado acima, a passagemdos primeiros parágrafos do Manifesto Comunista, onde é aventado o risco do “aniquilamentodas classes em confronto”.

23 Cf. MÉSZÁROS, Istvan. Filosofia, ideologia e ciência social, pp. 75-119.24 Idem ibidem, p. 75.25 O que é o mesmo que dizer plena de paixão, de gosto em alta voltagem.

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até mesmo mais homogênea, compacta, consciente de si mesma.26

Na seqüência, Mészáros esclarece que a contradição entre a idéia de Marxde que o proletariado será “forçado a realizar sua tarefa histórica”, 27

e a de Gramsci, que “insiste em que a própria situação histórica é fa-vorável somente na medida em que o proletariado já tiver conseguido de-senvolver uma força organizada completamente consciente de si mesma”,é só aparente. 28 Porque Marx e Gramsci estão tratando de coisas difer-entes: o primeiro refere-se ao ser social do proletariado, isto é, aos “de-terminantes complexos de uma ontologia social”, não a “crises econômi-cas’ – termos da polêmica de Gramsci contra o ‘economicismo vulgar’.”29 Ou seja, não são posições antagônicas, mas complementares, pois ascrises econômicas são apenas um entre outros fatores que podem favore-cer a ação revolucionária das massas, embora não um dos menos impor-tantes. Para Gramsci, porém, ainda mais importante é a pré-existência, emrelação às crises econômicas, de “uma força organizada completamenteconsciente de si mesma”, condição para que essas crises se tornem, efe-tivamente, um elemento desencadeador da ação revolucionária. Esta, porsua vez, também faz parte do ser social do proletariado enquanto potên-cia, cuja atualização depende em grande parte não só de crises econômi-cas em termos genéricos, mas mais especificamente do desenvolvimentodas forças produtivas entrar em contradição com as relações de produçãoe da emergência da consciência de classe.

A questão ainda não se encerra aí. Afinal, como se dá esta “emergência”concretamente? A resposta para isso deve partir da constatação de que “aconsciência de classe, de acordo com Marx, é inseparável do reconheci-mento – sob forma de consciência ‘verdadeira’ ou ‘falsa’ – do interessede classe, baseado na posição social objetiva das diferentes classes na es-trutura vigente da sociedade.” 30 Mas o que há de efetivamente decisivona relação entre “posição social objetiva” e consciência de classe “ver-dadeira” ou “falsa”? O “conceito de subordinação estrutural necessáriado trabalho ao capital na sociedade de mercadorias. [...] O interesse de

26 GRAMSCI, Antonio. The Modern Prince and other writing, apud MÉSZÁROS, ibidem,p.76.

27 MÉSZÁROS, Istvan. Filosofia, ideologia e ciência social. Ensaios de negação e afir-mação. São Paulo: Editora Ensaio, p. 76.

28 Idem ibidem.29 Idem ibidem.30 Idem ibidem, pp. 88-9.

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classe do proletariado é definido em termos de mudança dessa subordi-nação estrutural.” 31

Dispomos então de um fundamento teórico sólido para o desenvolvimentode nossa investigação em seu estado atual. Porém, dada a vastidão derecursos à disposição das forças que se opõem a essa emergência, per-manece o problema de como a consciência “falsa” pode ser superadapela “verdadeira”, ou como a consciência contingente, imediata, podeelevar-se à consciência necessária, que parte da posição econômica declasse do proletariado mas é mediada pelo conhecimento acerca da sub-ordinação estrutural do trabalho ao capital e do interesse (ainda predom-inantemente inconsciente) do trabalho de suprasumir essa subordinaçãoestrutural. Marx denominou esta “contradição entre a contingência so-ciológica da classe [...] em um momento determinado [...] e de seu sercomo constituinte do antagonismo estrutural do capitalismo [...] de con-tradição entre o ser e a existência do trabalho”,32 considerando que “ofator crucial na resolução dessa contradição é [...] o desenvolvimento deuma consciência de classe adequada ao ser social do trabalho.” 33

Temos, então, que a consciência de classe necessária não brota espon-taneamente do solo econômico, ao mesmo tempo em que certas condiçõeseconômicas são necessárias para o seu florescimento. Contudo, diante dahipótese de essas condições já terem sido atingidas, o desafio presenteé descobrir (ou inventar) o que pode ser feito para estimular a emergên-cia da consciência de classe necessária, articulada com um pathos quelhe corresponda, em uma escala que torne a perspectiva revolucionáriaefetivamente viável em um horizonte de tempo calculável em algumasdécadas. 34

Enfrentar este desafio requer, metodologicamente, o exame atento de umdeterminado grupo de conceitos, que nos permita pensar adequadamentea questão, bem como uma revisão dos esforços anteriores empreendidosno mesmo sentido, ao menos daqueles mais relevantes, de modo a po-dermos identificar sua eventual atualidade. O exame pode começar pelacontroversa noção de “falsa consciência”, sinônimo, às vezes, de con-

31 Idem ibidem, p. 92.32 Idem ibidem, p. 95.33 Idem ibidem, p. 95.34 Dizemos “em algumas décadas” porque “não temos um cronograma tão folgado para a

necessária transformação da potencialidade em realidade. Isto deve acontecer com a agravantede uma enorme urgência.” Cf. MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 267.

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sciência de classe contingente, outras simplesmente de ideologia, um dosconceitos mais polissêmicos das ciências sociais.

O termo ideologia foi cunhado na passagem do século XVIII para o XIX,por Cabnis e Destutt de Tracy, para denominar seu projeto de uma teo-ria das idéias.35 Algumas décadas depois, adquiriu, com Marx e Engels,um novo sentido, claramente negativo. Ideologia, então, passou a desig-nar especificamente as idéias que, de um modo ou de outro, legitimam adominação de classe, estejam essas idéias situadas no discurso religioso,filosófico, jurídico ou econômico. A ideologia, porém, não deve ser con-fundida com a superestrutura, pois esta última envolve também a ciênciae as artes, as quais, para Marx e Engels, não eram ideologias.

Um sentido mais genérico do termo ideologia, popularizado por Engels,é expresso na noção de “falsa consciência”.36 Aqui, é importante fazeralguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, falsa consciência não é nec-essariamente o mesmo que consciência contingente, dado que esta úl-tima pode, em um determinado momento, corresponder à consciêncianecessária. Assim, a falsa consciência é a consciência contingente so-mente quando esta não corresponde à consciência necessária. Em se-gundo lugar, a noção de falsa consciência pressupõe, de fato, uma con-sciência verdadeira, mas esta não está na ciência, em termos genéricos,como pensa o positivismo, mas especificamente na compreensão da sub-ordinação estrutural do trabalho ao capital. Assim, falsa consciência nãoé sinônimo de uma ilusão qualquer, mas de uma forma determinada deilusão, necessária a perpetuação do sistema e por ele mesmo possibili-tada. Em uma observação no livro 3 do Capital, a respeito do seu método,Marx nos ajuda a entender melhor essa questão: “[...] as configuraçõesdo capital desenvolvidas neste livro abeiram-se gradualmente da formaem que aparecem na superfície da sociedade, na interação dos diversos

35 Cf. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado, p. 81: “Sabe-se que aexpressão: ideologia, foi forjada por Cabnis, Destutt de Tracy e seus amigos, e que designavapor objeto a teoria (genérica) das idéias. Quando, 50 anos mais tarde, Marx retoma o termo,ele lhe confere, desde as suas Obras da Juventude, um sentido totalmente distinto. A ideologiaé, aí, um sistema de idéias, de representações que domina o espírito de um homem ou de umgrupo social.” Ver também HALL, Stuart. O interior da ciência; ideologia e a “sociologia doconhecimento”. In: Da Ideologia, e LÖWY, Michael. Ideologias e ciências sociais.

36 Ver LARRAIN, Jorge. Stuart Hall and the marxist concept of ideology. In: Stuart Hall:Dialogues in Cultural Studies.

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capitais, na concorrência e ainda na consciência normal37 dos própriosagentes da produção.” 38

Mais adiante, na mesma obra,ele aprofunda este ponto:

A relação entre uma porção de mais-valia, de renda mon-etária [...] com a terra é em si absurda e irracional; pois asmagnitudes que aqui são aferidas, uma em relação à outra,são incomensuráveis – por um lado, um valor de uso par-ticular, um pedaço de terra de tantos metros quadrados, e,por outro, o valor, especialmente a mais-valia. Isso na ver-dade expressa apenas que, sob determinadas condições, a pro-priedade de tantos metros quadrados de terra permite ao pro-prietário conseguir à força uma certa quantidade de trabalhonão-remunerado, que o capital conseguiu chafurdando nestesmetros quadrados, como um porco em batatas. Mas, ao queparece, a expressão é a mesma se alguém desejasse falar darelação entre uma nota de cinco libras e o diâmetro da Terra.

Entretanto, a reconciliação das formas irracionais sob asquais certas relações econômicas aparecem e se afirmam naprática não diz respeito aos agentes ativos destas relações emsua vida cotidiana. E, como estão acostumados a se movimen-tar em meio a tais relações, não acham nada estranho ali. Umaabsoluta contradição não lhes parece nem um pouco miste-riosa. Sentem-se tão à vontade quanto um peixe dentro dt’água,entre manifestações que estão separadas de suas conexões in-ternas e são absurdas quando isoladas. O que Hegel diz emrelação a certas fórmulas matemáticas se aplica aqui: o queparece irracional ao senso comum é racional, e o que lheparece racional é irracional.39

Isto ocorre porque, com o advento do capitalismo, radicaliza-se o pro-cesso mediante o qual a consciência normal, imediata, contingente dossujeitos objetificados passa a constituir-se em função da posição que ocu-pam enquanto forças produtivas (ou improdutivas) no circuito de pro-

37 Ou “contingente”.38 MARX, Karl. O Capital. Livro III, p. 30. O grifo (itálico) é meu.39 MARX, O Capital, livro 3, apud MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 478.

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dução e troca de mercadorias, ou seja, a partir de sua posição de classe.40

Para o marxismo, esta consciência é consciência necessária quando com-preende o caráter fetichista do processo e orienta a ação dos sujeitos ob-jetificados no sentido de sua superação; é “falsa consciência” quandose rende à realidade “invertida”, quando não compreende este caráter enão se empenha em superá-lo na prática. Contudo, essa inversão nãoé uma espécie de “falha” fortuita do pensamento, mas uma forma coer-ente de pensamento derivada de uma realidade invertida: “A inversão nãoestá no pensamento acerca dos ‘objetos’ (mercadorias), mas nos próprios‘objetos’ (mercadorias), de modo que as representações ideológicas sãoreflexos corretos de uma realidade por assim dizer ‘falsa’, e não espel-hamentos falsos ou invertidos da realidade.” 41

Nessa mesma linha de raciocínio, Mészáros pensa a “falsa consciência”como um momento subordinado da ideologia em um sentido mais am-plo,42 enquanto consciência prática (de classe) necessária em uma so-ciedade dividida em classes antagônicas:

O reconhecimento das necessárias limitações da ideologia– originadas do papel que ela foi instada a desempenhar napreservação de sociedades profundamente divididas – signifi-cava que a questão da emancipação humana radical não pode-ria ser vislumbrada sem se considerar também a supressão fi-nal das formas distorcidas de consciência social.43

Além disso, e isto é muito importante, “[...] a ideologia não é ilusão nemsuperstição religiosa de indivíduos mal-orientados, mas uma forma es-pecífica de consciência social, materialistamente ancorada e sustentada.”44 É por isso que:

[...] se as causas identificáveis de mistificação ideológicafossem primariamente ideológicas, elas poderiam ser contra-postas e revertidas na esfera da própria ideologia. [...] o im-

40 Não que as consciências dos sujeitos sejam redutíveis a sua posição de classe. O quese quer dizer é que esta posição é o fator em última instância determinante do complexo demediações que formam as consciências.

41 MAAR, Wolfgang Leo, A Reificação como realidade social. Práxis, trabalho e críticaimanente em hcc, in: ANTUNES, Ricardo e DOMINGUES LEÃO RÊGO, Walquíria. Lukács.Um Galileu no século XX, p. 45.

42 Cf. MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 67.43 Idem, p. 469.44 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 65.

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pacto maciço da ideologia dominante na vida social como umtodo só pode ser apreendido em termos da profunda afinidadeestrutural existente entre as mistificações e inversões práticas,por um lado, e suas conceituações intelectuais ideológicas, poroutro.45

Nesse sentido, o pensamento de Mészáros aproxima-se e complementa odo seu antigo mestre, o “velho” Lukács, de Ontologia do ser social:

[...] a correção ou falsidade [de uma ideação] não bastampara fazer de uma opinião uma ideologia. Nem uma opiniãoindividual correta ou errônea, nem uma hipótese, uma teoriaetc., científica, correta ou errônea são em si e por si uma ide-ologia: podem apenas [...] tornar-se [uma ideologia]. Somenteapós se tornar veículo teórico ou prático para combater os con-flitos sociais, quaisquer que sejam eles, grandes ou pequenos,episódicos ou decisivos para o destino da humanidade, elas sãoideologia.46

Essa compreensão do conceito, para Mészáros, é decisiva, pois “sem sereconhecer a determinação das ideologias pela época como a consciênciasocial prática das sociedades de classe, a estrutura interna permanececompletamente ininteligível.”47

Mészáros, assim, emprega o conceito em um sentido mais neutro, na linhade Lênin, Gramsci e Lukács, diferente – mas não oposto – do sentido neg-ativo popularizado por Marx e Engels.48 Nesta acepção neutra, ideologiacorresponde àquelas idéias capazes de mobilizar amplos contingentes dapopulação, sejam falsas ou verdadeiras, permanecendo diretamente atre-lada à luta de classes. Neste registro, podemos tranqüilamente falar emuma ideologia socialista – o que para Marx e Engels não faria sentido– e em uma ideologia burguesa – o que para Marx e Engels seria umaredundância. Em todos os casos, a ideologia não é uma mera ilusão, cor-respondendo sempre, ainda que de forma altamente mediada, a um deter-

45 Idem ibidem, p. 479.46 LUKÁCS, apud LESSA, Sérgio. Lukács: direito e política. In: PINASSI, Maria Orlanda e

LESSA, Sérgio (orgs.) Lukács e a atualidade do marxismo, p. 108. A esta citação de Lukácssegue o comentário de Lessa: “Não é, portanto, o conteúdo gnosiológico de uma ideação que atorna ideologia, mas sim sua função social específica: ser veículo dos conflitos sociais (...)”.

47 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 67.48 Cf. WILLIAMS, Raymond. Key words, pp. 154-5.

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minado estágio da articulação dialética entre forças produtivas e relaçõesde produção, ou, em outras palavras, da luta de classes.

