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A Conquista do Planeta Azul - O Início do Reconhecimento do Oceano e do Mundo (Versão Preliminar) Dias, J. A. (2004) 21 Tal parece, também, consubstanciar a hipótese dos Povos do Mar corresponderem a populações obrigadas a migrar pela fome. É certo que a derrota que Ramsés III lhes infligiu os deve ter deixado profundamente debilitados e completamente desorganizados. Mas, por outro lado, se pensarmos que eram populações desenraizadas, que tinham sido obrigadas a deixar as suas terras natais, parece ser razoável admitir que tenham voltado a um estado de tranquilidade assim que se puderam estabelecer numa nova terra, que lhe propiciava o alimento de que careciam. A história dos Povos do Mar é, aparentemente, um exemplo paradigmático de como os fenómenos naturais, neste caso uma pequena variação climática, pode alterar profundamente a ordem estabelecida, afectando de forma extremamente marcante regiões muito vastas, como, neste caso, se verificou em toda a bacia do Mediterrâneo Oriental. 3.4. As Navegações Fenícias (1200 A.C. – 500 A.C.) a) Características O primeiro povo ocidental que, verdadeiramente, desenvolveu a arte da navegação foram os fenícios (ou cananitas), que habitavam a costa oriental do Mediterrâneo, entre a Palestina e a Síria, numa pequena faixa de terreno com cerca de 25km de largura por 320km de comprimento, correspondente à actual costa do Líbano, e partes das da Turquia e de Israel. Parece terem chegado à região cerca de 3000 A.C., e por volta de 2800 A.C. tinham já estabelecido cidades importantes, designadamente em Jerusalém, em Jericó e em Ai. Circa 2600 A.C. tinham já relações comerciais e religiosas com o Egipto, as quais continuaram, pelo menos, até 2200 A.C., quando a Fenícia foi invadida pelos Amonitas (Povos do Mar?). A região foi periodicamente invadida e controlada por outros povos, designadamente os Hicsos (no século XVIII A.C.), pelos Egípcios (no século XVI A.C.), e pelos Hititas (no século XIV A.C.). O faraó Seti I (1290-1279 A.C.) conquistou novamente para o Egipto grande parte da Fenícia mas, perante a pressão dos Povos do Mar, vindos da Ásia Menor e da Europa, Ramsés III (1187-1156 A.C.) acabaria por perder definitivamente a região. É possível que estas influências diversificadas tivessem estado na origem do desenvolvimento da forte vocação comercial dos fenícios e da facilidade com que estabeleciam relações com outros povos. Aliás, as influências diversificadas aludidas estão expressas nos próprios barcos fenícios, que incorporavam características de diferentes origens, designadamente do Egeu, dos “Povos do Mar” e do Egipto. Provavelmente forçados pela exiguidade de terras cultiváveis, desde cedo se começaram a dedicar ao comércio marítimo, inicialmente com as civilizações mesopotâmicas, egípcia e grega, mas que se foram progressivamente ampliando até regiões longínquas. O comércio era a sua vocação assumida, de tal modo que se apelidavam a eles próprios por Kena'ani (Cananitas), o que em hebreu significa comerciante. A partir de 1200 A.C., com o declínio do poder dos faraós do Egipto, e com a perda de influência do comércio marítimo desenvolvido pelos micénicos, verificaram-se condições para uma maior afirmação fenícia, passando a cidade de Sídon a ter supremacia. Os fenícios não eram, em geral, caracterizados por expansionismo bélico, no sentido em que não tentavam ampliar o território, mas apenas estabelecer colónias comerciais. Efectivamente, não tinham população suficiente para fundar grandes colónias. Regra geral, escolhiam locais estratégicos, como ilhas ou promontórios facilmente defensáveis, com praias abrigadas que pudessem servir de ancoradouros seguros para os navios. O comércio fenício baseava-se na exportação de produtos diversificados, designadamente madeira de cedro e de pinho, linho fino, tecidos tingidos com a famosa púrpura de Tiro (feita a partir do gastrópode marinho Murex 1 ), brocados de Sídon, peças em metal e em vidro, faiança esmaltada e vidrada, vinho, sal e peixe seco. Importavam materiais em bruto, nomeadamente papiro, marfim, ébano, seda, âmbar, ovos de avestruz, especiarias, incenso, ouro, prata, cobre, ferro, estanho e pedras preciosas. Com o desenvolvimento do comércio, os fenícios tornaram- se, na maior parte, em intermediários. Neste contexto, as colónias fenícias na Península Ibérica (das quais, a mais antiga parece ter sido Gades, a moderna Cádis, fundada cerca de 1100 A.C.) tinham grande importância, pois que era principalmente aí que se abasteciam em estanho e em prata. Os contactos comerciais com diversificadas civilizações, próximas e longínquas, bem como as navegações que para isso intensivamente praticavam, por certo que propiciaram aos fenícios grande acumulação de conhecimentos e noções geográficas bastante aperfeiçoadas. No entanto, havia dificuldade em centralizar e sintetizar esses conhecimentos pois que a Fenícia, desde início (3º milénio A.C.), estava dividida em pequenas cidades-estado (Biblos, Sídon, Ugarit, Acre, Beirute, Tiro, Baalbek, etc.) com grande grau de autonomia, entre as quais, com frequência, havia rivalidades acentuadas e persistentes. Neste contexto, há ainda que ter em consideração a influência dominante dos faraós do Egipto, aos quais os fenícios estiveram frequentemente submetidos. Por outro lado, os fenícios tendiam a monopolizar o comércio e, para tal, era imprescindível guardar segredo do que poderiam ser vantagens comerciais. Acresce que, provavelmente em consequência das razões aduzidas, o comércio fenício estava baseado em estruturas familiares, que detinham navios e manufacturas, e que tinham representantes nas colónias. Mais tarde, esse domínio 1 ) Murex é um gasterópode marinho que existe nas águas junto, entre outras, às cidades de Tiro e de Sidon. A extracção do pigmento púrpura a partir do Murex iniciou-se, provavelmente, no século XVIII AC. O fluido com o pigmento tinha que ser cuidadosamente extraido do gasterópode. Os operários apanhavam as conchas, partiam-nas, extraiam o animal e colocavam-nos em tanques. A decomposição da matéria orgânica produzia um líquido amarelado. Cada murex produzia, apenas, um par de gotas deste líquido. Fervendo este fluido, obtinham-se tintas de várias cores (encarnado, azul, violeta) consoante a período de fervura. A mais difícil de obter era a cor púrpura, pelo que era a que atingia preços mais elevados no mercado. Os tecidos tingidos com esta cor eram tão dispendiosos que, durante muito tempo, foi sinónimo de estatuto social muito elevado.

