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HorizontePerdido

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James Hilton

Horizonte

Perdido

Tradução deFrancisco Machado Vila e

Leonel Vallandro

Digitalização: Argo, o glorioso

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PRÓLOGO

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Tinham-se apagado os charutos e começava a apontar 

 

em nós aquela espécie de desilusão que de ordinário per-turba antigos condiscípulos ao se encontrarem de novo, ho-mens feitos, e descobrirem que já não existe entre eles amesma afinidade. 

 Rutherford escrevia novelas. Wyland era secretário deembaixada e convidara-nos a jantar em Tempelhaf. Nãomostrara lá muita alegria, mas mantinha aquela equanimi-dade que o diplomata deve ter sempre à mão para seme-lhantes ocasiões. 

  Dir-se-ia que o único ponto de união que nos ligava

uns aos outros era o fato de sermos ingleses celibatários,reunidos numa capital estrangeira; quanto a mim, chegara

 já â conclusão de que nem o tempo nem a Ordem de Vitóriatinham apagado em Wyland "Tertius " o leve toque de pre-sunção que lhe conhecera. 

Simpatizava mais com Rutherford: era uma bela evo-lução do menino frágil e precoce que noutro tempo eu mal-

 

tratava ou protegia alternativamente. E a única emoção que

 

Wyland e eu sentíamos em comum — uma pontinha de inve- ja — nascia da idéia de que ele ganhava provavelmentemuito mais e devia ter um gênero de vida muito mais inte-ressante do que nós. 

 Ainda assim, a tarde nada teve de aborrecida. Víamosdali quando aterravam os aparelhos da Lufthansa, vindosde todos os cantos da Europa Central; e no escurecer, à luz

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dos arcos voltaicos, a cena tinha um magnífico esplendor de teatro. Um dos aviões era inglês e o piloto, passando pe-la nossa mesa com o seu traje completo de aviador, cum-

 primentou Wyland, que a principio não o reconheceu. De- pois vieram as apresentações, porém, e o estranho foi con-vidado para a nossa roda. 

Era um moço jovial, de agradável presença, chamadoSanders. Wyland desculpou-se: era difícil identificar as pessoas sob o traje e o capacete de aviador. Ao que San-ders, respondeu, rindo: 

— Sei muito bem disso. Não esqueça que eu estava em Baskul. 

 Riu também Wyland, mas não tão espontaneamente; ea conversa mudou de rumo. 

Sanders revelou-se um bom contingente para o nosso pequeno grupo e ajudou-nos a tomar muita cerveja. Pelasdez horas, Wyland deixou-nos durante alguns minutos, para

 falar com alguém que se achava numa mesa próxima, e Ru-

therford, aproveitando o repentino hiato que se abrira na palestra, observou, dirigindo-se a Sanders: 

— Falou em Baskul. Conheço um pouco o lugar. Que

 

aconteceu lá? Sanders sorriu, meio contrafeito: — Oh! referia-me apenas a um fato que provocou al-

guma excitação, quando eu me achava no serviço. 

 

Era, porém, aquele moço dos que não podem guardar 

 

segredos, e continuou: — Foi o caso que um afegane, afridi ou o que quer 

que seja, fugiu com um de nossos aviões. Meteu-nos emmaus lençóis, como pode imaginar. Também, nunca vi ta-manha desfaçatez! O diabo emboscou-se no caminho do pi-

 

loto, derrubou-o, tirou-lhe o uniforme e subiu para a dire-ção, sem que ninguém notasse. Deu ao mecânico as ordens

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certas, decolou e lá se foi voando em grande estilo. Mas o pior é que nunca voltou. 

 Rutherford parecia interessado. — Quando foi isso? — Oh! haverá, talvez, um ano. . . em maio de trinta e

um. Estávamos fazendo evacuar a população civil de Bas-

kul para Peshawar, por causa da revolução. . . Lembra-se,não? Estava tudo em polvorosa; do contrário, penso queisso não poderia ter acontecido. E contudo, aconteceu! Is-to prova, até certo ponto, que o hábito faz o monge, nãoacha? 

 Ainda com o mesmo interesse, Rutherford observou: — Supunha que nessas ocasiões haveria mais de um

homem encarregado de um avião. — E assim é, com todos os transportes comuns de tro-

 pas; mas aquele era um aparelho todo especial, construído primitivamente para certo marajá, e tinha um equipamentomuito aperfeiçoado. O pessoal do Serviço Topográfico In-

diano se servira dele para vôos de grande altura em Caxe-mira. 

— E diz o senhor que nunca chegou a Peshawar? — Nunca! E também não desceu em parte alguma, que

se saiba. E é isto o mais estranho do caso. Está claro que seo sujeito pertencia a uma tribo nativa, poderia ter voado

 para as montanhas, com a mira no resgate dos passageiros.Suponho, entretanto, que morreram todos. Há por essa

 fronteira muitos sítios em que um avião pode despedaçar-sesem que ninguém ouça. . . 

— Sim, é isso mesmo. Quantos passageiros eram? — Quatro, se não me engano. Três homens e uma es-

 pécie de missionária. — Um deles não se chamava, por acaso, Conway?Sanders respondeu, surpreso: 

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—  Mas sim, era um deles. "Glória" Conway. . . Co-nhecia-o? 

—  Andamos na mesma escola — tornou Rutherford,meio embaraçado. Porque, embora dissesse a verdade, sen-tia que não lhe ficava bem fazer esta observação. 

— Era, a julgar pelo que fez em Baskul, um grande ti-

 po.  — Era, sim — concordou Rutherford. —  Indubita-velmente. Mas que coisa extraordinária. . . Sim, extraordi-nária. . . 

Pareceu sair de um devaneio e disse: — Os jornais não deram a notícia, senão eu a teria li-

do. . . Como foi isso? Sanders não se sentia agora muito a gosto. Pareceu-

me até que corava. — Para dizer a verdade — replicou enfim —, creio

que fui mais longe do que devia. . . Bem, isso talvez já nãotenha tanta importância. . . Será novidade velha, sabida em

todos os cassinos de oficiais, para não falar nos bazares. Ahistória foi abafada, já se vê. . . quero dizer, a maneiracomo se deu o fato. Não era notícia para ser bem recebida,não! O governo apenas anunciou a perda de um aparelho,mencionando os nomes. Uma dessas notícias que não cha-mam muita atenção fora do círculo interessado. 

 Naquele momento voltava Wyland e Sanders foi-lhe di- zendo, a modo de desculpa: 

— Estes amigos estavam falando de "Glória " Con-way, Wyland. E, não sei como, contei-lhes a história de

 Baskul. . . Mas acho que não há mal nisso, não é mesmo? Por um momento guardou Wyland um silêncio austero.

Era evidente que procurava conciliar os deveres da cortesiacom a retidão oficial. Por fim disse: 

—  Lamento que se faça desse caso uma mera anedota.

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Sempre pensei que vocês, homens do ar, faziam ponto dehonra de não espalhar histórias fora da escola. 

 Depois desta censura ao moço, voltou-se mais amável para Rutherford e continuou: 

— Certamente, não houve mal nenhum no seu caso. Mas não há negar que às vezes é necessário cercar de certo

mistério os fatos ocorridos na fronteira. — E por outro lado — replicou Rutherford secamen-te — é natural que se sinta curiosidade de saber a verda-de. 

—  A verdade não foi escondida a ninguém que tivessemotivo sério para averiguá-la. Achava-me em Peshawar nessa época, e posso afirmar-lhe isso. Conheceu bem Con-way . . . quero dizer, desde os tempos de escola ? 

— Estivemos pouco tempo juntos em Oxford, e rarasvezes o encontrei depois. E você, esteve com ele muitas ve-

 zes? — Uma ou duas apenas, quando estava de serviço em

 Angorá. — Gostava dele? —  Achei-o inteligente, mas um tanto desleixado.Sorriu Rutherford à observação e replicou: — Era inteligente, sim. Fez um curso triunfal na uni-

versidade, até rebentar a guerra. Fez parte de uma guarni-ção de remo e foi figura importante na União — e prêmiodisto e daquilo, e não sei que mais. Também o considero omelhor pianista amador que conheço. Assombrosa-mente versátil, é daqueles tipos que Jowett teria apontado

 para futuro primeiro-ministro. E contudo, o fato é que nãose ouviu mais falar nele depois que saiu de Oxford. Certa-mente a guerra lhe veio cercear a carreira. Era muito novo,e ouvi dizer que tomou parte ativa nela. 

— Foi ferido, creio que numa explosão — respondeu

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Wyland; — mas nada de grave. Fez boa figura. Obteve umacondecoração na França. Creio que voltou depois a Ox-

 

 ford, por pouco tempo. . . como uma espécie de explicador.Sei que foi para o Oriente em vinte e um. Seus estudos delínguas orientais lhe valeram o lugar com isenção das for-malidades preliminares habituais. Desempenhou diversos

cargos. O sorriso de Rutherford acentuou-se. —  Isto explica tudo, então. E a história jamais reve-

lará quanto esplendor foi desperdiçado em decifrar notasdo Foreign Office e em servir chá nas recepções da Lega-ção. 

— Ele pertencia ao corpo consular, não ao diplomá-tico — disse Wyland com ar altivo. 

Era evidente que não lhe agradavam os motejos. E quando, após outras pilhérias semelhantes, Rutherford er-gueu-se para sair, ele não protestou. 

 Na verdade ia ficando tarde, e eu declarei que também

me retirava. A atitude de Wyland, ao nos despedirmos, eraainda a do decoro oficial ofendido, mas sofrendo em silên-cio. Sanders, porém, mostrou-se muito cordial e declarouque esperava tornar a encontrar-se conosco. 

Eu ia tomar um trem transcontinental na manhã se-guinte, muito cedo, e, enquanto esperávamos um táxi, Ru-therford perguntou-me se queria passar a noite no seu ho-tel. Tinha lá um gabinete e poderíamos conversar. Aquiescià excelente idéia e ele acrescentou: 

—   Assim poderemos falar de Conway, se você qui-ser... a não ser que este assunto o aborreça. 

 Afirmei-lhe que não, ainda que pouco o conhecesse. — Ele terminou o curso no fim do meu primeiro tri-

mestre e não tornei a vê-lo. Mas foi extraordinariamentebondoso comigo certa ocasião. .. eu era um calouro, e não

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havia razão alguma para fazer o que fez. Foi uma coisa tri-vial, mas que nunca esqueci. 

— Sim, também o apreciava muito, e no entanto co-nheci-o durante muito pouco tempo. 

Ficamos alguns minutos calados. Não deixava de ser um tanto estranho aquele silêncio. Pensávamos ambos em

alguém que nos interessava muito mais do que seria de es- perar, dado o pouco contato que tivéramos com ele. Tenhoaliás observado que outros, que mal conheceram Conway,encontrando-o somente por acaso e falando-lhe por ummomento, guardavam dele viva recordação. 

Era um moço notável, certamente; e para mim, vista aidade em que o conheci — a idade do culto do herói —, sualembrança conservou uma nitidez romântica. Era alto e ex-

 

tremamente bem-parecido, e não só se distinguiu nos jogoscomo arrebatava toda sorte de prêmios escolares. Um rei-tor sentimental, falando um dia dos seus feitos, classificou-os de "gloriosos" e daí se originou a alcunha. Nenhum ou-

tro, talvez, poderia sobreviver a ela.   Lembro-me de que certa ocasião fez um discurso emgrego. Era extraordinariamente dotado para as representa-ções teatrais. Havia nele algo da época de Isabel — a natu-ral versatilidade e bela figura, aquela efervescente combi-nação de atividade mental e física. Qualquer coisa, enfim,de um Philip Sidney. Nossa civilização atual não gera mui-

 

tos tipos assim. E, por ter feito esta observação, ouvi de Ru-

 

therford: — Sim, é verdade, e temos para essas criaturas um

nome especial e desdenhoso: diletantes. É possível que al-gumas pessoas tenham dado esse nome a Conway. . . gentecomo Wyland, por exemplo. Não dou muita atenção a W-

 

 yland. Não posso suportar tal tipo de homem, toda aquelavaidade, aquela colossal presunção. E essa mentalidade de

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 prefeito de colégio. . . não notou? Certas expressões como"apelar para o sentimento de honra "e "espalhar histórias

  fora da escola"— como se todo o império fosse a quintaclasse de um liceu! Por isso mesmo é que vivo a questionar com esses senhores diplomatas. 

 Atravessamos algumas ruas em silêncio, mas ao cabo

ele recomeçou: — Seja como for, não desejaria perder esta reunião.Foi para mim uma coisa singular ouvir Sanders contar a-quele caso de Baskul. Veja você; eu tinha ouvido falar nissoe não dera muito crédito. Era parte de uma história muitomais fantástica, em que eu não via razão alguma para a-creditar — ou antes, havia apenas uma razão muito insigni-

 ficante. Agora há duas razões muito insignificantes. Você

 

deve ter adivinhado que eu não sou muito crédulo. Passeigrande parte da vida viajando e sei que há coisas muito es-quisitas por esse mundo afora. . . quando a gente as vê pes-soalmente, é claro; mas não tanto assim, se ouvirmos o con-

to em segunda mão. E no entanto. . .   Dir-se-ia ter-lhe ocorrido de repente que aquilo não

me interessava muito. Interrompeu-se e depois continuou,rindo: 

—  Bem, uma coisa é certa: não vou revelar o segredoa Wyland. Seria o mesmo que procurar vender um poemaépico ao Tit-Bits. Não; prefiro tentar a sorte com você. 

— Talvez eu não mereça. . . —  A leitura do seu livro não me deu essa impressão. Eu não tinha mencionado minha autoria daquele tra-

balho técnico (afinal, a neurologia não interessa a todo o

mundo) e fiquei agradavelmente surpreendido por saber que Rutherford ouvira falar do livro. Disse-lho, e ele res-

 pondeu: 

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— Pois bem, eu me interessei porque foi justamente aamnésia o mal de Conway. . . em certa ocasião. 

Chegáramos ao hotel e ele foi buscar sua chave no es-critório. Enquanto subíamos para o quinto andar, disse: 

— Tudo isto não passa de rodeios. O fato é que Con-way não morreu. Pelo menos, estava vivo há alguns meses. 

  Não era possível comentar isto no exíguo espaço etempo de uma ascensão em elevador. Alguns segundos maistarde, já no corredor, perguntei-lhe: 

— Tem certeza disso? E como o sabe? Abrindo a porta, respondeu-me: — Porque em novembro passado viajei com ele de

 Xangai a Honolulu, num navio de carreira japonês.  Não tornou a falar senão depois de estarmos instala-

dos nas nossas poltronas, servidos de bebidas e charutos. — Estive na China no outono, em férias. Ando sempre

correndo mundo. Havia muitos anos que não via Conway;nunca nos correspondemos e não posso dizer que pensassemuito nele, posto que sua fisionomia fosse uma das poucasque eu tinha bem presentes na memória. Fora a Hankow vi-sitar um amigo e voltava pelo expresso de Pequim. Traveiconhecimento no trem com uma madre superiora de irmãsde caridade francesas, por sinal que uma pessoa encanta-dora. Viajava para Chung-Kiang, onde estava situado o seuconvento, e, como eu falava um pouco o francês, parece quegostou de conversar comigo a respeito de seu trabalho eoutros assuntos gerais. Não sinto lá muita simpatia pelasobras missionárias comuns, mas não me custa admitir, co-mo aliás fazem muitos outros, que os católicos formam ca-

tegoria à parte, pois que ao menos trabalham rijo e não secolocam na posição de oficiais de patente num mundo go-vernado por hierarquia. Isto, porém, não vem ao caso. O

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 fato é que essa senhora, falando sobre o hospital da missãoem Chung-Kiang, mencionou um caso de febre que apare-cera lá algumas semanas antes — um homem que supu-nham europeu, posto que não soubesse explicar de onde vi-nha nem trouxesse papéis consigo. Vestia um traje nativo,das classes mais pobres, e quando as irmãs o recolheram

estava muito mal. Falava o chinês correntemente, o francêscom a maior correção, e minha companheira de trem afir-mou que, antes de saber qual a nacionalidade das freiras,também se dirigira a elas em inglês, com pronúncia purís-sima. Disse-lhe que não me entrava na cabeça semelhante

  fenômeno e caçoei amavelmente com ela, pelo fato de ter descoberto uma pronúncia puríssima em língua que nãoconhecia. Pilheriamos sobre isto e outras coisas, e a con-versa acabou por um convite que ela me fez para visitar amissão, se algum dia aparecesse por ali. Ora, naquele mo-mento isso me parecia tão improvável como subir ao Eve-rest, e quando o trem chegou a Chung-Kiang despedi-mecom sincero pesar por ver terminar aquele encontro casual.E no entanto, voltei a Chung-Kiang poucas horas depois. É que o trem teve um desarranjo alguns quilômetros adiante,e foi com muita dificuldade que pôde voltar à estação, ondenos informaram de que não poderia chegar outra máquinaantes de doze horas. É comum isso nos caminhos de ferrochineses. De modo que me vi constrangido a passar meiodia em Chung-Kiang e resolvi pegar na palavra a boa frei-ra, fazendo uma visita à missão. 

"Fui recebido cordialmente, ainda que não sem certaestranheza. A meu ver, uma das coisas mais difíceis para

quem não é católico é compreender a facilidade com queum adepto dessa religião combina a rigidez oficial comuma largueza pessoal de vistas. Não é complicado isto? Se-

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  ja como for, aquela gente da missão era muito amável. A-inda não fazia uma hora que estava lá e já me ofereciamuma refeição preparada para mim. Um jovem médico chi-nês — era cristão — sentou-se à mesa comigo para con-versar, numa divertida mescla de francês e inglês. Maistarde a madre superiora levou-me a ver o hospital, orgulho

de todos ali. Mencionara-lhes a minha profissão de escri-tor, e eram tão ingênuos que ficaram alvoroçados à idéia

 

de que eu podia incluí-los a todos num livro. Ao passo queeu percorria as camas, ia-me o doutor explicando os casos.Era tudo imaculado no hospital, que parecia muito bem di-rigido. Já nem me lembrava do misterioso doente e sua re-

 finada pronúncia inglesa, quando a madre mo apontou. Eusó via a parte posterior da cabeça do homem, que parecia

 

adormecido. Alguém sugeriu a idéia de falar-lhe eu em in-glês, e assim fiz, dizendo-lhe 'boa tarde'; foi a primeira pa-lavra, não muito original, na verdade, que me veio à lem-brança. O homem ergueu repentinamente a cabeça e res-

 pondeu: 'boa tarde'. De fato, falava com inflexão educada. Mas não tive tempo de me surpreender com isso, porque jáo reconhecera — apesar da barba, da aparência completa-mente mudada e do longo tempo que passara sem o ver.Era Conway. Tinha certeza de que era ele, e contudo, se ti-vesse refletido um momento, chegaria talvez à conclusãode que não podia ser. Felizmente, obedeci ao primeiro im-

  pulso. Chamei-o pelo nome, dizendo o meu, e, posto queme olhasse sem sinal algum de reconhecimento, convenci-me de que não me enganara. Vi-lhe aquela estranha e qua-se imperceptível contração dos músculos faciais, tão minhaconhecida, e os mesmos olhos que, como costumávamos di-

 zer em Balliol, eram mais do azul de Cambridge que do deOxford. Além disso, ninguém podia enganar-se com aquelehomem: quem o via uma vez ficava com as suas feições

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gravadas para sempre na memória. É claro que o médico ea madre superiora se mostraram muito interessados. Dis-se-lhes que o conhecia, que era inglês e meu amigo e quesó atribuía o fato de não me ter reconhecido à perda abso-luta da memória. Concordaram com a minha hipótese, nãosem assombro, e tivemos então uma longa conferência a

respeito do caso. Nenhum deles tinha idéia alguma da ma-neira como Conway pudera chegar a Chung-Kiang naque-le estado. 

"Para encurtar a história, fiquei ali mais de quinze di-as na esperança de poder fazê-lo, de um modo ou de outro,lembrar-se de alguma coisa. Não obtive resultado, mas foirecuperando a saúde e conversávamos muito. Quando lhedisse francamente quem eu era e quem era ele, mostrou-sebastante dócil e não discutiu. Estava mesmo alegre, semmotivo especial, e parecia gostar de minha companhia.Quando lembrei que poderia reconduzi-lo à pátria, disseapenas que isso não lhe interessava. Não deixava de ser de-

sanimadora aquela aparente falta de vontade própria. As-sim que me foi possível, fixei a data da partida. Confiei ocaso a um conhecido que era funcionário do consulado de

 Hankow, e deste modo consegui que o passaporte e outros  papéis necessários fossem preparados sem os embaraçosque, a não ser assim, teriam surgido. Parecia-me, no inte-resse de Conway, ser melhor que toda aquela história esca-

 passe à publicidade e espalhafato dos jornais. E folgo emdizer que consegui o que desejava. Seria, realmente, umbom bocado para a imprensa! 

"Pois bem, saímos da China de maneira normal. Des-cemos o Yang-tsé até Nanquim, e ali tomamos o trem para

  Xangai. Nessa noite partia um vapor japonês para SãoFrancisco e corremos a tomar passagem nele."

— Prestou-lhe você um serviço imenso — observei. 

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 Não o negou Rutherford: — Creio que não teria feito tanto se fosse por outra

 pessoa. Mas havia não sei o que naquele rapaz. . . é difícilexplicar, mas sempre fora assim. . . a gente sentia-se felizem fazer por ele tudo que pudesse. 

— Sim — concordei. — Ele possui um encanto parti-

cular, um como dom de conquistar as pessoas, que até ago-ra é agradável recordar — posto que eu o veja ainda cole-gial, em traje de etiquete. 

— É pena que você não o tivesse conhecido em Ox- ford. Era brilhante — não há outra palavra. Dizem que de- pois da guerra ficou diferente, e creio mesmo que assim foi. Mas não posso deixar de lamentar que, sendo tão bem do-tado, não tivesse ocupação mais importante — porque não

 

considero grande carreira para um homem isso de ser es-teio da majestade britânica. E Conway era, ou devia ter si-do, grande. Nós ambos o conhecemos e não estou exage-rando, certamente, quando digo que nunca nos esquece-

remos disso. E, até lá na China, ele, cujo espírito estava perturbado, cujo passado era um mistério, conservava ain-da aquele poder de atração. 

 

Calou-se um momento, cismando, depois continuou: — Como bem pode imaginar, reatamos a velha ami-

 zade durante a viagem. Disse-lhe tudo que sabia a seu res-  peito e ele ouviu-me com uma atenção concentrada que

 

quase tocava as raias do absurdo. Lembrava-se de tudo perfeitamente, desde a sua chegada a Chung-Kiang; e outro ponto que lhe pode interessar é que não esquecera as lín-guas. Disse-me, por exemplo, que sabia ter tido algo quever com a índia, pois que conhecia a língua hindustani. EmYokohama encheu-se o vapor e entre os novos passageirosestava Sieveking, o pianista, a caminho dos Estados Uni-dos, onde ia dar concertos. Era da nossa mesa e falava às

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vezes com Conway, em alemão. Isto prova que, no exterior,ele parecia perfeitamente normal. A não ser a perda dememória, que não se notava no trato comum, sua aparênciageral era a de um homem são. Alguns dias depois de par-tirmos do Japão, Sieveking aquiesceu em dar um concerto abordo e eu e Conway fomos ouvi-lo. Tocou bem, é claro —

alguns trechos de Brahms e Scarlatti e muita coisa de Cho- pin. Uma ou duas vezes olhei para Conway e pareceu-meque ele estava apreciando aquilo, o que seria muito natural,visto ter sido músico. 

"Terminado o programa prolongou-se o recital numasérie de repetições, que Sieveking concedeu — muito ama-velmente, pareceu-me — a alguns entusiastas agrupadosem redor do piano. Também desta vez, tocou principal-mente Chopin. Você sabe que é a sua especialidade. Afinaldeixou o piano e dirigiu-se para a porta, ainda acompa-nhado de admiradores; mas, evidentemente, achava que de-viam dar-se por satisfeitos. Nesse ínterim, tinha início um

 fato estranho. Conway sentara-se ao piano e estava tocan-do uma música rápida e viva, que eu não reconheci, masque fez com que Sieveking voltasse, muito excitado, a inda-gar o que era. Após um longo silêncio, estranho na verda-de, Conway pôde apenas dizer que não sabia. Sieveking, a-inda mais alvoroçado, exclamou que era incrível. Fazendo,na aparência, um tremendo esforço fÍsico e mental para se

 

lembrar, Conway disse afinal que era um estudo de Chopin. Não me pareceu que fosse, e não me surpreendi ao ouvir Sieveking negá-lo peremptoriamente. Conway, entretanto,mostrou-se de repente indignado, o que me espantou, por-que até aquele dia revelara tão pouca emoção em todas ascoisas! Sieveking, do seu lado, objetava: 

" 'Meu caro amigo, conheço tudo quanto existe de

 

Chopin e afirmo-lhe que ele jamais escreveu isso que o se-

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nhor acaba de tocar. Podia perfeitamente ter escrito o tre-cho, pois é o seu estilo, mas sucede apenas que não o escre-veu. Desafio-o a mostrar-me em qualquer edição'. 

"Ao que Conway replicou afinal: " 'Oh! sim. . . lembro-me agora. . . isso nunca foi im-

 presso. Conheço o trecho porque o ouvi de um antigo alu-

no de Chopin. . . Aprendi também com ele outra peça iné-dita'." Olhando-me firmemente, Rutherford continuou: —   Não sei se você conhece música; mas, ainda que

não conheça, creio que poderá imaginar a excitação de Sie-veking, e também a minha, quando Conway continuou a to-car. Para mim, certamente, aquilo foi um repentino e as-sombroso vislumbre do seu passado — a primeira reve-lação que lhe escapava. Sieveking achava-se, naturalmente,

 

todo absorto no problema musical — um quebra-cabeça, seatendermos à época da morte de Chopin: 1849. 

"Todo esse incidente foi tão inexplicável, em certo sen-

tido, que talvez não seja demais acrescentar que havia ali pelo menos uma dúzia de testemunhas, inclusive um profes-sor da Universidade da Califórnia, homem de certa nomea-da. Seria muito fácil, está visto, declarar que a explicaçãode Conway era cronologicamente impossível, ou pouco me-nos que impossível; mas havia, ainda assim, os trechos mu-sicais a pedir explicação. Se não era como ele dizia, o que

 

era então? Sieveking afirmou-me que, se aquelas duas pe-ças fossem publicadas, estariam no repertório de todos osconcertistas dentro de seis meses. Pode ser exagero, masserve para mostrar a opinião que Sieveking fazia delas. De-

 pois de muito argumentar não conseguimos assentar umaexplicação satisfatória, pois que Conway insistia na sua

 

história e, como já me parecia que ia ficando fatigado, es-tava ansioso por afastá-lo dali e levá-lo para a cama. O úl-

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timo episódio foi uma combinação para gravar o trecho emdisco. Sieveking declarou que se encarregaria de todos osarranjos assim que chegasse à América, e Conway prome-teu tocar diante do microfone. Muitas vezes tenho lamenta-do, por várias razões, que ele não chegasse a cumprir a

 promessa." 

Consultando o relógio, disse-me Rutherford que eu ti-nha tempo suficiente para apanhar o trem, pois sua históriaestava quase terminada. 

— Porque naquela noite — continuou ele —, a noitedo recital, voltou-lhe a memória. Tínhamos ambos ido dei-tar-nos e eu me conservava acordado quando ele entrou nomeu camarote e disse-mo. Tinha o rosto rígido e a única de-

 finição que encontro para a sua expressão é a de uma tris-teza esmagadora, uma espécie de tristeza universal — al-guma coisa remota e impessoal, isso a que os alemães cha-mam Wehmut, Weltschmerz, ou coisa que o valha. Disse-me que podia recordar tudo agora, que a memória começa-ra a voltar-lhe aos poucos enquanto Sieveking tocava. Sen-tou-se à beira da minha cama e ali ficou calado; deixei-o àvontade, para que falasse quando e como quisesse. Disse-lhe que me alegrava por lhe ter voltado a memória, mas queme entristecia, ao mesmo tempo, por ver que ele preferiaque não houvesse voltado. Ergueu então a cabeça e ouvi desua boca o que hei de sempre considerar um grande cum-

 primento: " 'Graças a Deus, Rutherford, você tem imagina-

ção...'  "Persuadi-o depois a vestir-se enquanto eu fazia o

mesmo, e começamos a andar no convés de um lado paraoutro. Era uma noite serena, estrelada e quente, e o mar ti-nha um aspecto viscoso e pálido: parecia leite condensado.

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Se não fosse a vibração das máquinas, diríamos que está-vamos passeando numa esplanada. Abandonei-o apropriainiciativa, sem lhe fazer a princípio pergunta alguma. Qua-se ao romper da madrugada começou a falar; fê-lo sem in-terrupções, e, quando acabou, a manhã ia em meio e o solescaldava. Quando digo 'acabou', não quero dizer que nada

mais ficasse por acrescentar àquela primeira confissão. Eleainda preencheu muitas lacunas importantes durante asvinte e quatro horas que se seguiram. Sentia uma tristeza

  profunda e não podia dormir, de sorte que conversamosquase constantemente. Pelo meio da noite seguinte o vapor devia chegar a Honolulu. Estivemos bebendo no meu cama-rote ao escurecer; deixou-me às dez horas, mais ou menos,e nunca mais o vi." 

— Você quererá dizer?...   Já me surgia no espírito a lembrança de um suicídio

calmo e deliberado que presenciara uma vez, no paquete de Holyhead para Kingstown. 

— Oh! não — respondeu Rutherford, rindo. —Conway não era desse tipo. Fugiu-me apenas. E era muito

  fácil desembarcar, mas ele deve ter tido dificuldade emsubtrair-se às buscas a que, naturalmente, não deixei de

 proceder. Soube depois que conseguira reunir-se à tripu-lação de um bote carregado de bananas, que se dirigia

 para Fidji. — E como veio a saber disso? —  Da maneira mais simples: escreveu-me de Bancoc,

três meses mais tarde, remetendo um cheque para pagar asdespesas que eu tivera com ele. Agradecia-me, ajuntando

que se achava muito bem. E que ia empreender uma longaviagem — para o noroeste. Mais nada. 

— Que queria dizer com isso? 

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— Sim, é muito vago, não é? Há muitos lugares que  ficam a noroeste de Bancoc. Até Berlim, afinal, fica nessadireção. 

Calou-se e encheu os copos. Era uma história estranha aquela; ou seria ele que lhe

dava essa feição? Eu não saberia dizer qual fosse o mais

exato. O episódio da música, por mais assombroso que fos-se, não me interessava tanto como o mistério da chegada deConway àquele hospital da missão chinesa. Fiz este comen-tário, e Rutherford respondeu que eram ambos partes domesmo problema. 

— Pois sim; mas como foi que ele foi ter a Chung-Kiang? Certamente há de lhe ter contado tudo isso aquelanoite, no vapor. 

— Falou-me nisso, sim, e seria absurdo, depois de lhecontar tanta coisa, guardar segredo sobre o resto. Mas é uma história comprida e não haveria tempo sequer para de-lineá-la antes de você tomar o trem. Além disso, há umamaneira mais conveniente de satisfazê-lo. Não gosto muitode revelar as manhas da minha desacreditada profissão,mas a verdade é que, quanto mais pensava na história deConway, mais atração sentia por ela. Principiara por tomar simples notas, depois de nossas diversas conversações nonavio, a fim de não esquecer os detalhes. Mais tarde, comocertos aspectos dela começaram a me empolgar, vi-meconstrangido a aumentar aquelas notas — a dar forma aos

 fragmentos, a encadeá-los numa narrativa única. Não que-ro dizer com isto que tenha inventado ou alterado algumacoisa. Há no que ele me contou material de sobra. Conway

conversava com muita fluência e tinha o dom natural decomunicar um ambiente. Creio também que eu, por minha

 parte, começava a compreender o homem.

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Foi buscar uma maleta e tirou de dentro um maço deoriginais datilografados. 

—  Aqui tem você a história. Faça dela o que quiser. — Pelo que vejo, você acha que não vou acreditar ne-

la. — Oh! Minha opinião não é tão definitiva.. . Mas o-

lhe, se você acreditar, será pela famosa razão de Tertulia-no, lembra-se? Quia impossibile est. Talvez não seja mau oargumento. Seja como for, diga-me depois o que pensa dis-to. 

 Levei comigo os papéis. Li a maior parte da históriano expresso do Oriente. Pretendia devolvê-la com uma lon-ga carta, assim que chegasse à Inglaterra; mas não o fiz lo-go, e antes de fazer a remessa recebi um bilhetinho de Ru-therford, dizendo-me que ia recomeçar a andejar e que por alguns meses não teria endereço fixo. Ia para Caxemira, edali "para leste ". 

E isto não me surpreendeu. 

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CAPÍTULO 1

Piorara consideravelmente a situação em Baskul na-quela terceira semana de maio, e no dia 20 chegaram de

 

Peshawar aparelhos da Air Force, mediante arranjo feitopara evacuar os residentes brancos. Eram estes mais oumenos oitenta e a maior parte foi conduzida sem novida-de, atravessando as montanhas em aviões de transporte detropa. Empregaram-se também nesse mister alguns apare-lhos de várias espécies, entre eles um avião de cabina,cedido pelo marajá de Chandapor. E foi nesse avião que

 

embarcaram, pelas dez horas da manhã, quatro passagei-ros: Miss Roberta Brinklow. da Missão do Oriente; Hen-ry D. Barnard, cidadão americano; Hugh Conway, cônsul

de S. M. Britânica; e o capitão Charles Mallinson, vice-cônsul.

Estão aí os nomes, conforme apareceram mais tardenos jornais indianos e ingleses.

Contava Conway trinta e um anos. Havia dois que es-tava em Baskul, desempenhando uma tarefa que, vista agora

 

à luz dos acontecimentos, poderia ser considerada como adefesa teimosa de uma causa perdida.

Encerrava-se ali uma fase de sua vida. Dentro de al-gumas semanas, talvez uns poucos meses de licença, se-ria enviado para outra parte. Tóquio ou Teerã, Manilhaou Mascate: na sua profissão nunca se sabe o que vai a-contecer.

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Estava já há dez anos no serviço consular — temposuficiente para avaliar as suas possibilidades com a mesmaagudeza com que observava as aldeias. Sabia que nuncateria muito com que comprar melões; mas já era consola-ção bastante pensar que não gostava mesmo de melão. E,para usarmos outra imagem botânica, não se tratava de "u-

vas verdes". Preferia as ocupações menos cerimoniosas emais pitorescas que se lhe ofereciam, e, como nem sempreeram as melhores, muita gente achava que ele "fazia mau

 jogo". Entretanto, e segundo o seu gosto, parecia-lhe que  jogara muito bem; tivera um decênio moderadamente a-gradável.

Era alto, muito bronzeado, cabelos castanhos apara-dos curtos e olhos de um azul quase negro. Parecia severoe preocupado, enquanto sério; quando ria — o que era raro— tinha aparência de menino. Observava-se-lhe, junto aoolho esquerdo, uma leve contração nervosa que aparecianitidamente quando trabalhava em excesso ou bebia de-mais; e, como passara todo o dia e toda a noite que pre-cederam a evacuação a reunir e destruir documentos, eraessa contração muito acentuada quando entrou no avião.Achava-se fatigadíssimo e infinitamente satisfeito por terarranjado as coisas de sorte a viajar no luxuoso aparelhodo marajá, em vez de ir num dos apinhados aeroplanos datropa. Refestelou-se gostosamente no confortável assentode vime quando o avião se elevou nos ares. Era daquelaespécie de homens que, estando habituados aos trabalhosmais duros, esperam ter em recompensa os pequenos con-fortos da vida. Podia suportar alegremente os rigores da

estrada de Samarcande, mas, para viajar de Londres a Pa-ris, gastaria a última nota de dez libras tomando uma pas-sagem no "Seta de Ouro".

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Já fazia mais de uma hora que estavam voando quan-do Mallinson, que ia sentado logo à frente de Conway,observou que, a seu ver, o piloto não seguia o caminhodireito.

Era Mallinson um moço de vinte e poucos anos, cora-do, inteligente sem ser intelectual, encerrado nas limita-

ções do ensino público, cujas vantagens também souberaaproveitar. A reprovação num exame era a causa principalde ter sido mandado para Baskul, onde estivera seis mesesem companhia de Conway, que já começava a gostar dele.

Mas Conway não queria fazer o esforço que exigeuma conversação em aeroplano. Abriu os olhos sonolentose replicou que, fosse qual fosse o caminho tomado, era desupor que o piloto o conhecesse melhor do que eles.

Dali a meia hora, rendido pelo cansaço e embalado

 

pelo zumbido do motor, ia já a adormecer quando Mallin-son tornou a perturbá-lo:

— Escute, Conway, pensei que era Fenner quem noslevava!

— E então, não é ele?— O sujeito voltou a cabeça agora mesmo, e sou ca-

paz de jurar que não é ele.— É difícil de dizer, através daquele vidro.— Eu conheceria o rosto de Fenner em qualquer par-

te.— Pois bem, se não é ele é algum outro. Não tem

importância.— Mas é que Fenner me disse positivamente que iria

conduzir este aparelho.

— Sem dúvida mudaram de idéia e deram-lhe um dosoutros.

— Bem, neste caso, quem é aquele homem?

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— Meu caro rapaz, como vou saber disso? Não julgacertamente que aprendi de cor a fisionomia de todos os te-nentes-aviadores da Air Force, não é?

— Pois eu conheço muitos, e não me lembro daquelesujeito.

— Deve pertencer então à minoria que você não co-

nhece — replicou Conway, sorrindo.E acrescentou:— Quando chegarmos a Peshawar, daqui a pouco,

você poderá travar conhecimento com ele e indagar tudoquanto quiser.

— Neste andar não chegaremos nunca a Peshawar.O homem está completamente fora de rumo. E não meadmira. . . Voando a tamanha altura ele não pode ver on-de está.

Conway não se inquietou. Estava habituado às via-gens aéreas e confiava nos pilotos. Além disto, não tinhamotivo algum para desejar chegar depressa a Peshawar.Nada tinha de particular a fazer ali e não se sentia ansiosopor ver ninguém. Era-lhe, pois, de todo indiferente que aviagem durasse quatro ou seis horas. Não era casado; nãoo aguardava uma terna recepção ao desembarcar. Tinhaamigos na cidade e provavelmente alguns deles o levariamao clube, onde beberiam juntos; era uma perspectiva agra-dável, mas não de molde a causar-lhe grande alvoroço.

Também não encarava com saudades a década trans-corrida. Fora um período igualmente agradável, ainda quenão o tivesse satisfeito inteiramente. Instável, bom por in-tervalos, tendendo a perturbar-se; tal era o sumário meteo-

rológico daquela época de sua vida, bem como da históriamundial.

Passaram-lhe pela memória Baskul, Pequim, Macau e

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outros lugares. A cena mais remota na sua lembrança eraOxford, onde, depois da guerra, passara dois anos fazendopreleções sobre história oriental, respirando o pó em bibli-otecas cheias de sol, descendo a High Street de bicicleta. Avisão era atraente, mas não o comovia; parecia-lhe, emcerto sentido, que ele era apenas uma parte de todas as coi-

sas que pudera ter sido.Uma sensação gástrica muito sua conhecida advertiu-o de que o avião começava a descer. Teve a tentação deadmoestar Mallinson pelo seu nervosismo, e tê-lo-ia feitosem dúvida se o moço não se houvesse levantado subita-mente, batendo com a cabeça no teto e acordando Barnard,o americano, que estava a cochilar no seu canto, do outrolado do estreito corredor.

— Meu Deus! — exclamou Mallinson, espiando pe-la janela. — Olhem para baixo!

Conway olhou. Não era aquela, certamente, a vistaque esperava — se é que esperava alguma coisa. Em vezdos acantonamentos em elegante disposição geométrica edos retângulos mais compridos dos hangares, só se avis-tava um nevoeiro opaco que velava uma imensa desolação.O avião, que ia descendo rapidamente, achava-se ainda auma altura extraordinária para um vôo comum. Avistava-se, cerca de uma milha aquém da névoa mais sombria dosvales, o espinhaço rugoso de uma longa fila de montanhas.Era o cenário típico da fronteira, se bem que Conway ja-mais o tivesse visto de tamanha altura. Não era — e istolhe causou estranheza — sítio algum próximo de Pesha-war.

— Não reconheço esta parte do mundo! — observou.Depois, e mais discretamente, por não querer assustar

os outros, acrescentou ao ouvido de Mallinson:

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— Parece que você tinha razão... O homem erroumesmo o caminho!

O avião descia com espantosa rapidez e o ar ia fican-do cada vez mais quente. Dir-se-ia que a terra adusta quese avistava lá embaixo era um forno, cuja porta se abrirade repente. Acima do horizonte erguiam-se picos de mon-

tanhas, um após outro, recortando no ar a silhueta escar-pada. Já o vôo seguia a curva de um vale, cuja base esta-va toda semeada de rochedos e vestígios de cursos de á-gua ressequidos; pareciam cascas de nozes espalhadas pe-lo chão. O avião se debatia e agitava entre golfadas de ar,tão violentamente como um bote de remo nas ondas en-crespadas. Os quatro passageiros mal se podiam mantersentados.

— Parece que ele vai aterrar! — gritou o americano

 

com voz rouca.— Mas não pode! — retorquiu Mallinson. — Só se

for louco tentará semelhante coisa! Vai despedaçar-se, eentão.. .

Mas o piloto aterrou. Abria-se um pequeno espaço li-vre à beira de um barranco e o aparelho, com muita perí-cia, depois de alguns baques e solavancos, pousou sereno.

O que veio depois, contudo, foi mais espantoso e me-nos tranqüilizador.

Apareceram nativos barbudos, de turbante à cabeça,que acorriam de todos os lados cercando o avião e impe-dindo que alguém saísse dele, a não ser o piloto. Este sal-tou em terra, mantendo com eles animada palestra, durantea qual se verificou que não somente não era Fenner como

até não era inglês, e quiçá nem europeu. Enquanto falavamiam carregando latas de petróleo de um depósito próximo edespejando-as nos tanques, de capacidade excepcional. Os

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gritos dos quatro passageiros aprisionados eram recebidoscom arreganhos de dentes e desdenhoso silêncio. E à maisleve tentativa de desembarque correspondia logo um movi-mento ameaçador de vinte rifles.

Conway, que conhecia um pouco o idioma afegane,arengou com os homens conforme pôde, naquela língua,

mas sem resultado. Quanto ao piloto, a única resposta aqualquer pergunta, em qualquer língua, era um significa-tivo aceno com o revólver.

O sol do meio-dia, chamejando sobre o teto da cabina,aquecia o ar inteiro a tal ponto que os ocupantes dela esta-vam quase a desmaiar, com o calor e o esforço dispendidoem protestos. Viam-se absolutamente impotentes; era con-dição da evacuação que viajariam sem armas.

Quando afinal os tanques foram fechados, passou-seuma lata de petróleo cheia de água morna por uma das ja-nelas da cabina. Ninguém respondeu a pergunta alguma,ainda que os homens não parecessem pessoalmente hostis.Depois de outra conferência voltou o piloto para o seu pos-to; desajeitadamente, um dos afeganes pôs a hélice emmovimento, e recomeçou o vôo. A partida, naquele espaçoconfinado e com a carga suplementar de combustível, foiainda mais magistral do que a aterragem. O avião ergueu-se por entre o nevoeiro, depois voltou-se para o oriente,como a assentar um rumo.

Ia em meio a tarde.

Que caso extraordinário! Era para desorientar! Já re-

temperados pelo ar mais fresco, mal podiam crer os passa-geiros que tudo aquilo de fato acontecera. Era um ultrajesem precedente e sem igual, mesmo nos anais turbulentos

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da fronteira. E, se não fossem eles mesmos as vítimas, cer-to o reputariam incrível. Era a coisa mais natural do mun-do que a esse primeiro momento de incredulidade se se-guisse uma explosão de indignação e, dissipada esta, umaansiosa curiosidade.

Apresentou Mallinson uma teoria que foi aceita, à fal-

ta de outra melhor: tinham-nos raptado para serem postos aresgate. Se o processo não era novo, a técnica não careciade originalidade. Já era consoladora a idéia de que não to-mavam parte num fato inteiramente virgem na históriamundial; afinal, já tinha havido muito rapto no mundo eboa parte deles acabara bem. Os homens os reteriam emalgum covil das montanhas até que o governo pagasse, eentão lhes dariam a liberdade. Seriam tratados com toda aconsideração, e, como o dinheiro do resgate não lhes sairia

 

do próprio bolso, aquilo só seria desagradável enquanto es-tivessem prisioneiros.

Mais tarde, certamente, a Air Force enviaria um aviãode bombardeio, e ficava-se com uma boa história para con-tar durante o resto da vida. Foi Mallinson que, um tantinhonervoso, enunciou esta conclusão.

O americano, porém, entendeu de fazer espíritobarato:

— Pois, meus senhores, parece-me que é uma bela i-déia, seja lá de quem for, mas não posso dizer que a suaAir Force se cobriu hoje de glória. Vocês, ingleses, fazemchacota dos assaltos de Chicago e outras coisas, mas nãome lembra nenhum caso de um bandido ter fugido assimsem saber o que fez este sujeito do verdadeiro piloto. A-

posto que o derrubou com uma paulada na cabeça.E acabou num bocejo.Era Barnard um homem alto e corpulento: no rosto

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duro, os vincos pessimistas não apagavam por completo aexpressão de bom humor. Pouco se sabia dele em Baskul;viera da Pérsia, onde, ao parecer, se entregava ao comérciode petróleo.

Conway, por seu lado, ocupava-se numa tarefa práti-ca: reunia todos os pedacinhos de papel que seus compa-

nheiros traziam e neles escrevia mensagens em várias lín-guas nativas para, de espaço a espaço, deixar cair uma de-las. Em região de tão escassa população era magra a espe-rança, mas valia a pena tentá-la.

O quarto passageiro era uma mulher, Miss Brinklow.Toda tesa no assento, com os lábios apertados, poucos co-mentários emitia — e nenhuma queixa. Era de baixa esta-tura e aparência coriácea. Dir-se-ia, ao observá-la, que as-sistia constrangida a uma reunião onde sucediam coisas

 

contrárias aos seus princípios.Conway falava menos que os outros dois, pois trans-

mitir mensagens em vários dialetos é um exercício mentalque exige concentração. Respondia, ainda assim, às per-guntas que lhe dirigiam e concordara, a título de ensaio,com a teoria de rapto apresentada por Mallinson. Aquies-cera também, até certo ponto, nas observações de Barnardsobre a Air Force.

— . . . ainda que se compreenda facilmente como sedeu o fato. Na inquietação e tumulto do momento eramuito fácil tomar um homem, com o uniforme de avia-dor, por outro aviador. Ninguém vai lembrar-se de pôrem dúvida a boa fé de uma pessoa que se apresenta com otraje apropriado e parece conhecer a sua obrigação. E o

sujeito devia conhecê-la — sinais e tudo mais. É eviden-te, além disso, que ele sabe voar. . . Todavia, não negoque seja uma dessas coisas que sempre metem alguém em

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complicações — posto que, a meu ver, ninguém teve cul-pa neste caso.

— Muito bem, cavalheiro — replicou Barnard; —admiro a maneira como procura ver ambos os lados daquestão. É essa a atitude correta, não há dúvida, mesmoquando a gente está sendo seqüestrado.