Agora podemos retomar a questão da passagem da consciência de classecontingente, enquanto falsa consciência, à consciência de classe necessária.Talvez tenha sido o “jovem” Lukács, em História e Consciência de Classe,quem avançou mais nesse sentido, em seu esforço de teorizar a ideologiaa partir da forma concreta como aquilo que ele denominava consciência“psicológica” poderia elevar-se, na prática, à consciência “atribuída”. 49

Tratando das diferenças ideológicas (na acepção neutra, não faz mal lem-brar) entre, de um lado, os operários empíricos, e de outro o proletariadoenquanto “classe universal”, Lukács diferenciou a “consciência psicológ-ica” dos primeiros da “consciência atribuída” da última, enxergando nopartido comunista bolchevique a mediação entre contingência e neces-sidade, por ser a incorporação atuante, a mediação ativa, o portador daverdadeira consciência de classes do proletariado, à qual as massas op-erárias empíricas fatalmente teriam que ascender.

A idéia do Partido como encarnação da consciência de classe “atribuída”do proletariado, contudo, se pode ter feito algum sentido conjuntural, emtermos teóricos e práticos, por ocasião da revolução de Outubro e até mea-dos da década de 20, revelou-se a longo prazo irrealista e mesmo trágica,dado que o Partido, enquanto mediação singular entre o particular– o pro-letariado empírico – e o universal – o proletariado enquanto “classe uni-versal”, ao invés de superar dialeticamente sua contradição, efetuando suaconciliação em um nível superior – a extinção de todas as classes e a su-peração da sociedade de classes –, por assim dizer estagnou a contradiçãoem um estágio a longo prazo insustentável, mediante a subordinação doparticular e do universal concretos ao “universal abstrato” encarnado nahipostasia do singular. Em termos menos abstratos, o Partido converteu-se, de unidade organizacional revolucionária, em unidade gerencial deextração de trabalho excedente sob uma forma estatizada, ainda que emnome de uma quimérica “acumulação primitiva socialista”. Como bemquestionou Kurz (1993), acumulação de quê? De capital! Acumulação de

49 As noções de consciência de classe psicológica e atribuída, em Lukács, correspondem,respectivamente, às noções de consciência contingente e necessária, em Marx. Nos termos deMészáros: “[...] a famosa distinção de Lukács entre a consciência de classe ‘atribuída’ ou ‘im-putada’ e a consciência ‘psicológica’ tem sua origem na idéia marxiana que opõe consciência declasse verdadeira ou necessária – ‘atribuída ao proletariado’ em virtude de ele ser ‘conscientede sua tarefa histórica’[...] – à contingência do ‘que este ou aquele proletário, ou mesmo todoo proletariado, no momento, considera como sua meta’.” Cf. MÉSZÁROS, Istvan. Filosofia,ideologia e ciência social, p. 86

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recursos ou de riquezas a serem distribuídos, ainda que de modo menosdesigual do que nos estados capitalistas, como legitimação de uma “re-lação social” (Rubin, 1980) ainda calcada na extração de trabalho exce-dente como fim em si mesmo, apesar dos discursos apologéticos.

Enfim, os rumos tomados pelo estalinismo e pelos demais PCs por ele ori-entados desacreditaram, até segunda ordem, a elegante mas problemáticaarticulação entre método dialético e estratégia revolucionária de Lukács,em História e Consciência de Classe.50 A esperança de Rosa Luxem-burgo de que essa consciência emergiria quase que espontaneamente dasmassas, no decorrer da própria luta, mostrou-se igualmente irrealista.

Permanecemos, assim, com nosso dilema: como efetuar, na práxis, a pas-sagem da consciência de classe contingente/psicológica à consciência declasse necessária/atribuída? Não se pretende aqui resolver de uma vezpor todas as complicadas implicações dessa problemática. Mas talvezo projeto gramsciano de composição gradual de um bloco histórico nãoputchista, que aproxime intelectuais e trabalhadores, visando a conquistada hegemonia ideológica na sociedade civil mais do que a conquista doestado, siga sendo a mais fértil para se pensar a questão nos dias dehoje.51 Para atualizar esse projeto, contudo, é absolutamente necessáriodestacar a centralidade econômica e ideológica que as ITCs exercem nasociedade civil – e, em certa medida, no estado. O que significa ocupá-las, aparelhá-las, conquistá-las, socializá-las.52

Há um argumento de Bourdieu que indica um caminho aparentementepromissor para articular esse projeto com a abordagem aqui desenvolvidado gosto: “uma aderência imediata, no nível mais profundo do habitus,aos gostos e desgostos, às simpatias e aversões, às fantasias e fobias éo que forja, mais do que opiniões declaradas, a unidade inconsciente deuma classe.” 53

É a partir desta perspectiva que o gosto adquire uma dimensão políticamerecedora de atenção – a partir do momento em que é inserido na prob-

50 Não obstante, o esgotamento do papel histórico do partido comunista de inspiraçãobolchevique (“marxista-leninista”) é um tema controverso. Sobre este tema, ver ZIZEK, Slavoj.Às Portas da revolução e Repeating Lenin. Ver também MAZZEO, Antônio Carlos. Sinfo-nia Inacabada. A Política dos comunistas no Brasil.

51 Embora, ao que saibamos, Gramsci não tenha colocado a questão em termos de consciênciade classe contingente ou necessária.

52 Este ponto será retomado adiante.53 BOURDIEU, Pierre. Distinction, p. 77. Em uma obra anterior, A Reprodução, a expressão

“inconsciência de classe” é mencionada, mas só de passagem, na pág. 194. Ao que me consta,Bourdieu não teria desenvolvido essa idéia.

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lemática da (in)consciência de classe. Pois, como sabemos, o gosto não ésomente uma categoria estética e gastronômica, mas também política, namedida em que disposições, simpatias, aversões e indiferenças, ideológi-cas ou personalistas, são politicamente decisivas, seja no jogo político lib-eral da democracia representativa, seja para o projeto socialista da democ-racia direta;54 e é também uma categoria econômica, pois o gosto estádiretamente ligado à questão do valor de uso dos bens materiais ou sim-bólicos, pelo papel que desempenha imediatamente no consumo e medi-atamente na produção.

Iremos agora investigar a hipótese de que, pelas razões que fazem dogosto uma categoria econômica, talvez seja no terreno da economia que adimensão política do gosto se mostre ainda mais decisiva que no próprioterreno da política.

12.3 O Valor de uso, o gosto e a cultura

Dissemos na introdução deste trabalho que o gosto pode ser entendidocomo expressão e medida do valor de uso dos bens materiais e simbóli-cos, tanto considerando seu caráter de mercadoria quanto dele abstraindo.Sabemos também que os gostos, conseqüentemente os valores de uso,são econômica e culturalmente mediados. Desenvolveremos agora esteponto, partindo do seguinte ensinamento de Rosdolsky sobre o pensa-mento econômico de Marx:

[...] para julgar se o valor de uso tem significação econômicaou não, a referência é a relação que ele estabelece com as re-lações sociais de produção. Na medida em que influi nessasrelações ou recebe sua influência, é uma categoria econômica.Mas, fora disso, em seu caráter meramente “natural”, está forada esfera de considerações da economia política.55

54 Alguém poderia levantar aqui a objeção de que legitimamos a atuação de elementos ir-racionais na prática política, inclusive em uma perspectiva socialista. Ocorre que o gosto nãoé necessariamente irracional, mas mais propriamente arracional, conceito que Morin (1982)utiliza para referir-se à pura facticidade de certos aspectos da realidade, os quais, por não seremexatamente “racionais”, nem por isso são “irracionais”, como a dureza da madeira, a altura damontanha, a paixão humana etc. Creio que é à racionalidade não aparente deste elemento “ar-racional”, enquanto motivação necessária à ação, mesmo diante de circunstâncias adversas, queGramsci (sem data) se referia com a célebre defesa do “otimismo da vontade” a despeito do“pessimismo da razão”.

55 ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx, p. 79.

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Ou seja, um valor de uso tem significação econômica somente na medidaem que sua materialidade influi nas relações sociais de produção ou é porelas influenciada, seja na esfera do consumo, seja na esfera da produção– considerando-se, neste último caso, o consumo produtivo na esfera daprodução.56 Nem sua materialidade, tampouco sua propriedade de satis-fazer necessidades humanas, tomadas em si mesmas, bastam para fazerdele uma categoria econômica.

Pode-se aqui objetar que este ensinamento de Rosdolsky é tautológico,pois, em última instância, o valor de uso de qualquer coisa sempre pos-sui alguma influência nas relações sociais de produção, ou é por elas, emalguma medida, influenciado. Ocorre que esta influência pode ser tão me-diada ou insignificante a ponto de ser tornar desprezível. Por exemplo: ovalor de uso de uma manga, que eu colho para comer da única mangueiraexistente no sítio de um parente, encontra-se em sua propriedade de satis-fazer o meu desejo de comer manga. Mas isto não faz dele uma categoriaeconômica, pois a insignificância do episódio para as relações sociais deprodução é tanta – não é nula, pois, mal ou bem, a manga contribui paraa minha alimentação, portanto para a reprodução da minha força de tra-balho –, assim como a influência das relações sociais de produção no atode eu colher a manga da árvore e comê-la – minha viagem ao sítio du-rante as férias pressupõe a própria noção de trabalho e férias, a existênciade estradas e meios de transporte etc. –, que podemos desprezá-la. Omesmo não acontece se me refiro a um sítio que tenha na produção demangas para o comércio uma de suas atividades, ao qual me dirijo como intuito de comprá-las para revendê-las, ou se pensarmos no valor deuso de um alimento substancialmente necessário à saúde e disponível emquantidade significativa para influir na reprodução da força de trabalhode quem o devora. Seu valor de uso, nesses dois casos, é uma catego-ria econômica, sendo que no último assim permanece, ainda que fora doâmbito de uma economia capitalista.

56 “Cometemos” a redação redundante – “consumo produtivo na esfera da produção” – paraevitar a confusão entre a expressão “consumo produtivo” enquanto categoria econômica clás-sica, referente ao consumo de matérias primas, ao desgaste da maquinaria etc. no processo pro-dutivo, e a noção derivada de “consumo produtivo”, noção econômica de origem mais recentee presente em estudos de marketing e comunicação, que se referem à interação, ao feedbackentre consumidor e produtor viabilizado pelas novas tecnologias de comunicação interativas,as quais possibilitam que o próprio ato do consumo em parte oriente a quantidade (escala) e aqualidade (tipo) da produção, ou seja, que “a oferta” “conheça”, mais rápido e mais “de perto”,“a demanda”, minimizando o risco de superprodução, suprimindo ou diminuindo custos de es-tocagem, superando em certo grau o modelo fordista de produção massificada, mas, acima detudo, como visto acima, favorecendo a aceleração dos ciclos e rotações do capital.

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Diante dessas considerações, para compreendermos melhor a dimensãoeconômica do valor de uso sem nos limitarmos aos seus aspectos maisóbvios, seria útil redimensionar a própria noção de “uso” ou “utilidade”,para além do utilitarismo vulgar, parta este de um essencialismo fisi-ológico rasteiro, parta da concepção do ser humano como um eterno cal-culista obsessivo, que só pensa em otimizar recursos e desempenhos, aomodo capitalista.

Refutando esta noção, e ao mesmo tempo conservando a atribuição demomento predominante ao “modo de produção”, Lukács nos recorda umainstrutiva reflexão de Marx sobre as hordas mongólicas, o roubo e a pro-dução:

[...] quando Marx [...] atribui o papel de momento pre-dominante ao modo de produção, isso não deve ser entendidono sentido de um praticismo ou utilitarismo econômicos. Omodo de agir determinado pela produção pode ter inclusiveum caráter destrutivo, como Marx indica, dando como exem-plo as devastações das hordas mongólicas na Rússia. Mas atémesmo um tal modo de agir resulta das relações de produção,da economia pastoril, cuja condição fundamental era consti-tuída pela existência de grandes extensões desabitadas. Logoapós, Marx se refere à rapina como modo de vida de determi-nados povos primitivos. Todavia, não se esquece de observar:“Mas, para poder saquear, é necessário que exista algo quesaquear, isto é, produção.”

É evidente que a produção, enquanto momento predomi-nante, é aqui entendida no sentido mais lato, no sentido on-tológico, como produção e reprodução da vida humana, queaté mesmo em seus estágios extremamente primitivos (a econo-mia pastoril dos mongóis) vai muito além da mera conservação(biológica), não podendo portanto deixar de ter um acentuadocaráter econômico-social. [...] o que está em jogo aqui são oshomens, cujas capacidades, hábitos etc., tornam possíveis de-terminados modos de produção; essas capacidades, porém, sãopor seu turno geradas sobre a base de modos de produção con-cretos. Essa constatação nos envia à teoria geral de Marx, se-gundo a qual o desenvolvimento essencial do homem é deter-minado pela maneira como ele produz. Mesmo o modo de pro-dução mais bárbaro ou mais alienado plasma os homens de de-terminado modo, um modo que desempenha nas inter-relações

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entre grupos humanos – ainda que essas possam aparecer ime-diatamente como “extra-econômicas” – o papel decisivo emúltima instância.57

Nos termos de Mészáros:

A advertência dialética sobre a natureza das determinaçõeseconômicas, que prevalecem “somente em última análise”, temcomo objetivo enfatizar que, ao mesmo tempo em que o con-ceito das “condições materiais de vida” ocupa, estrutural e ge-neticamente, uma posição essencial no sistema marxiano – istoé, tanto em relação à gênese histórica das formas mais com-plexas de intercâmbio humano, como diante do fato de queas condições materiais constituam a pré-condição de vida hu-mana estruturalmente necessária em todas as formas conce-bíveis de sociedade –, tal conceito não é, de forma alguma,capaz, por si só, de explicar as complexidades do próprio de-senvolvimento social.58

Portanto, ainda que concordando, por exemplo, com a crítica de fundoda antropologia estrutural ao funcionalismo e ao marxismo vulgar – asaber, que a ordem simbólica não pode ser reduzida a um mero reflexo au-tomático de impulsos biológicos inatos ou de um utilitarismo econômicorasteiro –, nenhum antropólogo sério há de negar que as diversas ordenssimbólicas estudadas por eles mesmos ou por seus pares possui tambémalgum sentido prático, útil, que assegure a “produção e a reprodução davida social” (Marx), ainda que isto não se dê de modo imediatamentebiológico ou dentro dos parâmetros de utilitários estreitos.

