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Curso: Metodologias Dialógicas de Formação Rosaura Soligo e Walter Takemoto 1 A concepção de saber da experiência A palavra ‘experiência’ não raro é entendida como o que se vive na prática e, por decorrência, a expressão ‘saber da experiência’, como acúmulo de saberes da prática. Quando nos referimos à experiência, entretanto, a perspectiva é outra, que supera esse sentido atravessado pela típica polaridade teoria-prática e se apoia em algumas contribuições filosóficas. A ideia é de experiência como um acontecimento que precisa e merece ser pensado para que nos seja possível questionar e alcançar os seus sentidos, como aquilo que nos acontece, que nos deixa marcas, que tem em nós um efeito pessoal, que é fruto do vivido e que vai forjando uma forma de ser e estar no mundo, uma consciência dos sentidos do que se vive. A ideia é de experiência como algo que ora se tem, ora se faz, que requer de nós uma disponibilidade para interrogar o vivido e refletir sobre ele, constituindo um modo implicado de agir, que não admite que as coisas vão se passando simplesmente, que pressupõe pensar-se em relação ao que acontece. O saber da experiência nem sempre é fácil de formular e tem muito a ver com o que o vivido vai deixando em nós como atitude diante da vida, como modo de nos relacionar com os acontecimentos. É um saber sempre em movimento, que se constitui a partir da experiência e se mantém em uma relação ‘pensante’ com o que acontece, produzido por pessoas que não aceitam viver segundo valores e sentidos pré-determinados e externos a si mesmas, mas que se empenham para construir os seus próprios. Esse tipo de saber pressupõe relações de aprendizagem sempre atravessadas pela questão da alteridade: no contexto da educação, seja na sala de aula ou na formação, o saber da experiência é sempre um saber da alteridade, que aceita o imponderável do outro e que se interroga sobre as suas necessidades e sentidos e sobre o que pode ser mais adequado na relação com o outro. É, portanto, um saber que tem a ver com nossas dimensões subjetivas, pessoais, com a história que nos constitui como sujeitos singulares a partir de onde vivemos, de onde pensamos, de onde atuamos. Dessa perspectiva, ‘saber da experiência’ é uma expressão para nomear esse saber sábio que contribui para um estar no mundo com abertura e sensibilidade. Trata-se de um saber paradoxal, porque é sedimentado no vivido e orienta a ação, mas é um saber sempre ‘nascente’, sempre se renovando, que revela uma qualidade essencial do saber pedagógico necessário a todos os que trabalham com educação. Que qualidade é esta? A de viver, em sua ‘novidade’, o movimento e as mudanças inerentes à tarefa educativa, de maneira receptiva frente às questões que nos trazem os companheiros de trabalho e os acontecimentos que compartilhamos, sempre com abertura para as transformações necessárias a uma educação mais atenta à realidade, às suas singularidades e circunstâncias. Muito mais do que um conhecimento a transmitir, esse é um saber que precisamos cultivar, elaborar, valorizar, ter como referência e contar com ele. E precisamos nos ajudar uns aos outros nesse processo. A formação e o saber docente O saber necessário para a docência não tem exatamente as mesmas qualidades ou características dos conhecimentos teóricos, tampouco é mera aplicação prática das teorias. Há dimensões da docência com as quais os professores se deparam na prática diária (por exemplo, paradoxos, dilemas, incertezas, intuições, palpites, sentimentos, percepções, improvisações, modos de ser, inclinações, expectativas, histórias e características pessoais etc.) que parecem não pertencer a qualquer área específica de conhecimento e nem são passíveis de se transmitir como proposições. A forma pela qual chegamos a tomar consciência, suspeitar ou intuir tudo isto passa ao largo de definições precisas, conceitos claros ou garantias do que possam significar. Dispor de conhecimento teórico, nesse caso, Texto adaptado por Rosaura Soligo do original de José Contreras Domingo: El saber de la experiencia en la formación inicial del professorado file:///C:/Users/User/Downloads/Dialnet-ElSaberDeLaExperienciaEnLaFormacionInicialDelProfe-4688508%20(1).pdf

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Rosaura Soligo e Walter Takemoto

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A concepção de saber da experiência

A palavra ‘experiência’ não raro é entendida como o que se vive na prática e, por decorrência, a expressão

‘saber da experiência’, como acúmulo de saberes da prática. Quando nos referimos à experiência, entretanto,

a perspectiva é outra, que supera esse sentido atravessado pela típica polaridade teoria-prática e se apoia em

algumas contribuições filosóficas.

