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JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

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Capa: Ana Maria Silva de Araújo

Impresso no Brasil Printed in Brazil

FICHA CATALOGRÁFICA(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)Japiassu, Hilton Peneira, 1934 - Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro, F. Alves, 202 p.

Todos os direitos reservados àLIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.Rua Sete de Setembro, 177 - Centro20.050 Rio de Janeiro, RJ

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SUMÁRIO

Prefácio................................................................................................................................7

Alguns instrumentos conceituais........................................................................................13

O que é a epistemologia?..................................................................................................21

A epistemologia genética de J. Piaget...............................................................................41

A epistemologia histórica de G. Bachelard........................................................................61

A epistemologia “racionalista-crítica" de K. Popper...........................................................83

A epistemologia "arqueológica" de M. Foucault...............................................................111

A epistemologia "crítica"...................................................................................................135

Para onde vai a filosofia?.................................................................................................159

Conclusão: um problema em suspenso...........................................................................185

Bibliografia sumária..........................................................................................................195

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PREFÁCIO

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Este pequeno livro, como indica seu título, trata do que chamei de "Introdução ao

Pensamento Epistemológico". Meu propósito foi o de explorar alguns dos caminhos que

se abrem à epistemologia contemporânea. Os vários capítulos aqui reunidos não têm

outra pretensão senão a de fornecer um conjunto de Elementos e de Instrumentos de

reflexão epistemológica sobre os processos de génese, de desenvolvimento, de

estruturação e de articulação dos conhecimentos científicos. Cada um poderá ser tomado

como um todo. Não houve, de minha parte, uma preocupação de sistematizar os vários

temas tratados. Nem tampouco de lhes dar uma ordenação lógica rigorosa. Tentei

descobrir, nos autores analisados, seu "projeto" fundamental concernente aos problemas

epistemológicos. Para não sobrecarregar o texto com muitas citações, remeto o leitor à

bibliografia, onde poderá encontrar os elementos indispensáveis a um maior

aprofundamento. Não pretendi tanto resolver problemas quanto levantar questões que,

uma vez examinadas, pó-

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derão proporcionar outras respostas, eventualmente discordantes. Se isto ocorrer, já está

justificado meu esforço de propor à reflexão,* de modo simples, mas talvez "polémico",

tais Elementos e Instrumentos introdutórios ao que hoje se chama de atividade

epistemológica.

Trata-se, pois, de uma reflexão epistemológica cuja preocupação fundamental é a de

situar os problemas tais como eles se colocam ou se omitem, se resolvem ou

desaparecem na prática efetiva' dos cientistas. Todavia, como para situar e formular os

problemas torna-se indispensável a presença de certos conceitos, tive a preocupação de

fornecer algumas concepções engajando o tratamento de certos problemas científicos

pela epistemologia. Sem dúvida, falar do "objeto" dessa disciplina significa falar de um

problema a ser colocado para, em seguida, ser resolvido. Não tive a pretensão de

analisar todos os problemas da epistemologia. Nem tampouco foi minha intenção

apresentar um quadro completo de todas as epistemologias atualmente existentes. Uma

síntese, certamente, far-me-ia correr o risco de uma exagerada generalidade. Isto não me

impediu, porém, de dar atenção a certas epistemologias, por vezes em "conflito". Assim,

quis elucidar algumas "teses" particulares, sem ter a audácia de fazer com que elas se

beneficiassem de uma demonstração completa.

O termo "conflito" é aqui utilizado no sentido de certos antagonismos fundamentais na

elucidação, por parte das abordagens epistemológicas analisadas, da atividade científica.

Cada enfoque epistemológico elucida a atividade científica a seu modo. Cada um tem

uma concepção particular do que seja a ciência. Evidentemente, as epistemologias aqui

expostas não podem ser tomadas por cânones. Cada uma tem um valor de tentativa, e

não de modelo. Foi de propósito que tomei essas modalidades de epistemologia. Todas

têm em comum, apesar das des-

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semelhanças quanto aos seus objetos, às suas perspectivas, aos seus métodos e às

suas influências recíprocas, um caráter deliberadamente não-positivista quanto às suas

concepções da ciência. Razão pela qual deixei de lado a apresentação desta

epistemologia tão desenvolvida e rica, com resultados surpreendentes no domínio do

conhecimento científico, que é a epistemologia lógica, cujos defensores mais notáveis

encontram-se filiados à corrente de pensamento derivada do empirismo lógico. Portanto,

não se trata de uma negligência. Simplesmente deixei-a de fora, por tratar-se de um

domínio epistemológico já bastante explorado. Por outro lado, ele se prende muito mais à

elucidação da atividade científica através de uma descrição dos métodos, dos resultados,

e sobretudo, da linguagem da "Ciência" ou da "Razão" nas ciências, do que ao exame

propriamente crítico desta atividade, que é o objetivo das epistemologias que levei em

consideração. Estas, com efeito, preocupam-se com a história das ciências, com a

"história" da inteligência, com a "arqueologia" das ciências e com as relações da ciência

com a sociedade que a produz, interferindo tanto em sua organização interna quanto em

suas aplicações. Finalmente, estou consciente de que falar de epistemologia, hoje, já é

engajar-se num espaço polémico ou conflitante, pois sob este título apresentam-se

trabalhos que frequentemente nada têm de comum, quando não se excluem

explicitamente. Não se tratará, pois, aqui, de conciliar, mas, na medida do possível, de

colocar em ordem e de justificar: um discurso sobre as ciências é um discurso em que a

teoria se faz estratégia. E é tomando as ciências em sua "historicidade", que se elabora a

crítica epistemológica da ciência. Por outro lado, como a historicidade não é para a

filosofia um simples acidente exterior, mas algo que lhe é essencial, da mesma forma a

história das ciências se liga de muito perto à

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filosofia, pelo menos, através de sua vertente epistemológica. A história das ciências é

um tecido de juízos implícitos sobre o valor dos pensamentos e das descobertas

científicas. O papel da epistemologia é de explicitá-los.

Hilton Japiassu

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ALGUNS INSTRUMENTOS CONCEITUAIS

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I. Saber, ciência, epistemologia

O termo saber tem hoje, por força das coisas e pela realidade do uso, um sentido bem

mais amplo que o termo ciência.

a) É considerado saber, hoje em dia, todo um conjunto de conhecimentos

metodicamente adquiridos, mais-ou-menos sistematicamente organizados e

susceptíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino. Neste

sentido bastante lato, o conceito de "saber"poderá ser aplicado à aprendizagem de

ordem prática(saber fazer, saber técnico...) e, ao mesmo tempo, às determinações

de ordem propriamente intelectual e teórica. É nesse último sentido que tomamos

o termo "saber".

b) Por ciência, no sentido atual do termo, deve ser considerado o conjunto das

aquisições intelectuais, de um lado, das matemáticas, do outro, das disciplinas de

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investigação do dado natural e empírico, fazendo ou não uso das matemáticas, mas

tendendo mais ou menos à matematização.

Hoje em dia, podemos nos servir do termo "saber" para designar uma série de disciplinas

intelectuais mais ou menos estabelecidas, mas que não podem ser consideradas como

ciências, no sentido atual do termo: o saber "racional", constituído pela filosofia, ou o

saber "crente" ou "místico". Entretanto, entre as ciências e os saberes especulativos,

intercalam-se várias disciplinas cujo estatuto ainda permanece incerto: disciplinas de

erudição, história, disciplinas jurídicas, etc. Um quadro poderá ilustrar melhor:

SABER EM GERAL

SABERES "ESPECULATIVOS" (que não são ciências)

A. Racional: Filosofia

B. Crents ou religioso: Teologia

CIÊNCIAS (que não são saberes "especulativos")

A. Matemáticas

B. Empíricas e positivas

c) Por epistemologia, no sentido bem amplo do termo, podemos considerar o estudo

metódico e reflexivo do saber, de sua organização, de sua formação, de seu

desenvolvimento, de seu funcionamento e de seus produtos intelectuais. Haveria, assim,

três tipos de epistemologia:

— Epistemologia global (geral), quando se trata do saber globalmente considerado,

com a virtualidade e os problemas do conjunto de sua organização, quer sejam

"especulativos", quer "científicos".

— Epistemologia particular, quando se trata de levarem consideração um campo

particular do saber, quer seja "especulativo", quer "científico".

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— Epistemologia específica, quando se trata de levar em conta uma disciplina

intelectualmente constituída em unidade bem definida do saber, e de estudá-la de modo

próximo, detalhado e técnico, mostrando sua organização, seu funcionamento e as

possíveis relações que ela mantém com as demais disciplinas.

Fala-se também, hoje em dia, de epistemologia interna e de epistemologia derivada. A

epistemologia interna de uma ciência consiste na análise crítica que se faz dos

procedimentos de conhecimento que ela utiliza, tendo em vista estabelecer os

fundamentos desta disciplina. Enquanto tenta estabelecer uma teoria dos fundamentos

de uma ciência, a epistemologia interna tende a integrar seus resultados no domínio da

ciência analisada. A epistemologia derivada, ao contrário, visa fazer uma análise da

natureza dos procedimentos de conhecimento de uma ciência, não para fornecer-lhe um

fundamento ou intervir em seu desenvolvimento, mas para saber como esta forma de

conhecimento é possível, bem como para determinar a parte que cabe ao Sujeito e a que

cabe ao objeto no modo particular de conhecimento que caracteriza uma ciência. Donde

a necessidade de se fazer apelo às outras ciências e às suas epistemologias. É a esta

epistemologia derivada que chamamos de epistemologia geral. Dizer que esta não tem

objeto, seria o mesmo que admitir que os cientistas estão conscientes de todos os fatores

(sociais, culturais, ideológicos, filosóficos, políticos) implicados em sua prática efetiva.

II. Saber e pré-saber

Antes do surgimento de um saber ou de uma disciplina científica, há sempre uma

primeira aquisição ainda

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não científica de estados mentais já formados de modo mais ou menos natural ou

espontâneo. No nível coletivo, esses estados mentais são constitutivos de uma certa

cultura. Eles constituem as "opiniões primeiras" ou pré-noções, tendo por função

reconciliar o pensamento comum consigo mesmo, propondo certas explicações.

Podemos caracterizar tais pré-noções como um conjunto falsamente sistematizado de

juízos, constituindo representações esquemáticas e sumárias, formadas pela prática e

para a prática, obtendo sua evidência e sua "autoridade" das funções sociais que

desempenham. Como já dizia Aristóteles, "toda disciplina susceptível de se aprender, e

todo estudo comportando um processo intelectual, constituem-se a partir de um

conhecimento já presente".

Todo saber humano relaciona-se a um pré-saber. Aliás, a epistemologia contemporânea

reconhece este fato. Por exemplo, Piaget elabora uma epistemologia genética; Bachelard

escreve La formation de Vesprit scientifique; M. Foucault, em Lês mots et lês choses, faz

toda uma "arqueologia" das ciências humanas. Assim, como poderíamos caracterizar

este pré-saber relativamente ao saber que se procura ou que já foi encontrado?

a) caracterizações pejorativas: opinião, conhecimento comum ou vulgar, etc.

b) caracterizações positivas: empiria, experiência, por vezes "arte", opinião válida,

etc.

c) caracterização técnica em Foucault: "episteme": infra-estrutura cultural das

emergências do saber propriamente dito.

O pré-saber, devemos notar, é uma realidade cultural relativa ao saber ou à ciência: é

relativamente ao sa-

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ber que há um pré-saber. Trata-se de uma realidade ambígua, comportando

determinações contrárias ao saber (erro, preconceitos, ideias preconcebidas, etc.) e

recursos de conhecimento e de atividades mentais indispensáveis ao saber. É em função

desta relação do saber ao seu pré-saber que vemos definir-se na epistemologia atual

toda uma série de categorias epistemológicas significativas. Mencionemos as mais

correntes:

1. Em face da necessidade intelectual do saber e das tentativas de aproximação

deste saber, temos a categoria de obstáculos epistemológicos (analisada por

Bachelard em La formation de Vesprit scientifique): "resistência" ou "inércia" do

pensamento ao pensamento, surgindo no momento da constituição de uma ciência

como"contra-pensamento", ou num estádio superior de seu desenvolvimento como

"parada de pensamento".

2. Em face da necessidade intelectual de se definira atitude científica por oposição à

atitude pré-científica,temos a categoria de corte epistemológico (analisada por

Bachelard em Lê rationalisme appliqué, cap. VI): trata-se do momento em que uma

ciência se constitui "cortando" com sua pré-história e com seu meio ambiente

ideológico; não se trata de uma "quebra" instantânea,trazendo uma novidade

absoluta, mas de um processo complexo no decorrer do qual se constitui uma

ordem inédita do saber.

3. Para mantermos o progresso reflexivo da atitude científica, devemos fazer apelo à

categoria de vigilância epistemológica (Rationalisme appliqué, cap. IV): trata-se de

uma atitude reflexiva sobre o método científico, isto é, de uma atitude que nos leva

a apreender alógica do erro, para construir a lógica da descoberta científica como

polémica contra o erro e como esforço para submeter as verdades aproximadas da

ciência e os

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4. métodos que ela emprega a uma retificação metódica, a fim de nos libertarmos das

ideologias, das crenças, das opiniões, das certezas imediatas e chegarmos, assim,

à objetividade científica; esta não pode repousar num fundamento tão incerto

quanto a objetividade do cientista (que é sua subjetividade), mas exige o

estabelecimento das condições de um controle intersubjetivo.

5. Em face da necessidade de explicar o devir de uma ciência, ligando o

conhecimento de seu passado à análise de seu estado presente, e fazendo

depender este estado presente de todos os elementos que constituíram sua

possibilidade, devemos fazer apelo à categoria de recorrência epistemológica. É

este conceito que torna possível o desenvolvimento de uma história teórica ou de

um conhecimento teórico da história das ciências. É ele que nos permite

compreender o devir real de uma ciência, que é o objeto da epistemologia

histórica.

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O QUE É A EPISTEMOLOGIA?

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Devemos dizer, de início, que da epistemologia sabemos muito sobre aquilo que ela não

é, e pouco sobre aquilo que é ou se torna, uma vez que se trata de uma disciplina recente

e cuja construção é, por isso mesmo, lenta. Seu estatuto está longe de poder ser bem

definido, tanto em relação às ciências, entre as quais pretende instalar-se como disciplina

autónoma, quanto em relação à filosofia, de que insiste em separar-se sem se dar conta

de que uma de suas razões de ser é postulá-la como uma das exigências fundamentais

de qualquer olhar crítico e reflexivo sobre as ciências que se vêm criando e

transformando o mundo através dos produtos que não cessam de lançar em nossa

cultura. Por isso, definir o estatuto da epistemologia atual é tarefa delicada, pois os limites

do domínio de investigação dessa disciplina são muito flutuantes. Além disso, não existe

sequer um acordo quanto à natureza dos problemas que ela deve abordar. Seu campo de

pesquisa é imenso, supondo grande intimidade com as ciências, cujos princípios e resul-

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tados ela deveria estar em condições de criticar. Donde a variedade de conceitos de

epistemologia.

Comecemos pela noção mais simples. "Epistemologia" significa, etimologicamente,

discurso (logos) sobre a ciência (episteme). Apesar de parecer um termo antigo, sua

criação é recente, pois surgiu a partir do século XIX no vocabulário filosófico. Daí um

primeiro problema: se aquilo que está por baixo desse termo (seu conteúdo) só apareceu

no século passado, a que condições novas, na história das ciências e da filosofia,

corresponde este aparecimento? Será que este termo surgiu tardiamente para designar

uma antiga forma de conhecimento, contemporânea da prática dos primeiros sábios e

filósofos? Em outros termos: teria a epistemologia começado com a filosofia clássica

(com Platão, por exemplo), ou somente depois dela?

Colocando a questão nestes termos, podemos confinar a epistemologia, desde o início,

nos limites do discurso filosófico, fazendo dela uma parte deste discurso. Foi assim que

fizeram todas as epistemologias tradicionais, chamadas de filosofia das ciências ou de

teoria do conhecimento. Todavia, colocando de outra forma a questão, caracterizaremos

a epistemologia como um discurso sobre o qual o discurso primeiro da ciência deveria ser

refletido. Assim, o estatuto do discurso epistemológico, como duplo, é ambíguo: discurso

sistemático que encontraria na filosofia seus princípios e na ciência seu objeto. Seria um

discurso dividido entre duas formas de discurso racional. Por esta dupla pertença ou

filiação, a epistemologia teria por função resolver o problema geral das relações entre

filosofia e ciências. Trata-se de saber se tal problema é verdadeiro, ou se a epistemologia

não deve ir procurar suas funções, seus métodos e seu conteúdo fora da perspectiva

filosófica.

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Tradicionalmente, a epistemologia é considerada como uma disciplina especial no interior

da filosofia. Eram os filósofos que faziam as pesquisas em epistemologia. Esta era "para"

a ciência ou "sobre" a ciência, mas não era obra dos próprios cientistas. Todas as

filosofias desenvolveram espontaneamente uma teoria do conhecimento e uma filosofia

das ciências tendo por objetivo quer evidenciar os meios do conhecimento científico, quer

elucidar os objetos aos quais tal conhecimento se aplica, quer fundar a validade deste

conhecimento. Como se pode notar, este programa visa a um duplo fim: em primeiro

lugar, descobrir um conhecimento positivo: de que fala o cientista? Como fala dele? Em

segundo lugar, visa a ultrapassar os limites dessas questões, fazendo da prática científica

o objeto de um juízo: o que é uma verdade científica? Em que condições há verdade? Em

que limites podemos falar de verdade científica?

Esta concepção tradicional de epistemologia está registrada no Vocabulário de Lalande.

Para este, com efeito, a epistemologia é a filosofia das ciências, mas com um sentido

mais preciso. Ela não é, propriamente falando, o estudo dos métodos científicos, os quais

pertencem à metodologia. Também não é uma síntese, ou uma antecipação conjetural

das leis científicas (à maneira do positivismo ou do evolucionismo). Essencialmente, a

epistemologia é o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das

diversas ciências. Semelhante estudo tem por objetivo determinar a origem lógica (não

psicológica) das ciências, seu valor e seu alcance objetivos.

Como podemos depreender dessa concepção, a epistemologia usaria a ciência como

simples pretexto para filosofar. A filosofia teria com a ciência uma relação puramente

interesseira, explorando-a para seus próprios fins. Isto se torna manifesto nas três

funções clássicas atribuídas à filosofia das ciências: 1. Situar o lugar do

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conhecimento científico dentro do domínio do saber. Esta atividade, propriamente tópica

(topos: lugar), é dupla: de um lado, ela distingue as funções e os meios que são

apropriados às outras formas de conhecimento; do outro, apresenta o sistema geral de

todas essas funções. Donde o paradoxo do discurso filosófico, que se confere a si

mesmo um lugar específico no interior deste conjunto, mas permanecendo-lhe estranho,

pois cabe-lhe designar seu esquema global. Daí a questão: por que a filosofia tem este

privilégio de distribuir em torno de si os outros discursos? Não poderia o discurso

científico descobrir por si mesmo seu próprio lugar? Destas questões, podemos deduzir a

segunda função da filosofia das ciências. 2. Estabelecer os limites do conhecimento

científico: este não pode tudo conhecer. Tal limitação se exprime numa série de

oposições: ciência e sabedoria, conhecer e pensar, compreender e conhecer, etc. Estas

duas atividades, de distinção e de limitação, supõem o uso de uma categoria, que é o

produto da intervenção filosófica. 3. Buscar a natureza da ciência. Ora, a ciência não

existe. Do ponto de vista da prática dos cientistas, não há ciência em geral, mas sistemas

de conhecimentos específicos, em evolução e apropriados a seus objetos. "A" ciência

não passa de uma ficção.

Ao buscar a natureza do conhecimento científico, a filosofia das ciências não se dá por

objeto um conhecimento em sua génese e estruturação progressiva, em vias de se fazer

ou em processo, mas um conhecimento "em si", como fato. Ela se dá um objeto ideal, e

não esses objetos reais que são as diversas modalidades nas quais os cientistas

trabalham efetivamente e a partir das quais eles constroem, ao mesmo tempo, o edifício

de suas teorias e esses elos positivos que permitem seu desenvolvimento. Portanto,

trata-se de uma modalidade de epistemologia que poderíamos chamar de

"metacientífica", em

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oposição às epistemologias ditas "científicas". Ela parte de um postulado: o de que o

conhecimento é um fato que pode ser estudado em sua natureza própria e nas condições

prévias de sua existência. As questões colocadas por este tipo de epistemologia referem-

se sobretudo à possibilidade do conhecimento. Ela não se interroga sobre suas

condições concretas de elaboração, de génese, de organização, de estruturação ou de

crescimento. Daí as questões fundamentais: "como é possível o conhecimento?", "o que

é o conhecimento?"

As razões de tal atitude não devem ser procuradas apenas nas doutrinas dos grandes

filósofos, mas também no próprio pensamento científico, que por muito tempo acreditou

ter atingido um conjunto de verdades definitivas, embora incompletas, permitindo que se

interrogasse sobre "o que é o conhecimento". Ora, hoje em dia, o conhecimento passou a

ser considerado como um processo e não como um dado adquirido uma vez por todas.

Esta noção de conhecimento foi substituída por outra, que o vê antes de tudo como um

processo, como uma história que, aos poucos e incessantemente, fazem-nos captar a

realidade a ser conhecida. Devemos falar hoje de conhecimento-processo e não mais de

conhecimento-estado. Se nosso conhecimento se apresenta em devir, só conhecemos

realmente quando passamos de um conhecimento menor a um conhecimento maior. A

tarefa da epistemologia consiste em conhecer este devir e em analisar todas as etapas

de sua estruturação, chegando sempre a um conhecimento provisório, jamais acabado ou

definitivo.

É neste sentido que podemos conceituá-la como essa disciplina cuja função essencial

consiste em submeter a prática dos cientistas a uma reflexão que, diferentemente da

filosofia clássica do conhecimento, toma por objeto, não mais uma ciência feita, uma

ciência verda-

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deira de que deveríamos estabelecer as condições de possibilidade, de coerência ou os

títulos de legitimidade, mas as ciências em vias de se fazerem, em seu processo de

génese, de formação e de estruturação progressiva. Seu problema central, e que define

seu estatuto geral, consiste em estabelecer se o conhecimento poderá ser reduzido a um

puro registro, pelo Sujeito, dos dados já anteriormente organizados independentemente

dele num mundo exterior (físico ou ideal), ou se o Sujeito poderá intervir ativamente no

conhecimento dos Objetos. É da tomada de posição relativamente a este problema, que

as epistemologias se repartem em duas categorias ou orientações distintas. Portanto, de

um lado, temos as epistemologias genéticas, para as quais o acordo entre o Sujeito e o

Objeto deverá ser estabelecido progressivamente: o conhecimento deve ser analisado de

um ponto de vista dinâmico (na sua formação e em seu desenvolvimento) ou diacrônico,

quer dizer, em sua estrutura evolutiva. Por outro lado, temos as epistemologias não-

genéticas, para as quais o acordo entre o Sujeito e o Objeto deve ser feito desde a

origem, não sendo aceita a perspectiva histórica ou temporal: o conhecimento é estudado

de um ponto de vista estático ou sincrônico, quer dizer, em sua estrutura atual.

É claro que, no interior dessas duas categorias podem ser distinguidas subclasses,

conforme o acordo suponha um primado do Objeto que se impõe ao espírito

(conhecimento tirado do objeto), um primado do Sujeito (conhecimento tirado do sujeito)

que antecede ao objeto, ou uma interação entre o Sujeito e o Objeto. E as epistemologias

contemporâneas repartem-se segundo confiram o primado ao Sujeito, ao Objeto ou à

Interação entre ambos. Contudo, as epistemologias atualmente vivas e significativas

estão centradas sobre as interações do Sujeito e do Objeto: a epistemologia

fenomenológica,

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ilustrada por Husserl; a epistemologia construtivista e estruturalista, ilustrada por Piaget; a

epistemologia histórica, ilustrada por Bachelard; a epistemologia "arqueológica", ilustrada

por Foucault; a epistemologia "racionalista-crítica", ilustrada por Popper.

É necessário que se compreenda como a epistemologia se situa a si mesma

relativamente à filosofia das ciências e a outras disciplinas que lhe são mais ou menos

afins. Em outros termos, a epistemologia se situa na intersecção de preocupações e de

disciplinas bastante diversas, tanto por seus objetivos quanto por seus métodos. É muito

difícil encontrar uma lista completa e precisa dessas disciplinas. Limitemo-nos a algumas.

Trata-se, de fato, de uma divisão nas maneiras de abordar a epistemologia, isto é, de um

conjunto de vias de acesso a esta disciplina, cada uma com seu tipo próprio de

inteligibilidade, constituindo uma abordagem que não se impõe às outras.

A. A filosofia das ciências

No pano de fundo de toda abordagem epistemológica, encontramos toda uma tradição

filosófica. Todos os grandes filósofos também foram teóricos do conhecimento, quer

dizer, construíram uma teoria do conhecimento fazendo parte integrante de seu sistema

filosófico. Eles se perguntaram como a ciência é possível. Ao se referirem às ciências,

tinham em vista duas coisas: quer ultrapassá-las com métodos análogos, quer opor-se a

elas determinando seus limites e tentando abrir, com essa crítica, outros caminhos

possíveis. As diversas teorias clássicas do conhecimento eram o produto de uma reflexão

sobre as ciências, dizendo respeito aos diversos

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tipos de saber e às suas fontes: razão, imaginação, experiência, etc. No fundo, a questão

como vinha a significar em que condições. Procuravam-se, pois, as condições ou os

princípios logicamente exigidos para que a ciência se tornasse possível. Podemos

chamar essas teorias do conhecimento, partindo de uma reflexão sobre as ciências e

tentando prolongá-la numa teoria geral do conhecimento, de epistemologias

"metacientíficas": elas visam a estabelecer a relação que o Sujeito e o Objeto mantêm

entre si no ato de conhecer, mas tendo em vista determinar o valor e os limites do próprio

conhecimento, a fim de extrair sua natureza, seu mecanismo geral e seu alcance.

Todas as formas clássicas de epistemologia estiveram sempre, de um modo ou de outro,

vinculadas ao progresso das ciências. No passado, houve uma solidariedade da filosofia

com as ciências. Todos os filósofos refletiram sobre aquilo que faziam. E foi assim que se

constituiu a filosofia das ciências. O problema consiste em saber como ela ainda pode

justificar-se hoje em dia. Atualmente, são os próprios cientistas que se interessam por

refletir sobre o que fazem. De uma forma ou de outra, eles se colocam, mesmo que seja

de modo implícito, questões sobre a razão de ser dos problemas, dos métodos e dos

conceitos de suas disciplinas. Aliás, há toda uma tendência a fazer a reflexão sobre a

ciência curvar-se à disciplina científica: de um lado, fazendo-se apelo à linguagem lógica,

do outro, multiplicando-se os contatos com os fatos. Isto não quer dizer que a

epistemologia tenha cortado completamente seus laços com a filosofia: em primeiro lugar,

porque as grandes epistemologias continuam estreitamente associadas a uma filosofia;

em seguida, porque elas a sugerem ou a confirmam; finalmente, porque acima das

epistemologias "regionais" ou "internas", há problemas de epistemologia

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geral que ultrapassam a competência dos especialistas. E mesmo que possamos colocar

em dúvida a validade atual de uma epistemologia filosófica, não poderíamos negar a

importância de uma teoria da história das ciências. Esta teoria, muito solidária da

epistemologia, não perde seu caráter filosófico. Uma teoria das ciências só é

epistemológica porque a epistemologia é histórica. Assim, a historicidade é essencial ao

objeto da ciência sobre o qual é estabelecida uma reflexão que podemos chamar de

"filosofia das ciências" ou epistemologia. E a história das ciências, não sendo ela própria

uma ciência, e não tendo por isso mesmo um objeto científico, é uma das funções

principais da epistemologia.

B. A história das ciências

Esta disciplina conheceu um grande desenvolvimento no início do século XX. O grande

problema que se coloca é o do conhecimento do passado: em que medida podemos

descrever uma história das ciências sem interpretar os conhecimentos passados através

dos conhecimentos presentes? Uma história puramente descritiva corre o risco de

introduzir juízos de valor inoportunos sobre o que os cientistas "deveriam ter feito", sobre

seus "erros", etc. E hoje sabemos que fazer a história das ciências consiste em fazer a

história dos conceitos e das teorias científicas, bem como das hesitações do próprio

teórico. Trata-se de um esforço para se elucidar em que medida as noções, as atitudes

ou os métodos ultrapassados foram, em sua época, um ultra passatempo. Mais

profundamente, como nos mostrou Canguilhem, interrogar-se sobre a história das

ciências consiste em interrogar-se ao mesmo tempo sobre sua finalidade, so-

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Page 32: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

bre seu destino, sobre seu porquê, mas também sobre aquilo pelo que ela se interessa,

de que ela se ocupa, em conformidade com aquilo que ela visa. Sendo assim, a

epistemologia não pode deixar de interessar-se pela história das ciências. É através da

epistemologia que os filósofos se interessam por ela, na medida em que esta consciência

crítica dos métodos atuais de um saber adequado a seu objeto vê-se obrigada a celebrar

o poder desses métodos, lembrando os embaraços que retardaram sua conquista. Assim,

entre as razões apresentadas por Canguilhem para se fazer história das ciências:

histórica (extrínseca à ciência, entendida como discurso verificado sobre determinado

setor da experiência), científica (realizada pelos cientistas enquanto são pesquisadores e

não académicos) e filosófica, esta última é a mais importante. Porque, sem referência à

epistemologia, toda teoria do conhecimento seria uma meditação sobre o vazio. Por outro

lado, sem relação à história das ciências, a epistemologia seria uma réplica inútil da

ciência que toma como objeto de discurso.

Portanto, contrariamente aos epistemólogos que se reclamam do empirismo lógico, para

os quais a história das ciências situa-se fora do campo epistemológico, pois pertenceria

às ciências empíricas, ligadas ao conhecimento dos fatos, sustentamos que a

epistemologia é profundamente solidária das ciências, devendo alimentar-se amplamente

de seus ensinamentos. Na perspectiva positivista, a ciência só é tomada como objeto de

estudo na medida em que existe a título de fato, isto é, como ciência presente.

Contrariamente a esta posição, devemos dizer que compete à epistemologia fornecer à

história das ciências o princípio de um juízo, pois é ela que lhe ensina a última linguagem

falada por tal ciência, permitindo-lhe, assim, recuar no tempo até o momento em que esta

linguagem deixa de ser inteligível. É a epis-

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Page 33: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

temologia que nos permite discernir a história dos conhecimentos científicos que já estão

superados e a dos que permanecem atuais (ou sancionados), porque atuantes e

colocando em marcha o processo científico. A diferença entre o historiador das ciências e

o epistemólogo consiste em que o primeiro toma as ideias como fatos, ao passo que o

segundo toma os fatos como ideias*, inserindo-os num contexto de pensamentos. Em

outras palavras, o primeiro procede das origens para o presente, de sorte que a ciência

atual já está sempre anunciada no passado, ao passo que o segundo procede do

presente para o passado, de sorte que somente uma parte daquilo que ontem era

considerado como ciência pode hoje ser fundado e justificado cientificamente.

Resulta que é a epistemologia, enquanto teoria do fundamento da ciência, que faz com

que o objeto da história das ciências não se identifique com o objeto da ciência e com

que a história das ciências seja uma tomada de consciência explícita do fato de as

ciências serem discursos críticos e progressivos para a determinação daquilo que, na

experiência, deve ser tido por real. É ainda ela que faz com que o objeto da história das

ciências seja um objeto não dado, mas um objeto construído, um objeto cujo

inacabamento é essencial. Em suma, da história das ciências, filosoficamente

questionada, surge uma filosofia das ciências que outra coisa não é senão uma das

modalidades da epistemologia geral, e que constitui uma das vias de acesso à

epistemologia, próxima às que passam pela psicologia, pela sociologia e pela

metodologia dos conhecimentos.

C. A psicologia das ciências

Esta disciplina ainda está em seu início. Mas seu campo de pesquisa é vasto. Há muitas

questões episte-

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Page 34: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

mológicas que só são resolvidas através de uma psicologia do conhecimento. Por

exemplo, a seguinte questão: qual é a influência dos processos simbólicos inconscientes

sobre a produção do pensamento lógico na pesquisa científica? Estamos hoje em

presença de todo um trabalho que certamente podemos chamar de epistemologia

psicológica, visando a elucidar como se articulam as diferentes etapas do conhecimento,

desde a infância até a ciência dos adultos, associando estreitamente a análise lógica à

análise psicológica. São as pesquisas levadas a efeito por Piaget e sua equipe no Centro

Internacional de Psicologia Genética, em Genebra. Ao partirem da questão fundamental

do pensamento kantiano: "como o conhecimento é possível?", acreditam esses autores

que a psicologia genética foi criada para trazer-lhe uma resposta. Eles mostram toda a

carência da filosofia tradicional para solucionar este problema, bem como as

insuficiências, tanto das velhas certezas e respostas do empirismo, quanto das novas

soluções propostas pelo positivismo lógico. E pretendem instaurar, com a psicologia

genética, as bases sólidas de uma nova epistemologia. Esta não pode mais contentar-se

com uma fidelidade às tradições anglo-saxônias, que permanecem orientadas para um

associacionismo empirista, o que reduziria todo conhecimento a uma aquisição exógena,

a partir da experiência ou das apresentações verbais ou audiovisuais dirigidas pelos

adultos. Por outro lado, a epistemologia genética tampouco aceita a solução proposta

pelo empirismo lógico que, no processo de aquisição dos conhecimentos, continua a

fazer apelo aos fatores de ineidade e de maturação interna. A nova epistemologia precisa

ser elaborada a partir de uma concepção construtivista da aquisição dos conhecimentos:

sem pré-formação, nem exógena (empirismo) nem endógena (ineidade), mas por

contínuos ultrapassamentos das elaborações sucessivas.