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A Conquista do Planeta Azul - O Início do Reconhecimento do Oceano e do Mundo (Versão Preliminar) Dias, J. A. (2004)

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Tal parece, também, consubstanciar a hipótese dos Povos doMar corresponderem a populações obrigadas a migrar pelafome. É certo que a derrota que Ramsés III lhes infligiu osdeve ter deixado profundamente debilitados ecompletamente desorganizados. Mas, por outro lado, sepensarmos que eram populações desenraizadas, que tinhamsido obrigadas a deixar as suas terras natais, parece serrazoável admitir que tenham voltado a um estado detranquilidade assim que se puderam estabelecer numa novaterra, que lhe propiciava o alimento de que careciam.

A história dos Povos do Mar é, aparentemente, um exemploparadigmático de como os fenómenos naturais, neste casouma pequena variação climática, pode alterarprofundamente a ordem estabelecida, afectando de formaextremamente marcante regiões muito vastas, como, nestecaso, se verificou em toda a bacia do Mediterrâneo Oriental.

3.4. As Navegações Fenícias (1200 A.C. – 500 A.C.)

a) Características

O primeiro povo ocidental que, verdadeiramente,desenvolveu a arte da navegação foram os fenícios (oucananitas), que habitavam a costa oriental do Mediterrâneo,entre a Palestina e a Síria, numa pequena faixa de terrenocom cerca de 25km de largura por 320km de comprimento,correspondente à actual costa do Líbano, e partes das daTurquia e de Israel. Parece terem chegado à região cerca de3000 A.C., e por volta de 2800 A.C. tinham já estabelecidocidades importantes, designadamente em Jerusalém, emJericó e em Ai. Circa 2600 A.C. tinham já relaçõescomerciais e religiosas com o Egipto, as quais continuaram,pelo menos, até 2200 A.C., quando a Fenícia foi invadidapelos Amonitas (Povos do Mar?).

A região foi periodicamente invadida e controlada poroutros povos, designadamente os Hicsos (no século XVIIIA.C.), pelos Egípcios (no século XVI A.C.), e pelos Hititas(no século XIV A.C.). O faraó Seti I (1290-1279 A.C.)conquistou novamente para o Egipto grande parte daFenícia mas, perante a pressão dos Povos do Mar, vindos daÁsia Menor e da Europa, Ramsés III (1187-1156 A.C.)acabaria por perder definitivamente a região. É possível queestas influências diversificadas tivessem estado na origemdo desenvolvimento da forte vocação comercial dos feníciose da facilidade com que estabeleciam relações com outrospovos. Aliás, as influências diversificadas aludidas estãoexpressas nos próprios barcos fenícios, que incorporavamcaracterísticas de diferentes origens, designadamente doEgeu, dos “Povos do Mar” e do Egipto.

Provavelmente forçados pela exiguidade de terrascultiváveis, desde cedo se começaram a dedicar aocomércio marítimo, inicialmente com as civilizaçõesmesopotâmicas, egípcia e grega, mas que se foramprogressivamente ampliando até regiões longínquas. Ocomércio era a sua vocação assumida, de tal modo que seapelidavam a eles próprios por Kena'ani (Cananitas), o queem hebreu significa comerciante. A partir de 1200 A.C.,com o declínio do poder dos faraós do Egipto, e com aperda de influência do comércio marítimo desenvolvidopelos micénicos, verificaram-se condições para uma maior

afirmação fenícia, passando a cidade de Sídon a tersupremacia.

Os fenícios não eram, em geral, caracterizados porexpansionismo bélico, no sentido em que não tentavamampliar o território, mas apenas estabelecer colóniascomerciais. Efectivamente, não tinham população suficientepara fundar grandes colónias. Regra geral, escolhiam locaisestratégicos, como ilhas ou promontórios facilmentedefensáveis, com praias abrigadas que pudessem servir deancoradouros seguros para os navios.

O comércio fenício baseava-se na exportação de produtosdiversificados, designadamente madeira de cedro e depinho, linho fino, tecidos tingidos com a famosa púrpura deTiro (feita a partir do gastrópode marinho M u r e x1),brocados de Sídon, peças em metal e em vidro, faiançaesmaltada e vidrada, vinho, sal e peixe seco. Importavammateriais em bruto, nomeadamente papiro, marfim, ébano,seda, âmbar, ovos de avestruz, especiarias, incenso, ouro,prata, cobre, ferro, estanho e pedras preciosas.

Com o desenvolvimento do comércio, os fenícios tornaram-se, na maior parte, em intermediários. Neste contexto, ascolónias fenícias na Península Ibérica (das quais, a maisantiga parece ter sido Gades, a moderna Cádis, fundadacerca de 1100 A.C.) tinham grande importância, pois queera principalmente aí que se abasteciam em estanho e emprata.

Os contactos comerciais com diversificadas civilizações,próximas e longínquas, bem como as navegações que paraisso intensivamente praticavam, por certo que propiciaramaos fenícios grande acumulação de conhecimentos e noçõesgeográficas bastante aperfeiçoadas. No entanto, haviadificuldade em centralizar e sintetizar esses conhecimentospois que a Fenícia, desde início (3º milénio A.C.), estavadividida em pequenas cidades-estado (Biblos, Sídon, Ugarit,Acre, Beirute, Tiro, Baalbek, etc.) com grande grau deautonomia, entre as quais, com frequência, havia rivalidadesacentuadas e persistentes. Neste contexto, há ainda que terem consideração a influência dominante dos faraós doEgipto, aos quais os fenícios estiveram frequentementesubmetidos.