Lá consigo pensava Conway que os americanos ti-nham o dom de dizer as coisas com ar protetor, sem ofen-der. Sorriu, tolerante, mas deixou cair a conversação. Sen-tia-se tão fatigado que perigo algum poderia abalá-lo.

Já no fim da tarde, quando Barnard e Mallinson, quediscutiam, apelaram para a sua opinião sobre um ponto,verificou-se que adormecera. E Mallinson comentou:

— Prostrado. E não me admira, depois de tudo o quefez nestas últimas semanas.

— É seu amigo? — indagou Barnard.— Trabalhava com ele no consulado. E por isso sei

que há duas noites que não se deita. O certo é que tivemosmuita sorte em tê-lo conosco neste aperto! Além de co-nhecer línguas, tem uma espécie de jeito especial para li-dar com as pessoas. Se há algo que possa tirar-nos destaentaladela, ele o fará. E é muito calmo, além de tudo.

— Pois bem, deixemo-lo dormir, então.E Miss Brinklow fez nesse momento uma de suas ra-

ras observações:— Ele parece ser um homem muito valente.

Quanto a Conway, não tinha tanta certeza de ser de

fato um homem muito valente. Fechara os olhos de purafadiga física, mas não dormia. Ouvia e sentia todos os mo-vimentos do avião, e ouvira também, com uma sensação

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indefinida, o elogio de Mallinson. E foi então que teve su-as dúvidas, reconhecendo em certa contração do estômagoa reação física a um exame mental não muito tranqüiliza-dor. Não era — e sabia-o por experiência própria — da-quelas pessoas que amam o perigo pela sensação do peri-go. Havia neste certo aspecto que apreciava, na verdade,

uma excitação, uma espécie de efeito catártico sobre asemoções ociosas, mas estava muito longe de sentir prazerem arriscar a vida. Doze anos antes começara a detestaros perigos da guerra de trincheira na França, e algumasvezes evitara a morte eximindo-se de tentar valentias im-possíveis. Até sua condecoração devia-a menos à cora-gem física do que a uma técnica de resistência não muitofácil de conseguir. E desde a guerra, onde quer que sur-gisse outra vez o perigo, encarava-o com crescente aver-

 

são, a não ser que prometesse uma quota extraordináriade emoção.

Continuava de olhos cerrados. Sentia-se tocado, e umtanto consternado também, pelo que ouvira de Mallinson.Era destino dele ver sempre sua equanimidade confundidacom bravura — quando era, de fato, uma coisa muito me-nos apaixonada e menos viril.

Achavam-se todos numa situação terrivelmente ad-versa, segundo lhe parecia, e longe de se sentir cheio deardor, ao encará-la, desgostava-o profundamente a idéiadas dificuldades que poderiam surgir. Veja-se Miss Brink-low, por exemplo. Previa que, em determinadas circuns-tâncias, suas ações teriam de ser subordinadas ao critériode que ela sozinha tinha mais direito a consideração do

que eles todos juntos, por ser mulher. E tremia já, à pers-pectiva de uma situação em que seria inevitável semelhan-te falta de eqüidade.

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Entretanto, quando deu sinal de despertar, foi com elaque primeiro falou. Via que não era jovem nem bonita —virtudes negativas, mas utilíssimas em transes como os queteriam talvez de enfrentar dentro em pouco. Sentia penadela, porque desconfiava que nem o americano nem Mal-linson gostavam de missionários, especialmente do sexo

feminino. Quanto a ele próprio, não tinha preconceitosnesse sentido, mas receava que para ela representasse oseu espírito aberto um fenômeno pouco familiar e quiçáainda um pouco desconcertante.

Aproximando o rosto dela para lhe falar, disse:— Parece que estamos numa situação esquisita, mas

folgo de ver que a senhora encara o caso com serenidade.Realmente, creio que não nos acontecerá nada de terrível.

— Estou certa de que não, se o senhor puder evitá-lo.Não lhe pareceu muito consoladora a resposta.— A senhora me avisará se eu puder fazer alguma

coisa para seu conforto.Barnard apanhou a palavra e repetiu em voz rouca,

como um eco:— Conforto? Mas não há dúvida de que temos con-

forto. . . Estamos gozando a viagem. Lástima é que não te-nhamos um baralho. .. poderíamos até jogar bridge.

Ainda que não gostasse do jogo, Conway apreciou oespírito da observação.

— Não creio que Miss Brinklow jogue — disse, sor-rindo.

A missionária, porém, voltou-se vivamente e replicou:

— Pois jogo, e não vejo mal nenhum nisso. Nada hácontra as cartas na Bíblia.

Riram todos, parecendo gratos à dama por lhes pro-

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porcionar uma escusa para tal. E lá consigo pensava Con-way:

"Seja como for, ela não é muito nervosa".

Toda a tarde voara o avião a grande altura, por entre o

esgarçado nevoeiro da atmosfera superior — muito altopara que se pudesse ter uma visão clara do que ficava em-baixo. De vez em quando, com longos intervalos, rasgava-se por um momento o véu, deixando ver a silhueta dentea-da de um pico ou a claridade de um rio desconhecido. Pelosol era possível determinar mais ou menos a direção; se-guiam ainda para leste, com algumas guinadas para o nor-te, de tempos a tempos; mas, quanto à região em que seachavam, era coisa que dependia da velocidade do vôo, eesta não a podia Conway avaliar com segurança. Pareciaprovável, entretanto, que já tivessem gasto boa porção depetróleo — o que, aliás, também dependia de certos fato-res. Conway não possuía conhecimentos técnicos de avia-ção, mas estava certo de que o piloto, quem quer que fos-se, era de uma perícia incontestável. Provara-o aquela des-cida no vale eriçado de penhascos, além de outros inciden-tes posteriores. E Conway não podia sopitar um sentimen-to natural nele, sempre que se via em presença de umacompetência soberba e indiscutível. Estava tão habituado areceber pedidos de auxílio que só o fato de saber que ia alialguém que não o pedia, nem necessitava dele, era leve-mente tranqüilizador, mesmo em meio às incertezas do fu-turo.

Não esperava, contudo, que seus companheiros com-partilhassem tão sutis emoções. Reconhecia que podiamter muito mais razões pessoais do que ele para estarem an-

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siosos. Mallinson, por exemplo, tinha noiva na Inglaterra;Barnard talvez fosse casado; Miss Brinklow tinha seu tra-balho, vocação, ou como quer que ela o considerasse. EraMallinson, aliás, o mais desassossegado de todos; à pro-porção que iam passando as horas mostrava-se cada vezmais agitado — pronto, também, a lançar em rosto a Con-

way aquela mesma frieza que louvara às escondidas dele.E chegou um momento em que se levantou uma tempesta-

 

de de questões, dominando o ronco do motor.— Escutem! — gritava Mallinson, furioso. — Iremos

nós ficar aqui a olhar as moscas, enquanto esse maluco fazo que bem entende? Que é que nos impede de despedaçaraquele vidro e tirá-lo dali?

— Nada — replicou Conway — a não ser que ele es-teja armado e nós não, e que em todo caso nenhum de nós

 

saberia levar o aparelho para terra.— Isso não há de ser muito difícil, com certeza. Não

duvido que você possa fazê-lo.

— Oh! Mas meu caro Mallinson, por que é que vocêhá de esperar sempre de mim semelhantes milagres?

 

— Bem, o certo é que este negócio me está atacando

 

infernalmente os nervos! Não poderemos obrigá-lo a des-cer?

— E de que maneira acha você que poderemos fazê-lo?

Cresceu de ponto a agitação de Mallinson, que re-

 

trucou:— Escute, ele está ali, não é? Mais ou menos a dois

metros de nós, e somos três contra um! Vamos ficar eter-namente a olhar para aquelas costas malditas? Ao menospoderemos obrigá-lo a dar explicações!

— Muito bem, vamos ver isso.E Conway deu alguns passos para a frente, rumo à di-

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visão entre a cabina e o assento do piloto, situado nafrente e um pouco acima. Havia uma lâmina quadrada devidro, de cerca de quinze centímetros, que se podia correrpara um lado, e pela qual o piloto, voltando a cabeça ecurvando-se levemente, podia comunicar-se com os pas-sageiros. Conway bateu nela com os nós dos dedos. A

resposta veio, como ele esperava, de modo quase cômico.O quadrado de vidro deslizou para um lado e o cano deum revólver surgiu na abertura. Nem uma palavra: só is-so. Conway retirou-se sem discutir e a janelinha tornou afechar-se.

Mallinson, que observara o incidente, ficou apenasparcialmente satisfeito e comentou:

— Não creio que ele ouse atirar. É só fanfarronada.— Isso mesmo — concordou Conway; — mas deixo

a você o cuidado de averiguá-lo.— Pois me parece que devíamos lutar antes de nos

deixarmos derrotar assim.

Conway olhou-o com simpatia. Não ignorava a con-venção que, com todo o seu cortejo de soldados de túnica

 

vermelha e livros de leitura escolar, declara que o inglês

 

não tem medo de nada, nunca se entrega, jamais é vencido.E disse:

— Provocar um combate sem probabilidade de ven-cer é mau jogo, e eu não quero ser essa espécie de herói.

— Muito bem, cavalheiro! — acudiu Barnardcalorosamente. — Quando alguém nos segura pelo cango-te, é melhor a gente entregar-se de boa vontade e aceitar ofato. Pela minha parte, vou gozar a vida enquanto ela durae fumar um charuto. Creio que um pouquinho mais de pe-rigo não faz diferença, hem?

— Não, pelo que me toca; mas pode aborrecer MissBrinklow.

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Barnard desfez-se em desculpas:— Perdão, madama. A senhora não se incomodará

muito se eu acender um charuto?— Não, não — respondeu ela amavelmente; — eu

não fumo, mas gosto do cheiro de charuto.E Conway refletiu que, entre todas as mulheres de

quem se poderia esperar semelhante declaração, era aquelaa mais típica.Acalmara-se, entretanto, um pouco a excitação de

Mallinson, e, querendo demonstrar-lhe simpatia, Conwayofereceu-lhe um cigarro, posto que ele próprio não acen-desse nenhum. E disse amavelmente:

— Compreendo o seu estado de ânimo, Mallinson. Asituação não é rósea, e o pior, em certo sentido, é que não

 

podemos fazer grande coisa para sair dela.

 

E lá consigo acrescentava:"E o melhor, também, em outros sentidos".Porque ainda sentia uma fadiga extrema. Havia tam-

bém na sua natureza um traço a que talvez algumas pes-soas chamassem preguiça, dado que não fosse o termo pró-

 

prio. Ninguém era capaz de trabalhar mais rijo, quando ne-

 

cessário, e poucos sabiam arcar com responsabilidadesmelhor do que ele. Isto não tira, contudo, que não morressede amores pela atividade, e também que não sentisse muitoprazer na responsabilidade. Achavam-se ambas as coisasincluídas na sua obrigação, que ele executava o melhor

 

que podia; mas estava sempre pronto a ceder o passo aquem a pudesse executar tão bem quanto ele, ou melhor. Eisto contribuirá, sem dúvida nenhuma, para atenuar consi-deravelmente o brilho do seu sucesso no serviço consular.Não era bastante ambicioso para abrir caminho à custa deoutrem, nem para fazer parada de abstenção quando não

 

havia realmente nada que fazer.

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Seus despachos eram amiúde tão lacônicos que chega-vam a ser deficientes; e a serenidade que mostrava em e-mergências difíceis, conquanto admirada por todos, foimais de uma vez atribuída à frieza natural; as autoridadesgostam dos homens que se dominam, ainda que com al-gum esforço, e cuja indiferença aparente não passa de dis-

farce, encobrindo um mundo de emoções disciplinadas.Quanto a Conway, muita gente suspeitava que sua tranqüi-

 

lidade não era só aparente, e que não dava importância acoisa alguma.

E contudo, era isto também, como a acusação de pre-guiça, interpretação errônea. É que a muitos observadorespassava despercebida uma coisa tão simples que frustravaa percepção: o amor ao sossego, à contemplação e ao iso-

 

lamento.Neste momento, visto que se sentia tão inclinado a is-

so e não havia outra coisa a fazer senão isso mesmo, recli-nou-se no assento e resolveu adormecer definitivamente.

Ao acordar notou que os outros, a despeito de suas preo-cupações, tinham igualmente sucumbido. Miss Brinklow,

 

direita como uma seta, de olhos fechados, parecia um ídolodesbotado e fora de moda. Mallinson, inclinado para dian-te, apoiava o queixo na palma da mão. O americano atéressonava. Todos muito razoáveis, pensou Conway; nãovalia a pena estarem a gastar energia em gritos.

No mesmo instante, porém, tomou consciência de cer-tas sensações físicas — uma leve vertigem, o coração aospulos e a respiração difícil. Lembrou-se de ter sentido umavez sintomas semelhantes, na Suíça.

Voltou-se para a janela e olhou para fora. O céu esta-va muito claro, e à luz da tarde agonizante a visão que sedescortinou aos seus olhos arrebatou, por um instante, oresto de alento que ainda tinha nos pulmões. Porque lá

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longe, no limite do firmamento, enfileiravam-se picos ene-voados, festoados de geleiras e flutuando, ao que parecia,

 

sobre vastas planícies de nuvens. Abrangiam todo o arcode círculo e para o ocidente fundiam-se num horizonte decolorido intenso, quase espalhafatoso, como um pano defundo impressionista pintado por um gênio meio louco.

E enquanto isso o avião, naquele palco estupendo, iazunindo por sobre um abismo, em frente de um paredãobranco que parecia fazer parte do próprio céu — até o ins-tante em que o sol o atingiu. Então, como uma dúzia de

 Jungfraus empilhados, vistos de Mürren, ele chamejou

 

numa incandescência soberba e deslumbrante.Não era Conway facilmente impressionável e por via

de regra não se preocupava com "vistas" — principalmentecom as mais afamadas, para as quais as municipalidadessolícitas proporcionam cadeiras de jardim. Tendo ido umdia à colina do Tigre, perto de Darjeeling, para ver o solnascer sobre o Everest, achara a montanha mais alta domundo uma verdadeira decepção. Mas aquele espetáculobelíssimo que contemplava pela janela era de caráter dife-rente; não parecia exibir-se à admiração. Havia algo de crue monstruoso naqueles rochedos de gelo, longínquos e im-passíveis, e não faltava certa impertinência sublime aquem assim se aproximava deles.

Ia Conway fazendo considerações, recordando mapas,calculando distâncias, estimando tempos e velocidades. Esó então notou que Mallinson também despertara. Tocouno braço do moço.

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CAPÍTULO II

Uma atitude que caracterizava Conway era a de deixarque os outros fossem acordando por si mesmos. Quando ofizeram, deu respostas breves às suas breves exclamaçõesde assombro. Entretanto, quando mais tarde Barnard lhepediu opinião, ele a expôs com certa fluência desinte-ressada, como um professor de universidade que elucidaum problema. Achava provável — disse — que ainda esti-vessem na índia; tinham voado para o Oriente durante al-gumas horas, a tão grande altura que não se podia ver mui-ta coisa, mas parecia que seguiam o vale de algum rio —

um rio que devia correr mais ou menos de leste para oeste.E concluiu:

— Oxalá tivesse outros meios para determiná-lo, a-lém da simples memória; mas parece-me que isto coincidemais ou menos com o vale do Indo Superior. A ser verda-deira a hipótese, devíamos estar a esta hora numa regiãoespetacular do mundo — e bem vê que assim é.

— Reconhece, então, o lugar onde estamos? — inda-

 

gou Barnard.— Oh, não. . . nunca estive sequer perto daqui, mas

não me surpreenderia se aquela montanha fosse o NangaParbat, onde Mummery perdeu a vida. A estrutura e a apa-rência geral parecem concordar com todas as descriçõesque tenho lido.

— É também alpinista?

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— Fui, e entusiasta, na mocidade. Mas apenas fiz asescaladas comuns na Suíça, é claro.

Mallinson interveio, impaciente:— Seria mais acertado procurarmos descobrir para

onde vamos. Quem dera que alguém no-lo pudesse dizer!— Pois bem, parece-me que vamos direto àquela

cordilheira — disse Barnard. — Não acha, Conway? Des-culpe-me se o chamo assim; mas, se vamos tomar partenuma aventura comum, não vale a pena perder tempo comcerimônias, não é mesmo?

Conway achava muito natural que o chamassem pelonome simplesmente, e pareceu-lhe que aquelas desculpasde Barnard eram um tanto fora de propósito.

— Certamente — concordou. E acrescentou: —Creio que aquela cadeia deve ser a de Caracorum. Há lámuitos desfiladeiros, para o caso de o nosso homem quereratravessá-la.

— Nosso homem! — exclamou Mallinson. — Vocêquer dizer nosso maluco! Acho que já é tempo de abando-nar a teoria do rapto. Já passamos a região da fronteira, epor aqui não vivem tribos. A única explicação que me o-corre é que o sujeito é um louco furioso. A não ser umlouco, quem poderia voar em semelhante país?

— O que sei é que ninguém poderia fazê-lo, excetoum aviador exímio — retorquiu Barnard. — Não entendomuito de geografia, mas ouvi dizer que estas montanhassão consideradas as mais altas do mundo, e, se assim é, a-travessá-las será um recorde estupendo.

— Também será a vontade de Deus — encaixou i-

nesperadamente Miss Brinklow.Conway não deu opinião. Vontade de Deus ou loucu-

ra do homem — parecia-lhe que cada um podia escolher o

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que quisesse, caso achasse necessário encontrar uma razãopara todas as coisas. Ou, inversamente (continuou a refle-tir, enquanto contemplava a boa ordem da pequena cabina,contra o fundo recortado pela janela naquele cenário des-comunal), a vontade do homem e a loucura de Deus. Deviaser coisa muito consoladora ter opinião assente.

E foi então, enquanto assim olhava e refletia, que o-correu uma estranha transformação. A luz tomara uma corazulada sobre toda a montanha, cujos socalcos mais baixosescureciam e se faziam violáceos. Sentiu brotar na sua al-ma alguma coisa mais profunda do que a habitual indife-rença. Não era propriamente excitação, menos ainda te-mor, mas uma expectação aguda e intensa. E disse:

— Tem razão, Barnard. Este caso está ficando cadavez mais notável.

— Notável ou não — insistiu Mallinson —, não mesinto inclinado a propor um voto de agradecimento. Nãopedimos que nos trouxessem aqui, e Deus sabe o que have-mos de fazer quando estivermos lá — onde quer que sejaesse lá. E não acho menor a afronta por ser o sujeito umgrande aviador. Isso não impede que seja maluco. Já ouvicontar o caso de um piloto que enlouqueceu no ar. Este su-

 jeito já devia estar louco quando começou. Aí está a minhateoria, Conway.

Conway ficou silencioso. Enfastiava-se de estar conti-nuamente a gritar entre o ruído do motor, e, além disto,não adiantava nada discutir sobre conjeturas. Entretanto,como Mallinson insistisse por uma opinião, disse:

— Loucura muito bem organizada, como vê. Não es-

queça aquela aterragem para tomar gasolina, e lembre-setambém de que este aparelho era o único que podia subir atamanha altura.

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— Não prova que ele não seja louco. Podia ser bas-tante louco para arranjar tudo isso.

— Sim, é possível, certamente.— Pois bem, vamos então assentar um plano de ação.

Que faremos quando o homem aterrar? Se não se chocarnos rochedos matando a nós todos, bem entendido... Que

faremos? Correr para ele e felicitá-lo pelo seu vôo maravi-lhoso, não?— Comigo não! exclamou Barnard. — Corra para ele

quem quiser, menos eu.Não sentia Conway nenhum desejo de prolongar a

discussão, tanto mais que o americano, com os seus grace-  jos ponderados, parecia perfeitamente capaz de sustentá-lo. Conway estava já a pensar que o grupo poderia sermuito menos bem constituído. Somente Mallinson tinhatendência para aborrecer os outros; e isto podia dever-se,em parte, à altitude. O ar rarefeito produz efeitos diversossobre as pessoas; nele, por exemplo, o resultado era umaclareza de idéias combinada com uma apatia física, estadonão de todo desagradável. O certo é que aspirava o ar frioe límpido com verdadeira delícia. A situação, sem dúvida,era aterradora. Mas, por enquanto, não podia indignar-secontra uma coisa que se desenrolava de maneira tão metó-dica e despertava tão cativante interesse.

E ao contemplar aquelas montanhas soberbas sentiutambém uma ardente satisfação, por ver que ainda havia naterra lugares assim — distantes, inacessíveis, ainda virgensdo contato humano.

A muralha de gelo dos montes Caracorum aparecia,

agora, mais nítida ainda contra o céu do norte, que tomaraum matiz ruço e sinistro. Os picos tinham um brilho géli-do, tão profundamente majestosos e remotos que até o seu

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anonimato se revestia de dignidade. Aquelas centenas demetros que lhes faltavam para alcançar os gigantes conhe-cidos podia livrá-los eternamente das escaladas: eram me-nos tentadores aos recordistas. Era Conway a antítese destetipo; inclinava-se a ver certa vulgaridade no ideal ocidentaldos superlativos. Não o tentava o esforço excessivo, e as

proezas sem finalidade aborreciam-no.Enquanto ele continuava a contemplar o cenário caiuo crepúsculo, mergulhando as profundidades num negroraveludado que se estendia para cima, como uma tinta quese esbate. Então toda a cordilheira, muito mais próximaagora, empalideceu e revestiu-se de novo esplendor. Surgi-ra a lua cheia, ferindo os picos um a um, como um celesti-al acendedor de lampiões. Por fim, toda a extensão do ho-rizonte cintilava contra o céu azul-ferrete. O ar esfriou esaltou um vento, sacudindo incomodamente o aparelho.

A estes novos aborrecimentos começaram os passa-geiros a desanimar; não contavam com a prolongação dovôo pela noite adentro, e agora só lhes restava a esperançade esgotar-se o combustível, o que, aliás, não devia tardarmuito a suceder. Começou Mallinson a discutir este assun-to e Conway, meio relutante, pois de fato não sabia, deu oseu parecer. A distância máxima que podiam percorrer de-via orçar por umas mil milhas, a maior parte das quais játeria ficado para trás.

— Pois sim. E aonde nos pode isso levar? — indagouo moço, desalentado.

— Não é fácil de julgar, mas provavelmente a algumponto do Tibete. Se estes são os montes Caracorum, o Ti-

bete fica além deles. Um desses cumes, por sinal, deve sero K2, que é geralmente considerado a segunda montanhado mundo em altura.

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— O primeiro na lista, depois do Everest — comen-tou Barnard. — Apre! Isto é que é panorama!

— E, para um alpinista, muito pior do que o Everest.O Duque de Abruzos renunciou a ele, considerando-o ab-solutamente inacessível.

— Oh! meu Deus! — murmurou Mallinson. de mui-

to mau humor.Barnard, porém, riu:— Vejo que você será o nosso guia oficial durante a

viagem, Conway. Declaro que, se eu tivesse à mão umfrasco de café-conhaque pouco se me daria que isto fosse oTibete ou Tennessee!

— Mas que havemos de fazer? — insistia Mallinson.— Por que estamos aqui? Qual será o propósito de tudo is-to? Não compreendo como podem caçoar de uma coisa as-sim!

— Ora essa! Vale tanto como fazer cenas, jovem. A-

lém disso, se o homem é mesmo louco, como você quer,provavelmente não terá propósito algum.

— Ele tem de ser louco. Não posso achar outra expli-cação. E você, Conway?

Este sacudiu a cabeça.Miss Brinklow voltou-se para trás, como poderia ter

feito durante um intervalo no teatro, e disse com esganiça-da modéstia:

— Como não pediram minha opinião, talvez não de-va dá-la. Mas desejo dizer que sou do parecer de Mr. Mal-linson. Tenho certeza de que o pobre homem não pode es-

tar regulando bem do juízo. Refiro-me ao piloto, é claro.Não haveria desculpa alguma para o seu procedimento, se-não a loucura. 

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E acrescentou, erguendo a voz acima do barulho en-surdecedor:

— E sabem? Esta é a minha primeira viagem de avi-ão! Absolutamente a primeira! Nunca me tinha resolvido avoar, embora uma amiga tivesse feito o possível para mepersuadir a tomar o avião de Londres a Paris.

— E agora, vai a senhora voando da índia para o Ti-bete — disse Barnard. — Assim é o mundo.

— Conheci um missionário que esteve no Tibete —continuou ela. — Dizia que os tibetanos eram muito esqui-sitos. Acreditam que descendemos dos macacos.

— Dão prova de notável penetração!— Oh! não, não quero dizer no sentido moderno. Es-

sa crença lhes vem de séculos atrás. Nada mais que uma desuas superstições. Claro que sou contrária a tudo isso, epara mim Darwin era muito pior que qualquer tibetano. Eume baseio na Bíblia.

— "Fundamentalista", então?Mas parece que Miss Brinklow não compreendeu o

termo, porque gritou:— Eu pertencia à L. M. S., mas discordei deles na

questão do batismo das crianças.Muito depois de atinar com a significação das iniciais

—   London Missionary Society —, Conway ainda conti-nuava a achar cômica a observação de Miss Brinklow.Ponderando sempre os inconvenientes de uma discussãoteológica no recinto da sociedade missionária, começou aparecer-lhe que Miss Brinklow não era destituída de certa

fascinação. Pensou até em lhe oferecer alguma peça do seuvestuário para agasalhá-la durante a noite, mas afinal disse

 

consigo que ela tinha uma constituição provavelmente

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mais rija do que a sua. Portanto, aconchegou-se no assentode vime, cerrou os olhos e adormeceu docemente.

E o vôo prosseguia.

De repente despertaram todos, sacudidos por uma

guinada do aparelho. Conway bateu com a cabeça na jane-la, e por um momento sentiu-se atordoado. Nova guinadaem sentido contrário atirou-o aos encontrões entre as duasfilas de assentos.

O frio aumentara bastante. A primeira coisa que fezConway foi olhar maquinalmente para o seu relógio. Erauma e meia. Devia ter dormido algum tempo. Enchia-lheos ouvidos um som de bater de asas, que a princípio julgouimaginário; logo percebeu, porém, que o motor não fun-

 

cionava e que o avião estava lutando com uma ventaniacontrária. Olhou então pela janela e viu a terra, muito pró-xima, vaga e acinzentada, que fugia ali embaixo.

— Ele vai aterrar! — bradou Mallinson.E Barnard, que também fora arrojado do assento, res-

pondeu com um soturno: "Se tiver sorte!"Miss Brinklow, que parecia a menos perturbada do

grupo, ajustava o chapéu com tanta calma como se esti-vesse à vista o porto de Dover.

Pouco depois o avião tocou em terra. Desta vez, po-rém, foi má a aterragem.

— Oh ! meu Deus! Que horror! Que horror! — gri-tava Mallinson, durante os dez segundos de baques e sola-vancos.

Ouviu-se o som de alguma coisa que se retesava e re-bentava, e um dos pneumáticos explodiu.

— Pronto! — acrescentou ele, aflito. — Quebrou-se

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um dos patins da cauda. Vamos ter de ficar aqui, não hádúvida!

Conway, que falava pouco nos momentos críticos, es-ticou as pernas emperradas e apalpou a cabeça no lugar dapancada. Uma pequena escoriação, nada mais. Cumpria-lhe fazer alguma coisa por aquela gente. Contudo, quando

o avião estacou definitivamente, foi o último passageiroque se levantou.— Prudência! — recomendou, vendo que Mallinson

puxava com violência a porta da cabina, dispondo-se a sal-tar para terra. E, naquele silêncio relativo, a voz do moçorepercutiu de maneira esquisita:

— Não é preciso. . . Isto parece o fim do mundo. . .Não se vê vivalma.

Um momento depois, tiritando no intenso frio, verifi-caram os outros que assim era. Não ouviam som algum, anão ser os uivos da ventania e o eco dos próprios passos.Sentiam-se à mercê de qualquer coisa implacável e sinis-tramente melancólica — e esse espírito parecia saturar i-gualmente terra e ar. A lua parecia ter desaparecido atrásde umas nuvens, e só as estrelas iluminavam a vastidão es-pantosamente vazia, agitada apenas pelo vento. Mesmosem conhecer o lugar, ter-se-ia adivinhado que aquelemundo gelado era o topo de uma montanha, e que as mon-tanhas que ali se erguiam eram montanhas acumuladas so-bre montanhas. No horizonte longínquo alvejava uma ca-deia delas, qual fila de dentes de cão.

Mallinson, entregue a uma atividade febril, dirigia-se já para a cabina de comando.

— Em terra não tenho medo desse sujeito, seja elequem for! — gritava. — Vai entender-se comigo, e é para

 já!...

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Os outros observavam-no, hipnotizados pelo espe-táculo daquela energia, embora também um pouco apreen-

 

sivos. Conway correu empós dele, mas demasiado tardepara impedir a tentativa. Volvidos alguns segundos, toda-via, o moço tornava a descer, segurando-lhe o braço emurmurando em frases destacadas, com voz grave e rouca:

— Escute, Conway, é esquisito. . . Creio que o sujei-to está doente, morto, ou coisa parecida. . . Não pude ar-rancar-lhe uma palavra. Venha ver. . . Em todo caso, tirei-lhe o revólver.

— É melhor que mo dê, então.E Conway, embora estivesse ainda um pouco tonto

com a recente pancada na cabeça, aprestou-se para agir.De todas as situações imagináveis, esta lhe parecia combi-

 

nar as circunstâncias mais horrivelmente adversas. Enca-rapitou-se com dificuldade numa posição de onde podiaver — não muito bem — o interior do recinto fechado.Como sentisse um forte cheiro de petróleo, não se arriscou

a acender um fósforo. Apenas pôde notar que o piloto,com o corpo caído para a frente, tinha a cabeça em cima

 

do quadro de instrumentos. Sacudiu-o, afrouxou-lhe o el-mo, desabotoou-lhe a gola e o colarinho. Um momentodepois voltou-se para dizer aos outros:

— É exato; aconteceu-lhe alguma coisa. Precisamostirá-lo daí.

Mas um observador poderia acrescentar que alguma

 

coisa sucedera a Conway, também. Sua voz era mais forte,mais incisiva. Já não parecia pairar à beira de um abismode dúvida. A ocasião, o lugar, o frio, a fadiga — nada dis-so tinha já tanta importância. Havia alguma coisa que fa-zer, e a parte convencional do seu ser, agora desperta, pre-parava-se para executá-la.

Com o auxílio de Mallinson e Barnard, o piloto foi ti-

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rado do assento e deitado no chão. Não estava morto, masdesfalecido. Conway não possuía conhecimentos especiaisde medicina, mas, como à maioria dos homens que vive-ram em terras estrangeiras, eram-lhe familiares os fenôme-nos da doença.

— Talvez um ataque cardíaco, provocado pela alti-

tude — diagnosticou, curvando-se sobre o desconhecido.— Não podemos fazer grande coisa por ele aqui. . . Não hámeio de abrigá-lo contra este vento infernal. É melhor ir-mos com ele para dentro da cabina. Não sabemos onde es-tamos, e não há esperança de nos podermos orientar ames

 

da alvorada.Tanto a sugestão como o veredicto foram aceitos sem

discussão. Até Mallinson ajudou. Transportaram o homempara a cabina e o estenderam no corredor entre os assentos.Não era o interior mais quente que lá fora, mas ofereciaproteção contra as rajadas de vento. E dentro em pouco era

 

ele, o vento, a principal preocupação de todos — como

que o leitmotiv do drama daquela noite. Não era um ventocomum, um simples vento muito forte ou muito frio. Erauma espécie de fúria desencadeada em torno deles, umamo que vociferava e batia o pé no seu domínio. Inclinavao aparelho com a sua carga, sacudindo-o raivosamente, e,

 

quando Conway olhava pelas janelas, parecia-lhe que omesmo vento arrancava centelhas das estrelas e as faziaredemoinhar.

Jazia inerte o desconhecido, enquanto Conway, nãosem dificuldade naquele espaço exíguo, procurava exami-

 

ná-lo. O exame, porém, não revelou muita coisa.— O coração está fraco — declarou afinal.Foi então que Miss Brinklow, remexendo na sua bol-

sa, disse em tom condescendente, provocando alguma sen-sação nos outros:

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— Quem sabe se isto faria bem ao homem? Nuncapus uma gota na boca, mas sempre trago uma garrafa co-

 

migo, para casos de acidente. E isto é uma espécie de aci-dente, não acham?

— Creio que sim — respondeu Conway com gravi-dade. Retirou a tampa do frasco, cheirou-o e derramou um

pouco de conhaque na boca do homem.— É justamente do que ele precisava. Obrigado.

 

Daí a pouco percebeu-se, à luz de um fósforo, levís-simo estremecimento das pálpebras. De súbito, Mallinsonteve um acesso de nervos.

— Não posso mais! — dizia, rindo como um doido.— Parecemos uma turma de idiotas, riscando fósforos so-bre um cadáver... E ele não é nada bonito, hem? Creio queé chinês, se é que tem alguma nacionalidade!

 

— É possível — tornou Conway, cuja voz era seca esevera. — Mas o homem ainda não é cadáver. Com umpouco de sorte, talvez possamos chamá-lo à vida.

— Sorte? Será sorte para ele, não para nós.— Não se fie muito nisso. E, por enquanto, fique ca-

lado!Embora mal se dominasse, Mallinson ainda tinha mui-

to de menino de escola e obedeceu à ordem lacônica deseu superior. E Conway, por muita pena que tivesse dele,estava mais preocupado com o problema imediato que re-presentava o piloto, pois só este poderia dar alguma expli-

 

cação naquele apuro. Não se sentia inclinado a levar adian-te a discussão no terreno puramente especulativo. Já se ha-viam fartado disso durante a viagem. Sua inquietação iaalém da simples curiosidade intelectual, pois percebia quea situação deixara de ser excitantemente perigosa para setransformar numa prova de resistência, que acabaria emcatástrofe. Mantendo-se em vigília durante aquela noite

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tormentosa, não encarou os fatos menos francamente pornão os enunciar aos outros. Adivinhava que o vôo se esten-dera muito além da cordilheira ocidental dos Himalaias,para as alturas menos conhecidas do Kuen-Lun. A ser as-sim, teriam já alcançado a parte mais elevada e mais inós-pita da superfície da Terra — o planalto do Tibete, cujos

vales mais baixos ficavam a mais de três mil metros de al-titude. Uma vasta região montanhosa, desabitada, inexplo-

 

rada em sua maior parte, varrida pelos ventos. Estavamperdidos ali, num ponto qualquer daquele país, com menosrecursos do que no comum das ilhas desertas. E foi entãoque, como uma resposta que vinha aumentar ainda a suacuriosidade, sobreveio abruptamente uma tremenda trans-formação. A lua, que lhe parecera oculta pelas nuvens, vi-

 

nha topetando com a cumeada de alguma eminência som-

 

bria e, posto que ainda não se mostrasse diretamente, des-cerrava o véu da escuridão. Conway divisou os contornosde um extenso vale, limitado de um lado e outro por outei-

ros arredondados, melancólicos, de pouca altura, e negrosde azeviche contra o céu noturno, de um azul elétrico. Era,porém, a cabeceira do vale que lhe atraía irresistivelmenteos olhares, pois que ali, erguendo-se na abertura, magnifi-cente ao fulgor do luar, surgia uma montanha que lhe pa-receu ser a mais bela do mundo. Era um cone de neve qua-se perfeito, de perfil tão simples como se o tivesse dese-nhado uma criança, e impossível de classificar quanto à al-

 

tura, tamanho ou distância. Era tão radiante, tão sere-namente equilibrado, que Conway perguntava consigo seseria real. Então, enquanto ele o contemplava, um peque-nino tufo branco velou a borda da pirâmide, dando vida àvisão antes que viesse confirmá-lo o rumor longínquo daavalancha.

Ia acordar os outros para que participassem do espetá-

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culo, mas, pensando melhor, achou que o efeito poderianão ser lá muito tranqüilizador. E de fato não o era, doponto de vista do senso comum; aqueles esplendores vir-gens só podiam aumentar a sensação de isolamento e deperigo. Era bem provável que a mais próxima habitaçãohumana ficasse a centenas de milhas dali. E não tinham a-

limento; como armas, apenas possuíam um revólver. O a-vião estava danificado e quase sem combustível — alémde ninguém saber dirigi-lo. Faltavam-lhes roupas apro-priadas àquele frio e àquele vento terrível. Tanto a capa decouro de Mallinson como o seu impermeável eram insufi-cientes, e a própria Miss Brinklow, toda envolvida em lãse abafada em mantas como para uma expedição polar — oque lhe parecera ridículo a princípio —, não podia sentir-se muito a gosto. Além disto, achavam-se todos, salvo ele

 

próprio, abalados pela altitude. Até Barnard sucumbira àmelancolia. Mallinson resmungava consigo; era evidente oque lhe sucederia se aquelas atribulações se prolongassem

por muito tempo. Diante de tão angustiosa perspectiva,não se conteve Conway de lançar um olhar de admiração a

 

Miss Brinklow. Não era — disse ele consigo — uma pes-

 

soa normal; nem se podia considerar normal uma mulherque ensinava os afeganes a cantar hinos. Mas o fato é queela-se mostrava, depois de cada calamidade, normalmenteanormal, e Conway lhe era profundamente grato por isso.

— Espero que a senhora não se esteja sentindo muitomal — disse-lhe, com simpatia, quando os olhares de am-bos se cruzaram.

— Os soldados durante a guerra suportaram coisas

 

piores — replicou ela.Não lhe pareceu muito acertada a comparação. Na

verdade, ele nunca passara nas trincheiras uma noite tãocompletamente desagradável como esta, conquanto isso

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houvesse acontecido, sem dúvida alguma, a outros. Con-centrou a atenção no piloto, que agora respirava espasmo-

 

dicamente e de vez em quando fazia um leve movimento.Com certeza Mallinson não errara supondo o homem chi-nês. Tinha o nariz e os malares típicos dos mongóis, apesarde seu feliz disfarce de tenente-aviador britânico. Mallin-

son chamara-lhe feio, mas Conway, que tinha morado naChina, achava-o um espécime passável, se bem que agora,

 

à luz do fósforo que ele acendera, aquela pele descorada ea boca escancarada não parecessem nada belas.

Ia a noite arrastando-se, como se cada minuto fossealguma coisa pesada e tangível, que necessitasse de umempurrão para ceder lugar ao seguinte. Passado algumtempo desapareceu o luar, e com ele o espectro distante damontanha. E a tríplice inclemência da escuridão, do frio eda ventania foi aumentando até o raiar da manhã. Ao ace-no desta calou-se o vento, deixando o mundo imerso numacompassiva quietação. Emoldurada no pálido triângulo que

tinham à frente, tornou a aparecer a montanha, cinzenta aprincípio, depois prateada e afinal rósea, quando os pri-meiros raios do sol lhe feriram o vértice. À proporção que

 

ia esmaecendo a obscuridade, o próprio vale tomava for-ma, revelando um fundo de rochedos e cascalho que subiaem encosta inclinada. Não era uma cena hospitaleira aque-la, mas assumiu aos olhos de Conway, enquanto a contem-plava, um toque esquisito de beleza — alguma coisa que,

 

sem nenhum fascínio romântico, tinha no entanto umaqualidade rígida, quase intelectual. A pirâmide branca, lálonge, impunha-se ao espírito tão desapaixonadamentecomo um teorema euclidiano; e quando, afinal, o sol sur-giu num céu profundamente azul, ele quase tornou a sentirum certo bem-estar.

Já o ar estava mais tépido quando os outros acorda-

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ram, e Conway lembrou que se levasse o piloto para fora,onde a luz do sol e o ar seco e vivo poderiam ajudá-lo a

 

voltar a si. Assim fizeram, e começaram uma segunda vi-gia, desta vez mais agradável. Por fim o homem abriu osolhos e pôs-se a falar convulsivamente. Seus quatro passa-geiros curvaram-se para ele, prestando atenção àqueles

sons ininteligíveis para todos, exceto para Conway, querespondia de vez em quando. Depois de algum tempo o

 

homem foi ficando mais fraco, falando cada vez com maisdificuldade, e afinal expirou. Foi isso, mais ou menos, àsnove horas.

Voltou-se então Conway para os companheiros:— Sinto comunicar-lhes que ele disse muito pouco

— isto é, pouco relativamente ao que desejaríamos saber.Apenas que estamos no Tibete, o que é evidente. Não deunenhuma explicação coerente do motivo por que nos trou-

xe aqui, mas parecia conhecer o lugar. Falou um chinêsque eu não compreendo muito bem, mas creio que se refe-riu a um mosteiro de lamas, próximo daqui (na costa dovale, parece), onde encontraríamos alimento e abrigo.Shangri-Lá foi o nome que ele disse. Lá, em tibetano, querdizer desfiladeiro. Insistiu muito para que fôssemos aomosteiro.

— O que não me parece ser uma razão para irmos —acudiu Mallinson. — Afinal, ele sem dúvida estava fora desi, não estava?

— A este respeito, sei tanto quanto você. Mas, senão formos a esse lugar, aonde mais havemos de ir?

— Onde você quiser, isso não me importa. O que écerto é que esse Shangri-Lá, se fica naquela direção, deve

 

estar mais algumas milhas afastado da civilização, e eu

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preferiria que fossemos encurtando, não aumentando a dis-tância. Com mil diabos, homem! Você não nos vai levar devolta?

Conway respondeu com paciência:— Creio que você não compreende devidamente a si-

tuação, Mallinson. Achamo-nos numa parte do mundo so-

bre a qual pouco se sabe, a não ser que é difícil e perigosa,mesmo para uma expedição perfeitamente aparelhada.Considerando que provavelmente nos cercam por todos oslados centenas de milhas de território nas mesmas condi-ções, a idéia de voltar a Peshawar não me parece muitopraticável.

— Não acho que eu seja capaz de caminhar tanto as-

 

sim — disse Miss Brinklow com grande seriedade.Barnard concordou:— O que me parece é que teríamos muita sorte se de

fato esse convento ficasse ali na esquina.— Relativa sorte, talvez — tornou Conway. — Afi-

nal, não temos o que comer e a região não é daquelas emque a vida é fácil. Dentro de algumas horas estaremos to-dos esfomeados. E esta noite, se ficarmos aqui, teremos desofrer de novo o vento e o frio. A perspectiva não é agra-dável. Parece-me, pois, que a nossa única salvação seriaencontrarmos outros seres humanos; e onde mais havemosde procurá-los, a não ser onde nos disseram que existem?

— E se for uma ratoeira? — perguntou Mallinson.— Uma ratoeira bem quentinha — respondeu Bar-

nard — com um pedaço de queijo dentro me encheria asmedidas.

Riram todos, menos Mallinson, que parecia agitado enervoso. Finalmente Conway prosseguiu:

— Estamos todos mais ou menos de acordo, então? O

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caminho lógico é pelo vale. Não me parece muito escarpa-do, contudo teremos de andar devagar. Seja como for, nãopodemos ficar aqui. Não nos seria possível sequer enterrareste homem, sem dinamite. Além disto, os monges doconvento talvez nos forneçam carregadores para a volta.Vamos precisar de carregadores. Opino, portanto, que de-

vemos ir imediatamente, porque, se não localizarmos oponto até a tardinha, teremos tempo de voltar para passar anoite no avião.

— E no caso de localizarmos o ponto? — indagouMallinson, ainda intransigente. — Quem nos garante quenão seremos assassinados?

— Ninguém. Mas creio que o risco é menor que o demorrer de frio ou de fome, e talvez seja preferível.

E, como sentisse que esta lógica desalentadora não era

 

muito apropriada à ocasião, acrescentou:— Na verdade, um assassinato é a coisa mais impro-

vável do mundo num mosteiro budista. Mais improvável,mesmo, do que ser morto numa catedral inglesa.

— Como São Tomás Becket — acudiu Miss Brin-klow, concordando com um gesto enfático de cabeça e a-nulando, sem dar por isso, o argumento de Conway.

Mallinson encolheu os ombros e replicou, melancó-lico e irritado:

— Pois bem, então vamos para Shangri-Lá. Seja oque for, e esteja onde estiver, tentemos a aventura. Masesperemos que não fique a meia encosta daquela monta-nha.

A esta observação fixaram todos o olhar no cone res-

plandecente que assomava na abertura do vale. Em plenaluz do dia, era uma visão magnífica e puríssima. Daí a ummomento exprimiam esses olhares o maior pasmo: tinham

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avistado ao longe, descendo a encosta na direção deles, al-gumas figuras de homens.

— A Providência! — murmurou Miss Brinklow.

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CAPÍTULO III

Com uma parte do seu ser, Conway era sempre umespectador, por mais ativas que estivessem as outras facul-dades. Agora mesmo, enquanto esperava que os desconhe-cidos se aproximassem, não se deixou induzir a tomar umadecisão sobre o que cumpria fazer ou deixar de fazer nestaou naquela eventualidade. E isto não era bravura, nem frie-za, nem uma alta confiança na própria capacidade de to-

 

mar resoluções sob o estímulo do momento. Era, se consi-

 

derarmos a atitude sob o seu pior aspecto, uma forma deindolência — uma relutância a abrir mão do seu interessede mero espectador no que ia acontecer.

Quando as figuras chegaram mais perto, eles puderamdistinguir um grupo de doze ou mais homens, acompa-

 

nhando uma liteira de capota. Dentro desta, um poucomais tarde, divisaram uma pessoa vestida de azul. Conwaynão podia imaginar aonde iriam, mas parecia certamenteprovidencial, como dissera Miss Brinklow, que essa comi-tiva viesse passar justamente por ali e naquela ocasião. As-sim que chegaram ao alcance da voz, adiantou-se a passos

 

vagarosos, pois sabia que os orientais apreciam muito o ri-tual das saudações e gostam que elas sejam demoradas.Fazendo alto a alguns metros de distância, curvou-se coma devida cortesia. Com grande surpresa, viu o homem ves-tido de azul descer da liteira, adiantar-se com uma resolu-ção cheia de dignidade e estender-lhe a mão. Enquanto a

 

apertava, notou que era um chinês velho, ou pelo menos de

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idade madura, já grisalho, de rosto escanhoado, e palida-mente decorativo na sua túnica de seda bordada. Por suavez, o outro também parecia estar submetendo-o a um rá-pido exame. Então, num inglês preciso e quiçá demasiadogramatical, disse:

— Pertenço ao convento lamaísta de Shangri-Lá.

Curvou-se de novo Conway, e depois de uma pausaconveniente pôs-se a explicar, em breves palavras, as cir-cunstâncias que o tinham trazido, com seus três compa-nheiros, àquela parte pouco freqüentada do mundo. Ao fimda explicação o chinês fez um gesto de compreensão e dis-se, olhando pensativamente para o aeroplano avariado:

— É na verdade notável!E acrescentou:— Chamo-me Tchang. Quer ter a bondade de me a-

presentar aos seus amigos?Conway tratou de sorrir com polidez. Estava assom-

brado com esse fenômeno: um chinês que falava perfeita-mente o inglês e observava as formalidades sociais deBond Street nas montanhas bravias do Tibete. Voltou-separa os outros, que se haviam aproximado e observavam oencontro com maior ou menor espanto.

— Miss Brinklow. . . Mr. Barnard, que é americano...Mr. Mallinson... e eu chamo-me Conway. Todos sentimosprazer em vê-lo, embora este encontro seja quase tão ex-traordinário quanto o fato de estarmos aqui. Na verdade,íamos justamente partir a caminho do seu mosteiro, de sor-te que o encontro é duplamente afortunado. Se o senhorpuder fornecer-nos indicações para a viagem. . .

— Não é preciso. Dar-me-ei por feliz em lhes servirde guia.