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Page 35: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

Ao partir de sua concepção da psicologia genética, entendida como o estudo do

desenvolvimento das funções mentais, Piaget mostra que este desenvolvimento pode

fornecer uma explicação ou, pelo menos, um complemento de informação quanto aos

mecanismos dessas funções mentais em seu estado acabado. Por outro lado, mostra que

podemos utilizar a psicologia genética para encontrar a solução dos problemas

psicológicos gerais e dos problemas do conhecimento. Em suma, é a esta epistemologia

que devemos a maneira diferente de colocar o problema fundamental do conhecimento:

ao invés de perguntar "como o conhecimento é possível?", devemos perguntar "como

crescem os conhecimentos?" Donde podemos identificar a epistemologia da psicologia à

psicologia do conhecimento científico em geral.

D. A sociologia do conhecimento

Também esta disciplina empreende pesquisas estreitamente ligadas à epistemologia.

Assinalemos, por exemplo, o lugar que ocupam Marx, Durkheim, M. Weber, Manheim e

muitos outros sociólogos do conhecimento. É evidente que as tendências manifestadas

por esses autores em seus trabalhos são bem diferentes. Todavia, todos têm em comum

uma abordagem global: para eles, os conhecimentos não são considerados como

construções autónomas e individuais, mas como atividades sociais, inseridas num

determinado contexto sócio-cultural. O conhecimento científico é sempre tributário de um

pano de fundo ideológico ou filosófico. Também é tributário da religião, da economia, da

política e de outros fatores extracientíficos. Sendo assim, o simples fato de concebermos

a ciência ou um conhecimento científico como possíveis, já é um pressuposto que tem

origens fi-

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Page 36: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

losóficas ou ideológicas. Por conseguinte, uma sociologia do conhecimento deve ter,

entre outras funções, a de estabelecer uma ruptura entre os saberes comuns e saber

científico, interrogando-se sobre as condições sociais que tornam inevitável esta ruptura

com o conhecimento espontâneo e ideológico. Ela tem a missão de evidenciar os

pressupostos inconscientes das tradições teóricas. Ora, este fato de encontrar as

condições históricas e sociais em que se realiza a prática sociológica, para ultrapassá-

las, já é um trabalho específico da crítica epistemológica.

Nas últimas décadas, fala-se também de sociologia da ciência. Distinta da sociologia do

conhecimento, que guardou um caráter especulativo para estudar o problema de uma

determinação social do conhecimento, a sociologia da ciência dá preferência às

pesquisas concretas do condicionamento social e dos fatores não-científicos

concernentes às diversas descobertas científicas. Ela se interessa sobretudo pelo

progresso da ciência, mas tentando levar em conta as relações entre a ciência e a

sociedade: as consequências que decorrem da ciência, de seus progressos e de suas

realizações para a vida social e sua organização. Não se interessa tanto, como a

sociologia do conhecimento, pelos sistemas do conhecimento científico, mas pelos

próprios cientistas, em suas condições sociais reais de trabalho.

Daquilo que já sabemos sobre a "natureza" da epistemologia, podemos tirar algumas

conclusões:

1. O simples fato de ainda hesitarmos entre duas denominações: filosofia das ciências e

epistemologia (aliás, há várias denominações: filosofia das ciências, teoria do

conhecimento, lógica das ciências, epistemologia, etc.), já é revelador da impossibilidade

de estabelecermos um estatuto preciso e definitivo para a episte-

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Page 37: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

mologia. Ora falamos de epistemologia (termo que tem a vantagem de apresentar uma

conotação mais "séria" e "científica"), ora falamos de filosofia das ciências (termo que

apresenta a desvantagem de estar carregado de um sentido menos "sério" ou "literário").

No entanto, essas noções são complementares: a epistemologia guarda sua autonomia

relativamente à filosofia, mas permanecendo solidária a ela numa integração profunda. A

ideia salutar de autonomia não pode degenerar em preconceito isolacionista, nefasto

como todo particularismo ou separatismo absolutos. Por outro lado, não devemos

engajar-nos no sentido oposto, substituindo a autonomia indispensável.por uma

heteronomia desprovida de sentido. É preciso que confiramos à epistemologia uma

estrutura e um desenvolvimento específicos enquanto ramo do saber, sem no entanto

prescindirmos daquilo que ela tem de comum com outras disciplinas, inclusive com a

filosofia.

2. Portanto, o conceito de epistemologia não tem uma significação rigorosa e

unívoca, com um conteúdo definitivo e aceito por todos os que se interrogam como se

constitui uma teoria científica. Qual é o papel, na prática científica, do contexto social e

ideológico? Qual é a génese das ciências? Qual é sua estrutura? Como crescem os

conhecimentos? Não existe um quadro comum, onde viriam articular-se

harmoniosamente todos os trabalhos dos lógicos, dos psicólogos, dos sociólogos,etc.

Sua colaboração choca-se quase sempre com obstáculos, sendo o primeiro deles o de

conceituar sua disciplina.

3. Não é pois inútil que cada especialista se interrogue, antes de tudo, sobre a ideia

que ele faz de sua disciplina. A este respeito, várias questões se colocam.Por exemplo,

se queremos conceituar a epistemologia,

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Page 38: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

a questão inicial é a seguinte: de que fazemos a epistemologia? Em seguida, as outras

questões: Quem vai fazê-la? Por que se faz epistemologia? Como ela é feita? E isto

porque o objeto de uma disciplina não consiste apenas na matéria própria sobre a qual se

aplica seu estudo, naquilo pelo que ela se interessa ou naquilo de que ela se ocupa, mas

em sua intenção, seu desígnio ou seu objetivo, quer dizer, em sua finalidade, em sua

destinação e em seu porquê. E sabemos que não encontramos hoje a unidade de uma

disciplina na direção de seu objeto, pois toda ciência se dá mais ou menos o seu objeto: é

a ciência que constitui e constrói seu objeto pela invenção de um método, apropriando-

se, assim, de seu domínio.

4. O conceito de epistemologia é, pois, empregado de modo bastante flexível. Segundo

os autores, com seus pressupostos filosóficos ou ideológicos, e em conformidade com os

países e os costumes, ele serve para designar, quer uma teoria geral do conhecimento

(de natureza mais ou menos filosófica), quer estudos mais restritos interrogando-se sobre

a génese e a estrutura das ciências, tentando descobrir as leis de crescimento dos

conhecimentos, quer uma análise lógica da linguagem científica, quer, enfim, o exame

das condições reais de produção dos conhecimentos científicos. Qualquer que seja a

acepção que dermos ao termo "epistemologia", a verdade é que ela não pode e nem

pretende impor dogmas aos cientistas. Não pretende ser um sistema, a priori, dogmático,

ditando autoritariamente o que deveria ser o conhecimento científico. Seu papel é o de

estudar a génese e a estrutura dos conhecimentos científicos. Mais precisamente, o de

tentar pesquisar as leis reais de produção desses conhecimentos. E ela procura estudar

esta produção dos conhecimentos, tanto do ponto de vista lógico, quanto dos pontos de

vista linguístico, sociológico, ideo-

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Page 39: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

lógico, etc. Daí seu caráter de disciplina interdisciplinar. E como as ciências nascem e

evoluem em circunstâncias históricas bem determinadas, cabe à epistemologia

perguntar-se pelas relações existentes entre a ciência e a sociedade, entre a ciência e as

instituições científicas, entre as diversas ciências, etc.

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Page 40: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

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Page 41: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

A EPISTEMOLOGIA GENÉTICA DE J. PIAGET

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Page 43: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

Como o esforço da epistemologia global, referente às ciências humanas, está em estreita

relação com a concepção que Jean Piaget faz da própria epistemologia, parece-nos

interessante compreender bem qual o sentido e o alcance dessa epistemologia. As ideias

essenciais da epistemologia genética, tal como ela é praticada por Piaget, estão expostas

em três obras: Introduction à l'épistémologie génétique (3 volumes, P.U.F., Paris, 1950),

Logique et connaissance scientifique (Encyclopédie de Ia Plêiade, Gallimard, Paris, 1967)

e L'épistémologie des sciences de l’homme (Gallimard, Paris, 1970; tradução portuguesa

da Livraria Bertrand).

Podemos dizer que a epistemologia genética é a extensão, a todo o campo das ciências

humanas, da metodologia que possibilitou a Piaget a realização de excelentes trabalhos

sobre o desenvolvimento da criança: a formação do número, o desenvolvimento da

inteligência, a aquisição da linguagem, a formação do juízo moral, etc. A esta extensão,

Piaget trabalha há vinte anos, com o

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Page 44: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

Centro Internacional de Epistemologia Genética de Genebra.

A epistemologia pode, então, ser definida como o "estudo da constituição dos

conhecimentos válidos". O termo "constituição" recobre ao mesmo tempo as "condições

de acesso", isto é, os processos de aquisição dos conhecimentos, e as "condições

propriamente constitutivas", quer dizer, as condições formais ou experimentais que dizem

respeito à validade dos conhecimentos, e as condições que dizem respeito, quer às

contribuições do sujeito, quer às do objeto no processo de estruturação do conhecimento.

Portanto, para Piaget, só há ciência quando estiverem reunidos esses três elementos: 1.

elaboração de "fatos"; 2. formalização lógico-matemática; 3. controle experimental. Por

conseguinte, ao lado dos métodos de análise direta tentando, por ocasião da crise de um

saber implicando a reformulação de certos conceitos, extrair as condições de

conhecimento por simples análise lógica; e ao lado dos métodos de análise normalizante,

tais como os do empirismo lógico, que examinam a coordenação entre a formalização e a

experiência, Piaget interessou-se particularmente pelos métodos de análise genética, que

procuram compreender os processos do conhecimento científico em função de seu

desenvolvimento e de sua própria formação: quer segundo uma "sociogênese" dos

conhecimentos, relativa a seu desenvolvimento histórico no interior das sociedades e à

sua transmissão cultural (métodos histórico-críticos), quer segundo uma "psicogênese"

das noções e estruturas operatórias elementares constituindo-se no decorrer do

desenvolvimento dos indivíduos. É sobre este uso reflexivo da psicogênese que mais se

destacou a contribuição de Piaget: procurando fundar a construção de uma estrutura de

conhecimento ou de ação em interação com as atividades do sujeito constituinte, a

psicogênese cul-

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Page 45: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

mina, de fato, em análises genéticas formalizadas e, por conseguinte, permite a

descoberta de um estatuto científico para as principais estruturas operatórias das ciências

humanas. Assim, requer-se sistematicamente a cooperação interdisciplinar dos lógicos,

dos matemáticos, dos psicólogos e dos especialistas da aplicação técnica das noções

próprias ao saber em questão.

Desde o início, Piaget recusa uma epistemologia que seja filosófica e pretenda constituir

uma teoria do conhecimento impondo-se a priori ao sistema das ciências. Para ele, a

especulação apresenta dois aspectos: a) o primeiro diz respeito à reflexão filosófica. Esta,

por natureza, é apreciativa, interpretativa, valorizadora. E o homem sempre quer integrar

os saberes objetivos numa visão de conjunto que lhe indique seu lugar dentro do mundo;

b) o segundo aspecto diz respeito ao esforço para se criar modelos incertos do existente

nos domínios em que a ciência se cala. Portanto, a filosofia faz apelo a certas pontes

provisórias entre os domínios controlados pela ciência. Por sua vez, a ciência procura

substituir essas pontes, tentando aposentar esse segundo tipo de especulação, que ela

tenta progressivamente tomar da filosofia. Porque tudo o que devemos dizer do mundo,

quando isto é possível, deverá ser dito cientificamente, e não especulativamente. Embora

ligados, esses dois aspectos da especulação devem ser diferenciados, pois só o primeiro

pode assegurar a perenidade da filosofia como axiologia.

Portanto, Piaget defende a constituição de uma epistemologia científica, livre de toda

teoria filosófica ou de qualquer contaminação ideológica do conhecimento. Por isso, não

é tarefa da epistemologia, perguntar-se sobre "o que é o conhecimento", da mesma forma

como a tarefa da geometria não consiste em se perguntar sobre "o que é o espaço". A

epistemologia deve, pois, consti-

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Page 46: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

tuir-se cientificamente, procurando situar-se in medias res, isto é, em presença das

ciências que existem efetivamente. Ora, as ciências estão num constante

desenvolvimento. E é este próprio desenvolvimento que coloca de modo real a questão

epistemológica fundamental: como o conhecimento científico, quando bem delimitado,

procedeu de um estado de menor conhecimento a um estado considerado de maior

conhecimento? Donde a definição complementar da epistemologia: "o estudo da

passagem dos estados de menor conhecimento aos estados de conhecimento mais

desenvolvidos". E esta definição já contém a noção do método genético: toda ciência está

em desenvolvimento progressivo indefinido de estados sucessivos de conhecimento, isto

é, deve sempre ser considerado, metodologicamente, como relativo a um certo estado

anterior de menor conhecimento e como susceptível de constituir este estado anterior em

referência a um conhecimento melhor elaborado. Segue-se que o método genético tem

por objetivo estudar os conhecimentos em função de sua construção real, bem como

considerar todo conhecimento como relativo a um certo nível do mecanismo desta

construção (Intr., vol. I, pp. 11-13). Ora, quando praticamos o método genético,

verificamos que é preciso pensar as ciências, não somente de um ponto de vista

psicológico no sentido estrito, mas também dos pontos de vista análogos aos da biologia

estudando os seres vivos e o sistema da vida, A epistemologia, então, outra coisa não é

senão esta espécie de anatomia comparada das estruturas mentais do sujeito

cognoscente. Assim, o estudo comparado das estruturas mentais que intervém no

desenvolvimento científico pode organizar-se no que Piaget chama de o método

"histórico-crítico". Todavia, da mesma forma que a biologia associa à história natural da

evolução da vida e à descrição da "filogênese" das grandes formas de organiza-

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Page 47: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

ção da vida, uma embriologia que é o estudo da "onto-gênese" individual do organismo

vivo, assim também a epistemologia genética tem necessidade de acrescentar, ao

primeiro método, um segundo, cuja função é a de constituir uma embriologia mental. Esta

embriologia da razão pode desempenhar, relativamente a uma epistemologia genética, o

mesmo papel que a embriologia do organismo relativamente à anatomia comparada ou

às teorias da evolução. E é deste ponto de vista que a psicologia científica deve trazer

uma contribuição essencial à epistemologia. Em última análise, o método completo da

epistemologia genética é constituído por uma íntima colaboração dos métodos histórico-

críticos e psicogenéticos. O que esta colaboração nós permite extrair, no que diz respeito

às noções ou conjuntos de operações intelectuais, é uma lei de construção, isto é, o

sistema operatório em sua constituição progressiva. Ora, diz Piaget, só o método

psicogenético é capaz de fornecer o conhecimento dos estágios elementares dessa

constituição progressiva, embora nunca alcance o primeiro. O método histórico-crítico,

por sua vez, só fornece o conhecimento dos estágios intermediários, porém, superiores,

embora nunca atinja o último (Ibid., pp. 16-18).

Ao falar deste método psicológico engajado na epistemologia, Piaget faz questão de

precisar que ele deve ser uma "psicologia da ação", muito mais do que uma "psicologia

da sensação", isto é, um estudo da génese das operações do pensamento e de sua

estabilização lógica. É deste modo que a epistemologia e seu método genético poderão

tratar do problema que Piaget declara estar no centro do método próprio à epistemologia

genética, a saber, o problema da junção entre ó devir mental e a norma permanente, ou

entre a exigência de constan-

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Page 48: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

te revisão e a necessidade de apoiar-se em certa estabilidade normativa. Por "norma",

devemos entender, no caso, aquilo que se impõe como verdade científica e que, a este

título, deve reger o consentimento e a afirmação dos que são formados na ciência.

Depois de criticar as concepções puramente contemplativas das normas, apoiadas numa

verdade divina, transcendental ou intuitiva, Piaget afirma que, do ponto de vista da

análise genética, a ação precede o pensamento. O pensamento, para ele, consiste numa

composição sempre mais rica e coerente das operações que prolongam as ações,

interiorizando-as. Deste ponto de vista, as normas de verdade devem exprimir, antes de

tudo, a eficácia das ações individuais ou coletivas; em seguida, traduzem a eficácia das

operações; finalmente, expressam a coerência do pensamento formal. Desta forma, o

método genético não pode incorrer na censura de ignorar o normativo, pois, desde a ação

efetiva até as operações mais formalizadas, ele segue passo a passo a constituição de

normas incessantemente renovadas. Estamos, assim, diante de uma epistemologia

genética que poderá ser considerada, para retomarmos uma expressão que não é de

Piaget, como o estudo da ciência e do pensamento enquanto "prática teórica". Porque,

aquilo que este estudo tem em vista, outra coisa não é senão a ação do pensamento. E é

como saber da ação (intelectual e pensante) que a epistemologia deve começar a

"operar".

No entanto, ao recusar uma epistemologia que seja "maculada" pela presença da

filosofia, Piaget deixa a porta aberta a um momento da epistemologia que, a partir de

estudos particulares já feitos a propósito das diversas ciências, conduz a uma

epistemologia geral, que ele chama de "derivada". As epistemologias específicas,

internas e regionais, devem situar-se umas em relação às outras num campo de conjunto

de possibilidades da

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epistemologia, mesmo que, sendo constituída uma pluralidade de ciências, se coloque o

problema de encontrarmos uma "classificação" das disciplinas e de levarmos em

consideração as interconexões existentes entre as várias ciências, quer dizer, suas

relações interdisciplinares. Piaget foi levado a propor seu próprio sistema das ciências, tal

como sua prática epistemológica o levou a construí-lo e a compreendê-lo, comparando-o

com outras sistematizações do passado ou contemporâneas (Plêiade, pp. 1151-1172). A

reflexão que ele faz sobre a prática epistemológica, especialmente sobre sua experiência

de psicólogo estudando a génese das noções fundamentais da lógica e das matemáticas,

leva-o a reconhecer uma maneira de interconexão cíclica entre as ciências e a propor um

sistema cíclico das ciências (Ibid., pp. 1172-1224). Eis, em síntese, seu sistema:

I LÓGICA E CIÊNCIAS MATEMÁTICAS

II CIÊNCIAS DA NATUREZA FÍSICA

CIÊNCIAS DA IDEALIDADE CIÊNCIAS DA REALIDADE III CIÊNCIAS DA VIDA

IV PSICOLOGIA

A flecha ascendente à direita indica o "círculo epistemológico": a Psicologia pressupõe as

ciências da vida, as ciências da natureza, etc. Contudo, ao fazer-se epistemólogo, o

psicólogo deve voltar aos próprios fundamentos de toda ciência, a começar pela Lógica e

pelas Matemáticas. Porque o círculo é inevitável e natural, nada tendo de vicioso. Ele é,

no nível da ciência, a transposição e a realização concreta do círculo do conhecimento,

na medida em que o Sujeito só se conhece por intermé-

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dio do Objeto, e só conhece o Objeto através de sua atividade de Sujeito. Estamos,

assim, diante do que Piaget chama de um "círculo vivo". Trata-fie de um tipo de círculo

que comporta desenvolvimento, crescimento e alargamento indefinidos. Todo o processo

poderia ser imaginado como uma espécie de espiral. Desta forma, a epistemologia

genética permanecerá essencialmente "aberta". E são as leis desta construção circular

de conjunto que constituem o "limite" geral dos desenvolvimentos particulares estudados

pela epistemologia genética.

Foram essas considerações que levaram Piaget a distinguir dois tipos de epistemologia:

epistemologia genética restrita e epistemologia genética generalizada. A primeira consiste

em fazer uma análise psicogenética ou histórico-crítica sobre os modos de crescimento

dos conhecimentos, apoiando-se sobre um sistema de referência constituído pelo estado

do saber admitido no momento considerado. A segunda consiste em estudar o sistema

de referência, porém situado dentro de um processo genético ou histórico. Esta

concepção pode ser precisada com exemplos. Com efeito, Piaget, com os recursos de

seu saber psicológico, estuda, com objetivos claramente epistemológicos, a génese da

noção de número na criança. Ele faz epistemologia genética no sentido restrito. Michel

Foucault, ao estudar em Les mots et les choses um momento do devir das ciências

humanas, faz o estudo da relação existente nos séculos XVII e XVIII entre o estado de

base dos conhecimentos e da cultura da época e o que se realiza nas ciências humanas.

E isto, para compreender como, a partir daí, as ciências humanas se constituíram nas

formas que elas têm presentemente. Seu método, não psicogenético, mas histórico-

crítico (ele prefere chamá-lo de "arqueológico"), pode ser compreendido como um método

de epistemologia genética "generalizada" (no sentido de Piaget). Porque o

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que ele toma em consideração é o modo pelo qual os textos do século XVII e do século

XVIII, referentes à economia, à linguagem ..., atestam uma certa visão epistemológica

desses diversos domínios do saber e que não é mais a nossa. O objetivo de Piaget,

quando faz certo número de considerações histórico-críticas, é o de reinserir as

epistemologias regionais e restritas na perspectiva de uma epistemologia "generalizada".

Esta adquire, cada vez mais, um caráter filosófico ou quase-filosófico.

Esta apresentação sintética da epistemologia genética possibilita-nos fazer-algumas

precisões:

1. Toda a obra de Piaget visa a constituição de uma epistemologia capaz de fazer a

transição entre a Psicologia genética e a Epistemologia geral, que ele espera enriquecer

pela consideração do desenvolvimento. Sua convicção fundamental é a de que os

conhecimentos resultam de uma construção. Eles constituem, pois, uma criação contínua

de estruturas sempre novas. Podemos sintetizar o programa e os métodos dessa

epistemologia dizendo que ela é comandada por um duplo imperativo: a) de um lado, visa

a garantir a colaboração entre psicólogos do desenvolvimento, lógicos e especialistas das

diversas disciplinas científicas que se interessam por problemas de ordem

epistemológica: ela é essencialmente interdisciplinar; b) do outro, visa a reduzir esses

problemas a formulações que possam ser tratadas pelos métodos da psicologia

experimental. Portanto, trata-se de um "projeto" eminentemente interdisciplinar que deve

substituir todos os tipos de ensinos compartimentados das ciências. Para que seja

realizado tal empreendimento, é necessário que se estabeleça uma estreita união do

Ensino e da Pesquisa, especialmente para a solução dos problemas novos. Além disso, é

indispensável que as pesquisas sejam feitas por uma "equipe interdisciplinar", capaz de

realizar uma colaboração entre as disciplinas

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e entre os setores heterogéneos de uma ciência, de tal forma que haja certa

reciprocidade nas trocas e os pesquisadores venham a enriquecer-se mutuamente.

Todavia, convém que se distinga um enfoque meramente "multidisciplinar", de que

dependem as aproximações concretas, das pesquisas propriamente "interdisciplinares?

Estas, segundo Piaget, exigem um nível de abstração muito elevado, pois trata-se de

extrair das ciências humanas, por exemplo, os seus mecanismos comuns, e não somente

algumas colaborações episódicas e sem integração metodológica.

2. Não sendo completamente hostil à filosofia, pois compreende sua necessidade como

reflexão valorizadora da relação homem-mundo, e não nega sua legitimidade ou sua

importância ("ela é mesmo indispensável a todo homem completo, por mais cientista que

ele seja"), Piaget fica surpreso com a fraqueza das diversas teorias filosóficas do

conhecimento, pois em geral elas se contradizem, sem haver nenhum critério objetivo

que nos permita decidir. Elas permanecem especulativas. Trata-se de refletir sobre a

ciência de modo objetivo, com critérios permitindo um "controle intersubjetivo".

Diferentemente do positivismo, que empreende uma cruzada contra todo tipo de

especulação, e condena em bloco toda filosofia, Piaget acha que o cientista que não

passa pela filosofia permanece portador de uma ''doença incurável". E é por isso que ele

se insurge também contra o positivismo, que se prende única e exclusivamente aos fatos

"observáveis". Insurge-se, também, contra a especulação que não seja capaz de fornecer

instrumentos de controle e de verificação.

Por isso, Piaget concebe a possibilidade de uma passagem da especulação a uma

ciência experimental, no domínio da teoria do conhecimento. Entre a reconstituição

especulativa e a teoria científica, quando se

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trata de criar um modelo dos mecanismos do conhecimento, ele não vê um abismo, como

pretende o neopositivismo. Há, isto sim, um limiar a ser transposto, porque a especulação

se elabora a partir de dados que são tomados de empréstimo a outros domínios. O

grande mérito de Piaget, e que marca seu nome na história, é o de ter criado uma base

de experimentação própria para a epistemologia. Ele conseguiu isolar os problemas

concernentes à articulação de base do crescimento dos conhecimentos, e a formulá-los

numa linguagem possibilitando o controle experimental. Fazendo isto, conseguiu inventar

modalidades de experimentação e subtrair a teoria do crescimento dos conhecimentos à

reconstituição meramente histórico-crítica. Assim, sua psicologia da inteligência, ou da

criança, por mais importante que ela possa parecer, é apenas um aspecto derivado (e

secundário) de um empreendimento epistemológico.

3. O que Piaget prova experimentalmente, é que há dois tipos de abstração bem

diferentes. Em primeiro lugar, há a abstração de tipo aristotélico, que leva em conta

certos aspectos da realidade e descarta outros: ela dá origem a um esquema do

existente, mas nunca se transforma em operações de pensamento. Em segundo lugar, há

a abstração réfléchissante, tendo por função extrair as estruturas do pensamento, os

esquemas assimiladores e seu funcionamento específico. Este segundo tipo de

abstração, cujo papel é o de coordenar a organização, liga-se aos dados, da mesma

forma que o primeiro tipo. Contudo, ao passo que a abstração do primeiro tipo é uma

assimilação dos dados a estruturas mentais existentes, a abstração réfléchissante é a

própria organização das estruturas mentais tendo em vista sua acomodação. Uma é

assimiladora e representa o aspecto estático do conhecimento; a outra é acomodadora e

representa seu aspecto dinâmico. Nesta última abstra-

53

Page 54: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

ção, o Objeto desempenha o papel apenas de "ocasião", quer dizer, não se inscreve tal

qual, com suas qualidades físicas, neste tipo de abstração, pois esta é uma modalidade

de organização, de coordenação das abstrações simples. A coordenação das ações do

Sujeito é de caráter lógico-matemático. Ela se prolonga em "operadores" que efetuam

uma descentração relativamente ao sujeito individual, dando origem ao sujeito do

conhecimento, o "Sujeito epistêmico" (aquilo que há de comum nos vários sujeitos

individuais ou egocêntricos).

4. Piaget estabelece que o ponto de partida do conhecimento é o conhecimento sensorio-

motriz. Quatro níveis irão formar a escala de maturação do esquematismo mental: 1. a

ausência de diferenciação entre á atividade, real ou imaginária, exercida sobre o objeto

(reunir, dissociar, ordenar, mudar de ordem, etc.); 2. as operações concretas, com

diferenciação dos dois aspectos mencionados; 3. as operações formais, com

diferenciação tão forte que as coordenações extrapolam e precedem a realidade

experimental, de que se liberam por completo; 4. as construções axiomatizadas, que

transformam as coordenações reais em simples casos particulares das coordenações

possíveis. Portanto, a criança adquire seus conhecimentos agindo sobre os objetos.

Fazendo isto, ela não organiza apenas os objetos, mas (mentalmente e de modo não

consciente) sua própria atividade. E esta é a fonte de duas espécies de organização: a

primeira, referente ao objeto, a segunda, a ela mesma. O conhecimento se realiza pela

dialética dessas duas estruturas de transformação, e são elas que a inteligência elabora

enquanto é um prolongamento da ação. Por isso, todo conhecimento comporta um

aspecto de elaboração nova. E o problema da epistemologia consiste em conciliar essas

criações de novidades com o duplo fato: no plano formal, as novidades são

acompanhadas de necessidades previa-

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Page 55: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

mente elaboradas; no plano real, elas permitem a conquista do real, quer dizer, da

objetividade. Portanto, a epistemologia genética visa a remontar às fontes, isto é, à

própria gênese dos conhecimentos, pois a epistemologia tradicional só conhecia seus

estados superiores. O próprio da epistemologia genética consiste em procurar descobrir e

extrair as raízes dos diversos conhecimentos, desde suas formas mais elementares, e

seguir seu desenvolvimento através dos níveis ulteriores, até o pensamento científico

inclusive. No fundo, o próprio Piaget confessa que sua epistemologia é "naturalista" sem

ser "positivista"; que ela evidencia a atividade do sujeito sem ser "idealista"; que ela se

apoia sobre o objeto, mas considerando-o como um limite. O importante é que ela deve

ver no conhecimento, sobretudo, uma construção contínua.

5. Diferentemente da epistemologia lógica, que utiliza métodos estritamente

formalizantes, para fazer um estudo da linguagem científica e uma pesquisa das regras

lógicas que devem presidir a todo enunciado correto (positivismo anglo-saxônico); e

diferentemente da epistemologia histórica, que privilegia os métodos histórico-cri ticos

para a elucidação da atividade científica a partir de uma análise, não só da história das

ciências e de suas revoluções epistemológicas, mas das próprias dé-marches do espírito

científico (Bachelard, Canguilhem, Foucault), a epistemologia genética de Piaget tem por

objetivo central a elucidação da atividade científica a partir de uma psicologia da

inteligência. Esta orientação epistemológica recebeu por caução uma enorme quantidade

de pesquisas experimentais acumuladas pelos psicólogos há quase um século. Ela

encontrou em Piaget e em seus colaboradores de Genebra intérpretes não só

meticulosos mas realmente competentes. Qual a ótica dessa "escola"? Não se trata, de

forma alguma, de acei-

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Page 56: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

tar o fato da linguagem científica ou comum, a fim de se medir sua validade relativamente

à sua simplicidade, à sua coerência, à sua exaustividade ou aceitabilidade banal. A

epistemologia genética não hesita em perguntar-se como a inteligência se constrói, desde

os primeiros agenciamentos práticos e perceptivos da criança "trabalhando" sobre um

objeto ou sobre o domínio de suas coordenações corporais, até a elaboração dos

conceitos que estão na origem dos conhecimentos da física, da matemática, etc.

6. O que mais poderia ser contestado à epistemologia de Piaget é o fato de ela ser,

paradoxalmente, profundamente kantiana. Kant, com efeito, para justificar a física

elaborada por Galileu e Newton, no fim do século XVIII, construiu toda uma teoria do

conhecimento procurando evidenciar o fato de que o objeto conhecido seria ao mesmo

tempo um dado e um construído. Na perspectiva kantiana, haveria o dado (o irreversível)

que somente a experiência podia cernir, sem jamais poder reduzi-lo por completo. Por

outro lado, haveria também uma organização prévia, a priori, inconsciente deste dado,

proveniente da natureza mesma do sujeito cognoscente. Ora, o estruturalismo genético e

construtivista de Piaget parece esforçar-se por determinar experimentalmente as

condições reais em que se constrói tal sujeito cognoscente. Para tanto, ele luta contra "as

sabedorias e ilusões da filosofia", pois estas se dão arbitrariamente uma configuração da

relação Sujeito-Objeto afirmada como eterna, como se ela pertencesse ao mesmo tempo

a uma ordem preestabelecida da natureza e do próprio homem. Por isso, Piaget tenta

mostrar como, geração após geração, a filosofia se construiu a partir de uma experiência

comum elementar. O exemplo que ele toma é a noção de causalidade. Ele afirma

categoricamente que esta noção não pode ser nem inata, pois não pertence à essência

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Page 57: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

do espírito humano, nem pode ser .o resultado ou efeito que a ordem natural impõe a

uma consciência autêntica. A causalidade é o resultado de um longo trabalho operado

pela criança, em seus gestos, em suas palavras, em suas coordenações sensório-

motrizes e, posteriormente, psicolinguísticas. E não são poucas as experiências

invocadas por Piaget para comprovar este fato. O que ele pretende mostrar é que é a

inteligência que se monta, que se estrutura a si mesma, na dialética dos ensaios e dos

erros, nas retificações que introduzem as diferenças, nos fracassos que fazem surgir as

contradições e nas sínteses que promovem os progressos. E é esta inteligência que está

na origem mesma da atividade científica. Os conceitos fundamentais da ciência têm por

causa real os movimentos de exploração da criança. É nesses movimentos que ela

procura reconhecer-se para definir-se e poder agir.

7. Apesar do número impressionante das experiências, cada uma sendo convincente,

quando tomada de per si, temos o direito de nos perguntar: afinal de contas, de que se

trata? E daí? Piaget responde que se trata de mostrar que todos os conceitos

determinantes das ciências passadas, presentes e futuras devem inscrever-se numa

necessidade psicológica, experimentalmente controlável, contanto que se adotem bons

critérios de experimentação e de controle. Sem dúvida, é muito interessante sabermos

como uma criança, hoje em dia, chega a conhecer a noção de causalidade. É até muito

útil para aqueles que se ocupam de psicopedagogia e que se dedicam ao ensino.

Todavia, podemos perguntar: em que tudo isso pode esclarecer o funcionamento da

ciência ou da não-ciência? De que adianta o deslocamento do problema para a criança

"manipuladora"? Rebaixar o problema ao nível da atividade pueril explica tanto quanto

elevá-lo- o nível da metalinguagem, quer dizer, pouca

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Page 58: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

coisa. Os homens, em suas atividades sociais racionais, não podem ser considerados

como "crianças grandes", como as crianças não podem ser tratadas como "pequenos

adultos". Eles são produtos sociais. A cultura não se deixa reduzir, nem pela inscrição

lógica ou linguística, nem por sua origem biopsicológica. Tanto a epistemologia lógica

quanto a genética deixam sem solução o problema essencial do conhecimento científico:

o do lugar e o do funcionamento das pesquisas científicas dentro da "ordem", dentro do

contexto sócio-cultural vigente, em que se situam as sociedades elaboradoras desse

conhecimento. Essas pesquisas se integram, de modo disparatado, em iodas as

formações sociais e em iodos os tipos de poder: elas participam ativamente do

desenvolvimento sócio-político-econômico (real ou aparente) das forças produtoras e

formam, assim, o eixo de nossa modernidade, de nossa racionalidade contemporânea.