Por outro lado, os fenícios tendiam a monopolizar ocomércio e, para tal, era imprescindível guardar segredo doque poderiam ser vantagens comerciais. Acresce que,provavelmente em consequência das razões aduzidas, ocomércio fenício estava baseado em estruturas familiares,que detinham navios e manufacturas, e que tinhamrepresentantes nas colónias. Mais tarde, esse domínio

1 ) Murex é um gasterópode marinho que existe nas águas junto, entreoutras, às cidades de Tiro e de Sidon. A extracção do pigmento púrpura apartir do Murex iniciou-se, provavelmente, no século XVIII AC. O fluidocom o pigmento tinha que ser cuidadosamente extraido do gasterópode. Osoperários apanhavam as conchas, partiam-nas, extraiam o animal ecolocavam-nos em tanques. A decomposição da matéria orgânica produziaum líquido amarelado. Cada murex produzia, apenas, um par de gotas destelíquido. Fervendo este fluido, obtinham-se tintas de várias cores(encarnado, azul, violeta) consoante a período de fervura. A mais difícil deobter era a cor púrpura, pelo que era a que atingia preços mais elevados nomercado. Os tecidos tingidos com esta cor eram tão dispendiosos que,durante muito tempo, foi sinónimo de estatuto social muito elevado.

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familiar do comércio desenvolveu-se nalgumas das colóniasfenícias. Considerando este conjunto de razões, não é deestranhar que, até ao momento, quase não se tenhamencontrado documentos fenícios que nos indiquem o nívelde conhecimentos que possuíam sobre o meio marinho.

As zonas de influência fenícia, expressa pelas navegaçõescomerciais e pelas colónias que, sistematicamente, iamfundando, atingiram Chipre, Rodes e ilhas do Mar Egeu, eestenderam-se posteriormente pelo Mar Negro, por todo oMediterrâneo, pelo Mar Vermelho, pelo oceano Índico,pelas costas atlânticas europeias (pelo menos até às IlhasBritânicas), e pelas costas africanas.

b) Os navios fenícios

A localização geoestratégica da Fenícia cedo a transformouem entreposto comercial privilegiado. Efectivamente,encontrava-se no cruzamento das zonas de influência e dasrotas comerciais das principais civilizações da época. Ocomércio marítimo, assente na navegação de cabotagem,transformou as cidades fenícias em portos obrigatórios depassagem dos navios, quer provenientes do Egipto, queroriginários do Mar Egeu. A oriente, as civilizaçõesmesopotâmicas, próximas, podiam por aí exportar muitosdos seus produtos e importar bens inexistentes nas margensdo Tigre e do Eufrates. Estas influências múltiplas foram, apouco e pouco, modelando o espírito deste povo,enriquecendo os seus traços culturais, e desenvolvendo asua tecnologia. Não é surpreendente, portanto, querapidamente se tenham apoderado dos modelos dos barcosque revelavam maior eficácia na navegação e no transporte,aperfeiçoando-os. Tal aconteceu, também, como é óbvio,com os modelos dos navios cretenses, os tecnologicamentemais desenvolvidos nos meados do 2º milénio, que osfenícios copiaram e aperfeiçoaram.

Os vestígios mais antigos de barcos fenícios datam de circa1400 A.C., e estão presentes num relevo da tumba deKenamon, em Tebas. São aí visíveis barcos sírios,descarregando num porto egípcio, os quais tinhamsemelhanças com os que eram utilizados, nessa altura, poresta civilização, mas que já apresentavam algumascaracterísticas dos navios cretenses.

Fig. 25 - Desenho de um navio mercante fenício do séculoXIV A.C. (extraído de www.cedarland.org/ships.html)

Os navios mercantes fenícios desta época (fig. 25) podiamtransportar cargas relativamente grandes. Eram dotados deproa bastante forte e tinham vigas elevadas em ambas as

extremidades. Eram movidos a remos, mas tinham ummastro onde se podia içar uma vela quadrangular,sustentada por duas vigas encurvadas. Na popa havia umgrande remo direccional, que servia de leme. Presa à viga daproa existia uma grande ânfora com água potável.

Fig. 26 - Desenho de um navio de guerra fenício do final do2º milénio A.C., com duas fiadas de remos (extraído dewww.cedarland.org/ships.html).

Nessa altura, os navios de guerra (fig. 26), certamentemanifestando algumas influências cretenses, eram estreitose dotados de um convés sobrelevado, utilizado comoplataforma de combate. Tinham entre 25m e 35m decomprimento e 4 a 5m de largura. Eram galeras movidas aremos e à vela, sendo o mastro amovível. Segundo algunsautores, tinham já dois níveis de remos, o que permiteclassificar estes navios como birremes. À popa, um remogrande, direccional, era utilizado como leme. Remossuplementares, curtos e maciços, à proa, davam-lhes grandemanobralidade, permitindo-lhes dar meia volta rapidamente.Em combate, estes fortes remos podiam ser presosfirmemente ao casco, na horizontal, o que viabilizava a suautilização como aríete ou esporão. Esta era uma dascaracterísticas que os distinguia de outros navios de guerrada época (apesar dos navios cretenses começarem, na época,a apresentar, também, esporão que, no entanto, era fixo).

Fig. 27 - Desenho de um navio mercante fenício utilizadocirca 850 A.C., com popa elevada, encurvada, e revestida pormetal, e com vela reforçada com correias (extraído dewww.cedarland.org/ships.html).

Por volta de 850 A.C., tal como se pode deduzir dasdecorações de vasos do século VIII A.C., os naviosmercantes fenícios revelam características bastanteevoluídas, estando preparados também para confrontosbélicos, o que traduz a forte competição marítima entãoexistente no Mediterrâneo. A forma geral tinha-semodificado, perdendo a tendência para a simetria

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longitudinal, numa clara adopção do desenho dos navios deguerra cretenses. A proa é encurvada e revestida a ferro, oque permitia maior protecção do casco em caso deabalroamento com navios inimigos (fig. 27). A popa éelevada e encurvada, sendo, por vezes, também revestidametalicamente. O mastro era relativamente baixo e forte e avela reforçada com correias de couro. Numas galerasutilizava-se, apenas, um nível de remadores, mas outraseram birremes.

Fig. 28 - Moeda fenícia de circa 240 A.C., representandoum barco comprido em que, na proa, existe um esporão.