— Mas não posso permitir que se dê a tamanho incô-

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modo. É extremamente gentil, mas se não fica muito lon-ge. . . 

— Não fica longe, mas também o caminho não é fá-cil. Considero uma honra acompanhá-lo, e aos seus ami-gos. 

— Mas realmente nós.

— Devo insistir. Achou Conway que a discussão, naquele lugar e emtais circunstâncias, corria algum perigo de se tornar ridícu-la. E respondeu:

— Pois seja. Todos nós lhe ficamos agradecidíssi-mos.

Mallinson, que suportara com ar sombrio essas deli-cadezas, interveio então, no tom agudo e acerbo das caser-nas:

— Não ficaremos muito tempo — anunciou laconi-camente. — Pagaremos tudo que gastarmos, e desejamosalugar alguns dos seus homens para nos auxiliarem na via-gem de volta. Queremos tornar o mais depressa possível àcivilização.

— E tem tanta certeza de que está longe dela?A pergunta, formulada com a maior suavidade, exa-

cerbou ainda mais o moço:— Tenho toda a certeza de que estou muito longe de

onde desejo estar, e não só eu, como todos nós. Ficar-lhe-emos gratos por nos albergar temporariamente, mas a nos-sa gratidão será ainda maior se o senhor nos fornecer mei-os para voltar. Quanto tempo julga que tomará a viagempara a Índia?

— Na verdade, não sei dizer.— Não importa; espero que não encontremos dificul-

dade nisso. Tenho alguma experiência de alugar carrega-

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dores nativos, e esperamos que o senhor faça valer a suainfluência para que sejamos bem servidos.

Parecendo-lhe tudo aquilo truculência desnecessária,ia Conway intervir quando veio a réplica, assentada sobreimensa dignidade:

— Só lhe posso assegurar, Mr. Mallinson, que será

tratado com toda a consideração, e em última análise nãoterá de que se arrepender.— Em última análise? — exclamou Mallinson, arre-

metendo com a expressão. Não foi difícil, entretanto, evi-tar uma cena, pois que os tibetanos ofereciam já vinho efrutas, que tinham trazido. Eram homens sólidos, vestidosde couro de ovelha, com gorros de pele e botas de couro deiaque. O vinho tinha um agradável aroma, semelhando o

 

de um bom vinho branco do Reno; entre as frutas haviamangas perfeitamente amadurecidas, quase pungentes detão saborosas, após tantas horas de jejum. Mallinson co-meu e bebeu satisfeito, mas sem curiosidade. Conway, po-

rém, livre de inquietações imediatas e não desejando bus-car as mais distantes, perguntava consigo como seria pos-

 

sível cultivar mangas naquela altitude. Interessava-o tam-bém a montanha que ficava além do vale; era, a todos osrespeitos, um pico sensacional, e admirava-se de que ne-nhum viajante fizesse menção dele num desses livros quetoda expedição ao Tibete faz invariavelmente surgir.Enquanto o contemplava ia escalando-o mentalmente, es-colhendo caminho por gargantas e ravinas, quando umaexclamação de Mallinson o fez voltar à terra. Olhou emredor e viu que o chinês o encarava atentamente.

— Estava contemplando a montanha, Mr. Conway?— Sim. É um belo espetáculo. Tem nome, com cer-

teza.— Chama-se Karakal.

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— Não creio que o tenha ouvido. E é muito alta?— Mais de vinte e oito mil pés.1 — Sim? Não sabia que houvesse altura semelhante,

fora do Himalaia. Teria sido medida com exatidão? Quemfez os cálculos?

— Quem havia de ser, meu caro senhor? Há alguma

incompatibilidade entre a vida monástica e a trigonome-tria?Conway saboreou a frase e replicou:— Oh! não, absolutamente nenhuma!Riu, polidamente. O gracejo parecia-lhe fraco, mas

talvez valesse a pena guardá-lo.

 

Pouco depois iniciava a viagem para Shangri-Lá.

 

Durou a ascensão toda a manhã; foi lenta e seguia de-clives suaves, mas a tal altura o esforço físico era consi-derável, e a ninguém sobrava energia para falar. O chinêsviajava comodamente na sua liteira; isto poderia parecerpouco cavalheiresco, se não fosse absurdo imaginar Miss

 

Brinklow em tão regia postura. Conway, o menos incomo-

 

dado pela rarefação do ar, esforçava-se por apanhar as fra-ses que trocavam de vez em quando os carregadores. En-tendia alguma coisa da língua tibetana, o bastante paracompreender que os homens estavam contentes por voltarao mosteiro. Não poderia, mesmo que o quisesse, conti-nuar a conversar com o chefe, que, de olhos fechados ecom o rosto meio oculto atrás das cortinas, parecia mergu-lhado num sono exigente e muito oportuno.

Entretanto, ia o sol aquecendo. A fome e a sede ti-nham sido apaziguadas, se não satisfeitas; e o ar, límpido

como se viesse de outro planeta, tornava-se mais precioso1 8 400 metros. O Everest mede 29 141 pés, ou 8 889 metros.(N. do T.)

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a cada inalação. Era necessário respirar conscienciosamen-te, refletidamente; e isto, que a princípio parecia atrapa-lhador, ao fim de certo tempo produzia uma tranqüilidadede espírito quase extática. Todo o corpo se movia no ritmoúnico da respiração, do andar e do pensamento. Os pul-mões, deixando de funcionar automáticos e ignorados, dis-

ciplinavam-se de maneira a harmonizar com o espírito e aspernas. Conway, em quem certa tendência mística se casa-va de maneira curiosa com o ceticismo, estava agradavel-mente intrigado com a sensação. Em uma ou duas ocasiõesdisse palavras joviais a Mallinson, mas o jovem achava-seoprimido pela ascensão. Também Barnard resfolegava as-maticamente, enquanto que Miss Brinklow sustentava umaterrível luta pulmonar, que por alguma razão tratava deocultar.

— Já estamos perto do cimo — disse Conway paraanimá-la.

— Uma vez corri para apanhar o trem — respondeuela — e senti a mesma coisa.

E ele pôs-se a refletir que também há gente que consi-dera a sidra a mesma coisa que o champanha. Questão depaladar.

Surpreendia-se de verificar que, além do assombro,tinha poucas apreensões, e nenhuma por si. Há momentosna vida em que a gente abre a alma inteira, exatamentecomo desataria os cordões da bolsa ao perceber que umdivertimento sai mais caro do que se espera, mas tambémpossui algo de inédito. E foi assim que Conway, nessa fa-digosa manhã à vista do Karakal, respondeu com alívio e

presteza, mas sem excitação, à oferta de uma experiêncianova. Após dez anos de residência em vários países da Á-sia, tornara-se um tanto exigente na apreciação de sítios e

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acontecimentos; e esta aventura, tinha de admiti-lo, pro-metia ser fora do comum.

Após cerca de duas milhas de caminho costeando ovale, a subida tornou-se mais abrupta; mas já então o tem-po se enuviara e uma bruma prateada obscurecia a pai-sagem. Dos campos de neve, lá em cima, vinham sons de

trovões e avalanchas; o ar esfriou e, com a violenta muta-bilidade das regiões montanhosas, o frio tornou-se inten-síssimo. Rajadas de vento, acompanhadas de chuva e neve,encharcaram os viajantes, aumentando-lhes enormementeo desconforto. O próprio Conway sentiu, em dado momen-to, que seria impossível ir muito mais longe. Contudo,pouco depois lhe pareceu que deviam ter atingido o cumeda serrania, pois os liteiros fizeram alto para reajustar acarga. O estado de Barnard e Mallinson, que padeciam

 

grandemente, requeria maior repouso; mas os tibetanos,evidentemente ansiosos por prosseguir, indicaram por si-nais que o resto da viagem seria menos fatigante.

Depois disto, foi decepcionador vê-los desenrolar cor-das. E Barnard conseguiu exclamar, numa desesperadatentativa para fazer espírito:

— O quê! Já nos vão enforcar?Mas os guias demonstraram logo que a sua intenção,

muito menos sinistra, era apenas ligar o grupo todo, comose costuma fazer nas escaladas. E quando viram que o ma-nejo das cordas era familiar a Conway, mostraram-se mui-to mais respeitosos, permitindo-lhe que ligasse os compa-nheiros como bem entendesse.

Colocou-se ele logo atrás de Mallinson, com tibeta-

nos à frente e atrás; vinham depois Barnard e Miss Brin-klow, e mais alguns tibetanos para fechar a retaguarda.Não tardara a notar que os homens, durante o sono de seu

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chefe, estavam inclinados a entregar-lhe a direção. Sentiua conhecida excitação do comando; se houvesse qualquerdificuldade daria o que tinha para dar: confiança e autori-dade. Fora, em tempo, um alpinista de primeira ordem, eachava-se ainda, sem dúvida alguma, em muito boas con-dições.

— A senhora deve olhar por Barnard — disse a MissBrinklow, meio jocoso, meio sério.Ao que ela respondeu, com a modéstia de uma águia:— Farei o que puder; mas o senhor sabe — nunca ti-

nha sido amarrada.A etapa seguinte, ainda que excitante por vezes, foi

menos árdua do que esperava, e livre do suplício que a su-bida representara para os pulmões. O caminho era por umcorte oblíquo na parede de rocha, cujo cimo o nevoeiro

 

ocultava. Talvez devessem agradecer a esse nevoeiro o es-conder igualmente o abismo do lado oposto, mas Conway,que tinha boa vista para altitudes, bem gostaria de ver on-de estava. Em certos sítios a trilha media uns escassos doispés de largura, e o modo por que os carregadores con-duziam a liteira nesses lugares despertou nele quase tantaadmiração quanto os nervos do passageiro, que dormindoconseguia fazer tal jornada. Eram os tibetanos bastantedestros, mas pareciam mais satisfeitos quando o caminhose alargava e oferecia leve declive. Começavam então acantar toadas vivas e bárbaras, que Conway imaginava or-questradas por Massenet para algum balé tibetano.

Cessou a chuva e o ar aqueceu um pouco.— O fato é que nunca teríamos encontrado o cami-

nho sozinhos — observou Conway com ar alegre.Mallinson, porém, não achou na observação consolo

algum. Estava, na verdade, terrificado, e corria mais perigo

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de se trair, agora que já passara o pior. Foi com amarguraque retorquiu:

— Perderíamos muito com isso?O caminho descia agora com maior inclinação, e num

sítio encontrou Conway alguns edelvais; era o primeiro si-nal — e bem-vindo! — de altitudes mais hospitaleiras. Ao

ser anunciado, porém, isto trouxe ainda menos consolaçãoao seu jovem amigo.— Justos céus, Conway! Você pensa que anda fla-

nando pelos Alpes? O que eu queria saber era para que in-ferno nos dirigimos. E qual será o nosso plano de ação,quando lá estivermos? Que faremos nós? 

— Se você tivesse a minha experiência — replicouConway serenamente —, saberia que há ocasiões na vidaem que o melhor é não fazer nada. Deixam-se correr ascoisas. Assim foi a guerra. E a gente ainda tem sorte quan-do, como agora, um sabor de novidade vem temperar o quehá de desagradável.

— Você está se tornando filosófico demais paramim. Não era esta a sua atitude durante as comoções emBaskul!

— Certamente que não, porque então havia algumapossibilidade de alterar os acontecimentos pela minha açãopessoal. Agora, porém, ao menos de momento, não vejosemelhante possibilidade. Estamos aqui porque estamosaqui, visto como quer uma razão. Tem-me parecido sem-pre uma razão tranqüilizadora.

— Suponho que você faça uma idéia do trabalho es-pantoso que teremos para voltar. Há uma hora que vamos

resvalando pela encosta de uma montanha perpendicular— bem o notei!

— Também eu.

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— Ah! você também viu isso? — expectorou Mallin-son, agitado. — Bem vejo que me estou tornando abor-

 

recido, mas não está em mim evitá-lo. Desconfio muito detudo isto. . . Estamos fazendo tudo o que esses sujeitosquerem de nós. Eles nos vão meter numa ratoeira!

— Ainda que assim fosse, morreríamos se não

entrássemos nela!— Sei que isso é lógico, mas não adianta nada. Re-

 

ceio muito que não me acomode tão facilmente como vocêà situação. Não posso esquecer que anteontem ainda está-vamos no consulado de Baskul. . . E pensar em tudo o queaconteceu desde então me acabrunha! Desculpe-me, masestou exausto. Compreendo quão afortunado fui em ter es-capado à guerra — creio que ficaria maluco. Parece-me

 

que todo o mundo, ao redor de mim, enlouqueceu. . . Masé preciso que eu mesmo esteja fora de mim para lhe dizerestas coisas. . .

— Não, meu caro rapaz — respondeu Conway, sa-

cudindo a cabeça —, não. Você tem vinte e quatro anos ese acha a uns quatro mil metros de altitude — razões su-ficientes para explicar o que pode estar sentindo no mo-mento. E acho até que se está saindo extraordinariamentebem de uma prova difícil — melhor do que eu o faria nasua idade.

— Mas você não vê como tudo isto é louco? Aquelevôo por cima das montanhas, aquela horrível espera nomeio da ventania, enquanto morria o piloto, e depois o en-contro destes sujeitos. . . Quando recorda tudo isso, nãolhe parece um pesadelo inacreditável?

— Certamente que sim.— Pois então eu desejava saber como consegue man-

ter-se tão frio diante de tudo!— Deseja realmente? Pois vou dizer-lhe, ainda que

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me arrisque a parecer cínico. É porque tenho na memóriamuitas outras coisas que também parecem pesadelos. Nãoé este o único lugar louco no mundo, Mallinson. Afinal,visto que não quer deixar de pensar em Baskul. . . lembra-se do modo como os revolucionários torturavam os prisi-oneiros antes da nossa partida, para arrancar informações?

Uma simples prensa de lavar roupa. . . muito eficaz, nãohá dúvida, mas creio que nunca vi coisa tão cômica e hor-rível ao mesmo tempo. E lembra-se do último telegramaque recebemos, antes que fossem cortadas as comunica-ções? Era uma circular de uma fábrica de tecidos de Man-chester, indagando se havia em Baskul mercado para es-partilhos! Pois isso não lhe parece loucura bastante? A-credite-me, ao virmos para cá o pior que nos pode ter a-contecido é trocarmos uma loucura por outra. E quanto àguerra, se você houvesse estado lá teria feito o mesmo queeu — teria aprendido a esconder o medo sob uma aparên-cia de bravura.

Ainda conversavam quando uma escarpada mas brevesubida lhes tirou o alento, concentrando em poucos passostodo o esforço anterior. Logo se aplainou o solo, e saíram

 

do nevoeiro para uma atmosfera clara e cheia de sol. Emfrente deles, a pouca distância, erguia-se o mosteiro deShangri-Lá.

Para Conway, o primeiro que o avistou, poderia pare-cer uma visão nascida daquele ritmo solitário em que a fal-ta de oxigênio submergira todas as suas faculdades. Era, naverdade, um espetáculo estranho, quase inacreditável. Umgrupo de pavilhões coloridos pendurava-se à encosta damontanha, sem aquela sombria resolução dos castelos do

 

Reno, antes com a delicadeza aventurosa de pétalas de flor

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encravadas num penhasco. Era soberbo e encantador.Uma emoção austera arrebatava o olhar dos tetos azuis

 

leitosos para o bastião de rocha cinzenta lá no alto, formi-dável como o Wetterhorn acima de Grindelwald. Mais a-lém, numa pirâmide deslumbrante, pairavam as encostasnevadas do Karakal. E Conway pensava consigo que bem

podia ser aquela a mais terrífica paisagem montanhosa domundo inteiro; imaginava já a mole imensa de neve e ge-

 

lo contra a qual o rochedo servia de gigantesca barreira.Talvez um dia a montanha inteira desabasse, e metade doesplendor gelado do Karakal iria abater-se no vale. E per-guntava consigo se um risco tão remoto, aliado ao receioque inspirava, poderia proporcionar alguma excitação a-gradável.

 

Quase não menos sedutora era a perspectiva de baixo,pois a muralha rochosa continuava a descer quase perpen-dicularmente, numa enorme fenda que só podia ter resul-tado de algum antigo cataclismo. O fundo do vale, distante

e brumoso, alegrava os olhos com a sua verdura; abrigadodos ventos, mais vigiado que dominado pelo mosteiro, afi-

 

gurou-se a Conway um lugar delicioso. Contudo, se era

 

habitado, sua população devia ficar completamente isoladapelas cordilheiras altíssimas e absolutamente inacessíveldo outro lado. A única subida viável parecia ser para omosteiro. O viajante sentiu ligeira apreensão enquanto ob-servava a cena; talvez não fossem destituídos de razão osreceios de Mallinson. Foi, porém, um sentimento momen-tâneo, logo diluído na sensação mais profunda, meio mís-tica, meio visual, de ter afinal atingido uma meta, um ter-mo qualquer.

Jamais conseguiu recordar exatamente de que maneiraele e os outros chegaram ao convento, nem as formali-

 

dades com que ali foram recebidos, desamarrados e intro-

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duzidos no recinto. Aquele ar tão fino tinha uma textura desonho, casando-se com o azul porcelana do céu. Bebia, acada sorvo de ar, a cada olhar, uma tranqüilidade profundae anestesiante, que o tornava igualmente impenetrável àinquietação de Mallinson, às piadas de Barnard, ao ar mo-desto de Miss Brinklow, a personificar uma dama pre-

parada para as piores conjunturas. Lembrava-se vagamenteda sua surpresa ao encontrar um interior espaçoso, aqueci-

 

do e perfeitamente asseado; mas apenas teve tempo de no-tar essas coisas, porque o chinês deixara a liteira e os iaguiando através de várias antecâmaras. Mostrava-se agoramuito afável:

— Devo pedir desculpas de tê-los abandonado a sipróprios durante o trajeto, mas é que essas viagens não me

 

fazem bem, e preciso ter cuidado comigo. Espero que não

 

estejam muito fatigados.— Fizemos o possível. . . — respondeu Conway,

com um sorriso de través.

— Excelente! E agora, se quiserem acompanhar-me,eu lhes mostrarei os seus aposentos. Com certeza hão dequerer um banho. Nossa instalação é simples, mas espero

 

que nada lhes falte.Neste ponto Barnard, ainda arquejante, soltou uma ri-

sada asmática.— Não posso dizer, por enquanto, que gosto do seu

clima... o ar parece grudar-se um pouco aos pulmões. . .

 

mas a verdade é que os senhores têm uma esplêndida vistadas janelas da frente. Teremos de fazer fila diante do quar-to de banho, ou isto aqui é um hotel americano?

— Creio que o senhor achará tudo a seu contento,Mr. Barnard.

E Miss Brinklow concordou, com afetação:

 

— Assim o creio, realmente.

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— E depois — continuou o chinês — sentir-me-eimuito honrado se me fizerem companhia ao jantar.

Conway respondeu polidamente. Só Mallinson nãodera sinal de vida diante dessas comodidades inesperadas.Como Barnard, sofria com a influência da altitude; masenfim, fazendo algum esforço, achou fôlego para replicar:

— E depois, se isso não o incomoda, faremos nossosplanos para a volta. No que me toca, quanto mais cedo,melhor!

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CAPÍTULO IV

— Como vêem — dizia Tchang —, somos menos

 

bárbaros do que esperavam. ..E, ao cabo de algumas horas, Conway sentiu-se dis-

posto a concordar com ele. Gozava aquela agradável mis-tura de bem-estar físico e agilidade mental — sensaçãoque lhe parecia, entre todas, a mais genuinamente civili-zada. Tudo o que vira até então em Shangri-Lá enchia-lhe

 

a medida dos desejos. Iam as instalações muito além do

 

que esperara. Não era, talvez, de causar muita admiraçãoque um mosteiro tibetano possuísse calefação interna,numa época em que até Lassa era provida de telefones;

mas o que lhe parecia singularíssimo era aquela combina-ção do aparelhamento da higiene ocidental com tudo mais

 

que era tradicionalmente oriental. A banheira em que aca-bava de se regalar, por exemplo, uma banheira de delicadaporcelana verde, era, conforme dizia a marca da fábrica,produto de Akron, estado de Ohio. E contudo o criado na-tivo que lhe servira de camareiro tratara-o à moda chine-sa, limpando-lhe as orelhas e narinas e passando-lhe umpequeno esfregão de seda sob as pálpebras. Conway per-guntara nessa ocasião a si mesmo se os seus companhei-ros estariam recebendo os mesmos cuidados — e como osreceberiam.

Vivera quase dez anos na China, nem sempre nasmaiores cidades, e, tudo bem considerado, parecia-lhe a-quele o período mais feliz da sua vida. Gostava dos chine-

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ses e dava-se bem com o seu sistema. Apreciava particu-larmente a cozinha chinesa, com suas sutis gradações de

 

gosto. Por isso, a primeira refeição em Shangri-Lá dera-lhea grata impressão de uma coisa com que estava familiari-zado. Suspeitava, aliás, que contivesse alguma erva oudroga para aliviar a respiração, porque não só ele sentiu di-

ferença, mas notou que seus companheiros estavam mais àvontade. Tchang, que apenas comeu pequena quantidade

 

de salada crua, sem tomar vinho, explicara a princípio:— Os senhores me desculparão, mas a minha dieta é

muito rigorosa. . . Vejo-me obrigado a cuidar da minha sa-úde.

Já dera antes aquela mesma razão. Conway pergun-tava a si mesmo qual seria a enfermidade que o afligia.

 

Examinando-o agora mais detidamente, viu que era difícil

 

determinar-lhe a idade; as feições miúdas e por assim dizerimprecisas, aliadas à tez de argila úmida, davam-lhe umaaparência indefinida que tanto podia ser a de um moço en-

velhecido antes do tempo como a de um velho admiravel-mente conservado. Não lhe faltava, contudo, certo atrativo;uma como aura de cortesia formalista o rodeava, qual per-fume tão delicado que mal chama a atenção e é depressaesquecido. A vestimenta de seda azul bordada, com a cos-tumeira saia aberta ao lado e as calças apertadas no torno-zelo — toda a gama do azul-celeste —, dava-lhe um en-canto metálico e frio que Conway achava agradável, posto

 

que soubesse não ser este o gosto dos outros.Era, na verdade, a atmosfera antes chinesa do que es-

pecificamente tibetana; e isto, em si, já lhe dava uma apra-zível sensação de estar em casa — outra coisa que não po-dia esperar fosse compartilhada pelos companheiros. A sa-la também lhe agradava; de admiráveis proporções, era so-

 

briamente adornada com tapeçarias e uma ou duas bonitas

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peças de laca. A luz vinha de lanternas de papel, imóveisno ar parado. Sentia Conway um suave conforto de corpo eespírito, e não se pode dizer que ficasse apreensivo aopensar de novo na possibilidade de ter ingerido algumadroga. Fosse ela o que fosse (se é que houvera droga), ali-viara a falta de ar de Barnard, abrandara a truculência de

Mallinson. Ambos haviam jantado bem, preferindo comera falar. Ele também se sentia faminto, e não lhe desagra-

 

dava que a etiqueta exigisse a protelação dos assuntos im-portantes. Como jamais gostara de dar fim a uma situaçãoem si mesma agradável, aquela técnica lhe convinha mara-vilhosamente. Foi só ao acender o cigarro que fez uma le-ve concessão à curiosidade, observando a Tchang:

— Sua comunidade me parece muito feliz e muitohospitaleira com os estrangeiros. Não creio, contudo, que

 

os recebam muito a miúdo.— Raramente, na verdade — replicou o chinês num

tom comedidamente majestoso. — Esta parte do mundo

não é muito freqüentada.Isto provocou um sorriso em Conway.— O senhor usa de um eufemismo. Pareceu-me,

quando aqui cheguei, o lugar mais isolado em que já pusos olhos. Aqui poderia florescer uma cultura original, semcontaminação alguma do mundo exterior.

— Contaminação, diz o senhor?— Refiro-me ao jazz, cinemas, sinais luminosos, etc.

 

A sua rede de encanamento é tão moderna quanto possível— a única dádiva que, ao meu ver, o Ocidente tem paraoferecer ao Oriente. Tenho pensado muitas vezes que osromanos foram afortunados. Sua civilização chegou a co-nhecer os banhos quentes, sem contudo alcançar o fatalconhecimento da máquina.

Calou-se. Falara com uma fluência improvisada que,

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posto não fosse insincera, era destinada sobretudo a criarum ambiente e controlá-lo. E era exímio nesse jogo. Só o

 

desejo de corresponder àquela polidez refinada o impediade se mostrar mais francamente curioso.

Miss Brinklow é que não tinha tais escrúpulos. Disselogo, começando com uma palavra de pedido que, todavia,

nada tinha de submissa:— Por obséquio, fale-nos do mosteiro, sim?Ergueu Tchang os supercílios em gentilíssimo pro-

testo contra esta entrada súbita na matéria.— Terei imenso prazer, minha senhora, desde que es-

teja em mim. Que é exatamente o que deseja saber?— Em primeiro lugar, quantos lamas vivem aqui, e a

que nacionalidade pertencem?Via-se que o seu espírito metódico funcionava não

menos profissionalmente do que na missão de Baskul. T-chang respondeu:

— Os que se acham perfeitamente integrados na or-

dem são cinqüenta. Há mais alguns, porém, que ainda nãoatingiram a completa iniciação — como eu. Esperamos lá

 

chegar no devido tempo. Até então, somos semilamas. . .

 

aspirantes, digamos. Quanto às origens raciais, há repre-sentantes de muitas nações entre nós, ainda que a maioriaseja, como é natural, composta de tibetanos e chineses.

Miss Brinklow não se furtava nunca a uma conclusão,ainda que fosse errada:

— Compreendo. É então um verdadeiro convento na-tivo. Seu chefe é tibetano ou chinês?

— Não.— Há ingleses aqui?— Diversos.— Meu Deus!. . . É notável, na verdade!Calou-se, apenas para respirar, e continuou:

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— E agora, diga-me em que crêem os senhores.Conway recostou-se na cadeira, numa expectativa que

tinha o seu tanto de divertida. Sempre achara prazer emobservar o choque de duas mentalidades opostas. E prome-tia ser interessante aquela retidão de mentora de meninasaplicada à filosofia lamaísta. Mas, como não desejava que

seu hospedeiro se assustasse, disse com ar conciliador:— É uma pergunta muito importante.Miss Brinklow, porém, não estava para contemporiza-

ções. O vinho, que tornara os outros mais tranqüilos, pare-cia ter-lhe dado nova vivacidade. E disse, com um gestomagnânimo:

— Eu, é claro, sou uma crente da verdadeira religião,mas tenho bastante largueza de vistas para admitir que ou-tras pessoas — isto é, estrangeiros — sejam absolutamente

 

sinceras no seu modo de ver. E é natural que num mosteiroeu não espere aprovação.

Esta concessão suscitou uma cerimoniosa reverênciade Tchang, que replicou no seu inglês preciso e elegante:

— Mas por que não, minha senhora? Então porqueuma religião é verdadeira, devemos sustentar que todas asoutras são forçosamente falsas?

— Mas certamente! Isso é óbvio, pois não é?De novo interpôs-se Conway:— Na verdade, parece-me que seria melhor não dis-

cutirmos. Mas Miss Brinklow compartilha a minha curio-sidade quanto à razão de ser deste estabelecimento único.

Foi quase num murmúrio, e muito lentamente, queTchang respondeu:

— Para me exprimir em poucas palavras, meu carosenhor, direi que nosso principal artigo de fé é a modera-ção. Preconizamos a virtude de evitar excessos de toda

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sorte — incluindo, com perdão do paradoxo, o próprio ex-cesso de virtude. Verificamos que este princípio concorreem grau considerável para a felicidade dos habitantes dovale que viram lá embaixo, e onde vivem alguns milharesde pessoas, sob o controle da nossa ordem. Governamoscom moderado rigor e nos satisfazemos, em troca, com

uma obediência moderada. E creio poder afirmar que nos-sa gente é moderadamente sóbria, moderadamente casta e

 

moderadamente honesta.Conway sorriu, achando bem expostas aquelas idéias,

que aliás agradavam ao seu temperamento.— Creio que compreendo. Com certeza, os homens

que foram ao nosso encontro esta manhã pertencem ao po-vo do vale, não?

— Sim. Espero que não tenham cometido falta algu-

 

ma durante a viagem. . .— Oh! não, nenhuma. Alegro-me, entretanto, de ver

que eles têm os pés mais que moderadamente firmes. Se-

gundo notei, o senhor teve o cuidado de dizer que a mode-ração se aplicava a eles; devo inferir que ela não se aplica

 

também aos sacerdotes?.A esta pergunta, porém, Tchang sacudiu a cabeça, de-

clarando:— Lamento, senhor, que tenha tocado agora num as-

sunto que não posso discutir. Só me é permitido acres-centar que a nossa comunidade tem várias crenças e usos,

 

mas a maioria de nós somos moderadamente heréticos notocante aos mesmos. Muito lastimo não poder dizer maisno momento.

— Por favor, não se incomode. O senhor me deixaentregue às mais agradáveis conjeturas.

Qualquer coisa na própria voz, tanto como nas sensa-ções corporais, reavivou no espírito de Conway a impres-

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são de que se achava submetido à ação benigna de algumadroga. Mallinson parecia estar sob uma influência seme-lhante; contudo, aproveitou a ocasião para observar:

— Tudo isto é muito interessante, mas me parece queé tempo de tratarmos dos planos de partida. Queremos vol-tar à Índia o mais depressa possível. Quantos carregadores

podem fornecer-nos os senhores?Esta pergunta prática e inflexível, rompendo a crostade suavidade, não encontrou, entretanto, fundo em que to-mar pé. E foi somente após um intervalo um tanto longoque Tchang replicou:

— Infelizmente, Mr. Mallinson, não é a mim que osenhor deve dirigir-se neste caso. Como quer que seja,creio que o assunto não poderá ser resolvido imediata-mente.

— Entretanto, precisamos assentar alguma coisa!Todos nós temos algum trabalho a atender, e nossos ami-gos e parentes devem estar inquietos por nossa causa... te-mos positivamente de voltar! Estamos muito agradecidospelo acolhimento que nos dispensou, mas não podemos fi-car aqui sem fazer nada. Se for possível, desejamos partiramanhã, ao mais tardar. Não há de faltar entre os seus ho-mens quem nos queira escoltar — trabalho que será bemremunerado, é claro.

As últimas palavras de Mallinson foram ditas comnervosismo, como se ele esperasse uma réplica mesmo an-tes de terminar. Não conseguiu, porém, arrancar a Tchangsenão esta frase calma, que quase encerrava uma censura:

— Mas tudo isso — sabe — não está na minha alça-

da.— Não? Pois seja; mas ainda assim, talvez o senhor

possa fazer alguma coisa. Se nos arranjasse um mapa

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grande da região prestar-nos-ia serviço. Ao que parece, te-remos de fazer uma viagem longa, razão de sobra para par-tir mais cedo. Os senhores têm mapas, suponho.

— Sim, temos muitos.— Então, se não é incômodo, pediremos alguns em-

 

prestados. Depois lhos devolveremos.. . porque suponho

que hão de ter comunicação com o resto do mundo, de vezem quando. E seria uma boa idéia mandar notícias, paratranqüilizar os nossos amigos. A que distância fica a esta-ção telegráfica mais próxima?

O rosto enrugado de Tchang parecia ter-se revestido

 

de infinita paciência — mas ele não respondeu. Após ummomento de espera, o moço continuou:

— Bem, para onde recorrem os senhores quando pre-cisam de alguma coisa. . . quero dizer, alguma coisa da ci-vilização?

Assomava-lhe já ao olhar e à voz um toque de terror.

 

De repente repeliu a cadeira e ergueu-se. Estava pálido;

passava a mão pela fronte, fatigado. E, correndo um olharcircular pela sala, gaguejou:

— Estou tão cansado! Parece que ninguém me querajudar. . . Fiz apenas uma pergunta simples. É claro que osenhor há de poder responder-me. Quando instalaram to-dos esses banheiros modernos. . . como vieram eles ter a-qui?

Seguiu-se novo silêncio.— Então não quer responder? Certamente isto faz

parte do mistério que cerca todas as coisas aqui. Conway,devo dizer que o considero um grande moleirão. . . Por que

 

é que você não descobre a verdade? Por agora. . . não pos-so mais comigo. . . mas. . . amanhã, não esqueça. . . temosde ir embora amanhã. . . é indispensável. . .

Não o tivesse Conway segurado, fazendo-o sentar, te-

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ria escorregado para o chão. Reanimou-se um pouco, masnão falou.

— Amanhã ele estará muito melhor — disse Tchangsuavemente. — O ar aqui abala os forasteiros no começo;mas logo se aclimatam.

O próprio Conway tinha a sensação de despertar de

uma hipnose.— A prova foi muito rude para ele — comentou comuma indulgência melancólica. E acrescentou, com mais vi-vacidade: — Creio que nós todos sentimos mais ou menosa mesma coisa. . . Será melhor adiarmos esta discussão eirmos dormir. Barnard, quer encarregar-se de Mallinson?Tenho certeza de que também precisa dormir, Miss Brin-klow.

Sem dúvida fora dado algum sinal, porque imediata-

 

mente apareceu um criado. E Conway continuou:— Sim, sim, vamos todos. . . boa noite. . . boa noite...

eu já os sigo.

Quase os empurrava para fora da sala. Depois, comuma sem-cerimônia que contrastava abertamente com suasmaneiras anteriores, voltou-se para o anfitrião. Sentira-seesporeado pela censura de Mallinson.

— Bem, meu senhor, não desejo retê-lo muito tempo,e por isso vou direto ao ponto. Meu amigo é impetuoso,mas eu não o censuro. . . Está no direito de querer as coi-sas bem claras. Temos de preparar o nosso regresso, e não

 

podemos fazê-lo sem seu auxílio, ou de alguém mais.Compreendo, naturalmente, que é impossível partir ama-nhã, e por minha parte creio que acharei muito interessanteo tempo de espera — um mínimo de tempo. Mas não seráessa, talvez, a opinião de meus companheiros. Assim, se éverdade que o senhor por si mesmo nada pode fazer, seráfavor pôr-nos em contato com alguém que o possa.

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— O senhor é mais inteligente que os seus amigos,meu caro senhor, e por isso menos impaciente — o que mealegra.

— Isto não é resposta.Tchang pôs-se a rir — um riso agudo e sacudido e

tão evidentemente forçado que Conway reconheceu nele

essa simulação polida de perceber um gracejo imaginário,com a qual o chinês salva as aparências nos momentos deaperto.

— Estou certo de que o senhor não terá motivo dequeixa — respondeu ele. — Não há dúvida de que no devi-do tempo poderemos prestar-lhes todo o auxílio de que ne-cessitam. Há dificuldades, como bem pode imaginar, masse todos encararmos o problema razoavelmente e sempressa desnecessária...

— Não exigi pressa. Peço apenas informações sobreos carregadores.

— Pois bem, meu caro senhor, isto levanta outra

questão. Duvido muito que o senhor encontre facilmentehomens dispostos a empreender tal viagem. Eles têm seus

 

lares no vale e não sentem inclinação para deixar esses la-

 

res e fazer longas e penosas excursões.— Podem ser persuadidos a fazê-lo, talvez; se-

não... por que e aonde iam eles escoltando-o esta manhã?— Esta manhã? Oh! isso era coisa muito diversa.— Em que sentido? Não ia o senhor de viagem, quan-

 

do meus amigos e eu o encontramos?Não tendo obtido resposta, prosseguiu Conway com

voz mais tranqüila:— Compreendo. Não foi, pois, um encontro casual.

Na verdade, era o que eu pensava. Então é certo que o se-nhor foi até lá com o fim deliberado de interceptar-nos.Isto faz crer que tenham sido avisados com antecedência

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da nossa chegada. E a questão mais interessante é —como? 

Suas palavras punham uma nota de veemência na per-feita quietude da cena. A luz da lanterna fazia ressaltar otosto do chinês, sereno como o de uma estátua. Repentina-mente, com um pequeno gesto, Tchang desfez a tensão.

Desviando um reposteiro de seda, descobriu uma janelaque deitava para um balcão. Tocando então no braço de

 

Conway, levou-o para o ar frio e cristalino.— O senhor é sagaz — disse com ar sonhador —,

mas não acertou inteiramente. Por isso eu o aconselharia anão afligir os seus amigos com estas discussões abstratas.Acredite-me, nem o senhor nem eles correm perigo algumem Shangri-Lá.

 

— Não é o perigo o que nos inquieta: é a demora.

 

— Compreendo. E é claro que  poderá haver certademora. . . É absolutamente inevitável.

— Se é apenas por pouco tempo, e de fato inevitável,

então naturalmente havemos de suportá-la o melhor quepudermos.

— Isso será muito acertado, porque nada mais dese-  jamos senão que o senhor e seus companheiros achem a-gradáveis todos os momentos que aqui passarem.

— Está muito bem então; e, no que me toca, já lhedisse — não posso dizer que isso me aborreça muito. Éuma experiência nova e interessante, e, afinal, nós precisa-mos de repouso.

Olhava para cima, contemplando a pirâmide brilhantedo Karakal. Naquele momento, iluminada pelo luar, dava aimpressão de que se poderia tocá-la com a mão — tão frá-gil parecia, assim recortada contra a azul imensidade.

— Amanhã — disse Tchang — o senhor poderá a-chá-la ainda mais interessante. E quanto ao repouso, se es-

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tá fatigado, não há no mundo inteiro muitos sítios mais a-propriados do que este.

Na verdade, à medida que Conway continuava a olharia-se apoderando dele uma profunda sensação de repouso,como se o espetáculo se dirigisse não menos ao espírito doque aos olhos. Em contraste com o furacão da noite anteri-

or, não havia agora o menor sopro de vento; o vale inteiro,ele o percebia, era um porto terrestre, fechado, tendo a vi-giá-lo, como um farol, o Karakal. Aumentou ainda a seme-lhança quando viu iluminar-se o vértice — um clarão azu-lado de gelo, igualando o esplendor que refletia.

Alguma coisa lhe inspirou então o desejo de indagarqual a interpretação literal do nome, e a resposta murmu-rada de Tchang foi como um eco da sua própria medita-ção:

 

— Karakal, no dialeto do vale, significa "Lua Azul".

Não comunicou Conway aos outros a conclusão a quechegara, de que sua vinda a Shangri-Lá era de algumaforma esperada pelos habitantes do mosteiro. Parecia-lheque o devia fazer, e percebia tratar-se de um caso impor-tante; no dia seguinte, contudo, essa certeza tão pouco o

 

preocupava, a não ser teoricamente, que procurou evitarmaior inquietação aos outros. Uma parte do seu ser insistiaem ver algo de muito estranho naquele lugar; a atitude deTchang, na véspera, estava longe de ser tranqüilizadora e ogrupo achava-se virtualmente prisioneiro, pelo menos até

 

que as autoridades se resolvessem a vir-lhe em socorro. E

era seu dever evidente incitá-los à ação. Afinal, era um re-presentante do governo britânico, quando mais não fosse, eera iníquo que os habitantes de um mosteiro tibetano se re-

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cusassem a atender a um pedido justo que fazia. . . Tal,sem dúvida alguma, a maneira normal e oficial por que se

 

encararia a questão; e aquela parte do seu ser era tão nor-mal como oficial. Ninguém melhor do que ele sabia fazer-se de homem forte quando a ocasião o requeria. Durante osdias difíceis que precederam a evacuação, seu procedimen-

to fora de molde a granjear-lhe (e pensava nisto meio con-trariado) nada menos que a dignidade de cavaleiro e uma

 

novela no estilo de Henty,1 destinada a ser dada em prêmionas escolas e intitulada   Acompanhando Conway em Bas-kul. De fato, tomar sobre os ombros a direção de várias de-zenas de civis de todas as classes, incluindo mulheres ecrianças; albergá-los todos num pequeno consulado duran-te uma revolução violenta, chefiada por agitadores hostis a

 

toda sorte de estrangeiros; ameaçar e adular os revolucio-

 

nários, até conseguir a permissão, para todos, de deixarema cidade em aviões — não fora, bem o compreendia, pe-quena façanha. Talvez que, manejando os cordões e escre-

vendo relatórios intermináveis, conseguisse abiscoitar al-guma coisa nas condecorações do Ano Bom. De qualquer

 

forma, isso lhe valera a fervorosa admiração de Mallinson.

 

Infelizmente, àquela hora devia o moço sentir-se bem desi-ludido. Era pena, sim; mas Conway já se habituara a verpessoas gostarem dele só porque se enganavam a seu res-peito. Não era verdadeiramente um desses construtores deimpério resolutos, vigorosos e violentos; a amostra que

 

dava disso era apenas uma pequenina peça de um só ato,repetida de tempos em tempos, por arranjo especial com odestino e o Ministério das Relações Exteriores — e emtroca de um salário que qualquer um podia verificar nas

1 Jornalista inglês e autor de livros para meninos (1832-1902).(N. do T.)

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páginas do anuário Whitaker.O fato é que o enigma de Shangri-Lá e de sua pre-

sença ali começava a exercer sobre o seu espírito uma fas-cinação não despida de encanto. Em todo caso, não sentianenhum receio pessoal. Exposto pela própria profissão aandar por estranhos sítios do mundo, quanto mais estra-

nhos eram, em via de regra, menos se aborrecia neles; porque, pois, havia de se queixar por ter ido parar no mais es-tranho de todos os lugares, em virtude de um acidente, emvez de ser ali enviado por uma ordem do Ministério?

E na verdade estava muito longe de se queixar. Ao sa-ir da cama, de manhã, avistando pela janela o lápis-lazúlido céu, convenceu-se de que não desejaria estar em ne-nhum outro ponto da terra — fosse Peshawar ou Picca-dilly. Alegrou-se de ver que a noite de repouso tambémproduzira efeito tonificante nos outros. Barnard pilheriavaalegremente a propósito de camas, banhos, almoços e ou-tras doçuras da hospitalidade. Miss Brinklow confessavaque a mais tenaz pesquisa no seu aposento não lograra re-velar uma só das falhas que estava certa de encontrar. Opróprio Mallinson mostrava um pouco de complacênciaum tanto soturna.

— Afinal, creio que não poderemos partir amanhã —resmungava —, a menos que alguém se resolva a deitarenergias. . . Que estes sujeitos são tipicamente orientais. . .Não se consegue que façam coisa alguma depressa nemcom eficiência.

Conway aceitou a observação. Não havia ainda umano que Mallinson se encontrava fora da Inglaterra —

tempo suficiente, sem dúvida, para justificar uma generali-

 

zação que provavelmente havia de repetir quando tivessevivido vinte anos no estrangeiro. E até certo ponto era ver-

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dade; não considerava, contudo, as raças orientais tão ex-traordinariamente dilatórias — seriam, antes, os ingleses eamericanos que galopavam ao redor do globo sob a açãode uma febre contínua e um tanto absurda. Dificilmenteesperaria que outro ocidental compartilhasse aquele pontode vista, mas quanto mais crescia em anos e experiência

mais se apegava a ele. Por outro lado, não podia negar queTchang fosse um contemporizador sutil, e que a impaciên-cia de Mallinson era bem justificada. Sentia um leve dese-

  jo de poder ser também impaciente; teria sido muito me-lhor para o rapaz.

— Creio — disse ele — que conviria esperarmos pa-ra ver o que nos traz o dia de hoje. Era talvez otimismoexagerado supor que eles fizessem alguma coisa já ontemà noite.

Mallinson relanceou vivamente os olhos para ele.— Acha, então, que eu fiz papel ridículo com a mi-

nha insistência? Não pude conter-me! Aquele chinês meparecia suspeitíssimo... e ainda penso assim. Conseguiu ar-rancar-lhe alguma coisa razoável depois que fui para a ca-ma?

— Não ficamos muito tempo a conversar. Ele falouem termos vagos e não comprometedores sobre quase tudoque nos interessava.

— Nós hoje havemos de obrigá-lo a pôr os pontosnos ii!

— Sem dúvida — concordou Conway, sem grandeentusiasmo. — Entrementes, este breakfast está excelente!

Consistia a refeição, muito bem preparada e ainda me-

lhor servida, em pomelos, chá e bolos de farinha sem lêve-do. Quando ia terminar entrou Tchang e, fazendo uma pe-quena reverência, começou aquela troca de cumprimentos

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polidos e convencionais que, em língua inglesa, pareciamum tudo-nada pesado. Conway teria preferido falar chinês,mas até então não dera a perceber que conhecia algum idi-oma oriental. Seria útil guardar um trunfo. Escutou com arsério as cortesias de Tchang e assegurou-lhe que dormirabem e sentia-se muito melhor. Exprimindo sua alegria ao

ouvir isto, o chinês acrescentou:— É bem verdade o que diz o seu poeta nacional: "Osono desata a meada das preocupações".

Não foi muito bem acolhida esta mostra de erudição.Mallinson retrucou com aquele toque de desprezo que todo

 jovem inglês de espírito são deve sentir à simples mençãoda poesia:

— Suponho que o senhor se refira a Shakespeare, a-inda que não reconheça a citação. Mas sei de outra que

 

diz: "Não esperes a ordem de partida, mas segue imediata-mente". Não quero ser descortês, mas é o que todos nósdesejaríamos fazer. E eu pretendo ir em procura desses

carregadores. . . esta manhã mesmo, se o senhor não temobjeções a fazer.

 

Recebeu o chinês este ultimato com ar impassível eafinal respondeu:

— Lamento dizer-lhe que isso de pouco serviria. Re-ceio que não tenhamos homens em condições e que este-

 jam dispostos a acompanhá-los tão longe dos seus lares.— Mas, homem de Deus! Pensará, porventura, que

nos vamos conformar com esta resposta?— Estou sinceramente pesaroso, mas não posso dar

outra.— Parece que o senhor assentou tudo isso durante a

noite — interpôs Barnard. — Ontem, não parecia tão segu-ro do caso.

— Não queria desanimá-los, visto que estavam tão fa-

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tigados da viagem. Agora, após uma noite de descanso,espero que vejam a questão sob uma luz mais razoável.

 

— Escute — acudiu Conway com vivacidade. — Es-te sistema de confusão de palavras vagas não adianta nada.O senhor sabe que não podemos ficar aqui indefini-damente. Também é claro que não podemos sair daqui so-

zinhos. Sendo assim, que é que propõe?Teve Tchang um sorriso luminoso, que era, evidente-mente, só para Conway.

— Meu caro senhor, é um prazer apresentar a suges-tão que tenho em mente. Para a atitude do seu amigo nãohavia resposta, mas para a pergunta do homem avisadosempre há uma. Deve estar lembrado de que ontem alguémobservou — creio ter sido este mesmo seu amigo — quenão podemos deixar de ter comunicações eventuais com oexterior. Isto é exato. De quando em quando necessitamosde certos artigos de entrepostos distantes, e é nosso costu-me obtê-los no devido tempo. . . Não preciso importuná-losdescrevendo os métodos e formalidades que empregamos.O ponto capital é que uma dessas encomendas está porchegar em breve, e como os homens que fazem a entregavoltam depois para o lugar de onde vieram, acho que o se-nhor poderá entender-se com eles. Realmente, não possoimaginar plano melhor, e espero que, quando chegarem. . .

— E quando chegarão? — perguntou Mallinson a-bruptamente.

— Seria impossível, é claro, prever a data exata. Ossenhores mesmos têm experiência das dificuldades de lo-comoção nesta parte do mundo. Podem surgir cem motivos

de atraso. . . a incerteza do tempo. . .De novo interveio Conway.— Vamos tirar isto a limpo. O senhor sugere que

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podemos empregar como carregadores uns homens quedeverão estar aqui dentro de pouco tempo, com encomen-das. Não é má idéia, em si; mas nós precisamos saber maisalguma coisa. Primeiro, e conforme já lhe foi perguntado:quando esperam esses homens? Segundo: aonde nos leva-rão eles?