A este propósito, Marshall Sahlins, que ocupa boa parte de seu excelentelivro “Cultura e Razão Prática” tentando demonstrar que, nas sociedadeshumanas, a cultura não ocupa um papel subordinado ao que ele chamade “razão prática”, tem certa hora que admitir, em outros termos, que “anatureza é sempre suprema”:

Mesmo em condições materiais muito semelhantes, as or-dens e finalidades culturais podem ser muito diferentes. Porqueas condições materiais, se indispensáveis, são potencialmente

57 LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os Princípios ontológicos fundamentais deMarx, pp. 72-3.

58 MÉSZÁROS, Istvan. Filosofia, ideologia e ciência social, p. 78.

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“objetivas” e “necessárias” de muitas maneiras diferentes, deacordo com a seleção cultural pelas quais elas se tornam “forças”efetivas. Claro que, em um certo sentido, a natureza é sem-pre suprema. Nenhuma sociedade pode viver de milagres,enganando-se com ilusões. Nenhuma sociedade pode deixarde prover meios para a continuação biológica da população aodeterminá-la culturalmente – não pode negligenciar a obtençãode abrigo na construção de casas, ou de alimentação ao distin-guir comestíveis de não-comestíveis.59

O que Sahlins parece não ter compreendido, porém, é que a base econômicade um dado modo de produção, sua infra-estrutura, não se limita às suas“condições materiais”, que são apenas uma parte sua, mas às formas comoas pessoas se organizam e atuam sobre essas condições. É dessas formaspráticas que derivam as superestruturas, a cultura, que a partir de entãosobre elas atua, contribuindo para a sua manutenção ou transformaçãoe, conseqüentemente, para a sua própria manutenção ou transformação,e assim por diante. É, aliás, ninguém menos que o próprio Lévi-Straussquem afirma categoricamente; “[...] a análise dos mitos de uma sociedade,ainda que formal, atesta o primado das infra-estruturas.” 60

Em outras palavras, a noção de determinação em última instância dainfra-estrutura econômica sobre a superestrutura é outra forma de des-ignar o fato de o inevitável metabolismo do homem com a natureza61

ser a condição necessária para tudo o que se pensa, crê, concebe etc.,enquanto a recíproca não é verdadeira, ou seja, embora, para que essemetabolismo (que é uma categoria universal) se dê, seja necessário al-gum tipo de pensamento, crença, concepção, nenhum pensamento, crençaou concepção singulares tem o direito de reivindicar o estatuto de únicacondição necessária para que o metabolismo se dê. Este, enquanto uni-versal, é necessário; aqueles, enquanto singulares, são contingentes. Por

59 SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática, p. 168.60 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural Dois, pp. 180-1, nota 41.61 Em meio ao qual o trabalho é a categoria principal. Nos termos de Ilyenkov (op. cit.):

“A concepção materialista a essência do homem enxerga (em total acordo com o dados daantropologia, etnologia e da arqueologia) a forma universal da vida humana no trabalho, natransformação direta da natureza (tanto a exterior quanto a sua própria) que o homem socialrealiza com o auxílio de ferramentas feitas por ele mesmo. É por isso que Marx sentida tantasimpatia pela famosa definição de Benjamin Franklin (citado em Life of Johnson, de Boswell)sobre o homem como um animal fazedor-de-ferramentas: um animal fazedor-de-ferramentas esó então um animal que também pensa, fala, compõe música, obedece a normas morais e assimpor diante.”

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outro lado, para cada modo de produção particular, há particularidadesinfra-estruturais contingentes igualmente determinadas pelo princípio uni-versal de que pensamentos, crenças, concepções, ou seja, elementos su-perestruturais, enquanto universais, são condições necessárias para que ometabolismo se dê em alguma forma singular. Porém, ainda assim, a uni-versalidade do conceito e da facticidade do metabolismo do homem coma natureza como condição absolutamente necessária da vida faz de ambosuniversais (em nível epistemológico, quanto ao conceito, e ontológico,quanto à facticidade) em última instância determinantes de quaisquer out-ros, como pensamentos, crenças, concepções etc., que só podem então ex-istir no plural, na forma de mediações contingentes, enquanto singulares(únicas no tempo e no espaço) ou particulares (típicas, singulares con-ceitualmente), mas jamais como uma particularidade universal na formade O pensamento, A crença, A concepção, etc., a não ser no terreno lama-cento da teologia, enquanto podemos sem medo de incorrer em desviosmetafísicos falar nO metabolismo do homem com a natureza, que é ummodo poético de se dizer História, com agá maiúsculo, que envolve aprimeira natureza – biológica – e a segunda natureza – social. É umacategoria social cuja universalidade não se deixa englobar por nenhumaoutra categoria social. É, portanto, o mais alto nível de totalização so-cial a que se pode chegar, em meio ao qual podem ocorrer as mediaçõesque forem, mas sempre subordinadas a essa totalidade. Nos termos deLukács:

Quando atribuímos uma prioridade ontológica a determi-nada categoria com relação a outra, entendemos simplesmenteo seguinte: a primeira pode existir sem a segunda, enquantoo inverso é ontologicamente impossível. É algo semelhante àtese central de todo materialismo, segundo a qual o ser temprioridade ontológica em relação à consciência. Do ponto devista ontológico, isso significa simplesmente que pode existiro ser sem a consciência, enquanto toda consciência deve tercomo pressuposto, como fundamento, algo que é. Mas dissonão deriva nenhuma hierarquia de valor entre ser e consciên-cia [...] O mesmo vale, no plano ontológico, para a prioridadeda produção e da reprodução do ser humano em relação a out-ras funções. Quando Engels, no discurso pronunciado junto àtumba de Marx, fala do “fato elementar [...] de que os homensdevem primeiro de tudo comer, beber, ter um teto e vestir-se,antes de ocupar-se de política, de ciência, de arte, de religião

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etc.”, está falando precisamente de uma relação de prioridadeontológica. E o próprio Marx o afirma claramente, no prefácioà Contribuição à Crítica da Economia Política. Onde é sobre-tudo importante o fato de que ele considere “o conjunto dasrelações de produção” como a “base real” a partir da qual seexplicita o conjunto das formas de consciência; e como essas,por seu turno, são condicionadas pelo processo social, políticoe espiritual da vida.62

Ou, em uma outra formulação bastante similar:

Para o materialismo, a prioridade do ser é, antes de maisnada, a constatação de um fato: há um ser sem consciência,mas não há consciência sem ser. Disto, porém, não se segueuma subordinação hierárquica da consciência ao ser. Pelo con-trário, somente esta prioridade e o seu reconhecimento con-creto, teórico e prático, por parte da consciência, cria a pos-sibilidade de dominar realmente o ser com a consciência. Osimples fato do trabalho ilustra esta situação com meridianaevidência.63

Ou seja, pense-se (ou creia-se ou conceba-se) o que se pensar, se nada forfeito, ou melhor, se certas atividades práticas absolutamente necessáriase universais – alimentação, proteção contra as intempéries, cuidados coma saúde etc. – não forem realizadas de alguma forma eficaz, em poucotempo não haverá mais pensamentos, crenças, concepções. Por outrolado, não é verdadeira a recíproca “faça-se o que se fizer, se certos pen-samentos (ou crenças etc.) absolutamente necessários não forem pensa-dos de forma eficaz, em pouco tempo não haverá mais atividades práti-cas”, a não ser na medida em que esses pensamentos sejam necessários

62 LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os Princípios ontológicos fundamentais deMarx, p. 40-1. Pouco antes, na mesma obra (pp. 14-5), Lukács dizia , sobre os ManuscritosEconômico Filosóficos, que “sua originalidade inovadora reside, não em último lugar, no fatode que, pela primeira vez na história da filosofia, as categorias econômicas aparecem como ascategorias da produção e da reprodução da vida humana, tornando assim possível uma descriçãoontológica do ser social sobre bases materialistas. Mas o fato de que a economia seja o centroda ontologia marxiana não significa, absolutamente, que sua imagem do mundo seja fundadasobre o ‘economicismo’. (Isso surge apenas em seus epígonos, que perderam toda noção dométodo filosófico de Marx; um fato que contribuiu bastante para desorientar e comprometer omarxismo no plano filosófico).”

63 LUKÁCS, apud Oldrini. Em Busca das raízes da ontologia (marxista) de Lukács. In:PINASSE e LESSA (orgs.), Lukács e a atualidade do marxismo, p. 71.

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à eficácia dessas práticas, ou seja, pensamentos só adquirem o estatutode necessários e não contingentes quando necessários a certas práticasnecessárias, isto é, enquanto contingentes a práticas necessárias: quanto.Portanto, mesmo pensamentos necessários são contingentes, ou seja, de-terminados por uma necessidade prática que os transcende.64

Toda e qualquer ordem simbólica é, assim, a seu modo, “útil”, na medidaem que organiza as referências das ações necessárias – sem as quais asações não necessárias mas de algum modo desejadas, também ordenadaspela ordem simbólica, não seriam realizáveis –, e toda determinação em-anada dessa ordem também o é, ainda que de forma não aparente, ime-diata ou consciente. A utilidade de uma dada ordem simbólica não selimita a suas funções econômicas diretas, de favorecer a produção e re-produção do ser humano, mas também ao seu papel na satisfação dosgostos e paixões. Combater o utilitarismo mais rasteiro não deve portantoconduzir à defesa de alguma espécie de “inutilitarismo”. Trata-se, então,de redimensionar a própria noção de utilidade, que não pode ser restringirà biologia, ao cálculo econômico ou mesmo a um pragmatismo rasteiro.Por exemplo, a poesia é útil por causa das satisfações intelectuais e afeti-vas que provoca.

Neste ponto, devemos refletir sobre um importante alerta metodológicode Kosik, que nos lembra da centralidade das categorias práxis e tra-balho para que o primado da economia na dialética materialista não sejaconfundido com um economicismo qualquer. Kosik ilustra sua argumen-tação relacionando precisamente poesia e economia. Ele nos lembra, emprimeiro lugar, que “a poesia não é uma realidade de ordem inferior àeconomia: também ela é do mesmo modo realidade humana, embora degênero e de formas diversos, com tarefa e significados diferentes”.65 Naseqüência, acrescenta:

A economia não gera a poesia, nem direta nem indire-tamente, nem imediata nem mediatamente: é o homem que

64 É claro que tudo isso só faz algum sentido partindo do pressuposto de que a reprodução davida e da vida humana em particular, em sua universalidade, é necessária. Diante do pensamentode que não o é, ou seja, diante do niilismo, o que foi exposto acima perderia o sentido, nãofosse pelo fato de que o niilismo é uma posição teoricamente indefensável, na medida em quesó se legitima na prática, seja a do suicídio, seja a do homicídio, e não é disso que se trataaqui, pelo contrário, mas da vida, da emancipação da vida humana de seu estágio alienado,estranhado do vivente, ainda que o suicídio ou mesmo o homicídio, conforme as “astúcias darazão”, eventualmente desempenhem seu papel na trama.

65 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do concreto, pp. 121.

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cria a economia e a poesia como produtos da práxis humana.[...] Somente sobre a base desta determinação materialistado homem como sujeito objetivo – ou seja, como ser que,dos materiais da natureza e em harmonia com as leis da na-tureza como pressuposto imprescindível, cria uma nova re-alidade, uma realidade social humana – podemos explicar aeconomia como a estrutura fundamental da objetivação66 hu-mana, como a ossatura das relações humanas, como a car-acterística elementar da objetivação humana, como o funda-mento econômico que determina a superestrutura. O primadoda economia não decorre de um superior grau de realidadede alguns produtos humanos, mas do significado central dapráxis e do trabalho na criação da realidade humana.67

Nesse sentido, atrelar o problema do gosto ao valor de uso retém o que háde teoricamente fértil na noção econômica de interesse ou necessidade,mas se livra dos a priori biologistas ou utilitaristas mais rasteiros, dadoque os interesses ou necessidades podem ser os mais diversos; são sem-pre culturalmente mediados, mas são também biologicamente mediados,em muitos aspectos de modo inconsciente, às vezes de modo conscientee racional. Além disso, é importante não se perder de vista que cultura,biologia e razão não são entidades abstratas, mas conceitos que preten-dem expressar aspectos concretos da práxis humana, cuja história não sedesenrola somente no campo simbólico, mas também no mundo exterioràs idéias.

Por isso, pode ser produtivo pensar o gosto enquanto categoria econômica,enquanto expressão do valor de uso dos bens materiais ou simbólicos,relacionando o valor de uso de um bem à sua propriedade de satisfazer ogosto, ao invés de meramente atender a exigências biológicas ou a pre-sumidos cálculos utilitaristas. Afinal, ao falarmos em gosto, falamos naseleção de objetos de satisfação sensível e intelectual em um sentido maisamplo, sem desconsiderar o caráter determinante do universo simbólicoou cultural onde o processo ocorre, mas ao mesmo tempo não reduzindoo processo a uma mera atualização de “imperativos estruturais incon-

66 Não confundir objetivação com objetificação. O primeiro conceito diz respeito ao ato deo homem realizar sua humanidade materializando seus desejos e pensamentos subjetivos ematos, situações e coisas objetivos, a partir da transformação de situações e coisas objetivas pré-existentes, mediante a práxis e o trabalho. Já objetificação diz respeito ao processo mediante oqual o homem se converte de sujeito em objeto da práxis de outrem.

67 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do concreto, pp. 121-2.

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scientes e invariáveis” deste universo simbólico ou cultural – quando istoé tudo o que ocorre, quando a satisfação do gosto não traz também con-sigo uma abertura sensível e cognitiva em relação a estes imperativos,estamos no terreno do gosto enquanto substrato sensível da ideologia, emsua acepção negativa, no sentido de falsa consciência, de ilusão funcionaldo sistema – que é, como sabemos, um momento possível da noção marx-iana de consciência contingente. A superação da falsa consciência só épossível mediante a superação da subsunção do trabalho ao capital, baseoperacional do fetiche do valor, encarnado no fetiche da mercadoria.

Há, entretanto, um autor que em apenas algumas poucas linhas refuta aprópria validade dos conceitos valor de uso, falsa consciência e feticheda mercadoria. Trata-se de Baudrillard, recentemente falecido. Por suainfluência nos estudos de comunicação, nos parece útil, agora, discutiralguns de seus argumentos a este respeito.

12.4 Baudrillard e o fetiche do fetiche do fetiche

Caminhando em um sentido diametralmente oposto ao que vimos tril-hando, Baudrillard praticamente descarta alguns conceitos-chave da teo-ria social de Marx, com os seguintes argumentos:

O que significa o conceito “fetichismo da mercadoria”,senão a idéia de uma “falsa consciência”, de uma consciên-cia dedicada ao culto do valor de troca [...] o que supõe emalguma parte o fantasma ideal de uma consciência não alien-ada, ou de um estatuto objetivo “verdadeiro” do objeto: seuvalor de uso? 68

Ele não percebe, entretanto, que a despeito de sua intenção irônica (sug-erida pelas aspas que envolvem o termo verdadeiro), a resposta da questãoformulada já está contida em sua própria formulação: a verdade (sem as-pas) de um objeto encontra-se precisamente em seu valor de uso, istoé, em sua propriedade de satisfazer o gosto. Se este gosto é orientadopor fins utilitários imediatos ou por sensibilidades altamente mediadas,

68 BAUDRILLARD, Jean. Pour Une Critique de l’Économie Politique du Signe, p. 97.Este livro de Baudrillard, aliás, é citado algumas vezes por Sahlins em defesa da supremacia dacultura sobre a “razão prática”. Nosso debate com Baudrillard se restringe às posições a nossover antimarxistas que ele defende nesse livro.

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isso não muda nada quanto a esta verdade simples. Pois a própria con-tradição dialética do gosto faz com que sua objetividade, sua efetividade,sua “verdade” consista na tensão entre o caráter objetivo e o subjetivode um valor de uso qualquer. Como vimos, a solução desta contradiçãoreside no movimento de objetivação dessa subjetividade mediante a sa-ciedade do desejo lacunar propiciada pela ação do objeto sobre o sujeito,seguida pela apropriação do objeto pelo sujeito. Esta apropriação pode sedar de tal modo que o objeto se desvanece ao tornar-se parte do sujeito,como no caso da alimentação, ou permanece em si tal qual era, mas setorna diferente para nós, como na diferença que há entre uma habitaçãovazia e uma ocupada, ou entre um livro não lido e um livro lido.