No entanto, galeras com características mais antigas eram,seguramente, também utilizadas nesta época. Como énormal, eram utilizados diferentes tipos de navios ediferentes formas de transporte, consoante as mercadorias.Por exemplo, numa representação de um navio feníciocarregando madeira (provavelmente de cedro), existente nopalácio de Sargon, em Nineveh, datada de circa 700 A.C.,vê-se que parte da carga estava acomodada no convés, e arestante era junta, como se fosse uma jangada, sendorebocada pela embarcação.

A atribuição da invenção da birreme e a altura em que estasembarcações apareceram constituem assuntos polémicos.Muitos investigadores defendem que este tipo deembarcação foi introduzido pelos gregos na primeirametade do 1º milénio. Outros, porém, atribuem aos feníciosesta importante invenção. Segundo alguns autores, estepovo já as utilizaria no final do 2º milénio.

Fig. 29 - Fragmento de um relevo (actualmente no MuseuBritânico) esculpido nos muros do palácio de Ninive querepresenta a frota fenícia fugindo do porto de Tiro, diante doexército assírio (século VIII A.C.).

Seja como for, o certo é que, num relevo esculpido nosmuros do palácio de Ninive (e que actualmente está noMuseu Britânico), que representa a frota fenícia de Luli, reide Tiro e de Sídon, fugindo do porto de Tiro antes do ataqueà cidade empreendida pelo rei assírio Senaquerib (séculoVIII A.C.), são visíveis, navegando conjuntamente, naviosredondos, com extremidades simetricamente levantadas, eoutros compridos, com esporões pontiagudos, todos elesrevelando duas ordens de remos sobrepostos, ou seja, erauma frota constituída por birremes (fig. 29).

Foi após 574 A.C., quando a supremacia, na região, passoupara a cidade de Tiro, que se verificou o período de maiorexpansão fenícia. Começando por consolidar as relaçõescomerciais com os povos do Mediterrâneo Central eOcidental, onde fundaram numerosas colónias (Chipre,Malta, Sicília, Sardenha, etc.), frequentemente muitoprósperas, passaram para as costas da Península Ibérica e daÁfrica atlântica, onde foram fundando colónias (Mogador,Lisboa, Cádis, Canárias, etc.).

c) Nível de conhecimentos

As viagens que os fenícios efectuaram, e as colónias queestabeleceram em regiões longínquas da terra mãe, permitededuzir que o seu conhecimento do meio marinho,designadamente no que se refere à distribuição das terras edos mares, eram já bastante avançados. Efectivamente, ocomércio marítimo que desenvolveram não seria possívelsem uma tecnologia náutica já bastante desenvolvida. A suaconstrução naval era já refinada, produzindo navioscomerciais e de guerra, movendo-se quer a remos, querutilizando grandes velas quadradas. Foram também osfenícios os primeiros a utilizar a estrela polar na navegação(sendo significativo que os gregos conhecessem esta estrelapela designação de “estrela fenícia”). As direcções nascentee poente eram designadas, respectivamente, por Asu e Ereb,nomes estes que, embora adulterados, perduraram até aosnossos dias através dos termos Ásia e Europa.

A navegação no Mediterrâneo era efectuada,essencialmente, a partir de referências existentes na zonacosteira, isto é, era, fundamentalmente, navegação decabotagem. Poucas são as ligações que têm que serefectuadas sem auxílio de referências existentes na costa,podendo referir-se, entre estas, os trajectos entre o Norte deÁfrica e as Ilhas Baleares, e entre estas e a costa ocidentalda Sardenha. Os fenícios parecem ter sido os primeiros aefectuar travessias do Mediterrâneo utilizandoverdadeiramente navegação marítima. Políbius (I, 46-47)conta mesmo que Haníbal, comandante de um navio deguerra cartaginês, conhecido pelo epíteto de “Rodiano”,efectuou a travessia entre Cartago e Lylibaeum (actualMarselha) em 24 horas. Tal revela não só que as navegaçõesem mar alto eram efectivamente efectuadas, mas tambémque os navios utilizados podiam atingir grandes velocidadespara a época, pois que na travessia aludida a velocidademédia teria sido superior a 5 nós.

A navegação comercial era efectuada, quaseexclusivamente, nos meses em que havia condiçõesmeteorológicas e de agitação marítima favoráveis, isto é,

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entre Março e Outubro. Pelo contrário, os navios de guerra,utilizados em missões de patrulha costeira e em acçõescontra a pirataria, bem como, obviamente, em missõesmilitares quando havia guerra, navegavam durante todo oano. Tal era, por vezes, dramático. Por exemplo, durante aprimeira guerra púnica (entre Cartago e Roma), osnaufrágios causados por temporais ascenderam, no que serefere aos cartagineses, a cerca de 700 navios (de guerra ecomerciais utilizados para transporte de tropas eabastecimento), tendo os romanos perdido perto de ummilhar.

A grande maioria da documentação escrita existente sobreos fenícios provém de outros povos, principalmente osgregos. É através destes que se sabe que, possivelmente,foram os fenícios a inventar um sistema alfabético de escrita(um alfabeto com 22 caracteres), que acabaria por seradoptado por todas as línguas indo-europeias e semíticas.Aliás, a palavra “alfabeto” deriva das duas primeiras letrasfenícias, alef e beth, correspondendo ao alfa e beta dosgregos. Sobre a literatura, que por certo existiu, nadachegou aos nossos dias. Seria essa documentação que nospermitiria aceder às suas concepções do mundo e aosconhecimentos geográficos e oceanográficos que tinhamadquirido. Pouco se sabe, também, sobre a própria línguafenícia, que parece ter persistido nalgumas colónias pelomenos até ao século 3º A.D.

d) Cartago

Entre as colónias fenícias, a mais famosa e a mais prósperafoi, seguramente, a de Cartago. Na base deste sucesso estãovários factores, designadamente dois portos excelentes (uminterior e outro exterior), uma posição geoestratégicamagnífica (na moderna Tunísia, próximo de Tunis, de ondeacedia, por caravana, a grande parte do Norte de África,mais ou menos a meio caminho entre o MediterrâneoOriental e o Atlântico, e frente a várias colónias importanteslocalizadas na Europa, designadamente a Sardenha e aSicília). Para um povo de comerciantes e navegadores, tinhasituação geográfica absolutamente privilegiada.