A ideia é de experiência como um acontecimento que precisa e merece ser pensado para que nos seja

possível questionar e alcançar os seus sentidos, como aquilo que nos acontece, que nos deixa marcas, que

tem em nós um efeito pessoal, que é fruto do vivido e que vai forjando uma forma de ser e estar no mundo,

uma consciência dos sentidos do que se vive. A ideia é de experiência como algo que ora se tem, ora se faz,

que requer de nós uma disponibilidade para interrogar o vivido e refletir sobre ele, constituindo um modo

implicado de agir, que não admite que as coisas vão se passando simplesmente, que pressupõe pensar-se em

relação ao que acontece.

O saber da experiência nem sempre é fácil de formular e tem muito a ver com o que o vivido vai deixando

em nós como atitude diante da vida, como modo de nos relacionar com os acontecimentos. É um saber

sempre em movimento, que se constitui a partir da experiência e se mantém em uma relação ‘pensante’ com

o que acontece, produzido por pessoas que não aceitam viver segundo valores e sentidos pré-determinados

e externos a si mesmas, mas que se empenham para construir os seus próprios.

Esse tipo de saber pressupõe relações de aprendizagem sempre atravessadas pela questão da alteridade: no

contexto da educação, seja na sala de aula ou na formação, o saber da experiência é sempre um saber da

alteridade, que aceita o imponderável do outro e que se interroga sobre as suas necessidades e sentidos e

sobre o que pode ser mais adequado na relação com o outro.

É, portanto, um saber que tem a ver com nossas dimensões subjetivas, pessoais, com a história que nos

constitui como sujeitos singulares a partir de onde vivemos, de onde pensamos, de onde atuamos.

Dessa perspectiva, ‘saber da experiência’ é uma expressão para nomear esse saber sábio que contribui para

um estar no mundo com abertura e sensibilidade.

Trata-se de um saber paradoxal, porque é sedimentado no vivido e orienta a ação, mas é um saber sempre

‘nascente’, sempre se renovando, que revela uma qualidade essencial do saber pedagógico necessário a

todos os que trabalham com educação. Que qualidade é esta? A de viver, em sua ‘novidade’, o movimento e

as mudanças inerentes à tarefa educativa, de maneira receptiva frente às questões que nos trazem os

companheiros de trabalho e os acontecimentos que compartilhamos, sempre com abertura para as

transformações necessárias a uma educação mais atenta à realidade, às suas singularidades e circunstâncias.

Muito mais do que um conhecimento a transmitir, esse é um saber que precisamos cultivar, elaborar,

valorizar, ter como referência e contar com ele. E precisamos nos ajudar uns aos outros nesse processo.

A formação e o saber docente

O saber necessário para a docência não tem exatamente as mesmas qualidades ou características dos

conhecimentos teóricos, tampouco é mera aplicação prática das teorias.

Há dimensões da docência com as quais os professores se deparam na prática diária (por exemplo,

paradoxos, dilemas, incertezas, intuições, palpites, sentimentos, percepções, improvisações, modos de ser,

inclinações, expectativas, histórias e características pessoais etc.) que parecem não pertencer a qualquer área

específica de conhecimento e nem são passíveis de se transmitir como proposições.

A forma pela qual chegamos a tomar consciência, suspeitar ou intuir tudo isto passa ao largo de definições

precisas, conceitos claros ou garantias do que possam significar. Dispor de conhecimento teórico, nesse caso,

Texto adaptado por Rosaura Soligo do original de José Contreras Domingo: El saber de la experiencia en la formación inicial del professorado file:///C:/Users/User/Downloads/Dialnet-ElSaberDeLaExperienciaEnLaFormacionInicialDelProfe-4688508%20(1).pdf

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por certo ajuda, mas quase nunca é suficiente na ‘hora H’. Por vezes, essas dimensões da docência são até

consideradas e analisadas, mas em geral sob a bipolaridade teoria-prática: saberes constituídos, de um lado, e

espaços específicos para tratar da prática, de outro.