Dito deste modo, parece que o pólo subjetivo e particular da contradiçãoé o seu momento predominante. Mas isso só é verdadeiro na aparência.Pois o universo dos objetos, em sua concreticidade, bem como as formasefetivas de apropriação, são, em princípio, universais, já que são comunsa todos.69 Essa universalidade objetiva dos objetos concretos, porém,é cindida em várias formas particulares, determinadas 1) pelas diversasdisposições dos sujeitos singulares em meio à luta, mais aberta ou maisvelada, entre as classes sociais e suas frações; 2) pelas conseqüentes for-mas de fruição que lhes são ou não acessíveis (incentivadas, interditadasou desestimuladas); e 3) pela disponibilidade de um repertório simbólico(bens, códigos e juízos de valor) específico, em um determinado estágiodo desenvolvimento histórico da sociedade. Entretanto, apesar do caráterhistórico de todos esses fatores, o “estatuto objetivo verdadeiro do ob-jeto”, além de suas propriedades físicas, permanece e só pode permanecerem seu valor de uso (onde mais buscá-lo?), potencialmente universal, efe-tivamente histórico e parcial nas formas específicas de atualização dessapotência, mas nem por isso falso.

Quanto a essa dialética entre potência universal e efetividade particular,tomemos um exemplo empírico. Vamos admitir que seja verdadeira aidéia amplamente difundida de que as classes cultas, modernas e contem-porâneas, tendem a privilegiar experiências de prazer mais mediatas, e asclasses “populares” as mais imediatas. Novamente temos a impressão deque o pólo subjetivo e particular é o dominante. Porém, essas distinções(particulares) aparentemente subjetivas são uma reprodução, no campoda estética, de formas de distinção classista bastante objetivas, que reme-tem ao universal cindido e se manifestam nas oposições raro/comum, no-

69 Diferenças derivadas das singularidades individuais (inatas ou adquiridas) têm poucarelevância, em escala social, na definição da utilidade das coisas.

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bre/vulgar, refinado/grosseiro etc., identificáveis tanto no gosto artísticoquanto na gastronomia, nas falas, nos gestos, na decoração, no modo de seabrir a boca quando se ri, conforme Bourdieu demonstra exaustivamenteem seu Distinction. A própria noção de distinção de classe, aliás, podeser vista sob o prisma da potência universal concreta do homem comoser genérico, cindida em efetividades particulares, que são as classes. Aconcreticidade atual deste universal, ou totalidade, se dá na forma con-traditória da unidade do diverso. Tal contradição, porém, não pode per-manecer estática, dada a natureza específica da relação entre esses partic-ulares, as classes, que é de antagonismo estrutural.

Dito isso, a verdade dos objetos permanece, sim, em seu valor de uso,mas esta não é uma verdade do tipo matemático, é uma verdade histórica,determinada pela luta de classes. Além disso, reconhecer o fato de ser dointeresse das pessoas que fazem as coisas em uma sociedade que essascoisas atendam às necessidades destas pessoas, sejam elas fisiológicas ousimbólicas, do estômago ou da fantasia, esse reconhecimento não é nen-hum “fantasma ideal”. Não se está agora discutindo, quando falamos emfetiche ou alienação, se as necessidades humanas bio-historicamente de-terminadas são falsas ou verdadeiras sob um prisma universal-abstrato,somente que universalmente não são levadas em consideração, ou o sãocomo mera contingência para a transformação de capital em mais capi-tal. É por isso que um dos maiores desafios para a efetivação do projetosocialista consiste em descobrir “como solapar o processo produtivo cap-italista constantemente renovado pela homogeneização orientada para aquantidade e o valor de troca e substituí-lo pelo processo qualitativo ori-entado para a necessidade e o valor de uso?”70

Baudrillard, todavia, não se limita a questionar a verdade do “valor deuso”. No mesmo lance, ele também põe em dúvida o valor de uso dosconceitos falsa consciência e fetichismo da mercadoria. Conforme a suaargumentação, ambos seriam praticamente sinônimos – o que está rig-orosamente errado, pois a falsa consciência é um fenômeno derivado dofetichismo da mercadoria. Este, por sua vez, não consiste em nenhum“culto” ao valor de troca, ao qual se oporia uma fantasmática consciêncianão alienada como o seu outro necessário, mas em um processo socialbastante concreto, que pode ser corretamente apreendido por qualquerconsciência empírica, desde que interessada.

70 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 629.

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Na realidade, Baudrillard parece se ressentir da ausência da semiótica nopróprio coração da teoria do valor de Marx, que é a teoria do fetichismoda mercadoria (ou do valor). O problema é que a teoria do valor de Marxnão precisa da semiótica, pois o fato de o valor de uso estar carregado dasmais variadas significações simbólicas em nada altera que se trata de pro-priedade distinta do valor de troca, e é na supremacia desta propriedadesobre aquela, característica exclusiva do modo de produção capitalista,que se dá o caráter fetichista deste modo de produção, no qual as coisasnão são produzidas para a satisfação de necessidades humanas (pelo seuvalor de uso), mas por si mesmas como etapas da transformação de tra-balho em capital, convertendo-se o valor de uso em propriedade derivadado valor econômico. Como esclarece Mészáros:

Para tornar a produção de riqueza a finalidade da humanidade,foi necessário separar o valor de uso do valor de troca, sob asupremacia do último. Esta característica, na verdade, foi umdos grandes segredos do sucesso da dinâmica do capital, jáque as limitações das necessidades dadas não tolhiam seu de-senvolvimento. O capital estava orientado para a produção e areprodução ampliada do valor de troca, e portanto poderia seadiantar à demanda existente por uma extensão significativa eagir como um estímulo poderoso para ela.71

E já que Baudrillard mencionou fantasmagorias, embora as situando nolugar errado, retomemos a passagem clássica de Marx sobre o assunto:

Uma relação social definida, estabelecida entre os homens,assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosada crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dota-dos de vida própria, figuras autônomas que mantém relaçõesentre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produ-tos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a istode fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do tra-balho, quando são gerados como mercadorias. É inseparávelda produção de mercadorias. Esse fetichismo do mundo dasmercadorias decorre [...] do caráter social próprio do trabalhoque produz mercadorias.72

71 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, p. 606.72 MARX, Karl. O Capital. Livro I, v. 1, p. 81.

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Um pouco adiante, Marx acrescenta: “Para este [os participantes da troca],a própria atividade social possui a forma de uma atividade das coisas sobcujo controle se encontram, ao invés de as controlarem.”73

Portanto, quanto à questão “de uma ‘falsa consciência’ [...] que supõeem alguma parte o fantasma ideal de uma consciência não alienada”,não há nenhum “fantasma ideal”, nem mistério: consciência não alien-ada, em Marx, significa simplesmente a compreensão do processo cap-italista concreto – e de seus desdobramentos superestruturais –, comoum modo de produção historicamente dado, que expropria trabalho pro-duzindo mais valia etc., e consciência alienada, falsa consciência, o de-sconhecimento deste processo, a crença em sua inevitabilidade, sua natu-ralização, seu “direito” de determinar todas as atividades humanas, legit-imado pela aparência de liberdade na superfície do mercado (aparênciaesta, por sinal, que tanto tem deslumbrado antropólogos e teóricos da co-municação recentemente). Consciência não alienada, em Marx, não temnada a ver com fantasmas ideais, mas com o simples reconhecimento deque, no capitalismo, o trabalhador (que, não se deve esquecer, é tam-bém consumidor, e seu consumo está diretamente condicionado por suacondição de trabalhador, o que inclui o seu salário) não domina os meiosde produção, a ciência e os frutos do trabalho, mas é por eles domi-nado; ou seja, não é dono do seu nariz; significa que as coisas não sãoproduzidas pelo homem para satisfazer suas necessidades, sejam elas fi-siológicas ou espirituais, mais apenas para multiplicar capital; significaque o trabalho, na aparência “livre”, é trabalho forçado, e ocupa a maiorparte do tempo de vida do sujeito em troca de merda. Significa que, sobtais condições, a falsa consciência é a que reifica o processo ao invés decompreendê-lo como estágio histórico passível de superação, conduzindoa ação do sujeito neste sentido.

No desenvolvimento de sua crítica à noção de fetiche, Baudrillard ilustrasua posição com uma descrição do efeito social benéfico do “mana”, umelemento central no pensamento mágico dos bantos. Ora, se o mana geraresultados benéficos para os indivíduos e para o coletivo, não poderia comjustiça ser pejorativamente designado de fetiche. A questão, porém, nãoé essa, pois Marx não utilizou o termo fetiche em estudos etnográficosou etnológicos; além disso, o fato de a antropologia contemporânea tê-lodescartado não é motivo para que não possa ter outras aplicações teóricas,como alegoria, onde se mostre útil. É como se Baudrillard, em sua defesa

73 Idem, p. 83.

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politicamente correta do “pensamento mágico” des tribus bantous, de re-pente descobrisse que a “força difusa” do mana, ou melhor, seu fluxo, nãomais fosse “desviado” para o “proveito” do “indivíduo ou do grupo”, masque, ao contrário, toda atividade do indivíduo ou do grupo fosse desviadapara o proveito do mana.

Retomando a questão do valor de uso, se a realidade positiva é a dofetiche, só podemos conceber negativamente o “statut objectif ‘vrai’ del’object” desfetichizado, para além da realidade imediata. Pois se o própriouso, sob o capital, permanece atrelado ao fetiche, na medida em que o re-produz, este é o seu übergreifendes Moment sob o capital. Só o objetoque seja fruto de trabalho não alienado, executado pelo homem livre parao homem livre, não para o capital, está imune ao fetichismo da mercado-ria, que não é um problema subjetivo, psicológico, dos consumidores: éuma dado objetivo da realidade econômica, facilmente perceptível na con-templação do fato tão banal de que quase todos os objetos que possuemalgum valor de uso “possuem” também um preço em dinheiro, um valorde troca, como se este último fizesse parte de sua composição química.A naturalidade com que encaramos o fato de as coisas terem um preço éo sintoma mais óbvio da falsa consciência, expressão do fetiche da mer-cadoria ou do fetiche do dinheiro.

Fetiche do dinheiro, fetiche da mercadoria, fetiche do valor: diversas ex-pressões particulares, articuladas entre si, de uma totalidade social fetichista:se nem os meios de produção, nem as mercadorias, nem o capital per-tencem a quem os produz, o sistema é fetichista; enquanto as coisas nãosão feitas para satisfazer necessidades humanas (sejam quais forem), oumelhor, o gosto, mas os gostos são formados para que as coisas sejamfeitas, como meros estágios para a multiplicação do capital, para sua con-centração e reprodução ampliada, o sistema é fetichista; na medida emque os produtores não só não determinam quanto ou o quê será produzido,como também não têm suas necessidades supridas e seus gostos satis-feitos a contento pelo que é produzido, o sistema é fetichista, autônomo,auto-reprodutor, só se interessando pelas necessidades de quem produz ede quem consome – que, aliás, são as mesmas pessoas – na exata pro-porção em que lhe possam ser proveitosas em termos políticos e con-tábeis. As coisas são, deste modo, tornadas fetiches. E seus valores deuso refletem este processo.

O conceito de fetiche permanece, pois, útil para compreender, denunciare combater um sistema onde, na prática, não se produz para viver, mas sevive para produzir; onde não se produz para se consumir, mas se é con-

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sumido para produzir; onde quem produz não determina a coisa que seráproduzida, mas é pela coisa determinado. O não reconhecimento destemecanismo é a alienação, a “fausse conscience” mencionada por Bau-drillard, à qual não se opõe nenhuma consciência ideal, mas tão somentea compreensão do e o combate ao processo.

A sujeição do sujeito (o trabalho vivo) ao objeto (o trabalho morto) noprocesso de valorização do valor é a chave para a compreensão do fetichismo,se não na antropologia ou na semiótica, na crítica da economia política deMarx. Em seus próprios termos:

No processo de trabalho efetivo, o operário consome osmeios de trabalho como veículo do seu trabalho e o objeto detrabalho como a matéria na qual o seu trabalho se representa.É precisamente por isto que transforma os meios de produçãona forma, adequada para um fim, do produto.

Do ponto de vista do processo de valorização, contudo, ascoisas apresentam-se de maneira diferentes. Não é o operárioque emprega os meios de produção, são os meios de produçãoque empregam o operário. Não é o trabalho vivo que se realizano trabalho material como seu órgão objetivo; é o trabalho ma-terial que se conserva e se acrescenta pela sucção do trabalhovivo, graças ao qual se converte num valor que se valoriza, emcapital, e funciona como tal. Os meios de produção aparecemjá unicamente como sorvedouros do maior quantum possívelde trabalho vivo.74

Fetiche, portanto, é a expressão conceitual da conversão do trabalho vivo– a única mercadoria capaz de produzir um valor superior ao seu próprio– à condição de principal mediação nas metamorfoses pelas quais passa,no curso de sua reprodução ampliada, o verdadeiro sujeito do processo, o“sujeito automático”, o capital, o único “fantasma” dessa história toda.

Mas a crítica de Baudrillard não pára aí, estendendo-se praticamente atodos os conceitos mais importantes da teoria social de Marx. Mais adi-ante, na mesma obra, nosso autor relaciona o conceito de fetiche ao deprodução ideológica, propondo a superação das categorias infra-estruturae superestrutura, sobre as quais ele afirma, com a ironia que lhe é peculiar,

74 MARX, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultados do processo de produçãoimediata, pp. 53-4.

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tratar-se de uma “teoria fetiche”.75 Sugere por sua vez “uma teoria maisabrangente das forças produtivas, todas elas hoje estruturalmente impli-cadas no sistema do capital”. Por que “uma teoria mais abrangente”? Ofato de o pensamento ser produzido pelo cérebro, que é corpo, desqual-ifica a filosofia ou a lingüística, por exemplo, como disciplinas autôno-mas? A filosofia então nos permite conhecer estruturalmente os mecanis-mos orgânicos do cérebro? Tanto quanto a neurologia nos diz algo de útilsobre a validade epistemológica de certas idéias! Como dizia Ilyenkov:

Os resultados exatos de uma investigação química sobrea composição das cores empregadas na pintura da MadonnaSistina se tornariam uma tremenda mentira a partir do mo-mento em que o químico os visse como a única explicaçãocientífica da síntese sem igual criada pelo pincel de Rafael.76

Por outro viés, a indústria metalúrgica ou petroquímica não estão direta-mente vinculadas à produção do pensamento pós-moderno de Baudrillardou da Igreja Universal do Reino de Deus. Poderíamos, talvez, pensarnuma estrutura mais abrangente das forças produtivas tomando comoexemplo a tecnologia, que é ciência aplicada, é ao mesmo tempo su-perestrutura e base. Mas tal relação já está estabelecida nas noções debase e superestrutura e em sua interação dialética, cuja importância re-side precisamente em enfatizar, ao contrário de todos os idealismos, opapel preponderante da estrutura econômica em qualquer formação so-cial, como condição necessária e em última instância determinante dasdiversas manifestações da existência social. Se fizermos uma leitura cor-reta deste princípio metodológico, entenderemos que a superestrutura nãoé um epifenômeno reflexo da base, mas a expressão do conjunto de pos-sibilidades de simbolização que esta última, enquanto responsável pelascondições da própria existência, viabiliza; a base, a infra-estrutura é o queestabelece aquilo que Rappaport, citado por Sahlins,77 chama de “limitesde viabilidade”. A dialética do método desenvolvido por Marx está emidentificar e esclarecer como base e superestrutura se relacionam e trans-formam historicamente, sendo a ênfase metodológica atribuída à base aomesmo tempo uma reação ao idealismo vigente quando de sua formu-lação e expressão científica do princípio materialista elementar de que

75 “Teoria fetiche” é a de Baudrillard, pois chamar a teoria do fetiche de fetiche é que éfetiche.