Desde antes de 1000 A.C. que os fenícios negociavam comos povos da Península Ibérica, onde obtinham, entre outrosprodutos, estanho e prata que eram muito valorizados noMédio Oriente. Eram longas viagens marítimas, masextremamente rentáveis. No entanto, como as galerasdificilmente percorriam mais do que trinta milhasdiariamente, e os comandantes preferiam não navegardurante a noite, período em que, normalmente, ancoravamem local seguro, havia necessidade de existirem colóniasintermédias onde os navios pudessem pernoitar. Nestecontexto, surgem quase naturalmente, entre outras, ascolónias de Gades (actual Cádis, no sul da PenínsulaIbérica), de Lixus (no actual Marrocos), e de Útica (naactual Tunísia), fundadas, segundo a tradição, cerca de 1100A.C., bem como as de Malta, Sardenha, Sicília, e Cartago,esta iniciada em 814 A.C., e designada pelo fenícios comoKart-Hadasht, o que significa “Cidade Nova”.

A partir do século VII A.C. o domínio marítimo feníciocomeça a ser disputado pela ascensão do poderio helénico, e

rapidamente aqueles foram remetidos para posiçãosecundária nas relações comerciais e domínio da navegaçãono Mediterrâneo Oriental. Porém, no MediterrâneoOcidental, os fenícios continuavam a ser hegemónicos noque se refere ao comércio marítimo.

A colónia de Cartago revelou grande prosperidade, atéporque estava quase isenta de ameaças bélicas directas,como acontecia com as outras colónias fenícias localizadasna zona europeia, como foi o caso da colónia da Sicília,alvo da política expansionista helénica e de outros povos,nomeadamente os etruscos. Aliás, Cartago esteveprofundamente envolvida na defesa dessas colónias, cujaconquista pelo gregos ameaçaria, também, o domíniocomercial marítimo nesta parte do Mediterrâneo.

Fig. 30 - Distribuição da colonização fenícia e grega noséculo VI A.C.

A conquista de Tiro, primeiro pelos assírios (em 665 A.C.),e depois pelos babilónios (em 573 A.C.), quebrou os laçoscom a terra-mãe, impondo às colónias maior protagonismo.Os fenícios do Mediterrâneo Ocidental, principalmente osdo Norte de África (designados por púnicos) fundiram-senum único estado, liderado por Cartago, o qual prosseguiunuma política comercial expansionista assente na navegaçãomarítima, tendo dominado a Tartéssia (no sul da PenínsulaIbérica) em 510 A.C. e colonizado as Ilhas Baleares. Porvolta de 410 A.C. Cartago tinha completado o processo deunificação, expansão e consolidação do domínio doMediterrâneo Ocidental. Foi neste período de expansãocomercial púnica que Cartago enviou exploradores ecolonizadores até regiões atlânticas mais afastadas dasColunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), nomeadamenteHanno às costas ocidentais africanas, pelo menos até aoGolfo da Guiné, e Himilco às costas atlânticas europeias,pelo menos até à Grã-Bretanha.

No entanto, perante o expansionismo helénico, a maiorparte das colónias fenícias da parte norte do MediterrâneoOcidental foram sendo, com maior ou menor dificuldade,conquistadas e dominadas pelos gregos. Neste processo,surge com especial relevância a luta pelas colóniaslocalizadas na Sicília. Tal era o seu valor estratégico, queforam alvo de grandes disputas durante mais de três séculos.

O relacionamento de Cartago com Roma foi heterogéneo.Aparentemente, de início, Cartago assumiu que os romanosnão eram mais do que outra comunidade etrusca, comambições locais, que poderia ser útil como aliado naPenínsula Itálica, principalmente contra o expansionismohelénico. Estabeleceram-se, assim, algumas relações decooperação. consubstanciadas por tratados assinados em

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510 A.C., em 348 A.C. e em 306 A.C. Nesses tratadosreferia-se, nomeadamente, a cooperação contra a pirataria, ocompromisso de Roma não comerciar na região do ImpérioCartaginês sem supervisão deste, e o acordo de liberação denavios romanos que, devido ao mau tempo no mar, fossemparar a qualquer lugar dominado por Cartago. Com estaaliança, juntamente com outras, Cartago conseguiu travar aexpansão grega para o Mediterrâneo Ocidental, continuandoa controlar o acesso ao Atlântico (e à prata e estanhoprovenientes principalmente da Península Ibérica, mastambém de outras regiões atlânticas) através do Estreito deGibraltar, que dominavam.

Fig. 31 - Territórios dominados por Cartago e por Romaantes do início das Guerras Púnicas.

Posteriormente, perante o sucesso expansionista de Roma, aatitude mudou radicalmente. Com o início da conquista daSicília pelos romanos, as relações deterioraram-serapidamente, verificando-se confrontos armados entre asduas potências, iniciando-se, assim, em 264 A.C., aPrimeira Guerra Púnica. Tendo Roma adquirido grandepoder naval, em muito copiado dos próprios cartagineses,através de uma série de guerras sangrentas, o ImpérioCartaginês foi progressivamente perdendo influência, tendocolapsado por completo com a destruição de Cartago peloromanos em 146 A.C.

e) A Circum-navegação de África

Uma das viagens mais controversas efectuadas pelosfenícios foi a da lendária circum-navegação de África, queteria sido empreendida circa 700 A.C. Embora não sejadirectamente um empreendimento fenício, pois que se tratoude uma expedição efectuada a mando do faraó Necho doEgipto. Após alguns conflitos bélicos desastrosos com osassírios, e com o comércio marítimo nas costas setentrionaisdo Mediterrâneo controladas pelos gregos, e nasmeridionais pelos fenícios, este faraó tentou melhorar aposição estratégica do Egipto como elo de ligação comercialentre o norte e o sul, para o que mandou (re)abrir um canalque permitisse a passagem de meios navais entre oMediterrâneo e o Mar Vermelho. Todavia, a meio dostrabalhos, foi alertado para a possibilidade de tal via decomunicação poder ser, também, um meio de acessofacilitado para os navios e exércitos dos seus inimigos, peloque os trabalhos foram suspensos.