— Esta pergunta deve ser feita a eles mesmos.— Quererão conduzir-nos à Índia?— É-me difícil dizê-lo.— Bem, vejamos então a resposta à outra pergunta.

Quando estarão aqui? Não peço uma data, apenas quero teruma idéia — se poderá ser na semana próxima, ou para oano.

— Talvez daqui a um mês. Provavelmente, não maisque dois meses.

— Ou três, quatro, cinco meses — interrompeu Mal-linson com calor. — E pensa que nós vamos esperar aquipor esse comboio ou caravana, ou o que quer que seja, pa-

ra nos levar sabe Deus aonde, numa época completamentevaga do distante futuro?

 

— Penso, senhor, que a expressão "distante futuro"não é muito apropriada. A não ser que sobrevenha algumcontratempo inesperado, a espera não será mais longa doque apontei.

— Mas dois meses! Dois meses neste lugar! É absur-do! Conway, você com certeza não pode conceber isso!Duas semanas devia ser o limite!

Cingindo as roupas ao corpo, num gesto de quem pu-nha termo à discussão, disse Tchang:

— Sinto muito. Não tinha intenção de ofender. Omosteiro continua a oferecer a todos os senhores o melhorde sua hospitalidade, por todo o tempo em que tiverem oinfortúnio de permanecer aqui. É só o que posso dizer.

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— Nem é preciso mais — retorquiu Mallinson, furio-so. — E se pensa que é senhor da situação, vai ver que estámuito enganado! Havemos de arranjar quantos carregado-res quisermos, não se aflija! Pode fazer quantas mesuras,quantos rapapés quiser, pode dizer tudo o que lhe aprou-ver. . .

Conway pousou-lhe a mão no braço, para contê-lo.Mallinson num acesso de ira parecia uma criança; era ca-paz de dizer tudo o que lhe viesse à cabeça, sem guardarconveniências nem decoro. Achava Conway que era per-doável aquilo, numa pessoa da sua constituição e em taiscircunstâncias; mas receava que as palavras do rapaz feris-sem a suscetibilidade mais delicada de um chinês. Por for-tuna, Tchang retirara-se, com um tato admirável, em tem-po de escapar ao pior.

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CAPÍTULO V

Discutiram o assunto toda a manhã. Sem dúvida, eraum choque para quatro pessoas que, a seguir a vida o seucurso ordinário, deviam estar àquela hora expandindo-senos clubes e missões de Peshawar, verem-se assim amea-çadas de passar dois meses num mosteiro tibetano. Mas es-tava na natureza das coisas que o choque inicial da chega-da lhes deixasse escassas reservas de indignação ou de as-

 

sombro; o próprio Mallinson, passada a primeira explosão,mergulhara numa espécie de perplexidade fatalista. E ner-voso, irritadiço, tirando baforadas do cigarro, dizia:

— Já não tenho forças para discutir, Conway. Você

sabe o que eu penso. Tenho sempre dito que há algo de es-tranho nisto tudo. Aqui há marosca. Quem me dera ver-melonge disto já, já!

 

— Não o censuro por isso. Infelizmente, não se tratade saber se gostamos ou não, mas sim do que teremos desuportar. Francamente, se esta gente diz que não pode ounão quer fornecer-nos carregadores, nada nos resta senãoesperar até que venham os outros. Custa-me admitir queestejamos de mãos atadas, mas parece ser a verdade.

— Quer dizer que teremos de ficar dois meses aqui?— Não vejo outro recurso. Mallinson sacudiu a cinza do cigarro com um gesto de

indiferença forçada e disse:— Muito bem, então. Sejam dois meses. E agora,

 

vamos todos dar vivas!

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— Não sei por que haveria de ser pior que dois mesesem qualquer outra parte isolada do mundo — prosseguiu

 

Conway. — As pessoas de nosso ofício estão habituadas aandar por lugares esquisitos — creio que posso dizê-lo denós todos, não é? Certamente, não é agradável para os quetêm parentes e amigos. Por mim, sou feliz nesse ponto.

Não sei de ninguém que se inquiete muito por minha cau-sa; quanto ao meu trabalho, seja qual for, poderá ser exe-

 

cutado por outra pessoa.Voltou-se para os outros, como a convidá-los a expor

sua situação. Mallinson não disse nada, mas Conway sabiaque ele tinha os pais e a noiva na Inglaterra. Era bastanteduro.

Barnard, por seu lado, aceitava aquela conjuntura com

 

o bom humor habitual.— Enfim, reconheço que tenho sorte; passar dois me-

ses num presídio não dá para matar. Quanto à minha gente,não estranhará, porque sempre tive preguiça de escrever

cartas.— Esquece que nossos nomes vão aparecer nos jor-

 

nais — lembrou Conway. — Todos nós seremos dadoscomo desaparecidos, e naturalmente as suposições serão aspiores.

Por um momento, pareceu que o americano se sobres-saltara; depois replicou, com uma leve careta:

— Ah! sim, é exato. Mas isso não me preocupa, a-credite.

Alegrou-se Conway de que assim fosse, ainda que oponto permanecesse um tanto duvidoso. Voltou-se paraMiss Brinklow, que até então observava um silêncio notá-vel. Não emitira opinião alguma durante a conferênciacom Tchang. Imaginou Conway que as suas inquietações

 

pessoais também fossem pequenas.

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— Como disse Mr. Barnard — começou ela alegre-mente —, dois meses aqui não é coisa para a gente se inco-

 

modar. Para quem está a serviço do Senhor, pouco impor-tam os lugares. A Providência me enviou aqui e consideroisso como um chamado.

Achou Conway que, naquelas circunstâncias, era uma

atitude muito conveniente. E disse, em tom animador:— Estou certo de que a sua sociedade missionária vaificar muito satisfeita com a senhora, quando voltar. Poderáprestar informações muito úteis. O fato é que todos nós le-varemos daqui alguma experiência. Já é uma pequena con-solação.

Generalizou-se então a conversa. Conway estava ad-mirado da facilidade com que Barnard e Miss Brinklow seacomodavam à nova perspectiva. Isso lhe trazia tambémcerto alívio, pois o deixava apenas com um desgosto paraaturar. Mesmo assim, após o esforço despendido em tantasdiscussões, experimentava Mallinson certa reação. Ainda

perturbado, mostrava-se contudo mais disposto a encararas coisas pelo lado melhor.

— Só Deus sabe o que encontraremos para nos ocu-par aqui!

Entretanto, o mero fato de fazer tal observação reve-lava que já ia procurando reconciliar-se com a situação.

— A primeira coisa que temos a fazer — disse Con-way — é evitar de aborrecermos uns aos outros. Feliz-mente parece haver aqui muito espaço, e o lugar não estáde modo algum superlotado. A não ser os criados, até ago-ra vimos somente um dos habitantes.

Barnard encontrava outro motivo de otimismo:— E não havemos certamente de morrer de fome, a

  julgar pelas amostras de refeições que tivemos até agora.

 

Sabe, Conway? Não é com pouca despesa que se dirige um

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lugar assim. Aqueles banheiros, por exemplo — aquilocusta muito dinheiro. E, pelo que tenho visto, ninguém ga-

 

nha nada aqui, a não ser que aqueles tipos lá do vale te-nham algum trabalho; e mesmo assim, não podem produzirbastante para exportar. Eu queria saber é se eles extraemalgum minério.

— Tudo aqui é misterioso, que o diabo os leve! —replicou Mallinson. — Calculo que eles tenham panelas dedinheiro enterradas, como os jesuítas. Quanto aos banhei-ros, devem ter sido presente de algum protetor milionário.Enfim, é assunto que não me há de preocupar, uma vezque me veja longe daqui. Devo dizer, contudo, que a vistaé bonita, a seu modo. Daria um belo centro de esportes deinverno, se fosse bem situado. Será que se pode andar deesqui em alguma daquelas ladeiras?

 

Deitando-lhe um olhar perscrutador e levemente di-vertido, respondeu Conway:

— Ontem, quando encontrei alguns edelvais, você

me lembrou que não estávamos nos Alpes. Agora, chegou-me a vez de dizer o mesmo. Não o aconselharia a experi-mentar nenhuma de suas proezas de Wengen-Scheidegg

 

nesta parte do mundo.— Não creio que alguém aqui já tenha visto um salto

de esqui.— Nem sequer uma partida de hóquei no gelo — re-

plicou Conway, gracejando. — Você podia ver se orga-

 

nizava alguns quadros. . . Que diz de "Cavalheiros versusLamas"?

— Isso certamente lhes ensinaria o jogo — disseMiss Brinklow com cintilante seriedade.

Seria difícil aduzir algum comentário acertado; nãofoi, porém, necessário, pois que já ia ser servido o almoço,

 

cuja natureza e oportunidade se combinavam para produzir

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excelente impressão. Mais tarde, quando apareceu T-chang, não os encontrou dispostos a reencetar a discussão.

 

Com muito tato, o chinês fez de conta que ainda se achavaem bons termos com todos, e os quatro exilados aceitaramo convênio. Na verdade, quando lembrou que talvez dese-

 jassem ver mais alguma coisa do mosteiro, e que a ser as-

sim teria prazer em guiá-los, o oferecimento foi muito bemacolhido.— Mas claro! — disse Barnard. — Podemos perfei-

tamente dar uma vista d'olhos enquanto estamos aqui. I-magino que há de se passar muito tempo antes que algumde nós faça outra visita.

Miss Brinklow fez uma observação digna de nota. Aosaírem todos em seguimento de Tchang, murmurou:

 

— Quando partimos de Baskul naquele avião, certa-mente eu nem sonhava que viríamos ter a um lugar comoeste.

— E até agora não sabemos por que viemos — acres-

centou Mallinson, inexorável. Não tinha Conway preconceitos de raça nem de cor, e

 

era por pura afetação que fingia às vezes, quando estavaem algum clube ou viajava em carro de primeira classe,dar especial valor à "brancura" de uma cara cor de lagostatendo ao alto um chapéu de cortiça. Esta maneira de proce-der livrava de muito incômodo, principalmente na Índia, eConway era exímio em se furtar a aborrecimentos. NaChina, porém, era menos necessária; tivera muitos amigoschineses e jamais lhe ocorrera idéia de tratá-los como a in-feriores. Portanto, ao conversar com Tchang, fazia-o combastante isenção de ânimo para ver nele um velho cava-lheiro maneiroso, que talvez não fosse digno de inteiro

 

crédito, mas que era, sem dúvida, dotado de grande inteli-

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gência. Quanto a Mallinson, inclinava-se a ver o chinês a-través das grades de uma prisão imaginária; Miss Brin-

 

klow mostrava-se viva e alegre, como sempre fazia ao tra-tar com os pagãos na sua cegueira, ao passo que a bonomiamordaz de Barnard era da espécie que ele teria usado comum mordomo.

Entrementes, aquele giro pelos domínios de Shangri-Lá era bastante interessante para sobrepor-se a todas estasatitudes. Não era sem duvida a mais vasta e, independen-temente da sua situação, a mais notável. Só aquele passeiopor salas e pátios tomavam uma tarde inteira, embora eletivesse notado que muitos aposentos iam ficando sem e-xame — edifícios inteiros, mesmo, em que Tchang não seofereceu para entrar com eles. Viram, entretanto, o sufi-ciente para confirmar as impressões já formadas. Barnard

 

estava mais certo que nunca de que os lamas eram ricos;Miss Brinklow descobriu abundantes evidências de imora-lidade. Mallinson, passada a primeira impressão de novi-

dade, não se sentia menos fatigado do que em outras ex-cursões de turismo, em altitudes mais baixas; e lá consigo

 

achava que, muito provavelmente, não escolheria os lamaspara seus heróis.

Somente Conway se abandonava a um encantamentoprofundo e sempre crescente. Não era tanto alguma coisaparticular que o atraía, como a gradual revelação de ele-gância, de gosto sóbrio e impecável, de uma harmonia tão

 

delicada que parecia satisfazer o olhar sem o prender. Pre-cisou fazer um esforço consciente para trocar a atitude doartista pela do conhecedor, reconhecendo então tesourosque museus e milionários teriam cobiçado: deliciosas ce-râmicas de Sung azul pérola, pinturas em cores esbatidas,conservadas por mais de mil anos, laças em que a fria e

 

adorável minuciosidade de país de fadas era antes orques-

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trada do que pintada. Um mundo de incomparáveis refi-namentos ainda a tremular indeciso em porcelana e verniz,proporcionando um instante de emoção antes de se diluirno mais puro pensamento. Não havia ali ostentação, nãohavia busca de efeito nem assalto concentrado aos senti-mentos do espectador. Aquelas delicadas perfeições ti-

nham o ar de surgir no mundo a flutuar como pétalas caí-das de uma flor. Teriam enlouquecido um colecionador.Mas Conway não era colecionador; faltavam-lhe o dinhei-ro e o instinto aquisitivo. Seu gosto pela arte chinesa erapuramente espiritual; num mundo em que aumentam in-cessantemente o ruído e a vastidão das coisas, ele voltava-se, no íntimo, para os objetos delicados, precisos e minia-turais. E enquanto ia passando de sala em sala teve umaremota sensação de mágoa à idéia da imensidade do Kara-

 

kal, pairando sobre tão frágeis encantos.Tinha o mosteiro, contudo, mais o que mostrar do que

uma coleção de chinesices. Salientava-se ali, por exemplo,

uma agradável biblioteca, alta e espaçosa, contendo umamultidão de livros tão discretamente agasalhados nos des-

 

vãos e reentrâncias das paredes, que todo o ambiente eramais de critério que de erudição, mais de distinção que deseriedade. Um rápido olhar deitado a algumas prateleirasrevelou a Conway muita coisa que admirar; ali se encon-trava, segundo parecia, a melhor literatura do mundo, as-sim como muita matéria curiosa e abstrusa, que ele nãopodia avaliar. Abundavam os volumes em inglês, francês,alemão e russo, e era imensa a quantidade de escritos emchinês e outras línguas orientais.

Uma seção que o interessou particularmente era dedi-cada a assuntos tibetanos; notou diversas raridades, entreas quais o   Novo Descobrimento do Grão Cathayo ou dos

 Reinos de Tibet, pelo Padre Antônio de Andrade (Lisboa,

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1626); China, de Athanasius Kircher (Antuérpia, 1667); aVoyage à la Chine des Pères Grueber et d'Orville, de The-venot; e a Relazione Inédita di un Viaggio al Tibet, de Be-ligatto. Examinava este último quando notou o olhar deTchang fixo nele, com expressão de suave curiosidade.

— É talvez um erudito?

Achou difícil responder. Aqueles dois anos de magis-tério em Oxford conferiam-lhe certo direito ao título; sabi-a, porém, que o termo — o mais altamente lisonjeiro naboca de um chinês — tinha, para ouvidos ingleses, umaleve nota de pedantismo. E, mais em consideração aos seuscompanheiros do que por outra razão, tergiversou:

— Gosto de ler, sem dúvida, mas meu trabalho nestesúltimos anos não me tem deixado muitos vagares para umavida de estudos.

— Contudo, deseja-a?— Oh! não direi tanto, mas certamente reconheço os

seus atrativos.Mallinson, que pegara num livro, interrompeu o diá-

logo:— Aqui está alguma coisa para a sua vida de estu-

dioso, Conway. É um mapa do país.— Nossa coleção contém várias centenas — disse

Tchang. — Estão todos à disposição dos senhores, mas tal-vez possa poupar-lhes algum trabalho. Não encontrarãoShangri-Lá assinalado em nenhum deles.

— É curioso — comentou Conway. — Eu gostaria desaber por quê.

— Há para isso uma boa razão. Mas, infortunada-

mente, é tudo que posso dizer. Conway sorriu; Mallinson, porém, mostrou-se de no-

vo impertinente. 

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— Aumenta o mistério. Até agora não vimos por aquinada que fosse necessário ocultar.

De repente Miss Brinklow saiu do mudo estupor emque a mergulhara o passeio processional.

— O senhor não nos vai mostrar os lamas traba-lhando? — perguntou, naquela voz aflautada que devia ter

intimidado muito guia da agência Cook. Estava fora de dú-vida, além disto, que tinha o espírito cheio de visões nebu-losas de ofícios nativos — tecedura de tapetes de oração,ou alguma coisa pitorescamente primitiva, de que pudessedar notícia quando tornasse à pátria. Tinha o extraordi-nário vezo de nunca se mostrar muito surpreendida, masde parecer sempre um tanto ou quanto indignada — umcomplexo que a resposta de Tchang em nada perturbou:

 

— Sinto dizer que é impossível. Os lamas nunca —ou, diria melhor, somente raras vezes — são vistos porgente estranha ao mosteiro.

— Vejo então que teremos de passar sem eles —

concordou Barnard. — Mas é uma pena. Eu gostaria tantode apertar a mão do seu chefe!

Tchang recebeu a observação com benévola serieda-

 

de. Miss Brinklow, porém, ainda não se dava por vencida.E continuou:

— Que é que os lamas fazem?— Devotam-se à contemplação, minha senhora, e à

pesquisa da sabedoria. — Mas isso não é fazer alguma coisa! — Então, minha senhora, não fazem nada.— Era o que eu pensava.Depois desta resposta, encontrou ensejo para suma-

riar— Pois, Mr. Tchang, é um prazer, sem dúvida, ver to-

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das estas coisas; mas o senhor não me convence de que umestabelecimento como este faça algum bem verdadeiro. Eupreferiria alguma coisa mais prática. 

— Quem sabe se gostaria de tomar chá?A princípio Conway ficou em dúvida sobre se havia

nisto uma intenção irônica. Mas logo viu que se enganara;

a tarde se escoara rapidamente e Tchang, a despeito da suafrugalidade, possuía aquele gosto típico dos chineses pelochá, que costumam tomar com freqüentes intervalos. MissBrinklow, por seu lado, confessou que as visitas a museuse galerias de arte sempre lhe causavam alguma dor de ca-beça. Todo o grupo concordou com a sugestão e foi se-guindo Tchang por vários pátios, até darem com uma cenainesperada, de beleza sem igual. Partindo de uma colunata,descia uma escadaria para um jardim, onde se encravava

 

um lagozinho, alimentado por algum artifício delicado deirrigação. Abrigava ele tamanha quantidade de lotos que asfolhas, unidas na superfície, davam a impressão de um pa-vimento de tijolos verdes e úmidos. Ao redor do lago, co-mo uma franja, pousava uma coleção de leões, dragões eunicórnios de bronze — cada um apresentando uma fero-cidade estilizada que não só não perturbava, senão que an-tes acentuava a paz ambiente. Tão perfeitas eram as pro-porções de todo o quadro que o olhar se movia sem pressade um lado para outro; não havia ali emulação nem vaida-de, e até o vértice do Karakal, que se elevava, incompará-vel, acima dos telhados azuis, parecia ter-se encaixado,submissamente, naquela moldura de arte consumada.

— Lindo recanto! — observou Barnard, enquanto

Tchang os conduzia a um pavilhão aberto, onde, para mai-or alegria de Conway, havia um cravo e um piano moder-no, de cauda.

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Na sua opinião, era em certo sentido a surpresa cul-minante de uma tarde assombrosa. Respondeu Tchang atodas as suas perguntas com perfeita lisura, até certo limi-te. Os lamas, explicou ele, tinham em alta estima a músicado Ocidente, em particular a de Mozart. Possuíam umacoleção de todas as grandes composições européias e al-

guns deles eram hábeis executantes em vários instrumen-tos.Foi o problema do transporte que mais impressionou

Barnard.— O senhor quer dizer que este piano veio dar aqui

pelo mesmo caminho que seguimos ontem?— Não há outro.— Apre! Isto agora é o mais extraordinário! Com um

gramofone e um rádio, ficava tudo completo! E daí, quem

 

sabe se ainda não conhecem a música moderna?— Oh! sim. Temos tido notícias, mas também nos in-

formaram que as montanhas impossibilitam a recepção ra-diofônica; e, quanto ao gramofone, já foi apresentada a su-gestão às autoridades, mas não têm pressa de ultimar o as-sunto.

— Isto eu acreditaria, mesmo que o senhor não medissesse — replicou Barnard. — Calculo que o lema dasua sociedade seja: "Não há pressa!"

Riu alto, e continuou:— Bem, descendo aos detalhes, suponhamos que os

seus chefes resolvam no devido tempo adquirir o gramofo-ne; como fazem então? Os fabricantes não hão de fazer aentrega aqui, isso é claro. Imagino que tenham um agente

em Pequim, Xangai, ou noutra parte qualquer; e apostoque tudo isso, quando lhes chega às mãos, já está custandoum montão de dinheiro!

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Mas Tchang, como das outras vezes, não se deixouapanhar:

— Suas conjeturas são muito argutas, Mr. Barnard,mas lamento não poder discuti-las.

E assim achavam-se de novo, refletia Conway, bei-rando o limite invisível entre o que podia e o que não po-

dia ser revelado. Julgava poder dentro em breve começar adelinear mentalmente essa fronteira, mas surgiu uma novasurpresa que veio adiar o assunto. Já traziam os criados astaças de chá rescendente e, ao mesmo tempo que os tibeta-nos ágeis, de membros flexíveis, entrara quase sem ser no-tada uma jovem vestida de chinesa. Foi direto ao cravo epôs-se a tocar uma gavota de Rameau. A fascinação dasprimeiras notas despertou em Conway um prazer que su-plantava o assombro; aquelas argentinas árias francesas do

 

século dezoito pareciam refletir a elegância dos vasos deSung, das lacas delicadas e do lago dos lotos. Envolvia-asaquela mesma fragrância que desafiava a morte, confe-rindo a imortalidade através de uma época alheia ao seuespírito. Foi só então que reparou na clavecinista. Tinha onariz longo e delgado, as maçãs do rosto salientes, o palorde casca de ovo dos manchus; o cabelo negro, muito puxa-do para trás e trançado; parecia uma miniatura bem acaba-da. A boca era como um pequeno convólvulo rosado e suadona mantinha-se perfeitamente imóvel — menos as mãosde longos dedos. Terminada a gavota, fez uma pequena re-verência e retirou-se.

Acompanhou-a Tchang com o olhar, sorrindo; depois,com certo ar de triunfo pessoal, voltou-se para Conway:

— O senhor gostou?— Quem é ela? — indagou Mallinson, antes que

Conway pudesse responder. 

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— Chama-se Lo-Tsen. Toca com muita habilidade asmúsicas ocidentais para instrumentos de teclado. Como eu,ainda não atingiu a iniciação completa.

— Suponho que não, com efeito! — exclamou MissBrinklow. — Não parece mais que uma criança. . . Entãohá também mulheres lamas aqui?

— Entre nós não há distinção de sexo.— Que coisa extraordinária este seu monastério —observou Mallinson altaneiramente, ao cabo de uma pausa.

Continuaram a tomar o chá sem mais conversar. Pare-cia que ainda vibravam no ar os ecos do cravo, exercendoum estranho encantamento.

Momentos depois, guiando-os à saída do pavilhão,ousava Tchang supor que o passeio os tivesse divertido.Respondendo pelos demais, Conway reciprocou com ele ascortesias de costume. O chinês disse da sua própria satisfa-ção e pediu-lhes que considerassem os recursos da biblio-teca e da sala de música inteiramente à sua disposição, en-quanto ali estivessem. Agradeceu-lhe de novo Conway,com alguma sinceridade, e disse:

— Mas e os lamas? Não se utilizam nunca dessas sa-las?

— Eles cedem o passo, e com muita alegria, aos seusdistintos hóspedes.

— Oh! aí está o que eu chamo verdadeira gentileza— acudiu Barnard. — E demais, isso prova que os lamassabem realmente que nós existimos. Já é um progresso, a-final ! Faz com que eu me sinta muito mais à vontade. Ocerto é que têm aqui uma bela instalação, Tchang, e aquela

menina toca muito bem piano. Que idade terá ela, eis o queeu queria saber.

— Infelizmente, não lho posso dizer.

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— Não quer revelar o segredo da idade de uma se-nhora, hem? — disse Barnard, rindo.

— Exatamente — respondeu Tchang, com a remotasombra de um sorriso.

Naquela noite, depois do jantar, achou Conway ummeio de se apartar dos outros e saiu a passear pelos pátiostranqüilos, lavados de luar. Shangri-Lá estava lindo então,tocado pelo mistério que jaz no âmago de tudo que é belo.No ar frio e sereno, a imponente pirâmide do Karakal pa-recia mais próxima, muito mais próxima do que vista à luzdo sol. Conway experimentava grande bem-estar físico,sentia os nervos repousados e o espírito tranqüilo, masmordia-lhe a inteligência — o que não é a mesma coisa —

 

boa dose de inquietude. Estava intrigado. A fronteira domistério, que ele começara a delinear, fazia-se mais defini-da, mas revelava agora um fundo inescrutável. Como que

se focalizava diante dos seus olhos a série de estranhas a-venturas em que ele e seus companheiros casuais se viramenvolvidos; não conseguia explicá-las por enquanto, em-

 

bora estivesse certo de que tinham explicação.Caminhando ao longo de um dos claustros, atingiu o

terraço que se debruçava sobre o vale. Assaltou-o um aro-ma de angélicas, despertando delicadas associações; naChina, chamavam-lhe o "aroma do luar". Se o luar tivessetambém uma voz, fantasiou ele, bem poderia ser a gavotade Rameau que ouvira naquela tarde; e esta idéia lhe guiouo pensamento para a jovem manchu. Não lhe ocorrera apossibilidade de existirem mulheres em Shangri-Lá. Não secostuma associar a presença destas à prática do monasti-cismo. Entretanto, refletiu, talvez não fosse uma inovação

 

desagradável; mais ainda, uma clavecinista podia constituir

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elemento valioso numa comunidade que se permitia ser, naexpressão de Tchang, "moderadamente herética".

 

Inclinou-se sobre a borda para contemplar o vazio ne-gro-azulado. A profundidade era fantástica; nada menos deuma milha, talvez. Ser-lhe-ia permitido visitar o vale e ob-servar a civilização de que lhe haviam falado? Como estu-

dioso de história, interessava-o esse singular núcleo decultura, encravado entre montanhas desconhecidas e go-

 

vernado por um vago sistema teocrático, sem esquecer ossegredos curiosos, mal talvez com ele aparentados, doconvento lamaico.

De súbito, trazidos pela brisa, chegaram-lhe sons lá debaixo. Prestando atenção pôde distinguir gongos e trombe-tas e também (ou seria apenas imaginação?) o lamento

 

confuso de muitas vozes. Os sons vinham e se iam ao sa-bor dos caprichos do vento. Mas os sinais de vida e de agi-tação naqueles velados abismos só serviam para realçar aaustera serenidade de Shangri-Lá. Seus claustros desertos

e seus pálidos pavilhões mergulhavam num repouso doqual parecia ter fugido toda vibração de existência, dei-

 

xando após si um silêncio que parecia deter a própria mar-cha dos instantes. Percebeu então, numa janela muito aci-ma do terraço, a luz rosada de uma lanterna; seria ali queos lamas se entregavam à contemplação e à busca da sabe-doria? Estariam nesse momento praticando as suas devo-ções? O problema parecia ter solução bem simples: era en-

 

trar pela primeira porta e explorar galerias e corredores atédescobrir a verdade. Sabia, porém, que tal liberdade era i-lusória e que todos os seus movimentos estavam sendo vi-giados. Dois tibetanos tinham atravessado silenciosamenteo terraço, aproximando-se do parapeito. Davam a impres-são de indivíduos bem-humorados, cobrindo negligente-

 

mente os ombros nus com as capas coloridas. Elevou-se de

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novo o rumor de gongos e trombetas, e Conway ouviu umdos homens interrogar o companheiro. A resposta foi:

 

— Eles sepultaram Talu.Conway, cujos conhecimentos de tibetano eram muito

superficiais, esperou que a conversa continuasse; aquelaspalavras soltas não lhe revelavam quase nada. Depois de

uma pausa, o interrogador, cuja voz era inaudível, reatou aconversação, recebendo respostas que Conway apanhou e.

 

interpretou aproximadamente, como segue: — Morreu fora do vale. — Obedeceu às autoridades de Shangri-Lá. — Veio pelo ar, por sobre as altas montanhas, carre-

gado por um grande pássaro. — Também trouxe forasteiros consigo. 

 

— Talu não temia o vento nem o frio dos espaços.

 

— Embora tenha partido há muito tempo, o vale daLua Azul lembra-se dele ainda.

Nada mais foi dito que Conway pudesse entender, e

após alguns minutos de espera voltou para o seu aposento.Ouvira, contudo, o suficiente para encontrar mais umachave do mistério, e esta chave ajustava-se tão bem que se

 

admirou de não a haver obtido por suas próprias deduções.Na verdade, isso lhe tinha passado pelo espírito, mas acha-ra-o tão absurdo e fantástico que não lhe dera acolhida.Agora via bem que o que lhe parecera fantástico e absurdotinha de ser aceito. Aquele vôo de Baskul para as monta-nhas não fora a façanha gratuita de um louco. Tinha sidoplanejado, preparado e posto em execução por ordem deShangri-Lá. Os habitantes do vale conheciam pelo nome opiloto morto; tinha sido um deles, e lamentavam-lhe amorte. Tudo indicava a existência de uma mentalidade su-perior e dirigente, empenhada em realizar os seus próprios

 

desígnios. Havia, por assim dizer, como que um único arco

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de intenção abarcando todas as inexplicáveis horas e dis-tâncias. Qual era, porém, essa intenção? Por que razão

 

concebível quatro passageiros quaisquer tinham sidotransportados, num avião do governo britânico, para estassolidões de além-Himalaia?

O problema causava leve terror a Conway, mas de

modo algum o aborrecia. Era um desafio e tomava a únicaforma sob a qual ele era sensível a desafios: apelando paracerta lucidez de raciocínio que só pede uma tarefa digna desi. Uma coisa decidiu desde logo: a emoção da descobertanão devia ser ainda comunicada, nem aos seus companhei-ros, que em nada o poderiam ajudar, nem aos seus hospe-deiros, os quais seguramente não desejariam prestar-lheauxílio.

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CAPÍTULO VI

— Há gente que tem se acostumado com lugares pio-

 

res do que este — observava Barnard no fim da primeirasemana passada em Shangri-Lá; era, sem dúvida, uma dasmuitas lições que estavam aprendendo. Já se haviam afeitoa certa rotina cotidiana e graças a Tchang o tédio não eramaior do que em muita temporada de férias. Todos esta-vam aclimatados à altitude e sentiam-lhe a ação revigoran-

 

te, uma vez que evitassem todo exercício demasiado. A-prenderam que os dias eram tépidos e as noites frias, que omosteiro era quase completamente resguardado dos ven-tos, que as avalanchas do Karakal se tornavam mais fre-

qüentes por volta do meio-dia, que o vale produzia exce-lente fumo, que certos alimentos e bebidas eram mais sa-borosos do que outros, e que cada um deles mesmos tinhaos seus gostos e idiossincrasias. De fato, haviam descober-to muita coisa acerca uns dos outros, qual se fossem quatronovos alunos duma escola, de onde todos os demais hou-vessem desaparecido misteriosamente. Tchang era incan-sável nos seus esforços para aplainar dificuldades. Organi-

 

zava excursões, sugeria quefazeres, recomendava livros,falava com aquela sua fluência lenta e cuidadosa sempreque se produzia um silêncio constrangedor durante as re-feições e era sempre benévolo, cortês e fértil em recursos.Era tão bem demarcado o limite entre as informações pres-tadas de boa vontade e as que ele recusava polidamente,que a recusa já não causava ressentimento — salvo, por

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vezes, em Mallinson. Conway contentava-se em tomar no-ta, acrescentando mais um elemento à série de observações

 

que ia constantemente acumulando. Barnard até caçoavacom Tchang, de acordo com as maneiras e tradições rota-rianas do Middle-West. 

— Fique sabendo, Tchang, que isto aqui é um pés-

simo hotel. Nunca recebem jornal algum! Eu trocaria todosos livros da sua biblioteca pelo Herald-Tribune de hoje.As respostas de Tchang eram sempre sérias, con-

quanto isto não fosse prova de que ele levasse a sério todasas perguntas:

— Temos a coleção do Times, Mr. Barnard, até al-guns anos atrás. Mas, sinto dizê-lo, somente o Times deLondres.

Alegrou-se Conway por saber que o vale não lhes erainterdito, se bem que as dificuldades da descida tornassemimpossíveis as visitas sem escolta. Acompanhados por T-chang, passaram quase todo um dia percorrendo a pradariaverde, tão encantadora vista do alto do penhasco, e paraConway, ao menos, a excursão foi de absorvente interesse.Viajavam em cadeirinhas de bambu, balançando-se peri-gosamente por cima de precipícios, enquanto os carre-

 

gadores, à frente e atrás, iam descuidosamente pelo ín-greme caminho. Não era um caminho para pessoas de ner-vos delicados, mas, quando afinal alcançaram os planosmais baixos das florestas e colinas basilares, patenteou-sepor toda parte a suprema boa fortuna dos lamas do mostei-ro. Era o vale nada menos que um paraíso fechado, de as-sombrosa fertilidade, onde a diferença de nível de algumas

centenas de metros abrangia toda a distância que separa oclima temperado do tropical. Plantações extraordi-nariamente variadas cresciam em profusão, umas ao pé das

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outras, sem que ficasse inaproveitada sequer uma polegadade terra. A área cultivada media talvez umas doze milhas,variando a largura de uma a cinco milhas, e, embora estrei-ta, tinha a ventura de receber sol durante as horas maisquentes do dia. A atmosfera, aliás, era agradavelmente té-pida mesmo à sombra, mas eram frigidíssimos os cursos

de água que desciam das neves da montanha. Conway sen-tiu de novo, ao contemplar o portentoso paredão de rocha,que um soberbo e sutil perigo envolvia a paisagem; nãofosse alguma barreira fortuita, e o vale inteiro seria eviden-temente um lago, alimentado pelas elevações glaciais queo cercavam. Ao invés disto, sulcavam o solo umas poucastorrentes, enchendo reservatórios e irrigando prados e cul-turas com disciplinada regularidade, como se fossem obra

 

de um engenheiro hidráulico. Toda essa rede tinha uma

 

disposição incrivelmente feliz — contanto que a estruturaque a emoldurava não desmoronasse por força de algumtremor de terra ou desabamento!

Mas essas vagas ameaças de cataclismo futuro sóconseguiam dar maior realce à beleza do presente. Mais

 

uma vez Conway sentia-se cativado pelas mesmas qualida-des de engenho e graça que haviam feito dos anos vividosna China os mais ditosos de sua existência. O vasto maci-ço, em torno, formava perfeito contraste com os pequeni-nos relvados e jardins expurgados de ervas, com as colori-das casas de chá à beira do regato e com as habitações tão

 

leves que pareciam de brinquedo. Afiguraram-se-lhe oshabitantes uma mescla feliz das raças chinesa e tibetana;eram mais claros e tinham mais belas feições do que o co-mum de um e outro povo, e pareciam ter sofrido poucocom os efeitos da endogamia inevitável numa sociedadetão limitada. Riam ou sorriam para os estrangeiros que

 

passavam nas cadeirinhas e diziam uma palavra amiga a

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Tchang. Eram bem-humorados e levemente curiosos, cor-teses e despreocupados, ocupados em inúmeros misteres,mas sem nenhum sinal de pressa. De um modo geral,Conway achou-os uma das mais felizes comunidades que

 já vira, e até Miss Brinklow, sempre de olho atento a qual-quer sintoma de degradação paga, teve de reconhecer que

tudo tinha muito boa aparência, "na superfície". Sentiu alí-vio ao constatar que os nativos estavam "completamente"vestidos, muito embora as mulheres usassem calças chine-sas, justas no tornozelo, e o exame meticuloso a que sub-meteu um templo budista apenas revelou uns poucos obje-tos de duvidosa significação fálica. Explicou Tchang que otemplo tinha sacerdotes próprios, submetidos à fiscaliza-ção pouco exigente de Shangri-Lá, conquanto não perten-

 

cessem à mesma ordem. Disse que havia ainda na extremi-dade do vale um templo taoísta e outro dedicado a Confú-cio.

— O brilhante tem numerosas facetas — acrescentou

— e é possível que muitas religiões sejam moderadamenteverdadeiras.

— Concordo consigo neste ponto — disse Barnard,com convicção. — Nunca aprovei rivalidades sectárias.Tchang, você é um filósofo. Hei de guardar na lembrançaessa sua frase: "Muitas religiões são moderadamenteverdadeiras". Imagino que vocês lá em cima devam ser uns

 

grandes sábios, para terem descoberto tal coisa. E têm ra-zão, disto estou absolutamente certo.

— Mas nós — respondeu Tchang com ar sonhador— estamos apenas moderadamente certos.

Miss Brinklow não deu importância a estas coisas,que lhe pareciam ser apenas sinais de indolência. Preocu-pava-se, todavia, com uma idéia que lhe viera ao espírito.

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— Quando regressar — articulou com os lábios aper-tados —, pedirei à minha sociedade que mande um mis-sionário aqui. E se alegarem as despesas, teimarei com elesaté que concordem.

Isto, sem dúvida, revelava um espírito muito mais são,e até Mallinson, que simpatizava pouco com as missões

estrangeiras, não pode conter a sua admiração.— Deviam enviar a senhora. Isto é, se um lugar as-sim lhe agradasse, naturalmente.

— Não se trata de saber se agrada ou não — retor-quiu Miss Brinklow. — Como poderia alguém gostar distoaqui? Mas trata-se de um dever a cumprir.

— Creio — disse Conway — que, se eu fosse missio-nário e tivesse de escolher, preferiria este lugar a muitos.

— Neste caso — atalhou Miss Brinklow —, é evi-dente que não haveria mérito algum.

— Mas eu não estava pensando no mérito.— Maior lástima, então. Não há virtude em fazermos

uma coisa porque nos agrada. Veja este povo aqui!— Parecem ser muito felizes.— Exatamente — respondeu ela, com certa violência.

E continuou: — Em todo caso, não vejo razão para quenão comece desde já por aprender a língua. Pode empres-tar-me algum livro de estudo, Mr. Tchang?

Tchang assumiu o seu ar mais melífluo.— Mas certamente, minha senhora, com o maior pra-

zer. E se me permite dizê-lo, acho a idéia excelente.Nessa mesma tarde, quando subiram para Shangri-Lá,

tratou o assunto como sendo de importância imediata. A

princípio, Miss Brinklow intimidou-se um pouco diante domaciço volume compilado por um laborioso alemão do sé-culo XIX — imaginara, provavelmente, uma obra mais le-

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ve, uma espécie de O Tibetano sem Mestre —, mas, com oauxílio do chinês e encorajada por Conway, atacou reso-lutamente a tarefa e não tardou a tomar-lhe gosto. 

Conway, por seu lado, encontrava muita coisa em que

se interessar, afora o avassalante problema que impusera asi mesmo. Durante os dias tépidos de sol dedicou-se à bi-blioteca e à sala de música, confirmando-se nele a impres-são de que a cultura dos lamas era deveras excepcional.Em todo caso, o seu gosto em matéria de livros era univer-

 

sal; Platão em grego vizinhava com Ornar Khayyam eminglês; Nietzsche era companheiro de Newton; encon-travam-se ali Thomas Moore, bem como Hannah Moore,George Moore e até o velho John Moore. Calculou o nú-mero total de volumes entre vinte ou trinta mil; e era inte-ressante fazer conjeturas sobre o sistema de seleção e aqui-

 

sição. Procurou também descobrir de quando datavam as

últimas aquisições; nada achou, contudo, mais recente queuma edição barata de Im Westen nichi Neues. Todavia, du-rante uma visita subseqüente, disse-lhe Tchang que ha-viam chegado outros livros publicados até meados de1930, e estes a seu tempo viriam para as estantes.

— Como vê, estamos razoavelmente em dia —  a-crescentou. 

— Certas pessoas dificilmente concordariam com osenhor — respondeu Conway sorrindo. — Como sabe, deum ano para cá ocorreu muita coisa no mundo. 

— Nada de importância, meu caro senhor, que nãopudesse ter sido previsto em 1920 ou que não possa sermelhor compreendido em 1940. 

— Não lhe interessam então os aspectos mais recen-tes da crise mundial?

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— Interessar-me-ão profundamente. . . no devidotempo.

— Sabe, Tchang, que estou começando a compreen-dê-los? São constituídos de maneira diferente, aí está; paraos senhores, o tempo tem muito menos importância do quepara a maioria das pessoas. Se eu estivesse em Londres,

nem sempre me interessaria um jornal da hora, assim comoaqui, em Shangri-Lá, não têm grande ansiedade de ler um

 

 jornal do mesmo ano. Ambas as atitudes me parecem per-feitamente assisadas. Por falar nisso, há quanto tempo nãoaparecem visitantes aqui?

— Infelizmente, Mr. Conway, não lho posso dizer.Era o costumeiro ponto final na conversa, e Conway o

achava menos irritante do que o fenômeno oposto, quemuito o fizera sofrer no seu tempo — a conversa que, pormais que a gente deseje, parece nunca ter fim. Começou aafeiçoar-se a Tchang, à medida que os seus colóquios semultiplicavam, embora estranhasse encontrar tão poucas

pessoas no convento; mesmo na suposição de que os lamasfossem inacessíveis, não haveria outros aspirantes além deTchang?

 

Havia, sem dúvida, a jovem manchu. Via-a de vez emquando na sala de música; ela, porém, não sabia inglês eConway até então não quisera revelar os seus conheci-mentos de chinês. Não poderia dizer se ela tocava unica-mente por prazer ou se de fato estudava. Sua música, comoaliás todo o seu procedimento, era refinadamente conven-cional, e escolhia sempre peças já consagradas — as com-posições de Bach, Corelli, Scarlatti e por vezes Mozart.Preferia o cravo ao piano, mas quando Conway se sentavaao piano escutava-o com atenção séria e quase obediente.Era impossível saber o que tinha na mente; difícil adivi-nhar-lhe a idade. Duvidava que tivesse mais de trinta ou

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menos de treze anos; e contudo — coisa curiosa — ne-nhuma dessas improbabilidades manifestas podia ser eli-minada como totalmente impossível.

Mallinson, que vinha às vezes ouvir música na faltade ocupação melhor, via nela um desnorteante problema.

— Não posso saber o que essa pequena faz aqui —

disse a Conway mais de uma vez. — Esta vida de mosteiropode ser muito boa para um velho como Tchang; mas que

 

atrativo oferece a uma moça? Quisera saber há quantotempo está aqui.

— Esta mesma pergunta tenho feito a mim mesmo,mas é uma coisa que jamais saberemos, decerto.

— Você acredita que lhe agrade isto aqui?— Sou forçado a dizer que ao menos não parece de-

 

sagradar-lhe.

 

— Dá a impressão de "não ter sentimentos de espéciealguma, se formos a isso. Mais parece uma boneca de mar-fim do que um ser humano.

— Uma encantadora semelhança, em todo caso.— Sim, até certo ponto.Conway sorriu.— E pensando bem, Mallinson, é o quanto basta. A-

final de contas, a boneca de marfim tem boas maneiras,bom gosto no vestir, aspecto atraente, toca cravo commãos de fada e não anda numa sala como se estivesse jo-gando hóquei. Na Europa ocidental, se bem me lembro,

 

não é comum encontrar essas virtudes reunidas numa mu-lher.

— Você é terrivelmente cínico no que toca às mulhe-res, Conway.

Conway estava habituado à acusação. Na realidade ti-vera muito pouco contato com o outro sexo, e durante asocasionais licenças nos postos de montanha, na Índia, a re-

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putação de cínico era tão fácil de manter como qualqueroutra. É verdade que havia mantido algumas deleitosas

 

amizades com mulheres, que de bom grado casariam comele se as tivesse pedido em casamento — mas não as pedi-da. Certa vez, foi quase ao ponto de anunciar no  MorningPost, mas a moça não queria viver em Pequim, nem ele em

Tunbridge Wells, mútuas relutâncias que foi impossívelvencer. Sua experiência com as mulheres tinha sido fortui-ta, intermitente e de certo modo inconclusiva. Mas, comtudo isso, não era cínico a respeito delas.

— Eu tenho trinta e sete anos — disse rindo — e vo-cê tem vinte e quatro. Nisso consiste toda a diferença.

Houve uma pausa e Mallinson perguntou de repente:— A propósito, que idade você dá a Tchang?

 

— Qualquer — respondeu Conway sem hesitar —entre quarenta e nove e cento e quarenta e nove.

Tais conjeturas, entretanto, eram muito menos dignasde confiança do que outras informações ao alcance deles.

 

O fato de nem sempre lhes ser satisfeita a curiosidade ti-nha por efeito obscurecer a quantidade realmente grandede dados que Tchang estava sempre disposto a fornecer.Por exemplo, não se faria nenhum segredo em torno dosusos e costumes da população do vale, e Conway, que es-tava interessado em conhecê-los, obteve informações que

 

dariam para compor uma boa tese de formatura. Como es-tudioso de política, interessava-lhe principalmente a formapor que era governado o vale. Vigorava ali, segundo cons-tatou, numa espécie de autocracia bastante folgada e elás-tica, exercida pelo mosteiro com uma benevolência quasenegligente. Era um regime bem sucedido e muito sólido,

 

como ele tinha ocasião de verificar cada vez que descia

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àquele fértil paraíso. Intrigava-o o problema da manuten-ção da lei e da ordem, pois não parecia haver polícia nem

 

soldados. Contudo, devia por certo existir um meio de re-primir os incorrigíveis. A isto respondia Tchang que ocrime era muito raro, em parte porque só se consideravamtais as faltas graves, e também em parte porque cada um

possuía em quantia suficiente tudo o que pudesse desejar.Em último caso, os servidores do mosteiro tinham o poderde expulsar do vale os infratores — se bem que este casti-go, tido como extremo e terrível, fosse aplicado apenas delonge em longe. Mas o fator principal no governo do valeda Lua Azul, disse Tchang, era a preconização das boasmaneiras, fazendo-se sentir às pessoas que certas coisas"não se fazem" porque desqualificam quem as comete.

— É o mesmo sentimento que se inculca nas escolaspúblicas do seu país — disse Tchang —, mas não, receio,com relação às mesmas coisas. Por exemplo, os habitantesdo nosso vale cultivam o sentimento de que não se deve

ser hostil aos forasteiros, discutir com acrimônia ou querersobressair-se um ao outro. A simples idéia de divertir-secom o que os mestres de suas escolas chamam a guerrasimulada dos jogos esportivos lhes pareceria um barbaris-mo, uma excitação indecorosa dos instintos inferiores.

Indagou Conway se não disputavam por causa de mu-lheres.

— Só muito raramente, pois não consideram decoro-so tomar uma mulher desejada por outro homem.

 

— Mas suponhamos que um homem desejasse umamulher a tal ponto que pouco lhe importasse o decoro?

— Então, meu caro senhor, seria o caso de o outrolhe ceder, e quanto à mulher, as boas maneiras lhe aconse-lhariam aceitar a situação. O senhor se admiraria de ver

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como uma pequena dose de cortesia por parte de todos fa-cilita a solução dessa sorte de problemas.