76 ILYENKOV. Op cit.77 SAHLINS. Op. cit., p. 168.

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o ser antecede a consciência: para haver símbolos (vivos), alguém deveestar vivo para poder simbolizar.78 Como alguém pode estar vivo semprodução material?

Isto, porém, de forma alguma significa afirmar que pode haver produçãomaterial, portanto vida humana, sem cultura, ou que a cultura é secundáriano processo. Metodologicamente, enfim, não se trata de estabelecer ab-stratamente quem determina o quê, mas de desvendar, em meio à dialéticade um complexo de determinações, em cada situação concreta com a qualse está lidando, os fatores que devem ser estudados, a base ou superestru-tura, e, principalmente, suas conexões. É o que, a seu modo, faz Foucault(que não pode ser corretamente acusado de marxismo ortodoxo) em sua“Arqueologia do Saber”, ao relacionar as formações discursivas (o saber,as epistemes) a suas “condições de emergência”, digamos, empíricas ouhistóricas (base), e lógicas (superestruturas), sem que uma prevaleça so-bre a outra (embora, em Foucault, também haja uma certa “queda” pelaúltima).

Por outro lado, a proposta de Baudrillard, “de uma teoria mais abrangentedas forças produtivas”, faz sentido, desde que não tomemos as forças pro-dutivas em geral, mas somente o conjunto de forças produtivas onde, efe-tivamente, estrutura e superestrutura tornaram-se uma só e a mesma coisa:a indústria cultural capitalista, ou melhor, as ITCs, o conjunto de meios deprodução (e circulação e reprodução) de signos, dispositivo principal paraa reprodução ampliada de capital hoje em dia, bem como dos discursosde legitimação. Nas palavras de Rubim:

Ao invés da antiga localização “superestrutural – recor-rente inclusive em autores não-marxistas –, a comunicação esua derivada cultura midiática passam a ocupar também umestatuto [...] de componente “infra-estrutural”, porque impre-scindível à realização e reprodução (inclusive econômica) docapitalismo.79

Desconsiderando as ITCs, porém, não faz sentido afirmar que os con-ceitos estrutura e superestrutura não tenham relevância teórica atual, ou

78 Ainda que alguém “opte” por morrer de fome, conforme alguma interpelação cultural, temque estar vivo para poder morrer, tem que estar alimentado para realizar seu projeto. E, de todaforma, uma civilização cuja coletividade fosse marcada por esse tipo de prática não teria vidalonga.

79 RUBIM, Antônio Albino Canelas. Contemporaneidade, (idade) mídia e democracia. In:DOWBOR, Ladislau et al.: Desafios da comunicação, p. 31.

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que sejam uma coisa só, pois possuem qualidades e padrões operacionaisdistintos, independentemente da afecção recíproca.80 Afinal, ainda hoje,a produção material é predominante e caracteristicamente industrial, en-quanto a produção simbólica, com exceção daquela advinda do universodas ITCs, é em grande parte, por assim dizer, artesanal, pré-capitalista,seja qual for sua coloração política ou estética. É inclusive graças a estefato que ainda resta alguma autonomia ao que Bourdieu define comocampo de produção simbólica, do qual Baudrillard, recentemente fale-cido, fazia parte e sem o qual não poderia ter escrito seus livros com tantaoriginalidade. Esse campo, cuja socialização de sua produção é em partemediada pela indústria cultural, consiste, materialmente, nas academias,nos produtores simbólicos independentes (escritores, compositores etc.),nas instituições jurídicas, religiosas e políticas: na superestrutura.

Poder-se-ia objetar que esta distinção tornou-se obsoleta, em função dacrescente importância do “trabalho imaterial” em todos os setores da econo-mia, ou seja, na infra-estrutura. Mas a incorporação em larga escala daprodução simbólica ao trabalho assalariado não invalida a divisão con-ceitual entre base/estrutura/infra-estrutura e superestrutura, apenas reforçao fato de que sob o capitalismo a totalidade das atividades humanas égradualmente incorporada à sua lógica econômica, é absorvida pela infra-estrutura.

Ricardo Antunes, ao debater o que denomina “nova polissemia” ou “novamorfologia do trabalho”, contrariando a noção corrente de “fim do tra-balho”, afirma que, de fato,

[...] o mundo do trabalho hoje é caracterizado também pelaampliação do que Marx chamou de trabalho imaterial, real-izado nas esferas da comunicação, publicidade e marketing,que são próprias da sociedade do logos, da marca, do sim-bólico, do involucral e do supérfluo. É o que o discurso em-presarial chama de “sociedade do conhecimento”.81

80 Baudrillard, por todo o livro, parece melindrado com o que ele chama de “marxismohereditário”, por este tender a tomar seu objeto, os signos, como uma dimensão reflexa, supere-strutural do sistema. Daí sua implicância com a divisão conceitual de estrutura e superestrutura.O problema é que o seu ataque ao “marxismo hereditário”, que deve querer dizer marxismovulgar, acaba sendo um ataque a algumas categorias chave do mais autêntico marxismo. E,diga-se de passagem, um ataque fraco, como tentamos demonstrar aqui.

81 ANTUNES, Ricardo. “Afinal, quem é a classe trabalhadora hoje?”. In: Margem Esquerda,no. 7, 2006, p. 59. Vale destacar que, no mesmo artigo, pouco antes, Antunes, ao comentarsobre a obsolescência de se “tratar de modo independente os três setores tradicionais da econo-

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E acrescenta:

[...] é preciso [...] partir de uma concepção ampliada dotrabalho, abarcando a totalidade dos assalariados, homens emulheres que vivem da venda de sua força de trabalho e nãose restringindo aos trabalhadores manuais diretos; devemos in-corporar a totalidade do trabalho social e coletivo, que vendesua força de trabalho como mercadoria, seja ela material ouimaterial, em troca de salário.82

Além disso, a divisão da produção em material (estrutural) e simbólica(superestrutural), aqui não importa se dentro ou fora do âmbito das ITCs,continua realizando na prática social o princípio radicalizado pelo cap-italismo da divisão do trabalho entre manual e intelectual, cujas gravesconseqüências chamaram a atenção de Marx:

A manufatura [...] deforma o trabalhador monstruosamentelevando-o artificialmente a desenvolver uma habilidade par-cial, à custa da repressão de um mundo de instintos e ca-pacidades produtivas [...] As forças intelectuais da produçãosó se desenvolvem num sentido, por ficarem inibidas em re-lação a tudo que não se enquadre em sua unilateralidade. Oque perdem os trabalhadores parciais, concentra-se no capitalque se confronta com eles.83 A divisão manufatureira do tra-balho opõe-lhes as forças intelectuais do processo material deprodução como propriedade de outrem e como poder que osdomina. [...] Esse processo desenvolve-se na manufatura, quemutila o trabalhador, reduzindo-o a uma fração de si mesmo,e completa-se na indústria moderna, que faz da ciência uma

mia (indústria, agricultura e serviços), dada a enorme interpenetração entre essas atividades” (p.57), faz a seguinte ressalva: “Vale aqui o registro, até pelas conseqüências políticas: reconhecera interdependência setorial é muito diferente de falar em sociedade pós-industrial, concepçãocarregada de significação política”. (p.57). Sobre a noção de “sociedade da informação”, verMattelart, Armand, “Rumo a que ‘nova ordem da informação?”’. In: Tramonte et al. (orgs.), AComunicação na Aldeia global, pp. 237-245.

82 Idem, p. 61.83 Essa “transferência de forças intelectuais” do produtor simbólico para o capital é o que

chamo de acumulação de capital midiático, que é a própria base operacional e a razão de ser daindústria cultural, atingindo sua máxima potência social na produção de gosto social midiático,pois não só o produtor é alienado de suas forças intelectuais, mas o consumidor também.

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força produtiva independente de trabalho, recrutando-a paraservir ao capital.84

A essas observações, Marx acrescenta, em nota de pé de página, a seguintecitação:

O homem de saber e o trabalhador produtivo se separamcompletamente um do outro, e a ciência em vez de permanecerem poder do trabalho, em mãos do trabalhador, para aumentarsuas forças produtivas em seu benefício, colocou-se contra Eleem quase toda parte [...] O conhecimento torna-se um instru-mento que pode separar-se do trabalho e opor-se a ele.85

O mesmo não valeria em parte para a subsunção da produção simbólicaao capital?

De todo modo, fora da esfera das ITCs, o trabalho intelectual conservaainda uma forma pré-capitalista, não industrial (embora seja aplicadona indústria, não é produzido de forma industrial), e sobrevive com rel-ativa autonomia em relação ao capital nas academias, na política, nasartes etc., como superestrutura, enquanto o trabalho material pertence àordem da infra-estrutura. O único espaço social onde ambas as instân-cias encontram-se concretamente imbricadas, pode-se dizer fundidas, énas ITCs.86 Fora delas (embora o ensino esteja, em parte, caminhando namesma direção), não faz sentido abolir a divisão teórica base / superestru-tura, que não é nenhuma “teoria fetiche” se corretamente compreendida,permanecendo uma ferramenta crítica e analítica poderosa.

12.5 O Cavalo de Tróia do cavalo de Tróia

Cabe agora investigar a seguinte hipótese: caso permaneça produtivo oemprego dos conceitos valor de uso, falsa consciência, fetiche, junto ao

84 Marx, Karl, O Capital, Livro 1, volume I, pp. 412-414.85 MARX, Karl. O Capital, Livro 1, volume I. Cf. W. Thompson, An inquiry into the

Principle of the Distribution of Wealth, Londres, 1824, p. 274. Para uma visão contemporâneado tema, ver ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e anegação do trabalho.

86 Cabe aqui uma ressalva: mesmo no âmbito das ITCs, a divisão entre trabalho materiale imaterial está presente. O que se quer destacar é a crescente relevância econômica, infra-estrutural, das ITCs, que são ao mesmo tempo um conjunto de dispositivos tecnológicos debusca, transmissão, processamento e armazenamento de dados, e um conjunto de dispositivosde produção/codificação e recepção/decodificação de sentidos.

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par conceitual base e superestrutura, tanto para os estudos sociais emsentido mais geral, quanto para aqueles mais específicos, como os docampo da Comunicação Social, essa verdade traz consigo uma espéciede bifurcação metodológica: ou se dedica atenção especial às inúmerasmediações de ordem extra-econômica que atuam no âmbito das ITCs,assumindo-se a posição de que os interesses políticos e econômicos en-volvidos são somente dois fatores a mais entre tantos outros, de pesoequivalente; ou se admite que, embora as mediações extra-econômicas,envolvidas nos processos de produção, circulação e consumo das ITCs,não devam ser deixadas de lado, publicidade, entretenimento e infor-mação vêm se convertendo, de forma cada vez mais abrangente, no cavalode tróia de determinados interesses políticos e econômicos, cujo peso édecisivo para uma compreensão adequada desses mesmos processos e deseu papel predominantemente conservador.

Nos termos de Ramonet:

Antes podíamos dizer que uma empresa jornalística vendiainformação aos cidadãos, enquanto hoje uma empresa midiáticavende consumidores a seus anunciantes. Quer dizer, a AOL-Time Warner, por exemplo, vende a seus anunciantes – Nike,Ford, General Motors – o número de consumidores que possui.Essa é a relação dominante.87

Desdobrando esse raciocínio, logo percebemos que as ITCs exercem umtriplo papel nas sociedades contemporâneas: 1) enquanto dispositivo deprodução, circulação e consumo de bens materiais e simbólicos, con-stituem um setor econômico de ponta; 2) enquanto dispositivo de se-dução, participam ativamente na geração da demanda pelos bens materi-ais e simbólicos existentes, sejam aqueles diretamente produzidos por elas(produtos da indústria cultural e equipamentos necessários ao seu con-sumo), aqueles nos quais elas participam na produção (tudo que envolvainformática e telecomunicações) e aqueles que elas simplesmente anun-ciam (qualquer mercadoria); e 3) enquanto dispositivo de (in)formação,socializa, em diversas escalas, um determinado repertório de represen-tações do real, que incluem os bens materiais e simbólicos, junto a sis-temas classificatórios,88 ou códigos de valorativos, que dispõem esses

87 Cf. RAMONET, Ignacio. O Poder midiático. In: MORAES, Dênis de (org.). Por umaoutra comunicação, p. 248.

88 Poder-se-ia aqui objetar que as ITCs somente reproduzem alguns dos sistemas classifi-catórios preexistentes, contribuindo para que se tornem hegemônicos. Isso foi verdade em seus

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bens e representações, uns em relação aos outros, em hierarquias entre-cruzadas, menos ou mais complexas, dependendo do caso.89

Este é um dos lados da moeda, o lado mais forte atualmente, o lado dahegemonia. Não obstante, o fato de os interesses hegemônicos seremem grande parte contraditórios, entre si e, sobretudo, com os interessesda maioria das pessoas – que vivem do trabalho e compõem a massa con-sumidora –, mesmo que estas últimas não tenham clara consciência dessesinteresses, esse simples fato representa uma espécie de cavalo de tróia docavalo de tróia.

Um exemplo dessa contradição está no jornalismo, principalmente notelejornalismo. Seu objetivo último é cativar imensas audiências para osanunciantes dos intervalos comerciais. Mas para fazê-lo, é necessárioque os programas possuam e conservem credibilidade junto à população,o que requer que estejam minimamente comprometidos com a verdadefactual, ainda que a divulgação desta verdade entre em choque com os in-teresses particulares da empresa de comunicação que produz o telejornalou de setores mais amplos do capital dos quais ela é aliada. Além disso,há, entre os jornalistas, muitos que não pensam “como o patrão”, quepossuem, em graus variados, consciência de classe, além de uma relativaautonomia produtiva.

No campo da música, do cinema e até da teledramaturgia, é inegável que,apesar de todas as tendências dominantes, canções, filmes e programasefetivamente inventivos e autênticos conseguem, aqui ou ali, aparecer nouniverso das ITCs.90

No caso da publicidade: para ser convincente, deve agradar. Assim, nabusca da atenção da audiência, a despeito dos apelos grosseiros mais ób-vios e de seu conteúdo ideológico fatalmente integrado, ela não deixatambém de eventualmente socializar experiências formais que, de outromodo, talvez permanecessem restritas aos nichos de vanguarda, ou a cul-

primórdios. Hoje, são as pessoas que reproduzem os sistemas tornados hegemônicos pelasITCs; as variedades de opiniões existentes, as divergências de gostos etc., derivam do simplesfato de as pessoas serem diversas e de estarem vivas, e por isso serem capazes, em parte, dealterar esses sistemas.