Necessitando de novas zonas de abastecimento de produtosapreciados na bacia mediterrânea e de novas zonas deinfluência, Necho contratou uma frota dos afamadosnavegadores fenícios de Tiro, Sidon e Biblos para, partindo

do Mar Vermelho, explorarem as costas africanasmeridionais. Foi uma longa viagem, que durou três anos, edurante os quais efectuaram paragens prolongadas, em queestabeleciam colónias temporárias, para semearem cereais eesperarem pelas colheitas, após o que prosseguiam viagem.No verão do terceiro ano de viagem passaram as Colunas deHércules (Estreito de Gibraltar) e regressaram ao Egipto.

Esta viagem foi descrita por Heródoto, embora o próprioautor expresse algumas dúvidas quanto à sua veracidade.Curiosamente, um dos argumentos apontado por Heródotocomo indício de que teria sido, provavelmente, apenas umaviagem fantasiosa, é o de que um dos participantes teriareferido que, a partir de determinada altura, ao navegarem, oSol estaria localizado do lado da mão direita. Actualmente omesmo argumento é apresentado como indício daveracidade da narração, pois que tal é o que acontecequando se navega a sul do equador.

f) A viagem de Hanno (sec. VI A.C.)

São famosas e rodeadas de misticismo algumas das viagensexploratórias empreendidas pelos fenícios. Uma das maisfamosas foi efectuada pelo almirante cartaginês Hanno, naprimeira metade do século VI A.C., que efectuou uma longaviagem ao longo da costa oeste africana. A expedição tinhacomo objectivo a fundação de colónias na costa marroquina.No entanto, após cumprir esta missão, Hanno prosseguiupara Sul, numa viagem de reconhecimento, tendo chegado àcosta do actual Gabão.

Após regresso, Hanno produziu uma inscrição, gravada emplacas, no templo de Cronos (um dos deuses cartagineses),com a narração da viagem que tinha efectuado. Essainscrição foi, no século V A.C., traduzida, aparentementenuma versão resumida, para língua grega, a qual foi, porvárias vezes, copiada por gregos e bizantinos. Actualmenteapenas existem duas cópias dessa tradução, datadas dosséculos IX (o Palatinus Graecus 398, arquivado naBiblioteca da Universidade de Heidelberg) e XIV (oVatopedinus 655, de que uma parte está no British Museum,em Londres, e outra na Bibliothèque Nationale, em Paris).Na realidade, é uma documentação importante, pois quereproduz o primeiro relato existente sobre a costa ocidentalafricana, produzida cerca de dois milénios antes destasterem sido exploradas e descritas pelos navegadoresportugueses.

No texto da documentação aludida, constituída por 18partes e intitulada “Registo da viagem do rei Hanno deCartago em torno das terras da Libia (África) que ficampara lá dos Pilares de Hércules (Estreito de Gibraltar)”, lê-se o seguinte:

(1) Os cartagineses ordenaram a Hanno que navegassepara além dos Pilares de Hércules e fundasse algumascidades libiofenícias (era esta a designação dada às colóniasfenícias localizadas em África, como a própria Cartago).Navegaram com sessenta pentacontoras (um dos tipos degaleras utilizadas na época) transportando trinta milhomens e mulheres (!?) com provisões e outrosequipamentos necessários.

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(2) Depois de atravessarmos os Pilares de Hércules(Estreito de Gibraltar) e navegarmos durante dois dias paralá deles, fundámos a primeira cidade, a que chamámosThymiaterion (Thymiaterion, que significa 'Altar deIncenso', é identificado por vários autores como o portomarroquino de Mehidya, 40km a norte de Rabat). Em redorexiste uma grande planície.

(3) Depois fomos na direcção Oeste e chegámos aopromontório líbio (africano) de Soloeis (provavelmente ocabo Beddouza ou o cabo Mazagão), que está coberto porárvores;

(4) (…) navegámos de novo em direcção a Nascentedurante meio dia, após o que chegámos a uma lagoapróximo do mar (existem várias lagoas na costa marroquinaadjacente ao Oum er Rbia) coberta com muita vegetação degrande altura, que elefantes e grande número de outrosanimais estavam comendo

(5) Depois de deixarmos a lagoa e navegarmos outro dia,fundámos as cidades chamadas Karikon Teichos (éprovável que corresponda Azzemour, onde foramdescobertas várias tumbas cartaginesas), G y t t e(possivelmente El-Jadida, onde foi encontrada umanecrópole cartaginesa), Akra (Cabo Beddouza?), Melitta(Oualiddia) e Arambys (ilhéu do Mogador, onde hávestígios arqueológicos da presença cartaginesa?).

(6) (…) Continuando a viagem, atingimos o grande rioLixos (frequentemente identificado como o rio Drâa, quedesagua no Atlântico frente às ilhas Canárias) que vem dointerior da Líbia (como os gregos chamavam a África). Nasmargens os lixitas estavam a pastorear o gado. Ficámoscom eles algum tempo e tornámo-nos amigos. (…)

(8) Levando intérpretes lixitas connosco, navegámos parasul, ao longo da costa desértica, durante dois dias, e depoispara Nascente durante mais um dia, tendo encontrado,numa baía, uma pequena ilha com cinco estádios decircunferência (cerca de 900 metros). Deixámos aí colonose chamámos (à colónia) Kerne (embora a localização exactaseja controversa, é possível que seja a ilha de Herne, na baíado Rio de Oro, ou uma das ilhas da Baía de Arguin, na costada Mauritânia). (…).

(9) Navegando daí cruzámos um rio chamado Chretes (cujaidentificação é controversa), e atingimos uma baía com trêsilhas maiores do que a de Kerne (provavelmente oarquipélago Tidra, ao largo da costa da Mauritânia). Depoisde mais um dia de navegação, chegámos ao final da baía,que é dominada por grandes montanhas habitadas porselvagens vestidos com peles de animais, e que nosatiraram pedras, impedindo-nos de desembarcar.

(10) (…) chegámos a outro grande rio (o rio Senegal?),cheio de crocodilos e hipopótamos. Regressando daí,voltámos a Kerne.

(11) Daí navegámos para sul durante doze dias (até à costada Guiné, da Serra Leoa ou da Libéria), ao longo de umacosta inteiramente habitada por etíopes, que nos impediramde nos aproximarmos. A sua língua era incompreensível,mesmo para os nossos lixitas.