Na verdade Conway, em suas visitas ao vale, encon-trava um espírito de boa vontade e contentamento que lhecausava tanto mais prazer porque, de todas as artes, sabiaser a do governo a que menos fora estudada e aperfeiçoada

até o presente. Entretanto, quando ele fez uma observaçãoelogiosa sobre este ponto, Tchang replicou:— Sim, mas como sabe, nós acreditamos que para

governar com perfeição é necessário não governar em de-masia.

— E contudo não possuem nenhuma instituição de-mocrática, como o voto, por exemplo?

— De modo algum. Nossa gente não gostaria de serforçada a apoiar uma política qualquer, considerada abso-

 

lutamente boa, em detrimento de outra, tida como absolu-tamente má.

Conway sorriu. Simpatizava com este ponto de vista.

Entrementes, Miss Brinklow encontrava satisfação noestudo do tibetano, Mallinson impacientava-se e resmun-gava, e Barnard persistia numa equanimidade que não dei-xaria de ser notável, ainda que fosse apenas simulada.

— Para dizer a verdade — observou Mallinson umdia —, o bom humor do sujeito está começando a mexer-me com os nervos. Compreendo que se esforce por encararas coisas com calma, mas irritam-me esses gracejos a res-peito de tudo. Se não tomarmos cuidado com ele, dentro

em pouco estará feito a alma e a vida do nosso grupo.Conway também se admirava da facilidade com que o

americano se aclimatara. E respondeu:

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— Não lhe parece que é uma felicidade para nós eleter tão bom gênio?

 

— Pessoalmente, acho isso muito esquisito. Que sabevocê a respeito desse cidadão, Conway? Quem é ele e oque faz?

— Não sei muito mais do que você. Disseram-me

que tinha vindo da Pérsia, onde andava à procura de petró-leo. É de seu natural levar as coisas em troça. Quando foi

 

da evacuação, custou-me convencê-lo de que era precisovir conosco. Só se decidiu quando eu lhe disse que umpassaporte americano não servia de escudo contra as balas.

— Por falar nisso, você viu alguma vez o tal pas-saporte?

— Provavelmente vi, mas não me lembro. Por quê?Mallinson pôs-se a rir.— Talvez não lhe pareça bem, mas a culpa não foi

minha propriamente. Além disso, dois meses de convívioneste lugar terão de pôr à mostra todos os nossos segredos,

se é que os temos. Note que foi simples acaso e eu nãocontei nada a ninguém, está visto. Não tencionava falar

 

nem mesmo a você, mas já que tocamos no assunto.. .

 

— É lógico. Mas eu desejaria saber de que se trata.— Simplesmente isto: Barnard viaja com um passa-

porte falso e o seu nome não é Barnard.Conway ergueu as sobrancelhas com um interesse

medíocre. O homem lhe era simpático até certo ponto, masnão lhe importava muito saber quem era e quem não era.

— Quem pensa você que ele possa ser, então?— É Charmers Bryant.— Ora esta! Que é que o leva a pensar semelhante

coisa?— Esta manhã deixou cair um livrinho de bolso e

Tchang entregou-mo, pensando que era meu. Não pude

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deixar de ver que estava abarrotado de recortes de jornal.Alguns caíram no chão enquanto eu examinava o livrinho,

 

e não se me dá de confessar que olhei para eles. Afinal decontas, recortes de jornais não são papéis particulares! To-dos tratavam de Bryant e das diligências da polícia paraencontrá-lo, e um deles traz um retrato que é Barnard em

pessoa, só com a diferença de ter bigode.— Mencionou isso a Barnard?— Não. Apenas lhe entreguei o objeto, sem nenhum

comentário.— De modo que tudo se baseia numa fotografia de

 jornal, identificada por você?— Sim, até agora é tudo.— Creio que eu não me atreveria a condenar alguém,

 

baseado em tão pouco. Naturalmente, é possível que vocêtenha razão. Não afirmo que ele não possa ser Bryant, tan-to mais que esse fato explicaria a sua satisfação em per-manecer aqui; com efeito, onde encontrar melhor esconde-

rijo?Mallinson pareceu levemente decepcionado com a se-

renidade do companheiro ante uma notícia que ele julgava

 

sensacional.— Então, que é que você pretende fazer a respeito?Refletiu Conway um instante e respondeu:— Não sei exatamente o que se possa fazer. Talvez

nada. Em fim de contas, que se poderá fazer num caso co-mo este?

— Mas, com o demônio, se ele é o tal Bryant. . .— Meu caro Mallinson, mesmo que se tratasse de

Nero em pessoa, que importância teria isso no momento?Santo ou bandido, temos de suportar-lhe a companhia en-quanto continuarmos aqui, e nada adianta tomar atitudes.Se estivéssemos em Baskul, eu procuraria comunicar-me

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com Delhi a seu respeito. Seria um simples dever público.Mas presentemente creio poder dizer que não estou de ser-viço.

— Não lhe parece que há nisso certa dose de in-cúria?

— Pouco me importa que haja, contanto que a atitude

seja razoável.— Deseja que eu esqueça o que descobri?

 

— Provavelmente isso não lhe é possível, mas pensoque devemos guardar segredo sobre o fato. Não em consi-deração a Barnard ou Bryant, ou quem quer que seja, maspara evitarmos uma situação extremamente embaraçosa,quando nos formos daqui.

— Quer dizer que devemos deixá-lo em liberdade?— Bem, eu me exprimiria de outro modo: acho que

devemos dar a outro o prazer de prendê-lo. Quando se vi-veu em boas relações com um homem por alguns meses,parece um tanto absurdo metê-lo em algemas tão depressa

se muda de lugar.— Não penso assim. Esse homem não passa de um

ladrão em grande escala. Conheço muitas pessoas que fo-

 

ram roubadas por ele.Conway deu de ombros. Não deixava de admirar o

simples código de Mallinson, todo em preto e branco. Essaética de escola pública pode ser rudimentar, mas ao menosé direita e franca. Quando um indivíduo viola as leis, é o-brigação de todos os cidadãos que as respeitam deitar-lhe amão e entregá-lo à justiça — sempre na hipótese de se tra-tar de uma dessas leis que não é permitido violar. E a leirelativa a cheques sem fundo, ações e balanços falsos ésem dúvida uma delas. Bryant a havia transgredido, e sebem que Conway não tivesse tomado grande interesse no

 

caso, tinha a impressão de que fora dos mais escabrosos.

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Tudo que sabia era que a falência da gigantesca empresaBryant em Nova York causara prejuízos que montavam a

 

cerca de cem milhões de dólares — uma quebra-recorde,mesmo num país onde pululam os recordes. De uma manei-ra ou de outra (Conway não era entendido em finanças),Bryant fizera trampolinagens em Wall Street e o resultado

fora uma ordem de prisão contra ele, sua fuga para a Euro-pa e pedidos de extradição dirigidos a meia dúzia de países.

 

— Bem, se você quer ouvir o meu conselho — disseConway finalmente —, não diga nada por enquanto. Nãoem benefício dele, mas no nosso. Em todo caso, faça comoentender, contanto que não esqueça a possibilidade de nãoser ele o homem, afinal.

Mas era, e a revelação veio naquela mesma noite após

 

o jantar. Tchang se retirara. Miss Brinklow voltara à sua

 

gramática tibetana e os outros três exilados se defronta-vam, fumando charutos e sorvendo cafezinhos. Não fosse aamabilidade e o tato do chinês, a conversação teria esmo-

recido mais de uma vez durante a refeição. Ausente ele,penoso silêncio sobreviera. Pela primeira vez não estavaBarnard para gracejos. Bem sabia Conway que não era

 

possível a Mallinson tratar o americano como se nada hou-vera acontecido, e era do mesmo modo evidente que Bar-nard percebia ter-se passado alguma coisa.

Súbito, o americano jogou fora o charuto e disse:— Suponho que os senhores saibam quem sou.Ficou Mallinson vermelho como uma virgem, mas

Conway respondeu com a mesma serenidade:— Sim, Mallinson e eu julgamos saber.— Imperdoável descuido, ter deixado cair aqueles re-

cortes.— Todos nós estamos sujeitos a cometer descuidos.

 

— Ainda bem que toma a coisa com calma!

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Houve novo silêncio, quebrado afinal pela voz agudade Miss Brinklow.

— Quanto a mim, não sei quem é o senhor, Mr. Bar-nard, mas devo dizer que suspeitei que estivesse viajandoincógnito.

Miraram-na os outros interrogativamente e ela conti-

nuou:— Lembro-me de que, quando Mr. Conway disse queos nossos nomes iriam aparecer nos jornais, o senhor res-pondeu que isso não o afetava nem um pouco. Refleti en-tão que com certeza Barnard não era o seu verdadeiro no-me.

O aventureiro sorriu vagarosamente enquanto acendiaoutro charuto.

— A senhora — disse afinal — não só mostra ser umbom detetive, como também encontrou um termo verda-deiramente polido para designar a minha situação presente.Estou viajando incógnito. A senhora o disse, e é verdade.

Quanto aos amigos, não lamento, em certo sentido, que te-nham descoberto tudo. Enquanto não desconfiavam de na-da as coisas marchavam bem, mas em vista da situação em

 

que nos achamos seria falta de camaradagem engrimpar-me com os senhores agora. Foram tão gentis para mim quenão lhes quero dar incômodos. Pelo modo, os nossos des-tinos estão ligados por algum tempo, e convém que cadaum faça o possível para ajudar os outros. Quanto ao que

 

vier a acontecer depois, podemos deixar que tudo se resol-va por si mesmo, acho eu.

Tudo isto se afigurou a Conway tão altamente sensatoque passou a olhar Barnard com muito mais interesse e até— embora parecesse talvez estranho em tal momento —com um toque de genuína admiração. Era curioso pensar

 

que esse homem, grande e corpulento, bem-humorado, de

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expressão paternal, era o mais formidável escroque domundo. Mais aparentava o tipo de indivíduo que, com cer-ta instrução, daria um excelente diretor de liceu. Sob a sua

 jovialidade vislumbravam-se os sinais de tensão nervosa erecentes preocupações, mas nem por isso ela parecia for-çada. Evidentemente, era o que o mundo chama "um bom

sujeito" — cordeiro por natureza, e só por profissão umlobo.— Sim, penso que é o melhor que temos a fazer —

disse Conway.Barnard pôs-se a rir. Era como se possuísse reservas

mais profundas de bom humor, às quais somente agora pu-desse dar vazão.

— Caramba, que coisa extraordinária! — exclamou,estirando-se na cadeira. — Refiro-me a toda essa história.Atravessei a Europa, passei pela Turquia e pela Pérsia evim parar naquele buraco. E todo o tempo com a políciano meu encalço, notem bem... por pouco não me apanha-

ram em Viena! A princípio é bastante divertido estar sendoperseguido, mas cansa os nervos depois de algum tempo.

 

Afinal descansei um pouco em Baskul, e ali pensei que fi-caria em paz no meio da revolução.

— Por certo que ficaria — aparteou Conway, comum sorriso —, se não fossem as balas.

— Sim, e foi isso que acabou por me inquietar. Po-dem crer que foi uma escolha bem difícil: ficar em Baskule correr o risco de levar chumbo, ou embarcar num aviãodo seu governo e encontrar um par de algemas à minha es-pera, na chegada. Não tinha muita vontade de fazer nemuma nem outra coisa.

— Sim, lembro-me de que não queria vir.Barnard tornou a rir.— Bem, pois foi assim, e como bem podem imaginar,

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não me contrariou muito o acidente que nos trouxe aqui.Esse vôo continua a ser um mistério de primeira ordem,mas para mim, falando pessoalmente, não poderia havercoisa melhor. Não tenho o hábito de me queixar quandoestou satisfeito.

O sorriso de Conway fez-se mais acentuadamente

cordial.— Uma atitude muito razoável, se bem que me pare-ça ter exagerado um pouco. Estávamos começando a ficarintrigados com o seu contentamento excessivo.

— Estava de fato contente. Este lugar não é mau,uma vez que a gente se acostume a ele. É verdade que o aré um pouco picante a princípio, mas não se pode ter tudocomo se quer. E, para variar, é muito sossegado. Todos os

 

outonos vou fazer uma cura de repouso em Palm Beach,mas a gente não encontra descanso nesses lugares. Conti-nua-se na mesma roda-viva. Ao passo que estou certo deter achado aqui justamente o que o médico me aconse-

lhava, e me sinto radiante. Mudei de regime, não me preo-cupo com as cotações da bolsa e o meu corretor não me

 

pode chamar ao telefone.— Bem que ele deve desejar fazê-lo!— Não duvido. Há de estar com uma boa bota para

descalçar!Disse isto com tanta simplicidade que Conway não

pôde deixar de responder:— Não sou muito entendido nisso que se chama a al-

ta finança.Era uma deixa, e o americano a apanhou sem

relutância.— A alta finança — disse ele — é quase tudo faro-

lagem.

 

— É o que tenho suspeitado muitas vezes.

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— Olhe, Conway, dir-lhe-ei como é a coisa. Um ca-marada continua fazendo o que fez durante anos e o quemuitos outros também fazem, quando de repente o merca-do se vira contra ele. Não pode remediar a coisa, só lheresta ganhar coragem e esperar pela volta. Mas desta vez avolta não vem na forma do costume, e depois de perder

dez milhões de dólares ele lê num jornal que um professorsueco é de opinião que o fim do mundo está próximo. A-gora eu pergunto, você acredita que uma coisa dessas aju-de o mercado? É claro que o abalo é grande, mas tambémnão pode ser evitado. E lá fica o sujeito até que venha apolícia... se ele esperar tanto tempo. Eu não esperei.

— Quer dizer, então, que foi simples má sorte?— Bem, o fato é que minha perda foi grande.

 

— E perdeu também o dinheiro de muita gente — a-

 

talhou Mallinson, com aspereza.— Sim. E por quê? Porque todos eles queriam ganhar

dinheiro sem trabalho e não tinham inteligência bastante

para fazê-lo por si mesmos.— Não concordo. É porque confiavam no senhor e

acreditavam que o dinheiro deles estivesse seguro.

 

— Pois bem, não estava. Nem podia estar. Não existesegurança em parte alguma, e os que pensavam assim nãopassavam de imbecis, procurando abrigar-se de um tufãodebaixo de um guarda-chuva.

Conway interveio, conciliador:— Todos nós concedemos que o senhor não podia e-

vitar o tufão.— Nem sequer pude fingir que lutava, da mesma

forma como você não pôde opor-se ao que aconteceu de-pois que deixamos Baskul. Foi o que me veio ao pensa-mento quando o vi conservar toda a calma no aeroplano,enquanto aqui o Mallinson não se podia conter. Como sa-

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bia que nada podia fazer, não se preocupou mais. Foi exa-tamente o que se deu comigo quando veio o crash. 

 

— Isto é um contra-senso! — gritou Mallinson. —Qualquer pessoa pode evitar de lograr outra. Basta obede-cer às regras do jogo.

— É difícil obedecer às regras do jogo quando ele vai

por água abaixo. Além disso, não há ninguém que conheçatais regras. Nem mesmo todos os professores de Harvard e

 

de Yale lhe poderiam dizer quais são elas.Mallinson replicou desdenhosamente:— Estou-me referindo às simples normas que regem

a conduta na vida ordinária.— Nesse caso, acho que a conduta ordinária não se

aplica à direção de trustes.

 

Conway apressou-se a intervir.— É melhor não discutir. Quanto a mim, não levo a

mal que faça comparação entre as suas ocupações e as mi-nhas. Na verdade, ultimamente temos voado às cegas, e is-

so em todos os sentidos. Mas agora estamos aqui, e é o queimporta por enquanto. Concordo com o senhor em que nãotemos muito motivo de queixa. Pensando bem, é curiosoque, de quatro pessoas reunidas pelo acaso e seqüestradasa mil milhas de distância, três acabem por encontrar algu-ma satisfação na aventura. O senhor precisava de uma curade repouso e de um refúgio; Miss Brinklow sente-se cha-mada a evangelizar os pagãos do Tibete.

 

— E qual a terceira pessoa? — atalhou Mallinson. —Espero que não seja eu.

— Incluí a mim próprio — respondeu Conway —, eo meu motivo é, talvez, o mais simples de todos: estougostando daqui.

Pouco tempo depois foi fazer o seu passeio noturno esolitário, que se tornara habitual, ao longo do terraço ou

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 junto ao lago dos lotos. Sentia extraordinário bem-estar fí-sico e mental. Era a pura verdade: ele gostava de Shangri-

 

Lá. A atmosfera ali o aquietava, ao passo que o mistério oestimulava e a sensação resultante era agradável. Duranteos últimos dias viera aproximando-se gradualmente, àstentativas, de uma conclusão a respeito do mosteiro e dos

habitantes do vale. Ela lhe trabalhava ainda o espírito, semde nenhum modo o perturbar. Era qual um matemático àsvoltas com um problema abstruso: preocupava-se com es-te, mas de um modo calmo e impessoal.

Com relação a Bryant, a quem resolvera continuar aconsiderar como Barnard e chamá-lo por este nome, aquestão de suas aventuras e de sua personalidade fora rele-gada sem demora ao segundo plano, exceto esta frase pro-

 

nunciada por ele: "o jogo vai por água abaixo". Recordan-

 

do-a, Conway lhe conferia uma significação mais amplado que lhe dera provavelmente o americano. Não era ver-dadeira somente em relação aos bancos e trustes da Amé-

rica do Norte. Também se ajustava a Baskul, a Delhi e aLondres, às guerras e ao desenvolvimento do império, aos

 

consulados, às concessões comerciais e aos jantares de re-

 

cepção nos palácios de governo. Havia um relento de de-composição naquele mundo distante e talvez a queda deBarnard houvesse sido, apenas, mais bem dramatizada doque a sua. O jogo, indubitavelmente, ia por água abaixo,mas por sorte os jogadores não eram, de ordinário, respon-

 

sabilizados pelas peças que não conseguiam salvar. Nesseponto, os financeiros eram mais infelizes.

Aqui em Sangri-Lá, porém, tudo estava mergulhadoem profunda tranqüilidade. No céu sem lua as estrelas cin-tilavam em massa e um pálido clarão azulado nimbava ocume do Karakal. Veio então ao espírito de Conway que,se aparecessem carregadores para o levarem imediatamen-

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te dali, ele não ficaria de todo satisfeito com a supressãoda espera. E nem Barnard tampouco, pensou sorrindo inte-riormente. Na verdade, era divertido; e de súbito descobriuque ainda gostava de Barnard, ou não acharia divertidoaquilo. De certo modo, a perda de cem milhões de dólaresera demasiado grande para justificar a prisão de um ho-

mem; seria muito mais fácil se ele tivesse simplesmenteroubado um relógio. E afinal de contas, como era possível

 

a um homem perder cem milhões de dólares? Talvez ape-nas no sentido em que um ministro podia anunciar jovial-mente que "o haviam presenteado com a Índia".

Em seguida, tornou a pensar na volta. Imaginou alonga e dura viagem, e a chegada eventual ao bangalô dealgum plantador em Sikkim ou Baltistan — momento quedevia ser de delirante alegria, mas que provavelmente seriatambém de desencanto. Viriam então os primeiros apertosde mão e as primeiras apresentações; os primeiros goles navaranda do clube, as faces bronzeadas cercando-o com ex-

pressões de mal dissimulada incredulidade. Em Delhi teriasem dúvida entrevistas com o vice-rei e com o coman-dante-chefe; salamaleques de criados com turbantes; inter-mináveis relatórios que deveria preparar e remeter. Talvezaté voltasse à Inglaterra e para Whitehall; jogos no convésde um paquete da "Peninsular and Oriental"; a mão flácidade um subsecretário; entrevistas à imprensa; vozes agudas,zombeteiras, sensuais, de mulheres perguntando: "É verda-de mesmo, Mr. Conway, que esteve no Tibete?..." Dumacoisa não tinha dúvida: com a narrativa da aventura, teria

 jantares garantidos ao menos para toda uma estação. Mas...

e isso lhe agradaria? Lembrou-se da frase escrita por Gor-don nos seus últimos dias em Cartum: Preferiria viver co-mo dervixe no séquito do Mahdi a ter de sair para jantar

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todas as noites em Londres". A aversão de Conway eramenos definida — previa, apenas, que contar a sua históriano pretérito não só lhe causaria aborrecimento como o en-tristeceria um pouco.

De repente, no meio das suas reflexões, sentiu a apro-ximação de Tchang.

— Meu senhor — começou este, com um leve tom dealvoroço na voz baixa —, estou orgulhoso por lhe trazeruma notícia importante. . .

"De modo que os carregadores chegaram mesmo an-tes do tempo", foi o primeiro pensamento de Conway. Eraestranho que ainda há pouco estivesse pensando nisso.Sentiu o choque desagradável para o qual se havia prepa-rado.

— Bem? —fez ele.Tchang estava tão agitado quanto lhe era possível.— Meu caro senhor, eu o felicito. Sinto-me feliz ao

pensar que sou até certo ponto responsável pelo aconteci-mento . . . Foi depois de minhas constantes recomendaçõesque o Lama Superior tomou esta decisão. Ele deseja vê-loimediatamente.

Conway fixou nele um olhar ironicamente interroga-tivo.

— Está sendo menos coerente que de costume,Tchang. O que aconteceu?

— O Superior mandou chamá-lo.— Entendi. Mas por que tanta agitação?— Porque é uma coisa extraordinária e sem prece-

dentes. Até eu, que procurava apressar o encontro, não es-

perava que se desse tão já. Ainda não faz quinze dias quechegou, e está para ser recebido por ele! Jamais isto ocor-reu tão depressa!

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— Ainda estou um pouco confuso, sabe? Vou ver oseu Superior. . . isso percebo muito bem. Mas há algumacoisa mais?

— Então não é suficiente?Conway riu.— Mais que suficiente, asseguro-lhe. Não pense que

estou sendo descortês. É que me havia passado pelo espí-rito uma coisa muito diferente. . . Bem, não tem importân-cia. Naturalmente, me sentirei honrado e encantado em fa-lar com o cavalheiro. Para quando é a entrevista?

— Para agora. Mandou-me que viesse buscá-lo.— Mas não é um pouco tarde?— Não importa. Meu caro senhor, cedo irá com-

preender muitas coisas. E permita-me acrescentar que sin-to prazer em ver que esse intervalo, sempre tão incômodo,tenha chegado a termo. Acredite que me foi penoso ter delhe recusar informações tantas vezes. . . extremamentepenoso. Rejubilo-me por saber que de agora em diante es-sas desagradáveis reticências se tornarão desnecessárias.

— Você é um homem engraçado, Tchang — respon-deu Conway. — Mas vamos, não percamos mais tempo.Estou pronto e agradeço a sua delicadeza. Mostre-me ocaminho.

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CAPÍTULO VII

Guardava Conway uma aparência de calma, porém,no fundo, sentia uma ansiedade crescente enquanto acom-panhava Tchang pelos pátios desertos. Caso tivessem al-gum sentido as palavras do chinês, devia estar às portas deuma revelação. Breve iria saber se a sua teoria, ainda in-completa, era menos absurda do que parecia.

À parte isto, não restava dúvida de que a entrevistaprometia ser interessante. No seu tempo tivera encontroscom vários potentados originais. Sentira por eles um inte-resse desprendido e era, em geral, arguto nas suas aprecia-ções. Isento de embaraço, tinha a valiosa habilidade de di-

zer gentilezas em idiomas que conhecia muito pouco. Nocaso presente, porém, talvez o seu papel fosse apenas deouvinte. Notou que Tchang o estava conduzindo através de

 

salas que ainda não tinha visto, todas elas encantadoras àluz fosca das lanternas. Em seguida, uma escada de caracolos levou a uma porta em que o chinês bateu. Foi aberta porum tibetano, com tal presteza que Conway suspeitou esti-vesse o homem atrás dela, esperando-os. Essa parte domosteiro, pertencente a um andar superior, não revelavamenos bom gosto que o resto do edifício, mas o que mais acaracterizava era a atmosfera quente e seca ao extremo,como se todas as janelas se achassem hermeticamente fe-chadas e algum aparelho de aquecimento interno estivessefuncionando a toda pressão. A falta de ar aumentava à me-dida que avançavam, até que por fim Tchang se deteve di-

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ante de uma porta que, a julgar pela sensação física, bempoderia dar acesso a um banho turco.

— O Superior o receberá sozinho — murmurou T-chang.

Tendo aberto a porta para que Conway entrasse, fe-chou-a depois tão silenciosamente que a sua retirada foiquase imperceptível. Deteve-se Conway hesitante, respi-rando uma atmosfera que não só era abafada mas tambémsombria, de forma que foram necessários alguns segundospara que os seus olhos se habituassem à escuridão. Foi en-tão distinguindo, pouco a pouco, uma sala baixa, revestidade cortinas escuras e mobiliada simplesmente de mesa ecadeiras. Numa destas estava sentada uma pequena, pálidae enrugada figura, imóvel na sombra, dando a impressãode um quadro antigo e descolorido, em claro-escuro. Sefosse possível imaginar uma presença destituída de reali-

dade, ali estaria ela, revestida de uma dignidade clássicaque era mais emanação do que atributo. Conway notou

 

com curiosidade a sua própria percepção intensa de tudo

 

aquilo e perguntou consigo se seria digna de crédito, ousimples reação ao ambiente penumbroso e quente. Dava-lhe vertigens a mirada daqueles olhos antigos. Deu algunspassos à frente e estacou. O ocupante da cadeira tornou-seagora menos vago. conquanto não parecesse muito mais

 

concreto. Era um velhinho vestido à chinesa, e as amplaspregas da túnica lhe envolviam frouxamente o corpo exí-guo e emaciado.

— É o senhor Conway? — murmurou em excelenteinglês.

A voz era agradavelmente acariciadora e tocada de

 

uma melancolia suave que encheu Conway de estranha

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beatitude. . . embora o cético que havia nele estivessenovamente inclinado a atribuí-la à temperatura do apo-sento.

— Sou — respondeu. A voz continuou:— É um prazer conhecê-lo pessoalmente, Mr. Con-

way. Mandei chamá-lo porque pensei que seria bom

conversarmos um pouco. Tenha a bondade de sentar-se aomeu lado e nada receie. Sou um velho e nenhum mal possocausar a ninguém.

— É uma assinalada honra ser recebido pelo senhor— respondeu Conway.

— Agradeço-lhe, meu caro Conway. Chamá-lo-ei as-sim, de acordo com o costume inglês. Este momento, co-

 

mo já disse, é de grande prazer para mim. Tenho a vistafraca, mas, acredite-me, sou capaz de vê-lo em espírito tãobem como se o fizesse com os olhos. Espero que se tenhasentido bem em Shangri-Lá desde a sua chegada.

— Extremamente bem.— Isso me alegra. Tchang fez o melhor que pôde pe-

los senhores, sem dúvida. Para ele também tem sido umgrande prazer. Disse-me que o senhor lhe faz muitas per-guntas sobre a nossa comunidade e sua vida.

— De fato, essas coisas me interessam.— Pois, se pode dedicar-me um pouco de tempo, gos-

tarei de lhe dar uma breve notícia desta instituição.— Nada me agradaria mais.— Era o que eu pensava, e contava com isso. . . Mas

em primeiro lugar antes de começarmos a discorrer. . .Fez um levíssimo aceno com a mão e imediatamente,

graças a um sistema de comunicações que ficou sendo ummistério para Conway, entrou um criado a fim de prepararo elegante ritual do chá. Numa bandeja de laca foram co-

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locadas as taças de porcelana fina como casca de ovo, con-tendo um líquido quase incolor. Conway, que conhecia acerimônia, acompanhou-a com ar apreciativo.

— Então está ao corrente dos nossos costumes? —tornou a voz.

Obedecendo a um impulso que não pôde analisar nem

desejava reprimir, respondeu o hóspede:— Vivi alguns anos na China.— Não falou nisso a Tchang.— Não.— A que devo, então, a honra que me faz?Raramente se embaraçava Conway na explanação de

seus motivos de proceder, mas desta vez não lhe ocorriarazão alguma. Por fim replicou:

— Para ser sincero, não tenho a menor idéia, a não serque desejava dizê-lo ao senhor.

— A melhor das razões, certamente, para aqueles quese vão tornar amigos. . . Agora diga-me, não acha delicadoeste aroma? Os chás que se colhem na China são variadose ricos em fragrância, mas na minha opinião este, que é umproduto especial do nosso vale, não lhes fica atrás.

Conway levou a taça aos lábios e provou. O sabor eratênue, sutil e recôndito, o fantasma de um perfume a pairarsobre a língua.

— É realmente delicioso, e também completamentenovo para mim.

— Sim, como grande número de ervas do nosso vale,é único e precioso. Naturalmente, deve saborear-se commuito vagar, não só como sinal de reverência e carinho,

mas para que se extraia dele todo o prazer que comporta. Éuma lição famosa que aprendemos de Kou Kai Tchou, queviveu há cerca de quinze séculos. Quando chupava cana-

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de-açúcar, sempre hesitava em chegar à medula suculenta,porque, como explicava, "queria penetrar gradualmente naregião das delícias". Já estudou algum dos grandes clássi-cos chineses?

Respondeu Conway que conhecia ligeiramente unspoucos. Sabia que essa conversação alusiva continuaria, de

acordo com a etiqueta, até haverem terminado de beber ochá; mas isto estava longe de o irritar, não obstante sua

 

grande curiosidade de ouvir a história de Shangri-Lá. Ha-via nele, sem dúvida, um pouco da sensibilidade relutantede Kou Kai Tchou.

Finalmente foi dado o sinal, o criado surgiu e desapa-receu de modo tão misterioso como da primeira vez, e semmais preâmbulos o Lama Superior de Shangri-Lá pôs-se a

 

falar:— Deve estar familiarizado, meu caro Conway, com a

história do Tibete em suas linhas gerais. Fui informado porTchang de que fez largo uso da nossa biblioteca, e não du-

vido que tenha estudado os escassos mas muito interes-santes anais destas regiões. Deve ter verificado, pelo me-

 

nos, que o cristianismo nestoriano esteve muito difundidona Ásia durante a Idade Média e sua memória persistiumuito tempo após sua queda. No século XVII deu-se umarevivescência cristã, nascida na própria Roma e tendo porinstrumentos aqueles heróicos missionários jesuítas, cujas

 

viagens, se me permite a observação, formam uma leituramuito mais interessante do que as de São Paulo. Aos pou-cos a Igreja foi-se propagando sobre uma área imensa, e háum fato notável, ignorado por muitos europeus de hoje:durante trinta e oito anos existiu uma missão cristã emLassa. Não foi entretanto de Lassa, mas de Pequim, que noano de 1719 partiram quatro frades capuchinhos em buscados remanescentes da seita nestoriana que porventura ain-

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da existissem no interior do continente. "Viajaram muitosmeses na direção de sudoeste, passando por Lanchow e pe-

 

lo Koho-Nor, lutando com dificuldades que o senhor bempode imaginar. Três deles morreram em caminho, e oquarto não estava longe de seguir a mesma sorte quando,por acaso, deu com o desfiladeiro que até hoje é, pratica-

mente, a única via de acesso ao vale da Lua Azul. Aqui,com grande alegria e surpresa, encontrou uma população

 

amável e próspera que se apressou a aplicar o que sempreconsiderei a nossa mais antiga tradição: a hospitalidade pa-ra com os estranhos. Bem depressa recobrou a saúde e deuinício à sua missão. O povo era budista, mas escutou-o debom grado e ele obteve considerável êxito. Existia entãonesta mesma plataforma de pedra um velho convento la-maico, mas estava em plena decadência física e espirituale, como fosse aumentando a messe do capuchinho, conce-beu ele a idéia de instalar no mesmo sítio magnífico ummosteiro cristão. Sob a sua fiscalização, os velhos edifícios

foram reparados e em grande parte reconstruídos. Em1734, quando contava cinqüenta e três anos de idade, elepróprio começou a viver aqui.

 

"Permita agora que me alongue um pouco a respeitodesse homem. Chamava-se Perrault e era natural do Lu-xemburgo. Antes de se dedicar às missões no Extremo O-riente havia estudado em Paris, Bolonha e outras univer-sidades, e era uma espécie de erudito. Conservaram-sepoucos episódios da sua mocidade — sua vida nessa épocanão diferia muito da de outros jovens da sua idade e pro-fissão. Apreciava a música e as artes em geral, tinha espe-cial aptidão para as línguas, e antes de estar seguro da suavocação gozara todos os comuns prazeres mundanos. Era

 jovem quando se feriu a batalha de Malplaquet, e assim te-

 

ve contato pessoal com os horrores da guerra e da invasão.

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Era robusto; durante seus primeiros anos aqui, trabalhoucomo qualquer outro homem, cultivando o seu jardim e a-

 

prendendo com os habitantes do vale ao mesmo tempo quelhes ensinava. Descobriu jazidas de ouro no vale, mas nãoo tentaram; interessava-se muito mais pelas plantas e ervasdo lugar. Era humilde e de nenhum modo fanático. Censu-

rava a poligamia, mas não via razão para invectivar o gos-to que tinham pela baga do tangatse, à qual atribuíam pro-

 

priedades medicinais, mas que devia sua popularidade so-bretudo aos efeitos levemente narcóticos que tinha. Naverdade, o próprio Perrault tornou-se afeiçoado ao seu u-so. Tinha por hábito aceitar das culturas nativas tudo oque lhe ofereciam de agradável e inofensivo, dispensando-lhes em troca os tesouros espirituais do Ocidente. Não eraum asceta; apreciava as boas coisas do mundo e tinha ocuidado de ensinar aos seus conversos a arte culinária apar do catecismo. Quero que o senhor o veja como umhomem sincero, trabalhador, instruído, simples e entusias-

ta que, sem esquecer as suas funções sacerdotais, não sedesdenhava de vestir o avental de pedreiro e auxiliar naconstrução destas paredes que aqui vê. Foi, é claro, uma

 

obra cheia de imensas dificuldades, e que só o seu orgulhoe a sua pertinácia podiam levar a cabo. Digo orgulho, por-que este foi sem dúvida o motivo dominante no princípio— o orgulho da própria fé, o qual o decidiu a mostrar que,se Gautama podia inspirar a homens a construção de um

 

templo sobre a escarpa de Shangri-Lá, Roma não era ca-paz de menos.

"Mas, com o correr do tempo, era natural que essemotivo fosse cedendo lugar a outros mais serenos. Afinal,a emulação é mais própria dos espíritos jovens e Perrault,quando o mosteiro ficou completamente instalado, era já

 

entrado em anos. Deve ter presente no espírito que, a rigor,

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o seu procedimento não fora muito regular, embora se de-vam fazer certas concessões a uma pessoa cujos superiores

 

eclesiásticos se acham tão longe que a distância deve sermedida em anos de viagem. Mas o povo do vale e os pró-prios monges não tinham apreensões: amavam-no e obe-deciam-lhe, e à medida que passavam os anos iam apren-

dendo a venerá-lo. Costumava enviar relatórios periódicosao bispo de Pequim, mas muitos não chegaram até ele, e

 

como presumia que os mensageiros tivessem sucumbidoaos perigos da viagem, Perrault foi-se tornando avesso aque eles arriscassem suas vidas e nos meados do séculocessou de todo a prática. Algumas de suas primeiras men-sagens, entretanto, deviam ter chegado ao destino, e semdúvida surgiram suspeitas acerca da sua atividade, pois no

 

ano de 1769 um desconhecido trouxe uma carta escrita do-ze anos antes e chamando Perrault a Roma.

"Se o chamado chegasse sem atraso, encontrá-lo-ia jáum ancião de mais de setenta anos; sucedeu assim que,

com a demora, contava oitenta e nove quando o recebeu.Não era possível pensar numa longa viagem por monta-

 

nhas e planaltos; jamais teria resistido às rajadas ferozes e

 

aos frios terríveis desses desertos. Por conseguinte, enviouuma resposta cortês explicando a situação, mas ignora-sese a sua mensagem chegou a transpor as cordilheiras.

"De modo que Perrault permaneceu em Shangri-Lá,não propriamente desobedecendo às ordens superiores,mas porque lhe era materialmente impossível atendê-las.Fosse como fosse, estava muito velho e provavelmente nãotardaria que a morte viesse dar cabo dele e da sua insub-missão. Por esse tempo a instituição que fundara começavaa sofrer transformação sutil. Talvez fosse deplorável, masnão era realmente nada de espantar. Não seria lícito espe-rar que um homem só fosse capaz de extirpar para sempre

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os hábitos e tradições de uma comunidade. Não tinhacompanheiros ocidentais que lhe prestassem mão firmequando a sua principiava a fraquear, e talvez houvesse sidoum erro instalar o mosteiro num lugar onde viviam recor-dações tão antigas e tão diferentes. Seria pedir demasiado.Mas não seria pedir mais ainda, esperar que um velho, que

orçava pelos noventa anos, reconhecesse o seu próprio er-ro? Seja como for, Perrault não atinou com ele. Estava já

 

muito velho e era feliz. Seus discípulos lhe eram dedica-dos, embora lhe esquecessem os ensinamentos, e os habi-tantes do vale o contemplavam com tão reverente afeiçãoque ele lhes perdoava com facilidade crescente o retornoaos antigos costumes. Ainda era ativo e suas faculdadesconservavam excepcional lucidez. Com a idade de noventae oito anos iniciou o estudo dos escritos budistas que seuspredecessores tinham deixado em Shangri-Lá, e era inten-ção sua dedicar o resto da vida à composição de um livroatacando o budismo do ponto de vista da ortodoxia. Che-

gou a terminar o trabalho (nós temos o manuscrito comple-to), mas o ataque foi muito suave, pois nesse tempo já havia

 

atingido a conta redonda dum século, idade em que até as

 

mais profundas animosidades estão sujeitas a extinguir-se."Entrementes, como deve supor, tinham morrido mui-

tos de seus primitivos discípulos e, como poucos eramsubstituídos, o número dos que viviam sob as ordens dovelho capuchinho diminuía constantemente. De oitenta quechegara a somar, baixara para vinte, depois para uma dúziaapenas, a maioria deles também muito velhos. A vida dePerrault por esse tempo tornara-se uma serena espera dofim. Estava demasiado velho para adoecer ou para mos-trar-se rabujento; somente o sono eterno poderia reivindi-cá-lo agora, e ele não tinha medo. O povo do vale, com a

 

sua bondade, fornecia-lhe alimento e roupa, e a biblioteca

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lhe dava ocupação. Enfraquecera bastante, mas ainda tinhaenergia suficiente para cumprir as mais importantes ceri-

 

mônias do culto. O resto do dia tranqüilo, passava-o comseus livros, suas recordações e os suaves êxtases do narcó-tico. Seu espírito permanecia tão extraordinariamente lúci-do que ainda se abalançou a começar um estudo sobre cer-

tas práticas místicas a que os hindus dão o nome de ioga, eque se baseiam em vários métodos especiais de respiração.

 

Para um homem de tal idade a empresa bem poderia pare-cer arriscada, e a verdade é que pouco tempo depois, na-quele memorável ano de 1789, baixou ao vale a notícia deque Perrault estava finalmente às portas da morte.

"Ele jazia nesta sala, meu caro Conway, de onde po-dia ver pela janela a mancha branca que era, aos seus olhosbaços, o Karakal. Mas podia ver também com os olhos doespírito; podia imaginar aquela forma nítida e incompará-vel que meio século antes avistara pela primeira vez. E di-ante dele surgia também o estranho cortejo de suas muitas

experiências, os anos de viagem por desertos e montanhas,as grandes multidões das cidades ocidentais, o fragor e obrilho dos exércitos de Malborough. Seu espírito confina-ra-se numa calma branca como neve; estava pronto paramorrer, sentia-se alegre e desejoso da morte. Mandou virseus amigos e servidores e despediu-se de todos, depois,pediu-lhes que o deixassem só. Era nessa solidão, com ocorpo a consumir-se devagarinho e o espírito em plena be-atitude, que esperava entregar a alma. . . mas tal não acon-teceu. Jazeu durante muitas semanas sem fala e sem movi-mento, e então começou a viver de novo. Tinha cento e oi-

to anos."O murmúrio cessou por um momento, e a Conway,que apenas se movia, pareceu que o Lama Superior estive-

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ra traduzindo fluentemente um remoto e secreto sonho.Após um instante, ele recomeçou:

— Como todos aqueles que esperaram longo temponos umbrais da morte, Perrault tinha recebido a graça deuma visão de certa importância, para trazer consigo de vol-ta ao mundo; dessa visão falarei mais tarde. Por enquanto

desejo limitar-me ao seu procedimento, que foi na verdadenotável. Porque, em vez de ter uma convalescença inativa,

 

como seria de esperar, ele mergulhou sem demora numarigorosa autodisciplina, curiosamente combinada com ouso do narcótico. Narcótico e exercícios respiratórios —não parece um regime muito próprio para resistir à morte.Mas o fato é que quando morreu o último monge, em1794, Perrault ainda vivia.

"Seria quase motivo para sorrir, se houvesse alguémem Shangri-Lá com espírito suficientemente desabusado.O engelhado capuchinho, não mais decrépito do que eradoze anos atrás, perseverava na prática dum ritual secreto

que ele criara. Para a gente do vale, tornou-se logo um sermisterioso, um eremita dotado de poderes sobrenaturais evivendo solitário neste formidável penhasco. Mas persistiaainda a tradicional afeição por ele, e passaram a considerarum ato meritório e propiciador subirem a Shangri-Lá a fimde trazer-lhe um modesto presente, ou executar algum ser-viço manual que aqui fosse necessário. Perrault abençoavaa todos esses peregrinos, esquecendo, talvez, que eram o-

 

velhas perdidas e desgarradas. Porque agora o Te Deum Laudamus e o Om Mane Padme Hum eram ouvidos indis-tintamente em todos os templos do vale.

"À aproximação do novo século, a lenda desenvolveu-se num belo e fantástico folclore. Dizia-se que Perrault setornara um deus, e que fazia milagres e que em certas noi-

 

tes voava ao cume do Karakal para acender uma vela dian-

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te do céu. Há sempre um pálido clarão no alto da mon-tanha durante a lua cheia, mas não preciso afirmar-lhe quenem Perrault nem outro homem qualquer jamais a escala-ram. Faço menção disto, embora pareça desnecessário por-que há numerosos testemunhos pouco fidedignos de quePerrault podia fazer, e fazia, toda sorte de coisas impossí-

veis. Acreditava-se, por exemplo, que ele praticava a arteda autolevitação, de que tanto falam os estudos sobre o

 

misticismo budista. Mas a austera verdade é que ele tentouvárias experiências nesse sentido, sem nenhum êxito entre-tanto. Descobriu, contudo, que a decadência dos sentidosordinários pode ser compensada em certa medida pelo de-senvolvimento de outros; assim, adquiriu uma perícia tal-vez notável em telepatia, e, se bem não visasse a nenhumpoder específico de curar, a verdade é que a sua simplespresença auxiliava a cura em certos casos.

"O senhor há de querer saber como ele passava otempo durante aqueles anos inauditos. A atitude de Per-

rault pode ser definida dizendo-se que, como não morrerana idade normal, começou a sentir que não havia nenhum

 

motivo conhecido para que isso acontecesse em tal ou talépoca determinada do futuro. Havendo demonstrado já queera anormal, era-lhe tão fácil acreditar que a anormalidadepersistiria como que ela poderia ter fim a qualquer mo-mento. Assim sendo, começou a viver sem mais cogitar daiminência da morte, que por tanto tempo o havia preo-cupado; começou a viver como sempre desejara, sem queisso lhe tivesse sido possível senão raramente; porque con-servava no fundo, através de todas as vicissitudes, os gos-tos tranqüilos do estudioso. Sua memória era espantosa;parecia haver escapado às limitações físicas e atingido al-guma região superior, de imensa claridade; era como se

 

agora fosse capaz de aprender todas as coisas com mais

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facilidade do que tinha em seu tempo de estudante para a-prender uma coisa só. Naturalmente, não tardou a sentirfalta de livros, mas trouxera alguns consigo ao vir para cá,e talvez lhe interesse saber que havia entre eles uma gra-mática inglesa acompanhada de um dicionário e a traduçãode Montaigne por Florio. Munido desses poucos livros

pôs-se a trabalhar, conseguindo dominar as dificuldades doseu idioma, e ainda possuímos na nossa biblioteca o ma-nuscrito de um dos seus primeiros exercícios lingüísticos,uma versão para o tibetano do ensaio de Montaigne sobrea vaidade — certamente uma produção única.

Conway sorriu.— Teria interesse em vê-la algum dia, se fosse

possível.— Com o maior prazer. Era, como pode supor, uma

realização bem pouco prática, mas lembre-se de que Per-rault atingira uma idade que nada tinha de prática. Sentir-se-ia muito só sem uma tal ocupação — pelo menos até o

quarto ano do século dezenove, data que assinala um im-portante acontecimento na história da nossa instituição.

 

Foi então que chegou ao vale da Lua Azul, vindo da Euro-pa, outro estrangeiro. Era um jovem austríaco chamadoHenschell, que lutara contra Napoleão na Itália — um mo-ço de alta estirpe, possuidor de grande cultura e encantopessoal. Arruinado pelas guerras, atravessara a Rússia emdireção à Ásia, com a vaga intenção de refazer sua fortuna.

 

Seria interessante saber a maneira exata como alcançara oplanalto, mas ele próprio não fazia disso uma idéia muitoclara. Na verdade, estava quase a morrer quando aqui che-gou, tal qual Perrault quase um século antes. Mais uma vezteve Shangri-Lá ocasião de dispensar a sua hospitalidade, eo estrangeiro restabeleceu-se — mas aí cessa o paralelo.

 

Porque Perrault tinha vindo para pregar e converter, ao

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passo que Henschell tomou interesse imediato nas jazidasde ouro. Sua ambição principal era enriquecer e regressar à

 

Europa o mais cedo possível."Mas não regressou. Aconteceu uma coisa estranha —

embora tenha acontecido tantas vezes depois que talveznão devêssemos reputá-la tão estranha, afinal de contas. O

vale, com a sua quietude e absoluta isenção dos cuidadosmundanos, tentou-o a ir adiando sempre e sempre a parti-da, e um dia, depois de ouvir a lenda local, subiu a Shan-gri-Lá e teve o primeiro encontro com Perrault.

"Esse encontro foi histórico, no mais exato sentido dapalavra. Se bem que já um tanto alheado de sentimentoshumanos tais como a amizade e a afeição, Perrault era do-tado de uma grande benignidade, que foi para o moço co-

 

mo chuva para um solo abrasado. Não tentarei descreveras relações que se formaram entre ambos. Um tributava amaior adoração possível, enquanto que o outro comunica-va seus conhecimentos, seus êxtases e também o sonho

fantástico que se tornara para ele a única realidade restanteno mundo."

Sobreveio uma pausa, e Conway falou suavemente:— Perdoe-me a interrupção, mas não compreendi bem

o final.— Eu sei — respondeu com simpatia a voz sussur-

rante. — Seria na verdade notável se compreendesse. É umassunto que terei prazer em explicar antes que termine anossa entrevista; mas por ora, se me permite, circunscre-ver-me-ei a coisas mais simples. Eis um pormenor que lheinteressará: foi Henschell quem iniciou nossas coleções dearte chinesa, fazendo também as primeiras aquisições paraa biblioteca e para a sala de música. Empreendeu uma via-gem memorável a Pequim e trouxe o primeiro lote no ano

 

de 1809. Não tornou a sair do vale, mas foi ele quem con-

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cebeu o complicado e engenhoso sistema por meio do qualtem sido possível à comunidade obter do mundo exteriortudo de que necessita.

— Suponho que lhes seja fácil efetuar os pagamentosem ouro.

— Sim, temos a sorte de possuir depósitos desse me-

tal tão estimado em outras partes do mundo.— Tão estimado, que têm sido muito felizes por es-capar a uma invasão de exploradores.