89 Isso está na moda, aquilo é popular, a outra coisa é chique, fulano é radical, sicranoé realista, certo ambiente é clean, um outro é carregado, tal projeto é viável ou utópico etc.Sobre um estudo da forma como esses e outros atributos, das coisas, pessoas e situações, sãovivenciados pelas diversas classes e frações de classe, ver BOURDIEU, Pierre. Distinction.

90 Ver MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. O Espírito do tempo. Ver tambémECO, Umberto. Apocalípticos e integrados, principalmente o subcapítulo intitulado Cahiersde Doléances.

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turas distantes, contribuindo assim para uma maior abertura no repertóriode referências culturais e na sensibilidade estética das audiências.91

Nesse ponto, Adorno entra em rota de colisão conosco, já que, para ele,“os padrões estéticos inconscientes das massas são precisamente aquelesde que a sociedade necessita para se perpetuar e perpetuar seu domíniosobre as massas.” 92

É uma sentença intrigante, mas com a qual não podemos concordar in-tegralmente. Porque se Adorno acerta na definição de um dos aspectosconstitutivos do controle social, talvez mesmo do aspecto predominantenos últimos tempos, por outro lado não se dá conta que o momento rev-olucionário, que existe em estado latente como potência concreta, igual-mente pressupõe “padrões estéticos inconscientes”, mas de uma naturezanão integrada, não mimética, que podem ser identificados no gosto dasmassas por alguns produtos das ITCs, ou por alguns elementos de todoseles, para não falar de formas estéticas de resistência ou híbridas / exper-imentais, no campo da produção simbólica extra midiática.

Há um importante artigo de Fredric Jameson que aponta nessa direção,cujo norte é, sem perder o gume crítico em relação às mercadorias cul-turais da indústria cultural e de sua importância política e econômica,distinguir o cavalo de Tróia do cavalo de Tróia, o grão revolucionáriona cultura de massa, mesmo em produtos cujo caráter ideologicamentereacionário é mais ou menos óbvio. Nas palavras de Jameson:

[...] as obras de cultura de massa não podem ser ideológi-cas sem serem, em certo ponto e ao mesmo tempo, implícita ouexplicitamente utópicas: não podem manipular a menos queofereçam um grão genuíno de conteúdo, como paga ao públicoprestes a ser tão manipulado. Mesmo a “falsa consciência” deum fenômeno monstruoso como o nazismo nutriu-se de imag-inários coletivos de tipo utópico, sob roupagem tanto socialistacomo nacionalista. [...] as obras de cultura de massa, mesmoque sua função se encontre na legitimação da ordem existente– ou de outra ainda pior – não podem cumprir sua tarefa sem

91 Além disso, é possível supor que o aspecto atraente dos produtos oferecidos, bem comosua quantidade, podem sem querer contribuir para a emergência da consciência de classe, se aspessoas puderem sentir que há algo errado no fato de tudo aquilo existir e estar disponível, masnão para elas.

92 Cf. ADORNO, Aesthetic Theory, apud MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p.157, nota 35.

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A Comunicação e o Gosto 341

desviar a favor dessa última as mais profundas e fundamen-tais esperanças e fantasias da coletividade, não importa se deforma distorcida.93

Mais adiante, o autor sintetiza este ponto da seguinte maneira:

Em meio a uma sociedade privatizada e psicologizada, obcecadapelas mercadorias e bombardeada pelos slogans ideológicosdos grandes negócios, trata-se de reacender algum sentido doinerradicável impulso na direção da coletividade, que podeser detectado, não importa quão vaga e debilmente, nas maisdegradadas obras da cultura de massa, tão certo como nosclássicos do modernismo. Eis a indispensável precondição dequalquer intervenção marxista significativa na cultura contem-porânea.94

Essa hipótese de Jameson é muito importante no sentido de não se perderde vista o caráter contraditório interno da cultura de massa, reflexo dascontradições sociais mais amplas, e para que não se caia no pessimismoimobilizante de Adorno.

Cabe então desvendar o que pode haver no gosto das massas de substratosensível da ideologia, não só enquanto “falsa consciência” ou “general-idade abstrata”, mas também enquanto consciência de classe necessária(Marx) ou atribuída (Lukács), isto é, revolucionária. Esse desvendamentoé necessário para que se possa pensar em deslocar o gosto da esfera pas-siva do consumo à esfera ativa da produção, reorientando a produção so-cial – material e simbólica – no sentido da satisfação de gostos não coop-tados pelas formas integradoras do capital.

Recapitulemos. Dado que a dimensão política decisiva do gosto estáem sua própria dimensão econômica, quando Bourdieu menciona uma“unidade inconsciente de classe”, forjada no “nível mais profundo doshabitus etc.”, ele oferece um excelente ponto de partida para se enfrentar

93 JAMESON, Fredric. Reificação e utopia na cultura de massa. In: As Marcas do visível,p. 30. O trecho refere-se a uma análise empreendida pelo autor do filme “Tubarão”, na qualJameson demonstra que produtos como esse só obtém sucesso na medida em que, de algumaforma, trazem em si um “potencial utópico e transcendente”. Jameson também coteja o livroe o filme “Tubarão”, o primeiro escrito por Peter Blanchley e o segundo dirigido por StevenSpilberg, em 1975 – ambos obtiveram enorme sucesso comercial.

94 Idem ibidem, pp. 34-5.

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o conjunto de questões acima proposto, no quadro de uma atualização daproblemática da consciência de classe e da ideologia.

Trata-se, primeiro, de pensar a noção de gosto cindido em prazer e con-hecimento, a qual, por sua vez, remete à negatividade dialética da in-consciência de classe, dado que, se esta é positivamente, imediatamente,atualmente, fator constituinte da classe-em-si, negativamente, mediata-mente ou potencialmente o é da classe-para-si, capaz de extinguir a simesma e a todas as classes, portanto a sociedade de classes, promovendoa sutura no gosto em prazer e conhecimento, articulados em um nível su-perior. Ou seja, a noção de inconsciência de classe deve ser entendida,ao mesmo tempo, 1) como tensão entre sua positividade de não-reflexãoatual e sua negatividade de reflexão potencial, e 2) como identidade declasse inconsciente, pulsional, passível de simbolização, de exterioriza-ção, de objetivação na práxis, de incorporação à consciência portanto,convertendo nesse momento a consciência em si em consciência para si,através dessa práxis transformadora.

O gosto, este saber dos sabores e vice-versa, é o substrato sensível deideologias e práxis hegemônicas somente em sua positividade atual, pas-siva e imediata. Sua negatividade dialética, ativa e mediata, consiste emsua potência concreta de despertar práxis contra-hegemônicas. Ou seja,o gosto cindido, em um primeiro momento, não diz respeito diretamente,imediatamente, à consciência de classe necessária, mas mediatamente,isto é, enquanto momento de uma mediação possível da consciência declasse contingente à necessária. Diz, assim, respeito ao momento queLukács denominava consciência de classe possível, na passagem da con-sciência em si à consciência para si. Porque o gosto cindido traz em si umpathos revolucionário recalcado sob as mil manifestações do ethos con-formista da ideologia hegemônica. Em um segundo momento, porém,diante de circunstâncias objetivas mais favoráveis, a tensão entre essepathos e esse ethos pode resultar em sutura, em uma unidade superior desensibilidade e consciência, a qual deverá servir imediatamente como sus-tentação psicológica e motivacional da consciência de classe necessária.

Uma idéia parecida com essa está implícita nas esperançosas palavras deMuniz Sodré: “[...] no bojo das novas condições de existência geradaspela ciência e pela tecnologia, a força ético-política da paixão de viverpoderia impedir que a integração harmônica da máquina seja equivalenteà assimilação do capital como ‘natureza’ à consciência do homem”.95

95 SODRÉ, Muniz. Estratégias Sensíveis, p. 71.

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Quanto à ideologia, no recorte proposto, ela, em qualquer acepção quese queira, é sempre uma formulação do gostos. Estes, por sua vez, nãosão variáveis reflexas de estruturas inconscientes invariáveis, mas estru-turações historicamente variáveis das subjetividades e das práticas inter-subjetivas, ambas determinadas positiva e negativamente, em última in-stância, pelos vetores econômicos contraditórios de cada formação social;em outras palavras, limitadas em suas possibilidades de objetivação pelascontradições entre o modo de produção hegemônico, os resquícios de suapré-história e de seus estágios passados, e as possibilidades de superaçãode si que em si carrega. “Modo de produção” é a forma como as pessoasproduzem e reproduzem em sociedade suas condições de vida. Se essasformas não são determinadas pela vontade dos sujeitos, mas por impera-tivos cegos, os gostos como todo o resto permanecem limitados por estesimperativos. É necessário libertá-los.

12.6 Lenin e a Microsoft

O gosto é a inconsciência sensível da ideologia e na ideologia; delaprovém e ao mesmo tempo a sustenta; é sua inscrição no corpo. E a assim-ilação reificante dos gostos ao modo de vida capitalista foi a única forma,além da violência, de minimizar as contradições de seu desenvolvimento,e é a única forma de assegurar sua sobrevida insana e destrutiva. As ide-ologias só “colam” se seduzirem os gostos.

O gosto só se torna restrito à esfera do consumo a partir do momento emque é subordinado aos imperativos do capital na esfera da produção.96

O fim dessa subordinação constitui talvez o objetivo principal do projetosocialista. Nos termos de Marx, “em uma sociedade futura, na qual oantagonismo de classe tenha deixado de existir, na qual não haverá maisclasses, o uso não mais será determinado pelo tempo mínimo de pro-dução; mas o tempo de produção será determinado pelo grau de sua utili-dade social.” 97

Assim, para além dos limites do fetiche do valor (em um nível mais altode abstração) ou da solvência monetária (em um nível mais imediato),se é o gosto que efetivamente orienta o consumo, ele passaria a constituirnão somente a única meta da produção, mas carregaria a própria produção

96 Raymond Williams nota, a propósito, “que a idéia do gosto não pode hoje ser separada daidéia do CONSUMIDOR.” (Cf. Key Words, pp. 314-15.)

97 MARX, A Miséria da Filosofia, apud MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 176.

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de inspiração, no sentido empregado por Abraham Kook (1865-1935)98

e seus comentadores:99

As árvores que dão o fruto [...] se tornaram matéria inferior e perderamseu gosto. Esta é a queda da ‘Terra’, em função da qual esta foi amaldiçoada,quando Adão foi igualmente amaldiçoado por seu pecado. Mas todo de-feito é destinado a ser corrigido. Assim, estamos seguros que chegaráo dia em que a criação retornará ao seu estado original, quando o gostoda árvore será o mesmo que o do fruto. A ‘Terra’ se arrependerá de seupecado e os caminhos da vida prática não mais obstruirão o deleite doideal, que é sustentado pelos degraus intermediários apropriados em seucaminho rumo à realização, e irá estimular sua emergência de potênciaem ato.

A própria penitência, que ativa o espírito interior submerso nas profun-dezas do caótico e do antitético à meta ideal,100 possibilitará que a aspi-ração do ideal penetre em todas as influências condicionantes, e em todaselas será degustado o esplendor da meta ideal. Ela o fará alargando aextensão da ação para o ideal de justiça. O homem não mais sofrerá adesgraça da indolência no caminho para a vida verdadeira.101

98 Segundo Gershom Scholem, o último grande cabalista.99 Fazendo a ressalva de que obviamente o teor místico das citações a seguir deve ser ab-

straído para que sua inserção nesta tese faça sentido, tomo a liberdade de reproduzir uma pas-sagem de minha dissertação de mestrado (Cf. Schneider, 2003), que ilustra com uma bela ale-goria essa importante relação entre gosto, inspiração, produção e consumo. O texto que segue,em corpo reduzido e recuo igual ao das demais citações diretas ao longo deste trabalho, é daautoria de Abraham Kook (The Lights of Penitence, The Moral Principles, Lights of Holiness,Essays, Letters and Poems). Os comentários em itálico sobre o Rav Kook foram conseguidosatravés da Internet junto à Yeshivat Har Etzion – Virtual Beit Midrash – e-mail: [email protected] [email protected], por intermédio de Ezra Bick – [email protected], em 2002. Os co-mentários são de Rav Hillel Rachmani.

100 Esta passagem sobre a “penitência” adquire um significado materialista extraordinário selida à luz do seguinte trecho de A Sagrada Família (p. 49), de Marx e Engels, citado acima:“[...] o homem se perdeu a si mesmo no proletariado, mas ao mesmo tempo ganhou comisso não apenas a consciência teórica dessa perda, como também, sob a ação de uma penúriaabsolutamente imperiosa – a expressão prática da necessidade –, que já não pode mais serevitada nem embelezada, foi obrigado à revolta contra essas desumanidades; por causa dissoo proletariado pode e deve libertar-se a si mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmosem supra-sumir suas próprias condições de vida. Ele não pode supra-sumir suas própriascondições de vida sem supra-sumir todas as condições de vida desumana da sociedade atual,que se resumem em sua própria situação. Não é por acaso que ele passa pela escola do trabalho,que é dura mas forja resistência.”

101 KOOK, Abraham Isaac. The Lights of penitence; the moral principles, lights of holiness,essays, letters and poems, 1978, pp. 59-60. Na p. 121 da mesma obra, o tema é retomado: “Aprópria Terra tinha medo e não fez crescer a árvore em sua perfeição, de modo que seu gosto

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Nesta passagem, Rav Kook lida com o famoso midrash102 concernenteao “pecado da Terra durante os Seis Dias da Criação”. No terceiro dia,Deus ordenou à Terra que “produza ÁRVORES FRUTÍFERAS que dêemfrutos”. A Terra desviou-se do comando original e limita-se a produzir“árvores que dão frutos”. Aos olhos dos Sábios, a Terra pecou por nãoproduzir “árvores frutíferas”, isto é, árvores cujos troncos e galhos ten-ham o gosto do fruto. Ao invés disso, temos somente o exterior marromusado para fogueiras, enquanto somente o fruto possui um gosto bom.[...] Rav Kook explica este midrash como uma parábola: fruto = os fins;gosto [ta’am]103 = a inspiração; árvore = os meios para que se atinjaos fins. [...] Originalmente os meios para se atingir os fins deveriam es-tar plenos do mesmo sentimento de prazer e inspiração que resulta dosfins. A satisfação dos fins penetraria o processo dos meios. Porém, opecado da Terra deixou toda a inspiração nos fins, restando os meios semgosto.[...]

A Terra, pois, “pecou” (isto é, falhou), já que os troncos e galhos das ár-vores não possuem o gosto dos frutos. Se os troncos e galhos simbolizamos meios para se atingir a meta (o fruto), e deveriam ser da mesma ordemde inspiração (de gosto, sabor/saber) que os fins, não o são porque a Terrafalhou. É aqui, pois, um problema ontológico da matéria (da imanên-cia). Por outro lado, a missão do homem seria redimir o pecado da Terra(e o seu próprio, pois a raiz da palavra hebraica que designa o primeirohomem, Adam, é a mesma de Adamá, a Terra) e restaurar a ordem “div-ina”, tornando os meios de se atingir um fim tão inspiradores (saborosose plenos de significado) quanto este.104

Está dito aí que, através de sua prática, a princípio penosa, o homem devetranscender o “pecado original da Terra”, redimindo-a e redimindo-se, eestabelecer aquela ordenada por Deus, segundo a qual os meios têm queser inspiradores e sagrados, isto é, plenos de sabor e significado.