(12) No último dia ancorámos junto a uma altas montanhas(Cabo Mesurado, junto a Monrovia?) cobertas por árvorescuja madeira era aromática e colorida.

(13) Navegámos em torno das montanhas durante dois diase chegámos a uma imensa baía (poderia ser o Golfo daGuiné), do outro lado da qual havia uma planície. (…)

(14) Tendo aí renovado as nossas reservas de água doce,continuámos viagem durante mais cinco dias, após o quechegámos a uma grande baía, a que os nossos intérpreteschamavam de Corno do Ocidente (designação que apareceem vários textos da Antiguidade Clássica, mas comopromontório e não como baía; é possível que seja o Cabodas Três Pontas, na costa do actual Gana). (…)

(15) (…) navegámos para fora dali, passando ao longo deuma costa ardente cheia de incenso. Grandes correntes defogo chegavam ao mar, e a terra era inacessível devido aocalor.

(16) (…) navegando durante quatro dias, vimos a costa, ànoite, cheia de fogo. No meio havia uma grande chama,maior dos que as outras e que parecia subir para asestrelas. De dia, constatámos que era uma grandemontanha chamada Carro dos Deuses (que, segundo algunsinvestigadores, seria o vulcão de Kakulima, na Guiné;porém, não há registo da erupção deste vulcão desde muitoantes do tempo de Hanno; outra hipótese seria a do vulcãodos Camarões, activo, que inclusivamente em 1922 teveuma erupção em que a lava chegou até ao mar).

(17) Deixando este lugar, e navegando ao longo da costaardente, ao fim de três dias chegámos a uma baía chamadaCorno do Sul (possivelmente a Baía Corisco).

(18) Neste golfo havia uma ilha, parecida com a primeira,com uma lagoa, no meio da qual havia outra ilha cheia deselvagens. Muitos eram mulheres que tinham o corpocoberto de pelos, a que os nossos intérpretes chamavam“gori las”. (…) capturámos três mulheres, que serecusaram a seguir os que as tinham apanhado, mordendo-os e arranhando-os. Matámo-las e tirámos-lhes as peles,que trouxemos para Cartago. Não navegámos mais poisque as nossas provisões eram já muito reduzidas.

É uma narrativa interessante sob vários pontos de vista. Ospormenores, designadamente os que se referem aos locaisvisitados, são frequentemente identificáveis, o que dácredibilidade à história da expedição. Por exemplo, sobre aspeles de gorilas, Plínio, o Velho (c.23-79AD) refere, na suaHistória Natural (6.200), que, no templo da deusa Tanit, emCartago, havia em exibição peles de gorilas, que aípermaneceram até que a cidade foi destruída pelos romanos.

É interessante verificar, também, que os locaisseleccionados para a fundação das novas colónias eramabrigados e facilmente defensáveis, ao estilo fenício, e quenão há qualquer referência que permita inferir do objectivode se apoderarem de grandes áreas. Assim, o propósito doestabelecimento destas colónias era puramente comercial.Aliás, é também interessante constatar a existência dealgumas referências a produtos que poderiam ser

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comercialmente valorizados, designadamente madeirasexóticas.

g) A viagem de Himilco (sec. VI A.C.)

O interesse fenício no Atlântico estaria já consolidado cercado século XI A.C., altura em que teriam fundado a colóniade Gadis (a actual Cádis), de onde importavam,principalmente, prata e estanho, metais muito valorizadosna bacia mediterrânea. A localização das regiões de ondeeram importados estes metais era ciosamente guardada.Estrabão (63 A.C. – 24 A.D.) conta-nos mesmo um episódiointeressante que traduz bem até que ponto essa informaçãoera mantida sigilosa: quando os romanos tentaram seguiruma embarcação comercial para descobrirem a rota, ocomandante fenício, deliberadamente provocou o naufrágio,para o que “desviou o navio da rota, para águas poucoprofundas, e depois de ter atraído os seus perseguidorespara a mesma desgraça, fugiu num pedaço de madeira donavio, tendo recebido do estado (de Gadis) o valor docarregamento que tinha perdido”.

Fig. 32 - Algumas navegações fenícias deduzidas dadocumentação histórica (modificado de The ChallengerReports – Summary (1895).

Se a fonte principal de estanho para a bacia mediterrâneaera a Península Ibérica, até porque mais próxima dos locaisde destino, os fenícios conheciam a existência de outraszonas do litoral atlântico onde este metal era, também,abundante. Na altura havia já algum comércio entre ospovos ibéricos, nomeadamente os tartéssios, e essas regiõesque incluíam a Bretanha e as ilhas britânicas, de que osfenícios tinham, obviamente, conhecimento. Porém, écredível que nunca tivessem sentido a necessidade deexplorar essas regiões pois que o apreciado metal era

relativamente abundante nas zonas ibéricas quecontrolavam.

Todavia, há indícios de que, no final do século VII A.C., asrelações entre tartéssios e fenícios se degradaram. Nestecontexto, não é de estranhar que Cartago, para manter omonopólio mediterrâneo do comércio de estanho (e deoutros produtos), tenha decidido enviar exploradores a essasregiões de abastecimento mais longínquas. Surge, assim, acélebre viagem exploratória empreendida por Himilco.

Tal como com Hanno, também Himilco deixou um relato dasua viagem, entretanto perdido (provavelmente com adestruição de Cartago), mas que se conhece através dereferências efectuadas por autores posteriores. A primeirareferência à viagem empreendida por Himilco, produzidapor um autor confiável, parece ser a produzida por Plínio, oVelho (c.23-79 A.D.) quando, na História Natural (2.169a),escreveu que “quando o poder de Cartago prosperou,Hanno navegou de Cádis à extremidade da Arábia, tendoproduzido uma memória da sua viagem, tal como o fezHimilco quando, na mesma altura, foi mandado explorar ascostas exteriores da Europa”. Desta afirmação conclui-seque Himilco foi contemporâneo de Hanno, isto é, que viveue empreendeu a sua viagem de exploração no século VIA.C.

Outro autor que refere a viagem de Himilco foi o aristocrataromano Rufus Festus Avienus que, cerca de 350 A.C., aodescrever a costa atlântica, no seu poema A Zona Costeira,cita por três vezes a narrativa deste explorador, dizendomesmo que a ela teve acesso directo.