8. Embora a epistemologia de Piaget seja uma tentativa de superar o positivismo sob

todas as suas formas, não podemos negar que ela se inscreve no prolongamento da

tradição positivista que, no domínio da teoria do conhecimento, pretende elaborar uma

"ciência da ciência" ou uma "ciência" da organização do trabalho científico, batizando com

o nome de "epistemologia científica" esta teoria do conhecimento preservada de toda

contaminação filosófica. Ela seria interna, porque nasceria no próprio interior da atividade

científica. Ora, aceitar a "cientificidade" da epistemologia, é aceitar, conscientemente ou

não, a possibilidade de se criar uma "ciência da ciência", uma metaciência que se situa

num nível superior relativamente à ciência que toma por objeto. O pressuposto filosófico,

presente no projeto de qualquer "ciência da ciência", não pode ser dissimulado: o simples

fato de se Justificar a utilidade pedagógica e

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Page 59: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

social de uma "epistemologia científica", e de procurar-se definir seu estatuto científico, já

é uma atividade filosófica. Talvez possamos encontrar aqui a razão pela qual os próprios

empiristas consideram Piaget, ora como "neomaturacionista", ora como "neo-

ambientalista", porque sua epistemologia ignora, sistematicamente, os fatores sócio-

culturais na determinação das condutas e considera que o desenvolvimento do

conhecimento se processa unicamente a partir "do interior" da própria ciência. A esta

acusação, Piaget reage dizendo que não é nem uma coisa nem outra, pois acha que os

conhecimentos resultam de uma criação contínua de estruturas novas. Quanto às

condições sócio-culturais influenciando no processo de conhecimento, Piaget estima .que

elas são apenas "ocasião" de funcionamento dos conhecimentos, portanto, de seu

desenvolvimento. Para ele, a função primordial da inteligência é de compreender e*de

inventar, isto é, de construir estruturas, estruturando o real. O problema da inteligência

liga-se ao problema fundamental da epistemologia: mostrar que os conhecimentos não

constituem cópias do real (positivismo), mas assimilações do real a estruturas de

transformação. É por isso que o conhecimento deriva das ações, quer dizer, de uma

assimilação do real às coordenações necessárias e gerais da ação. Porque conhecer um

objeto é agir sobre ele e transformá-lo para se descobrir os mecanismos dessa

transformação, em ligação com as ações transformadoras. Contudo, é um fato que Piaget

não fornece elementos para se analisar o papel real desempenhado pela ciência nas

diversas coletividades em que ela se insere. Ele parece considerar a ciência como se

pudéssemos ter dela uma definição "neutra". Sem dúvida, ela é uma pesquisa metódica

do saber. Mas também é um modo de se interpretar o mundo. É uma instituição, com

suas academias, seus grupos de pressão, seus preconceitos e

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suas recompensas oficiais. Por outro lado, é um métier, exercido em condições do

trabalho científico onde aparecem problemas sociológicos e políticos. Não há "ciência"

autónoma, pura, absoluta. Há uma racionalidade científica. Mas a "razão" científica não é

imutável. Suas normas são históricas e condicionadas e, por isso mesmo, evoluem. O

cientista também se serve de sua imaginação. E não está absolutamente ao abrigo de

toda contaminação ideológica, nem tampouco das pressões sociais, dos desvios

passionais ou das modas. As pesquisas dependem hoje de um ministério, estão

intimamente ligadas à indústria, são financiadas por organismos não-neutros. Não se

pode mais fazer ciência com a boa consciência de um filatelista. Nem tampouco se deve

crer que os problemas "morais" da ciência se reduzem a casos bem delimitados. Não se

pode negar mais que as pesquisas científicas estão substancialmente integradas à

Sociedade. Por isso, a questão que se coloca não é mais: "em que pé anda a ciência?",

mas: "onde está a ciência?" Relata-se, demonstra-se, prova-se, no interior de dispositivos

já fixos, sendo o critério a alternativa: verdade-falsidade. O problema parece formular-se

hoje assim: quem diz? quem demonstra? quem prova? por quê? para quê?

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Page 61: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

A EPISTEMOLOGIA HISTÓRICA DE G. BACHELARD

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Page 63: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

Para compreendermos o projeto epistemológico de G. Bachelard, é indispensável que

situemos seu pensamento dentro do contexto em que se constroem as ciências hoje em

dia. Porque toda a sua obra está marcada por uma reflexão sobre as filosofias implícitas

nas práticas efetivas dos cientistas. Numa palavra, o projeto de Bachelard consiste "em

dar às ciências a filosofia que elas merecem". Não podemos negar que vivemos um

momento de triunfo da ciência. Por outro lado, assistimos hoje a um verdadeiro

questionamento da ciência. Poderá ela trazer a felicidade para o homem? Está em

condições de vencer o sofrimento? Os benefícios que ela proporciona não estariam em

grande parte anulados pelas desgraças que engendra? Afinal, o que vem a ser a ciência?

Quais são seus métodos? Qual o valor dos resultados que ela atinge? Não é um fato

evidente que ela aliena o homem?

Estas e outras questões entram no campo de investigações da epistemologia. Uma

reflexão séria sobre a

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Page 64: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

ciência não pode deixar de constatar que fazer ciência é algo extremamente difícil: ela se

desenvolve com uma força explosiva e o homem atual encontra-se, cotidiana-mente,

diante de técnicas oriundas da ciência "fundamental", e que, fundamentalmente, ele não

compreende. Isto constitui para ele uma causa de profunda humilhação. O homem

comum nada sabe do que se passa no reino da ciência, a não ser certas "informações"

mais ou menos neo-esotéricas que se divulgam em publicações onde encontramos uma

mescla de magia, de pseudociência e de charlatanismo. E é por causa dessa humilhação

diante do poder da ciência que o homem comum se entrega a todos os tipos de

compensações mais ou menos douradas ou rotuladas de científicas. Por outro lado, tudo

indica que, diante da ciência objetiva, o homem comum é um estrangeiro. E não são

poucas as teorias científicas que tentam mostrar que o homem ocupa um lugar apenas

infinitesimal no universo, e que este lugar nem mesmo é necessário, mas apenas casual.

Enfim, podemos constatar um hiato crescente entre o conhecimento objetivo (científico) e

toda espécie de sentimentos ou de teoria dos valores. Por definição, a ciência ignora os

valores. Portanto, não pode conhecê-los. Nem tampouco preocupa-se com a imaginação

criadora. Por isso, não pode haver nem ética, nem estética objetivas. E como a ética e a

arte são indispensáveis ao homem, são os filósofos e os "literatos" que vão elaborá-las,

não os cientistas. Neste nível, os cientistas não conseguem propor soluções objetivas

fundadas na ciência. Todavia, todo conhecimento científico, embora não funde uma ética

ou uma arte objetiva, funda-se numa ética, cujo critério fundamental não é o homem, mas

o próprio conhecimento objetivo. E foi esta ética, da felicidade individual e do máximo

conforto, que criou a ciência moderna.

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Page 65: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

Donde a importância da atividade epistemológica, cujo papel é o de refletir sobre os

métodos, a significação cultural, o lugar, o alcance e os limites do conhecimento

científico. Diria que uma das funções essenciais da filosofia, hoje em dia, é a de construir

uma epistemologia. Temos atualmente várias epistemologias."Em primeiro lugar, há toda

uma corrente epistemológica que poderíamos chamar de lógica: ela visa ao estudo e à

construção da linguagem científica, bem como uma investigação sobre as regras lógicas

que presidem a todo enunciado científico correto (positivismo anglo-saxônio). Em

seguida, há toda uma escola que se propõe a elucidar a atividade científica a partir de

uma psicologia da inteligência: a epistemologia genética, tal como ela é praticada por

Piaget. Enfim, há uma corrente que se propõe muito mais a uma análise da história das

ciências, de suas revoluções, bem como das démarches do espírito científico. É nesta

última categoria que devemos situar a epistemologia de Bachelard, bem como a de G.

Canguilhem.

Antes, porém, de entendermos melhor o projeto de Bachelard, vejamos o clima intelectual

em que ele surgiu. O próprio Bachelard costumava dizer, em seus cursos na Sorbonne,

que a epistemologia consistia, no fundo, na história da ciência como ela deveria ser feita.

Queria dizer, com isso, que toda reflexão efetiva, capaz de estabelecer o verdadeiro

estatuto das ciências formais (lógica e matemática) e das ciências empírico-formais

(ciências físicas, biológicas e sociais), deve ser necessariamente histórica. Contudo, para

que esta história possa fornecer uma real inteligibilidade, é preciso que seja regressiva.

Quer dizer, para compreendermos uma ciência do passado, devemos nos situar nos

pontos de vista ulteriores. Não querendo construir uma epistemologia a priori, dogmática,

impondo autoritariamente dogmas

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aos cientistas, Bachelard se opôs a A. Comte, sobretudo quando este pretendeu

coordenar as diversas ciências e indicar-lhes os caminhos definitivos a seguir. Bachelard

se propôs a construir uma epistemologia visando à produção dos conhecimentos

científicos sob todos os seus aspectos: lógico, ideológico, histórico... Para ele, as ciências

nascem e evoluem em circunstâncias históricas bem determinadas. Por isso, a

epistemologia deverá interrogar-se sobre as relações susceptíveis de existir entre a

ciência e a sociedade, entre a ciência, e as diversas instituições científicas ou entre as

diversas ciências. O que importa é que se descubram a génese, a estrutura e o

funcionamento dos conhecimentos científicos. Donde a relevância das questões: devem

as ciências impor-se por si mesmas? Devem afirmar clara e triunfalmente seus

resultados? São elas a verdade das sociedades atuais? Não seria evidente sua virtude?

Que necessidade temos de nos interrogar sobre sua significação?

Se tais questões são hoje válidas, é porque o positivismo do século XIX as considerava

supérfluas. Com efeito, considerava as ciências, tanto em sua forma quanto em seu

conteúdo, como constituindo a própria verdade. Não poderiam ser julgadas, pois

justificavam-se a si mesmas. A doutrina positivista, cujo fundador foi A. Comte (1798-

1857), teve profunda influência na ciência posterior. Ela é constantemente retomada sob

novas formas. Pode ser expressa, de um ponto de vista filosófico, pela confiança

excessiva que a. sociedade industrial depositou na ciência experimental. Embora

pretenda negar toda filosofia, ela elabora uma verdadeira filosofia da ciência, cujos

princípios poderão ser resumidos nas seguintes afirmações: a) as únicas verdades a que

podemos e devemos nos referir são os enunciados das ciências experimentais: trata-se

de verdades claras, unívocas e imutáveis; b) todo e qualquer outro tipo de juízo deve

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ser abandonado como sendo teológico ou filosófico; c) a função das ciências

experimentais não é a de explicar os fenómenos, mas a de prevê-los, e de prevê-los para

dominá-los; o que importa não é saber o "porquê", mas o "como" das ciências; d) o

aparecimento da ciência esboçaria, para a humanidade, um mundo inteiramente novo,

possibilitando-o viver na "ordem" e no "progresso". Portanto, para Comte, o papel da

filosofia ficaria reduzido a uma função de> síntese vulgarizadora e de pregação moral.

Todavia, não tardou a serem mostradas as insuficiências filosóficas do positivismo. A

primeira reação foi a das teorias espiritualistas, que tentaram estabelecer um modus

vivendi: a filosofia admitia a validade da atividade científica como conhecimento e como

dominação da natureza. No entanto, ela se reservaria a outra parte, muito mais "nobre",

que seria a determinação dos fins em função do conhecimento bem mais profundo que

ela pretendia fornecer da natureza humana e da espiritualidade real. E foi assim, dentro

deste contexto, que foi construída o que hoje chamemos de "metodologia das ciências"

como disciplina universitária: de um lado, situava-se uma lógica geral, que procurava

atualizar os textos de Aristóteles; do outro, uma explicação passiva da atividade científica.

Daí para cá, houve toda uma tentativa de mostrar que a ciência, em seu projeto unitário

de "salvar os fenómenos", teve êxitos crescentes, mas que ela continuava incapaz, por

natureza, de compreender o essencial desses fenómenos. E foi nesta linha que se

inscreveu Bachelard. Surgiu, assim, a epistemologia como o produto da ciência

criticando-se a si mesma. Para Bachelard, a verdadeira questão diz respeito à força e aos

poderes da ação racionalista. Mas, ao mesmo tempo, à força e ao podar da atividade

criadora e poética.

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A obra deste filósofo, historiador das ciências e epistemólogo (1884-1962), de formação

química, tem uma dupla vertente: uma científica, a outra poética. Embora não devam ser

confundidas, podemos encontrar nelas uma unidade de inspiração, a partir da ideia de

que o tempo só tem uma realidade: a do instante. O conhecimento é, por essência, uma

obra temporal. Bachelard retoma a ideia que Bergson se fazia do instante. Este concebia

o ser como devir, como duração. A duração era a única realidade (substância)

verdadeira. A duração humana é continuidade. Temos dela uma experiência íntima è

direta. Assim, somos a cada instante a condensação da história que vivemos. Não há

esquecimento absoluto. Não há ruptura em nossa vida: o presente é repleto do passado e

"prenhe" do futuro. Todas as lembranças são conservadas.

Para Bachelard, o instante é algo inteiramente diferente. Ele é trágico, pois só pode

renascer com a condição de morrer. O instante já é solidão, que nos isola de nós

mesmos e dos outros, pois rompe com o nosso passado mais caro. E o tempo é a

consciência dessa solidão. Donde a coragem impor-se como a necessidade de luta

contra a solidão. É assim que temos acesso aos homens e às coisas. Nós somos nossa

decisão. Nossos valores se inscrevem no término de uma ação pela qual nós fazemos os

instantes que vivemos, quer dizer, nosso tempo. Devemos nos definir pela tendência que

tivermos de nos ultrapassar e de nos transformar. Dois caminhos se apresentam: de um

lado, a ciência e a técnica vencem a solidão criando um prolongamento de nós mesmos e

uma sociedade; do outro, a poesia e a imaginação libertam-nos da servidão da história e

das referências da memória, para fazer-nos descobrir homens e coisas. O homem é ao

mesmo tempo Razão e Imaginação. Não há ecletismo, mas dualismo ascético. Por isso,

a obra de Ba-

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chelard se apresenta como uma dupla pedagogia: da Razão e da Imaginação. Não

devemos confundir essas pedagogias: há o homem diurno da ciência e o homem noturno

da poesia.

Da vertente científica da obra de Bachelard, devemos reter que a ciência não é

representação, mas ato. A noção de espetáculo precisa ser eliminada. Não é

contemplando, mas construindo, criando, produzindo, retificando, que o espírito chega à

verdade. É por retificações contínuas, por críticas, por polémicas, que a Razão descobre

e faz a verdade. Para a ciência, o verdadeiro éo retificado, aquilo que por ela foi feito"

verdadeiro, aquilo que foi constituído segundo um procedimento de autoconstituição. É

por isso que a racionalidade científica só pode ser regional, e é por um lento processo de

integração, pontilhado pelas revoluções científicas, que se constitui o império da Razão.

Não-platônica e não-kantiana, a filosofia de Bachelard considera a verdade como nosso

produto, que não faz redundância com um modelo absoluto de verdade, mas que se volta

para seu animador, levando-o a perceber seus próprios enunciados como obstáculos à

compreensão. Porque os verdadeiros obstáculos da ciência não são os conhecimentos

do "senso comum", mas os sistemas relativamente coerentes de pensamentos

generalizados abusivamente. Um pensamento científico não é um sistema acabado de

dogmas evidentes, mas uma incerteza generalizada, uma dúvida em despertar, de tal

forma que o cientista é necessariamente um sujeito descentrado e dividido, ligado à sua

prática mas, ao mesmo tempo, distanciado dela.

Assim, o conhecimento, deixando de ser "contemplativo", torna-se operativo. Ele é uma

operação. A ciência cria seus objetos próprios pela destruição dos objetos da percepção

comum, dos conhecimentos imediatos. E é por ser ação que a ciência é eficaz. Devemos

passar

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por ela para agirmos sobre o mundo e podermos transformá-lo. E o progresso do espírito

científico se faz por rupturas com o senso comum, com as opiniões primeiras ou as pré-

noções de nossa filosofia espontânea. A ciência, como o homem, não é criação da

necessidade, mas do desejo. Por outro lado, ela é intervencionista. Por isso, deve ser

feita numa comunidade de pesquisas e de críticas, para não se tornar totalitária. E é por

isso que Bachelard substitui o Cogito cartesiano por um Cogitamus. Um homem só, diz

ele, é uma péssima companhia. Aprendemos sempre. E o mestre deve sempre fazer-se

aluno. Eis o princípio que fundou (1938) aquilo que hoje chamamos de Educação

permanente: "Uma cultura bloqueada num tempo escolar é a negação mesma da cultura

científica. Só há ciência por uma Escola permanente. É esta Escola que'a ciência deve

fundar. Então, os interesses sociais se invertem: a Sociedade será feita para a Escola, e

não mais a Escola para a Sociedade".

Portanto, a obra de Bachelard é uma dupla revolução: uma visa, a filosofia da descoberta

científica; a outra, a filosofia da criação artística. Por seu Ensaio sobre o conhecimento

aproximado (1928), ele funda a epistemologia como "ciência" respeitada, através do

estudo sistemático do modo como os conceitos de "verdade" e de "realidade" deveriam

receber um sentido novo. Sua dialética é uma "dialética do não". A negatividade

identifica-se com o movimento de generalização reorganizadora do saber, pela qual as

contradições são superadas como ilusões de oposição. Contudo, o que é ilusão de

oposição conceitual, é um conflito real na prática histórica dos cientistas. A verdade não é

uma qualidade que pertenceria a esta ou àquela opinião particular, mas o resultado da

negação mútua das opiniões num conflito entre os produtores de ideias. A ciência é obra

do homem. Seus objetos são "perspectivas de ideias". Todavia, a

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ciência engloba seu próprio produtor e faz dele um meio universal.

O traço mais típico dessa epistemologia consiste em ser ela "polémica". E o princípio

dessa polémica deve ser buscado nos transtornos e embaraços por que passa a história

das ciências. Seu objetivo central é a "reformulação" do saber científico e a "reforma" das

noções filosóficas. Dando-se por objeto o conhecimento em seu movimento, em seu fieri,

a epistemologia se interessa pela lógica da descoberta científica da verdade como

polémica contra o erro e como esforço para submeter às verdades aproximadas da

ciência e os métodos que ela emprega a uma retificação permanente. Em outros termos:

uma disciplina que toma o conhecimento científico como objeto de investigação deve

levar em conta a historicidade desse objeto. Melhor ainda: a epistemologia deverá

aplicar-se, não mais à natureza e ao valor do conhecimento, à ciência feita, realizada e

verdadeira, da qual se deveria apenas descobrir as condições de possibilidade, de

coerência ou os títulos de sua legitimidade, mas às ciências em vias de se fazerem e em

suas condições reais de crescimento.

A filosofia, enquanto comporta uma teoria do conhecimento, deve definir-se por seu lugar

em relação ao conhecimento científico. Bachelard critica as filosofias que utilizaram

certos conceitos (de realidade, de espaço, de tempo...) como se as ciências nada

houvessem dito sobre eles. Por outro lado, ele pensa que a filosofia, quando ela toma a

ciência por objeto, visa uma ciência ideal, muito diferente das que existem efetivamente.

Ora, diz ele, a filosofia não tem objeto. Ela tem o objeto dos outros. E é por isso que ela

deve determinar-se por sua distância relativamente ao conhecimento científico. Este

desempenha o papel de um eixo das diversas formas de filosofia (no alto: idealismo,

convencionalismo e forma-

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lismo; embaixo: positivismo, empirismo e realismo). A essência da filosofia só pode ser

determinada do ponto de vista do eixo, isto é, de um ponto de vista não-filosófico. Em

outros termos, é o eixo que dá à filosofia um conteúdo e determina sua natureza. O que

Bachelard pretende mostrar é que a ciência contemporânea obrigou-nos a renunciar à

pretensão de um saber universal. O filósofo retoma, de outro modo, o projeto que outrora

foi o seu: compreender a relação do homem com seu saber. Esta relação é a recorrência

reflexiva da história do verdadeiro. Meditar sobre a ciência atual, sobre seu movimento

próprio, também é compreender seus erros do passado. É neste sentido que a verdade

só adquire seu pleno sentido no término de uma polémica contra os erros passados. E é

por isso que não há verdade primeira, apenas erros primeiros.

Pela introdução da noção de ruptura epistemológica, Bachelard se opõe às tradições

positivas. É preciso que se reconheça que, tios fatos, há ciências coexistindo com

ideologias. Donde a importância de uma filosofia que, longe de ser uma representante

das ideologias junto às ciências, terá por missão neutralizar os discursas ideológicos e

impedir, assim, na medida do possível, o aparecimento dos obstáculos. Pelo menos, esta

filosofia terá por função distinguir, nos discursos científicos, aquilo que pertence à prática

científica daquilo que provém das ideologias. Donde a função de vigilância, atribuída por

Bachelard a esta nova epistemologia. Ao acompanhar os progressos do pensamento

científico, ela terá a preocupação constante de isolar, na prática científica, os interesses

ideológicos e filosóficos. E o conceito que sustenta todo o "projeto" de Bachelard é o de

obstáculo epistemológico, que designa os efeitos sobre a prática científica das relações

que o cientista mantém com ela. O obstáculo aparece no momento da constituição do co-

72

Page 73: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

nhecimento sob a forma de um "contrapensamento"; posteriormente, como "parada do

pensamento", isto é, como uma resistência ou inércia do pensamento ao pensamento.

Certas filosofias constituíram-se em veículo e em suporte dos obstáculos, pois são elas

que estruturam a relação do cientista com sua prática. Em outros termos: se o

pensamento científico é eminentemente progressivo, e se sua démarche é feita através

de suas próprias reorganizações, diremos que o obstáculo epistemológico aparece todas

as vezes que uma organização do pensamento preexistente encontra-se ameaçada.

Por conseguinte, sendo o conhecimento concebido como uma "produção histórica", a

epistemologia visa um processo. A filosofia aí está presente. Mas é a epistemologia que

tenta descobrir aquilo que as filosofias dos filósofos teimam em recobrir: os valores

ideológicos que intervêm na prática científica. Seu papel histórico fundamental consiste

em "dar à ciência a filosofia que ela merece". Todavia trata-se, agora, de uma filosofia

aberta e móvel, que renuncia à forma sistemática, a seu espaço fechado e ao imobilismo

para arriscar-se, ao lado dos cientistas, nos campos novos do pensamento. Donde se

conclui que o objeto da filosofia das ciências tem que ser um objeto histórico. Toda

ciência deve produzir, a cada momento de sua história, suas próprias normas de verdade

e os critérios de sua existência. Isto não significa que todo conhecimento seja relativo,

mas que a ciência sã constrói através da descoberta de "verdades" constantemente

retificadas e aproximadas. Resulta, então, que a epistemologia é indissociável da história

das ciências, quer em seu aspecto "sancionado" (história daquilo que é "científico" na

prática científica), quer em seu aspecto "superado" (história do "não-científico" .na prática

das ciências).

É esta nova epistemologia que. Bachelard pretende fundar. Trata-se de uma filosofia das

ciências que, em

73

Page 74: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

matéria de teoria do conhecimento, não propõe mais soluções filosóficas para problemas

científicos já superados. Trata-se de uma filosofia aberta, que não encontra mais em si

mesma as "verdades primeiras", nem tampouco vê na identidade do espírito a certeza

que garante um método permanente e definitivo. O que deve ser abandonado é uma

filosofia que coloca seus princípios como intangíveis e que afirma suas verdades

primeiras como totais e acabadas. O filósofo não pode ser o homem de uma só doutrina:

idealista, racionalista ou positivista. Porque a ciência moderna não se deixa enquadrar

numa doutrina exclusiva. O filósofo não pode ser menos ousado e corajoso que os

cientistas. O empirismo precisa ser compreendido. Por outro lado, o racionalismo precisa

ser aplicado. É isto que faz o progresso filosófico relativamente às ciências. Não há

nenhuma intenção, em Bachelard, de humilhar as filosofias. Ele quer apenas acordá-las

de seu "sono dogmático", para nelas suscitar o desejo de revalorizar sua situação em

relação às ciências contemporâneas. Ele quer dar à filosofia a chance de tornar-se

contemporânea das ciências. Porque a determinação específica da filosofia deve definir-

se por sua relação com as ciências. Ela se define nesta e por esta intervenção, tentando

descobrir as condições reais e históricas da produção dos conhecimentos científicos.

O que devemos reter da vertente poética da obra de Bachelard? A poesia, ou melhor, as

poesias, porque há formas de poesia que são outras tantas correspondências antitéticas

das formas do pensamento racional, são outro modo de se vencer a solidão do instante.

A liberdade poética enraíza-se na necessidade do "eu", da mesma forma como a

necessidade da "verdade" científica só pode aparecer naquele que tomou uma liberdade,

uma distância relativamente ao "eu" sonhador. A imaginação não é uma faculdade entre

outras. Ela é o poder

74

Page 75: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

constitutivo radical que nos afirma como sujeitos e os fenómenos como objetos. A

imaginação é para a poesia o que o trabalho é para o pensamento: sua infra-estrutura

fundamental. Assim como o trabalho de pesquisa gera o pensamento, da mesma forma a

imaginação gera o charme poético. Em ambos os casos, a consciência sai da

inconsciência através da mediação de uma tematização do implícito. A consciência de si

é nosso retorno finito a nós mesmos pela tematização das imagens simbólicas

elementares dos objetos da natureza. Ao passo que a consciência exata de objetividade

é um caminho infinito que nos liga à natureza das coisas pela tematização dos atos

operatórios, pelos quais garantimos seu estatuto. Todo aquele que se esquece dessa

tensão e dessa dualidade da imaginação em nós, ou se dedica exclusivamente à poesia,

apegando-se às formas arcaicas do saber (como os que se ocupam com astrologia ou

magia), ou então se consola com sua própria ignorância científica, pretendendo que a

poesia é a mais alta forma de saber.

No entanto, para vencer a solidão do instante, a poesia vai até mais longe do que a

ciência, pois ela aceita o que ele tem de trágico. Há uma agonia do instante. Agonia que

é uma exaltação. Contra o tempo horizontal que corre de modo monótono, Bachelard

escolhe o tempo que se verticaliza na descoberta poética. Ao invés de reter o instante e

dizer-lhe: "pára, tu és belo", a poesia se exalta com sua deteriorização, pois este é o

preço da novidade. Desta análise, surgiu toda a crítica literária moderna, crítica criadora.

Diferentemente das metáforas, que têm por objetivo transmitir um pensamento interior,

um pensamento já feito, a imagem é criadora de pensamentos. Causa, e não efeito, a

consciência ima-einadora é uma origem. Ao denunciar o objetivismo que reduz a imagem

a um retrato em miniatura, Sartre admi-

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Page 76: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

tiu, no entanto, que ela evoca um ser ou um objeto como ausentes. Segundo Bachelard,

ao contrário, a imaginação é energética: ela é anterior à memória. Sob a imagem, a

psicanálise procura a realidade. Todavia, ela se esquece da procura inversa: buscar a

positividade da imagem sobre a realidade. Porque a imagem não pode lembrar antigos

arquétipos inconscientes. Ela é uma espécie de movimento sem matéria que se enraíza

na experiência material elementar. Os "elementos", água, ar, terra, fogo, desempenham

um papel essencial na vida interior do homem e, por conseguinte, em sua expressão

poética.

É a imaginação que nos faz mergulhar na profundidade das coisas. Ela nos faz descobrir

as forças vivas da natureza. Ao libertar-nos de tudo o que é convencional, social,

mundano, superficial, ela nos faz penetrar no interior das coisas. Podemos dizer que ela é

o espírito, enquanto voltado para o corpo e misturado com o mundo. Daí a razão de ser

da pergunta: quando um "sonhador" fala, quem fala, ele ou o mundo? De um lado, temos

a cidade dos conceitos, a Sociedade dos cientistas e o internacionalismo da Ciência; do

outro, porém, encontramos a solidão do artista que revive, em suas imagens e em seus

mundos, o drama do mundo. No entanto, é o artista que cria mais: a imaginação começa

e a razão recomeça. Ambas nos fazem aceder ao universo do espírito, quer dizer, a uma

realidade superior. Esta pode parecer irreal, mas é porque é negadora da percepção

comum. Na verdade, ela é mais profundamente sobre-real. O verdadeiro mundo de

Bachelard é o da sobre-realidade. É por isso que ele diz que o homem é este ser que tem

o poder de "despertar as fontes". É este poder inesgotável que está na. origem tanto do

aspecto polémico da razão científica, de uma oposição ao realismo empírico, de sua

recusa do dado, quanto do aspecto criador da imaginação poética: quando uma criança

começa a pensar, ela cria um mundo.

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Page 77: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

A sobre-realidade é a própria realidade apreendida em sua maior profundidade: a função

do irreal é o dinamismo do espírito. Não sonhamos com ideias ensinadas. O mundo é

belo antes de ser verdadeiro. É admirado antes de ser verificado. A obscuridade do "eu

sinto" deve primar sobre a clareza do "eu vejo". O homem é um ser entreaberto. Quando

ele cria, desata ansiedades. Criar é superar uma angústia. O belo não é um simples

arranjo. Tem necessidade de uma conquista. O mundo deixa de ser opaco, quando

olhado pelo poeta. Este lhe dá mobilidade. O homem é um ser que se oferece à vida,

deixa-se possuir por ela, para poder possuí-la. Olha o presente como uma promessa de

futuro. Uma de suas forças é a ingenuidade, que o faz cantar seu próprio futuro. A

filosofia não nasce de seu passado, dê outra filosofia, mas de um olhar novo sobre o

mundo, de uma nova maneira de se aceder às coisas. O mundo é a provocação do

homem. Este se revela criador, fonte única, despertador de mundos: o da ciência e o da

arte. É o ser que responde a todas as provocações, sobretudo à do instante, pela criação

e pela invenção. Vivemos num mundo em estado de sono. Precisamos despertá-lo,

graças ao diálogo com as outras pessoas, de um "encontro" que pode ser considerado

como a "síntese" do acontecimento e do eterno. Despertar o mundo, eis a coragem da

existência. E esta coragem é o trabalho da pesquisa e da invenção. O essencial é que

permaneçamos sempre em estado de apetite. É por isso que Bachelard como que se

definia a si mesmo, ao formular sua oração cotidiana: "Fome nossa de cada dia nos dai

hoje".

Bachelard continua ainda bastante incompreendido. Continuamos ainda a aplicar-lhe

interpretações "redutoras". É por isso que Canguilhem dá pouca importância às etiquetas

que os amadores de classificações procuram colar sobre o que não é o seu sistema. Por

exemplo, se

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Page 78: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

os censores de ideologias heterodoxas chamam-no de idealista, porque ela f borda a

ciência pelos métodos físico-matemáticos, devemos responder: idealismo discursivo, quer

dizer, elaborado, construído, e não triunfante, sem conhecer obstáculos. Por outro lado,

se o chamamos de materialista, porque ele valoriza as experiências de laboratório,

devemos responder: materialismo racional, quer dizer, instruído e não ingênuo, operante

e não dócil, que não recebe passivamente sua matéria, mês que se dá sua matéria, que a

constrói (Hommage à G. Bacherlad, P.U.F., p. 11).

A influência de Bachelard, pela equidade do juízo crítico relativamente à criação poética,

faz dele um dos autores que mais marcaram o último quarto do século. Também ele foi

um fenomenólogo. Husserl definia a fenomenologia como um "retorno às coisas". Neste

sentido, Bachelard foi um grande fenomenólogo: de um lado, mostrando que a ciência

deveria ser uma "fenomenotécnica"; do outro, conduzindo sua reflexão sobre a

imaginação até o ponto de ela poder manifestar seu poder "ontológico", sua densidade de

ser. O homem habita poeticamente o mundo, embora seja habitado pelo saber.

Esta filosofia do imaginário marcou também a literatura, a ciência e a filosofia. No campo

científico, teve o mérito de mostrar aos cientistas que o positivismo ingénuo não poderia

ser mais a filosofia de sua prática. No campo filosófico, teve o mérito de mostrar aos

filósofos que sua razão deve ser um produto da reflexividade dos atos, pelos quais o

homem produz os instrumentos operatórios que são os conceitos. No campo literário,

teve o mérito de estar na origem do movimento conhecido pelo nome de "nova crítica"

literária.

A nosso ver, quem melhor retomou o projeto bacheiardiano de "dar à ciência a filosofia

que ela merece" foi G. Canguilhem. Com efeito, ele contesta tanto as

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"alienações" das filosofias idealistas do conhecimento quanto os exageros "objetivantes"

das filosofias positivistas. E acredita que, assim como a epistemologia de Bachelard é

histórica, uma verdadeira história das ciências só pode ser epistemológica. E entre as

três razões para fazê-la: histórica (extrínseca à ciência: discurso verificado sobre um

setor da experiência), científica (experimentada pelos cientistas enquanto

pesquisadores), é a terceira, a razão propriamente filosófica, que é a mais verdadeira:

"sem referência à epistemologia, uma teoria do conhecimento seria uma meditação sobre

o vazio; e sem relação à história das ciências, uma epistemologia seria uma réplica

perfeitamente supérflua da ciência sobre a qual pretenderia discorrer". Por isso, a história

das ciências de forma alguma pode ser entendida como uma crónica. Pelo contrário,

consiste em tornar sensível e inteligível, ao mesmo tempo, a edificação difícil, retomada e

retificada do saber. Por outro lado, ela deve eliminar o "vírus do precursor". A rigor, se

existisse precursor, a História das ciências perderia todo o seu sentido, pois a própria,

ciência só teria dimensão histórica na aparência. A complacência em procurar e descobrir

precursores é o sintoma mais claro de inaptidão à crítica epistemológica. E isto, porque a

ciência deve ter sua temporalidade específica e proceder sempre por reorganizações, por

rupturas e mutações, passando pela experiência de acelerações e de recuos.