Mas, em termos materialistas, no que consiste o “pecado da Terra”? Naausência de gosto (sabor, significado e inspiração) nos meios de se obtersatisfação, devido à escassez, à brutalidade dos elementos e das feras, à

fosse o mesmo que o do seu fruto [...] A humanidade tem medo dos luminosos e exaltadosvalores da liberdade; este mundo teme a emergência do mundo que virá...”

102 Tópico narrativo da tradição oral talmúdica judaica, que inclui também suas interpretações.103 O termo hebraico “ta’am”, gosto, também relaciona as noções de sabor e significado.104 Afinal, como pergunta Abraham Kook, em verso: “Por que desperdiçar sua substância no

que não alimenta / e o seu labor no que não satisfaz?” “Radiante is the world soul”. In: KOOK,Abraham Isaac. Op. cit., p. 376.

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resistência, com freqüência extrema, da natureza face ao homem, fatorescom os quais ele, “ser padecente”, tem de lidar em busca mesmo da sat-isfação das necessidades mais elementares, o que gera, além de desgosto,medo, dor e trabalho pesado. Este último, no entanto, é a condição desua própria superação: se todos os meios para que se atinja qualquer fimpoderiam ser simplesmente chamados de trabalho, a “condenação divina”que pesa sobre o homem – ganharás teu pão com o suor de tua face – re-produz, de modo invertido,105 uma condenação real, mas historicamentesuperável a partir de sua própria contradição interna: a ausência de gosto– de sabor, de significado e de inspiração – no trabalho não-livre, emtodas as suas formas históricas.

Um dos principais objetivos do projeto socialista não é a extinção dotrabalho não-livre em sua forma atual, ou seja, o fim da escravidão as-salariada, carente de sabor e de significado? É disso que se trata quandofalamos de resgatar o gosto cooptado pelo capital da esfera do consumo einseri-lo na esfera da produção, como inspiração, na execução, da formamenos penosa que se puder, de tarefas coletivamente determinadas porpessoas livres e conscientes.

As ITCs podem ser instrumentalizadas no sentido de solucionar este prob-lema. É Zizek, partindo de Lênin, que nos dá uma pista de como isso podeser efetivamente posto em prática:

As idéias de Lenin sobre como a estrada para o socialismocorre através do terreno do capitalismo monopolista podemparecer perigosamente ingênuas hoje: “O capitalismo criouum aparato contábil na forma de bancos, sindicatos, correios,associações de consumidores e organizações de empregadosde escritório. Sem grandes bancos o socialismo seria impos-sível. [...] nossa tarefa agora é meramente podar aquilo quecapitalisticamente mutila esse excelente aparato, torná-lo ainda

105 Cabe aqui reproduzir uma célebre reflexão de Marx – tão citada quanto descontextualizadae, por isso, mal interpretada, restando seu significado, conforme Mészáros, “tendenciosamenteignorado” – sobre a religião como o “ópio do povo”: “A miséria religiosa é ao mesmo tempoa expressão da miséria real e um protesto contra essa miséria real. A religião é o suspiro dosoprimidos, o coração de um mundo sem coração, o espírito de um mundo sem espírito. Areligião é o ópio do povo. [...] A exigência de se abandonar as ilusões sobre o presente estadode coisas é a exigência de se abandonar um estado de coisas que necessita de ilusões. Portanto,a crítica da religião é, em estado embrionário, a crítica do vale de lágrimas cujo halo é a religião[...]. Assim, a crítica do céu se transforma na crítica da terra, a crítica da religião na crítica dodireito e a crítica da teologia na crítica da política.” MARX, Contribuição à crítica da filosofiado direito de Hegel, apud MÉSZÁROS, o Poder da Ideologia, p. 469, nota 22.

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maior, ainda mais democrático, ainda mais inclusivo. [...] se-ria [...] algo como o esqueleto da sociedade socialista.” [...]E se alguém substituísse o (obviamente datado) exemplo dobanco central pela World Wide Web [...]? Dorothy Sayers sus-tentou que a Poética de Aristóteles é efetivamente a teoria dashistórias de detetive avant la lettre – como o pobre Aristótelesainda não conhecia as histórias de detetive, ele teve que fazermenção aos únicos exemplos que lhe estavam disponíveis, astragédias... Nessa mesma linha de raciocínio, Lenin estariaefetivamente desenvolvendo a teoria do papel da World WideWeb, porém, dado que ele não conhecia a WWW, ele teve quefazer menção aos desafortunados bancos centrais. Conseqüen-temente, alguém pode também dizer que “sem a World WideWeb o socialismo seria impossível. [...] nossa tarefa agora émeramente podar aquilo que capitalisticamente mutila esse ex-celente aparato, torná-lo ainda maior, ainda mais democrático,ainda mais inclusivo” [...] Não haveria na World Wide Webum potencial explosivo também para o próprio capitalismo?A lição do monopólio da Microsoft não seria precisamentea de Lenin: ao invés de combater o seu monopólio atravésdo aparato do estado (recorde-se a divisão da Micrsoft Corpo-ration por decisão judicial), não seria mais “lógico” simples-mente SOCIALIZÁ-LA, tornando-a gratuitamente acessível?106

Isto é, as ITCs, em meio às quais a Microsoft Corporation ocupa um dospapéis mais ilustres, podem e devem ser instrumentalizadas em termosnão só ideológicos mas, considerando-se a sua centralidade no conjuntoda economia, administrativos e logísticos. Esta operação é absolutamentefundamental pois, como bem lembra Mészáros:

Não basta [...] argumentar a favor de uma nova orientaçãoideológico-política caso se mantenham tal como hoje as for-mas institucionais e organizacionais relevantes. Se, em suaresposta por inércia às circunstâncias históricas que já não sãoas mesmas, a desorientação corrente é a manifestação com-binada dos fatores prático-institucional e ideológico, seria in-gênuo esperar uma solução no que muitos gostam de descr-ever como “clarificação ideológica”. De fato, enquanto os dois

106 ZIZEK, Slavoj. Repeating Lenin. Documento eletrônico:http://www.lacan.com/replenin.htm. Acesso em: mar. 2004.

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devem desenvolver-se juntos nessa reciprocidade dialética, o“ubergreifendes Moment” (momento predominante) na con-juntura atual é a estrutura prático/institucional da estratégiasocialista, que precisa reestruturar-se de acordo com as novascondições.107

É por esta razão, não somente por uma questão de método, que temosinsistido na defesa da noção de “determinação em última instância” daeconomia sobre o conjunto das atividades humanas (incluindo a formaçãodos gostos), conseqüentemente na pertinência atual de se pensar a comu-nicação nesses termos. Isso, como visto, implica entre outras coisas emconservar a clássica relação dialética entre base e superestrutura. Nessalinha de raciocínio, e buscando efetuar uma “análise concreta da situaçãoconcreta”, identificamos nas ITCs atuais um momento no qual a produçãosimbólica é absorvida pela base, não o contrário, como apregoam os de-fensores da “sociedade da informação”. A disputa ideológica contra aideologia hegemônica, portanto, para ter alguma chance de sucesso, deveser articulada com um disputa político-jurídica pela socialização da pro-priedade das ITCs.

12.7 Por Uma Pedagogia da autonomia

O que se tentou fazer ao longo da presente pesquisa foi demonstrar emdetalhe que a subsunção formal do trabalho de produção simbólica aocapital (a subsunção real ainda não se efetivou plenamente) é o que de-termina, em última instância, a natureza da produção midiática, conse-qüentemente da parte mais abundante do repertório cultural socializado,assim como dos gostos que são por ela educados. Chegou o momento deretomarmos a questão da educação, abordada no início deste trabalho.

A função essencial da educação, mais do que transmitir conteúdos, é, oudeveria ser, estimular o desejo de se adquirir conhecimento. Por isso todaeducação é necessariamente uma educação do gosto, pois o gosto é ao

107 MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital, pp. 787-8. Por outro lado, em função dabrutal capacidade de exercício da violência nas mãos do capital, Mészáros argumenta: “A vi-olência pode ser usada seletivamente, contra grupos limitados do trabalho, mas não contra aorganização de um movimento de massa revolucionário. Por isso é tão importante o desenvolvi-mento da ‘consciência comunista de massa’ (para usar a expressão de Marx), em contraste coma vulnerabilidade da orientação sectária estreita.” (Idem ibidem, p. 846).

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mesmo tempo expressão de sabor (prazer ou desprazer) e saber (conheci-mento ou ignorância). Nos termos de Montesquieu:

A definição mais geral do gosto, sem considerar se se tratade um bom gosto ou de um mau gosto, um gosto adequadoou não, é que gosto é aquilo que nos liga a uma coisa pormeio do sentimento, o que não impede que ele possa aplicar-se às coisas do intelecto, cujo conhecimento dá tanto prazer àalma que essa é mesmo a única felicidade que certos filósofosconseguem compreender. A alma conhece por meio das idéiase dos sentimentos; ela sente prazer por meio das idéias e dossentimentos, pois, embora possamos estabelecer uma oposiçãoentre idéia e sentimento, quando a alma vê uma coisa ela asente, e não há coisas tão intelectuais que ela não possa ver ouque acredite não ver e, por conseguinte, que não sinta.108

Sociedades divididas em classes, porém, fazem com que o acesso dos su-jeitos aos objetos e formas disponíveis de conhecimento e prazer se dê,apesar da proclamada “igualdade de oportunidades”, não só de um modosocialmente desigual109 mas também como uma experiência de níveisdistintos, cindidos e até antagônicos da vida. Em outras palavras, alémde o acesso ao conhecimento e ao prazer ser desigualmente socializado,em função de determinações classistas, conhecimento e prazer parecem amuitos vivências antagônicas.

A tradição autoritária – ainda que “liberal”, na aparência – da educaçãoformal nas sociedades contemporâneas, por sua vez, reproduz e reforçatanto a cisão das diversas classes sociais como esta outra, entre prazer econhecimento, opondo o último ao primeiro e idolatrando-o somente em

108 MONTESQUIEU, Charles de Secondar, Baron de. O Gosto, p. 17.109 “Baran e Sweezy enfatizaram esse aspecto: ‘O igualitarismo da ideologia capitalista é uma

de suas forças, que não se deve descartar levianamente. Desde a mais tenra infância as pessoasaprendem por todos os meios concebíveis que todos têm oportunidades iguais e que as de-sigualdades com que se deparam não são o resultado de instituições injustas, mas de seus dotesnaturais superiores ou inferiores’. Portanto, assegurar a manutenção da gritante desigualdade edos privilégios na educação, por exemplo, é algo que ‘se deve buscar indiretamente, garantindoamplos recursos para a subsistência da parte do sistema que atende à oligarquia, deixando, aomesmo tempo, faminta a parte que atende às classes baixas e aos trabalhadores. Isto garante adesigualdade geral que é o coração e a essência de todo o sistema’. Assim, é possível sustentara mitologia da igualdade – pelo menos na forma da proclamada ‘igualdade de oportunidades’ –e perpetuar seu oposto diametral na ordem vigente sob o domínio do capital.” Cf. MÉSZÁROS,Istvan. Para além do capital, pp. 273-4. As citações de Baran e Sweezy, entre aspas simples,são do livro Monopoly Capital.

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sua variante positiva, instrumental,110 acrítica, como qualificação profis-sional para o mercado, isto é, subordinação do trabalho ao capital.

Temos então, no conjunto, além de uma apropriação socialmente desigualdos objetos degustáveis, a reprodução da cisão entre sabor e saber, e aindauma desqualificação das formas de prazer desvinculadas do consumo,bem como das variantes não instrumentais do conhecimento. O prazeré, assim, banido para a esfera do “tempo livre” – fora do ensino e forado trabalho, que, portanto, não são livres – do qual se ocupa, como umagente ou aparelho classificador, legislador, (auto) legitimador, indutor, aindústria cultural – o que levou Adorno e Horkheimer, na trilha de Marx,a se questionarem o quão “livre” o “tempo livre” é.

Por outro lado, entendida a educação não somente como formação profis-sional para o mercado de trabalho, mas como o processo através do qual oindivíduo biológico se constitui enquanto sujeito social e cultural, tornando-se apto a se apropriar da parte que quiser ou puder do patrimônio sim-bólico produzido e acumulado pela humanidade, portanto de humanizar-se o mais plenamente possível, surge uma nova série de questões: comoeducar quem muitas vezes não tem interesse consciente em nada disso, ouprazer em fazê-lo? Como educar quem foi educado a não gostar de ser ed-ucado? Como estimular a emergência dessa consciência e desse prazer,ou seja, desse gosto? Como fazer para que o aluno perceba que “[...]aqueles que apreciam com gosto as obras do espírito têm uma infinidadede sensações que os demais não conhecem”?111 Como contribuir paraa emergência de autonomias cognitivas sedentas de saborear saberes?Como desenvolver uma pedagogia dialógica com quem entende liber-dade como a faculdade de seguir os impulsos imediatos ou de moldar-seconforme os ditames do jogo aparentemente livre do mercado? Como es-capar “[...] da estreita instrumentalidade e determinações fetichistas daspráticas educacionais dominantes, administradas em subordinação às ne-cessidades de expansão do capital (que, como já sabemos, precisam serinternalizadas pelos indivíduos como ‘suas próprias necessidades’).” 112

Se tomarmos a liberdade de estender o conceito de educação – entendidacomo a própria constituição do sujeito, em sua humanidade degustante,isto é, de sujeito do prazer e do conhecimento, através de sua inserção emuma determinada cultura – para além dos muros da escola, podemos afir-mar que as ITCs vêm ocupando cada vez mais um papel destacado nesse

110 Cf. PARO, Victor Henrique. Administração escolar. Introdução crítica.111 MONTESQUIEU, Charles de Secondar, Baron de. O Gosto, p. 49.112 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, pp. 48-9.

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processo. Afinal, parece não haver dúvidas que a cultura hegemônica dasúltimas décadas é a chamada cultura de massa.113

O objetivo aqui, porém, não foi analisar em detalhe as especificidadesdessa cultura em sua empiria, mas seu fundamento econômico totalitário,buscando atualizar a perspectiva crítica fundada por Adorno e Horkheimerna Dialética do Esclarecimento,114 onde foi cunhado o termo indústriacultural e se começou a problematizar as conseqüências sociais da mer-cantilização da cultura, sob um viés marxista.

A idéia chave desta problemática está contida no conceito reificação, oqual, além de remeter à objetificação (coisificação) dos sujeitos, tambémdiz respeito ao ato de se representar e legitimar como natural, necessário(no sentido de inevitável), o que é contingente, passível de crítica e trans-formação mediante a práxis humana. O fundamento moderno da reifi-cação (ou das formas modernas de reificação), como é sabido, é o fetichismoda mercadoria, expressão material do fetiche do valor, da subordinação daatividade humana ao imperativo cego de auto-expansão do capital.