O desafio é nos abrirmos a outras formas de pensamento pertinentes à experiência educativa, a suas

intrincadas tramas de acontecimentos e sensações, aos saberes necessários para a docência, à sabedoria

pedagógica.

Aqui, a convicção é que repensar a formação em todos os seus espaços e processos sob a perspectiva do

‘saber da experiência’ pode contribuir com outros modos de compreensão que não sejam obscurecidos e

prejudicados pela polarização teoria-prática, para reconhecer no território pedagógico um conjunto mais

amplo de saberes e inter-relações e para evidenciar a conexão entre ser e saber como questão sempre

nuclear de qualquer processo formativo.

Do saber da experiência a uma pedagogia da experiência

Deixar-se interrogar pela presença do outro tem suas próprias consequências pedagógicas.

Quando acreditamos que a experiência refletida pressupõe manter uma relação pensante com o acontecer

das coisas, original e perceptiva, que esse tipo de experiência implica um estar no mundo sempre se

interrogando, é de se supor que isso se transfira de algum modo para a prática educativa, o que significa

oferecer aos alunos a oportunidade de também se interrogarem em relação à própria experiência no mundo.

Reflexos na formação

A despeito da importância disso tudo, é evidente que o saber da experiência não é agora a nova solução

mágica para adquirir todo o repertório de conhecimento profissional. O saber da experiência é um saber e

um modo de saber que se cultiva, e não que se comunica. E supõe uma relação pensante, pessoal, sensível e

criativa diante dos desafios da prática, nem sempre claros ou previsíveis, o que exige cultivar esse tipo de

relação. Enfatizar a importância do ‘saber da experiência’ é um modo de dizer da necessidade de cuidar do

desenvolvimento pessoal; da necessidade de saber e de ‘ir sabendo’ e de ‘ir sabendo-se’; da disposição de

não cristalizar o sabido e o feito, de se perguntar pelos sentidos e desenvolver a capacidade de sempre

reviver e atualizar esses sentidos no fazer.

Trata-se, portanto, de um saber sustentado em primeira pessoa, que se cultiva pondo em jogo a própria

subjetividade, a própria história, recursos, capacidades perceptivas, qualidades pessoais.

A noção de formação como algo que se cultiva pressupõe considerar:

- A história de vida e as experiências que cada um traz, e que supõe um saber incorporado com o qual é

preciso contar como repertório existente, é fundamental. Mas considerar a experiência vivida e os saberes

que a partir dela se constroem não significa uma aceitação ingênua e resignada: o movimento é partir do

vivido para ir sempre muito mais além. Para tanto, é necessário a escuta e a atenção ao que se passa,

experimentando respostas para situações, analisando a adequação dessas respostas etc.

- É preciso experimentar a própria formação como lugar da experiência, como vivência compartilhada e

refletida, de tal modo que seja possível transitar pela própria experiência, produzir um saber a ela vinculado,

desenvolver a consciência sobre esses processos de produção de saber que oferecem pistas pedagógicas

sobre a força profunda e multidimensional que adquirem quando a produção é compartilhada e quando

passam a ter um sentido pessoal e coletivo.

- As experiências dos profissionais e seus saberes, que vão se configurando nos modos de interrogar o que

vivem e o sentido de exercer a profissão, são essenciais, mas é também essencial aprender com os

conhecimentos e saberes já disponíveis.

A perspectiva é refinar o pensamento sobre a realidade, enriquecer o fazer educativo, ampliar os horizontes,

conquistar outras dimensões da realidade nem sempre percebidas, questionar certos mecanismos e

explicações viciadas ou circulares, distanciar-se, descentrar-se e ver melhor a presença misteriosa do outro e

da realidade, alimentar a imaginação e a criação de outras práticas, buscar novas formas de expressão, entre

muitas outras possibilidades.