Segundo Canguilhem, Bachelard revolucionou a epistemologia contemporânea, não

somente por ter introduzido os conceitos-chave de "Recorrência", "Vigilância",

"Obstáculo" e "Corte" epistemológicos, mas por ter reconhecido que a "a ciência não é o

pleonasmo da experiência": ela se faz contra a experiência, contra a percepção e toda

atividade técnica usual. Sendo uma operação especificamente intelectual, tem uma

história, mas

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não tem origens. É a génese do Real, embora sua própria génese não possa ser narrada,

apenas descrita como recomeço, pois não é a frutificação de um pré-saber. E é para

provar a coerência desta epistemologia que Canguilhem formula um corpo de axiomas,

cuja duplicação em código de normas intelectuais revela-nos que sua natureza não é a

de evidências imediatamente claras, mas a de instruções laboriosamente recolhidas e

comprovadas. Eis, em síntese, os três axiomas:

1. O primeiro é relativo ao primado teórico do erro.A objetividade de uma ideia será

mais clara e mais distinta, na medida em que aparecer sobre um fundo deerros

mais profundos e mais diversos. Em outros termos:para se ressalvar o valor de

uma ideia objetiva, é preciso recolocá-la dentro do círculo das ilusões imediatas. É

preciso errar para se atingir um fim. A verdade só adquire seu pleno sentido no

término de uma polémica. Não pode haver verdade primeira. Só existem erros

primeiros.Mais lapidarmente, o mesmo axioma se enuncia: "Um verdadeiro sobre

um fundo de erros, eis a forma do pensamento científico". A primeira e a mais

essencial função do Sujeito é a de se enganar. Quanto mais complexo for seu erro,

mais rica será sua experiência. A experiência é precisamente a lembrança dos

erros retificados. O ser puro é um ser "desiludido".

2. O segundo é relativo à depreciação especulativa da intuição. "As intuições são

muito úteis: elas servem para ser destruídas." Este axioma é convertido em norma

de confirmação, segundo duas fórmulas: "Em todas as circunstâncias, o imediato

deve dar lugar ao construído". "Todo dado deve ser reencontrado como um

resultado."

3. O terceiro é relativo à posição do objeto como perspectiva das ideias. "Nós

compreendemos o Real na medida em que a necessidade o organiza... Nosso pen-

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samento vai ao Real, não parte dele" (in Hommage à G. Bachelard, Paris, 1957, pp. 3-

12). Em outras palavras: "O ponto de vista cria o objeto" (Saussure). Quer dizer: o real

nunca toma a iniciativa, pois só poderá responder algo quando nós o interrogarmos. Os

dados só poderão responder completa e adequadamente a questões para as quais e

pelas quais eles foram construídos: "os fatos não faiam" (Poincaré). A epistemologia de

Bachelard contribuiu, decididamente, para que se destruísse a crença na "imortalidade

científica dos fatos" e em sua "imaculada concepção" (Nietzsche).

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A EPISTEMOLOGIA "RACIONALISTA-CRÍTICA" DE K. POPPER

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Popper elaborou sua epistemologia ou, mais precisamente, sua "filosofia das ciências",

ao mesmo tempo dentro e fora da corrente de pensamento chamada de empirismo lógico

ou de neopositivismo, originada do Círculo de Viena, – fundado em 1924 por Schlick e

tentando fazer uma síntese entre o empirismo e a logística. Dentro, porque é um de seus

primeiros integrantes e um dos defensores de suas ideias essenciais; fora, porque

apresentou-se desde cedo como um dos mais ardorosos dissidentes da "Escola", como o

mais ilustre representante da "oposição oficial", sobretudo no que diz respeito aos

critérios da verificação experimental nas ciências. Na Inglaterra, onde passa a ensinar a

partir de 1946, Popper é considerado como um dos filósofos oficiais da democracia

liberal, pois tentou aplicar à política uma das ideias fundamentais de sua filosofia das

ciências: como qualquer outra teoria, a teoria política deve ser testada no contato com os

fatos. Contudo, testada negativamente, quer dizer, podendo eventualmente ser refutada

pela

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experiência, e não, propriamente falando, confirmada por ela.

Por sua obra, Popper é mais conhecido como filósofo político do que como filósofo das

ciências. Contudo, é de primeira importância sua contribuição no campo da filosofia das

ciências. Neste domínio, seu pensamento se opõe a duas tendências marcantes da

epistemologia anglo-saxônia: a do positivismo lógico e a da filosofia "da linguagem".

Popper combateu vigorosamente os dois movimentos filosóficos que inspiraram, de um

lado, o neopositivismo lógico e, do outro, a filosofia "linguística" ou "da linguagem

ordinária". Por isso, convêm situarmos, em suas grandes linhas, pelo menos os

postulados essenciais ao empirismo que deu origem às críticas de Popper. Em seguida,

veremos como ele se opõe às concepções empiristas, sobretudo de R. Carnap.

1. Princípio do empirismo

O "empirismo lógico", também chamado de "Movimento para a unidade da ciência",

surgiu num meio bastante propício à difusão das ideias empiristas. Ele nasceu da

conjunção de duas correntes aparentemente irreconciliáveis: de um lado, o empirismo

físico e psicológico de E. Mach, que, na qualidade de físico, insistia sobre o papel das

"experiências mentais" e da economia do pensamento na dedução das leis e, enquanto

epistemólogo e psicólogo, buscava reduzir toda experiência a um puro jogo de

sensações; do outro lado, a logística, devendo desempenhar um papel importante na

análise dos fundamentos das matemáticas. O mérito de Schlick foi o de tentar a

conjunção dessas duas correntes, procurando dessolidarizar a logística de seu

platonismo antigo, e considerando as estruturas lógico-matemáticas

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como simples linguagem tautológica, cuja função essencial seria a de exprimir

adequadamente as verdades da experiência.

Não vamos analisar aqui o projeto grandioso da Escola de Viena, que foi o de tentar uma

unificação do saber científico e o de elaborar um método científico comum a todas as

ciências, de tal forma que fosse não somente uma garantia contra o erro, mas também

uma garantia contra o acúmulo de conceitos vazios de significação e contra todos os

pseudoproblemas que tanto atravancaram as discussões epistemológicas. Limitemos

nosso estudo aos postulados básicos do empirismo lógico, tentando mostrar alguns de

seus limites.

O esforço inicial do empirismo lógico consistiu em delimitar de modo bastante preciso o

domínio das linguagens empíricas e em descrever com o, máximo rigor possível o

estatuto metodológico das ciências positivas. Para tanto, precisou determinar não

somente os critérios de verdade e de falsidade dos enunciados empíricos, mas os

critérios de seu sentido. A instauração dos critérios do sentido inspira-se na própria

prática das ciências: estas desenvolvem um projeto intelectual que é o do empirismo. A

originalidade do empirismo lógico foi a de formular de modo claro e de levar adiante esse

projeto. A preocupação fundamental do empirismo consistia em reduzir todo o conteúdo

do conhecimento a determinações observáveis. Todavia, ao tratar-se de determinar as

condições de tal "redução", constatou-se que não era possível contentar-se com o

simples critério da verificabilidade direta. Outro critério precisaria ser levado em conta: o

das possibilidades introduzidas pelo emprego da linguagem, que vão muito além daquilo

que é efetivamente observado. Introduz-se, assim, a ideia de confirmação pela realidade,

que tanto pode ser uma sim-

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ples "confirmabilidade" de princípio ou potencial, quanto uma "confirmabilidade" efetiva ou

em ato. Esta última estaria fundada sobre procedimentos que podem ser empregados

concretamente.

Por sua vez, as formas da linguagem têm o caráter de poder permitir-nos preceder à

experiência. No entanto, elas só têm valor de antecipação a experiências possíveis. Se

levarmos em conta as ligações lógicas tornando possível a vinculação de uma hipótese a

outras hipóteses, quer dizer, se considerarmos o caráter quase sempre indireto da

vinculação com os dados empíricos, somos forçados a admitir, como critério do sentido, o

critério da tradutibilidade, ou seja, da ligação dedutiva. O importante é que, em qualquer

hipótese, há sempre uma referência à experiência. E o conteúdo daquilo que é expresso

na linguagem não chega a ultrapassar aquilo que se anuncia efetivamente na indicação

das démarches práticas tornando possível a simples constatação.

Por outro lado, além da linguagem descritiva, também podemos 'admitir uma linguagem

metodológica, cuja função não é a de exprimir o conteúdo da experiência, mas explicar a

própria démarche científica, tentando elucidar suas condições e seus critérios. Aliás, são

as possibilidades da linguagem que se prestam a vários mal-entendidos, sobretudo no

que diz respeito aos problemas filosóficos. Por sua vez, a linguagem metodológica torna-

se, em seu emprego legítimo, o instrumento fundamental da filosofia, sobretudo em sua

forma válida, isto é, na forma de uma teoria da ciência. Não obstante, a linguagem

metodológica não comporta proposições sintéticas, pois não afirmam nem negam algo a

respeito do real. Ela comporta apenas proposições analíticas e proposições descritivas.

Em outros termos, não introduz nenhum conteúdo de conhecimento capaz de

transcender o domínio do empiricamente observável.

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Evidentemente, se o único discurso dotado de sentido reduz-se ao discurso da ciência e

da metodologia científica, ou então ao discurso das proposições com referência empírica

ou simplesmente tautológicas, não há nenhuma razão para que tenha validade qualquer

discurso de ordem filosófica. O problema consiste em saber se o domínio do sentido

poderá ser circunscrito a esta única forma de discurso. A este respeito, podemos nos

perguntar: não constitui o postulado empírico um pressuposto injustificado e injustificável?

Em outras palavras: não haveria um acesso ao sentido que poderia afirmar-se

independentemente de todo procedimento de verificação, inclusive de confirmação? No

fundo, trata-se de saber se a interpretação neopositivista do princípio do empirismo está

em perfeita adequação com a prática efetiva da ciência. Eis o campo da reflexão de

Popper. Antes, porém, de entrarmos em seu pensamento, façamos ainda algumas

considerações sobre o princípio do empirismo:

1. Este princípio, em seu sentido lato, significa que não podemos dispor de uma

experiência que seja inteiramente independente da experiência sensível. Por outro lado,

não podemos dispor de uma experiência que seja capaz de nos fornecer um verdadeiro

conhecimento, quer dizer, um conhecimento objetivo e comunicável, podendo fundar um

saber racional. Aceitar semelhante posição de forma alguma significa negar a

possibilidade de haver experiências não vinculadas à percepção, nem tampouco que tais

experiências possam fornecer-nos conhecimentos de outra ordem, mas simplesmente

recusar que seja possível a construção, sobre tais experiências, de um saber susceptível

de responder ou corresponder as normas clássicas da ciência. Em síntese, o postulado

empirista não significa outra coisa senão a impossibilidade de poder existir uma intuição

intelectual pura. Se por acaso dispuséssemos de tal intuição, certamente podería-

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mos fundar sobre ela um saber racional puro, quer dizer, uma ciência verdadeira, mas

prescindindo por completo da experiência sensível. Ora, não dispondo de tal visão direta,

tendo por objetivo a descoberta das ideias ou essências, somos forçados, se quisermos

conhecer a realidade, a fazer apelo a este tipo de experiência comunicável, que é a

experiência sensível.

2. A segunda observação diz respeito ao papel da experiência. Há duas maneiras de

entendermos este papel: a) Segundo a posição positivista, retomada pelo empirismo

lógico, aquilo que podemos atingir, através da experiência, é apenas o singular: o único

conteúdo de conhecimento de que podemos dispor são, pois, as constatações sensíveis;

b) Todavia, graças às operações intelectuais descritas pela lógica e expressas pela

linguagem,torna-se possível evidenciarmos, na massa daquilo que é constatável, certas

regularidades; ademais, podemos estabelecer certas ligações sistemáticas e constituir,

assim,progressivamente, um saber de tipo universal. A característica essencial desse

saber é que ele pode ser fundado rigorosamente: de um lado, através do emprego de

operações definidas pela lógica e praticadas por todos do mesmo modo; do outro, através

da utilização dos métodos de verificação remetendo a constatações de tipo elementar e

permitindo um acordo prático quanto ao conteúdo da experiência. O papel da lógica é o

de colocarem jogo apenas as formas operatórias. Ela não pode fornecer nenhum

conteúdo real. Mas é graças à intervenção dessas formas que podemos organizar o

conteúdo de uma ciência. Portanto, este modo de conceber o papel da experiência

sensível constitui o que podemos chamar de posição empirista no sentido estrito.

3. Outra maneira de concebermos o papel da experiência sensível é através da

epistemologia conceitua-lista. Segundo este modo de ver, há um retorno à expe-

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riência sensível. O objetivo, porém, dessa volta é a obtenção de conteúdos de

conhecimento. Não se fica mais adstrito à simples apreensão do singular. O dado

perceptivo já engloba um conteúdo de significação. Ele é captado na própria apreensão

do sensível, mediante uma operação intelectual de tematização. Em outras palavras, há

uma atividade intelectual que nos permite apreender, através da tessitura dos conteúdos

sensíveis, as formas inteligíveis por meio das quais esses conteúdos tornam-se

acessíveis ao conhecimento e significantes para nós. Sendo assim, o domínio dos atos

intelectuais não se limita às operações descritas pela lógica, mas comporta o domínio da

atividade conceitualizada do pensamento. É através do conceito que o pensamento

profere o inteligível que apreende e encontra aquilo que, na experiência sensível, pode

dar-se a conhecer. Quer interpretemos a relação do conceito com o sensível mediante

uma teoria da abstração, quer mediante uma teoria da reminiscência, trata-se de uma

especificação ulterior da posição conceitualista.

4. Se não há intuição intelectual, não podemos fazer a economia da percepção. E se o

pensamento conceitual nos dá acesso ao inteligível, não é à maneira da ideia pura, pois o

conceito comporta uma referência à realidade empírica: através do inteligível, ele visa o

sensível. Portanto, só pode ser utilizado e, consequentemente, abrir a possibilidade de

uma ciência, na medida em que for restituído à coisa mesma que ele tem por função

esclarecer. Aliás, a função da proposição consiste em operar tal restituição. Se não temos

acesso às essências puras, nosso saber não pode consistir numa simples visão de

formas, mas deverá proceder por divisão e por composição: ele instaura um vaivém entre

a apreensão sensível e' a apreensão intelectual. E é assim que percebemos a

necessidade da verificação. Mas esta não tem o

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mesmo sentido que no empirismo lógico. Evidentemente, devemos comprovar o juízo

pela experiência, pois, em si mesmo, ele não comporta a garantia de sua veracidade. Isto

seria verdade se o juízo fosse apenas uma relação entre ideias puras, apreendidas por

intuição. Neste sentido, o juízo seria apenas expressão da intuição, encontrando nela sua

garantia. No entanto, o juízo é recomposição do pensamento daquilo que dele foi

separado: ele faz apelo à constatação que irá atestar que a síntese operada pelo espírito

conforma-se com a situação real. E isto segundo a ambição do pensamento "julgador",

que só passa pelo juízo para situar o conceito em seu contexto concreto e para permitir-

lhe exercer plenamente sua função cognitiva.

5. É neste contexto que se situa a filosofia das ciências de Karl Popper. No fundo, o que

ela coloca em jogo é o problema clássico da indução. Trata-se de elucidar duas questões:

a) como é possível a elaboração de uma teoria científica a partir de observações em

número sempre finito? b) como é possível o estabelecimento da "verdade" de uma teoria

(sua aplicabilidade a uma infinidade de casos) apoiando-se apenas em bases

observacionais? O primeiro problema faz apelo a uma teoria da invenção, cujo objetivo

consiste em explicar quais são os processos psicológicos e lógicos capazes de permitir a

formulação das teorias científicas. O segundo, de ordem mais epistemológica, diz

respeito ao que se convencionou chamar de "valor" das teorias científicas, quer dizer, ao

grau de confiança que podemos lhes conferir, em função dos dados empíricos de que

podemos dispor. O que vai nos interessar na filosofia das ciências de Popper é apenas a

elucidação deste último problema, na medida em que sua posição se opõe às do

empirismo lógico, notadamente às de Carnap.

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2. Princípio da verificação e da falsificação

A preocupação epistemológica essencial de Popper diz respeito, como vimos, à

elucidação do "valor" das teorias científicas, ou seja, ao grau de confiança que podemos

depositar mias, em função dos dados empíricos de que podemos dispor. Neste nível, ele

deu uma contribuição decisiva para a solução de dois problemas fundamentais e

estreitamente ligados um ao outro: o primeiro problema é o da demarcação entre ciência

e metafísica, isto é, entre conhecimentos científicos e conhecimentos de ordem supra

científica; o segundo é o problema da indução e de seu valor para a ciência. Para

resolver esses dois problemas, Popper teve que combater veementemente os dois

dogmas fundamentais das teorias do conhecimento e das epistemologias empiristas

tradicionais. O primeiro dogma se resume na ideia segundo a qual a ciência deve

repousar numa base observacional mais ou menos intangível. O segundo dogma está

contido na ideia segundo a qual a ciência deve utilizar um método indutivo, por oposição

ao método especulativo das pseudociências e da filosofia.

O problema filosófico clássico da indução pode ser formulado sob a forma de uma

questão: o que pode justificar nossa crença na possibilidade de o comportamento dos

fenómenos ser, no futuro, análogo ao seu comportamento no passado? Em outras

palavras: que tipo de justificação podemos invocar para nossas inferências indutivas em

geral? Baseando-se na colocação inicial de Hume, Popper discerne, nessas questões,

dois problemas: um lógico, outro psicológico. O problema lógico da indução consiste em

saber sobre o que podemos nos basear para tirar, de vários casos particulares

observados, conclusões relativas aos casos não observados. Por sua vez,

93

Page 94: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

o problema psicológico consiste em saber por que, sem justificação lógica, os cientistas

são levados a crer que os casos não observados poderão conformar-se com os que

foram observados.

Recolocado em sua relação com o conhecimento científico, o problema lógico pode ser

formulado da seguinte maneira: será que podemos justificar empiricamente, quer dizer,

segundo a verdade de certos enunciados observacionais, a afirmação segundo a qual

uma teoria explicativa universal deva ser verdadeira? A esta questão, Popper responde

dizendo que, por maior que seja o número de enunciados observacionais verificados, não

temos o direito de concluir pela existência da verdade de uma teoria universal. E a razão

que ele dá é a seguinte: uma teoria universal afirma algo que ultrapassa, de muito, aquilo

que pode ser expresso numa enorme quantidade de enunciados observacionais. Todavia,

se substituirmos o problema da verificação pelo da falsificação, a resposta de Popper é

positiva, porque a verdade de certos enunciados observacionais pode autorizar-nos a

decretar a falsidade de uma teoria universal. No sentido técnico da epistemologia de

Popper, uma proposição torna-se "falsificável" desde o momento em que aparece um

enunciado observacional capaz de contradizê-la, isto é, a partir do momento em que

podemos deduzir, desta proposição, a negação de um enunciado observacional. Assim, a

proposição universal "todos os cisnes são brancos" não é verificável, mas falsificável. Em

contrapartida, a proposição existencial "há corvos brancos" não é falsificável, mas

verificável.

Donde se conclui que, entre várias teorias em competição, nossa preferência por uma

delas pode justificar-se por razões empíricas, porque nossos enunciados observacionais

podem refutar algumas delas, mas não todas. E quando várias teorias rivais se

apresentam, devemos preferir aquelas cuja falsidade ainda não está estabele-

94

Page 95: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

cida. Popper chega a outra conclusão: todas as leis e teorias científicas são, em sua

essência, hipotéticas e conjecturais. Exemplo: nunca houve uma teoria tão bem

estabelecida ou confirmada quanto a de Newton. No entanto, a teoria de Einstein veio

mostrar que a teoria newtoniana não passa de uma hipótese ou conjetura. Ora, se uma

teoria é; antes de tudo, uma conjetura, e se seu valor se mede sobretudo por sua

falsificabilidade, não há como negar que, entre teorias rivais, é mais interessante aquela

que melhor se presta à falsificabilidade ou que é melhor testável. Esta teoria terá maior

conteúdo informativo e maior fecundidade explicativa. Porque, quanto mais ambiciosas e

precisas forem as asserções formuladas por uma teoria sobre a realidade, mais eia é

capaz de nos fornecer os meios de testá-la e as ocasiões de falsificá-la. Esta teoria é

melhor porque, se é capaz de resistir a todos os testes, pode ser considerada como a

melhor testada. Contudo, não pode haver uma confirmação positiva de uma teoria pela

experiência. Dizer que uma teoria é, no momento, tão bem estabelecida quanto possível,

é reconhecer que ela resiste a todos os testes possíveis de falsificação. Deste ponto de

vista, Popper não considera como científica a teoria psicanalítica. Mas não é pelo fato de

ela não poder ser suficientemente verificável ou confirmável, mas porque não podemos

indicar, a priori, nenhuma experiência e nenhum fato capazes de abalar ou de refutar

essa teoria.

Popper considera as teorias científicas como livres criações de nosso espírito, como o

resultado de uma tentativa feita para compreendermos intuitivamente as leis da natureza.

Contudo, não nos compete impor nossas criações à natureza. Pelo contrário,

simplesmente a questionamos, e procuramos obter, através dela, respostas negativas

quanto à verdade de nossas teorias. Não é nosso objetivo demonstrar ou verificar nossas

teorias. O que pretendemos fazer é testá-las, tentando infirmá-las ou fal-

95

Page 96: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

sificá-las. Em outras palavras, a intenção de Popper é mostrar que, nas ciências, não há

indução, consequentemente, não há o problema filosófico do "fundamento" da indução.

Em segundo lugar, nega que haja realmente, nas ciências, procedimento de verificação,

porque todos os testes a que são submetidas as teorias não passam de tentativas de

refutação. Finalmente, mostra que uma teoria, que consideramos como confirmada até

certo ponto pela experiência, não passa de uma teoria que ainda não conseguimos

infirmar, apesar dos esforços para consegui-lo.

Esta posição de Popper opõe-se diretamente às concepções oriundas do Círculo de

Viena. Num certo sentido, foi contra os empiristas lógicos que ele escreveu A lógica da

descoberta científica (1934). Num primeiro momento, os neopositivistas admitiram que só

seriam dotados de significação os enunciados empíricos (não lógico-matemáticos)

capazes, pelo menos em princípio, de serem verificados completamente por uma

evidência de tipo observacional (princípio da verificação). Os enunciados filosóficos, sem

nenhum procedimento de verificação, empírica, seriam desprovidos de significação e

inadequados para a discussão racional. Ora, diz Popper, semelhante posição não

somente é fatal para a metafísica, mas para a própria ciência. E a razão que ele dá éa

seguinte: todas as proposições de forma universal, quer dizer, exprimindo leis gerais, são

proposições que não podem ser validadas inteiramente por nenhum conjunto finito de

enunciados observacionais.

Os empiristas lógicos viram-se obrigados a mudar o critério da verificabilidade no sentido

estrito pelo critério da confirmabilidade parcial e, eventualmente, indireta pela evidência

observacional. Esta foi a solução proposta por Carnap em Testability and meaning

(1936). Todavia, Carnap não conseguiu desvencilhar-se da con-

96

Page 97: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

cepção indutivista e da ideia de uma confirmação positiva, pela experiência, das

hipóteses e teorias científicas. Os partidários da lógica indutiva defendem a seguinte tese:

as teorias científicas nunca são, propriamente falando, verdadeiras; elas são, isto sim,

mais ou menos prováveis; o que podemos atribuir-lhes, é um certo grau de confirmação

ou certa probabilidade, expressos por um número real entre 0 e 1, com base numa

determinada evidência observacional.

Ora, no dizer de Popper, esta concepção é errónea em seu próprio princípio: "Não creio

que seja possível construir um conceito da probabilidade de hipóteses capaz de ser

interpretado como exprimindo um 'grau de validade' da hipótese, de modo análogo ao

que se passa com os conceitos de 'verdadeiro' e de 'falso' (e que, além do mais, esteja

estreitamente ligado ao conceito de 'probabilidade objetiva', isto é, à frequência relativa,

para justificar o emprego do termo 'probabilidade')" (La Logique de la Découverte

Scientifique, p. 268). Portanto, a crítica feita por Popper à concepção de Carnap pode ser

resumida em três observações:

a) aquilo que procuramos nas ciências é um elevado conteúdo de informação e não

um alto nível de probabilidade;

b) o que pretendemos alcançar é um alto grau de confirmação, mas que esteja

apoiada num elevado conteúdo de informação;

c) a busca de uma probabilidade elementar implica a adoção de uma regra que,

contrariamente a todos os princípios, favoreça sistematicamente as hipóteses ad hoc (cf.

Conjectures and refutations, p. 287).

Assim, a probabilidade lógica de um enunciado é o inverso de seu grau de

falsificabilidade: ela aumenta à medida que decresce seu grau de falsificabilidade. As

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Page 98: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

proposições logicamente verdadeiras têm um grau de falsificabilidade nulo e uma

probabilidade igual a 1. Mas elas não têm nenhum Conteúdo informativo, nada nos

ensinando sobre o mundo. Assim entendida, a probabilidade não pode ser o ideal a que

devem prender-se as teorias científicas. Estas devem ligar-se a proposições dotadas de

conteúdo empírico* também chamadas de enunciados observacionais. Uma proposição é

dotada de conteúdo empírico real se, e somente se, seus "falsificadores potenciais"

pertencerem a uma classe não vazia. O que não é o caso das proposições filosóficas.

Quanto mais um enunciado excluir eventualidades, mais ele dirá coisas sobre o mundo

da experiência, e mais rico será seu conteúdo empírico. As leis da natureza, por exemplo,

são menos descritivas que proscritivas, pois, ao invés de afirmarem a existência de certos

estados de coisas, elas os proscrevem. A lei da conservação da energia pode ser

formulada do seguinte modo: "Não há máquina que seja animada de um movimento

perpétuo" (La Logique..., p. 67). Resulta disso que os enunciados logicamente

verdadeiros, compatíveis com qualquer estado do mundo, mas não tendo falsificadores

potenciais, são desprovidos de conteúdo empírico. Ora, os enunciados menos testáveis

são os mais dificilmente falsificáveis: os que têm o mais fraco conteúdo empírico e a

maior probabilidade lógica. Em outros termos, ao afirmar que a "preferibilidade" de uma

hipótese aumenta com o grau de sua "improbabilidade", Popper não quer dizer que a

hipótese mais vantajosa seja a que maior chance tiver de ser falsa, mas aquela que, por

sua forma lógica, for capaz de nos fornecer as melhores possibilidades de podermos

refutá-la e torná-la falsa.

Segundo Popper, não podemos dispor ás uma razão séria para considerar que uma

teoria seja verdadeira nem tampouco que ela possua um elevado grau de pro-

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Page 99: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

babilidade. Aquilo que o grau de confirmação de uma teoria faz intervir são tentativas de

confirmação negativa realizadas num determinado momento histórico, sem fornecer

nenhuma garantia quanto ao seu comportamento futuro. "Por grau de confirmação de

uma teoria, escreve Popper, entendo um relatório conciso avaliando o estado (num certo

instante í) da discussão crítica de uma teoria, concernente ao modo como ela resolve

seus problemas; (entendo) seu grau de testabilidade, o rigor dos testes a que ela foi

submetida e a maneira como ela resiste a esses testes" (Objective Knowledge, p. 18).

Isto, porém, não o impede de admitir que as teorias científicas aproximam-se mais ou

menos da verdade, quer dizer, correspondem mais ou menos exatamente aos fatos. Pelo

menos em certos casos, devemos fornecer razões para justificar que uma teoria nova

(por exemplo, a teoria einsteiniana) seja considerada melhor que uma teoria antiga (a

teoria newtoniana), por estar mais próxima da verdade. A fim de exprimir melhor essa

ideia, Popper introduz o conceito de verossimilitude lógica.

Este conceito nada tem a ver com os conceitos de "verossimilhança", de "probabilidade"

ou de "plausibilidade". Na verdade, ele combina duas noções: a) a de verdade semântica,

concebida como uma reconstrução formal da noção de verdade, no sentido de

"adequação à realidade"; b) e a de conteúdo de um enunciado: todos os enunciados

contidos neste enunciado. A construção deste conceito de "verossimilitude" é muito

complexa e exige uma elaboração bastante técnica. Contentemo-nos em mostrar que

Popper divide o conteúdo total de um enunciado em dois sub-conteúdos: o conteúdo de

verdade e o conteúdo de falsidade. De modo bastante esquemático, a verossimilitude

pode ser concebida como o excedente do conteúdo de verdade em relação ao conteúdo

de falsidade (cf. Conjectures and Refutations, pp. 391-

99

Page 100: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

397). De fato, somente em certos casos-limites (por exemplo 0 e 1), podem ser medidos

com exatidão o grau de verossimilitude, o conteúdo de verdade ou de falsidade, o grau de

confirmação ou, mesmo, de probabilidade lógica. Muito embora, na teoria, todos os

conteúdos sejam comparáveis, na prática, devemos limitar-nos aos raros casos

favoráveis em que teorias rivais fornecem soluções diferentes para os mesmos

problemas. Popper dá o exemplo da comparabilidade intuitiva da teoria de Einstein (E) e

da teoria de Newton (N):

— a toda questão à qual N dá uma resposta, também E fornece uma resposta pelo

menos tão precisa quanto a de N, quer dizer, o conteúdo de N é menor ou igual ao de E;

— há questões que E pode responder, enquanto N não pode; neste caso, o conteúdo

de N é menor que o de E.

Donde se pode concluir que a teoria einsteiniana é virtualmente melhor que a

newtoniana. Porque, antes mesmo de poder ser testada, podemos dizer que, se ela é

verdadeira, tem um poder explicativo maior, podendo fornecer mais informações sobre os

fatos. Se quisermos, porém, saber qual de duas teorias rivais (T1 e T2) será efetivamente

a melhor, num caso particular, devemos recorrer ao seguinte princípio geral: T1 tem uma

verossimilitude menor se, e somente se: a) seus conteúdos de verdade ou de falsidade

são comparáveis; b) o conteúdo de verdade (não o de falsidade) de T1 é menor que o de

T2; c) o conteúdo de verdade de T1 não é maior que o de T2, embora o seja seu

conteúdo de falsidade.

100

Page 101: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

3. Algumas conclusões:

1. O que nos interessou na filosofia das ciências de Popper foi, sobretudo, sua

posição contrária ao "princípio do empirismo" fundando o "verificacionismo"

epistemológico das teorias científicas: O desacordo de Popper é sobretudo em relação às

teses defendidas por Carnap. Não se trata de um desacordo quanto ao mecanismo da

invenção das hipóteses e das teorias científicas, Carnap achando que a lógica indutiva

poderia explicá-las satisfatoriamente, e Popper negando radicalmente essa possibilidade.

A teoria de Popper não visa, em absoluto, explicar como as hipóteses e as teorias podem

ser "livremente" criadas. Também a teoria de Carnap, expressa em sua lógica indutiva,

não é uma teoria da invenção das hipóteses: o que ela permite saber é até que ponto

determinada hipótese pode ser considerada como confirmada pela evidência empírica

disponível. Quanto a Popper, ao elaborar sua lógica das ciências, tenta afastar

explicitamente a consideração dos ways of discovery, não para defender os ways of

validation, mas para instaurar os ways of refutation. Em sua opinião, não deve interessar-

nos saber como uma teoria científica é descoberta pela primeira vez. Esta questão

pertence ao domínio pessoal. O que importa saber é como as teorias se verificam. Não

há um método lógico para descobrir ideias. Toda descoberta contém, diz Popper, "um

elemento irracional".

2. Um segundo elemento da filosofia das ciências de Popper é o seguinte: apoiando-

se na análise lógica das formulações científicas, defende a ideia de que não podemos

passar, por indução, da observação dos dados empíricos às hipóteses propriamente

científicas. As similaridades sobre as quais se apoia a indução só surgem,

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Page 102: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

no domínio da observação, por referência a um quadro "conjetural" capaz de antecipá-

las: "as teorias científicas não consistem em sumários de observações, mas em

invenções, isto é, em conjeturas" (Conjectures and Refutations, 1963, pp. 33-39). E ao

reafirmar a demarcação entre o discurso científico e todos os outros discursos, Popper dá

primordial importância à ideia segundo a qual uma teoria científica só tem valor quando

pudermos demonstrar que ela é falsa. Assim, ele faz da "falsificabilidade" de uma teoria o

próprio princípio de demarcação da ciência. Ademais, ele faz da "falsificabilidade" a

argumentação lógica capaz de levá-lo a preferir a infirmação à confirmação como forma

de controle experimental nas ciências.

3. Por outro lado, ao perceber que o critério da objetividade das proposições científicas

reside no fato de elas se prestarem à "validação intersubjetiva", Popper apresenta a

comprovação intersubjetiva como um simples caso particular da crítica intersubjetiva, isto

é, do "controle mútuo pela discussão crítica". Esta posição está bem formulada nas teses

defendidas por Popper em A lógica das ciências (em La Disputa dei Positivismo en la

Sociologia Alemana, Grijalbo, 1973). A tese número onze diz: "É absolutamente errôneo

conjeturar que a objetividade da ciência dependa da objetividade do cientista. E é

totalmente falso crer que o cientista da natureza seja mais objetivo que o cientista social.

O cientista da natureza é tão partidarista quanto o resto dos homens e, em geral, se não

pertence ao escasso número daqueles que produzem ideias novas, é extremamente

unilateral e partidário no que diz respeito às suas próprias ideias" (p. 109). E a tese

número doze afirma: "O que pode ser qualificado de objetividade científica baseia-se

única e exclusivamente na tradição crítica... Nessa tradição que permite criticar um

dogma dominan-

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te. Em outras palavras, a objetividade da ciência não é assunto individual dos diversos

cientistas, mas o assunto social de sua crítica recíproca... de seu trabalho em equipe e

também de seu trabalho .por caminhos diferentes, inclusive opostos uns aos outros" (p.

110).

4. Entre Popper e o empirismo de Carnap, não há uma divergência real quanto à

natureza da invenção nas ciências e quanto ao caráter essencialmente conjetural e

provisório das teorias e leis científicas. A divergência situa-se unicamente no que diz

respeito à natureza da relação lógica entre os enunciados científico se a evidência

empírica utilizada para testá-los. Contudo,não basta admitirmos a assimetria radical entre

o problema da verificação e o da falsificação no caso de uma hipótese ou de uma teoria,

para termos o problema resolvido. Popper retoma a tese já clássica segundo a qual

nunca é uma asserção isolada que comparece diante do tribunal da experiência, mas

todo um sistema de hipóteses e de asserções teóricas. E isto, de tal forma que,em

presença de uma evidência contrária, sempre possa ser efetuada uma revisão em

diferentes pontos do sistema, não podendo nenhum elemento do sistema estar, por

princípio, ao abrigo de uma possível revisão.