O Lama Superior inclinou a cabeça, no mais singelogesto de assentimento. 

— Esse foi sempre, meu caro Conway, o receio deHenschell. Tomava o cuidado de evitar que alguns dos car-regadores que traziam livros e tesouros de arte se apro-

 

ximassem muito das jazidas; mandava-os deixar os volu-

 

mes a um dia de viagem daqui, para que a própria gente dovale fosse depois buscá-los. Ainda postava sentinelas quemantinham constante vigilância à entrada do desfiladeiro.

Mas pouco depois lembrou-se de um método mais fácil eseguro de defesa.

 

— Sim?A voz de Conway era cuidadosamente velada.— O senhor compreende, não era de temer a invasão

de um exército. Isso jamais seria possível, dadas as distân-cias e a natureza da região. O mais que se poderia esperarseria o aparecimento de alguns viajantes perdidos, que, a-

 

inda que tivessem armas, chegariam provavelmente tão ex-tenuados que não constituiriam perigo algum. Ficou poisdecidido que, de futuro, os forasteiros poderiam vir quandobem entendessem — mas com uma condição importante.

"E, durante muitos anos, vieram com efeito tais foras-teiros. Mercadores chineses, tentados a fazer a travessia doplanalto, deparavam por vezes, casualmente, com esta pas-

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sagem entre tantas outras. Tibetanos nômades, desgarradosde suas tribos, chegavam aqui de quando em quando, co-

 

mo animais esgotados. Todos eram bem-vindos, emboramuitos só alcançassem o abrigo do vale para morrer. Noano da batalha de Waterloo três missionários ingleses, quese dirigiam a Pequim por terra, cruzaram a cordilheira por

uma passagem desconhecida e tiveram a felicidade extra-ordinária de chegar calmamente, como se viessem em visi-

 

ta. Em 1820 um negociante grego, acompanhado de cria-dos doentes e famintos, foi encontrado moribundo no sítiomais alto do desfiladeiro. Em 1822 três espanhóis, que ti-nham ouvido falar vagamente em ouro, chegaram aqui de-pois de muitos descaminhos e desilusões. E de novo, em1830, houve um largo afluxo de gente. Dois alemães, um

 

russo, um inglês e um sueco fizeram a perigosa travessia

 

dos Tian-Shans, impelidos por um motivo que se foi tor-nando cada vez mais comum: a exploração científica. Aotempo da sua vinda, tinha-se dado uma ligeira modificação

na atitude de Shangri-Lá para com os visitantes: não eramapenas bem recebidos quando tinham a sorte de encontraro caminho do vale, como também se tornou hábito ir aoseu encontro se se aventuravam dentro de certo raio. Tudoisso, por uma razão de que tratarei mais adiante; mas oponto é de importância, por mostrar que a comunidade dei-xara de ser indiferente na sua hospitalidade. Precisava ago-ra de novos elementos e os desejava. E, com efeito, nos

 

anos que se seguiram aconteceu que mais de uma expedi-ção de exploradores, fascinados pelo primeiro e distantevislumbre do Karakal, encontrou mensageiros que lhestransmitiam cordial convite raras vezes recusado.

"Durante esse tempo o mosteiro foi adquirindo muitasde suas atuais características. Devo acentuar que Henschellera excepcionalmente capaz e talentoso, e que o Shangri-

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Lá de hoje lhe deve tanto quanto ao seu fundador. Sim,tanto ou mais, penso muitas vezes. Porque foi ele a mãofirme, embora suave, de que toda instituição necessita emcerta fase do seu desenvolvimento, e a perda desse homemteria sido irreparável se não houvesse completado a sua ta-refa quase sobre-humana antes de morrer."

Conway alçou a cabeça, mais para ecoar esta últimapalavra do que para interrogar:

 

—  Morreu!— Sim. Foi muito repentino. Mataram-no. Isso acon-

teceu no ano da revolta dos cipaios. Pouco antes da suamorte um artista chinês desenhou-lhe o retrato, e possomostrar-lho agora — está na sala.

Fez novamente aquele leve gesto de mão, e uma vez

 

mais entrou o criado. Como um espectador hipnotizado,Conway viu o homem afastar uma cortinazinha no fundoda sala e acender uma lanterna que ficou a oscilar no meiodas sombras. Depois ouviu o murmúrio que o convidava a

aproximar-se — o murmúrio que já se lhe tornara músicafamiliar.

Levantou-se, tropeçando, e caminhou para o trêmulo

 

círculo de luz. O desenho era pequeno, pouco mais queuma miniatura em tintas coloridas, mas o artista conse-guira dar aos tons de carne uma delicadeza de figura de ce-ra. As feições eram de grande beleza, quase femininas, eConway sentiu-se fortemente atraído por elas, não obstanteas barreiras do tempo, da morte e do artifício. O mais es-tranho de tudo, porém, era uma particularidade que ele sónotou depois da primeira arfada de admiração: o rosto erao de um homem jovem.

Afastando-se um pouco, tartamudeou:— Mas... o senhor tinha dito... que esse retrato foi

feito pouco antes da morte dele?

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— Sim. Está muito parecido.— Mas, se ele morreu no ano que disse. . .— Morreu.— E veio para cá em 1803, segundo contou, quando

era jovem?— Sim.

Esteve Conway um momento sem falar. Fez então umesforço e perguntou:

 

— E morreu assassinado, como ia dizendo?— Sim. Foi ferido a bala por um inglês, poucas se-

manas após a chegada deste a Shangri-Lá. Era um dos taisexploradores.

— E qual foi a causa?— Houve um desentendimento a respeito de certos

carregadores. Henschell acabava de informá-lo sobre a

 

importante condição a que estava sujeita a nossa hospitali-dade. É uma missão algo difícil e desde então, a despeitoda minha debilidade, vejo-me obrigado a cumpri-la

pessoalmente.O Lama Superior fez outra pausa mais longa, e havia

 

um quê de interrogação no seu silêncio. Finalmente pros-

 

seguiu:— Talvez, meu caro Conway, esteja perguntando a si

mesmo qual poderá ser essa condição.Conway respondeu pausadamente e em voz baixa:— Penso que já adivinhei.

 

— Deveras? E, depois de ter ouvido esta minha longae curiosa história, não adivinha também outra coisa?

Sentiu-se Conway aturdido enquanto procurava umaresposta. A sala era agora um remoinho de sombras, tendono centro aquele ancião benevolente. Escutara a narrativacom uma atenção que o impedira, talvez, de perceber tudo

 

o que ela implicava. Agora que procurava uma expressão

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adequada, mergulhava em assombro e a certeza que se iaconcretizando no seu espírito relutava em manifestar-sepor palavras.

— Parece impossível — balbuciou. — E contudo,não posso deixar de pensar nisso. . . é espantoso, extraor-dinário... de todo incrível. . . e todavia não está absoluta-

mente fora da minha capacidade de acreditar. . .— O que, meu filho? E Conway respondeu, sacudido por uma emoção para

a qual não encontrava nenhum motivo e que não procuravaocultar:

— Que o senhor ainda está vivo, Padre Perrault! 

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CAPÍTULO VIII

Seguiu-se um silêncio obrigatório, em razão de ter o

 

Lama Superior pedido mais chá. Conway não estranhou is-to, pois devia ser considerável a fadiga causada por tãolonga narrativa. Ele próprio se sentia grato por esse inter-valo de repouso. Compreendia que ele era desejável sobtodos os pontos de vista, inclusive o artístico; os sorvos dechá, com o seu acompanhamento de cortesias convencio-nalmente improvisadas, preenchiam a mesma função da

 

cadência na música. Esta reflexão fez surgir (a não ser quese tratasse de mera coincidência) um curioso exemplo dospoderes telepáticos do Lama Superior, pois este começou

imediatamente a falar de música, dizendo alegrar-se com ofato de os gostos musicais de Conway não ficarem de todo

 

insatisfeitos em Shangri-Lá. Respondeu Conway com ade-

 

quada polidez e mencionou a sua surpresa por ver que acomunidade possuía tão rica coleção de compositores eu-ropeus. O elogio foi agradecido entre vagarosos sorvos dechá.

— Ah! meu caro Conway, temos a fortuna de contarentre nós um músico talentoso — foi mesmo aluno deChopin —, e somos felizes em lhe confiar a direção donosso salão de música. Precisa conhecê-lo.

— Estimaria muito. A propósito, disse-me Tchangque o seu compositor ocidental preferido é Mozart.

— É verdade. Mozart possui uma elegância austera

 

que muito nos satisfaz. Constrói uma casa que não é dema-

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siado grande nem demasiado pequena, e a mobília com umbom gosto perfeito.

 

Prosseguiu a troca de comentários até que vieram tirara mesa. Já então se achava Conway em estado de observarcalmamente:

— De modo que, para voltar à nossa conversa ante-

rior, o senhor pretende reter-nos aqui? Esta, suponho, é acondição importante e invariável a que se referiu?

 

— Sua suposição é certa, meu filho.— E vamos realmente ficar aqui para sempre?— Preferiria empregar o seu excelente idiomatismo

inglês, dizendo que todos nós permanecemos aqui  for go-od, para o bem.

— O que me intriga é o fato de, entre todos os habi-

 

tantes da Terra, termos sido nós quatro os escolhidos.Voltando à sua maneira anterior, mais discursiva, res-

pondeu o Superior:— É uma história intricada, como verá se se der ao

trabalho de ouvi-la. Deve saber que sempre procuramos,tanto quanto possível, manter o nosso número por meio deum recrutamento constante — pois que, além de outrosmotivos, é agradável ter entre nós pessoas de diversas ida-des e representativas de diferentes épocas. Infelizmente, apartir da última guerra européia e da revolução russa, asviagens ao Tibete e as explorações desta parte do globo fo-ram quase completamente interrompidas. Com efeito, nos-so último visitante, um japonês, chegou em 1912 e não foi,para ser franco, uma aquisição muito valiosa.Compreende, meu caro Conway, nós não somos imposto-res nem charlatães. Não damos nem podemos dar garantiasde êxito. Alguns dos nossos visitantes não obtêm nenhumbeneficio com sua permanência aqui. Outros somen-te alcançam o que se pode chamar uma idade normalmen-

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te avançada e morrem em conseqüência de algum mal in-significante. Descobrimos que, de um modo geral, os tibe-

 

tanos, por estarem habituados tanto à altitude como a ou-tras condições, são muito menos sensíveis do que os indi-víduos de outras raças. É uma gente encantadora, e admi-timos muitos deles, mas duvido que ultrapassem, a não ser

bem poucos, a idade de cem anos. Os chineses são umpouco superiores, mas mesmo entre eles há uma porcenta-gem elevada de fracassos. Os nossos melhores objetos deexperiência são os nórdicos e os latinos da Europa; talvezos americanos não fossem menos adaptáveis, e considerouma grande ventura termos finalmente entre nós, na pessoade um de seus companheiros, um cidadão daquele país.Mas devo prosseguir na resposta à sua pergunta. Como vi-

 

nha explanando, a situação era esta: havia já três décadas

 

que não chegava nenhum visitante; e, como durante essetempo haviam ocorrido muitos falecimentos, criou-se umproblema. Entretanto, poucos anos faz, um dos nossos a-

presentou uma idéia original. Era um moço, natural do va-le, merecedor de absoluta confiança e completamente i-

 

dentificado com os nossos ideais. Mas, como a todos oshabitantes do vale, privava-o a própria natureza das vanta-gens concedidas aos que vêm de outras terras. Ofereceu-separa nos deixar, demandando algum país vizinho, a fim deangariar novos colegas por um processo que teria sido im-praticável noutra época. Era a muitos respeitos uma idéiarevolucionária, mas obteve o nosso consentimento, após asdevidas deliberações. Porque, como deve compreender,nós também, em Shangri-Lá, devemos acertar o passo coma época.

— Quer dizer então que ele foi enviado de propósitopara trazer alguém pelo ar?

 

— Bem, como vê, era um rapaz inteligente e de inici-

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ativa e nós depositávamos nele grande confiança. Foi idéiadele e nós lhe demos inteira liberdade de ação. A única

 

coisa que sabíamos de maneira definida era que o seu pla-no compreendia um período de instrução numa escola a-mericana de aviação.

— Mas como podia arranjar-se para executar o resto

do plano? Foi só por acaso que encontrou aquele avião emBaskul.— Tem razão, meu caro Conway. Muitas coisas a-

contecem por acaso. Mas sucedeu, afinal de contas, justa-mente o que Talu esperava. Se não tivesse encontrado essaoportunidade, encontraria outra dentro de um ano ou dois— ou talvez nunca, está claro. Confesso que me surpreendiquando as sentinelas trouxeram a notícia da sua descida noplanalto. O progresso da aviação tem sido rápido, mas a

 

mim me parecia que teria de progredir ainda muito mais,antes que uma máquina comum pudesse voar sobre as nos-sas montanhas.

— Não era um avião comum. Era um tipo especial,construído para voar sobre montanhas.

— Outra coincidência? Nosso jovem amigo tinha re-

 

almente boa estrela. É pena não podermos conversar sobreo assunto com ele... Todos lamentamos sua morte. Tenhocerteza de que iria gostar dele, Conway.

Conway inclinou levemente a cabeça. Achava que se-ria muito possível.

— Mas qual é o desígnio que há no fundo de tudo is-so? — perguntou, ao cabo de um silêncio.

— Meu filho, o seu modo de fazer a pergunta mecausa infinito prazer. Jamais ninguém, no curso de tãolonga vida, me formulou num tom de tamanha calma. Mi-nha revelação tem sido recebida de todas as maneiras con-

 

cebíveis: com indignação, consternação, fúria, increduli-

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dade, histerismo — mas nunca, até esta noite, com simplesinteresse. É todavia uma atitude que eu acolho cordial-mente. Hoje se interessa, amanhã se preocupará; pode serque ainda venhamos a pedir sua inteira devoção.

— Isto vai além do que eu poderia prometer.— Até essa dúvida me agrada. É a base de uma fé

profunda e valiosa. . . Mas não discutamos. Está interes-sado, e isto, partindo do senhor, já é muito. Apenas lhe pe-

 

ço que não comunique por enquanto aos seus três compa-nheiros o que lhe estou dizendo agora.

Conway guardou silêncio.— Chegará o momento em que o saberão, como o

senhor, mas para bem deles mesmos não convém precipi-tar esse momento. Estou tão convicto da sua prudêncianeste assunto que não lhe peço nenhuma promessa; sei que

 

procederá do modo que nós ambos consideramos o me-lhor. . . Agora deixe-me esboçar um quadro deveras atra-ente. Segundo os padrões do mundo, o senhor ainda é mo-

ço. Tem, como se costuma dizer, a vida diante de si. Deacordo com o curso normal das coisas, poderá esperar unsvinte ou trinta anos de atividade, que irá decrescendo im-perceptível e gradualmente. Não é em absoluto uma pers-pectiva desalentadora, e não posso esperar que a olhe co-mo eu a olho: como um entreato brevíssimo e por demaisagitado. Viveu sem dúvida o primeiro quartel de sua exis-tência sob a nuvem de excessiva juventude, enquanto que

 

os últimos vinte e cinco anos serão provavelmente obscu-recidos pela nuvem ainda mais escura da demasiada velhi-ce; e entre essas duas nuvens, como são fracos e escassosos raios de sol que iluminam uma vida humana! Mas o se-nhor pode estar destinado a ser mais feliz, pois, de acordocom os padrões de Shangri-Lá, mal começaram ainda os

 

seus anos de sol. Poderá acontecer que, dentro de algumas

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décadas, não se sinta mais velho do que hoje — que con-serve, como Henschell, uma longa e esplêndida juventude.

 

Mas essa, acredite-me, será apenas uma fase inicial e su-perficial. Tempo virá em que comece a envelhecer comoos outros, embora com muito mais lentidão e em condiçõesinfinitamente mais nobres. Aos oitenta anos poderá ainda

subir ao desfiladeiro com a agilidade de um moço, masquando contar o dobro dessa idade não deve esperar que omesmo vigor ainda persista. Não fazemos milagres, nãovencemos a morte e nem sequer a decadência. Tudo quepodemos fazer e temos feito algumas vezes é retardar amarcha desses breves momentos que constituem a vida.Logramos isso mediante métodos tão simples aqui quantoimpossíveis em outros lugares. Mas não se iluda; o mesmo

 

fim aguarda a nós todos.

 

"Ainda assim, é uma perspectiva sedutora a que lheofereço: longos dias tranqüilos, durante os quais contem-plará o pôr do sol como um homem de outra parte do

mundo ouve um relógio dar horas, mas com muito menosansiedade. Virão e ir-se-ão os anos, e o senhor passará dosprazeres materiais a outros mais austeros, porém não me-nos satisfatórios. Poderá perder o gume do apetite e a rije-za dos músculos, mas desfrutará vantagens que compen-sarão essa perda. Adquirirá calma e profundeza, madureza,sabedoria e o cristalino encanto da memória. E, mais pre-cioso que tudo, terá o tempo, esse dom tão raro, tão dese-

  jado, que os países ocidentais foram perdendo à medidaque o buscavam com mais ardor. Reflita um instante. Terátempo para ler, nunca mais precisará saltar páginas a fimde poupar minutos, nem deixar de lado nenhum estudoporque seja demasiado longo. Também tem gosto pela mú-sica: aí, pois, estão os seus instrumentos, as suas composi-ções, e sobretudo o tempo, sem medida e sem pressa, para

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extrair deles o máximo encanto. É, além disso, diremos,um homem de boa companhia: não se extasia ao pensarque poderá fazer sábias e serenas amizades, e gozar umlongo e profundo comércio espiritual, sem temor de que amorte o venha chamar com a sua costumeira pressa? Ou, seprefere a solidão, não poderia utilizar um dos nossos pavi-

lhões para enriquecer a doçura das meditações solitárias?"A voz fez uma pausa que Conway não pensou em a-proveitar.

— Não faz nenhum comentário, meu caro Conway.Perdoe-me a eloqüência. Pertenço a uma época e a umanação em que nunca se considerou de mau tom expressar-se com fluência. . . Mas talvez esteja pensando na esposa,nos pais e nos filhos que porventura tenha deixado nomundo. Ou terá ambições que pensa ver realizadas?

 

Creia-me, se bem que a princípio a separação possa ser do-lorosa, dentro de dez anos nem a sombra disso tudo exis-tirá para o senhor. Digo isto embora o senhor — se é que

leio certo no seu espírito — não tenha semelhantespreocupações.

 

Surpreendido com a agudeza da observação, Conway

 

replicou:— É verdade. Não sou casado, tenho poucos amigos

íntimos e nenhuma ambição.— Nenhuma ambição? E como se arranjou para es-

capar a essa doença tão comum?

 

Só agora tinha Conway a impressão de tomar partenuma conversa.

— Sempre me pareceu — disse — que boa porçãodaquilo que na minha profissão se chama "êxito" é bas-tante desagradável, sem contar que exige mais esforço doque eu desejaria despender. Era cônsul, um posto bem su-

 

balterno mas muito do meu agrado.

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— Mas não pusera a alma nele?— Nem a alma, nem o coração, nem tampouco me-

 

tade de minhas energias. Sou um tanto preguiçoso por na-tureza.

As rugas tornaram-se mais acentuadas e sinuosas, eConway compreendeu que o Lama Superior devia estar

sorrindo.— A preguiça na realização de certas coisas pode ser

 

uma virtude — sentenciou o murmúrio. — Em todo caso,nós é que não nos mostraremos exigentes nesse particular.Creio que Tchang já lhe explicou o nosso princípio de mo-deração, e uma das coisas em que sempre somos mode-rados é a atividade. Eu, por mim, aprendi dez idiomas, masestes poderiam ter sido vinte se houvesse estudado imode-radamente. Não o fiz, contudo. Acontece o mesmo em ou-tros sentidos. Verá que não somos gozadores nem tampou-co ascetas. Enquanto não alcançamos uma idade em que seimpõe a prudência, aceitamos de bom grado os prazeres da

mesa, ao passo que, para ventura dos nossos companheirosmais jovens, as mulheres do vale aplicam o princípio de

 

moderação à sua própria castidade. Tudo bem pensado, te-

 

nho certeza de que se adaptará aos nossos costumes semmuito esforço. Tchang, na verdade, mostrou-se muito oti-mista a esse respeito — e também eu, depois desta entre-vista, não o estou menos. Mas há no senhor, reconheço-o,uma estranha qualidade que jamais encontrei em qualquer

 

outro dos nossos visitantes. Não é propriamente cinismo,muito menos amargura. Talvez seja em parte desilusão,mas também uma clareza de espírito que eu não esperariaencontrar num homem com menos de... cem anos, diga-mos. Se tivesse de exprimi-lo por uma forma concisa, diriaque é falta de paixão.

— O termo é bem aplicado — replicou Conway. —

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Não sei se costumam classificar as pessoas que aqui vêm,mas, se o fazem, podem colocar-me este rótulo "1914-1918". Penso que isto fará de mim um espécime único noseu museu de curiosidades, pois os outros três que vieramcomigo não entram nessa categoria. Gastei a maior partede minhas paixões e energias durante aqueles quatro anos

e, embora não costume falar nisso, a principal coisa quetenho pedido ao mundo desde então é que me deixe empaz. Encontro neste lugar certo encanto e certa quietudeque me atraem e não duvido que, como observou, me acos-tume a ele facilmente.

— Isso é tudo, meu filho?— Espero que eu esteja sendo fiel à sua regra de mo-

deração.

 

— É inteligente, como me disse Tchang. .. muito in-

 

teligente. Mas no que lhe expus não haverá nada que lhedesperte algum sentimento mais forte?

Permaneceu Conway algum tempo calado antes de

responder:— Causou-me profunda impressão a sua narrativa do

passado, mas, para ser franco, o esboço que traçou do futu-

 

ro me interessa apenas dum modo abstrato. Não posso o-lhar tão longe. Ficaria sem dúvida pesaroso se tivesse quedeixar Shangri-Lá amanhã, ou na próxima semana, ou tal-vez mesmo no próximo ano; mas o que irei sentir daqui acem anos, se é que viverei tanto, é coisa que não possopredizer. Posso fazer-lhe frente, como a qualquer outra es-pécie de futuro, mas para que eu o almeje é preciso que te-nha alguma razão de ser. Duvidei algumas vezes de que aprópria vida a tenha. E, se não a tem, uma vida longa tê-la-á ainda menos.

— Meu amigo, as tradições desta casa, a um tempo

 

budista e cristã, são muito confortadoras.

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— Pode ser. Mas, infelizmente, continuo a desejaruma razão mais definida para invejar os centenários.

— Existe uma razão, e na verdade bem definida. É omotivo único desta colônia de estrangeiros reunidos ao a-caso, que aqui vivem os seus longos anos. Não estamos re-alizando uma experiência vã, não seguimos um mero ca-

pricho. Temos um sonho e uma visão para nos guiar. É avisão que pela primeira vez apareceu ao velho Perraultquando jazia moribundo nesta sala, no ano de 1789. Eleconsiderou então o curso da sua longa existência, como jálhe contei, e pareceu-lhe que as coisas mais belas eramtransitórias e perecíveis, e que a guerra, a luxúria e a bruta-lidade poderiam acabar por expeli-las um dia da face domundo. Recordou coisas que tinha visto com os própriosolhos e esboçou outras com a imaginação. Viu as nações

 

fortalecendo-se, não em sabedoria, mas em vulgares pai-xões e no desejo de destruir. Viu o poder de suas máquinasmultiplicar-se a tal ponto que um só homem poderia fazerfrente a todo um exército do Grande Monarca. E percebeuque, quando enchessem de ruínas a terra e o mar, procura-riam dominar os ares. . . Pode afirmar que essa visão não éverdadeira?

— Bem verdadeira, com efeito.— Mas isto não é tudo. Previu a chegada de um tem-

po em que os homens, embriagados com a sua técnica ho-micida, assolariam o mundo com tal furor que toda coisapreciosa estaria em perigo, todos os livros, quadros e com-posições musicais, todo o tesouro acumulado durante doismil anos, o pequeno, o delicado, o indefeso — tudo se

perderia como perdidos foram os livros de Tito Lívio, ouseria destruído como os ingleses destruíram o Palácio deVerão em Pequim.

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— Concordo com esta sua opinião.— Naturalmente. Mas que valem as opiniões dos ho-

mens razoáveis diante do ferro e do aço? Acredite-me, es-sa visão do velho Perrault se tornará realidade. E esse, meufilho, é o motivo por que eu e o senhor estamos aqui, e porque podemos rogar a graça de sobrevivermos à destruição

que ameaça por todos os lados.— Sobreviver a isso?— Há uma possibilidade. Todas essas coisas aconte-

cerão antes que seja tão velho como eu.— E pensa que Shangri-Lá se salvará?— Talvez. Não podemos esperar nenhuma mercê, mas

há uma tênue esperança de que sejamos esquecidos. Aquificaremos com nossos livros, nossa música e nossas medi-tações, conservando as frágeis elegâncias de uma época

 

moribunda e buscando a sabedoria de que os homens hãode precisar quando tiverem esgotado todas as suas paixões.Temos uma herança a preservar e transmitir. Tiremos des-sas coisas todo o prazer que pudermos, até que venha essedia.

— E então?— Então, meu filho, quando os fortes se houverem

devorado uns aos outros, poderá finalmente ser posta emprática a moral cristã, e os mansos herdarão a terra.

Revestira-se o murmúrio de uma sombra de ênfase.Conway rendeu-se à beleza de tudo aquilo. Uma vez maissentiu crescer a escuridão em torno, mas agora simbolica-mente, como se lá fora já se estivesse preparando a tor-menta. E então percebeu que o Lama Superior de Shangri-

Lá se punha em movimento, que se levantara da cadeira epermanecia de pé, qual um fantasma semimaterializado.Por mera polidez procurou Conway ajudá-lo, mas de súbi-

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to um impulso mais profundo se apossou dele, e fez o que jamais fizera diante de nenhum homem: ajoelhou-se, semter consciência clara do motivo por que o fazia.

— Eu o compreendo, pai.Nunca soube direito de que modo se despediu. Estava

mergulhado num sonho, do qual não saiu senão muito

tempo depois. Lembrava-se do ar gelado da noite após ocalor daqueles aposentos, e da presença de Tchang, silen-ciosa serenidade, quando atravessaram juntos os pátios ilu-minados pela luz das estrelas. Jamais Shangri-Lá ofereceraaos seus olhos uma beleza tão intensa. Apenas adivinhado,

 jazia o vale além da borda do penhasco, e sua imagem eraa de um lago profundo cuja tranqüilidade se casava à pazde seus próprios pensamentos. Porque Conway já se curarado assombro. A longa conversação, com suas várias fases,

 

o deixara vazio de tudo, exceto de uma satisfação que eratanto do intelecto como do sentimento, e não menos do es-pírito que de ambos. Até suas dúvidas já não eram ator-mentadoras, mas, ao contrário, faziam parte de uma sutilharmonia. Tchang não falava, nem ele. Era muito tarde eestava satisfeito por saber que seus companheiros tinhamido dormir.

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CAPÍTULO IX

Na manhã seguinte perguntou a si próprio se tudo o

 

que lhe vinha ao espírito fazia parte de uma visão despertaou de um sonho.

Logo o fizeram lembrar-se. Recebeu-o um coro deperguntas quando apareceu para o almoço.

— Que conversa comprida teve com o chefão, ontemà noite! — começou o americano. — Fazíamos tenção de

 

esperá-lo, mas acabamos cansando. Que espécie de sujeito

 

é ele?— Disse alguma coisa sobre os carregadores? —

perguntou Mallinson ansiosamente.

— Espero que lhe tenha falado na possibilidade de semandar para cá um missionário — disse Miss Brinklow.

Este bombardeio fez com que Conway recorresse àssuas habituais armas de defesa.

— Receio que vá desapontá-los a todos — respon-deu, entrando com facilidade na disposição de ânimo ade-quada. — Não discutimos a questão das missões; ele nãofez nenhuma referência aos carregadores; e, quanto à sua

 

aparência, só lhes posso dizer que se trata de um anciãomuito inteligente e que fala excelente inglês.

Mallinson atalhou com irritação:— O que interessa é saber se ele é digno de confiança

ou não. Acha que o homem pretende enganar-nos?— Não me deu a impressão de ser uma pessoa indig-

 

na.

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— Mas por que não insistiu com ele a respeito doscarregadores?

 

— Não me lembrei.Mallinson encarou-o com ar de incredulidade.— Não o entendo, Conway. Portou-se tão bem em

Baskul que mal posso crer seja o mesmo homem. Parece

ter perdido a resolução.— Sinto muito.— Nada adianta lastimar-se. Devia cobrar ânimo e

mostrar mais interesse no que se está passando.— Você compreendeu mal. Eu queria dizer que sinto

tê-lo desapontado.Disse isto num tom de voz quase rude. Era uma más-

cara destinada a ocultar os seus verdadeiros sentimentos,os quais eram, na verdade, tão complicados que dificil-mente poderiam os outros adivinhá-los. Estava um poucosurpreso ante a facilidade com que tergiversara. Era evi-dente que desejava observar a recomendação do Lama,

guardando segredo. Estranhava igualmente a naturalidadecom que aceitava uma situação que os seus companheiros

 

certamente, e não sem motivo, tachariam de traição. Como

 

dissera Mallinson, não era o que se esperava de um herói.Conway sentiu uma afeição súbita e meio compadecida pe-lo rapaz. Retemperou-se depois, refletindo que quem de-dica culto aos heróis deve estar preparado para as desilu-sões. Mallinson em Baskul era como o jovem calouro ado-

 

rando o belo diretor de esportes, e agora o diretor de espor-tes começava a vacilar, se é que já não caíra do pedestal.Há sempre algo de patético na destruição de um ideal, em-bora seja este falso; e a admiração de Mallinson poderiater sido pelo menos um refrigério ao esforço de aparentar oque não era. Mas, de qualquer modo, seria impossível si-mular. Havia qualquer coisa na atmosfera de Shangri-Lá

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— talvez devido à altitude — que vedava qualquer tentati-va de contrafazer emoções.

 

— Olhe, Mallinson — disse ele —, é inútil fazer con-tinuamente alusões a Baskul. Está claro que eu era dife-rente então, pois a situação era completamente outra.

— E muito mais limpa também, na minha opinião.

Pelo menos sabíamos o que íamos enfrentar.— Assassínio e estupro, para sermos exatos. Podechamar a isso de limpo, se lhe aprouver.

Subiu de tom a voz do rapaz enquanto retorquia:— Pois bem, ainda considero isso mais limpo... em

certo sentido. Prefiro enfrentar tais coisas a todo este mis-tério que nos cerca.

E abruptamente acrescentou:— Essa rapariga chinesa, por exemplo. . . De que

 

modo veio parar aqui? O tal sujeito lhe disse?— Não. Por que havia de dizer?— E por que não? E por que não havia você de per-

guntar, se tivesse algum interesse no assunto? É naturalencontrar-se uma donzela vivendo entre monges?

 

Este ponto de vista ainda não se havia apresentado aConway.

— Este não é um mosteiro comum — foi a melhorresposta que encontrou, depois de refletir um pouco.

— Meu Deus, bem sei que não é!Seguiu-se um silêncio, pois a discussão chegara evi-

 

dentemente a um ponto morto. Afigurava-se a Conway quea vida de Lo-Tsen não vinha ao caso. A pequena manchurepousava tão suavemente no seu espírito que mal sabia desua presença ali. Mas ao ouvir mencionar o nome delaMiss Brinklow ergueu repentinamente os olhos da gra-mática tibetana, que não deixava nem durante as refeições

 

(como se — pensava Conway com intenção oculta — não

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tivesse para isso todo o resto da sua vida). A referência adonzelas e monges trouxe-lhe à lembrança aquelas histó-

 

rias sobre os templos da índia, que os missionários contamàs suas mulheres e que estas transmitem às colegas soltei-ras.

— Naturalmente — disse, comprimindo os lábios —

o moral desta casa é horripilante. É o que seria de esperar.E voltou-se para Barnard, como pedindo apoio; mas oamericano limitou-se a arreganhar os dentes.

— Não creio que dêem muito valor à minha opiniãoem assunto de moral — observou secamente. — Mas,quanto a mim, diria que viver às disputas não é menosmau. Já que teremos de ficar ainda algum tempo aqui, de-vemos dominar o gênio e tratar bem uns aos outros.

Conway achou bom o conselho. Mallinson, porém,ainda não se aplacara.

— Bem posso crer que ache isto aqui mais agradáveldo que Dartmoor — disse significativamente.

— Dartmoor? Oh! refere-se à grande penitenciária doseu país? Percebo. Bem, certamente não invejo os camara-das que estão em lugares como aquele. E há outra coisaque lhe devo dizer: não me fere com essas alusões. Couroduro e coração tenro — eis aí como sou feito.

Conway dirigiu-lhe um olhar de aprovação e outro deleve censura a Mallinson. Mas de repente sentiu que todos,ali, eram atores num palco imenso, cujo pano de fundo sóele avistava, e, como não pudesse comunicar o que sabia,assaltou-o repentino desejo de estar só. Despediu-se delescom um aceno de cabeça e saiu para o pátio. À vista do

Karakal desvaneceram-se as apreensões, e os escrúpulos arespeito de seus três companheiros se dissolveram na acei-tação mística de um mundo novo que demorava muito

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longe das conjeturas daqueles três. Há ocasiões, pensou,em que a estranheza de tudo torna cada vez mais difícilperceber a estranheza dos objetos particulares — e é quan-do se aceitam as coisas tais quais são, simplesmente por-que assombrar-nos seria tão fastidioso para nós próprioscomo para os outros. Havia chegado a esse ponto em

Shangri-Lá, e lembrava-se de ter atingido um estado de â-nimo semelhante, embora muito menos agradável, duranteos anos passados na guerra.

Precisava de tranqüilidade, quando mais não fossesenão para acomodar-se à dupla vida que seria forçado aviver durante algum tempo. De agora em diante, iria vivercom os seus companheiros de exílio na expectativa dachegada dos carregadores e do regresso à índia; longe de-les, o horizonte se abriria como uma cortina. O tempo ex-pandia-se e contraía-se o espaço. O futuro, tão sutilmente

 

plausível, afigurava-se uma dessas coisas que só ocorremuma vez cada dez mil anos. Às vezes perguntava a simesmo qual das duas vidas era mais real do que a outra,sem que, no entanto, o problema fosse premente. E de no-vo recordava os dias da guerra, pois durante os bombar-deios ele tinha a mesma sensação confortadora de possuir

 

muitas vidas, das quais tão-só uma podia ser reclamadapela morte.

Tchang, é claro, falava-lhe agora sem nenhuma reser-va, e tinham muitas conversas sobre as regras e os costu-mes do mosteiro. Soube então Conway que durante os pri-meiros cinco anos viveria uma vida normal, sem estar su-

 jeito a nenhum regime especial. Era o que se fazia sempre,

segundo dizia Tchang, "para que o corpo se habituasse àaltitude e também para dar tempo a que se dissipassem asnostalgias intelectuais e sentimentais".

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— Tem certeza, então — observou Conway com umsorriso —, de que nenhuma afeição humana pode resistir acinco anos de ausência?

— Pode, sem dúvida — replicou o chinês —, masapenas como uma fragrância cuja melancolia nos é grata.

Após esses cinco anos de prova, explicou Tchang, ti-

nha início o processo de retardamento da velhice, e, se ti-vesse êxito, Conway poderia contar com meio século deestacionamento na idade aparente de quarenta anos — oque não era uma idade desagradável para nela se estacio-nar.

— Mas no seu caso — perguntou Conway — comose operou a coisa?

— Ah! meu caro senhor, eu tive a sorte de chegar a-qui muito jovem, apenas com vinte e dois anos. Era mili-

 

tar, embora isso talvez não lhe pareça. Comandava umastropas em operações contra certas tribos de salteadores, noano de 1855. Estava fazendo o que chamaria um reconhe-cimento, caso tivesse voltado e transmitido aos meus supe-riores o resultado da missão; mas a verdade ê que me perdinestas montanhas e dos meus cento e tantos comandadossomente sete sobreviveram aos rigores do clima. Quandoafinal fui socorrido e trazido para Shangri-Lá, estava tãomal que só a minha extrema juventude e vitalidade me sal-varam.

— Vinte e dois — repetiu Conway, fazendo as con-tas. — De modo que está agora com noventa e sete?

— Sim. Muito em breve, se os lamas derem o seuconsentimento, receberei a iniciação completa.

— Compreendo. É preciso inteirar o número redon-do?

— Não, nós não temos limite estabelecido para isso,

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mas consideramos que um século é a idade em que as pai-xões e os caprichos da vida ordinária já desapareceram.

— Penso também que sim. E que acontece depois?Quanto tempo espera viver ainda?

— Dadas as perspectivas que Shangri-Lá oferece, hárazões para esperar que eu viva ainda um século, ou talvez

mais.Conway balançou a cabeça.— Não sei se devo felicitá-lo, mas parece que lhe foi

concedido o melhor dos dois mundos, uma longa e agradá-vel mocidade para recordar e a perspectiva de uma velhicenão menos longa e agradável. Com que idade começou aenvelhecer exteriormente?

— Depois dos setenta. É o que muitas vezes sucede,embora eu creia poder afirmar que não represento a idadeque tenho.

— De modo algum. E, supondo que deixasse o valeagora, que aconteceria?

— Morreria se permanecesse fora daqui mais que unspoucos dias.

— A atmosfera, então, é essencial?— Há só um vale da Lua Azul, e quem esperasse en-

contrar outros pediria demasiado à natureza.— Bem, mas o que sucederia se tivesse deixado o va-

le uns trinta anos atrás, suponhamos, durante a sua pro-longada juventude?

— Provavelmente teria morrido mesmo assim — res-pondeu Tchang. — Em todo caso, teria adquirido muitorapidamente a aparência da minha idade real. Faz alguns

anos, houve um curioso exemplo desse fato embora tivessehavido vários outros antes. Um dos nossos deixou o valepara auxiliar um grupo de viajantes, de cuja aproximação

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tínhamos sido avisados. Esse homem, de nacionalidaderussa, chegara aqui no vigor dos anos e tão bem vingaram

 

com ele os nossos processos que, quase a completar oiten-ta anos, ninguém lhe daria mais de quarenta. Não devia fi-car ausente mais que uma semana, o que não teria nenhu-ma importância. Mas, desgraçadamente, foi aprisionado

por tribos nômades e conduzido a certa distância daqui.Suspeitamos de um acidente e consideramo-lo perdido.Entretanto, três meses depois, logrou escapar e voltou parao vale. Mas era agora um homem bem diferente. Tinha osseus oitenta anos gravados no rosto e nas maneiras, e pou-co depois morreu, como morre um velho.

Pelo espaço de uns minutos Conway não fez nenhumaobservação. Conversavam na biblioteca e durante a maior

 

parte da narrativa estivera olhando pela janela o desfiladei-

 

ro que conduzia ao mundo exterior. Uma nuvenzinha des-lizava sobre o topo da cordilheira.

— A sua história é um tanto sinistra, Tchang — disse

por fim. — Dá a impressão de que o Tempo é um monstroludibriado, esperando lá fora para atirar-se sobre os indo-lentes que conseguiram iludi-lo por muito tempo.

 

—  Indolentes? — Em sentido figurado, é claro.Ficou Tchang uns instantes a refletir, e disse:— É significativo que os ingleses considerem a indo-

lência um vício. Nós, pelo contrário, lhe damos grande

 

preferência sobre a pressa. Não é verdade que há dema-siada pressa no mundo atualmente, e não seria talvez me-lhor se houvesse mais pessoas indolentes?

— Inclino-me a concordar consigo — respondeuConway com divertida solenidade. 

Dentro da semana que se seguiu à entrevista com o

 

Lama Superior, Conway fez conhecimento com muitos de

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seus futuros colegas. Não se mostrava Tchang nem muitoansioso nem pouco desejoso de fazer as apresentações, e

 

Conway sentiu-se envolto numa nova atmosfera, assaz a-traente para ele, em que não reinava a pressa clamorosanem a lentidão decepcionadora.

— Na verdade — explicava Tchang —, alguns dos

lamas só poderão travar relações com o senhor depois deum tempo considerável, talvez anos, mas isto não lhe devecausar estranheza. Estão preparados para dispensar-lhe a-colhimento logo que se apresente a ocasião, e a falta depressa não implica de nenhum modo ausência de interesse.

Conway, que muitas vezes tivera impressão seme-lhante quando ia visitar colegas recém-chegados aos con-sulados estrangeiros, achou muito compreensível a atitude.

 

Os encontros que teve, contudo, foram plenamentesatisfatórios, e a conversação com homens que tinham trêsvezes a sua idade não lhe causou os embaraços comuns nasociedade de Londres ou Delhi. A primeira entrevista foi

com um afável alemão chamado Meister, que ingressarana comunidade em oitenta e tantos, tendo sido o único so-brevivente de um grupo de exploradores. Falava bem o

 

inglês, embora com certo sotaque. Um ou dois dias depoisfoi feita segunda apresentação, e Conway gozou a primei-ra palestra com um homem que o Lama Superior lhe men-cionara de modo especial: Alphonse Briac, pequeno e vi-goroso, de nacionalidade francesa, não aparentava ser

 

demasiado velho embora dissesse ter sido discípulo deChopin. Pareceu a Conway que a companhia dele e a doalemão seriam muito agradáveis. Já os estava analisandosubconsciente-mente, e depois de uns poucos encontrosformulou uma ou duas conclusões gerais. Percebeu que oslamas com quem tratara, se bem que tivessem suas dife-renças individuais, possuíam em comum uma qualidade

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difícil de definir, para a qual não encontrava denominaçãomelhor do que "ausência de idade". Além disso, eram to-dos dotados de uma serena inteligência que se manifesta-va agradavelmente por meio de opiniões comedidas e bemmeditadas. Sentia Conway uma simpatia instantânea poressa espécie de gente e notava que eles o percebiam e lhe

eram gratos. Achou-lhes o trato tão agradável como o dequalquer outra roda de pessoas cultas com quem pudesseter feito conhecimento, embora lhe viesse muitas vezesuma sensação de estranheza, quando os ouvia aludir comtanta naturalidade a remotas recordações. Um homem decabelos brancos e expressão benévola, por exemplo, lheperguntara após ligeira palestra se lhe interessavam as ir-mãs Brontë. Respondeu Conway que sim até certo ponto,e o outro prosseguiu:

 

— Pois sucede que eu fui cura no West Riding, lápor 1840, e uma vez visitei Haworth, hospedando-me no"Parsonage". Depois de me achar aqui iniciei um estudo

sobre o problema Brontë, e estou mesmo escrevendo umlivro. Talvez queira examinar comigo o assunto qualquer

 

dia destes?Conway deu uma resposta cordial e depois, quando

ficou a sós com Tchang, fez comentários em torno da vivi-dez com que os lamas pareciam recordar a sua existênciaanterior à vinda para o Tibete. Respondeu Tchang que istofazia parte dos seus exercícios habituais.

— Veja, meu caro senhor: um dos primeiros passosno sentido de clarificar a mente é a obtenção de um pano-rama da própria vida passada, e este, como qualquer outropanorama, é mais nítido em perspectiva. Quando tiverpermanecido bastante tempo entre nós, verá a sua vidapassada focalizar-se pouco a pouco, como um objeto visto

 

por um telescópio a que se ajustam as lentes. Tudo se lhe

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apresentará tranqüilo e claro, nas devidas proporções ecom sua verdadeira significação. Seu novo amigo, por e-

 

xemplo, percebe que o grande momento da sua existênciaocorreu na mocidade, quando ele visitou uma casa ondevivia um velho ministro em companhia de três filhas.

— Suponho, então, que deverei tratar de recordar os

meus grandes momentos?— Não será necessário nenhum esforço. Eles virão

 

naturalmente.— Não sei se os receberei com muita satisfação —

respondeu Conway com melancolia.Mas, fosse qual fosse o passado, a verdade é que co-

meçava a sentir-se feliz no presente. Quando se distraíalendo na biblioteca ou tocando Mozart no salão de música,sentia muitas vezes invadi-lo profunda emoção espiritual,

 

como se Shangri-Lá fosse uma essência viva, destilada noalambique mágico dos séculos e milagrosamente preser-vada do tempo e da morte. Em tais momentos lhe vinha ao

espírito, de maneira memorável, sua conversação com oLama Superior. Sentia que uma calma inteligência vigiava

 

com bondade cada uma de suas diversões, confiando-lheao ouvido e à vista mil segredos tranqüilizadores. Assim,punha-se a escutar enquanto Lo-Tsen dominava algumafuga complicada, imaginando o que se ocultaria no fundodo sorriso vago que lhe agitava os lábios como uma florque se abrisse. Ela falava muito pouco, embora já soubesse

 

que Conway conhecia o seu idioma. Diante de Mallinson,que por vezes visitava a sala de música, ficava quase sem-pre calada. Mas Conway distinguia o encanto que os seussilêncios exprimiam com perfeição.

Uma vez interrogou Tchang sobre o seu passado esoube que ela descendia da família real manchu.

— Era a prometida de um príncipe do Turquestão e

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viajava para Kashgar a fim de encontrar-se com ele, quan-do seus carregadores se perderam nas montanhas. Todos

 

teriam sem dúvida perecido se os nossos emissários nãolhes houvessem saído ao encontro, como habitualmente fa-ziam.

— Quando sucedeu isso?

— Em 1884. Ela contava dezoito anos.— Dezoito anos naquele tempo?Tchang fez uma cortesia.— Sim, tivemos muito êxito com ela, como o senhor

mesmo pode verificar. Seus progressos têm sido constan-tes e excelentes.

— Como encarou a situação quando aqui chegou?— Talvez lhe houvesse custado mais do que a outros

aceitá-la. Não que protestasse, mas percebemos que ficouperturbada por algum tempo. Era, já se vê, um aconteci-mento nada comum: interceptar uma moça que iacasar. . . Todos nós tínhamos particular interesse em que

ela fosse feliz aqui.Tchang sorriu docemente e acrescentou:

 

— Receio que a excitação do amor não se deixe ven-

 

cer facilmente, mas cinco anos foram mais que bastantespara isso.

— Devia ser muito afeiçoada ao homem com quem iacasar.

— Não se pode dizer que fosse isso, meu caro se-nhor, pois nunca o tinha visto. Tal era o costume antigo,como sabe. Sua afeição era completamente impessoal.

Conway concordou e sentiu uma leve ternura por Lo-Tsen. Imaginou-a como devia ter sido meio século atrás,escultural na sua liteira decorativa que os carregadoresconduziam pelo planalto em fora, os olhos fixos nas mon-tanhas varridas pelos ventos e que lhe deviam parecer as-

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pérrimas em comparação com os jardins e os lagos de lo-tos que deixara no nascente.

— Pobre criança! — disse, pensando naquela frágilelegância, prisioneira por tão longos anos. Agora que lheconhecia a história, mais o deleitava sua tranqüilidade eseus silêncios. Era como um lindo vaso, precioso e frio,

sem outro adorno que um raio de luz fugitivo.Sentia-se também deleitado, embora com menos enle-vo, quando Briac lhe falava em Chopin e tocava com mui-to brilho as velhas melodias. Verificou que o francês co-nhecia diversas composições de Chopin que não tinhamsido publicadas e, como ele as houvesse escrito, Conwaydedicava agradáveis horas a decorá-las. Achava certo sa-bor picante em refletir que nem Cortot nem Pachmann ha-viam sido tão felizes. Não acabavam aí, porém, as recor-dações musicais de Briac; continuamente lhe vinham àmemória trechos que o compositor lançara fora ou impro-visara em determinadas ocasiões. Punha-os em pauta à me-

dida que os ia recordando, e alguns deles eram fragmentosdeliciosos.