Aplicando a noção de subsunção do trabalho ao capital à produção sim-bólica, vemos como suas conseqüências políticas são profundas, tanto noque tange a forma e conteúdo das mercadorias em geral, e da mercado-ria cultural em particular, quanto na formação do gosto, na educação dosreceptores tornados consumidores.

É necessário combater esse estado de coisas, mediante a implementação,nas escolas e nas ITCs, de uma verdadeira pedagogia da autonomia, quefavoreça a sutura do sujeito cindido em produtor e consumidor, de modoque as pessoas, em conjunto, conforme seus próprios gostos conscientes,decidam não mais o que querem consumir no “tempo livre”, de acordocom a oferta do mercado e com seus salários, mas decidam o que queremconsumir mediante o controle comum dos meios de produção, das formasde se trabalhar e do tempo.

113 Cf. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX; o espírito do tempo. Caso pareçacontraditório o emprego alternado dos termos cultura de massa e indústria cultural, dado queAdorno e Horkheimer cunharam o último precisamente em oposição à noção de uma cultura demassa, que supostamente brotaria espontaneamente das massas, acredito que se possa escapardesta armadilha entendendo a cultura de massa como uma expressão equivocada, mas útil,posto que consagrada, para o conjunto da produção da indústria cultural.

114 Cf. ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética doesclarecimento.

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Capítulo 13

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A produção simbólica foi atirada das nuvens macias da superestruturapara a terra dura da estrutura econômica, que passa a determinar suaqualidade e sua quantidade, de acordo com sua propriedade de valorizarvalor. Conseqüentemente, a educação do gosto em escala social é igual-mente determinada por esse imperativo. Mas isto não elimina o papeldesempenhado por esses produtos em nível superestrutural, isto é, en-quanto juízos ideológicos: sua função conservadora, aí, é reificar afetose mundivisões adequados (ou inofensivos) aos imperativos econômicos epolíticos hegemônicos.1

Tendo isto em conta, um estudo de comunicação de matriz marxista nãopode se esquecer, como temos insistido, que:

O marxismo não é uma filosofia de gabinete que pode serpraticada independentemente das condições predominantes nomovimento socialista internacional. Ao contrário, é uma visãode mundo que, desde o início, rejeitou conscientemente a idéiade uma mera interpretação do mundo e se comprometeu coma luta árdua para modificá-lo: tarefa cuja realização é inconce-

1 Dado que as ITCs são, em última análise, um elo fundamental na fase contemporânea dereprodução ampliada do capital, a única explicação plausível para a existência de discursos nasITCs que se oponham a este processo é serem elas, como as demais instâncias sociais, atraves-sadas pela luta de classes, expressão maior do conjunto de antagonismos e contradições carac-terísticos do modo de produção capitalista. Em outras palavras, nas ITCs o trabalho tambémfaz valer a sua voz, embora não predominantemente. Além disso, se um discurso ideologica-mente discordante é eficiente midiaticamente enquanto suporte da valorização do valor, ou nãoa prejudica, ele passa, até segunda ordem.

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bível sem a implementação bem-sucedida de estratégias políti-cas adequadas. Portanto, o estado real dos instrumentos es-tratégicos necessários ao movimento da classe trabalhadoranão pode ser uma questão indiferente para a teoria marxiana.2

Além disso,

[...] se deve insistir, com Rosa Luxemburgo, que “o social-ismo [...] deve ser criado pelas massas, deve ser realizado portodo proletário”.

Evidentemente, tais objetivos não podem ser obtidos semo trabalho da ideologia emancipadora, através da qual a estru-tura de motivação necessária para a transformação de “toda amaneira de ser” dos indivíduos sociais é definida e constante-mente redefinida. Não de cima, mas por uma atividade própriaconscientemente buscada.3

Sob este prisma, o debate contemporâneo sobre a comunicação tem di-ante de si algumas tarefas fundamentais: 1) a disputa política pela de-mocratização das ITCs e pela não instrumentalização dos cursos de co-municação em um sentido estritamente técnico-profissionalizante; 2) aprodução de contra-informação, efetivamente comprometida com os in-teresses da “classe que vive do trabalho”, em oposição às práticas cor-rentes do jornalismo hegemônico; 3) a propaganda das alternativas diretaou indiretamente voltadas para a construção de formas societais contra-hegemônicas, onde quer que se manifestem, seja na política representativaconvencional (partidos e sindicatos), nas artes, nos movimentos sociais,nas mídias etc.; 4) a educação, no sentido mais amplo do termo, ou seja,enquanto humanização do indivíduo biológico mediante sua inserção emum universo simbólico no qual ele se constitui enquanto sujeito; 5) a de-fesa e a divulgação de toda arte de popular autêntica, autenticidade estaque, a princípio, infelizmente, só pode ser definida em termos negativos e

2 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, p. 110.3 Idem, p. 329.

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muito gerais: arte não mercantil, vinculada a coletividades orgânicas;4 6)a popularização das diversas variedades das artes eruditas.

Todas essas tarefas envolvem questões mais pontuais, entre as quais pode-se destacar, não necessariamente nesta ordem: 1. a luta pela inclusão dig-ital universal; 2. a intensificação da militância virtual; 3. o apoio à imple-mentação de tvs e rádios públicas; 4. a ênfase (tática e não de princípios)no pluralismo de conteúdos;5 5. a popularização da importante distinçãoconceitual entre censura e controle social dos conteúdos midiáticos; 6. oincentivo à proliferação de mídias independentes; 7. a proposta de cri-ação de disciplinas voltadas à leitura crítica das ITCs e dos seus produtos,no ensino médio, nas comunidades carentes, nos sindicatos e onde maisfor possível; 8. um maior empenho no sentido de se estimular a articu-

4 “[...] a criação cultural autêntica depende para sua existência de vida coletiva autêntica,da vitalidade do grupo social ‘orgânico’, qualquer que seja sua forma (e tais grupos podemabranger da pólis clássica à aldeia camponesa, da comunidade do gueto aos valores comuns deuma aguerrida burguesia pré-revolucionária). O capitalismo sistematicamente dissolve o tecidode todo grupo social coeso, sem exceção, inclusive a sua própria classe dominante e, dessemodo, problematiza a produção estética e a invenção lingüística cuja fonte está na vida grupal.O resultado [...] é a fissão dialética da antiga expressão estética em dois modos, modernismo ecultura de massa, igualmente dissociados da práxis grupal. Ambos os modos atingiram um níveladmirável de virtuosismo técnico; mas é sonhar acordado esperar que qualquer dessas estruturassemióticas possa ser retransformada, por fé, milagre ou mero talento, naquilo que poderia serchamado, na sua forma forte, de arte política, ou, num sentido mais geral, essa cultura autênticae viva da qual virtualmente perdemos a memória, tão rara se tornou a experiência. [...] A únicaprodução cultural autêntica de hoje parece ser aquela que pode recorrer à experiência coletivados bolsões marginais da vida social do sistema mundial: a literatura e blues negros, o rockda classe trabalhadora inglesa, a literatura da mulher, a literatura gay, o roman québécois, aliteratura do Terceiro Mundo; e essa produção é possível apenas até onde tais formas de vidaou solidariedade coletivas não tenham sido totalmente penetradas pelo mercado e pelo sistemade mercadorias. Esse não é necessariamente um prognóstico negativo, a menos que se acreditenum sistema total crescentemente abrangente; o que estilhaça tal sistema – que, inquestion-avelmente, tem sido montado por toda parte desde o desenvolvimento do capitalismo industrial– é, porém, muito precisamente a prática coletiva ou, para pronunciar seu nome tradicional enão mencionável, a luta de classes. No entanto, a relação entre luta de classes e produção cul-tural não é imediata; não se reinventa um acesso à arte política e à produção cultural autênticacrivando o discurso artístico individual de signos políticos e de classe. Em vez disso, a luta declasses e o vagaroso e intermitente desenvolvimento da genuína consciência de classe são elespróprios o processo através do qual um grupo novo e orgânico constitui a si mesmo, por meiodo qual o coletivo abre caminho na atomização reificada (Sartre a chama “serialidade”) da vidasocial capitalista.” Cf. JAMESON, Fredric. Reificação e utopia na cultura de massa. In: AsMarcas do visível, pp. 23-4.

5 Em princípio, a noção pura e simples de “pluralismo” não basta; tudo vale? Não é dissoque se trata aqui, mas de, sob essa palavra de ordem, articular diversos agentes que se opõemao caráter oligopolista das mídias, para o desenvolvimento de ações contra-hegemônicas nestesetor.

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lação dos movimentos voltados para a democratização da comunicação –FNDC, Cris Brasil, Núcleo Piratininga de Comunicação, Intervozes etc.– entre si e com os demais “novos” e “velhos” movimentos sociais; 9.a mobilização para a emergência de um movimento massivo de pressãono sentido de se criar mecanismos legais que assegurem um maior rigor,sob controle social, na cessão e renovação de concessões de canais aempresas privadas.

A importância dessas tarefas aponta no sentido de uma compreensão daimportância decisiva das ITCs enquanto base material para a produçãode uma “estrutura de motivação necessária” da “ideologia emancipadora”,cuja eficácia depende de sua capacidade de formar e mobilizar os gostos.

Nos termos de Mészáros:

[...] temos de enfrentar a pressão de determinações ob-jetivas que se tornam “internalizadas” – e, portanto, tambémtransformadas em motivos, sem por isso perder seu caráter dedeterminações objetivas [...] A internalização desarmante dasrestrições objetivas encontradas talvez seja a função mais im-portante da ideologia dominante. Ela se realiza – na formade fusão e confusão [...] de coerção externa com motivaçãointerna – pregando a sabedoria acomodadora do “não há al-ternativa” [...] a necessidade brutal de se submeter ao poderda competição coerciva é mistificadoramente metamorfoseadaem algo que pode reclamar para si o elevado status de moti-vação interna consciente e livremente adotada, o que nenhumser racional poderia (ou deveria) questionar mesmo em seuspensamentos, e muito menos a ela se opor ativamente.

Compreensivelmente, portanto, a ideologia socialista deinício não poderia ser outra senão a “contraconsciência”, paraser capaz de negar as práticas materiais e ideológicas dom-inantes da ordem estabelecida. Nas circunstâncias de hege-monia ideológica do capital, as premissas fundamentais da al-ternativa socialista não podem deixar de ser articuladas comouma contraconsciência que desafia a coercitividade internal-izada e como uma rejeição clara – ainda que necessariamentelimitada – do poder das restrições, sócio-historicamente con-tingentes, que são elevadas a um status absoluto para negartoda alternativa; e esta rejeição deve se dar não importa quão

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reais tais restrições possam ser dentro de seus próprios termosde referência.6

O que Mészáros chama aqui de “coercitividade internalizada” é o quetemos denominado captura do gosto pelo capital. É necessário resgataro gosto. Para tanto, os meios de produção e irradiação de cultura teriamque ser desconectados do imperativo da valorização do valor.

Cumpre, assim, socializar todo o aparato tecnológico e logístico das ITCsem uma lógica operacional diferente daquela calcada na reprodução am-pliada do capital. Isso não será obtido sem luta, em meio à qual a ocu-pação jurídica e ideológica do vasto território das infotelecomunicaçõesé decisiva. Resumindo:

1.gostar ou não de algo pressupõe a decodificação intelectual e/ousensível do objeto (seu enquadramento em um código simbólico ouem um padrão sinestésico, ou ambos) e a experiência de prazer oudesprazer resultante;7

2.essa experiência é sempre o resultado de uma comparação predomi-nantemente inconsciente deste objeto com outros anteriormente “de-gustados”;

3.essa experiência, portanto, é fruto dos momentos singulares da históriade vida de cada sujeito particular, embora essa história de vida sejasócio-historicamente – universalmente – determinada;

4.cada configuração / totalidade sócio-histórica é o resultado de umdado estágio de desenvolvimento de um determinado modo de pro-dução;

5.cada modo de produção produz necessidades específicas, e meios,menos ou mais eficazes, de satisfazê-las;

6.só se pode gostar ou não do que existe;8 para que algo exista, sãonecessárias certas condições prévias;

6 MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia, pp. 530-2.7 “[...] primeiramente, para que uma vontade se forme é necessário que esteja presente uma

representação de prazer e de desprazer. Em segundo lugar: que uma excitação violenta produzauma sensação de prazer ou de desprazer, é assunto do intelecto interpretador, que, por sinal, namaior parte do tempo, opera sem que o saibamos. Em terceiro lugar: não há prazer, desprazere vontade a não ser nos seres intelectuais; a enorme maioridade dos organismos os ignora.”NIETZCHE, Friedrich. Le gai savoir, p. 173.

8 “[...] acredita-se que a necessidade cria a coisa; mas é a coisa, com freqüência, que criaa necessidade.” Idem ibidem, p. 203. Aqui, as palavras de Nietzsche soam curiosamentemarxistas.

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7.essas condições são, sempre, os recursos naturais, humanos e tec-nológicos disponíveis, e, na atualidade, a forma como são opera-cionalizados segundo as leis econômicas que regem o modo de pro-dução capitalista;

8.essas leis podem ser resumidas no princípio de “valorização do valor”ou da “reprodução ampliada” do capital;

9.a valorização do valor começa cada um de seus ciclos com a pro-dução de mais-valia e o encerra com sua realização, mediante avenda da mercadoria (cujo valor é superior ao dos seus componentesoriginais, na medida em que contém trabalho excedente – não pago);

10.para que haja venda, deve haver demanda solvente;

11.para que haja demanda solvente, é necessário que haja renda, lucroou salário; renda, lucro e salário são as expressões econômicas dasclasses sociais em conflito;

12.para que haja demanda solvente, é necessário que haja alguma ne-cessidade a ser satisfeita; a satisfação das necessidades só importana medida em que contribui para a valorização do valor;

13.para haver necessidades, é necessário que haja vida; para haver vidahumana, é necessário que os homens estejam organizados em so-ciedade, o que pressupõe algum tipo de cultura e, nos estágios maisavançados, de divisão do trabalho;

14.cada tipo de cultura irá modelar as necessidades, para além daquelasestritamente biológicas; a divisão de trabalho, ou de classes, quandoatinge um grau elevado de complexidade, traz consigo uma dis-tribuição desigual do patrimônio cultural, conseqüentemente “ne-cessidades” às vezes distintas nas distintas classes sociais;

15.a cultura hegemônica das sociedades contemporâneas é ancoradano princípio da valorização do valor, ou seja, praticamente tudo épermitido desde que atenda a esse princípio;

16.a conseqüência atual deste princípio é a abundância de mercadoriase a pauperização crescente das massas; a despeito disso, adequar osgostos (“necessidades”), de todas as formas possíveis, aos impera-tivos de reprodução ampliada do capital é vital para o capitalismo;

17.é esta a principal função das ITCs, seja legitimando o sistema, sejaestimulando o consumo; as ITCs, em sua materialidade, tambémfornecem a base operacional do sistema;

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18.os gostos não podem ser totalmente cooptados; e podem ser resgata-dos;

19.as ITCs são um excelente aparato.

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Capítulo 14

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