5. Diante da dificuldade de saber em que condições podemos considerar que uma

observação ou uma experiência entram realmente em contradição com determinada

teoria, Popper propõe a seguinte solução: não devemos proceder de um modo global,

mas passo a passo,para podermos atingir a comprovação de nossas explicações

científicas; ademais, grande número de conhecimentos tradicionais deve ser tomado

como adquirido cada vez, muito embora nenhum deles possa estar, em si mesmo, ao

abrigo de uma crítica, não devendo, pois,ser tomado como certo ou como bem

estabelecido. Quanto à possibilidade de princípio, de se preservar determi-

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Page 104: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

nada teoria, apesar de um desmentido infligido pela experiência, através da introdução de

hipóteses suplementares, a posição de Popper é a seguinte: é absolutamente contrária

ao espírito da ciência a tentativa de imunizar as teorias contra toda espécie de revisão,

fazendo-se apelo a "estratagemas convencionais". Em sua opinião, o que caracteriza o

método científico é justamente o desejo de expor deliberadamente as teorias, de todos os

modos possíveis, ao crivo da refutação, e não o de procurar defendê-las ou preservá-las

sistematicamente.

6. Do ponto de vista epistemológico, Popper se considera ao mesmo tempo um

racionalista, um empirista e um realista. Apresenta-se, assim, como um inimigo declarado

de toda espécie de convencionalismo, de pragmatismo e de subjetivismo. Para ele, o

universo da ciência faz parte daquilo que chama de o terceiro mundo, e não do segundo

mundo. O terceiro mundo é o mundo das teorias objetivas, dos problemas e dos

argumentos objetivos, "cortado" do mundo da subjetividade psicológica (segundo mundo).

E contra todas as tendências irracionalistas de nossa época, Popper sempre proclamou

sua fé no valor do conhecimento racional e sua convicção de que as teorias científicas

devem corresponder à realidade. O método empregado para alcançar esses objetivos

consiste essencialmente na utilização de conjeturas audaciosas, bem como em tentativas

engenhosas para refutá-las. O método não depende do ideal metodológico, mas da

realidade.

7. Ao afirmar claramente que o conhecimento científico não começa nem se

caracteriza pelas percepções ou pela observação, nem tampouco pela coleta ou re-coleta

dos dados ou fatos, mas pela colocação e solução de problemas, Popper chega à

conclusão de que o método das ciências deve consistir em "tentar possíveis soluções

para seus problemas". As soluções são propostas, mas

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criticadas. Se uma solução não for acessível à crítica objetiva. deve ser excluída como

não-científica. Se é acessível à crítica, devemos tentar refutá-la. Se uma solução é

refutada pela crítica, precisamos encontrar outra. Se resiste à crítica, passa a ser aceita

provisoriamente. Portanto, o método da ciência consiste na tentativa de solução de

problemas, devendo estar sob o controle crítico. E a objetividade científica se funda na

objetividade do método crítico: não há teoria "liberada" da crítica.

8. A partir de sua tese sobre o primado do problema, Popper faz uma crítica ao

cientificismo metodológico que tenta impor às ciências sociais o mesmo método das

ciências da natureza. Trata-se de um "naturalismo erróneo e equivocado" que tenta impor

às ciências sociais exigências como essas: "comecem com observações e medições, isto

é, com levantamentos estatísticos, por exemplo; e avancem indutivamente a possíveis

generalizações e à formação de teorias. Deste modo, chegarão mais perto do ideal de

objetividade científica... mas devem estar plenamente conscientes de que, nas ciências

sociais, é muito mais difícil se atingir a objetividade... porque a objetividade equivale à

neutralidade valorativa, e somente em casos extremos o cientista social consegue

emancipar-se das valorações de sua própria roupagem social, para ter acesso a certa

objetividade e assepsia em relação aos valores". "Na minha opinião", continua Popper,

"todas essas afirmações são radicalmente falsas e repousam numa compreensão

equivocada do método científico-natural; ademais, constituem um mito, o mito por demais

difundido, infelizmente, e influente do caráter indutivo do método das ciências da

natureza-e do caráter da objetividade científico-natural" (teses 6 e 7, op. cit. pp. 103-105;

nas teses seguintes, Popper elabora uma crítica ao "erro naturalista").

105

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9. Em suma, a epistemologia de Popper pode caracterizar-se como uma crítica

constante às concepções científicas já existentes, tentando sempre instaurar novas

hipóteses ou conjeturas ousadas, a fim de atingira explicação científica, jamais definitiva,

mas sempre aproximada. As ciências não procuram jamais resultados definitivos. As

teorias científicas irrefutáveis pertencem ao domínio do mito. O que deve caracterizar a

ciência é a falsificabilidade, pelo menos em princípio, de suas asserções. As asserções

"inabaláveis" e "irrefutáveis" não são proposições científicas, mas dogmáticas. Aliás, o

progresso da ciência se deve, em grande parte, ao fato de ela propor soluções

específicas para problemas específicos, submetendo-as incessantemente ao crivo da

crítica:esta gera o progresso, ao passo que as verdades "irrefutáveis" geram a

estagnação. O progresso do conhecimento científico está estreitamente ligado à

colocação correta dos problemas e às tentativas de dar-lhes soluções.

10. Não foi nossa intenção expor a obra histórica de Popper, nem tampouco traçar um

perfil completo de sua "filosofia das ciências". Pelo contrário, quisemos simplesmente, de

modo tão sucinto quanto fiel, contrapor ao princípio da verificabilidade, oriundo do Círculo

de Viena, o princípio da refutabilidade defendido por Popper, em matéria de metodologia

científica: do ponto de vista lógico, diz Popper, uma lei científica ou os seus enunciados

empíricos podem ser falsificados de modo conclusivo, mas não podem ser verificados de

modo conclusivo; do ponto de vista metodológico, porém, é o inverso que ocorre. O que

importa é que as teorias científicas sejam formuladas do modo mais aberto e menos

ambíguo possível, a fim de estarem sujeitas ao critério da refutabilidade. E quanto mais

ousadas forem as teorias formuladas para resolver os problemas colocados, tanto mais

serão fecundas e se tornarão mais capazes de nos

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Page 107: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

fornecer melhores informações sobre seus conteúdos de verdade. Todavia, aumenta

bastante o risco e as probabilidades de serem falsos os conteúdos dessas teorias.

11. Talvez fosse bastante interessante tentarmos fazer uma aproximação comparativa de

certas posições de Popper, em matéria de epistemologia, com certas posições

semelhantes de G. Bachelard. Que eu saiba, um estudo comparativo ainda está por ser

feito. Não pretendo aqui levá-lo a efeito. Gostaria apenas de sugerir alguns pontos de

concordância:

a) Tanto a filosofia das ciências de Popper quanto a de Bachelard caracterizam-se

por serem epistemologias críticas e polémicas, tentando "reformular" os conceitos

científicos existentes e "reformar" os conceitos filosóficos a respeito da ciência. Ambas as

filosofias são "anti-empiristas" e racionalistas e defendem a "tese" segundo a qual as

ciências devem produzir, a cada momento de sua história, suas próprias normas de

verdade;

b) Ambas as "filosofias das ciências" estão fundadas no princípio epistemológico de

base, segundo o qual o conhecimento científico jamais atinge uma verdade objetiva,

absoluta. A ciência só nos fornece um conhecimento provisório (Popper) e aproximado

(Bachelard).Ela jamais engloba fatos estabelecidos. Nada há, nela,de inalterável. A

ciência está em constante modificação (Popper) ou em permanente retificação

(Bachelard).Não podemos identificar "ciência" e "verdade". Nenhuma teoria científica

pode ser encarada como verdade final (Popper) ou como saber definitivo (Bachelard). A

objetividade científica reside única e exclusivamente no trabalho de crítica recíproca dos

pesquisadores (Popper) ou é o resultado de uma construção, de uma conquista e de uma

retificação dos fatos da experiência pela Razão (Bachelard). Uma teoria científica se

coloca perma-

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nentemente em estado de risco (Popper), ou, no dizer de Bachelard, "no reino do

pensamento, a imprudência é um método";

c) Segundo Popper, "a crença segundo a qual é possível principiar com observações

puras, sem que elas se façam acompanhar por algo que tenha a natureza de uma teoria,

é uma crença absurda". Em outras palavras, todas as observações já são interpretações

de fatos observados à luz de uma teoria. Segundo Bachelard, toda constatação supõe a

construção; toda prática científica engaja pressupostos teóricos; a teoria científica

progride por retificações, isto é, pela integração das críticas destruindo a imagem das

primeiras observações: "O vetor epistemológico vai da Razão à experiência, e não da

experiência à Razão";

d) Popper admita que, quanto mais específicos forem os enunciados empíricos, mais

probabilidades eles terão de se revelarem erróneos, mas também, maiores chances de

fornecerem melhores e mais úteis conteúdos informativos. Por sua vez, a epistemologia

de Bachelard se caracteriza pelo esforço de apreender a lógica do erro para reconstruir

uma lógica da descoberta da verdade como polémica contra o erro, como "refutação" dos

erros,mas também como uma tentativa de submeter as verdades aproximadas (jamais

inteiramente objetivas) da ciência e os métodos que ela utiliza a uma retificação metódica

e permanente. Neste particular, Popper não se interessa pela lógica da invenção ou da

criação. Talvez Bachelard venha completar Popper, ao postular a descoberta metódica,

na ciência, de uma ars inveniendi, em oposição à ars probandi do empirismo

epistemológico, elevando a um maior aprofundamento a ars refutandi dePopper. Com

efeito, a epistemologia de Bachelard se define por ser uma reflexão crítica sobre a

ciência, não enquanto "estado", mas enquanto "processo", em seu vir-

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a-ser. E ao colocar-se no centro epistemológico das oscilações do pensamento científico,

quer dizer, entre o poder de retificação das teorias (que é o da experiência) e o poder da

ruptura e da criação (ruptura com as antigas teorias e criação de novas), que pertence ao

domínio da Razão, Bachelard também postula, como Popper, um racionalismo. Seu

racionalismo, porém, chama-se aplicado, pois trata-se de uma filosofia que se atualiza na

"ação polémica incessante da Razão". Trata-se, ainda, de uma filosofia que se recusa ao

formalismo e ao fixismo de uma Razão una e indivisível. Ao aceitar como postulado

primeiro "o primado teórico do erro", a epistemologia de Bachelard define o progresso do

conhecimento como retificação incessante. Por sua vez, Popper afirma que o

conhecimento progride quando é retificado pelas críticas a ele dirigidas. Um

conhecimento que se furta à crítica, consequentemente, à refutação e à "retificação, está

fadado à estagnação. Tanto Bachelard quanto Popper contestam a epistemologia

positivista segundo a qual podemos separar a comprovação dos fatos da elaboração

teórica de que os fatos científicos extraem seu sentido. Segundo eles, se todo sistema de

enunciados empíricos com pretensões a uma validade científica precisa passar por uma

comprovação da realidade (Bachelard) ou ser testado por ela (Popper), nem por isso este

imperativo epistemológico deve ser pura e simplesmente identificado com o imperativo

tecnológico pretendendo subordinar toda formulação teórica à existência atual de

técnicas tornando possível verificá-la no momento mesmo em que ela se expressa.

Nenhum enunciado teórico, em contrapartida, pode ser tido como definitivamente

estabelecido: permanece a possibilidade teórica de se descobrir novos meios capazes de

questionar as observações atuais e de rejeitar a teoria que elas validam.

109

Page 110: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

Obras de K. POPPER:

— The Logic of Scientific Discovery, Hutchinson and Co.,Londres, 1959 (1ª edição de

1934).

— Misère de l'historicisme (trad. francesa), Plon, Paris,1956.

— Conjectures and refutations, Routledge and Kegan,Londres, 1963.

— Objective knowledge, Clarendon Press, Londres, 1972.

— La lógica de las ciências sociales, na obra coletiva traduzida para o espanhol, La

disputa dei positivismo en Ia sociologia alemana, Col. "Teoria y realidad",

Grijalbo,Barcelona — México, 1973. — Ver ainda, nesta obra, as discussões em torno

das teorias de Popper, por Th. Adorno, Sobre la lógica de las ciências sociales, pp. 121-

146; por J. Habermas, Teoria analítica de la ciência y dialéctica. Apéndice a Ia

controvérsia entre Popper y Adorno, pp. 147-180; por H. Albert, El mito de Ia razón total,

pp.181-219; por J. Habermas, Contra un racionalismo menguado de modo positivista, pp.

221-250.

N.B. Em português, há uma boa introdução ao pensamento de Popper, de Bryan Magee,

As ideias de Popper, Editora Cultrix, S. Paulo, 1974.

110

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A EPISTEMOLOGIA "ARQUEOLÓGICA" DE MICHEL FOUCAULT

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Não podemos compreender a formação epistemológica representada, atualmente, pelas

ciências humanas, em busca de um estatuto de positividade ou de cientificidade, sem

compreender sua relação com esse conjunto subjacente de conhecimentos e de cultura

que poderá ser denominado "saber pré-científico", "opinião" ou "episteme": infraestrutura

cultural do saber propriamente dito. A esse trabalho, entregou-se Michel Foucault,

especialmente em suas obra Les mots et les choses, cujo subtítulo já é sugestivo:

"arqueologia das ciências humanas". O que pretende Foucault é apresentar um certo

agenciamento global das ciências humanas no interior daquilo que ele chama de "o

triedro dos saberes", e que lhe permite definir uma espécie de espaço epistemológico da

constituição das ciências humanas de caráter racional e científico.

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1. O sistema das ciências humanas

O triedro do "saber", para Foucault, é um espaço epistemológico de três dimensões. Ele

se define a partir de três eixos principais da racionalidade organizadora do saber: 1º) o

eixo das Matemáticas e Psicomatemáticas, ciências exatas e protótipos da cientificidade;

2º) O eixo das Ciências da Vida, da Produção e da Linguagem: Biologia, Economia e

Ciências da Linguagem (que são ciências humanas); 3º) O eixo da Reflexão Filosófica

propriamente dita, desenvolvendo-se como "Pensamento do Mesmo" ou como "Analítica

da Finitude".

Tomados dois a dois, esses eixos definem três planos: 1º) O plano comum ao eixo das

Matemáticas e ao das três Ciências da Vida, da Produção e da Linguagem seria o das

Matemáticas Aplicadas; 2º) o plano comum ao eixo das Matemáticas e ao da Reflexão

Filosófica seria o da Formalização do pensamento; 3º) O plano comum ao eixo das

Ciências da Vida, da Produção e da Linguagem e ao da Reflexão Filosófica seria o das

Ontologias Regionais e das diversas filosofias da vida, do homem alienado e das formas

simbólicas. Teríamos, assim, o seguinte quadro:

As Ciências Humanas

Ciências da Linguagem

Ciências da Vida Produção da Linguagem

Matemáticas Aplicadas

Formalização

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Quanto às Ciências Humanas, não podem situar-se sobre nenhum dos três eixos, nem

tampouco em algum dos planos em questão. Elas são pura e simplesmente excluídas do

Triedro, pois não podem ser encontradas sobre nenhuma das dimensões nem na

superfície dos planos. Todavia, poderão ser incluídas no triedro epistemológico. De que

modo? No interstício desse saber. Mais exatamente: "no volume definido por suas três

dimensões". É aí, e somente aí, que elas encontrarão seu Lugar. Formam uma espécie

de nuvem de disciplinas representáveis, no interior do triedro, e participando mais ou

menos, de modo diversificado, de suas três dimensões. Elas aparecem, em primeiro

lugar, em conexão com as ciências da Vida, da Produção e da Linguagem. A cada uma

dessas disciplinas, correspondem "regiões epistemológicas" congregando um grupo de

ciências humanas com características comuns e certos modelos de organização do

saber. A primeira região é a das ciências Psicológicas: tomam de empréstimo à Biologia

um modelo que se equilibra em torno dos conceitos de "função" e de "norma". A segunda

é a das ciências Sociológicas: tomam de empréstimo à Economia política um modelo

girando em torno dos conceitos de "conflitos" e de "regras". A terceira, é a das ciências

Linguísticas e Culturais: tomam de empréstimo à ciência da linguagem um modelo

organizado em função das ideias de "sentido" e de "sistema". E assim se fecha o sistema

das ciências humanas nessa tríade de regiões epistemológicas.

Esse sistema, porém, não é tão simples assim. Em primeiro lugar, porque essas regiões

epistemológicas es-

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tão inseridas na História que também é ciência humana, e só poderão ser entendidas

numa compreensão da historicidade que é solidária da inteligência contemporânea da

história: não somente o ser do homem "tem" em torno de si "História", diz Foucault, mas

"ele mesmo é, em sua historicidade própria, aquilo através de que se esboça uma história

da vida humana, uma história da economia, uma história da linguagem". Em segundo

lugar, cada uma dessas "regiões" aparece como que habitada e abalada por um tipo de

prática que desempenha o papel de "contraciência": "perpétuo princípio de inquietação,

de questionamento, de crítica e de contestação daquilo que pôde apresentar-se como

adquirido". Tal é, para a região psicológica, a psicanálise; para a região sociológica, a

etnologia; e para a região linguística, uma espécie de forma suprema do pensamento da

linguagem, no limiar da consciência e da criação literária. Assim, as ciências humanas

instauram, após a aparência de uma proposição epistemológica positiva, o fenómeno de

uma dialética epistemológica que não somente perpassa mas arruína a imediata e

ingénua aparência de solidez que a constituição das diversas regiões sugeriam ao

espírito. E desse modo, termina o sistema de constituição das ciências humanas proposto

por M. Foucault.

2. A episteme ocidental antes da idade moderna

Esse sistema das ciências humanas que, para Foucault, é um resultado, e não um ponto

de partida, só será entendido pela compreensão dos princípios e das justificativas que ele

fornece nos nove primeiros capítulos

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de Les mots et les choses. São essas análises que constituem o estudo "arqueológico"

da episteme ocidental e constituem a arqueologia das ciências humanas, a descoberta,

por assim dizer, de suas raízes e de seus primeiros germes epistemológicos no solo da

cultura e do saber antes mesmo que elas' apareçam, que sejam batizadas com suas

atuais denominações, que se digam e sejam ditas "ciências humanas".

O que Foucault pretende analisar é a episteme ocidental. A palavra "episteme" é a

simples transliteração do termo grego que quer dizer saber ou ciência. No sentido

epistemológico antigo, a "episteme" não passa da simples "opinião" ou do mero "saber"

pré-científico. No século XVII, já sob a influência do cartesianismo filosófico e científico, a

episteme se apresenta como o pensamento do homem culto, do "homem honesto", com

tudo o que ela comporta de opinião, de aquisições culturais anteriores à ciência e ao

Cogito, de hábitos estranhos ou contrários aos do Cogito e aos da ciência, embora já

impregnados pela emergência do Cogito e das ciência, bem como por sua filosofia e pela

metodologia da mathesis universalis. Nesse sentido, a episteme vai-se caracterizar, não

pela pureza do santuário epistemológico, nem pela profanidade daquilo que permanece

fora do santuário, mas pela exportação, para fora do santuário, dos valores que ele

encerrava, o que implica uma transgressão dos gestos puros do santuário. Assim, a

fisionomia da episteme vai depender do estado de suas emergências científicas e

racionais cuja linguagem todo mundo fala ou pretende falar.

O intuito de Foucault é estudar os momentos sucessivos da episteme ocidental. Quer

descobrir as etapas de sua progressão, em direção ao triedro dos saberes e do

agenciamento das ciências humanas. Nesses momentos sucessivos, os germes ou os

núcleos das três disciplinas;

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que se situam sobre o segundo eixo do saber (ciências da Vida, da Produção e do

Trabalho, e ciência da Linguagem), são tomados como centros de gravidade de sua

investigação. Foucault descobre três momentos da episteme: a época da Renascença

(século XVI); a época clássica da ciência e das Luzes (séculos XVII e XVIII); e o período

que se inicia com o século XIX (1820) e que vem até nós. Foucault estuda apenas o

segundo período: a idade clássica, de Descartes até o século XIX. A episteme do século

XVI serve apenas para introduzir o assunto. A que se segue à idade clássica e que vem

até.nós, é antes de tudo um segmento aberto, um intervalo ainda não totalizado durante o

qual surgem novas diferenças que sé instauram e se consolidam, desenvolvem suas

consequências até o presente estado de coisas. Isso não quer dizer, porém, que o atual

estado de coisas represente a figura de equilíbrio epistemológico de todo o intervalo.

Foucault descobre outras tendências. Posições também são tomadas, típicas da filosofia

do autor. Nada disso, porém, pode levar a um quadro epistemológico seguro e definitivo.

Fornece-nos apenas um esboço epistemológico ainda sumário, cómodo para fixar as

ideias, como ponto de partida para o ensino atual sobre a epistemologia das ciências

humanas. Contudo, não se pode negar a considerável contribuição que constitui a

conexão desse esboço com o olhar investigador proposto por Foucault sobre as

formações epistemológicas sucessivas de que dependem atualmente a emergência e a

organização das ciências humanas.

3. A episteme clássica da representação

São as formas sucessivas da episteme clássica que Foucault estuda de modo mais

completo e pertinente.

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Ele utiliza, para a caracterização dessa entidade epistemológica, o termo de

representação. Analisando o uso desse termo na filosofia de Descartes e de Kant, bem

como a doutrina que sobre ele foi estabelecida por Hegel na Filosofia do Espírito,

Foucault chega à conclusão de que é preciso situar e caracterizar a representação, não

somente como um fato mental, mas como um registro epistemológico específico, cuja

compreensão é necessária à atitude científica (ou racional) de todo um período do

pensamento e da cultura.

Assim, a representação se caracteriza antes de tudo de modo bastante clássico, tal como

é proposta por Descartes nas Regulae ad directionem ingenii e como intervém nas

formas clássicas de constituição da matemática e da física matematizada do século XVII,

cuja primeira grande obra sintética aparece com Newton: Philosophia naturalis principia

mathematica. Desse ponto de vista, o sistema newtoniano é constituído pela doutrina das

ideias claras e distintas de Descartes, que substitui o jogo das identidades e das

diferenças pelo jogo das similitudes, no momento em que se trata de compreender as

noções e de constituí-las. Ao se tentar estruturar a compreensão das noções, privilegia-

se os esquemas da ordem e da medida como princípios organizadores do conhecimento

científico. Este vai buscar seu estímulo, sua animação, seu princípio estruturante e

organizador na ideia de uma mathesis universalis que deverá fundar-se na prática geral

da consideração da ordem e do apelo à medida. Todavia, não se reduz a isso, a

representação como forma da episteme clássica.

Para Foucault, a representação deverá ser entendida a partir da compreensão da função

do signo. O estatuto do signo, no período da episteme clássica, é uma das diferenças

mais sintomáticas dessa episteme relativamente à época anterior: "No limiar da idade

clássica,

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o signo deixa de ser uma figura do mundo;... ele não espera silenciosamente aquele que

pode reconhecê-lo; jamais se constitui por um ato de conhecimento; servir-se de signos

não é, como nos séculos precedentes, tentar descobrir por baixo deles o texto primitivo

de um discurso tido e mantido para sempre; é tentar descobrir a linguagem arbitrária que

autorizará a manifestação da natureza em seu espaço, os termos últimos de sua análise

e as Isis de sua composição" (pp. 72-77). Ao mesmo tempo, a lógica do signo muda

profundamente. E isso, até nossos dias. A antiga economia do signo era ao mesmo

tempo unitária e tríplice, comportando três elementos distintos: o que era marcado pelo

signo, o que nele era marcante e o que permitia ver nisto a marca daquilo. Esse sistema

unitário e tríplice desapareceu ao mesmo tempo que o "pensamento por semelhança".

Ele foi substituído por uma organização estritamente binária, por um sistema igual ao da

representação por um quadro: de um lado, aquilo que é representado; de outro, o quadro

representante. Por sua vez, esse quadro representante é investido da representatividade

clara e distinta: par significante-significado funcionando indissociavelmente graças à

natureza da representação. E isso, a tal ponto que "a evidenciação do significado nada

mais será senão a reflexão sobre os signos que o indicam (...) e que na idade clássica, a

ciência pura dos signos vale como o discurso imediato do significado" (pp. 80-81).

Em seguida, porém, e levando-se em conta a função mental da imaginação na

organização da representação, desenvolvem-se certos segmentos de normatividade

epistemológica que não podem ser ignorados. A ciência clássica (física e matemática)

organiza-se como a própria mathesis, lugar de conveniência das "naturezas simples", da

álgebra ou da análise matemática. Todavia, para além do pensamento da ordem, que é a

própria alma da

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Page 121: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

mathesis e o princípio distintivo de toda a economia da representação, surgirão no saber

dois novos segmentos de organização do conhecimento: o primeiro é o que Foucault

chama de taxinomia; o segundo, ulterior, de "análise das gêneses" (estudo da ordem das

produções e dos desenvolvimentos constitutivos no tempo). A taxinomia parece

corresponder à mathesis como a disciplina das representações complexas. A esse

respeito, Foucault traça o seguinte diagrama:

CIÊNCIAS GERAIS DA ORDEM

NATUREZAS SIMPLES

MATHESIS

REPRESENTAÇÕES COMPLEXAS

TAXINOMIA

ÁLGEBRA

SIGNOS

Esse diagrama corresponde apenas aos dois primeiros membros do trinômio: mathesis,

taxinomia e estudo das géneses: "entre a mathesis e a gênese, situa-se a região dos

signos — dos signos que atravessam todo o domínio da representação empírica, mas

não a extrapolam jamais. Margeado pelo cálculo e pela génese, é o "espaço do quadro",

espaço da empiricidade, diz Foucault, que não existiu até o fim da Renascença e que

está fadado a desaparecer a partir do início do século XIX (pp. 86-87).

4. A arqueologia das ciências humanas

É justamente no domínio epistemológico constituído por esse "espaço do quadro" situado

entre o cálculo das igualdades e a génese das representações, que aparecem os

primeiros núcleos desse saber em referência aos quais começam a se constituir as

ciências humanas: "É nessa região que se encontra a história natural, ciência

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dos caracteres que articulam a continuidade da natureza e seu entrelaçamento. Também

é nessa região que se encontra a teoria da moeda e do valor, ciência dos signos que

autorizam a troca e permitem estabelecer equivalências entre as necessidades e os

desejos dos homens. Enfim, é aí que se situa a gramática geral, ciência dos signos

através dos quais os homens reagrupam a singularidade de suas percepções e recortam

o movimento contínuo de seus pensamentos" (p. 88).

Define-se, assim, na episteme clássica, um lugar epistemológico onde vão congregar-se

(segundo suas afinidades) e assumir a fisionomia específica de antigos esboços de

conhecimento: as histórias naturais da Antiguidade, da Idade Média e da Renascença; os

rudimentos da economia; as gramáticas particulares e as primeiras reflexões filosóficas

sobre a linguagem. Não se trata ainda dos saberes modernos da Vida, do Trabalho (e da

produção), da Linguagem e da Cultura. Trata-se de formações de caráter original e de

duração transitória, mas que deixaram vestígios no tempo, sobretudo nas obras de

cultura. Donde, num primeiro sentido, o caráter "arqueológico" desse estudo: volta a

certas obras enquanto monumentos de uma época, mas que atestam o clima geral do

pensamento e do saber de um período histórico, constituindo, por assim dizer, os

"arquivos" de uma cultura e de seu saber. Aparece, então, o segundo sentido do caráter

"arqueológico": pode-se ler, no estado antigo, melhor do que no novo, o que foram os

começos e os princípios geradores das disciplinas científicas. A volta ao passado

esclarece o presente e facilita sua leitura em profundidade. A arqueologia, ciência das

coisas velhas, também é para a ciência, em certa medida, ciência das iniciativas capitais

e das inspirações fundamentais. Donde a importância de retornar aos estados antigos do

saber aparentados com os que hoje chamamos de ciências

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humanas, para interrogar, sua constituição e seu funcionamento epistemológicos.

Não vamos entrar aqui no pormenor das análises feitas por Foucault, concernentes às

formas clássicas da teoria da linguagem, da história natural e da doutrina das riquezas.

Basta-nos ver como essa epistemologia da representação pode servir-nos para

compreender o estádio ulterior da episteme, que surgiu com o século XIX e no qual nos

encontramos ainda. Ademais, convém notar que essas três modalidades clássicas do

"saber" não são, para Foucault, ciências humanas, nem tampouco "ciências" precursoras

de nossas atuais ciências humanas. Ao contrário, não passam de núcleos arcaicos

dessas disciplinas que situamos no segundo eixo do "triedro dos saberes", muito embora

conduzam o pensamento à ideia de "homem", tal como ela aparece no século das Luzes,

com sua antropologia tentando unificar os diversos saberes concernentes à realidade

humana.

5. O início da era da positividade

A episteme clássica está hoje encerrada. Seu campo histórico-cultural entra por completo

no domínio do estudo epistemológico-arqueológico. O mesmo não se dá com a episteme

que surgiu com o século XIX e que vem até nós. Pode-se detectar facilmente os

fenómenos iniciais de ruptura. O presente é, até certo ponto, descritível. Todavia, a

compreensão de conjunto dessa fase cultural permanece ainda em suspenso, e a

doutrina sobre ela, bastante problemática.

De qualquer forma, a época da transição começa com a Revolução Francesa. Em 1820,

já estamos diante de uma episteme inteiramente nova. Desmonta-se o sistema clássico

da representação. Novos campos de estudo

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Page 124: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

se instauram. Emerge com muita força a consciência da História: o sentido da

historicidade do homem, bem como de suas obras e de sua cultura. Também emerge a

infra-estrutura do trabalho produtivo a título de objeto de saber. E para além do quadro do

mundo vivo, constata-se a emergência da realidade da vida organizada, com sua

fisiologia e sua ecologia (objetos da biologia moderna). Enfim, para além das gramáticas

gerais, surgem as realidades flexionais e vocálicas da linguagem. Em todos esses casos,

vemos aparecer, por detrás e por baixo do sistema de representação, uma realidade de

infraestrutura subjacente, aprofundando cada vez mais em direção das últimas raízes da

positividade empírica. Nesse sentido, a palavra-de-ordem do novo saber, não é mais a

procura da representação simples e imediata, mas a busca da última positividade do real,

o esgotamento fenomenológico da coisa em si.

De fato, para as disciplinas que apareceram situadas sobre o segundo eixo do "triedro

dos saberes", há uma transmutação profunda do núcleo epistemológico clássico: trata-se

do advento, quase científico, de um novo regime do saber. A história natural transforma-

se em biologia (saber da "Vida", biologia geral e biologia humana). A teoria das riquezas

e do valor torna-se conhecimento científico do homem trabalhador, produtor e consumidor

de realidades vendáveis. A doutrina da gramática geral converte-se em ciência da

linguagem. Portanto, é em torno desses núcleos, transformados epistemologicamente,

pela passagem do classicismo à época do século XIX e de nossa contemporaneidade,

que vão aparecer as diversas ciências humanas atuais. Desde o início, elas pretenderam

associar algo da cientificidade das ciências matemáticas e físicas, algo da coesão

racional dos saberes da Vida, do Trabalho e da Palavra humana, e algo, enfim, da

determinação filosófica da

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reflexão e das análises da finitude humana. Podemos dizer que a transformação

epistemológica realizada com a superação desses três núcleos da idade clássica —

superação do nível da representação pelos saberes ulteriores da positividade da Vida, do

Trabalho e do Falar humano — equivale à superação daquilo que G. Bachelard chama de

"obstáculo epistemológico" opondo-se, no interior do espírito ainda "pré-científico", à

constituição de uma ciência verdadeira. Uma vez eliminado o obstáculo epistemológico

de certo desconhecimento da positividade na doutrina clássica da representação, as

ciências humanas podem constituir-se e aparecer em estado livre no espaço do saber.

Entretanto, isso não se deu sem uma reação exercida sobre os símbolos filosóficos de

inauguração (Cogito cartesiano) e de recapitulação da episteme clássica. Vejamos a

reação sobre o símbolo recapitulativo da filosofia das Luzes que é o Homem. Esse

homem da representação e das Luzes aparece doravante como que retomado por sua

própria positividade. Ele não passava de uma imagem de sonho. Estava envolto em

sombras que as "Luzes" vieram dissipar. Vivemos o desfecho da antropologia, a

desintegração do homem, dois fenómenos epistemologicamente conexos à emergência

atual de certas disciplinas humanas, que Foucault chama de "contra-ciências": a

Psicanálise, a Etnologia (de Lévi-Strauss) e um certo saber nos confins da ciência da

linguagem e da prática literária. Nesse sentido, o Homem, o homem das Luzes, seria o

último legado da era da representação transmitido filosoficamente à época ulterior: "O

homem é uma invenção cuja data recente a arqueologia de nossa época mostra

facilmente. E talvez o fim próximo" (p. 398).

Les mots et les choses são um grande afresco, cativante e bastante instrutivo, da história

genética das

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Page 126: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

ciências humanas; história que culmina num agenciamento global dessas disciplinas.

Temos aí, sobretudo no capítulo X, um primeiro modelo do estudo da relação de todo o

conjunto das ciências humanas com um pressuposto de saber e de cultura de que elas

terminam por emergir com a fisionomia que se apresentam hoje. "Arqueologia", espécie

de epistemologia à Ia Piaget, mas transportada do elemento do sujeito individual

estudado em seu devir mental ao elemento do sujeito coletivo representado por uma

população pensante em devir histórico e por uma espécie de gerações sucessivas

interessando mais pelas etapas filogenéticas do que pelas ontogêneses individuais da

formação coletiva do saber. Donde sua importância fundamental para todos aqueles que

se preocupam com a epistemologia geral das ciências humanas. Essa obra propõe, com

efeito, no limiar de tal epistemologia, um esquema de reflexão talvez mais unificado do

que o encontrado na obra também fundamental de G. Gusdorf. Introduction aux sciences

humaines — essai critique sur leurs origines et leur dévelopment (Paris, Belles Letres,

1960).