— Briac — explicou Tchang — iniciou-se há pouco

 

tempo. Deve desculpá-lo, pois, se fala tanto em Chopin.Os lamas mais jovens preocupam-se naturalmente com opassado; é um passo necessário à contemplação do futuro.

— E esta, suponho, é a tarefa dos mais velhos.— Sim. O Lama Superior, por exemplo, leva quase

toda a sua existência em meditações clarividentes.Conway refletiu um instante e disse:— A propósito, quando pensa que voltarei a vê-lo?— Sem dúvida no fim dos seus primeiros cinco anos

aqui, meu caro senhor.Enganava-se Tchang, porém, nesta confiante profecia;

 

menos de um mês depois de sua chegada a Shangri-Lá foi

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Conway novamente chamado à tórrida sala. Tchang lhedissera que o Lama Superior nunca saía dos seus aposen-tos, cuja atmosfera quente lhe era necessária à vida corpo-ral. Assim prevenido, Conway achou menos incômoda queantes a mudança de temperatura. Na verdade, começou arespirar com facilidade logo depois de saudá-lo e de rece-

ber em resposta uma cintilação mais viva daqueles olhosfundos. Sentia-se em comunhão com o espírito que moravaatrás deles, e, embora soubesse que esta segunda entrevis-ta, tão próxima da primeira, era uma honra sem preceden-tes, não estava em absoluto nervoso nem sucumbia à sole-nidade do momento. O fator da idade não tinha para elemais importância que o da classe ou da cor, e jamais foraobstáculo à sua amizade por uma pessoa o fato de ser estademasiado jovem ou demasiado velha. O Lama Superior

 

lhe inspirava sincero respeito, mas não via por que suas re-lações deixassem de ser cordiais.

Trocaram as habituais cortesias e Conway respondeu

a muitas perguntas amáveis. Disse que estava gostandomuito daquela vida e já fizera amizades.

 

— E não revelou os nossos segredos aos seus três

 

companheiros?— Não, até agora. Foi difícil algumas vezes, mas

provavelmente muito menos do que se eu lhes tivesse fala-do.

— Justamente como eu presumia. O senhor procedeuda maneira que achou melhor. Esta situação difícil, afinalde contas, é apenas temporária. Disse-me Tchang que, se-gundo pensa, dois deles darão poucos cuidados.

— Acho que é verdade.— E o terceiro?— Mallinson é um rapaz excitável, só pensa em vol-

tar — respondeu Conway.

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— Gosta dele?— Sim, quero-lhe bem.Neste momento apareceram as taças de chá e a con-

versa tornou-se menos grave entre os goles de líquido per-fumado. Era uma acertada convenção que permitia dar àpalestra um tom de deliciosa frivolidade, ao qual se con-

formava de bom grado. Quando o Lama Superior pergun-tou se Shangri-Lá não lhe era uma experiência inédita e se

 

o mundo ocidental podia oferecer algo semelhante, respon-deu com um sorriso:

— Creio que sim. Para ser franco, lembra-me muitoligeiramente Oxford, onde fiz preleções. O cenário é me-nos belo, mas os temas de estudo também são muitas vezesdestituídos de senso prático, e embora o mais antigo dos

 

mestres não seja tão velho, parece chegar à velhice por um

 

caminho semelhante.— O senhor tem senso de humor, meu caro Conway

— observou o Lama Superior —, e nós lhe seremos gratos

por essa qualidade durante os anos que hão de vir.

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CAPÍTULO X

— Extraordinário — foi o comentário de Tchang ao

 

saber que Conway tivera nova entrevista com o Lama Su-perior. Vindo de uma pessoa tão refratária ao uso de super-lativos, a palavra era significativa. Jamais havia isso acon-tecido, acentuou, desde que se estabelecera a praxe da co-munidade. Jamais o Lama Superior desejara um segundoencontro, antes que os cinco anos de provação tivessem

 

expurgado todas as emoções do exilado.— Porque, como pode compreender, o falar com re-

cém-chegados em geral exige-lhe grande esforço. A sim-ples presença das paixões humanas lhe é desagradável e,

na sua idade, torna-se um aborrecimento quase intolerável.Não que eu duvide da sabedoria do seu procedimento. Elenos dá uma lição de grande valor, qual seja, a de quemesmo as regras fixas da nossa comunidade são apenasmoderadamente fixas. Mas, de qualquer modo é extraordi-nário.

Para Conway, naturalmente, isso não era mais extra-ordinário do que tudo mais ali, e depois de visitar o LamaSuperior uma terceira e quarta vez começou a achar quenão era de nenhum modo extraordinário. Parecia, na ver-dade, haver qualquer coisa de predestinado na facilidadecom que se harmonizavam os espíritos de ambos. Dir-se-iaque todas as secretas agitações de Conway se acalmavam,deixando-lhe, quando se retirava, uma rica serenidade. Porvezes tinha a sensação de estar completamente subjugado

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pela força daquela inteligência diretriz, e diante das pe-quenas taças azul-pálidas o trabalho do cérebro se estre-

 

mecia numa vivacidade tão delicada e miniatural que lhedava a impressão de um teorema a dissolver-se limpida-mente num soneto.

Suas conversas abrangiam destemidamente todos os

assuntos. Filosofias inteiras eram esmiuçadas; as longasavenidas da história desdobravam-se e adquiriam novaperspectiva. Para Conway era uma experiência maravi-lhosa, mas nem por isso se desprendia do senso crítico, ecerta vez, tendo ele argüido sobre um ponto, o Lama Supe-rior replicou:

— Meu filho, é jovem nos anos, mas percebo que oseu discernimento tem a madureza da velhice. Por certohão de ter-lhe ocorrido coisas extraordinárias na vida.

Conway sorriu.— Não mais extraordinárias do que as que sucederam

a muitos outros da minha geração.

— Ainda não encontrara um homem como o senhor.Conway respondeu após um intervalo:— Não há grande mistério nisso. O que em mim lhe

 

parece próprio de um velho corre por conta de uma intensae prematura experiência. Minha vida entre os dezenove eos vinte e dois anos foi uma educação incomparável, nãoresta dúvida, mas algo exaustiva.

— Foi muito infeliz na guerra?

 

— Muito, não. Excitava-me, tinha impulsos suicidas,sentia medo, era temerário, e às vezes ficava possuído deuma fúria terrível. Como milhões de outros, aliás. Embor-rachava-me, matava e gozava por atacado. Era o abuso detodas as emoções, e saímos de lá, os que conseguiram es-capar, sob o domínio de um fastio e uma agitação desme-

 

didos. Foi isso que fez tão difíceis os anos que se segui-

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ram. Não creia que esteja exagerando a tragédia. Tudoconsiderado, fui bastante feliz depois. Mas tem sido qual-quer coisa comparável a estar numa escola sob a direçãodum brutamontes: há muito que divertir-se para quem sesente inclinado a isso, mas arruína os nervos e em sumanão é muito satisfatório. Creio que verifiquei isso com

mais clareza do que muita gente.— E foi assim que continuou a sua educação?

 

Conway encolheu os ombros.— Talvez a exaustão das paixões seja o começo da

sabedoria, se me permite alterar a máxima.— Essa, meu filho, é também a doutrina de

Shangri-Lá.— Eu sei. É por isso que me sinto como em casa.

Tinha dito a pura verdade. À medida que passavam osdias e as semanas, ia experimentando um contentamento

profundo que unia corpo e espírito num só todo. ComoPerrault, Henschell e os outros, estava sendo dominado pe-lo feitiço. A Lua Azul tomara posse dele e não havia como

 

escapar. Cintilavam as montanhas ao redor, formando ummuro de inacessível pureza, de onde seus olhos deslum-brados baixavam para o abismo verde do vale. O quadrotodo era incomparável e, quando ouvia, na outra margemdo lago, a argentina monotonia do cravo, afigurava-se-lhe

 

que era ele que tecia aquela harmonia perfeita da vista e dosom.

Estava, e bem o sabia, serenamente enamorado da pe-quena manchu. Seu amor nada pedia, nem sequer ser cor-respondido. Era um tributo do espírito, ao qual os sentidosapenas emprestavam um sabor. Lo-Tsen era para ele osímbolo de todas as coisas delicadas e frágeis. Suas corte-

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sias estilizadas e o leve toque de seus dedos no teclado lhedavam uma sensação de intimidade completamente satisfa-

 

tória. Algumas vezes lhe falava num tom que os poderialevar, se ela o desejasse, a uma conversa menos cerimoni-osa. Mas as respostas de Lo-Tsen nunca revelavam o deli-cado segredo dos seus pensamentos e, em certo sentido,

ele não desejava que assim fosse. Conhecia já uma das fa-cetas da jóia prometida; para o mais que desejasse dispu-

 

nha do Tempo, tanto tempo que o próprio desejo se apaga-va na certeza da realização. Dentro de um ano, de uma dé-cada, teria ainda tempo. A visão ganhava intensidade e elese sentia feliz.

Também às vezes se voltava para a sua outra vida eenfrentava a impaciência de Mallinson, a jovialidade de

 

Barnard e a firme intenção de Miss Brinklow. Havia de a-

 

legrar-se quando todos soubessem o que ele sabia; e, comoTchang, tinha a impressão de que nem o americano nem amissionária seriam difíceis de persuadir. Achou mesmo

graça uma ocasião que Barnard disse:— Sabe, Conway? Quer-me parecer que isto não se-

ria tão mau lugar para fixar residência nele. No começo

 

pensei que ia sentir falta dos jornais e do cinema, mas ago-ra vejo que a gente pode se acostumar a tudo.

— Também penso assim — concordou Conway.Soube depois que Tchang tinha levado Barnard ao va-

le, atendendo a um pedido dele, para gozar tudo o que os

 

recursos da localidade ofereciam a quem quisesse passar"uma noite fora". Mallinson, quando teve conhecimentodisto, encheu-se de desdém.

— Com certeza andou bebendo — disse a Conway.E para o próprio Barnard comentou:— Naturalmente, nada tenho que ver com isso, mas,

como sabe, você precisa conservar-se em muito boa forma

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para a jornada. Os carregadores devem vir dentro de unsquinze dias, e pelo que inferi a volta não será propriamenteuma viagem de recreio.

Barnard concordou de boa sombra:— Nunca acreditei que a volta seria fácil. Quanto a

conservar-me em forma, acho que há muitos anos não me

sentia tão bem disposto como agora. Faço o meu exercíciodiário, não tenho nada que me aborreça e os donos desses

 

botecos lá do vale não deixam a gente se exceder. Modera-ção, já sabe. . . É o lema da firma.

— Sim, não duvido que se tenha divertido moderada-mente — disse Mallinson com acrimônia.

— Claro que sim. Este estabelecimento atende a to-dos os gostos. Há quem tenha mais prazer em ouvir chine-

 

sinhas tocar piano, não é verdade? Não se pode censurar aspessoas pelas preferências.

Conway não se deu por achado. Mallinson, porém,enrubesceu como um colegial.

— Mas pode-se mandar para a cadeia quando mos-tram preferência pela propriedade alheia — retorquiu. Afúria o tornava mordaz.

— Sim, quando se consegue apanhá-las.O americano arreganhou os dentes afavelmente e

prosseguiu:— E isto me lembra uma coisa que é melhor dizer-

lhes de uma vez, já que tocamos no assunto. Resolvi lograr

 

esses carregadores. Acho que eles vêm aqui regularmente.Esperarei pela próxima vinda — ou talvez pela terceira. Is-so, bem entendido, se os monges me derem crédito para asdespesas de hospedagem. . .

— Quer dizer que não irá conosco?— Isso mesmo. Decidi ficar algum tempo aqui. Para

 

os senhores está tudo muito bem. Serão recebidos com

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bandas de música, mas eu... só tenho a polícia à minha es-pera. E quanto mais penso nisso mais me desagrada. . .

 

— Por outras palavras, tem medo de enfrentar a or-questra?

— De fato, jamais gostei de orquestras.— Isto é assunto seu — tornou Mallinson com frio

desdém. — Ninguém pode impedi-lo de enterrar-se aquipara toda a vida se esse é o seu desejo.

 

E, olhando em torno como a pedir o apoio dos outros:— Nem todos pensarão assim, mas reconheço que os

gostos diferem. Que diz você, Conway?— Concordo. Os gostos diferem.Voltou-se Mallinson para Miss Brinklow, que subita-

mente deixou o livro de lado e declarou:— O caso é que eu também penso ficar.— O quê? — gritaram todos a um tempo.Ela prosseguiu, com um claro sorriso que mais pare-

cia um reflexo do que uma iluminação interior:

— Pois é, estive meditando sobre os acontecimentosque nos trouxeram aqui e pude chegar apenas a uma con-

 

clusão: há algum poder misterioso atrás dos bastidores.

 

Não lhe parece, Mr. Conway?Talvez Conway experimentasse dificuldade em res-

ponder, se Miss Brinklow não se tivesse apressado a con-tinuar:

— Quem sou eu para discutir os ditames da Provi-dência? Fui trazida aqui para algum fim, e aqui ficarei.

— Espera fundar uma missão neste lugar? — per-guntou Mallinson.

— Não só espero como tenho a firme intenção. Seitratar com esta gente. Hei de impor a minha vontade, nãotenham receio. Nenhum deles possui verdadeira fibra.

— E pretende dar-lhes alguma?

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— Pretendo, sim, Mr. Mallinson. Oponho-me decidi-damente a esta idéia de moderação sobre a qual tanto te-

 

mos ouvido falar. Podem chamar-lhe largueza de vistas sequiserem, mas na minha opinião ela conduz à pior espéciede licenciosidade. Todo o mal desta gente é a tal larguezade vistas, e tenciono combatê-la com todas as minhas for-

ças. — E eles têm vistas tão largas que lhe permitirão is-

 

so? — interpôs Conway, sorrindo.— Ou então ela é tão resoluta que não são capazes de

lhe resistir — acudiu Barnard. E acrescentou numa risada:— É justamente como eu disse: este estabelecimento aten-de a todos os gostos.

— É possível, se você gosta da prisão — repontouMallinson.

— Bem, até sobre este assunto há dois modos de ver.Meu Deus, quando se pensa em toda a gente que daria tudoo que tem para sair da balbúrdia e vir descansar num lugar

como este, e não pode sair! Seria o caso de perguntarquem está preso: nós ou eles?

— Consoladora reflexão para um macaco encerradonuma jaula — replicou Mallinson, sempre furioso.

Mais tarde encontrou-se a sós com Conway.— Esse sujeito me rói os nervos — dizia, passeando

pelo pátio. — Não sentirei a falta da sua companhia quan-do voltarmos. Você me pode julgar demasiado suscetível,

 

mas não achei graça naquela indireta sobre a chinesa.Conway tomou-lhe o braço. Tornava-se-lhe cada vez

mais claro que tinha muita afeição ao rapaz, e as últimassemanas de convívio haviam tornado mais profundo essesentimento, apesar das discordâncias de gênio.

— Julguei que ele visasse a mim, e não a você —

 

respondeu.

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— Não, tenho certeza de que era comigo. Ele sabeque estou interessado nela. Estou mesmo, Conway. Nãoposso descobrir por que vive aqui e se lhe agrada realmen-te viver aqui. Meu Deus, se eu falasse como você o idiomadela, já teria posto tudo em pratos limpos.

— Será mesmo que o faria? Ela não é de muita con-

versa, como sabe.— O que me espanta é que você não lhe tenha feitotoda sorte de perguntas.

— Não creio que gostasse muito de passar por ma-çante.

Teve vontade de dizer mais alguma coisa, mas reteve-o de súbito aquele sentimento de piedade e de ironia, que oenvolveu à maneira de uma névoa fina. O ardente e impe-tuoso rapaz não se conformaria tão facilmente. E Conwaylimitou-se a acrescentar:

— No seu lugar, eu não me preocuparia tanto comLo-Tsen. Ela é bastante feliz.

A decisão que tinham tomado Barnard e Miss Brin-klow de ficar atrás afigurou-se excelente a Conway, embo-ra parecesse colocá-los, a ele e a Mallinson, temporaria-mente, num mesmo campo oposto. Era uma situação ex-traordinária e não tinha plano definido para enfrentá-la.

Felizmente, parecia não haver necessidade de tomarqualquer atitude por enquanto. Até que decorressem doismeses não poderia suceder coisa de maior. E depois, quan-do sobreviesse a crise, não seria menos aguda por ter eletentado preparar-se para recebê-la. Por esta e por outrasrazões, não desejava inquietar-se com o inevitável, emborativesse dito uma ocasião:

— Sabe, Tchang? Esse jovem Mallinson me deixa

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preocupado. Temo que receba muito mal as coisas quandovier a sabê-las.

Tchang concordou, com alguma simpatia:— Realmente, não será fácil persuadi-lo de sua boa

fortuna. Mas a dificuldade será, em suma, apenas temporá-ria. Dentro de vinte anos o nosso amigo estará inteira-

mente conformado.Pareceu a Conway que isto era encarar o assunto comdemasiada filosofia.

— O que eu desejaria saber é como a verdade lhe se-rá revelada. Está contando os dias à espera dos carrega-dores, e se estes não vêm. . .

— Mas virão.— Ah, sim? Eu imaginava que o que diziam sobre a

 

sua vinda fosse uma fábula amável destinada a entreter-nos.

— De modo algum. Embora não sejamos fanáticosnesse ponto, é costume em Shangri-Lá ser moderadamente

verídico, e posso assegurar-lhe que as minhas informaçõesacerca dos carregadores eram quase exatas. De qualquer

 

forma, nós os esperamos mais ou menos na época que eudisse.

— Nesse caso, acharão difícil impedir que Mallinsonse vá com eles.

— Mas não é nossa intenção impedi-lo. Ele desco-brirá simplesmente — sem dúvida por experiência própria— que os carregadores não estão dispostos a levar em suacompanhia a quem quer que seja, nem se acham em condi-ções de fazê-lo.

— Compreendo. Esse é o método, então? E que espe-ram venha a acontecer depois?

— Então, meu caro senhor, após um período de desi-lusão, ele começará — visto como é moço e otimista — a

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esperar que os novos carregadores, que deverão vir daqui anove ou dez meses, se mostrem mais tratáveis. E nós, co-mo aconselha a prudência, não começaremos por dissuadi-lo dessa esperança.

Conway observou abruptamente:— Não estou muito seguro de que ele se acalmará

desse modo. Acho mais provável que procure um meio defugir.

 

— Fugir? Será esse realmente o termo apropriado?Afinal, o desfiladeiro está aberto a todos e em qualquertempo. Não temos carcereiros, a não ser os que a próprianatureza instituiu.

— Bem — respondeu Conway com um sorriso —,deve confessar que a natureza fez muito bem o trabalho.Mas, ainda assim, suponho que não confiem nela em todosos casos. Que foi feito das diversas expedições que aquivieram ter? O desfiladeiro estava igualmente aberto paraelas quando desejavam regressar?

Tocou agora a Tchang a vez de sorrir.— Circunstâncias especiais, meu caro senhor, exigem

 

algumas vezes especial atenção.

 

— Magnífico. De modo que só dão ensejo de fugir àspessoas quando sabem que seria loucura aproveitá-lo?Mesmo assim, alguns devem fazer a tentativa, não é ver-dade?

— Bem, isso tem acontecido umas poucas vezes, maspor via de regra os que se ausentam voltam de bom grado,após uma noite passada no planalto.

— Sem abrigo e sem roupas adequadas? Neste caso,compreendo muito bem que os métodos suaves dos senho-res sejam tão eficazes quanto a mais rigorosa disciplina.Mas quanto aos casos mais raros daqueles que não vol-tam? 

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— O senhor mesmo respondeu à sua pergunta — re-plicou Tchang. — Não voltam. 

 

Deu-se pressa, contudo, em acrescentar:— Posso assegurar-lhe, entretanto, que poucos foram

tão infortunados, e confio em que seu amigo não seja bas-tante temerário para lhes aumentar o número.

Não achou Conway a resposta de todo tranqüilizadorae o futuro de Mallinson continuou sendo uma preo-cupação. Desejava que fosse possível ao rapaz regressarcom o consentimento dos lamas. Não era um fato sem pre-cedentes, à vista do recente caso de Talu, o aviador. T-chang admitiu que as autoridades do mosteiro estavam ar-madas de poderes suficientes para fazer tudo o que consi-derassem avisado.

— Mas seria avisado, meu caro senhor, confiar-nos econfiar o nosso futuro aos sentimentos de gratidão do seuamigo?

Compreendeu Conway que a objeção era procedente,

pois a atitude de Mallinson poucas dúvidas deixava quantoao que faria tão logo regressasse à índia. Era o seu tema

 

predileto e várias vezes discorrera sobre ele.Mas tudo isso, é claro, pertencia à existência mundana

que pouco a pouco ia sendo expelida do seu espírito pelorico e penetrante mundo de Shangri-Lá. Salvo no que diziarespeito a Mallinson, sentia um contentamento extraordi-nário. A estrutura lentamente revelada deste novo mundocontinuava a assombrá-lo pela sua complexa conformidadecom os seus próprios gostos e necessidades.

Certa ocasião disse a Tchang:— A propósito, como é que os senhores encaixam o

amor no seu plano de existência? Suponho que, às vezes,os que vêm para cá concebam afeição por alguém.

 

— Freqüentemente — respondeu Tchang com um

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vasto sorriso. — Os lamas, bem entendidos, são imunes, etambém todos os que atingimos certa idade, mas afinal de

 

contas somos iguais aos outros homens — salvo, penso eu,no fato de sermos mais razoáveis do que eles. E isto mefornece um ensejo, Mr. Conway, para lhe assegurar que ahospitalidade de Shangri-Lá é muito compreensiva. O seu

amigo Barnard já tirou proveito disso.Conway devolveu-lhe o sorriso, mas respondeusecamente:

— Obrigado. Não duvido de que ele o tenha feito,mas as minhas inclinações, ao menos por ora, não são tãoardentes. É antes o aspecto emocional do que o físico quedesperta a minha curiosidade.

— Acha fácil separá-los um do outro? Será possívelque se esteja enamorando de Lo-Tsen?

 

Conway ficou um tanto confuso, mas julgou não o terdemonstrado.

— Por que pergunta isso?

— Porque, meu caro senhor, seria muito convenienteque se enamorasse dela — uma vez, é claro, que o fizessecom moderação. Lo-Tsen não lhe iria corresponder apaixo-

 

nadamente — isto seria esperar demasiado —, mas garan-to-lhe que acharia deleitosa a experiência. Falo com auto-ridade, pois eu mesmo estive enamorado dela quando eramais jovem.

— Deveras? E correspondeu-lhe?— Apenas com a mais encantadora aceitação da mi-

nha homenagem e com uma amizade que se tem tornadomais preciosa com o correr do tempo.

— Por outras palavras, não lhe correspondeu?— Se prefere dizer assim. . .E Tchang acrescentou, um pouco sentenciosamente:

 

— Sempre foi seu costume poupar aos apaixonados o

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momento de saciedade que sobrevém a toda realização ab-soluta de um desejo.

 

Conway riu.— Isto estará muito bem no seu caso e talvez no meu,

mas qual seria a atitude de um rapaz de sangue ardentecomo Mallinson?

— Meu caro senhor, seria esse o mais auspicioso dosacontecimentos possíveis! Não seria a primeira vez, asse-vero-lhe, que Lo-Tsen consolaria o exilado cheio de deses-pero por saber que daqui não sairá mais.

— Consolaria? — Sim, mas não deve tomar o termo em mau sentido.

Lo-Tsen não dispensa carícias, salvo aquelas que tocam ocoração dolorido e emanam da sua própria presença. Que

 

diz o seu Shakespeare de Cleópatra? "Ela deixa famintoquando mais satisfaz." Um tipo comum, sem dúvida, entreas raças apaixonadas, mas garanto-lhe que uma mulher as-sim estaria completamente desolada em Shangri-Lá. Lo-

Tsen, se me permite emendar a passagem, elimina a fomequando menos satisfaz. É um efeito mais delicado e maisduradouro.

— E ela deve ter grande habilidade em consegui-lo,segundo presumo.

— Oh! sem dúvida. Temos muitos exemplos disso.Seu hábito é acalmar a palpitação do desejo até reduzi-lo aum murmúrio que não deixa de ser agradável, mesmo

 

quando não correspondido.— Nesse sentido, então, poderia ser considerada co-

mo fazendo parte do aparelhamento educativo do es-tabelecimento?

— Pode considerá-la assim, se deseja — replicouTchang em tom de brando protesto; — mas seria muito

 

mais gracioso, e não menos verdadeiro, compará-la ao ar-

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co-íris refletido num vaso de cristal, ou à gota de orvalhodepositada na flor da macieira.

— Concordo plenamente consigo, Tchang. Isso seriamuito mais gracioso.

Conway apreciava as réplicas ágeis e comedidas queo chinês opunha muitas vezes às suas bem-humoradas pro-

vocações.Mas na próxima vez que se encontrou a sós com a pe-quena manchu verificou que eram muito sagazes as obser-vações de Tchang. Emanava dela certa fragrância que secomunicava às emoções de Conway, ativando as cinzas deum fogo que não queimava mas apenas aquecia. E de súbi-to compreendeu que Shangri-Lá e Lo-Tsen eram perfeitos,e não desejou outra coisa senão despertar uma pálida e e-

 

ventual correspondência em toda aquela tranqüilidade. Du-rante anos, suas paixões tinham sido como um nervo que omundo arranhava; agora, a dor se acalmava por fim e elepodia abandonar-se a um amor que não era tortura nem

aborrecimento. Quando passava às vezes pelo lago dos lo-tos, imaginava-a nos seus braços, mas a consciência do

 

tempo apagava-lhe a visão, acalmando-a, inspirando-lhe

 

uma infinita e terna relutância.Pensava que jamais fora tão feliz, mesmo durante os

anos de sua vida que ficavam atrás da grande barreira daguerra. Amava o mundo sereno que lhe oferecia Shangri-Lá, mundo mais pacificado que dominado por aquela idéiaúnica e tremenda. Agradava-lhe aquela disposição de âni-mo predominante, na qual os sentimentos eram envoltosem pensamentos e estes se transformavam em felicidadepelas simples expressão verbal. Conway, a quem a expe-riência ensinara que a rudeza não é em absoluto uma ga-rantia de boa fé, era ainda menos inclinado a ver nas frasesbem torneadas uma prova de insinceridade. Apreciava o

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ambiente pausado e maneiroso, em que a conversa era umaarte, e não mero hábito. E comprazia-se em pensar que ascoisas mais frívolas estavam agora livres da ameaça dotempo perdido, e o espírito podia acolher os sonhos maisfrágeis.

Shangri-Lá era sempre tranqüilo, embora não dei-

xasse de ser uma colméia de compassadas atividades. Vi-viam os lamas, na verdade, como se levassem o tempo emconta, mas este, na sua balança, pesasse tanto como umapluma. Sem que fizesse novos conhecimentos entre eles,Conway foi aos poucos verificando, no entanto, a exten-são e a variedade das suas ocupações. Além do seu saberlingüístico, alguns deles, segundo pôde ver, navegavamem pleno mar da ciência, de um modo que provocaria as-sombro no mundo ocidental. Muitos escreviam obras ma-nuscritas, de várias espécies. Um deles, conforme disseTchang, realizara valiosas pesquisas no domínio da mate-mática pura. Outro estava coordenando Gibbon e Spengler

na formação de uma vasta tese sobre a história da civiliza-ção européia. Mas nem todos se entregavam a essa espé-

 

cie de estudos, nem se ocupavam neles todo o tempo. Ha-via muitos canais estanques em que se metiam por merocapricho, registrando, como Briac, fragmentos de velhasmelodias ou, como o ex-cura inglês, elaborando nova teo-ria sobre o caso de O Morro dos Ventos Uivantes. E haviacoisas ainda menos práticas do que estas. Certa vez,quando Conway fez um reparo nesse sentido, contou-lhe oLama Superior, em resposta, a história de um artista chi-nês que viveu no terceiro século antes de Cristo e que,tendo despendido muitos anos em esculpir dragões, pássa-ros e cavalos num caroço de cereja, ofereceu o trabalhoconcluído a um príncipe real. De início, o príncipe nadapodia ver senão um caroço, mas o artista o aconselhou a

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"mandar construir um muro e neste abrir uma janela, e ob-servar o caroço através da janela, no esplendor da manhã".

 

Assim fez o príncipe, e percebeu então que o caroço erana verdade belíssimo.

— Não é uma história encantadora, meu caro Con-way, e não lhe parece que encerra uma preciosa lição?

Conway concordou. Era-lhe grato constatar que a se-rena finalidade de Shangri-Lá abrangia um número infinito

 

de ocupações estranhas e aparentemente triviais, pois elemesmo sempre tivera gosto por tais coisas. Quando con-templava o seu passado, via-o povoado de idéias de tra-balhos, ou muito vagos ou demasiado grandes para se rea-lizarem, mas que agora se faziam possíveis, mesmo comomeio de ocupar o ócio. Deleitava-se com esta perspectiva enão se sentiu disposto a mofa quando Barnard lhe confiouque também encarava com interesse o seu futuro em Shan-gri-Lá.

Ao parecer, as excursões de Barnard no vale, que por

último se haviam tornado mais freqüentes, não eram intei-ramente dedicadas à bebida e às mulheres.

— Veja, Conway, eu lhe digo isto porque você é di-

 

ferente de Mallinson... Ele tem raiva de mim, como prova-velmente já observou. Mas acho que você poderá com-preender melhor a situação. Coisa esquisita. . . osfuncionários ingleses parecem tão formalistas, tão engo-mados, a princípio, mas afinal a verdade é que se pode terinteira confiança em homens assim.

— Não lhe garanto — redargüiu Conway, sorrindo.— Olhe que Mallinson é tão funcionário inglês quanto eu.

— Sim, mas é uma criança ainda. Não encara os fatosde um modo razoável. Você e eu somos homens do mun-do, tomamos as coisas como elas vêm. Esta casa aqui porexemplo. . . Ainda não compreendemos nada de tudo isto,

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nem sabemos por que nos trouxeram aqui, mas afinal decontas não são assim todos os caminhos da vida? Acasosabemos por que estamos neste mundo?

— Talvez muitos dentre nós não o saibam. Mas aon-de quer chegar?

Barnard baixou a voz, que se fez um murmúrio um

tanto rouco.— Ouro, meu amigo — respondeu, meio extático. —

 

Nem mais nem menos. Toneladas de ouro, literalmente to-neladas, no vale! Em moço fui engenheiro de minas e nãome esqueci de como se reconhece um veio. Acredite-me,este é tão rico como o Rand e dez vezes mais fácil de ex-plorar. Com certeza você pensava que eu ia para a pândegatodas as vezes que lá descia na cadeirinha. Qual nada! Sa-bia o que estava fazendo. Olhe, eu vinha ruminando hámuito que estes camaradas não podiam adquirir tudo o quelhes vem de fora sem pagar um preço elevadíssimo; e comque haviam de pagar, a não ser com ouro, prata, diamantes

ou qualquer coisa desse jaez? Lógica simples, não é? Co-mecei então a bisbilhotar por aí e não tardei muito a des-vendar o mistério.

— Desvendou-o sozinho?— Bem.. . não de um todo, mas fiz as minhas conje-

turas e então expus a coisa a Tchang — francamente, ouçabem, de homem a homem. E creia-me, Conway, esse chimnão é um sujeito tão mau como seria de pensar.

 

— Por minha parte, nunca o considerei mau sujeito.— Sim, sei que você sempre simpatizou com ele, e

não estranhará que nos tenhamos entendido bem. A verda-de é que nos acertamos maravilhosamente. Mostrou-metodas as instalações da mina, e você há de ter interesse emsaber que as autoridades me deram permissão de inspe-cionar todo o vale à vontade e preparar um relatório com-

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pleto. Que lhe parece, meu amigo? Pareceram muito satis-feitos por dispor dos serviços de um perito, principalmente

 

quando lhes disse que podia sugerir meios de aumentarprodução.

— Vejo que você vai sentir-se como em sua casaaqui — disse Conway.

— Bem, o fato é que encontrei uma ocupação, e istonão é pouco. E a gente nunca sabe como vai acabar uma

 

coisa. Pode ser que o pessoal lá na terra não faça tantaquestão de me meter na cadeia quando souberem que eulhes posso indicar uma nova mina de ouro. A única dificul-dade é esta: eles acreditariam na minha palavra?

— Pode ser. A boa fé da humanidade é extraordi-nária.

Barnard assentiu com entusiasmo.— Alegra-me que você tenha compreendido, Conway.

E é sobre este ponto que podemos entrar num entendi-mento. Metade por metade em tudo, bem entendido. Tudo

o que quero de você é que aponha a sua assinatura no meurelatório. Cônsul inglês et cetera e tal. Isso vale muito.

 

Riu-se Conway.— Havemos de tratar disso. Primeiro faça o seu rela-

tório.Divertia-o a idéia desse negócio cuja realização era

tão improvável e ao mesmo tempo sentia-se contente porhaver Barnard encontrado uma ocupação tão satisfatória.

 

Compartilhava desse sentimento o Lama Superior, aquem Conway visitava cada vez mais amiúde. Não raro iavê-lo a horas adiantadas da noite e ficava largo tempo, atémuito depois de retirarem os criados as últimas taças de

 

chá e serem mandados dormir. Nunca deixava o Lama Su-

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perior de interrogá-lo sobre os progressos e o bem-estar deseus companheiros, e certa vez o inquiriu particularmenteacerca de suas profissões, forçosamente interrompidasdesde a chegada a Shangri-Lá.

Conway respondeu em tom refletido:— Mallinson poderia ter uma bela carreira. É enér-

gico e tem ambição. Quanto aos outros dois... — ajuntou,encolhendo os ombros — o fato é que lhes convém a esta-da aqui, pelo menos durante algum tempo.

Notou um bruxuleio de luz através da janela encorti-nada. Percebera um rumor de trovões ao atravessar os pá-tios em direção à sala, que se lhe tornara já tão familiar.Não ouvia, agora, som algum, e os grossos reposteirosamorteciam os relâmpagos reduzindo-os a pálidos vislum-

 

bres de claridade.— Sim — respondeu o Lama Superior. — Fizemos o

possível para que ambos se sintam à vontade. Miss Brin-klow deseja converter-nos, e Mr. Barnard também gostaria

de nos converter. . . numa companhia de responsabilidadelimitada. Projetos inofensivos, que os ajudarão a passar a-

 

gradavelmente o tempo. Mas quanto ao seu jovem amigo,

 

a quem nem o ouro nem a religião podem oferecer confor-to —, que faremos dele?

— Sim, vai tornar-se um problema.— Receio que se torne o seu problema.— Porque meu? Não teve Conway resposta imediata. O serviço de chá

foi introduzido naquele momento e o Lama Superior assu-miu as maneiras de uma débil e ressequida hospitalidade.

— O Karakal nos envia tormentas nesta época do ano— observou, adornando a conversação de acordo com o ri-tual. — O povo da Lua Azul acredita que elas são cau-sadas por demônios enraivecidos que andam soltos nos

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vastos espaços além do desfiladeiro. "Lá fora", dizem eles.Talvez tenha notado que no seu dialeto a expressão desig-

 

na todo o resto do mundo. É claro que nada sabem de paí-ses como a França, a Inglaterra, ou mesmo a Índia. Imagi-nam que o terrível altiplano não tem fim. Para eles, tão a-brigados no seu vale quente e sossegado, parece inconcebí-

vel que um morador daqui deseje ir embora. Supõem mes-mo que todos os infelizes "forasteiros" anseiem por vir paracá. É uma simples questão de ponto de vista, não acha?

Conway recordou-se das observações semelhantes deBarnard e referiu-as.

— Como ele é sensato! — comentou o Lama Supe-rior. — E é o primeiro americano que temos entre nós.Fomos realmente felizes.

Conway achou graça ao pensar que era uma felicidade

 

para o mosteiro a aquisição de um homem que a polícia dedoze países procurava ativamente. Gostaria de comunicaro chiste, mas pareceu-lhe que seria preferível contar o pró-

prio Barnard a sua história na ocasião azada. Limitou-se,pois, a dizer:

— Não resta dúvida de que ele tem toda a razão, e háhoje em dia no mundo muita gente que teria satisfação emvir para cá.

— Gente demais, meu caro Conway. Nós somos umúnico bote salva-vidas, afrontando os mares numa borras-ca; podemos recolher alguns sobreviventes que o acaso

 

nos depara, mas se todos os náufragos nos alcançassemsubissem a bordo correríamos risco de ir ao fundo tam-bém. . . Mas deixemos de pensar nisso agora. Soube quetem discreteado com o nosso excelente Briac. Um encanta-dor compatriota meu, embora não compartilhe a sua opi-nião de que Chopin é o maior dos compositores. Quantomim, como sabe, prefiro Mozart. . .

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Somente depois de retirado o serviço de chá e de se-rem finalmente despedidos os criados foi que Conway seaventurou a repetir a sua pergunta que ficara sem resposta:

— Falávamos a respeito de Mallinson e o senhor dis-se que ele seria o meu problema. Por que meu?

Então o Lama Superior respondeu muito simples-

mente:— Porque estou prestes a morrer, meu filho.A declaração parecia extraordinária, e por algum tem-

po Conway não pôde articular uma palavra. Finalmente oLama Superior continuou:

— Ficou surpreso? Mas é claro, meu amigo, que to-dos somos mortais.. . mesmo em Shangri-Lá. E é possívelque ainda me restem alguns momentos, ou quem sabe al-

 

guns anos. . . Apenas lhe participo a singela verdade de

 

que já vejo próximo o fim. É muito gentil em mostrar-seassim compungido, e não pretendo ocultar que, mesmo naminha idade, contempla-se a morte com certa melancolia.

Por felicidade, pouco sobra de mim para morrer fisica-mente, e, quanto ao resto, todas as nossas religiões pos-

 

suem em comum um agradável otimismo. Sinto-me con-

 

tente, mas devo acostumar-me a uma estranha sensaçãodurante as horas que me restam: devo compreender que sótenho tempo para uma coisa mais. Não imagina o que se-

 ja?Conway permaneceu calado.— Ela te diz respeito, meu filho.— Faz-me uma grande honra.— Tenho em mente fazer muito mais do que isto.Inclinou-se Conway levemente, sem falar, e o Lama

Superior, depois de aguardar por um momento, continuou:— Talvez saibas que a freqüência destas conversa-

ções não é usual aqui. Mas é da nossa tradição, se me per-

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mites o paradoxo, não sermos escravos da tradição. Nãotemos normas rígidas, nenhuma regra inflexível. Fazemos

 

o que nos parece justo, guiados um tanto pelo exemplo dopassado, porém muito mais pela nossa sabedoria presente epela clarividência do futuro. E eis por que me sinto comânimo de levar a cabo este último intento.

Conway guardava o mesmo silêncio.— Deponho em tuas mãos, meu filho, a herança e o

 

destino de Shangri-Lá.Relaxou-se por fim a tensão, e Conway sentiu atrás

dela o poder de uma persuasão suave e benigna. Os ecosmergulharam no silêncio, e só ficaram as pancadas do seucoração, que batia como um gongo. Depois, interceptandoo ritmo, vieram as palavras:

— Esperei-te, meu filho, durante longo tempo. Senta-

 

do nesta sala, olhava a fisionomia dos recém-chegados,perscrutava-lhes os olhos e ouvia-lhes a voz, sempre naesperança de algum dia encontrar-te. Meus colegas enve-

lheceram e adquiriram sabedoria, mas tu ainda tão jovem,possuis já a mesma sabedoria. Meu amigo, não é árdua a

 

tarefa que te lego, pois a nossa ordem só conhece cadeias

 

de seda. Ser brando e paciente, velar pelos tesouros do es-pírito, presidir com sabedoria e sigilo enquanto a tempes-tade ruge lá fora — tudo isso te será muito simples e agra-dável, e sem dúvida encontrarás nessas coisas grande feli-cidade.

De novo tentou Conway replicar, mas não pôde. Afi-nal, um forte relâmpago fez empalidecer as sombras e oincitou a exclamar:

— A tormenta. . . essa tormenta de que fala.. .— Será uma tormenta, meu filho, como jamais o

mundo viu outra igual. Não haverá segurança pelas armas,nem auxílio dos poderosos, nem resposta de ciência. Rugi-

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rá até que todas as flores da cultura tenham sido espezi-nhadas e todas as coisas humanas se nivelem num vastocaos. Tal foi a minha visão quando Napoleão era ainda umnome desconhecido. E continuo a vê-la, mais clara a cadahora que passa. Podes dizer que me engano?

Conway respondeu:

— Não, penso que pode ter razão. Uma catástrofesemelhante aconteceu uma vez, e veio então a Idade dasTrevas, que durou quinhentos anos.

— O paralelo não é inteiramente exato, porque essaIdade das Trevas não foi na realidade tão escura. Havia portoda parte clarões de lanternas, e, ainda que a luz se hou-vesse apagado por completo na Europa, existiam outroslumes, da China ao Peru, nos quais poderia ser de novo a-cesa. Mas a Idade das Trevas que está por vir cobrirá omundo todo como uma única mortalha. E não haverá esca-patória nem refúgio, salvo os que forem demasiado secre-tos para ser encontrados, ou tão humildes que ninguémlhes dê atenção. E Shangri-Lá pode talvez ser ambas ascoisas. O aviador que demanda as grandes cidades com asua carga mortífera não passará por aqui, e, se o fizer, tal-vez não nos considere dignos de uma bomba.

— E pensa que tudo isso acontecerá no meu tempo?— Acredito que sobreviverás à tormenta. E ainda de-

pois, através da longa época de desolação, poderás con-tinuar a viver, tornando-te mais velho, mais sábio e maispaciente. Conservarás a fragrância da nossa tradição e a-crescentar-lhe-ás o toque do teu próprio espírito. Acolhe-rás o estranho e lhe ensinarás as regras da sabedoria e da

longa vida; e poderá acontecer que um desses estranhosvenha a suceder-te quando estiveres muito velho. Para a-lém desse ponto minha visão se turva, mas ainda vislum-

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bro, a grande distância, um novo mundo que nasce das ru-ínas, agitando-se desajeitado, mas cheio de esperança, àprocura dos legendários tesouros que perdeu. E estarão to-dos aqui, meu filho, ocultos por detrás das montanhas, novale da Lua Azul, preservados como por milagre para umnovo Renascimento. . .

Cessou a fala e sob os olhos de Conway o rosto ba-nhou-se de remota beleza. Então desapareceu o resplendore não quedou senão uma máscara, mergulhada na sombra eesfarelando-se como madeira velha. Estava completamenteimóvel e tinha os olhos fechados. Observou-o Conway du-rante algum tempo e afinal, como se fosse num sonho,compreendeu que o Lama Superior estava morto.

Pareceu-lhe necessário referir a situação a uma reali-dade qualquer, a fim de que não se tornasse demasiado es-tranha para ser acreditada, e com instintivo movimento demão e olhos, consultou o relógio de pulso. Passava umquarto da meia-noite. Subitamente, quando atravessava asala dirigindo-se para a porta, ocorreu-lhe que não sabiasequer onde e como iria pedir auxílio. Os tibetanos, segun-do o costume, já se haviam todos recolhido e ele não tinhaidéia de como encontrar Tchang ou qualquer outro. Dete-ve-se indeciso no limiar do escuro corredor. Por uma jane-la pôde ver que o céu estava claro, embora as montanhasainda resplandecessem à luz dos relâmpagos, como um a-fresco prateado. E então, no meio daquele sonho sereno eenvolvente, sentiu-se senhor de Shangri-Lá. Eram suas es-sas coisas amadas que o cercavam, essas coisas recônditasdo espírito, entre as quais vivia com crescente intensidade,

longe da agitação do mundo. Seus olhos mergulharam nassombras e prenderam-se aos pontinhos de ouro que faisca-vam nas lacas soberbas e ondulantes; e o aroma das angé-

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licas, tão tênue que mal chegava a ser uma sensação, atraí-a-o de peça em peça. Por fim deparou com a porta dos pá-tios e pôs-se a errar à beira do lago. A lua cheia singrava océu por detrás do Karakal. Faltavam vinte minutos para asduas.

Mais tarde percebeu que Mallinson estava junto dele,

que o tomava pelo braço e o levava dali com grande pres-sa. Não compreendia de que se tratava. Apenas ouvia avoz do rapaz, que falava muito agitado.

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CAPÍTULO XI

Chegaram à sala com sacadas, onde lhes eram servi-das as refeições. Mallinson ainda lhe apertava o braço qua-se arrastando-o para diante.

— Venha, Conway, temos tempo até o amanhecerpara arrumar as nossas coisas e ir embora. Grande notícia,homem! Imagino o que dirão amanhã o velho Barnard eMiss Brinklow, quando derem pela nossa falta. . . Enfim,ficam porque querem, e provavelmente viajaremos muito

 

melhor sem eles... Os carregadores estão a cerca de cincomilhas do desfiladeiro. Chegaram ontem com uma remessade livros e outras coisas. . . Amanhã vão voltar. . . Mostraque esses indivíduos tinham a intenção de nos enganar . . .nem nos avisaram. . . íamos ficar presos aqui até sabeDeus quando. , . Mas que tem você? Está doente?

Afundara-se Conway numa cadeira e estava inclinadopara a frente, com os cotovelos na mesa. Passou a mão pe-los olhos.

— Doente? Não, penso que não. Talvez um pouco. . .cansado.

— Deve ser a tormenta. Onde esteve todo esse tem-po? Há horas que estava à sua espera.

— Estive. . . visitando o Lama Superior.

— Ah, esse! Bem, em todo caso foi a última vez,graças a Deus!

— Sim, Mallinson, a última vez.

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Algo na voz de Conway e ainda mais no silêncio quese seguiu provocou irritação no moço.

 

— Seria bom que não ficasse nessa moleza. Temosmuito que fazer, como sabe!

Conway retesou-se no esforço que fez para voltar àplena consciência.

— Sinto muito — disse.Para experimentar seus nervos e a realidade de suassensações, acendeu um cigarro. Verificou que tanto asmãos como os lábios estavam trêmulos. .

— Receio não ter entendido bem. . . Diz você que oscarregadores. . . 

— Sim, os carregadores, homem! Por favor, caia emsi!

— Está pensando em ir com eles?— Pensando?! Vou com eles, com o demônio! Estão

pouco além da cordilheira. E temos de nos pôr em marchaimediatamente.

—  Imediatamente?— Sim, sim, por que não?Conway fez nova tentativa para se transportar de um

mundo para o outro. Como o conseguisse em parte, dissefinalmente:

— Você compreende, sem dúvida, que isso talveznão seja tão simples como parece?

Mallinson estava amarrando umas botas tibetanas demontanha e respondeu em frases entrecortadas:

— Compreendo tudo. . . mas trata-se de uma coisaque temos de fazer. . . e faremos, com a ajuda da sorte. . .se não perdermos tempo.

— Não vejo como. . .— Ó Senhor! Conway, será que você recua diante de

tudo? Por acaso perdeu toda a fibra?

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A interpelação, um tanto apaixonada e um tanto sar-dônica, ajudou Conway a tomar acordo de si.