6. Epistemologia arqueológica

Enquanto epistemologia, a "arqueologia" de Foucault pode colocar-se sob o patrocínio da

filosofia do conceito, pois sua teoria da episteme outra coisa não é, como ele próprio

reconhece, senão a teoria de um sistema. Não se trata de uma teoria do método

científico, mas de uma teoria do dispositivo que funda o sistema das ciências, seu campo

epistemológico, sua estrutura e sua história. Ele chega ao conceito de episteme por uma

démarche arqueológica: busca das géneses ideais da época clássica. Diferentemente

das demais arqueologias (arqueologia

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positiva: que busca a origem do homem e segue o fio de sua história; arqueologia

ontológica: que remonta ao fundamento, buscando a origem do homem no Ser como

origem; arqueologia fenomenológica: que busca a origem, no homem, e a origem do

homem, na Natureza), a arqueologia proposta por Foucault não visa a descoberta da

origem do homem, mas o fundamento das ciências humanas. O campo epistemológico

ou o domínio onde ela se situa, não é a ciência, mas o solo sobre o qual se constrói a

ciência. Trata-se de um sistema, não de códigos de regras relativamente à percepção e à

palavra, mas de ordem fundamental que deve orientar e reger as ciências, constituindo

para elas um a priori histórico. É essa experiência da ordem que determina o "espaço

geral do saber", bem como as afinidades entre as ciências. Também é ela que comanda

a experiência das coisas. Não são as coisas que constituem problema. Toda a

problemática é determinada pela "disposição epistemológica" do momento histórico (p.

357). Para a epistemologia, o importante não é o objeto tratado por uma ciência, mas o

lugar que esta ou aquela ciência ocupa no espaço do saber. No que diz respeito às

ciências humanas, "não é o estatuto metafísico ou a indelével transcendência desse

homem de que elas falam, mas a complexidade da configuração epistemológica em que

elas se encontram situadas" que explica sua dificuldade, suas incertezas e sua

precariedade (p. 359).

7. Conclusões

a) Apesar de seu enorme interesse e de sua importância para o estudo da constituição

das ciências humanas, em que se mostram insatisfatórias as análises

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Page 128: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

de Foucault? Em primeiro lugar, elas são comandadas, epistemologicamente, pelo

emprego de um método e de um modo de pensar que também não escapam a essa

episteme que ele descreve como sendo a da representação. Toda a sua abordagem visa

a propor ao leitor uma representação, um quadro do saber, atualizados com os meios que

são os da episteme da represenção. Evidentemente, ele fala de um "sistema das

positividades" que também é um "sistema das simultaneidades" e, enfim, um "sistema

geral do saber" (p. 77). Foi através dessas noções que ele fez uma leitura dos textos

filosóficos do passado. Talvez possamos ver nelas a expressão da noção de

Weltanschauung própria à filosofia da história alemã ou da noção de totalidade cultural

própria às antropologias que visavam a compreender a solidariedade das instituições e a

unidade da cultura. No entanto, Foucault tem a pretensão de ser mais rigoroso e mais

preciso. Mas podemos perguntar se tal rigor não seria devido à fidelidade a uma

"concepção" espacial substituindo o lugar de uma estrutura topológica. E se tal precisão

não seria o fruto de uma decisão arbitrária, pois o campo epistemológico fica reduzido ao

estudo de três positividades : vida, trabalho e linguagem. Será que a física e a

matemática não exprimiriam também a experiência da ordem? Será que as mutações ou

as descontinuidades da episteme não seriam menos bruscas e mais compreensíveis se

fossem resituadas na vida da totalidade cultural? Não seriam essas descontinuidades um

empecilho à compreensão do progresso do saber? Recusando ao mesmo tempo a

história e aquilo que assegura a continuidade da história — a permanência de uma

natureza humana estruturada pelo a priori —, a arqueologia e o a priori histórico de

Foucault parecem condenar a história, pois não pertencem a um sujeito histórico. Por que

essas mutações? Por que o a priori é histórico?

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Page 129: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

b) O que mais se poderia contestar a Foucault é que, para ele, as ciências humanas

não falam do homem. Na dimensão própria ao inconsciente, elas analisam normas,

regras, conjuntos significantes que revelam à consciência as condições de suas formas e

de seus conteúdos. A psicanálise e a etnologia aí ocupam um lugar privilegiado. A

primeira se esforça por fazer falar, através da consciência, o discurso inconsciente que

sempre se esquiva, embora esteja sempre presente. Também a segunda não atinge o

homem, mas a região situada fora do homem e a partir da qual se pode saber

positivamente aquilo que se dá ou escapa à consciência.

c) O que se deve entender por "existência" ou "inexistência" do homem? Trata-se

apenas de um “conceito" ou da multidão dos homens concretos que encontramos

diariamente vivendo, agindo, criando e existindo? Em sua significação moderna, o

"existir" aparece como uma "palavra". Foi assim que Rousseau, traduzindo o Cogito

cartesiano, o "eu penso, logo existo", afirmou que "o mais útil e menos avançado de

todos os conhecimentos humanos" residia precisamente no conhecimento do homem. E

isto, porque os livros científicos nos ensinam apenas a ver os homens tais como eles se

fizeram. Ora, tais como eles se fizeram, pela cultura, os homens não "existem" mais,

apenas "aparecem". Por conseguinte, o homem estudado pela ciência não passa de um

fenómeno humano, fenômeno que se tornou presa de uma linguagem. Como poderia o

homem voltar a existir no interior da cultura? Foi de certa desconfiança em relação ao

desenvolvimento da cultura que nasceu o problema da "existência" do homem. Nietzsche

foi, sem dúvida, o primeiro filósofo que, ao atacar violentamente a ciência, a moral e a.

metafísica reinantes de seu tempo, chegou à conclusão de que não somente Deus estava

morto, mas de que o homem estava também morrendo.

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E hoje Foucault retoma a mesma assertiva: "O homem é uma invenção cuja data recente

a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo" (p. 398).

No entanto, sempre se falou do homem. Segundo Foucault, uma coisa é certa: o homem

não é o mais antigo dos problemas nem tampouco o mais constante que se colocou ao

saber humano. Por outro lado, ele não pode ser o acesso à objetividade daquilo que,

durante muito tempo, esteve entregue ao domínio das crenças e das filosofias. Talvez

fosse mais correto dizer que o homem é a onipotência do saber, e que compete à

arqueologia determinar suas disposições fundamentais. Este saber do homem está

contido no círculo do saber religioso, filosófico, científico e arqueológico. É neste sentido

que se pode compreender o êxito de Foucault: os homens atuais estão esmagados pela

cultura e por seus resultados. O humanismo atual é uma abstração. Todos os gritos do

coração, as reivindicações da pessoa humana e da existência estão, a seu ver,

separados do mundo científico e técnico, o único mundo real. Para Foucault, o

humanismo é um pára-vento por detrás do qual se esconde um pensamento reacionário,

formado de todo tipo de alianças monstruosas, não se sabe em nome de quê. Em nome

do homem é que não pode ser, diz Foucault (Quinzaine Uttéraire, maio 66). Porque nossa

geração não reivindica "o homem contra o saber e contra a técnica". Seu esforço em

"mostrar que nosso pensamento, nossa vida, nossa maneira de ser, até mesmo nossa

maneira de ser mais cotidiana, fazem parte da mesma organização sistemática e,

portanto, dependem das mesmas categorias que regem o mundo científico e técnico. É o

"coração humano" que é abstrato, e é nossa pesquisa, que quer ligar o homem à sua

ciência, às suas próprias descobertas, ao seu próprio mundo, que é concreta".

130

Page 131: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

d) E o que significa a ciência, de que tanto hoje nos orgulhamos? Ela mais parece um

acervo de conhecimentos acumulados nos livros do que conhecimentos que, de -fato,

possuímos em nós e que possamos compreender. A linguística e a etnologia nos

ensinam, diz Foucault, que estamos submetidos a leis que nos escapam. A psicanálise,

por sua vez, mostra-nos que somos aquilo que ignoramos ser. Presos entre a

superlinguagem da ciência e a sublinguagem da comunicação de massa, não sabemos

mais o que significa verdadeiramente falar. Aqueles que pretendem saber utilizam um

poder anônimo para conduzir-nos, contra nossa vontade, a um lugar que nos foi como

que preestabelecido por um destino inelutável. Tudo indica que é a civilização científico-

técnica que elabora, sob medida, as condições "ideais" de nossa existência. O esforço

do homem reduz-se a uma tentativa de adaptação a essas condições. Nesse sentido, o

termo "humanismo" passa a significar a instauração de um reino de felicidades anunciado

e programado pelos tecnocratas. Neste reino, o homem estaria desembaraçado deste

enfadonho trabalho de pensar. Trata-se de um reino que corresponde a este tipo de

sociedade sem vida, de que fala Bachelard, onde o homem é livre para fazer tudo,

embora nada tenha para fazer; onde ele é livre para pensar, muito embora nada mais

encontre para pensar. A ciência pensará por ele, saberá em seu lugar. Quanto a nós,

homens, estamos dormindo, num verdadeiro estado de sono antropológico, caracterizado

pelo que Foucault chama de psicologismo e de sociologismo.

e) Na filosofia desse pensador, pois, o homem não passa do conceito de homem, de

uma figura desvanecente num sistema temporário de conceitos: o homem é, então, um

ser finito que só existe para o tempo em que o sistema o reivindica, o funda e lhe confere

um lugar .pri-

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Page 132: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

vilegiado. Passado esse tempo de promoção à existência epistemológica, ele volta a ser

um ser humano, um ser entre os seres, situado em algum lugar do sistema do saber.

Foucault não considera o homem real, o que se afirma como homem e que defende seus

interesses, o homem que tem desejos e que realiza. O que importa é que "o pensamento

seja para ele mesmo saber e modificação daquilo que ele sabe". Contudo, se o

pensamento "sai de si mesmo", não é para entrar no mundo e marcá-lo com sua

presença: não há mundo, só há positividade, às quais o sistema liga o destino do homem.

Todavia, esse homem é recusado como inventor do sistema e como objeto no sistema. É

o sistema, "feixe único de necessidades" ("conjunto de relações que mantém, se

transformam independentemente das coisas que essas relações religam") que torna

possíveis essas individualidades que chamamos de Hobbes ou Berkeley, Hume ou

Condillac (p. 77). O indivíduo, enquanto tal, só tem opiniões, que não constituem um

pensamento. É o pensamento imanente ao campo epistemológico que constitui as

opiniões. As mutações que o animam são "acontecimentos na ordem do saber",

impessoais e imprevisíveis. Só tem o direito de falar em primeira pessoa aquele que

pensa o sistema. Tal sistema é anónimo e sem sujeito. O que ele pensa é a descoberta

do "há": há um "algo" (on) indeterminado, um pensamento anônimo, um saber sem

sujeito, teórico, sem identidade; em todas as épocas, a maneira como as pessoas

refletem, escrevem, julgam, falam, experimentam as coisas, todo o seu comportamento é

dirigido por uma estrutura teórica, por um sistema que muda com as épocas e as

sociedades.

f) Como podemos notar, o homem é rechaçado ao mesmo tempo como sujeito e como

objeto do sistema. A filosofia tem algo melhor sobre o que pensar, -do que pensar o

homem. Aqueles que ainda se obstinam em pen-

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sá-lo, não somente pensam mal, mas são cúmplices de uma mistificação. Porque o

homem, na perspectiva de Foucault, não é um objeto difícil, por ser simplesmente um

objeto inexistente. Sem dúvida, há seres humanos, mas o homem não passa de um mito.

As propriedades e os privilégios que os humanistas atribuíram ao homem, a este

fantasma, são ilusórios. Uma antropologia digna deste nome é aquela que visa a

compreender o pensamento, e de forma alguma aquela que tenta interrogar-se sobre o

homem. Fazendo isto, "o pensamento adormece de um novo sono" (p. 353) e a ciência

se extravia. Quanto às ciências humanas, elas oscilam entre a ciência empírica, a ciência

formal e a reflexão filosófica. Por isso mesmo, eles são instáveis, perigosas e estão em

perigo (p. 359). Torna-se, pois, necessário destruir o mito. E foi para melhor

desembaraçar-se deste mito, que Foucault tentou analisar as condições de aparecimento

das ciências humanas. Sua teoria é conhecida: o homem só aparece no campo do saber

no limiar do século XIX, e está, hoje, fadado a um desaparecimento próximo. Sem dúvida,

como já dissemos, é o conceito de homem que está em jogo. Foucault fala da imagem

tradicional que se tinha dó homem e, por conseguinte, de todo o humanismo clássico que

tentou resolver, mas sem conseguir, em termos de moral, de valores e de reconciliação,

os problemas das relações do homem com o mundo, os problemas da realidade, da

criação artística, da felicidade, etc.

g) Situa-se aqui, a nosso ver, a grande ambiguidade da epistemologia de Foucault, se é

que ela não pode ser definida como uma filosofia ambígua. Porque na medida em que ela

exclui totalmente o homem real, para considerá-lo apenas como conceito, não

pertencendo mais a um grupo ou a uma coletividade concreta, mas reduzindo-se a um

elemento de um sistema, ela ignora por

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completo que o homem é um ser de necessidades e o sujeito da história. Neste sentido,

poderíamos dizer com Sartre: "O essencial não é o que se fez do homem, mas o que ele

faz daquilo que fizeram dele". O que fizeram do homem, continua Sartre, "são as

estruturas, os conjuntos significantes que as ciências humanas estudam. O que ele faz é

a própria história, a superação real dessas estruturas numa praxis totalizadora"

(Entrevista a L’arc nº 30).

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A EPISTEMOLOGIA "CRÍTICA"

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Page 137: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

Ao lado das três grandes correntes epistemológicas contemporâneas, cada uma tentando

entender e explicar a atividade científica, através de uma elucidação das relações entre

Teoria e Experiência, entre Razão e Fatos, procurando estabelecer o valor e a

significação dos Métodos, dos Resultados ou da Linguagem das Ciências: 1. a

epistemologia lógica, visando a um estudo acurado da linguagem científica e uma

pesquisa metódica das regras lógicas que presidem a todo enunciado correto (empirismo

ou positivismo lógicos); 2. a epistemologia genética, tentando elucidar a atividade

científica e partir de uma psicologia da inteligência, culminando num estruturalismo

genético e construtivista (epistemologia de J. Piaget); 3. a epistemologia histórico-crítica,

procurando elucidar a produção das teorias e dos conceitos científicos a partir de uma

análise da própria história das ciências, de suas revoluções e das démarches do espírito

científico (Bachelard, Canguilhem, Foucault); ao lado, pois, dessas três maneiras de

abordar a ciência em sua

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atividade, vemos surgir, recentemente, um novo tipo de epistemologia, a epistemologia

crítica, fruto da reflexão que os próprios cientistas estão fazendo sobre a ciência em si

mesma. Trata-se de uma reflexão histórica feita pelos cientistas sobre os pressupostos,

os resultados, a utilização, o lugar, o alcance, os limites e a significação sócio-culturais da

atividade científica. O que eles pretendem mostrar é que as ciências, hoje em dia, não se

impõem mais por si mesmas; que seus resultados não poderão mais impor-se de modo

evidente e triunfante; que as ciências não poderão mais constituir a verdade das

sociedades atuais; que suas virtudes em nada são evidentes; que os pesquisadores

precisam interrogar-se sobre a significação da ciência que estão fazendo; que eles não

poderão mais fazer abstração da maneira como o conjunto da pesquisa científica é

institucionalizado, organizado, orientado, financiado e utilizado por terceiros; que o

próprio trabalho científico está profundamente afetado pelas novas condições em que ele

é realizado na sociedade industrial e tecnicizada; que os pesquisadores devem

responsabilizar-se pelas consequências que suas descobertas poderão ter sobre a

sociedade; que eles precisam tomar consciência de que, na vida da ciência, há duas

séries de forças atuantes: as forças externas, que correspondem aos objetivos da

sociedade; e as forças internas, que correspondem ao desenvolvimento natural da

ciência; portanto, precisam tomar consciência de que a ciência está cada vez mais

integrada num processo social, industrial e político.

A epistemologia crítica, pois, tem por objetivo essencial interrogar-se sobre a

responsabilidade social dos cientistas e dos técnicos. Esta interrogação torna-se hoje

uma das questões cruciais de nossa cultura. E foram os próprios cientistas que, em

primeiro lugar, colocaram este problema. Há algumas décadas atrás, nem mesmo

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os intelectuais mais extremistas, que contestavam todas as instituições existentes,

ousavam criticar a ciência. Nem tampouco os niilistas mais ferrenhos, ao atacarem todos

os valores reinantes, colocaram em questão a ciência. Ao contrário, estavam convencidos

de que a ignorância era a fonte de todos os males, e de que somente a ciência poderia

resolver todos os problemas e curar todos os males da sociedade. Todavia, tal otimismo

desapareceu. Muitos cientistas inclinam-se a pensar que a própria ciência está na origem

de muitos males. Sem dúvida, o espírito da filosofia das Luzes continua bastante vivo. Há

toda uma mentalidade mais ou menos difusa tendo por fundamento ideológico a fé na

ciência e em seus resultados: o domínio da natureza, a riqueza material, a organização

eficaz da vida social, etc. Contudo, paira cada vez mais uma suspeita sobre o número

crescente de consequências do desenvolvimento científico: a degradação das relações

individuais nas sociedades industrializadas, a utilização das pesquisas científicas para

fins destruidores, a possibilidade de manipulação crescente dos indivíduos, a utilização

maciça dos cientistas, de seus métodos e de seus "produtos" para fins repressivos, a

obsessão patológica pelo consumo, gerando um esgotamento irracional dos recursos

naturais e uma poluição praticamente irreversível do meio ambiente, etc. Diante desta

situação, quê é nova, os cientistas começam a reagir. E é a esta interrogação sobre a

significação real da ciência que podemos chamar de "epistemologia crítica". Com efeito, a

ciência, para a opinião pública, apresenta-se como um poder onipotente, como um saber

mágico, admirado, temido, intervindo em todos os domínios da vida. Podemos dizer que a

sociedade atual parece venerar uma nova Santíssima Trindade: Ciência-Técnica-

Indústria. Trata-se de um triunvirato do Saber que não pode mais apresentar-se como um

conhecimen-

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to puro. imaculado ou aristocrático, como uma contemplação amorosa da Verdade, mas

como um conhecimento eminentemente tecnicizado, governando de modo quase

absoluto um gigantesco processo de produção racionalizado e industrializado. Preso no

feixe das mil solicitações do "ter" e das motivações do chamado establishment, mas

também submetido às astúcias de um controle social sempre mais insidioso, o homem

moderno encontra-se como que instalado no conforto prometido por uma tecnonatura

sempre mais aperfeiçoada. Onde ele pode depositar suas esperanças? Tanto o sonho

ingénuo do século das Luzes, quanto a mitologia científica do século XIX, prometendo ao

homem um progresso indefinido da ciência, como motor essencial e incansável da

felicidade humana, pareceu não mais ter razão de ser. Tudo indica que, hoje em dia, os

cientistas tornaram-se objeto de propaganda. Quem não os vê sendo exibidos em toda

parte como vedetes ou campeões? Como se fossem um precioso capital, um alto

investimento cuja rentabilidade deve ser garantida: uma moeda de troca, uma imagem de

marca nacional ou ideológica. Num certo sentido, a função do cientista foi teatralizada.

Ele é uma espécie de iceberg do saber flutuando sobre o oceano de nossas ignorâncias e

incertezas. Toda a parte oculta e propriamente científica, de seu trabalho parece justificar

seu estatuto privilegiado, que ninguém parece contestar. No entanto, o cientista não pode

ser estranho à "sociedade do espetáculo". Nos últimos tempos, ele saiu de sua ficção

neutralista e, com ele, também a ciência.

Tornou-se famosa, no início da última guerra mundial, a afirmação de Oppenheimer:

"Quando vocês virem algo de tecnicamente delicioso (sweet), continuem em frente e

façam-no, sem se perguntarem sobre o que é preciso fazer, a não ser depois que vocês

tiverem obtido seu sucesso técnico". Como podemos notar, esta tran-

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quila "irresponsabilidade", que faz com que a ciência conserve seu caráter lúdico, não

somente degrada o cientista, mas revela a impotência da própria sociedade em conceber

um projeto que seja capaz de finalizar o progresso científico, uma vez que ele estaria

entregue à anarquia de seu próprio crescimento. Ora, relativamente a este crescimento, é

claro que o Estado intervém, sobretudo pela limitação dos créditos. Neste sentido, o

cientista fica submetido a instâncias burocráticas estranhas à atividade propriamente

racional. Donde a disputa dos cientistas, que se verifica na concorrência em vista da

obtenção de financiamentos. Por outro lado, enquanto a ciência da ciência permanecer,

para o cientista, um desejo meramente romântico ou o objeto de uma futurologia vaga, o

único modo que ele tem para reconquistar sua autonomia consiste em vincular-se ao*

poder, para que este inspire diretamente uma política da ciência. Todavia, mesmo neste

caso, semelhante política ainda permanece uma aliança do possível, do provável e do

desejável: uma mescla de racional e de irracional. De qualquer forma, ao se aproximarem

do poder político, os cientistas aumentam sua dependência. Sendo assim, teria ainda

sentido falarmos de neutralidade isolacionista?

Se tomarmos, por exemplo, um acontecimento de alcance universal, cuja causa possa

ser atribuída à "irresponsabilidade" ou "alienação" dos cientistas, como poderiam eles

reagir? Há duas possibilidades de tomada de posição: a) ou eles aceitam esta alienação

como se ela fosse um estado de coisas natural, continuando a estabelecer uma distinção

nítida entre a responsabilidade da criação e a da utilização do saber; b) ou então,

revoltam-se contra ela, mas também contra seu estado de produtores "neutros" de

informações, passando a preocupar se com os objetivos fundamentais da pesquisa,

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onde todo trabalho intelectual deve adquirir sua significação final. Segundo esta hipótese,

os cientistas deverão modificar sua concepção fundamental da natureza de sua tarefa.

Por outro lado, deverão abandonar a ideia segundo a qual a ciência sempre é positiva

(isenta e neutra de qualquer contaminação) para aceitar a ideia de uma ciência crítica,

capaz de analisar as relações que ela mantém com a sociedade, bem como as

orientações ou utilizações eventuais que esta sociedade poderá impor-lhe. Fazendo isto,

os cientistas tomarão consciência de seus descompromissos tradicionais, passando a

preocupar-se com as utilizações que podem ser feitas de suas descobertas e invenções

para fins não-humanos. Todavia, segundo a primeira hipótese, os cientistas que

adotarem tal atitude continuarão a confinar-se numa estreita divisão do trabalho e a fugir

a toda responsabilidade. O argumento que utilizam, aparentemente irrefutável, concerne

à objetividade científica: esta nada tem a ver com os engajamentos pessoais. Daí

poderem os cientistas refugiar-se na ideia segundo a qual, não havendo um trabalho

eticamente neutro e livre de toda e qualquer referência a um sistema de valores, a ciência

perderia seu caráter de objetividade, ficando ao sabor das flutuações ideológicas.

Contudo, é um fato que a imagem da ciência está mudando. As condições materiais e

sociais da pesquisa chamada de "pura" (teórica ou fundamental) alteraram-se

substancialmente. Donde a questão: o que vem a ser, hoje, a ciência? E qual é sua

verdadeira significação? Falar da significação da ciência consiste em elucidar, de um

lado, o termo "ciência", do outro, o termo "significação". Será que ainda podemos falar de

a ciência? Não seria melhor e mais correto empregarmos o termo no plural, e dizermos

as ciências? Quando dizemos a ciência, não estaríamos adotando, de início, um

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ponto de vista idealista? Por outro lado. pelo termo "significação", não estaríamos

expressando, em primeiro lugar, que a ciência deve ser considerada como uma prática

humana"? Com efeito, "significação" quer dizer, antes de tudo, a. intenção subjetiva do

cientista. Esta intenção se caracteriza pela busca do Conhecimento, muito embora tal,

conhecimento, desde Descartes, esteja fundamentalmente orientado para o que se

convencionou chamar de "dominação da natureza". Em segundo lugar, o termo

"significação" serve para evocar as intenções explícitas ou implícitas daqueles que, direta

ou indiretamente, orientam ou dirigem a política científica. E esta orientação se faz, hoje

mais do que nunca, para o aumento da produção e para o desenvolvimento tecnológico.

Todavia, o que a epistemologia crítica pretende mostrar é que, uma vez que o

conhecimento científico se torna cada vez mais um poder, é este próprio poder que irá

constituir, nas sociedades industrializadas, a significação real da ciência.

Independentemente das motivações subjetivas dos cientistas, a significação da ciência

deverá ser procurada no poder que o saber hoje em dia confere.

Este "poder" da ciência não se situa fora dela. Nem tampouco é de grande utilidade a

velha distinção entre ciências fundamentais e ciências aplicadas. Porque é na experiência

de seu próprio poder que a ciência, mesmo teórica ou fundamental, constitui-se como

saber. Vejamos, no entanto, os dois polos em que se situa a ciência: de um lado, o polo

do saber; de outro, o do poder. O saber pelo saber está na base do desenvolvimento da

ciência. Contudo, não se pode negar que, hoje em dia, ela desempenha um papel tão

importante no desenvolvimento das forças produtoras, que há uma preeminência do

saber para o poder. Ninguém contesta que a pesquisa científica, sobretudo em nossos

dias, comanda cada vez

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mais diretamente todo o desenvolvimento económico. O lugar que a ciência ocupa na

sociedade atual é tão grande e tão significativo, que ela se torna uma das mais

importantes atividades humanas, a ponto de constituir-se mesmo numa das formas

específicas da existência moderna do homem. E é a partir desse fato que parece

completamente sem significação real a distinção entre ciência desinteressada (teórica ou

pura) e o que pode ser chamado de ciência-técnica ou aplicada. Na realidade, todo o

processo científico, da pesquisa fundamental ao crescimento económico, passando pela

pesquisa aplicada ou de desenvolvimento, está intimamente vinculado ao poder que o

saber científico confere. Parafraseando Nietzsche, podemos dizer que não é mais

possível admitirmos a "imaculada concepção da ciência". De há muito que ela perdeu sua

"inocência" ou sua "candura". De há muito que ela é cúmplice do processo de

industrialização. Não só ela contribui, mas continua a organizar tal processo, continua a

racionalizar seu funcionamento e a estabelecer sua soberania. De um lado, ela recebeu

esta materialidade manifesta de um poder, quer dizer, esta garantia de um poder-fazer;

do outro, foi levada a multiplicar a estatura de seus próprios empreendimentos, o poder

de seus instrumentos, a resistência de seus materiais e, por conseguinte, a ampliar o

campo de suas investigações: do microcosmo (química do ser vivo, física das partículas)

ao macrocosmo (exploração do espaço).

Com a industrialização, a prática científica mudou de escala como que de natureza. O

tempo da "ciência académica", autónoma e livre, foi pouco a pouco dando lugar a uma

ciência dependente do Estado ou da indústria. E hoje, ela entrou no grande jogo

diplomático das políticas nacionais da ciência. A little science do passado

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cedeu lugar à big science atual. Houve uma invasão da vertigem do quantitativo. A

pesquisa foi absorvida na espiral do crescimento. Está sempre à cata de créditos. Aceita

os contratos que lhes são ofertados para subsistir. A corrida armamentista se serve dela.

Outrora promessa de felicidade, a ciência torna-se ameaça de morte. Está hoje

subordinada a instâncias burocráticas que são estranhas à atividade "racionalizante". E

as tomadas de decisão não estão mais submetidas a uma regulamentação propriamente

científica.

Mas, afinal, o que vem a ser a ciência? Definições, é o que não falta. Muitas são

demasiadamente amplas, a ponto de não mais distinguirem entre ciência e especulação.

Outras são por demais restritas, a ponto de reduzirem a ciência ao saber fundado em

fatos observáveis, traduzidos numa linguagem formalizada e susceptível de uma

verificação experimental em laboratório. Há uma maneira "idealista" de se conceber a

ciência: ela seria esta procura desinteressada do Conhecimento ou da Verdade. Por outro

lado, há um modo realista, porém, ingénuo de concebê-la: ela se confundiria com a

tecnologia, com o saber meramente operacionalizável, destinado a produzir

industrialmente. Uma coisa é certa: não podemos definir de modo "neutro" e "objetivo" o

que vem a ser "a ciência". Se, por um lado, ela é uma pesquisa metódica do saber, por

outro, podemos considerá-la como uma maneira de interpretar o mundo. Na realidade,

porém, podemos considerá-la como uma instituição, com suas academias, seus grupos

de pressão e seu ritual próprio. E seria verdadeiro dizer que ela se torna cada vez mais

um métier. Basta analisarmos atentamente as condições reais do trabalho científico para

percebermos que ele está impregnado de problemas sociológicos e políticos. Resulta,

então, que seria temerário dizer que existe "ciência" autónoma, pura ou absoluta. Pelo

contrário,

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somos levados a crer que o saber científico não é mais, como outrora, eminentemente

racional, nem muito menos o detentor de uma "razão" imutável. As normas da ciência são

históricas e, por isso mesmo, são condicionadas e evoluem. Por outro lado, não podemos

afirmar com tranquilidade que os cientistas sejam isentos de preconceitos ou de partis-

pris. Eles se servem de sua imaginação. Não estão ao abrigo das ideologias nem das

pressões sociais. Na medida em que a ciência penetrou na indústria, foi profundamente

industrializada. Isto não quer dizer que os fins meramente utilitários predominem na

orientação da ciência, mas que as normas intelectuais e éticas dos cientistas sofreram os

efeitos de novos imperativos, passando cada vez mais a depender das decisões e dos

financiamentos externos ao "mundo científico". As escolhas dos cientistas, que a princípio

eram "livres", tiveram que se dobrar às opções estranhas ao interesse imanente à

ciência.

Assim, o que pretende mostrar a epistemologia crítica, é que a verdadeira significação da

ciência não reside mais no saber enquanto tal, mas no poder que ele efetivamente

confere. E é na experiência de seu próprio poder que a ciência se constitui como saber.

Isto se aplica, quer aos conceitos, cujo caráter cada vez mais operatório pressupõe

sempre uma experimentação (real ou simulada), quer às teorias, pois estas só são

reconhecidas como verdadeiras na medida em que são verificadas (feitas verdadeiras)

pela experiência, o que implica uma dupla operacionalidade: a primeira, intrínseca à

teoria, tenta resolver equações ou fazer funcionar "operadores"; a segunda, de natureza

experimental, tenta construir dispositivos experimentais e efetuar medidas. E é por isso

que, na ciência, não se distinguem mais a consciência de saber" e a "consciência de

poder". Porque, de fato,

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conhecer cientificamente, hoje mais do que nunca, consiste em saber que se sabe fazer.

Por conseguinte, quer no plano teórico, quer no prático, a ciência se justifica por seu

poder. Aliás, este é um dos argumentos mais utilizados pelos cientistas quando se trata

de angariar fundos para suas pesquisas: o interesse social ou prático que elas poderão

proporcionar. E se não fosse assim, qual seria sua importância social? Donde se conclui

que não há distinção rígida entre "ciência" e "técnica", pois não se pode considerar a

primeira como um "em-si", independentemente de seu exercício concreto, nem tampouco

dissociar o discurso científico de sua verificação prática, que implica uma técnica. Com

efeito, o método experimental e dedutivo, com quatro séculos de sucessos inegáveis,

aumenta dia a dia seu impacto sobre a vida social e individual, a ponto de quase

ninguém, no domínio do saber, deixar de apoiar-se em sua eficácia tecnológica. Donde a

supervalorização da "tecnocracia" que, em última análise, consiste, quer no poder da

técnica ou da ciência realizada, quer no poder de certos homens, os "tecnocratas". E a

ideologia que funda a ciência como poder chama-se cientificismo. Razão pela qual a

epistemologia crítica tenta desvendar sua significação atual.

O cientificismo contemporâneo, através de um processo de "anexação imperialista", criou

uma ideologia que lhe é própria. Essa ideologia tem todas as características de uma

verdadeira religião. O grande público como que venera e presta culto a esta nova

divindade do século: a ciência, sobretudo, suas maravilhas tecnológicas. Não há muita

diferença entre os adeptos da "religião ciência" e os partidários das outras religiões. Até

podemos nos perguntar se o cienticismo não suplantou as demais religiões tradicionais,

pelo menos enquanto "religião" assegurando todas as "verdades". Sua influên-

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cia nas mentalidades e na educação em todos os níveis é tão grande, que suas

"verdades" parecem indiscutíveis ou assemelham-se a dogmas inquestionáveis. E tudo

isso, apesar de o grande público ser quase analfabeto em matéria de ciência. Neste

domínio, a ignorância chega a ser estarrecedora. Até mesmo nos meios universitários, a

ciência quase não é conhecida, pois continua a ser ensinada tão enigmaticamente (como

previra e ordenara Comte), quase como se ela fosse uma "verdade revelada".

E é por isso que a palavra "ciência" exerce tal fascinação e tal poder na mentalidade do

homem comum, que chega até a apresentar-se como se tivesse uma essência quase

mística. Evidentemente, isto é profundamente irracional. Mas nem por isso a grande

maioria dos homens deixa de ver na ciência uma espécie de "magia negra", tão

indiscutível e incompreensível é a autoridade de suas "verdades". E é exatamente nisso

que consiste o caráter "religioso" do cientificismo. Enquanto tal, esta dimensão é

irracional e emocional em suas motivações. Contudo, por outro lado, em sua prática

cotidiana, chega a ser profundamente intolerante. Sem falarmos do aspecto de que o

cientificismo tem a pretensão de ter superado todas as religiões e todos os mitos.

Pretende basear-se única e exclusivamente sobre a Razão. O que nem sempre é

verdade. Contudo, aos olhos do grande público, as palavras dos tecnólogos, dos

tecnocratas e dos experts (os novos "pontífices" dessa nova "religião") apresentam-se

como a última palavra em matéria de verdade a ser criada. A língua dessa "religião" é

bastante hermética e incompreensível. Aliás, nem chega a ser uma língua, mas um

conjunto de dialetos, cada um com seu jargão especializado, numa verdadeira "torre de

Babel" onde ninguém entende ninguém. E toda a realidade, inclusive a experiência e as

relações humanas, teriam que exprimir-se nesta linguagem cifrada, como se o mundo

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fosse uma estrutura particular no seio das matemáticas. Em suma, a ciência e a

tecnologia, que dela decorre, resolverão todos os problemas do homem. E somente os

experts estão habilitados a tomar decisões, pois só eles sabem e, por conseguinte,

somente têm valor seus pareceres.

Ora, o cientificismo atual, levando ao paroxismo o do século passado, não se apresenta

com dogmas escritos ou explícitos, muito embora possa ser ilustrado por certas obras,

por exemplo, O acaso e a necessidade, de J. Monod. Todavia, podemos extrair dele

certos dogmas, sem termos a pretensão de que eles sejam aceitos por todos os

cientistas. Tais dogmas constituem um verdadeiro Credo, cujas "verdades" estão

recobertas de mitos que a epistemologia crítica procura desvendar. Poderíamos sintetizar

tal Credo nas seguintes "verdades" inconfessadas, implícitas do cientificismo atual. Em

primeiro lugar, há toda uma mentalidade que só admite como verdadeiro e real o

conhecimento cientificamente comprovado, isto é, aquilo que pode ser expresso

quantitativamente, que pode ser formalizado ou ser reproduzido em condições de

laboratório. O conhecimento que não satisfizer a esses condições, deverá ser tomado

como falso, irreal ou simplesmente subjetivo. Conhecimento verdadeiro é aquele que é

universal, quer dizer, válido em todos os tempos e lugares, para todas as pessoas, para

além das sociedades e das formas de cultura. As sensações, as experiências do amor,

do prazer, da dor, da emoção, da beleza, etc., devem ser abolidas do dicionário do

conhecimento verdadeiro. Porque, de fato, só os cientistas conhecem. Só eles sabem. E

só é objeto de conhecimento, aquilo que pode ser repetido em condições de verificação

experimental. Em seguida, e em suma, a verdade se identifica com o conhecimento

científico. Toda realidade, para ser conhecida de modo verdadeiro,

149

Page 150: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

precisa ser abordada por um método que empregue uma concepção "mecanicista",

"formalista" ou "analítica". O que é conhecido de outra forma, é desprovido de

significação cognitiva.

É deste vasto domínio de questões que se ocupa o que hoje se denomina epistemologia

crítica. Certos cientistas começam a compreender a ambiguidade do papel que

desempenham ou que são forçados a desempenhar no seio da sociedade. E desejam

construir uma ciência responsável, não somente consciente de seu papel real e de suas

funções sociais, mas também preocupada em controlar ou, pelo menos, assumir suas

próprias atividades dentro dá sociedade. Eles querem avaliar as consequências que

podem ter, sobre a sociedade e sobre o futuro da humanidade, os resultados de suas

pesquisas e invenções científicas. Diante delas, não querem permanecer passivos ou

nesta atitude de "neutralidade" própria a um colecionador de selos, mas não àqueles que

interferem diretamente, quer queiram, quer não, nas transformações sociais. Ao tentarem

fazer uma reflexão para descobrir os pressupostos e os condicionamentos sócio-culturais

de sua atividade científica, os cientistas estão desenvolvendo uma atividade

epistemológica que nós chamamos de "crítica". Não se trata, de forma alguma, de negar

a especificidade da ciência. Trata-se de mostrar que ela não constitui um mundo à parte,

uma espécie de reino isolado onde os cientistas viveriam para o "saber desinteressado".

Evidentemente, eles constroem um saber rigoroso, governado por normas racionais,

onde as teorias são confrontadas com as experiências. Todavia, o que a epistemologia

crítica pretende evidenciar é que, na prática, as coisas se complicam e as pesquisas não

têm essa transparência e essa objetividade que frequentemente lhes atribuímos. O que

está em questão é o próprio papel da ciência. Se há uma "crise" da ciên-

150

Page 151: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

cia, é porque há cientistas que se interrogam sobre a significação de seu trabalho, sobre

a verdadeira significação ou função que a atividade científica deve desempenhar na

sociedade, e sobre as responsabilidades que eles devem assumir diante daquilo que

fazem. Por outro lado, se há uma "crise" do meio científico, é porque os efeitos diretos ou

indiretos da ciência sobre iodos os setores da vida social suscitam reações de temor, de

medo, de frustração, quando não de rejeição. Sem dúvida, decisões precisam ser

tomadas. Pena é que não haja um método objetivo e racional para determiná-las.

Este tipo de análise é desenvolvido por um dos mais ilustres membros da "Escola de

Frankfurt", J. Habermas (daremos outras ilustrações na bibliografia). Com efeito, em La

tecnique et Ia science comme "idéologie" (trad. francesa), Habermas faz uma análise

bastante pertinente do tema "Ciência e Sociedade". Em particular, ele se detém sobre

essas questões essenciais de que falamos acima. E para abordar o problema das

relações entre ciência e técnica, por exemplo, bem como entre prática social e política,

ele distingue três modelos: 1. Segundo o modelo decisionista (que toma de empréstimo a

M. Weber), há uma subordinação dos especialistas àqueles que decidem politicamente.

São estes que formulam as opções fundamentais, referindo-se de modo mais ou menos

"racional" a certos valores; mas são os especialistas que fornecem os "meios racionais"

de ação; 2. Com o modelo tecnocrático, há uma inversão nas relações entre o

especialista e o político: o político torna-se apenas o órgão executor de uma intelligentsia

científica. Ao invés de serem colocados em termos políticos, no sentido clássico do

termo, os problemas se transformam em questões meramente técnicas. Como tais,

devem ser resolvidas pelos experts. As questões concernentes à finalidade, aos objetivos

a serem perseguidos, são elimi-

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Page 152: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

nadas. O que se pretende fazer é depender as decisões políticas única e exclusivamente

da lógica das "coações objetivas". E é por ver em tudo isso uma ilusão perigosa, que o

autor prefere optar por um terceiro modelo; 3. O modelo pragmático deve ser preferido,

pois somente ele implica um verdadeiro diálogo entre o especialista e o político. Sendo

assim, o desenvolvimento das técnicas deve ser orientado em função de um "projeto

político" que precisa levar em conta as possibilidades técnicas. Somente este modelo

pode, para Habermas, apresentar um vínculo necessário com a democracia. Atualmente,

porém, este diálogo não somente é difícil, mas quase impossível, pois. a tecnocracia

impera e domina. Daí a urgência em se instaurar as condições de um verdadeiro controle

político, de não mais confundirmos questões técnicas (como fazer?) com questões

relativas aos fins (qual o tipo de sociedade que queremos?).

Ao retomar o conceito weberiano de "racionalidade", para caracterizar a forma

"capitalista" de atividade econômica (forma de trocas no nível do direito privado e forma

burocrática de dominação), Habermas reconhece que, hoje em dia, a "racionalização"

está profundamente vinculada à institucionalização do progresso científico e técnico. E a

"racionalidade" científica atual passa a ser apenas uma escolha entre estratégias, quer

dizer, entre os modos de se utilizar adequadamente as tecnologias e de organizar os

"sistemas" tendo em vista finalidades preestabelecidas e fixas em situações dadas. No

entanto, na medida em que esta racionalização se apresenta, sob as aparências de

reflexão e de reconstrução racional, como um feixe de interesses macroeconômicos, no

seio do qual são feitas as opções estratégicas e utilizadas as tecnologias, ela se amplia

inevitavelmente ao domínio da manipulação técnica. Isto vai ter como consequência um

tipo de atividade de dominação

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Page 153: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

sobre a natureza, mas também sobre a sociedade. É neste sentido que a racionalidade,

por sua própria estrutura, é o exercício de um controle. Donde a identidade entre "ciência"

e "técnica" e, por conseguinte, entre "técnica" e "dominação". Em virtude de seu próprio

método e de seus conceitos, a ciência projetou um mundo no interior do qual a

dominação sobre a natureza converteu-se também em dominação sobre o próprio

homem. E na medida em que a transformação da natureza implica na dominação do

homem, o a priori da tecnologia não pode deixar de ser "político", uma vez que ela se

torna a forma universal da produção material, define uma cultura e projeta, assim, um

"mundo" inteiramente diferente.

E é exatamente por isso que a imagem de marca do cientista e de suas atividades está

hoje seriamente comprometida e desvalorizada. A ciência, outrora, por definição,

apresentava-se como a procura de uma verdade absoluta, racional e universal. Ela se

distinguia das outras formas de conhecimento (artístico, místico, filosófico) pela

objetividade de seus teoremas, pela certeza de suas leis e garantia de seus resultados

experimentais, cuidadosamente estabelecidos e verificados. Ora, a ciência é hoje

produzida numa sociedade bem determinada, que condiciona seus objetivos, seus

agentes e seu modo de funcionamento. Ela se torna uma prática social entre outras,

irremediavelmente marcada pela sociedade em que se insere, apresentando todas as

marcas dessa sociedade, refletindo todas as suas ambiguidades e contradições, tanto em

sua organização interna quanto em sua aplicação propriamente tecnológica.

Assim, o que a epistemologia crítica pretende mostrar é que o poder do conhecimento já

se transformou, desde algum tempo, em conhecimento do poder. A ciência

contemporânea, herdeira experimental da religião

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Page 154: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

medieval, realiza hoje as mesmas funções que a teologia desempenhava na Idade Média.

Até parece que seu papel seja o de compensar, com sua inteligência eterna de

especialistas, os sentimentos de impotência, de frustração e de ignorância do homem

moderno. Na realidade, porém, ela é a soma organizada e racional de suas limitações,

para não dizer, de suas alienações. O poder da ciência tornou-se tão espetacular, que ele

não encontra mais normas exteriores a si mesmo. No domínio das chamadas ciências

exatas, podemos constatar que a significação do conceito de natureza parece consistir na

delegação do poder que constitui o processo científico-técnico. O homem moderno

delegou sua ciência físico-química aos mísseis, mas também, por outro lado, delegou seu

saber aos computadores, aos programas, aos processos de automação e de cibernética

social. E, com isso, ele se torna um alienado. No fundo, podemos dizer que ele não

"sabe" mais aquilo que confia ao processo de que é a origem. Quer dizer: não sabe mais

aquilo que pode. Portanto, não pode mais aquilo que pode. Porque não é mais ele quem

pode, mas o próprio poder da ciência realizada em técnica. E a "racionalidade" científica

transforma-se em ideologia, a partir do momento em que pretende impor-se como a única

forma de racionalidade possível. Podemos ilustrar isso a partir de uma análise sumária do

conceito de objetividade.

Quais as características da atividade científica atual, tais como a epistemologia

contemporânea as percebe? Em primeiro lugar, a epistemologia atual reconhece a

construção de objetos susceptíveis de compor um feixe de relações mais ou menos

formalizadas. Esses objetos podem ser puramente ideais (lógicos ou matemáticos). E o

feixe de dações forma sistemas fechados, regidos por algoritmos definidos a priori. Ou

então, este feixe de relações pode ser constituído por referência a uma

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realidade, sendo o papel da axiomatização o de reinterpretar dedutivamente o conjunto

dos resultados adquiridos num domínio limitado; ou então, o de servir de instrumento de

pesquisa num campo inexplorado onde os dedos de observação não se prestam

diretamente à hipótese experimental. Em segundo lugar, a epistemologia reconhece as

operações repetíveis praticadas sobre esses objetos e sobre suas relações. Esta

repetibilidade pode ser o fato do algoritmo empregado ou o da verificação experimental. É

dela que deriva a ideia de "controle objetivo" a que deve submeter-se o cientista.

Finalmente, a epistemologia reconhece a extensão dos conhecimentos (chamada de

"progresso"): de um lado, visando a construção de objetos novos, de outro, levando em

conta a fragmentação de um domínio do saber, dando-lugar à ramificação de uma

ciência-mãe em várias disciplinas novas.

Dessas características, a epistemologia crítica tira as seguintes consequências: 1. "A"

ciência não existe. Só existem "ciências". Nenhuma delas constitui um sistema definitivo

do saber; 2. O valor da objetividade científica deve-se ao valor dos objetos construídos,

ao poder dos modelos empregados relativamente aos dados da experiência, e não a uma

reprodução fiel da "realidade"; 3. A objetividade científica não está isenta de erros, nem

tampouco pode eximir-se de uma escolha; 4. Só podemos falar de "verdade" científica no

sentido de uma conveniência entre os modelos e as predições que eles podem autorizar

e os fatos realmente pertinentes. Esta conveniência se define, formalmente, por uma não-

contradição; 5. Nas ciências experimentais, a "prova" consiste em mostrar que as

respostas da experiência às questões que lhe são colocadas, não contradizem uma

hipótese num conjunto com exclusão das demais; 6. A objetividade se define, em última

análise, por um respeito às

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Page 156: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

regras relativas ao objeto construído e, de forma alguma, por uma vaga adequação da

Razão à "realidade".

E é por isso que se pode dizer que a objetividade da ciência e da cientista só pode ser

um valor de ordem ideológica que se acrescenta à atividade científica. Ela é o resultado

de uma dupla objetivação: de um lado, a do produto desta atividade, cujo

desenvolvimento conseguimos parar a fim de estabelecermos um saber que reproduza

"parte" do real; do outro, a do agente detentor do saber, em troca de sua neutralidade e

de sua submissão ao real. Portanto, a epistemologia crítica não nega que a ciência seja

objetiva, quer dizer, forneça verdades até certo ponto independentes da história e

daqueles que a fazem. Também não ignora que o cientista seja objetivo, quer dizer, seja

capaz de descobrir essas verdades, apagando-se, até certo ponto, diante delas, e

fazendo abstração de sua subjetividade ou elevando-se acima de suas paixões e

preconceitos. O que a epistemologia coloca em questão é um tipo de objetividade sem

suporte epistemológico, que se apresenta como uma racionalização das crenças

ingénuas ligadas ao prestígio da ciência: crença na. unidade dos conhecimentos, em seu

caráter absoluto e histórico, na independência da realidade que se pretende conhecer

relativamente aos meios do conhecimento. É esta imagem da ciência que fornece o

modelo de objetividade que dá a ilusão de que podemos nos elevar acima das condições

reais de elaboração da ciência.

Em outras palavras, o objetivo da epistemologia crítica é mostrar que se deve distinguir,

na ciência atual, dois mitos: de um lado, o mito da Ciência que necessariamente conduz

ao progresso; do outro, o mito da Ciência-Pura e neutra. O primeiro mito foi aceito por

muito tempo como uma espécie de dogma absoluto. E até hoje ele ainda serve de

argumento àqueles que postulam fi-

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Page 157: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

nanciamentos. Segundo este modo de pensar, a ciência deve ser julgada pelo valor

social de seus resultados. O segundo mito, porém, toma a ciência como sendo seu

próprio fim: ela só deve prestar contas à si mesma. Isto não quer dizer que não possa

prestar serviços. O importante, porém, é que a Ciência-Pura seja sempre uma busca

desinteressada do Conhecimento. Este é um bem em si mesmo, sem nenhuma

significação moral ou política. Ora, é apoiando-se nesse mito que os cientistas afirmam

que "a ciência" não é responsável pelo mau uso que terceiros possam fazer dela, por

suas aplicações nocivas ao homem. Os cientistas se limitam à procura metódica e

desinteressada de um saber sempre maior e mais certo. O físico ou biólogo não deve

preocupar-se com as eventuais utilizações que poderão ser feitas de seus trabalhos ou

descobertas. Essas utilizações não podem ser de sua responsabilidade, mas da do poder

político, sobretudo da. responsabilidade do sistema industrial. Aliás, eles nem poderiam

prever eventuais utilizações. Estas poderão servir para o bem ou para o mal. Contudo, a

responsabilidade da utilização não é da alçada do cientista: este seria "neutro" e

"imparcial".

Semelhante argumentação, à primeira vista, parece inatacável. Contudo, a epistemologia

crítica vem mostrar que a ciência fornece um saber; que-este saber confere meios de

ação; e que tais meios, servindo a fins visados, dizem respeito aos cientistas que os

produzem. Por outro lado, ela vem mostrar que o mito da Ciência-Pura funda, de um lado,

a irresponsabilidade social dos cientistas, e, do outro, fornece ao Estado uma justificação

do apolitismo da pesquisa científica. Ora, não se pode negar hoje a dimensão social da

ciência. Basta abrirmos os olhos para vermos que a pesquisa é substancialmente

integrada a um sistema sócio-econômico-político militar particular. Enquanto indivíduo, o

cien-

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tista pode ser movido pela curiosidade intelectual, pelo desejo de fazer descobertas, por

boas intenções, etc. Todavia, quer e1 e queira, quer não, a ciência tem uma função social

crescente no desenvolvimento da sociedade e no progresso tecnológico. E isto não

apresenta nada de escandaloso. Pelo contrário, seria preciso muita ingenuidade ou certa

candura para se achar que as Instituições financiadoras de "pesquisas puras" gastariam

somas fabulosas por simples amor à Ciência-Pura, por simples culto ao Saber

desinteressado. Portanto, o papel da epistemologia crítica consiste em mostrar que os

cientistas precisam estar ativamente conscientes de todas as implicações de seus

produtos intelectuais. Ela se interroga sobre as "visões do mundo" que estão implícitas na

atividade científica, tentando descobrir nela todos os pressupostos e condicionamentos

possíveis.

Contudo, da ideia segundo a qual as teorias científicas não podem ser deduzidas

diretamente dos fatos, nem tampouco ser diretamente verificadas por eles, não devemos

passar à ideia segundo a qual as ciências são construções arbitrárias. Por outro lado, da

ideia segundo a qual o Método não pode ser absoluto e eterno, não podemos concluir

que os métodos não tenham valor. A epistemologia crítica não pode constituir-se em

epistemologia hipercrítica, chegando a negar a especificidade da ciência, ou a afirmar

uma concepção radicalmente relativista e mesmo "irracional" da ciência. Ela contesta as

formas ingénuas do cientificismo. Aí se exerce seu papel. E tenta mostrar aos cientistas

suas filosofias implícitas. Para usarmos uma expressão de Bachelard, ela tem por função

"dar à ciência a filosofia que ela merece".

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PARA ONDE VAI A FILOSOFIA?

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Há uma questão que hoje em dia intriga muita gente: Por que e para que os filósofos? Em

outras palavras: o que eles têm ainda a dizer com seu jargão técnico, quase sempre

totalmente hermético e incompreensível, sem nenhuma operacionalidade? Tem ainda

razão de ser esta categoria de "intelectuais" que passam toda sua vida a "pensar" ou a

"ensinar" a pensar, tentando convencer os outros de que, se não se vive como se pensa,

termina-se por pensar como se vive?

Quando toda uma "filosofia industrial" se implanta, que necessidade ainda se tem desse

profissional do "pensar"? Por que seu saber é reduzido e desacreditado? Ele é um

empregado universitário que não chama muita atenção sobre si. Ou então, um homem

considerado perigoso. Porque é sempre suspeito de ser um traidor em potencial. Filosofar

consiste em fazer apelo à reflexão pessoal. E toda sociedade teme a reflexão. Ademais,

pensar por si mesmo é um perigo não apenas social, mas também individual. Qual o

homem que não está pronto

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Page 162: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

a dedicar horas de trabalho para evitar alguns minutos de reflexão? Em cada um de nós

há uma resistência ou oposição latentes à reflexão. E hoje, não parece evidente que

nossa cultura queira tomar consciência de si mesma. O pensar filosófico tem um duplo

inconveniente: de um lado, ele nos ensina a criticar (não rejeitar, mas passar ao crivo,

examinar) as opiniões recebidas ou impostas, as tradições transmitidas, as ideias

admitidas; de outro, ensina-nos a ultrapassar o conformismo e o não-conformismo em

vista de uma coerência sempre maior do pensamento e da ação.

Todavia, há uma questão muito mais angustiante, porque bem mais fundamental e, ao

mesmo tempo, radical: Por que a filosofia? Para' que ela serve? Qual sua "utilidade"?

Como poderá ser utilizada para responder, não somente aos dramas existenciais, mas

aos problemas colocados pela civilização moderna, em vias de uma tecnocratização

crescente de seus produtos intelectuais e de uma robotização progressiva do próprio

homem que a constrói? Será que a filosofia não poderia ser considerada como um tipo de

conhecimento já inteiramente superado pelos conhecimentos científicos, muito mais

objetivos, muito mais capazes, não somente de explicar mas de operar e transformara

realidade? A filosofia, outrora onipotente como saber, passou por um processo de

gradativa perda de prestígio social. Um pouco por toda parte, ela se viu expulsa dos

centros do saber. Pouco a pouco, viu-se reduzida a um ensino académico abstrato,

idealista ou "espiritualista". Seu lugar foi tomado pelas ciências. Em primeiro lugar, pelas

ciências naturais. Mais recentemente, pelas ciências humanas. Sua situação atual parece

ser a seguinte: de um lado, uma filosofia completamente estranha às ciências humanas,

uma filosofia sem conteúdo, pretendendo ensinar a sabedoria e fornecer a imagem do

homem sem saber mais o que é

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Page 163: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

o homem real; do outro, ciências humanas que fazem um esforço enorme para se

tornarem ciências, mas que não sabem também o que é o homem, e nem querem saber.

Outrora, a filosofia controlava a totalidade do saber. 'Mas ela foi forçada a assistir à

constituição sucessiva de domínios autónomos de conhecimento que escaparam, um a

um, à sua jurisdição. A matemática, a física, a biologia, a psicologia, a sociologia...,

afirmaram-se fora da filosofia, isto é, contra ela, na medida em que cada disciplina

conseguia demonstrar sua ineficácia e sua inutilidade. O domínio da filosofia encurtou-se

como uma pele de cabrito. E uma vez esvaziado de todo conteúdo, de toda substância,

esse domínio viu-se reduzido a esta árida paisagem lunar da ontologia dogmática, de

cuja contemplação passaram a ocupar-se apenas certos professores universitários que,

para compensar seu sentimento de inferioridade, passaram a gerir o monopólio do

absoluto que até hoje ninguém lhes contesta.

Este refúgio na segurança do gueto universitário teve por consequência uma revisão

geral do próprio conceito de filosofia. E foi assim que se processou uma deformação

sistemática de sua própria história. Muitos foram os que se voltaram para o passado da

filosofia para nele descobrir o reflexo e a confirmação de suas certezas presentes.

Consequentemente, muita coisa foi negligenciada; tudo o que não se inscrevia num

quadro preestabelecido de pensamento. Contudo, essa falsificação foi muito mais

inconsciente do que o resultado de uma atitude de má-fé. E tudo isso foi agravado pelo

caráter um tanto corporativo do ensino da filosofia nas universidades. Os professores

repetiam sempre as mesmas coisas. Tratavam sempre dos mesmos assuntos.

Abordavam sempre os mesmos livros. Os autores analisados como que se verificavam

uns aos outros. Fazia-se

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eco numa espécie de círculo vicioso. E foi assim que a filosofia desinteressou-se pelas

ciências humanas. Através da epistemologia, manteve-se preocupada, por vezes, com

um deslumbramento injustificado com a física, a matemática e a biologia. Os

especialistas das ciências humanas não mereceram a atenção da vertente

epistemológica da filosofia. Continuaram seus trabalhos como que num espírito de

aventura, o aprofundamento de uma parcela do saber sobre o homem permanecendo

quase sempre num vazio de significação. E o divórcio entre os dois domínios do saber

chegou a tal ponto que, sobre o homem, parece que a filosofia nada mais tem a dizer.

Nada tem a declarar, pois deixou que, em seu desenvolvimento, as ciências

monopolizassem todo o conhecimento concernente ao homem. Não se compreende

como a filosofia tenha recusado, por princípio, a hipótese segundo a qual as ciências

humanas seriam mais essenciais para ela do que a física ou a biologia.

Parece que a profecia de Comte, estabelecendo a carta de fundação do positivismo, mas

também definindo o programa de um conhecimento pleno do homem pelo homem, não

somente continua válida, mas lança à filosofia um desafio: ou ela se torna "positiva", no

sentido de refletir a partir dos conteúdos fornecidos pelas ciências humanas, ou não terá

mais razão de ser. “Não é a priori”, diz Comte, “em sua natureza, que podemos estudar o

espírito humano e prescrever regras para suas operações; é unicamente a posteriori, a

partir de seus resultados, por observações sobre seus fatos, que são as ciências. É

unicamente por observações bem feitas sobre a maneira geral de proceder em cada

ciência, sobre as diferentes etapas que seguimos para aceder às descobertas, numa

palavra, sobre os métodos, que podemos elevar a regras claras e úteis sobre a manei-

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ia de dirigir nosso espírito. Essas regras, esses métodos, esses artifícios compõem, em

cada ciência, aquilo que eu chamo de sua filosofia. Se houvesse observações desse tipo

sobre cada uma das ciências reconhecidas como positivas, conservando o que haveria

de comum em todos os resultados científicos parciais, teríamos a filosofia geral de todas

as ciências."

Hoje em dia, se o filósofo deixasse de desempenhar o papel de mau aluno na escola das

ciências humanas contemporâneas; se, em matéria de teoria do conhecimento ou de

epistemologia, ele não quisesse mais propor soluções filosóficas para problemas

científicos já superados; se fizesse um esforço para sair da caverna filosófica universitária

meramente acadêmica; se renunciasse à pretensão de descobrir em si mesmo as

"verdades primeiras"; se abrisse mão da certeza absoluta quanto à identidade do espírito

onde pensa poder encontrar a garantia de um método fundamental e definitivo; se

optasse por fazer uma filosofia aberta onde não haveria mais princípios intangíveis,

verdades primeiras totais e acabadas; se acordasse de todo e qualquer, sono dogmático

para tornar a filosofia contemporânea das ciências de seu tempo..., é bem provável que a

filosofia redescobriria sua missão essencial: a de fornecer os primeiros princípios e os

fundamentos de uma ciência do homem real. Por permanecer indiferente às ciências do

homem, a filosofia se vê hostilizada e agredida pelos especialistas dessas disciplinas.

Este não-reconhecimento mútuo é profundamente pernicioso aos dois setores de

conhecimento: não somente a filosofia se perde em seus labirintos de abstrações sem

conteúdo real e sem alcance verdadeiramente cognitivo, como também os especialistas e

os técnicos do "humano" correm o risco de tornarem-se

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cegos àquilo que fazem, a ponto de não saberem mais o que estão fazendo.

1. A interrogação filosófica

G. Canguilhem, ao interrogar-se sobre "O que é a psicologia?", afirma que esta questão é

muito mais embaraçosa para o psicólogo do que, para o filósofo, a questão: "O que é a

filosofia?" Porque, para a filosofia, a questão de sua essência e de seu sentido a constitui,

mais do que a define uma resposta a essa questão. Da mesma forma, diz Paul Ricoeur,

quando colocamos a questão: "Por que a filosofia?", não é o filósofo que está em

questão, mas aquele que a coloca. Podemos analisar essa questão em três níveis de

profundidade: o da vida cotidiana, o da vida científica e o da vida propriamente

raciocinada.

a) O nível da vida cotidiana nos mostra que o filósofo deve ser um homem de seu tempo.

Deve estar presente ao seu tempo. O velho Sócrates não fez outra coisa, ao defrontar-se

com os sofistas. Estes tentaram confinar a reflexão dentro de uma alternativa: seguir as

tradições sem nada compreender, ou simplesmente ser o mais forte e vencer na vida.

Sócrates recusou-se a ficar preso dentro dessa alternativa. Aos tradicionalistas, aos

defensores do status quo, dizia: tudo isso deve ser repensado, refletido, criticado, ser

medido segundo uma norma de verdade e de bem. Aos cínicos, defensores da lei do

mais forte e do maior acúmulo de bens, respondia: "uma vida que não foi examinada não

merece ser vivida". A todos, ele propunha um instrumento de reflexão, permitindo abalar

os valores existentes, colocar tudo em questão. Através da ironia, levava seus

adversários ao desespero e ao desconforto. Sua meta era chegar a cons-

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truir algo. Ele queria elaborar, na probidade e na clareza, melhores razões para se viver.

O que significa essa ação raciocinada de vida e de valor empreendida por Sócrates? O

que ela significa hoje, numa civilização definida por suas técnicas de produção, de

consumo, que se propõe como objetivo atingir o máximo bem-estar? O que quer isso

dizer para uma sociedade incerta e insegura de seus próprios objetivos e dos valores que

eles implicam?

Vivemos numa sociedade cada vez mais racional em seus meios, em suas técnicas, em

sua organização. Em compensação, sempre mais incerta de seus próprios objetivos. Há

um abismo de não sentido no cerne de seus conhecimentos de racionalidade. Não

caberia à filosofia colocar em questão os meios propostos pela sociedade que marcha

para a abundância crescente? Não seria seu papel propor objetivos ao homem da ciência

e da técnica, do poder e do máximo consumo? Objetivos que viriam contrapor-se ao não-

sentido e ao desespero? Por outro lado e, ao mesmo tempo, assistimos a uma crescente

fragmentação do trabalho científico. Fragmentação que leva a uma pulverização, não só

da atividade humana, mas do próprio saber científico, a ponto de os especialistas de uma

mesma especialidade não serem mais capazes de se entenderem. Neste domínio, qual

seria o papel da filosofia? Evidentemente, não é o de criar uma superciência. Trata-se de

uma tarefa de reflexão. Como?

b) Em primeiro lugar, em face desse modelo de verdade tomado de empréstimo às

ciências físico-matemáticas, e que tenta impor-se a todos os domínios do saber, o papel

da reflexão filosófica seria o de compreender sua legitimidade, como também o de

mostrar seus limites. Quer dizer: devemos compreender aquilo que se presta à medida, à

análise e à teoria formalizada. Contudo, nem

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tudo se presta ao controle dos instrumentos científicos. Nem tudo pode ser tratado como

fato observável e submetido a leis rigorosas. Não pretendendo ser nenhuma super ou

metaciência, a filosofia não pode abdicar de seu papel de situar o conhecimento científico

em seu verdadeiro lugar. É sua função topológica (topo = lugar): encontrar o lugar

adequado do conhecimento científico. A filosofia não atinge um super-saber. Ao contrário,

ela cava suas fundações, para descobrir sobre que solo a ciência se constrói. A presença

do homem ao mundo é este solo primitivo sobre o qual se edifica a ciência. Estamos

diante de uma volta ao fundamento, de um retorno às fundações. E é somente depois da

ciência, que se pode voltar antes da ciência. Em outros termos, é no ponto mais

avançado de uma ciência que se pode colocar o problema de suas raízes.

Quanto à fragmentação indefinida do saber, a responsabilidade do filósofo não é, como

propunha Comte, a de fazer um sistema das ciências, mas a de construir uma reflexão

sobre a linguagem científica. Caberia à filosofia articular a linguagem humana. Ela

deveria compreender como, na palavra e neste poder de falar que é o homem, estão

contidas as possibilidades de ramificações de diferentes linguagens. Salvar a unidade da

linguagem é uma responsabilidade da filosofia. Ela deverá não somente compreender a

diversidade da linguagem, mas situá-las uma em relação às outras.

Quanto à emergência e ao avanço das ciências humanas, a filosofia deveria fundar uma

epistemologia da convergência dessas disciplinas. Evidentemente, isto suporia que o

filósofo não as ignorasse, devesse conhecer ou praticar uma ou outra dessas disciplinas,

estivesse em contato direto com, pelo menos, uma delas. A rigor, o filósofo poderia

ignorar a física, a matemática ou a biologia. Mas não pode prescindir da psicologia, da

sociologia, da psicanálise, etc. que tratam desse homem

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que ela pretende conhecer por reflexão. Por conseguinte, o desafio que representam

essas ciências relativamente ao conhecimento-de-si feito pelo filósofo, só pode ser

enfrentado por uma inteligência dessas ciências. E o ponto de junção consiste em

encontrar esta parte, em nós, que não pode ser objeto de ciência. Há, no homem, todo

um fundo de existência, um "vivido" que é sujeito e que faz dele um sujeito não-

objetivável pelo conhecimento científico.

Ora, o problema de uma reflexão filosófica sobre o homem é justamente este ponto da

realidade onde o não-objetivável do sujeito religa-se ao objetivável. A tarefa da filosofia

não consiste em separar o objetivo do subjetivo, mas em mostrar que o homem é o lugar

onde os dois se encontram e se entrelaçam.

c) A dupla abordagem precedente, pela vida cotidiana e pela vida científica, leva-nos ao

nível da vida raciocinada. Toda vida filosófica está às voltas com questões de fundamento

e de origem. A interrogação filosófica nasceu como o "Ti to on" de Aristóteles: "o que é o

ser", "o que é que é". No dizer de Heidegger, esta questão foi radicalizada por Leibniz

quando a formulou de um modo mais dramático: "Por que há algo (o ser) e não antes o

nada"? Ser filósofo, é ter acesso a este tipo de questão, ignorado pela vida cotidiana e

pela atividade científica. É este tipo de questão a que leva alguém a penetrar na ordem

da razão e da interrogação filosófica. Qual o alcance dessa questão no mundo

contemporâneo? Sabemos que, depois do Cogito cartesiano, ela se dividiu em duas: de

um lado, a questão do ser, da natureza e de Deus; do outro, a questão do homem. Daí o

duplo sentido da filosofia posterior, sempre oscilando entre esses dois polos: a questão

do ser ou de Deus, e a questão do homem. É esta tensão que constitui o caráter

dramático da filosofia moderna. Há duas possibilidades de existir, de viver, de o homem

se compreender a si mes-

169

Page 170: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

mo e de explicar as coisas: ou reagrupamos tudo em torno do único centro que é o

homem, ou em torno de um polo mais forte e que seria o fundamento de nossa vida. Em

face desse dilaceramento do campo ontológico, dessa polarização e dessa ruptura na

questão do ser, há uma tarefa nova para a filosofia relativamente ao ensino tranquilo e

coerente da filosofia nos tempos passados. Ela deve clarificar, quer dizer, mostrar todas

as implicações dessa alternativa, não somente para a questão da vida pessoal, mas para

o diálogo com as ciências. Há momentos, na história da filosofia, que são críticos, e

outros que são momentos de síntese e de integração. Estamos num período crítico que

deve ser enfrentado com coragem e lucidez. E a tarefa do filósofo é a de escolher e

testemunhar sua opção. A filosofia torna-se testemunho e não* mais ensino autoritário e

dogmático. Quando se testemunha algo, respeita-se e dialoga-se com os que fizeram

outra opção. Se o testemunho comporta um risco a sei assumido, comporta também um

desejo modesto de dar razão aos outros e de se explicar a eles. Ora, como a filosofia não

é discurso fechado sobre si mesmo, um discurso que o filósofo profere a outros filósofos;

e como a filosofia não pode refletir sobre ideias, mas deve refletir sobre realidades,

diremos que ela não tem objeto, pois tem o objeto dos outros, reflete sobre os objetos das

outras disciplinas. E é por isso que ela é sempre uma reflexão com as ciências. Não uma

reflexão sobre ou para as ciências, mas a partir delas e com elas.