 

— Se perdi ou não, não vem ao caso; mas, se desejaque me explique, eu me explicarei. Quero expor-lhe deta-lhes importantes. Suponhamos que você atravesse o desfi-ladeiro e encontre os carregadores. Como sabe se eles que-

rerão levá-lo? De que modo os induzirá a isso? Não lheocorreu que, ao contrário do que imagina, eles talvez se

 

mostrem pouco dispostos? Não pode apresentar-se diantedeles e pedir-lhes que o conduzam. É necessário entrar emnegociações, fazer um ajuste prévio. . .

— Ou qualquer outra coisa que acarrete nova demora— exclamou Mallinson com violência. — Meu Deus, quehomem! Felizmente, não preciso contar com você para ar-ranjar as coisas. Porque elas estão arranjadas; os carre-

 

gadores foram pagos adiantado e concordaram em nos le-var. E aqui estão as roupas e o equipamento para a viagem,tudo pronto. Assim, a sua última escusa desaparece. Venha

daí, façamos alguma coisa!— Mas... eu não compreendo. . .— Eu sei disso, mas não importa.— Quem foi que organizou todos esses planos?Mallinson respondeu com brusquidão:— Pois se faz questão de saber, foi Lo-Tsen. Já está

com os carregadores à nossa espera.— À nossa espera?— Sim, ela vai conosco. Creio que você não se opõe.

À menção de Lo-Tsen, os dois mundos entraram emcontato e fundiram-se instantaneamente no espírito deConway. Gritou vivamente quase com desprezo:

— Isto é um disparate. É impossível!

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Mallinson, por sua vez, perguntou cortante:— Por que impossível?— Porque. . . bem, porque é. Há uma série de ra-

zões. Creia-me, isso não pode dar certo. Já é bastante in-crível que ela esteja lá fora neste instante. . . espantou-meo que você disse. . . mas a idéia de Lo-Tsen ir conosco é

simplesmente absurda. — Não vejo por que possa ser absurda, afinal de con-

 

tas. É tão natural que ela queira ir! É aí que você se enga-na.

Mallinson sorriu nervosamente.— Você pensa que a conhece muito melhor do que

eu. Mas talvez não conheça, apesar de tudo.— Que quer dizer?— Há outros meios de entender as pessoas, sem que

seja preciso aprender dúzias de línguas.— Em nome do céu, aonde quer você chegar?E, mais calmo, Conway acrescentou:

— Isto não tem pés nem cabeça. Não devemos discu-tir. Diga-me, Mallinson, o que significa tudo isso? Até a-

 

gora não entendi nada.

 

— Então por que está fazendo tamanho barulho?— Diga-me a verdade; por favor, diga-me a verdade!— Bem, é bastante simples. Uma garota dessa idade,

encerrada aqui entre velhos excêntricos. . . é natural quequeira ir embora se lhe dão um ensejo. Até agora não se

 

apresentara nenhum.— Não imagina que possa estar enganado, atribuin-

do-lhe uma situação que é puramente sua? Como semprelhe tenho dito, ela é perfeitamente feliz.

— Então por que concordou em ir embora?— Disse isto? Como podia fazê-lo, se não sabe in-

glês? 

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— Eu lhe perguntei... em tibetano. Foi Miss Brin-klow que me ensinou as palavras. Claro que não foi umaconversação muito fluente, mas bastou para. . . para levar aum entendimento.

Mallinson corou de leve.— Irra, Conway. não me encare desse modo! Quem

o visse diria que estive caçando no seu cercado.— Ninguém diria semelhante coisa, espero — res-

 

pondeu Conway. — Mas a sua observação revela muitomais do que você desejaria talvez dar-me a entender. Sóposso dizer que lamento muito.

— E por que diabo há de lamentar?Conway deixou cair o cigarro que tinha entre os de-

dos. Sentia-se cansado, aborrecido e agitado por um pro-

 

fundo conflito de afeições que bem desejaria não ter des-

 

pertado. Disse com brandura:— Seria melhor que deixássemos de falar por enig-

mas. Sei que Lo-Tsen é encantadora, mas por que havemos

de disputar por causa dela?— "Encantadora"? — repetiu Mallinson, escarninho.

— É muito mais do que isso. Você não deve pensar quetodos tenham o seu sangue-frio com relação às mulheres.Admirá-la como se fosse uma peça de museu talvez seja aidéia que você faz do seu mérito, mas quanto a mim soumais prático, e quando vejo em situação difícil uma criatu-ra que me agrada, faço tudo por ajudá-la.

 

— Mas não acha que está agindo precipitadamente?Para onde pensa que ela irá, se sair daqui?

— Penso que deve ter amigos na China ou em qual-quer outra parte. Seja como for, estará melhor do que aqui.

— Como pode ter certeza disso?— Bem, eu olharei por ela se não houver ninguém

que o faça. Afinal de contas, quando se vai salvar alguém

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de um inferno, não se costuma indagar se esse alguém tempara onde ir.

— E considera um inferno Shangri-Lá?— Positivamente. Há neste ambiente qualquer coisa

de tenebroso e diabólico. Nosso próprio caso demonstra-obem, desde o princípio; a maneira como fomos trazidos

para cá, sem o menor motivo, por algum maluco, e o modocomo nos foram retendo, sob um pretexto ou outro. Porémo mais assustador de tudo, a meu ver, foi o efeito que pro-duziu em você.

— Em mim?— Sim, em você. Você deu para andar na lua, como

se nada lhe importasse e como se estivesse conformado aficar aqui para sempre. Pois se chegou a reconhecer queeste lugar lhe agradava!. .. Que foi que lhe sucedeu, Con-

 

way? Será que não pode voltar a ser como era antes? Nósnos entendíamos tão bem em Baskul. . . Você era comple-tamente outro, então.

— Meu bom rapaz!Conway estendeu a mão a Mallinson, que a apertou

com afeição veemente e impetuosa, prosseguindo:— Suponho que não o tenha notado, mas me senti

terrivelmente só estas últimas semanas. Ninguém pareciaimportar-se com a única coisa que era realmente importan-te... Barnard e Miss Brinklow tinham lá seus motivos, masfiquei aterrado quando descobri que você também estavacontra mim.

— Lamento-o deveras.— Você repete sempre isto, mas de que serve?

Conway replicou, levado por um impulso repentino:— Bem, deixe-me ajudá-lo, se for possível, contan-

do-lhe certas coisas. Depois de ouvi-las, estou certo de que

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compreenderá grande parte do que agora lhe parece estra-nho e obscuro. Pelo menos, compreenderá por que Lo-Tsen não pode voltar em sua companhia.

— Creio que não há nada que me possa convencerdisso. E abrevie o mais possível o que tem para dizer, poisnão podemos perder tempo.

Conway então contou, o mais resumidamente que pô-de, toda a história de Shangri-Lá tal como a ouvira do La-ma Superior, acrescida de novos detalhes colhidos nasconversações com este e com Tchang. Era uma coisa quenão pretendia fazer, mas sentia que nas atuais circuns-tâncias isso era justificável e até necessário. Mallinsontornara-se, na verdade, o seu problema, e estava empe-nhado em resolvê-lo. Narrou tudo com rapidez e fluência,e ao fazê-lo caiu de novo sob o sortilégio daquele estranho

 

mundo exterior ao tempo. A beleza desse mundo o subju-gava enquanto ia falando, e mais de uma vez teve a im-pressão de estar lendo uma página impressa na memória,tão nitidamente se haviam gravado as idéias e as frases. Sóuma coisa omitiu, e isto para poupar a si próprio uma emo-ção que não poderia ainda dominar: a morte do Lama Su-perior naquela noite e o fato de que iria suceder-lhe.

Ao se aproximar do fim sentiu-se aliviado. Estava sa-tisfeito por haver vencido a dificuldade, e esta, enfim, eraa única solução. Ergueu os olhos calmamente assim queterminou, na certeza de que havia procedido bem.

Entretanto, Mallinson não fazia mais do que tambori-lar na mesa com os dedos. Ao cabo de uma longa esperafalou:

— Francamente, não sei o que dizer, Conway... a nãoser que você deve estar completamente louco. ..

Seguiu-se um largo silêncio, durante o qual os dois

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homens se encararam com sentimentos bem diversos:Conway alheado e desapontado, Mallinson num violento einquieto mal-estar.

— Então você me julga louco? — disse Conway afi-nal.

Mallinson desatou num riso nervoso.

— Bem, que outra coisa poderia dizer, depois de umahistória como esta? Quer dizer. . . ora, com franqueza. . .um absurdo tão evidente. . . parece-me que não vale a pe-na discutir.

A expressão e a voz de Conway eram de imenso as-sombro.

— Acha que é absurdo?— Pois que nome daria você a isso? Desculpe-me,

Conway. . . o que vou dizer é um pouco forte. . . mas nãovejo como uma pessoa de juízo são possa ter dúvidas arespeito.

— Então continua acreditando que viemos ter aqui

devido a um simples acaso, por obra de um lunático quepreparou cuidadosamente o plano de fuga num aeroplano e

 

voou milhas por mera brincadeira?Conway ofereceu um cigarro, que o outro aceitou. A

pausa que se seguiu pareceu ser do agrado de ambos. Fi-nalmente Mallinson respondeu:

— Olhe, não convém discutir isso ponto por ponto.Na verdade, a sua teoria de que esta gente daqui enviou al-

 

guém a vaguear pelo mundo, à caça de estrangeiros, e queesse sujeito fez curso de piloto e ficou à espera de que umaparelho apropriado aos seus intuitos deixasse Baskul comquatro passageiros. . . bem, não direi que isso seja de todoimpossível, embora me pareça ridiculamente forçado. Se acoisa parasse aí, poderia ser digna de consideração, mas

 

quando você a prende a toda aquela série de detalhes abso-

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lutamente impossíveis. . . isso de os lamas terem centenasde anos de idade, e que descobriram uma espécie de elixirda juventude ou coisa que o valha. . . bem, isso simples-mente me faz perguntar aos meus botões que sorte de mi-cróbio o mordeu, eis tudo.

Conway sorriu.

— Sim, não é de estranhar que ache difícil acreditarnisso. Talvez eu mesmo tenha duvidado no princípio. . .Não me recordo bem. Sem dúvida é uma história extraor-dinária, mas deve ter verificado com os seus próprios o-lhos que este lugar também é extraordinário. Pense em tu-do o que até agora vimos: um vale perdido entre monta-nhas inexploradas, um mosteiro com uma biblioteca de li-vros europeus. . .

— Oh! sim, e calefação interna, e encanamentos mo-dernos, e chá da tarde, e tudo mais. . . Tudo isto é real-mente maravilhoso, eu sei.

— Bem, e como o explica, então?— Confesso que não posso fazer idéia. É um com-

pleto mistério. Mas isso não é motivo para aceitar históriasque são materialmente impossíveis. Acreditar em banhosquentes que a gente toma é muito diferente de acreditar naexistência de homens com mais de duzentos anos, só por-que eles o dizem.

Mallinson riu outra vez, ainda contrafeito.— Olhe aqui, Conway, este lugar afetou-lhe os ner-

vos, e isso não me admira. Arrume as suas coisas e vamos.Terminaremos esta discussão daqui a um mês ou dois, di-ante de um bom jantar no Maiden.

Conway respondeu tranqüilamente:— Não tenho nenhum desejo de voltar a essa vida.— Que vida?

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— A vida em que você está pensando. Jantares, bai-les, pólo. . . e mais o que se segue.

 

— Mas eu não falei em bailes nem em pólo! Em todocaso, que há de mal nisso? Quer dizer que não pretende vircomigo? Prefere ficar aqui como os outros dois? Mas pelomenos não há de impedir que eu me safe o quanto antes!

Mallinson deitou fora o cigarro e enveredou em dire-ção à porta, despedindo chispas pelos olhos.

 

— Você está fora do juízo! — gritou, exasperado. —Está louco, essa é a verdade, Conway! Sei que sempre foicalmo e eu sou irritável, mas com tudo isso tenho o juízoperfeito, e você não tem! Preveniram-me antes que eu me

 juntasse a você em Baskul, e eu pensei que se enganavam,mas agora vejo que tinham razão. . .

 

— De que o preveniram?— Disseram-me que você foi atingido por uma ex-

plosão de granada durante a guerra, e que desde então ficatresloucado às vezes. Não o estou censurando por isso. Sei

que não tem culpa, e Deus sabe o que me custa falar as-sim... Oh, vou-me embora! Tudo isto é horrível e desalen-tador, mas tenho de ir. Dei a minha palavra.

— A Lo-Tsen?— Sim, já que deseja saber.Conway ergueu-se e estendeu a mão.— Adeus, Mallinson.— Pela última vez, não vem conosco?— Não posso.— Adeus, então.Apertaram-se as mãos e Mallinson afastou-se.

Quedou-se Conway sozinho à luz das lanternas. Pare-ceu-lhe, de acordo com uma frase gravada na memória,

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que as coisas mais belas eram transitórias e perecíveis, queos dois mundos afinal eram irreconciliáveis e que um de-les, como sempre, estava suspenso por um fio. Depois demeditar por algum tempo, olhou o relógio. Faltavam dezminutos para as três.

Estava ainda junto à mesa, fumando o último cigarro,

quando Mallinson voltou. O rapaz entrou tomado de certaemoção e, vendo-o ali, permaneceu na sombra, como tra-

 

tando de se dominar. Estava calado, e depois de esperarum momento Conway começou:

— Olá, que aconteceu? Por que voltou?A pergunta tão natural fez com que Mallinson desse

alguns passos à frente. Tirou a pesada capa de pele de ove-lha e sentou-se. Tinha o rosto cor de cinza e todo o seucorpo tremia.

— Não tive ânimo! — exclamou, quase soluçando.— Aquele lugar em que fomos amarrados, lembra-se?Cheguei até lá... mas não pude continuar! Não tenho ca-

beça para as alturas, e ao luar aquilo é medonho. Estúpido,não acha?

Abateu-se por completo. Sobreveio-lhe uma crise denervos e por fim, depois de tê-lo Conway acalmado, acres-centou:

— Não precisam preocupar-se estes sujeitos da-qui . . . Nunca serão ameaçados por terra. Mas, meu Deus,quanto eu daria para voar por cima disto com uma carga de

 

bombas!— Por que desejaria fazer isso, Mallinson?— Porque este lugar precisa ser destruído, seja ele o

que for. É um lugar sórdido e nefasto. . . e, se fossem ver-dadeiras as histórias incríveis que você me contou, seriamais odioso ainda! Dúzias de velhos encarquilhados, aga-chados aqui como aranhas à espreita do primeiro que lhes

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passe perto. . . é asqueroso! E afinal quem desejaria vivertanto assim? E quanto ao seu rico Lama Superior, se temmetade da idade que você diz, já é tempo de alguém livrá-lo dessa miséria. . . Oh! por que não quer vir comigo,Conway? Detesto implorar-lhe a minha própria salvação,mas, que diabo, sou moço e temos sido tão bons amigos!

Minha vida nada vale então para você comparada com aspatranhas dessas criaturas hediondas? E Lo-Tsen, então. . .Ela é jovem; não merece ser levada em conta?

— Lo-Tsen não é jovem — disse Conway.Mallinson alçou os olhos e pôs-se a rir histericamente.— Oh! não, não é jovem! Absolutamente! Parece ter

uns dezessete anos, mas você me vai dizer com certeza queela anda pelos noventa, bem conservados.

— Mallinson, ela veio para cá em 1884.— Você está delirando, homem!— Sua beleza, Mallinson, como toda beleza no

mundo, jaz à mercê daqueles que não lhe sabem dar o de-vido valor. É uma coisa frágil que só pode viver onde ascoisas frágeis são amadas. Tire-a deste vale e vê-la-á des-vanecer-se como uma miragem.

Mallinson teve um riso áspero, como se haurisse con-fiança nos seus pensamentos.

— Não receio tal coisa. Aqui é que ela é apenas umamiragem, e não em qualquer outro lugar.

Fez uma pausa e acrescentou:— Mas esta conversa não resolve nada. Seria melhor

que deixássemos de lado o poético e descêssemos à reali-dade. Conway. desejo ajudá-lo. Sei que tudo isso é puro

disparate, mas estou disposto a discuti-lo se da discussãolhe resultar algum bem. Farei de conta que se trata de coi-sas possíveis e que requerem exame. Agora diga-me seria

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mente: que provas tem da veracidade da história que mecontou ?

Conway permaneceu calado.— Apenas a palavra de quem lhe impingiu essa fan-

tástica conversa fiada. Ainda que se tratasse de uma pessoamerecedora de toda a confiança, e que você tivesse conhe-

cido a vida inteira, não aceitaria tais coisas sem prova. Eque provas tem no caso presente? Absolutamente nenhu-ma, que eu veja. Lo-Tsen lhe contou alguma vez a sua vi-da?

— Não, mas. . .— Então por que acreditar na versão de um outro? E

toda essa fábula de longevidade. . . pode apresentar algumfato que venha em seu apoio?

Conway refletiu por um momento e mencionou ascomposições inéditas de Chopin, que Briac tocara.

— Bem, este é um assunto que não me diz nada, pois

não conheço música. Mas, mesmo que fossem autênticas,não seria possível que ele as tivesse ouvido de alguém,sem que essa história seja verdadeira?

— Perfeitamente possível, sem dúvida.— E esse método que você diz existir. . . conservação

da juventude, e tal e coisa. Em que consiste ele? Você dis-se que se trata de uma certa droga. . . Mas eu quero saberque droga é. Viu-a por acaso, ou provou-a? Porventura al-guém lhe apresentou algum fato positivo que demons-trasse a sua eficácia?

— Não em detalhe, é verdade.

— E você nunca pediu detalhes? Não lhe ocorreu quesemelhante coisa exigia confirmação? Engoliu tudo sempestanejar?

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E, tirando proveito da sua vantagem, Mallinsoncontinuou:

— Que sabe de positivo acerca deste lugar, além doque lhe disseram? Falou com meia dúzia de velhos, eis tu-do. Fora disso, só podemos dizer que o lugar está bem apa-relhado e reina aqui certa atmosfera de cultura. Agora,

quanto a saber como e por que isso veio a ter existência,não fazemos a menor idéia. Também é um mistério o moti-vo por que nos querem prender aqui, se é que têm essa in-tenção. Mas por certo isso não é razão para dar crédito àprimeira lenda que lhe contam! Afinal, homem, você éuma pessoa dotada de senso crítico! Não acreditaria emqualquer coisa que lhe dissessem, mesmo num mosteiroinglês. Francamente, não compreendo como aceita tudo

 

sem hesitar, só porque está no Tibete!Conway moveu a cabeça em sinal de assentimento.

Embora a sua percepção fosse mais profunda, não podia;negar aprovação a um argumento bem apresentado.

— A observação é fina, Mallinson. A verdade, supo-nho, é que quando se trata de acreditar nas coisas sem pro-vas reais, todos nós nos inclinamos para aquilo que maisnos agrada.

— Arre, que me enforquem se vejo alguma coisa deagradável em continuar vivendo quando já se está meiomorto! Antes uma vida curta, mas alegre. E isso dumaguerra futura me parece muito fantasioso. Quem poderá

 

saber quando vai dar-se a próxima guerra e como será ela?Por acaso não se enganaram todos os profetas da últimaguerra?

Calou-se à espera de uma resposta, mas, como estanão viesse, prosseguiu:

— Como quer que seja, não acredito que essas coisas

 

sejam inevitáveis. E, ainda que fossem, não vejo razão pa-

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ra nos pormos a tremer de susto. Só Deus sabe se eu meportaria como um valente numa guerra, mas preferiria en-

 

frentá-la a sepultar-me vivo neste lugar.Conway sorriu.— Mallinson, você tem a soberba habilidade de não

me entender. Quando estávamos em Baskul tomava-me

por um herói. Agora me considera um covarde. A verdadeé que não sou nem uma nem outra coisa — embora, natu-ralmente, isso não tenha importância para mim. Se quiserpode dizer a toda gente, quando voltar à Índia, que resolvificar num mosteiro tibetano porque tenho medo de outraguerra. Não é esse em absoluto o motivo, mas não deixaráde merecer o crédito daqueles que me consideram louco.

Mallinson respondeu com alguma tristeza:

 

— É ridículo falar assim. Aconteça o que acontecer,

 

 jamais direi uma palavra contra você. Pode estar certo dis-so. Reconheço que não o entendo, mas. . . mas desejariaentender. Sim, eu o desejo! Conway, não poderei ajudá-lo?

Que é preciso que eu diga ou faça?Seguiu-se um longo silêncio, que Conway afinal que-

 

brou dizendo:— Há uma pergunta que desejava fazer-lhe, mas é

terrivelmente íntima. Não sei se me perdoará.— O que é?— Está apaixonado por Lo-Tsen?A palidez do rapaz cedeu lugar rapidamente a um vi-

 

vo rubor.— Penso que estou. Sei que você qualificará isso de

absurdo e inconcebível, e é provável que tenha razão, masnão posso evitar meus sentimentos.

— Não me parece absurdo, de modo algum.A discussão parecia navegar agora em águas mais

 

tranqüilas, depois de tantos embates. Conway acrescentou:

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— Eu também não posso evitar os meus sentimentos.Sucede que você e essa moça são as duas pessoas por

 

quem mais me interesso no mundo, embora isto possa pa-recer-lhe singular.

Ergueu-se abruptamente e entrou a passear pela sala.— Já dissemos tudo o que podíamos, não é verdade?

— Suponho que sim — respondeu Mallinson, que noentanto prosseguiu, num ímpeto repentino: — Oh! como é

 

estúpido dizer que ela não é jovem! Estúpido e abominá-vel. Conway, você não pode acreditar nisso! Pois não vêque é uma coisa ridícula? Como será isso possível?

— Como pode você saber que ela é realmente jovem?Mallinson desviou parcialmente o rosto, com uma ex-

pressão de timidez grave.

 

— Porque sei... Talvez venha a me estimar menospor causa disto. . . mas eu sei. Receio que você nunca a te-nha compreendido bem, Conway. Ela era fria na aparência,devido a este ambiente que lhe gelou todo o ardor. Mas o

ardor existia.— Pronto para ser reavivado?— Sim... se quer exprimir-se desse modo.— E ela é jovem, Mallinson. . . está seguro disso?Mallinson respondeu suavemente:— Meu Deus, sim. . . é uma simples menina. Eu ti-

nha imensa pena dela e creio que nos sentíamos atraídosum pelo outro. Não vejo por que me envergonhar disso.

 

Mesmo num lugar como este, acho que jamais aconteceucoisa mais decente. . .

Dirigiu-se Conway para a sacada e pôs-se a contem-plar o deslumbrante penacho do Karakal. A lua vogava noalto, sobre um mar sem ondas. Sentiu então que um sonhose havia desvanecido, como todas as coisas demasiado be-las, ao primeiro contato da realidade; e que todo o futuro

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do mundo pesa tanto como o ar em confronto com a moci-dade e o amor. Compreendeu, além disto, que o seu espí-rito habitava um mundo próprio — Shangri-Lá — em mi-niatura, e que esse mundo também estava em perigo. Por-que, no mesmo instante em que se enchia de ânimo, viu oscorredores de sua imaginação torcerem-se e retesarem-se

sob o impacto; os pavilhões desmoronavam; tudo se ia re-duzir a escombros. Não se sentia de todo infeliz, mas mer-gulhara numa perplexidade infinita e tocada de tristeza.Não sabia se estivera louco e acabava de recobrar a razão,ou se, depois de um período de lucidez, tornara a enlou-quecer.

Quando voltou para dentro da sala, já não era o mes-mo. Sua voz estava mais viva, quase brusca, e o rosto selhe crispava de leve. Parecia-se muito mais com o herói deBaskul. Pronto para a ação, encarou Mallinson com umanova súbita energia.

— Acha que conseguirá vencer o precipício, amar-

rado com uma corda, se eu for com você?Mallinson correu para ele.— Conway! — exclamou em voz sufocada. — Você

vem, então? Resolveu-se afinal?

Puseram-se a caminho logo que Conway terminou ospreparativos para a jornada. Foi surpreendentemente sim-

 

ples: uma partida e não uma fuga. Não houve nenhum inci-dente quando atravessaram os pátios raiados de luar esombra. Dir-se-ia que tudo aquilo estava deserto, refletiuConway. E a idéia desse vazio imediatamente lhe tornouvazio o espírito, enquanto Mallinson não cessava de pairarsobre a viagem — embora ele mal ouvisse. Como era es-

 

tranho que aquela longa discussão conduzisse a tal resulta-

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do e que o secreto refúgio estivesse sendo abandonado porquem encontrara nele a sonhada felicidade! Com efeito,menos de meia hora depois faziam alto, arquejantes, numacurva da subida e contemplavam Shangri-Lá pela últimavez. Abaixo deles, no abismo, o vale da Lua Azul era co-mo uma nuvem e afigurou-se a Conway que os telhados

esparsos o seguiam, flutuando na bruma. Era o momentode dizer adeus. Mallinson, a quem o esforço da ascensão

 

fizera guardar silêncio, exclamou numa arfada:— Amigo velho, vamos indo às mil maravilhas. . .

Para diante!Conway sorriu, sem responder. Estava já preparando a

corda para a perigosa escalada. Na verdade, como disserao rapaz, tinha-se resolvido — mas apenas o fizera com aparte que restava do seu espírito. Era esse pequeno frag-

 

mento ativo que predominava agora. O resto abrangia umvazio quase intolerável. Era um homem perdido entre doismundos, e continuaria sempre perdido. Mas por ora, na-

quele vácuo interior que se fazia cada vez mais profundo,só sentia uma coisa: gostava de Mallinson e tinha de aju-

 

dá-lo. Ele, como milhões de outros, estava condenado afugir da sabedoria e ser um herói.

O precipício punha Mallinson nervoso, mas Conwayfê-lo passar à maneira tradicional dos alpinistas e, termi-nada a provação, detiveram-se para acender cigarros trazi-dos por Mallinson.

— Conway, devo dizer que você foi admirável. . .Talvez imagine o que eu sinto. . . Não lhe posso exprimir aminha alegria. . .

— No seu lugar eu não o tentaria, então.Após uma longa pausa, e antes que recomeçassem a

 jornada, Mallinson acrescentou:

 

— Mas estou contente, não só por mim como tam-

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bém por você. . . É esplêndido que você compreenda agoraque tudo aquilo era pura tolice. . . É simplesmente maravi-lhoso vê-lo voltar à sua verdadeira personalidade. . .

— Absolutamente — replicou Conway, saboreando asua ironia secreta.

Amanhecia quando atravessaram a linha divisória,

sem serem incomodados por sentinelas — se é que as ha-via ali. Ocorreu a Conway que o caminho, de acordo coma norma de Shangri-Lá, devia ser vigiado com moderação.Pouco depois atingiram a planura, que se apresentava lim-pa como um osso, varrida pelos ventos rugidores. Apósdescerem um pouco, avistaram o acampamento dos carre-gadores. Tal como havia predito Mallinson, encontraramos homens à sua espera, indivíduos robustos vestidos depeles e couro de ovelha, acocorados para se defenderemdas rajadas e ansiosos por iniciar a jornada rumo a Tat-sien-Fu — mil e cem milhas para leste, na fronteira daChina.

— Ele vai conosco — gritou Mallinson, excitado,quando se encontraram com Lo-Tsen.

Esquecia-se de que ela não entendia inglês, mas Con-

 

way traduziu.Pareceu-lhe que a pequena manchu nunca estivera tão

radiante. Teve um sorriso encantador para ele, mas os seusolhares eram todos para o rapaz.

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EPÍLOGO

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Foi em Delhi que tornei a encontrar Rutherford. To-mávamos parte num jantar do vice-rei, mas a distância e ocerimonial nos mantiveram isolados um do outro até omomento da saída, quando os lacaios de turbante nos en-tregaram os chapéus.

— Venha até o meu hotel e beberemos um trago —convidou ele.

Tomamos um táxi para percorrer as áridas milhas queseparam a natureza morta de Lutyens1 desse vivo e palpi-tante cinematógrafo que é a Velha Delhi. Eu sabia, pelos

 jornais, que ele voltara recentemente a Kashgar. Era a sua

uma dessas reputações bem cultivadas que de quase tudoextraem proveito. Qualquer passeio fora do comum tomaas proporções de uma exploração, e, embora o explorador

 

tenha o cuidado de não fazer nada verdadeiramente origi-nal, o público fica na ignorância disto e ele aufere todas asvantagens da primeira impressão. A viagem de Rutherford,por exemplo, tal como a narrava a imprensa, não me pare-cia de molde a fazer época. As cidades soterradas de Kho-tan não apresentavam novidade alguma para quem se re-corde de Stein e Sven Hedin. Era eu bastante íntimo deRutherford para caçoar com ele a esse respeito.

Riu-se.

1 Sir Edwin Lutyens, arquiteto inglês que, na segunda déca-da deste século, dirigiu a construção de Nova Delhi. (N. do T.)

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— Sim, a verdade daria uma reportagem muito me-lhor — respondeu com ar de mistério.

Chegados ao seu quarto no hotel, começamos a beberuísque.

— Então você andou à procura de Conway? — insi-nuei quando o momento me pareceu propício.

— Procura é palavra demasiado forte no caso — tor-nou ele. — Não é possível procurar-se um homem num pa-ís tão grande como a metade da Europa. Tudo o que possodizer é que visitei lugares onde havia probabilidade de en-contrá-lo ou ter notícias dele. Em sua última carta, comodeve lembrar-se, falava em partir de Bancoc para noroeste.Até certa altura encontrei vestígios da sua passagem no in-terior do país, e na minha opinião ele tomou o rumo da re-gião habitada pelas tribos, na fronteira chinesa. Não creio

 

que pretendesse entrar na Birmânia, onde correria o riscode topar com funcionários ingleses. Seja como for, o rastrose perde lá pelo Alto Sião, mas é claro que eu não esperava

ir muito longe por esse lado.— Julgava que talvez fosse mais fácil ir em busca do

 

vale da Lua Azul?— Sim, parecia pelo menos um objetivo mais defini-

do. Com certeza você passou os olhos por aqueles meusoriginais.

— Muito mais do que isso! A propósito, queria de-volvê-los, mas ignorava o seu endereço.

 

Rutherford sacudiu a cabeça.— Desejaria saber a sua impressão.— Muito notável. . . contanto, é claro, que a história

se baseie estritamente no que lhe referiu Conway.— Dou-lhe a minha palavra de honra que sim. Não

inventei absolutamente nada. Há ali, até, muito menos ex-pressões minhas do que pensa. Minha memória é boa e

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Conway sempre teve um modo especial de descrever. Nãoesqueça que nós tínhamos conversado durante vinte e qua-

 

tro horas, quase sem interrupção.— Pois, como lhe disse, achei deveras notável.Rutherford reclinou-se e sorriu.— Se isso é tudo o que tem a dizer, vejo que terei de

discorrer sozinho. Deve julgar-me um pouco crédulo, masnão creio realmente que eu o seja. A gente comete erros na

 

vida por acreditar demasiado, mas também levaria a maisaborrecida das existências se acreditasse demasiado pouco.A história de Conway interessou-me em mais de um senti-do e por isso tratei de comprová-la na medida do possível,sem falar na possibilidade de encontrá-lo a ele próprio.

Acendeu um charuto e prosseguiu:

 

— Isso me exigiu uma série de curiosas viagens, mas

 

gosto dessas coisas e meus editores não podem rejeitar umlivro de viagens de vez em quando. Devo ter percorridoum total de vários milhares de milhas: Baskul, Bancoc,

Chung-Kiang, Kashgar. . . Visitei iodos esses lugares, eem algum ponto dentro da área compreendida por eles jaz

 

o mistério. Mas é uma área bem extensa, como sabe, e to-das as minhas investigações não foram além da sua orla —ou da orla do mistério, como queira. Na verdade, se desejaos fatos positivos que pude averiguar no tocante à aventurade Conway, só lhe poderei dizer que ele deixou Baskul em20 de maio e chegou a Chung-Kiang em 5 de outubro. E a

 

última coisa que sabemos dele é que tornou a partir deBancoc em 3 de fevereiro. Tudo mais são probabilidades,possibilidades, conjeturas, mito, lenda ou como quer quelhe agrade chamá-lo.

— Então não descobriu nada no Tibete?— Meu caro amigo, não cheguei a pôr os pés no Ti-

 

bete. A gente do governo não queria falar nisso. Por muito

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favor dão licença para uma expedição ao Everest, e quan-do manifestei vontade de viajar pelos Kuen-Luns por conta

 

própria eles me encararam como se eu sugerisse a idéia deescrever uma vida de Ghandi. A verdade é que sabiam oque estavam fazendo. Um giro pelo Tibete não é coisa paraum homem só. Seria necessário organizar uma expedição

completa, conduzida por um homem que conhecesse al-guma coisa do idioma nativo. Recordo-me de que, ao ouvir

 

a história de Conway, eu perguntava a mim mesmo porque faziam tanta questão de esperar pelos carregadores, emvez de irem embora sem eles. Não tardei muito a descobriro motivo. A gente do governo tinha inteira razão: todos ospassaportes do mundo não me fariam atravessar os Kuen-Luns. Cheguei a vê-los a distância, talvez umas cinqüenta

 

milhas, num dia muito claro. Não são muitos os europeusque podem dizer o mesmo.

— São tão inacessíveis assim?— Pareciam uma frisa branca no horizonte, nada

mais. Em Yarkand e Kashgar interroguei a respeito delestoda a gente que encontrava, mas era extraordinário o pou-

 

co que sabiam. Penso que deve ser a cadeia de montanhasmenos conhecida do mundo. Tive a sorte de encontrar umviajante americano que tentara atravessá-la, mas não en-contrara passagem. Há passagens, disse ele, mas são terri-velmente altas e não vêm nos mapas. Perguntei-lhe se a-chava possível que existisse um vale como o que Conwayme havia descrito. Respondeu que impossível não era, masachava pouco provável — do ponto de vista geológico, pe-lo menos. Indaguei então se ouvira falar numa montanhade forma cônica, quase tão alta quanto o mais elevado picodos Himalaias, e sua resposta me intrigou. Contou que e-xistia uma lenda sobre tal montanha, mas na sua opiniãonão tinha nenhum fundamento. Acrescentou que corriam

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até certos rumores a respeito de montanhas mais altas doque o Everest, mas que não lhes dava crédito.

" 'Duvido que haja algum pico nos Kuen-Luns commais de vinte e cinco mil pés de altura', disse ele. Mas ad-mitiu que nunca se tinham feito medições apropriadas.

"Em seguida lhe perguntei o que sabia dos conventos

lamaicos do Tibete, pois estivera no país várias vezes. Fez-me as descrições de costume, dessas que se encontram em

 

qualquer livro. Assegurou-me que são lugares nada atraen-tes, e os monges que neles vivem são em geral corruptos eimundos.

" 'Vivem muitos anos?', perguntei."Respondeu-me que sim, que muitas vezes alcançam

idade avançada, quando não morriam de alguma doença

 

asquerosa. Enchi-me então de audácia e lhe perguntei se

 

não ouvira lendas sobre casos de extrema longevidade en-tre os lamas.

" 'Quantidade delas', respondeu. 'É desse gênero de

histórias que se ouvem por toda parte, sem que ninguémpossa comprová-las. Dizem que algumas dessas nojentas

 

criaturas têm vivido cem anos metidas numa cela, e certa-mente têm aspecto disso, mas é claro que a gente não podepedir certidão de idade.'

"Perguntei-lhe se pensava que eles conheciam algumprocesso medicinal ou oculto para prolongar a vida e pre-servar a juventude. Disse que passavam por possuir grande

 

soma de conhecimentos curiosos acerca de tal assunto,mas suspeitava de que se tratasse de coisas já sabidas. A-

  juntou, entretanto, que os lamas parecem dispor de estra-nhos poderes de domínio sobre o corpo.

" 'Vi-os sentados', dizia, 'à beira de um lago gelado,inteiramente nus, sob uma temperatura inferior a zero efustigados por um vento terrível, enquanto os criados que-

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bravam o gelo para mergulhar lençóis na água e os envol-verem neles. Fazem isso umas doze vezes ou mais, e os.lamas secam os lençóis no próprio corpo. Supõe-se queconservem o calor pela simples força de vontade, emboraessa explicação seja pouco convincente.' "

Rutherford serviu-se de mais bebida.

— Mas naturalmente, como admitia o meu amigo a-mericano, nada disso tem muito que ver com a longevi-

 

dade. Serve simplesmente para mostrar que os lamas têmgostos selvagens em matéria de autodisciplina. . . Demodo que ficamos apenas nisso e você há de reconhecerque os elementos de prova, por enquanto, eram extrema-mente exíguos.

Admiti que por certo isso não provava nada e pergun-

 

tei se os nomes "Karakal" e "Shangri-Lá" eram conhecidos

 

do americano.— De nenhum modo. Mencionei-lhos, e depois de o

ter interrogado por algum tempo ele disse:

" 'Francamente, não me atraem os mosteiros. Res-pondi mesmo certa ocasião, a um sujeito que encontrei no

 

Tibete, que antes me desviaria do meu caminho para evitá-los do que para lhes fazer visita'.

"Esta observação fortuita me provocou uma idéia sin-gular e perguntei-lhe quando ocorrera esse encontro no Ti-bete.

" 'Oh! há muito tempo', respondeu; 'antes da guerra,

 

em 1911, se não me engano.'"Insisti por mais detalhes e ele mos deu, tão comple-

tos quanto podia recordar. Parece que estava viajando porconta de alguma sociedade geográfica do seu país, na com-panhia de vários colegas, carregadores, etc. — uma expe-dição completa, enfim. Num lugar próximo aos Kuen-Luns

 

encontrou esse homem, um chinês que era conduzido nu-

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ma liteira por homens da terra. O sujeito mostrou falar ex-celente inglês e recomendou-lhes com calor que visitassem

 

certo mosteiro lamaico das vizinhanças, oferecendo-se atépara servir de guia. O americano respondeu que não tinhatempo nem tampouco interesse, e isso foi tudo."

Rutherford fez uma pausa e continuou:

— Não quero dizer que isto tenha muito peso. Quandoalguém procura recordar um incidente casual acontecido

 

vinte anos antes, não se pode esperar daí muita coisa. Masem todo caso dá margem a interessantes especulações.

— Sim, e mesmo que uma expedição tão bem apare-lhada tivesse aceito o convite, não vejo como eles poderi-am ser retidos no mosteiro contra a sua vontade.

— Perfeitamente. E depois, talvez não se tratasse deShangri-Lá.

 

Refletimos sobre isto, mas o assunto parecia dema-siado nebuloso para o discutirmos e passei a indagar se elenada havia descoberto em Baskul.

— Em Baskul nada e em Peshawar menos ainda. Nin-guém me soube dizer coisa alguma, a não ser que o roubo

 

do avião era autêntico. E mesmo isto admitiam a contra-gosto, pois era um episódio de que não se orgu-lhavam.

— E não tiveram mais notícias do avião?— Nem uma palavra. Quanto aos quatro passageiros,

a mesma coisa. Verifiquei, entretanto, que se tratava de umaparelho adaptado a grandes alturas. Também procureidescobrir o rastro desse tal Barnard, mas achei tão misteri-oso o seu passado que não me surpreenderia se ele fosserealmente Chalmers Bryant. Afinal, não deixa de ser as-sombroso o desaparecimento completo de Bryant no meiode todo aquele barulho.

— Fez indagações a respeito do rapto?

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— Fiz, mas também sem resultado. O aviador que elepôs em nocaute e por quem se fez passar morreu poste-riormente, e assim se perdeu uma promissora linha de in-vestigação. Cheguei a escrever a um amigo que dirige umaescola de aviação nos Estados Unidos, perguntando se nosúltimos tempos tivera entre os seus alunos algum tibetano;

mas a resposta, que não demorou, foi decepcionante. Es-creveu ele que não sabia distinguir entre tibetanos e chine-

 

ses, mas tivera como alunos cerca de cinqüenta chineses,que se preparavam para lutar contra os japoneses. Comovê, não tive muita sorte. Mas o fato é que fiz uma desco-berta bastante curiosa — aliás, não seria preciso sair daInglaterra para isso. . . Havia em Iena nos meados do sécu-lo passado um professor alemão que saiu a correr mundo evisitou o Tibete em 1887. Nunca mais voltou, e dizia-seque morrera afogado ao vadear um rio. Chamava-se Frie-drich Meister.

— Céus! Um dos nomes que Conway mencionou!

— Sim. . . embora possa ser mera coincidência. Istode modo algum prova que toda a história seja verdadeira,

 

porque o professor de Iena nasceu em 1845. Nada de ex-traordinário nisso.

— Mas é singular — disse eu.— Sim, bastante singular.— Não pôde encontrar algum rasto dos outros?— Não. Foi pena que não dispusesse de uma lista

maior. Não encontrei nenhuma referência a um aluno deChopin chamado Briac, embora, naturalmente, isso nãoprove que tal aluno não existisse. Conway fez muita eco-nomia de nomes, e entre uns cinqüenta lamas que deviamviver lá só mencionou um ou dois. Foi igualmente impos-sível descobrir qualquer vestígio de Perrault e Henschell.

 

— E sobre Mallinson? — perguntei. — Procurou a-

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veriguar o que foi feito dele? E aquela moça, a chinesa?— Claro que sim. meu caro. O que tornava difícil a

pesquisa era o fato, que você deve ter constatado pelo ma-nuscrito, de terminar a narrativa de Conway nomomento em que deixaram o vale na companhia dos carre-gadores. Não pôde ou não quis dizer o que aconteceu de-

pois — mas talvez mo tivesse contado, note bem, se hou-véssemos permanecido mais tempo juntos. Creio que po-

 

demos admitir uma tragédia. Já as dificuldades da jornadaeram simplesmente aterradoras, sem falar nos riscos de se-rem assaltados por bandoleiros ou traídos pelos próprioshomens que os escoltavam. É provável que jamais saiba-mos exatamente o que aconteceu, mas parece certo queMallinson não logrou atingir a China. Fiz toda sorte de a-

 

veriguações. Em primeiro lugar, procurei descobrir vestí-

 

gios de grandes encomendas de livros e outros objetos, quetivessem passado a fronteira do Tibete, mas as minhas in-dagações em lugares como Xangai e Pequim foram pura

perda. Isto, entretanto, não queria dizer nada, uma vez queos lamas deviam cercar de mistério os seus métodos deimportação. Fiz depois uma tentativa em Tatsien-Fu. É um

 

estranho lugar, uma espécie de mercado do fim do mundo,de acesso difícil como o diabo, e onde os cules chinesesque vêm de Yunnan passam aos tibetanos os seus carrega-mentos de chá. Você poderá ler acerca dessa viagem nomeu próximo livro. São raros os europeus que vão até lá.Encontrei uma população bastante educada e cortês, mas,quanto a Conway e os seus companheiros, nada de nada!

— De modo que continua sem explicação a maneiracomo Conway alcançou Chung-Kiang?

— A única conclusão a tirar é que ele foi ter lá comopoderia ter ido a qualquer outra parte. Em todo caso. vol-tamos aos fatos concretos quando chegamos a Chung-

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Kiang, e isto já é alguma coisa. Às freiras do hospital damissão eram bem reais, e também o era o espanto de Sie-veking no navio, quando Conway tocou as supostas com-posições de Chopin.

Rutherford fez uma pausa e depois acrescentou,pesando as palavras:

— Na verdade, é um problema de cálculo de proba-bilidades, e devo dizer que os pratos não se inclinam con-vincentemente para nenhum lado. É claro que, se não acei-tarmos a história de Conway, teremos de pôr em dúvida —sejamos francos — a sua veracidade ou a sua sanidademental.

Fez nova pausa, como se esperasse um comentário, eeu repliquei:

— Como sabe, não tornei a vê-lo depois da guerra,

 

mas ouvi dizer que mudou muito.— Sim, é inegável que mudou — respondeu Ruther-

ford. — Não se pode sujeitar um rapaz novo a três anos de

forte tensão física e emocional sem que alguma coisa serompa dentro dele. Muita gente há de dizer que ele saiu

 

sem um arranhão. No entanto, arranhões houve — na alma.Falamos por algum tempo sobre a guerra e seus efei-

tos em diversas pessoas, e finalmente ele continuou:— Mas há ainda um pormenor a que devo referir-

me. . . e talvez, em muitos sentidos, o mais estranho de to-dos. Veio-me ao conhecimento quando fazia indagações

 

no hospital da missão. Todos fizeram o possível para meauxiliar, como deve supor, mas não podiam recordar muitacoisa, sobretudo porque naquela ocasião tinham estadomuito ocupados com uma febre epidêmica. Uma das ques-tões que procurei esclarecer desde logo foi o modo comoConway havia chegado ao hospital — se se apresentara

 

por si mesmo ou se, tendo sido encontrado doente, fora

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trazido ali por alguma pessoa. Não se lembravam bem —afinal de contas, fazia tanto tempo! —, mas de repente,quando eu já ia desistir do interrogatório, uma das freirasobservou incidentalmente que "parecia ter ouvido do dou-tor que ele fora trazido por uma mulher". Era tudo o queme podia dizer, e como o doutor já houvesse deixado a

missão, nenhuma confirmação era possível obter no mo-mento.Mas, tendo eu já chegado tão longe, é claro que não

estava disposto a suspender minhas investigações. Soubeque esse doutor se transferira para um hospital mais impor-tante, em Xangai, de modo que me informei sobre o seuendereço e fui até lá, na intenção de me avistar com ele.Foi logo depois dos reides aéreos dos japoneses e o aspec-

 

to da cidade era sinistro. Já conhecia esse médico, comquem travara relações durante minha primeira visita aChung-Kiang. Foi muito polido, mas naquele momento es-tava terrivelmente ocupado — sim, terrivelmente é a pala-

vra porque, acredite-me, os vôos dos alemães sobre Lon-dres nada foram, comparados com o que os nipônicos fize-ram nas zonas nativas de Xangai.

 

"'Oh! sim', disse sem hesitar, 'lembro-me do caso da-quele inglês que perdeu a memória.'

" 'É verdade que ele foi trazido ao hospital da missãopor uma mulher?', perguntei.

" 'Sim, sim, por uma mulher, uma chinesa.'" 'Lembra-se de alguma coisa a respeito dela?'"'Nada', respondeu, 'salvo que ela também estava ata-

cada de febre e veio a morrer quase em seguida . . ."Nesse instante houve uma interrupção. Trouxeram

um grupo de feridos e as padiolas atravancaram os corre-dores, pois as enfermarias já estavam repletas. Eu não po-

 

dia tomar o tempo do homem, tanto mais que troavam os

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canhões em Woosung, advertindo-lhe que teria ainda mui-to que fazer. Quando voltou para junto de mim, com uma

 

expressão animada apesar de todos aqueles horrores, só lhefiz uma derradeira pergunta, que você com certeza adivi-nha qual fosse.

" 'E essa mulher chinesa', disse eu, 'era jovem?' "

Rutherford sacudiu nervosamente as cinzas do charu-to, como se a narrativa o tivesse excitado tanto quanto es-perava fazê-lo a mim. Depois continuou:

— O doutorzinho olhou-me por um momento com arsolene e então respondeu, nesse inglês comicamente trun-cado que os chineses educados usam:

" 'Oh! não, ela era muito velha, a mulher mais velhaque vi até hoje.' "

 

Permanecemos longo tempo calados e finalmente nospusemos a falar sobre o Conway que eu conhecera outrora,

 juvenil, talentoso e encantador, sobre a guerra que o alte-rara e sobre muitos mistérios do tempo, da idade e do espí-rito, sobre a pequena manchu que era "muito velha" e a-quele estranho e remoto sonho do vale da Lua Azul.

— Pensa que ele virá a encontrá-lo um dia? — per-guntei.

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