2. Interrogação epistemológica

Não pretendemos expor os complexos problemas que a epistemologia das ciências

humanas coloca hoje ao saber filosófico, mas ressaltar algumas razões que poderão

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Page 171: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

levar o filósofo a interessar-se por um tipo de análise .epistemológica suscitada por esta

peripécia intelectual de nossa cultura, que é o advento das ciências humanas, cuja

originalidade parece ser constituída de uma ambiguidade: de um lado, há uma exigência

de inteligibilidade ou de transcendência, isto é, de um a priori mais ou menos velado,

raramente explícito ou declarado; do .outro, uma exigência de positividade que

dificilmente consegue impor sua pretensão de assegurar controles intersubjetivos

universais, isto é, uma objetividade fazendo o acordo generalizado dos "espíritos". Assim,

o problema inicial que deverá presidir às nossas interrogações será o binómio: filosofia e

ciências humanas. No contexto da epistemologia geral, cremos que a filosofia poderá

estar presente, poderá operar como parte integrante, como personagem ativo e passivo,

e não ser colocada entre parênteses e, muito menos ainda, ser previamente tachada de

invalidez epistemológica. Porque as questões de epistemologia não são pura e

simplesmente as de lógica ou de metodologia, mas são função da realidade mesma das

coisas que as ciências humanas investigam. Neste sentido, elas têm sempre uma

vertente filosófica.

Esta só poderia ser eliminada de modo artificial e arbitrário e, em última análise,

prejudicial às próprias ciências humanas.

Devemos conceber a epistemologia das ciências humanas como esta disciplina que

utiliza "grelhas de interpretação", onde aparecem mais ou menos explicitamente

pressupostos filosóficos, ideológicos ou valorativos. Daí ser ela menos a descrição dos

métodos, dos resultados ou da linguagem "da" ciência ou "da Razão" nas ciências, do

que esta reflexão crítica permitindo-nos extrair, em primeiro lugar no sentido de descobrir,

em seguida de analisar, os problemas tais como eles se colocam ou

171

Page 172: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

deixam de se colocar, são resolvidos ou desaparecem no processo de génese, de

estruturação e de desenvolvimento dos conhecimentos científicos. Quer dizer: a

epistemologia das ciências humanas tem por missão essencial submeter a prática dos

cientistas a uma reflexão que, diferentemente das teorias clássicas do conhecimento,

aplica-se, não mais à natureza e ao valor do conhecimento; não mais à ciência feita,

realizada, à ciência verdadeira, da qual se deveria apenas descobrir as condições de

possibilidade ("como o conhecimento é possível"?), de coerência ou os títulos de sua

legitimidade, mas que se aplica às ciências em vias de se fazerem e em suas condições

reais de realização.

Neste sentido, quais os problemas mais importantes que constituem o objeto de nossa

disciplina? Com efeito, aquilo pelo que a epistemologia das ciências humanas se

interessa, aquilo de que ela se ocupa, em conformidade com aquilo que ela visa, consiste

em saber como se formam, como se desenvolvem, como funcionam ou se articulam os

conhecimentos:

a) tais como eles estão sendo elaborados pelos especialistas, enquanto estes são ao

mesmo tempo sujeitos e objetos de conhecimento, enraizados num determinado

contexto sócio-cultural;

b) na medida em que, por um lado, as ciências humanas podem ser reagrupadas

segundo certa comunidade de objetos, de pontos de vista ou de métodos; e na medida

em que, por outro lado, elas se distinguem das ciências naturais por uma maneira própria

de atingir a objetividade científica sobre um objeto que, aliás, não é um objeto: o homem.

Portanto, cremos ser de suma importância mostrar que aquilo que as ciências humanas

nos ensinam sobre

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Page 173: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

o homem é de natureza a nos informar sobre a génese e a estruturação dos

conhecimentos. Isto significa responder a duas questões. Em primeiro lugar, o que é que,

de fato, elas nos revelam sobre as condutas humanas? Quer dizer: que aspectos do

homem podem elas atingir e explicar por seus métodos próprios? A segunda: o que é

que, no homem, permanece refratário e inacessível a esses métodos? Assim, a

interrogação epistemológica deverá ser feita, não somente sobre os limites de fato que

encontram as ciências humanas, mas também sobre seus limites de direito: o que

resultam das modalidades mesmas do conhecer e dos métodos utilizados. O que significa

o fato da pluralidade de disciplinas? Como não podemos dominar tudo, precisamos da

especialização. Contudo, a fragmentação das disciplinas corresponde a uma

fragmentação do método. O projeto fundamental é o de um discurso crítico. Mas a

instauração de um saber (discurso crítico) não é o simples reconhecimento de um dado.

Supõe uma iniciativa e uma decisão concernentes ao método a ser empregado. Uma

decisão de ordem metodológica é necessária, porque a ideia do saber, enquanto

conhecimento crítico, engloba o reconhecimento do caráter ilusório da experiência

imediata: o imediato não é o verdadeiro. Se é assim, só se atinge o saber por um método

que ultrapasse a experiência imediata. E o método, como se sabe, comporta certo corte

da realidade, isto é, o emprego de uma abstração adequada, o que leva a uma "redução"

da realidade, a um esquema ideal, mais ou menos simplificado. Em segundo lugar,

comporta certos procedimentos de investigação adaptados à realidade assim "reduzida".

Em terceiro lugar, comporta procedimentos de representação, isto é, uma linguagem

empírica permitindo exprimir as investigações e seus resultados. Enfim, o método

comporta procedimentos de explicação, isto é, uma linguagem teórica permitindo re-

173

Page 174: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

encontrar, por via dedutiva, os dados empíricos e, assim, explicá-los.

Evidentemente, o objeto a ser estudado deve comandar a escolha do método, embora de

modo apenas relativo. Nas ciências da natureza, há.um grande acordo quanto aos

métodos a serem empregados. Nas ciências humanas, porém, a situação metodológica

apresenta-se muito confusa. Deve-se recorrer aos métodos "redutores", inspirados nos

das ciências naturais, isto é, à construção de modelos ideais, a métodos de tipo

puramente matemático, ou a métodos "compreensivos"? Nas ciências humanas, o

"objeto" não parece recomendar este ou aquele método. Métodos diferentes podem ser

justificados. A maturação das ciências atuais parece levar-nos à situação em que a

diferenciação das disciplinas não se faz assim em função dos objetos, mas em função

dos métodos. Em todo caso, no domínio das ciências humanas, a diferenciação é de

ordem metodológica: de um lado, recorremos à construção de modelos (o que torna

possível o emprego de métodos formais); de outro, fazemos apelo à ''compreensão" dos

fenómenos, isto é, a um método mais hermenêutico. O destino atual da psicologia ilustra

bem esta dualidade metodológica.

Esta análise parece-nos sumamente importante para compreendermos que os

conhecimentos sobre o homem, fornecidos pelas diversas disciplinas, devem pressupor

um conhecimento do homem. Por outro lado, isso nos mostra a possibilidade de as

ciências humanas poderem, cada uma segundo sua abstração metodológica própria,

cooperar nesta busca de uma nova consciência-de-si para o homem e constituir, assim,

uma autêntica antropologia reflexiva, que não seria uma filosofia sintética das ciências

humanas, mas esta disciplina extracientífica cuja função deveria ser procurada na

conjunção de seus três papéis:

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Page 175: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

1. colaborar com as ciências humanas tendo em vista a elaboração dinâmica de um

conceito de homem comum às diversas disciplinas em interação;

2. fornecer os elementos indispensáveis de crítica e de justificação dos fundamentos

das ciências humanas;

3. coordenar e organizar todas as informações concernentes ao homem, tendo em

vista responderão desideratum de uma concepção unitária de si mesmo.

Para se conseguir isto, torna-se necessário, de um lado, analisar a diversificação das

disciplinas a fim de se compreender sua significação; de outro, tentar compreender por

que e como se torna imprescindível a recorrência a uma démarche interdisciplinar, cujo

sentido é o de reconstituir a unidade do objeto que a fragmentação dos métodos esfacela

inevitavelmente. Não podemos negar este fato: há um conjunto de conhecimentos parcial,

bastante diversificados e que, de um modo ou de outro, tomam, senão o homem, pelo

menos os fenómenos humanos como objeto de estudo e de constituição coerente do

saber, e culminando em técnicas bastante eficazes. A experiência de devir do

conhecimento impõe-nos o reconhecimento da diversificação metodológica como um fato.

Parece haver contradição entre este fato e a aspiração do projeto do conhecimento,

projeto de compreensão que visa a unidade do saber (ex. a "mathesis universalis").

Contudo, esta aparente contradição indica-nos que devemos renunciar a contentar-nos

com a ideia tradicional de verdade: adequação entre o conhecimento e o conhecido.

Correlativamente, o conhecimento é concebido como representação. Na versão

racionalista, da epistemologia tradicional, esta representação consistia em "ideias" que

forneceriam os equivalentes

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Page 176: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

inteligíveis da realidade exterior. Na versão empirista, ela consistia em "dados sensíveis"

que forneceriam imagens instantâneas, no nível dos aparelhos sensoriais, da realidade

exterior. No fundo, essas duas formas de epistemologia se encontram, pois fundam-se

sobre a ideia de representação.

Portanto, diante do fato da pluralidade de saberes parciais, o problema que se coloca é o

de sua articulação: como eles se agenciam e se integram? Qual é a disciplina que se

esforça por totalizar estas diferentes perspectivas? Devemos aceitar a posição segundo a

qual, no plano dó conhecimento, as ciências humanas se coordenam elas mesmas por

suas relações interdisciplinares e, no plano de sua utilização, este permaneceria o papel

da filosofia, mas justamente enquanto "sabedoria coordenadora dos valores", pois o

terreno da ação ultrapassa o conhecimento e supõe engajamentos pessoais? Ou será

que podemos recusar esta tendência "tecnocratizante" a constituir uma "ciência da

ciência", em nome precisamente de uma antropologia reflexiva que não somente pode,

mas deve desenvolver-se num diálogo vivo e constante com as ciências? Por outro lado,

precisamos tomar consciência de que a unidade do saber não pode ser dada a priori, pois

não podemos comparar o objeto real a uma máquina que podemos desmontar e remontar

à vontade, como se possuíssemos de antemão seu esquema de construção. Nem

tampouco pode ser dada a posteriori, pois não basta justapormos os dados parciais

fornecidos pelas ciências para que, como por encanto, vejamos surgir o objeto real em

sua unidade intrínseca. Portanto, não podemos pensar a unidade à maneira de uma

síntese, pois não é nem uma lei de construção que podemos conhecer previamente, nem

tampouco o resultado de uma reconstituição empreendida a partir dos dados. Como

veremos, a unidade é anterior aos dados, mas na medida apenas em que se apresenta

como uma exigência, como um princípio de unificação, e não como unidade

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Page 177: JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

acabada. E é na reflexão filosófica que se manifesta esta exigência.

Se devemos adotar a segunda posição da alternativa anterior, é para que o homem

possa tomar uma autêntica consciência-de-si, verdadeiramente apta a fazê-lo superar a

alienação em que se encontra em face do tipo de racionalidade científica atual. Com

efeito, já se foi o tempo em que uma antropologia podia constituir-se sobre si mesma, por

introspecção ou metodologia transcendental. Hoje em dia, estamos acuados pela

pesquisa interdisciplinar, em que cada ciência, partindo de suas objetividades legítimas,

aceita fechar um "círculo estrutural reflexivo", praticamente um retorno às suas decisões

constitutivas para tomar consciência de seus limites de validade. Os sentidos positivos

elaborados por cada um dos saberes parciais sobre o homem só poderão ser unificados,

retomados, situados e tornados coerentes, no interior de um esforço de compreensão-de-

si, isto é, de um saber reflexivo do homem sobre si mesmo.

Portanto, é esta vertente epistemológica da filosofia, ou este enfoque filosófico da

epistemologia, que deverá levar-nos a tomar consciência de que os processos de

especialização e de diferenciação das ciências humanas são fontes geradoras de

distâncias e de ignorâncias recíprocas entre os especialistas: eles engendram o

esmigalhamento das disciplinas pela compartimentação das faculdades universitárias,

pela criação de uma hierarquização rígida e pela manutenção de uma prudência

metodológica que freia a pesquisa das interações entre as disciplinas. Por isso, torna-se

urgente realçar os contatos, as trocas e as relações entre as disciplinas, tendo em vista

aproximá-las, compará-las, confrontá-las e, na medida do possível, integrá-las.

Tudo indica que é a análise das relações interdisciplinares que irá permitir-nos extrair

certo conhecimento

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comum às diferentes disciplinas, fila já nos revela a possibilidade de certa unidade do

saber sobre o homem. A interdisciplinaridade tem o grande mérito de já ser um princípio

de organização dos conhecimentos que modifica os conceitos, os princípios e os pontos

de junção das disciplinas, criando assim uma coordenação dos conhecimentos que elas

fornecem, tendo em vista uma finalidade conscientemente perseguida, p que implica o

recurso a princípios normativos ultrapassando, assim, a concepção meramente empírica

das ciências humanas. O que está em jogo é o agenciamento das disciplinas para uma

axiomática comum ou. "objetivo de sistema global": pesquisa de valores, de normas ou

de uma política interdisciplinar que se situa no nível retrospectivo, ou seja, dos saberes já

constituídos. Torna-se imprescindível, ainda aqui, a intervenção da atividade reflexiva,

eminentemente crítica, tendo por função não mais agir diretamente sobre o real a ser

construído ou sobre a história a ser orientada, mas refletir sobre o sentido dessa

intervenção. Sabemos que a atividade reflexiva isola, provisoriamente, a experiência do

saber para determinar sua estrutura e relacioná-la com o ato fundador do sentido. Ela

visa à unidade deste objeto do saber, por uma crítica de suas diferentes apreensões do

real e por uma reflexão sobre os conceitos e os métodos utilizados. Assim, a filosofia

torna-se ao mesmo tempo reflexão sobre a linguagem, epistemologia e hermenêutica das

ciências humanas, procurando desvendar as condições que tornam possível a unidade

do saber, fornecido por essas disciplinas, tanto do lado do objeto do saber quanto do lado

do sujeito que o elabora. Certamente, a 'filosofia não constitui o sentido, mas, ao explicitá-

lo, ela o funda, quer dizer, o desvela e o justifica. Todavia, sem o nível prospectivo ou da

tarefa, a atividade reflexiva estaria fadada à esterilidade e ao impasse. Em contrapartida,

sem o nível re-

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trospectivo ou da reflexividade, a tarefa interdisciplinar estaria fatalmente condenada ao

pragmatismo e ao arbítrio.

O que pretendemos mostrar é que as ciências humanas devem hoje representar, para a

filosofia, uma passagem obrigatória. Se o filósofo quiser conhecer a realidade do homem,

ele terá que decidir-se: ou a não conhecer nada dessa realidade, ou a conhecer, em

primeiro lugar, aquilo que dela conhecem os cientistas. Que ele vise ultrapassar o

conhecimento científico, ou que tente esclarecê-lo pela reflexão, tanto melhor; mas que

pretenda prescindir dele ou contradizê-lo sem mais, é obstinar-se a construir um sistema

sem o pensamento e sem o fenómeno. Isto quer dizer que todo discurso sobre o real,

para ser válido, deve começar por recolher as informações fornecidas pelos cientistas. A

filosofia, em sua vertente epistemológica, intervirá como uma segunda leitura dessas

informações, tentando constituir um conjunto coerente. Pois compete-lhe reagrupar o que

podemos saber sobre a estrutura do real, uma vez para guiar a ação. Aliás, a

interdisciplinaridade se apresenta como um tríplice protesto: a) contra um "saber em

migalhas", pulverizado entre uma multidão de especialidades em que cada uma se fecha

como que para fugir ao verdadeiro conhecimento; b) contra o divórcio crescente entre

uma universidade cada vez mais compartimentada e a sociedade; mas, simultaneamente,

contra essa própria sociedade, na medida em que ela limita o indivíduo a uma função

estreita e repetitiva, impedindo-o de desenvolver todas as suas potencialidades e

aspirações (cf. a unidimensionalização do homem atual); c) contra o. conformismo das

"ideias recebidas" e a inércia das situações adquiridas.

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Neste particular, o papel da filosofia torna-se fundamental. Não se trata de arvorar-se em

instância superior que viria ditar às ciências as leis de seus métodos e de sua fundação.

A filosofia não tem o direito de trazer de fora a pesquisa interdisciplinar, um conjunto de

conceitos transdisciplinares já prontos. Aliás, nenhum diktat desta ou daquela filosofia

poderá ser aceito pelos cientistas. Trata-se, isto sim, de mostrarmos a importância que

não somente pode, mas deve ter, na pesquisa interdisciplinar, uma filosofia, em trabalho,

uma filosofia que, sem renunciar ao seu método próprio, procure penetrar no espírito

científico a fim de que, justamente com os especialistas, e enquanto estes constroem

criticamente suas ciências, possam ser elaborados conceitos transdisciplinares. O papel

da filosofia consiste, pois, em se apresentar como instância crítica no interior da

démarche interdisciplinar (papel hermenêutico) ou, então, como esta instância capaz de

fazer a unidade do objeto, pois cabe ao filósofo lembrar aos cientistas que eles não

poderão, com seus saberes positivos, totalizar o sentido: ao contrário, deverão estar

sempre abertos à história e aos conhecimentos.

Portanto, é dentro de um projeto interdisciplinar que a filosofia deverá exercer um de seus

papéis essenciais: impedir que uma ciência particular venha a hipertrofiar-se em mito

totalizante. Na medida, porém, em que este projeto se situa no nível prospectivo ou da

tarefa, quer dizer, da realidade concreta dos empreendimentos humanos, a

interdisciplinaridade se realiza entre disciplinas operantes ou cooperantes e, neste

sentido, a filosofia poderá intervir para ajudar a descobrir o objeto comum às várias

disciplinas que se interagem: o homem. Com efeito, nenhuma disciplina particular poderá

descobri-lo isoladamente, pois cada uma já tem seu

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objeto particularizado e, de fato, abstraio. Ou na medida, por outro lado, em que o projeto

se propõe a ser uma reflexão englobante ou totalizante. E para finalizar, gostaria de

levantar três temas de reflexão, que me parecem exigir a atenção particular de todos

aqueles que, hoje, se interessam por pensar filosoficamente:

1. Em primeiro lugar, creio que devemos reconhecer que a crise atual das ciências

humanas também é uma crise do homem contemporâneo e de seu pensamento. Por

outro lado, estou convencido de que o homem deve ser o ponto focal que assegura a

convergência de todas as disciplinas humanas. A filosofia atual, muito embora na ordem

da fundação, deve ser solicitada pelas ciências humanas, e na origem 'da concretização,

tenha necessariamente que passar por elas, parece-me, não digo incapaz, mas

impotente para responder às questões que lhe são colocadas pelas ciências humanas.

Por outro lado, podemos igualmente constatar que o domínio ou o quase monopólio da

racionalidade científica contemporânea sobre o homem é um dos fatos indiscutíveis de

nossa cultura. Donde a primeira questão: Se a filosofia não optar decididamente por

refletir a partir dos conteúdos fornecidos pelas ciências humanas, não ficaria o

conhecimento do homem irremediavelmente e unicamente entregue nas mãos dos

cientistas?

2. Em segundo lugar, creio que devemos também reconhecer a necessidade de

empreendermos uma pesquisa fundamental no quadro das ciências humanas, pesquisa

esta que ressaltaria a importância e o sentido da unidade humana, e restabeleceria,

assim, a reflexão filosófica em sua verdadeira vocação. Minha segunda questão é a

seguinte:

Qual deve ser a posição da filosofia em face, não somente da objetividade legítima das

ciências humanas, mas também desta vertigem de objetivação ameaçadora

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que consiste no esquecimento progressivo e rápido, entre os cientistas, de seus pontos

de partida e das decisões constitutivas de seu saber? Em outros termos, como o homem

contemporâneo pode tomar uma autêntica consciência-de-si suscetível de fazer

desaparecer sua alienação pela cultura científica, sem, no entanto, correr o risco de criar

uma antropologia doutrinal a priori e sintética das ciências humanas, uma filosofia a

mais?

3. No domínio das ciências humanas, creio que devemos compreender o esforço da

epistemologia como uma tentativa eminentemente interdisciplinar, não somente lançando

pontes entre as diversas ciências, mas também fazendo um esforço de coordenar suas

informações no sentido de uma "convergência" dos pontos de vista, dos métodos, dos

conceitos, das teorias e dos resultados. Trata-se de uma epistemologia estreitamente

ligada e solidária à história das ciências humanas e, inevitavelmente, à história da própria

filosofia. Na verdade, neste domínio, a epistemologia leva-nos a negar a divisão do

trabalho científico, a superar suas fronteiras rígidas, a colocar em questão seus limites e

seus fundamentos. Ademais, uma das tarefas do conhecimento interdisciplinar é a de

constituir uma antropologia fundamental que deve reagrupar os dados fornecidos pelas

disciplinas particulares. Em outros termos, o conhecimento interdisciplinar visa a levar as

diversas disciplinas ou os setores heterogéneos de uma ciência a colaborarem, havendo

uma reciprocidade nas trocas, de tal forma que haja um enriquecimento mútuo de cada

uma. Ora, o saber reflexivo impõe-se, necessariamente, todas as vezes que se pretende

reconstituir a unidade desta imagem quebrada, dissociada, fragmentada ou dissolvida do

homem, para que este possa tomar consciência de si mesmo como um ser que tem uma

identidade pessoal, bem como uma tarefa de existir e de agir. Minha última questão

assim se for-

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mula: Será que este conhecimento interdisciplinar já não indicaria uma forte tendência à

"consciência reflexiva"? Em outros termos, será que podemos reconstituir este saber

reflexivo do homem, independentemente das objetivações constituídas pelas diversas

ciências humanas?

Se são as ideias que movem as coisas, são os elaboradores de ideias, os que nada

sabem fazer, senão pensar, que fornecem os mais poderosos instrumentos para que o

mundo seja feito, refeito ou transformado. Não há soluções, senão quando houver

problemas: é saber formulá-los. Para formulá-los, é necessário o pensamento. E é o

pensamento que forja as opiniões e elabora os valores que comandam a ação daqueles

que encontram as soluções ou tomam as decisões.

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CONCLUSÃO: UM PROBLEMA EM SUSPENSO

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É difícil e perigoso propor conclusões. Sobretudo, para estudos que pretendem ser

apenas uma introdução. Todavia, pareceu-me proveitoso reunir certas proposições,

extraídas de nosso trabalho, e indicar as tarefas que se nos oferecem no momento. É

nesse espírito que precisamos saber parar. Ou ter a coragem de confessar nossos

limites. Ou então, nos perguntar: o que resta, no término desse estudo? A que

pretendemos introduzir a pesquisa epistemológica? Se é verdade que o difícil não é

resolver os problemas, mas saber colocá-los, damo-nos por satisfeitos se tivermos

colocado os problemas essenciais das chamadas "epistemologias genéticas".

Por outro lado, esperamos ter conseguido desvincular a prática científica das imagens

que dela faziam, tanto os filósofos tradicionais, quanto os cientistas de obediência

empirista, para situá-la como um ato epistemológico que só adquire seu pleno sentido

quando inserido no interior de outros atos não menos importantes: a ruptura

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(os fatos científicos são conquistas contra as evidências do saber imediato e das pré-

noções), a construção (os fatos não se impõem cegamente ao espírito como "dados",

mas como algo construído) e a constatação (o ato científico não é uma constatação: as

experimentações devem ser acompanhadas de uma explicação dos pressupostos

teóricos que fundam a experiência). Mostramos, assim, que o estatuto epistemológico da

epistemologia é bastante incerto. Porque ela ainda se encontra dividida entre seus

vínculos filosóficos e seu comércio direto com as ciências. Ela não poderá subtrair-se a

toda contaminação filosófica, enquanto os cientistas permanecerem em desacordo sobre

os problemas de ordem extracientífica a que estão engajados: o problema, por exemplo,

de saber se há ou não "conhecimento" fora da ciência, depende de uma teoria geral do

conhecimento. Relativamente à ciência, a epistemologia é um discurso segundo, uma

segunda leitura. Mas os epistemólogos ainda permanecem desunidos quanto à questão

de sua pretensão filosófica ou científica.

Na verdade, a atitude reflexiva sempre foi considerada como a marca do filósofo. Mas

nada impede que haja uma reflexão não-filosófica sobre a ciência. A não ser que se faça

total abstração das coisas que a ciência toma por objeto, para se considerar unicamente

o discurso científico, entendido como um sistema de signos que se combinam entre si

segundo certas regras, sem levar em conta aquilo que eles evocam, nenhum outro

discurso é completamente livre, nem tampouco seus resultados podem ser inteiramente

objetivos. Isso nos leva a reconhecer que toda pesquisa científica, tanto por seu ponto de

partida, quanto por seu ponto de chegada, está profundamente marcada por seu

enquadramento sócio-cultural. Ela se apresenta, pois, sobrecarregada de significação

ideológica. Deixar de examinar a inserção do conhecimento na

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prática, seria deixar em silêncio aspectos importantes dos problemas concernentes a seu

método. A análise epistemológica só de modo arbitrário pode dissociar uma ciência

teórica de sua técnica de aplicação. Elas dão sentido uma à outra. E, em larga escala,

determinam-se reciprocamente.

Se tomarmos o exemplo das ciências humanas, qual dessas disciplinas não pressupõe

sempre um quadro teórico utilizando certos conceitos já mais ou menos "contaminados"

pela ação ou por uma "visão do mundo"? Por mais imparcial que possa parecer, um

cientista humano já é um "tecnocrata em potencial": da análise "daquilo que é" à

formulação "daquilo que é desejável", a distância é quase nula. O caso da medicina é

bem ilustrativo. Ela se apoia sobre uma "ética da saúde", cujo princípio é reconhecido

como um "valor" evidente. Todavia, pode entrar em choque com outros "valores":

económicos, demográficos, etc. Enquanto ciência, ela não se sente comprometida por

suas aplicações, salvo em casos excepcionais: eutanásia, aborto, etc.

O que consideramos "problema em suspenso" consiste precisamente em saber até que

ponto podemos distinguir claramente uma "epistemologia filosófica", que estaria

superada, de uma "epistemologia científica", a única séria. Nossa hipótese é a de que,

aqueles que defendem a "cientificidade" da epistemologia aceitam, quer queiram quer

não, consciente ou inconscientemente, a ideia segundo a qual haveria uma "ciência da

ciência". Não são poucos os epistemólogos que tentam construir as categorias de uma

"filosofia científica", que seria ao mesmo tempo "ciência da ciência" e "crítica científica da

filosofia", sobre a base dos conceitos lógico-matemáticos. É o caso dos que pretendem

construir uma "teoria da ciência", melhor ainda, uma "lógica da ciência" fundada,

unicamente, sobre um conjunto ordenado de proposições

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ou enunciados rigorosamente analisados conforme um método preciso. Todas as

questões sem conteúdo científico seriam desprovidas de sentido. E isto porque todo

conhecimento se organiza em relação a dois polos: o abstraio puro (pelo qual extraímos

as estruturas abstratas do conhecimento, e o concreto puro (pelo qual é assegurado o

embasamento desse conhecimento na realidade concreta). Todavia, os estudos

psicogenéticos do conhecimento e a analise histórico-crítica das ciências desmentem a

dupla pretensão dos neo-empiristas de reduzir, quer as leis lógico-matemáticas a simples

"regras de linguagem", quer a experiência física à apreensão de um fenómeno anterior a

toda conceitualização. Porque a leitura da experiência pressupõe sempre a existência de

estruturas organizadoras no Sujeito. E essas estruturas, como bem mostrou Piaget, são

anteriores à linguagem, pois vinculam-se à "coordenação das ações".

Portanto, aos defensores da "cientificidade" da epistemologia, visando a resultados

controláveis e universalmente válidos, pois teríamos uma "ciência da ciência", devemos

dizer que estão fazendo uso de uma noção ideológica e utilizando um procedimento

filosófico. O que seria, por exemplo, uma ciência das ciências humanas (visando extrair

suas estruturas e seus mecanismos comuns), senão uma disciplina que procura mostrar

a essência comum dessas disciplinas? Ora, se não se trata de uma "essência" das

ciências, como poderíamos falar de "a" ciência ou de "o" conhecimento científico para, em

seguida, nos autorizarmos a elaborar uma teoria do conhecimento científico? Por isso,

devemos mostrar aos defensores da "cientificidade" da epistemologia, que uma "ciência

da ciência" faz necessariamente apelo a pressupostos filosóficos que, ao mesmo tempo,

dissimulam e revelam a concepção segundo a qual a ciência poderia manifestar, por

simples reflexão sobre si mesma, as pró-

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prias leis de sua constituição, de seu desenvolvimento e de seu funcionamento. O

discurso científico teria que ter o dom de poder enunciar por si mesmo os princípios de

sua própria teoria. Ademais, seria preciso que ele fosse soberanamente autónomo, capaz

de determinar por si mesmo o espaço de seu próprio desenrolar.

Ora, vimos que a ciência se impõe como um componente da realidade e da organização

social e humana; que ela tem uma finalidade extracientífica, não inerente à evolução

interna da ciência. Até mesmo o positivismo lógico viu-se obrigado a distinguir dos níveis

em cada ciência: o do registro dos fatos e o de sua tradução em fórmulas lógico-

matemáticas. Hoje em dia, cada ciência duplica-se numa disciplina fundamental

correspondente que constitui sua metaciência. Esta se apresenta como um estudo vindo

apôs uma ciência e interroga-se sobre seus princípios, seus fundamentos, suas

estruturas e suas condições de validade, elevando-se a um nível superior. A filosofia seria

uma segunda leitura dos procedimentos e dos resultados da experiência científica, pois

somente à ciência caberia o privilégio de definir a verdade universal. E a metaciência

mostra uma grande preocupação em transportar para seu domínio o estilo e as

exigências de rigor da ciência que toma por objeto, devendo, por isso, ser praticada

unicamente por cientistas.

Ainda aqui, estamos diante de uma tentativa de construir uma "ciência da ciência". Ora,

"a" ciência não existe. O que existe é um conjunto de disciplinas científicas, cada uma

com suas características próprias, não formando um todo suscetível de um estatuto

unitário. Cada uma mostra um aspecto do real. Nem por isso existe uma ciência do real

integral. E é por esta razão que achamos incorreta a expressão "filosofia da ciência".

Frequentemente o filósofo generaliza e apresenta como filosofia "da" ciência o que não

passa da filosofia de uma dis-

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ciplina particular. Nenhuma disciplina tem o privilégio da inteligibilidade. Como a unidade

das ciências não passa de um sonho, conferir um privilégio absoluto de inteligibilidade a

uma disciplina é tomar uma posição prévia justificada.

Donde o papel da epistemologia: desmascarar a ilusão dos que pretendem conferir "à"

ciência uma importância global que suprime a filosofia, uma vez que ela quer ser sua

própria filosofia, sob as denominações de "metaciência", de "lógica das ciências" ou de

"epistemologia científica". Mas ela tem uma função complementar: relativizar a filosofia de

uma ciência, porque esta deve ser questionada, não em sua validade ou em sua eficácia,

mas em sua inteligibilidade. Cada disciplina tem uma vida e subtrai-se constantemente a

um conhecimento definitivo. Donde o risco de se pretender dar respostas definitivas aos

problemas colocados por uma ciência ainda não acabada, quando se quer converter a

epistemologia em filosofia. Esta não tem o direito de imobilizar um momento do devir

científico. E é por isso que não devemos falar de "a" ciência, mas "desta" ciência.

Também é por esta razão que o filósofo precisa renunciar à esperança de algum dia

estabelecer uma "filosofia da ciência". Porque, ao imobilizar um de seus momentos, a

filosofia aparece como um "espelho deformador" daquilo que pretende expressar.

O caso de Kant exemplifica bem o inconveniente de se fundar a filosofia sobre a ciência

de uma época. Seu olhar não podia ir além da ciência de seu tempo, a física de Newton,

que foi para ele A Ciência. Kant a tomou como o modelo do conhecimento objetivo e

verdadeiro. Consequentemente, tomou-a como ponto de referência para julgar todas as

outras ciências,. Resultado: tendo sido superada e relativizada, a filosofia, que sobre ela

se fundou, também ficou ultrapassada. Portanto, falsearía-

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mos o problema da filosofia querendo substituí-la por uma démarche científica. Por outro

lado, é preciso que se diga que nem tudo entra no domínio da ciência, ainda que seja a

faculdade de dizer não, a recusa da sujeição, e que autorizaria à filosofia uma função,

pelo menos, de mostrar que a ciência sempre nasce de um limite da ciência. Enfim,

postular uma epistemologia científica que tenha a pretensão, ainda que implícita, de ser

uma "ciência da ciência", é retomar um projeto filosófico que acreditamos superado.

Semelhante epistemologia dissimularia sempre um pressuposto filosófico e ocultaria, por

isso mesmo, a justificação de sua utilidade pedagógica e social e da definição de seu

estatuto científico. Aquilo que mais aborrece os cientistas é a pretensão da filosofia de

dizer a essência (o fundamento do ser). O filósofo faz eco à velha ideia de que o saber

não se funda sobre si mesmo: deve situar-se na economia do pensamento. E a filosofia é

a consciência daquilo a partir de que a ciência é possível. S. Breton conta que, ao fim de

um debate, Piaget lhe afirmava: "De qualquer forma, o senhor não vai me ensinar o que é

a psicologia!" Evidentemente que vou, respondeu o filósofo, porque a "essência" da

psicologia não é científica! Relativamente à epistemologia, a filosofia se situa como um

conjunto em face do qual a epistemologia é um subconjunto. O papel da filosofia é o de

manter a abertura do espaço mental epistemológico. Ela deve criar um horizonte comum

que se recuse a todo confinamento. Não pode curvar-se a uma epistemologia qualquer,

pois deve ser a "epistemologia de todas as epistemologias", isto é, o lugar onde as

epistemologias se neutralizam umas às outras naquilo que possuem de excessivo. Mas

também o lugar onde as epistemologias devem fecundar-se mutuamente, não se

esquecendo jamais de sua obediência ao humano.

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BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

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