Segundo este autor (A Zona Costeira, 114-119), Himilcodizia, na sua narrativa, que tinha demorado quatro meses achegar às Ilhas Oestrumnideas, cuja localização exacta nãofoi ainda determinada com precisão, mas queprovavelmente correspondem à Cornualha, às Ilhas Scillyou à Bretanha. De acordo com Avieno, ficam a dois dias daIrlanda e são “ricas em estanho e chumbo. Aqui vive umatribo vigorosa, com espírito orgulhoso, energético eengenhoso”. O período referido de quatro meses é muitolongo para tal viagem, o que deixa pressupor que, àsemelhança do que foi efectuado durante a expedição deHanno à costa africana, foram aportando em numerososlocais, estabelecendo, provavelmente, colónias nos pontosmais propícios.

No poema, e continuando a cotejar a narrativa de Himilco,Avieno (A Zona Costeira, 114-129) refere sucessivosproblemas que dificultaram a progressão, nomeadamente afalta de vento, grandes quantidades de algas, bancos deareia e monstros marinhos. Tal é, de algum modo, repetidonum segundo bloco do poema (A Zona Costeira, 380-389),em que é mencionada a vastidão do oceano, a ausência devento e o nevoeiro, bem como no terceiro bloco (A ZonaCosteira, 404-415), em que se repetem os problemas comos baixios, com as algas e com os monstros.

É interessante tentar compreender porque é que asdificuldades, algumas delas certamente exageradas, outrasseguramente imaginárias, foram de tal modo ressaltadas porAvieno, reflectindo, muito provavelmente, o conteúdo danarrativa de Himilco. Tendo em consideração que as rotas

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de abastecimento eram, na altura, ciosamente guardadas,pois que era vital mantê-las no domínio de Cartago,compreende-se a vantagem que havia em exagerar asdificuldades em aceder a essas regiões longínquas (o quedesmotivaria os competidores), e que, simultaneamente,permitia ressaltar a coragem e valor do explorador, tornandoa viagem bastante mais impressionante.

É possível que a viagem de Himilco se tivesse prolongadobastante para lá das ilhas britânicas, através do Mar doNorte, penetrando, mesmo, no Mar Báltico, como édefendido por vários autores. Essa hipotética visita aHelgolândia ajudaria a explicar as especulações, efectuadaspor vários autores gregos, sobre um lendário rio de âmbardenominado por Rio Eridanus.

h) O Fim de Cartago

Como se referiu, no século sexto A.C., a Fenícia começou aceder, sob a pressão expansionista exercida pelos reisassírios. Em 539 A.C., com a conquista da Babilónia pelospersas, a Fenícia perdeu identidade e, com a captura deTiro, em 332 A.C., por Alexandre, o Grande, os feníciosdeixaram de existir como povo identificável. No entanto,ainda durante bastante tempo, as colónias feníciascontinuaram a subsistir e a manter intensas trocascomerciais, lideradas por Cartago.

Cartago, fundada, segundo a tradição, em 814 A.C., nasequência de uma guerra civil que forçou parte dapopulação de Tiro a exilar-se, acabaria por dominar ocomércio e a navegação no Mediterrâneo Ocidental,domínio esse que continuou mesmo após o colapso daFenícia. Teve que se defrontar, porém, com as tendênciasexpansionistas gregas, que em parte conseguiu travar, eromanas, perante as quais acabaria por sucumbir. Tentoumanter sigilosas as rotas de abastecimento comercial,principalmente as do Atlântico, embora nem sempre o tenhaconseguido, tal como não conseguiu manter a superioridadeque detinha na navegação e na construção naval.Rapidamente Roma copiou os navios de Cartago,melhorando-os no que se refere ao potencial bélico. Apósuma série de guerras, as Guerras Púnicas, Cartago acabariapor colapsar, sendo a cidade destruída pelos romanos, em146 A.C.

1. AS PRIMEIRAS CONCEPÇÕES DO MUNDO

4.1. A Tábua de Argila Babilónica (600 A.C. - 500 A.C.)

Uma das primeiras representações conhecidas do mundoestá expressa numa tábua de argila babilónica datada doséculo V A.C. (fig. 33). Trata-se de uma representaçãodiagramática, mas obedecendo a alguns princípioscartográficos, do mundo dos babilónios e das relações entreeste com outras regiões de que havia algum conhecimento,sendo acompanhado por um texto descritivo, em ambas asfaces da tábua, em escrita cuneiforme.

A Terra é representada como um mundo plano e redondo,com a Babilónia no centro, e sete regiões exteriores,localizadas para além do oceano envolvente (fig. 34). É de

notar que esta visão contrasta com a dos gregos, para osquais o oceano envolvente se localizava exteriormente atodas as terras conhecidas.

O texto cuneiforme inclui nomes de países e de cidades,mas, no reverso, este texto é principalmente dedicado àdescrição das “sete ilhas” ou regiões, representadas portriângulos iguais, dos quais apenas um está inteiramentepreservado na tábua.

Fig. 33 - Tábua de argila babilónica (600 – 500 A.C.).

A descrição das primeiras duas ilhas não ficou preservada.A terceira ilha, situada a Oeste, é a região “que as aves nãoconseguem atingir”. Na quarta, localizada a Noroeste, “aluz é mais brilhante do que a luz do por do Sol ou dasestrelas”, ou seja, está na semi-obscuridade. Na quinta ilha,representada a Norte, “não há visibilidade” e “o Sol não évisível”. Quanto à sexta ilha, é referido que aí “vive umtouro que ataca os visitantes”. Finalmente, diz-se que, nasétima ilha, a Oriente, é onde “nasce a manhã”. Estainformação traduz a síntese do conhecimento que ossumérios e os babilónios tinham do mundo, muito do qual,provavelmente, foi obtido de contactos com outros povos ede visitantes.

É interessante verificar que, nesta altura, os autores tinhamjá informações de algumas das características importantesde regiões longínquas, como é o caso, por exemplo, da noitepolar existente nas altas latitudes (na quarta ilha). Asdiferentes interpretações deste texto têm dado origem avárias polémicas. Por exemplo, qual o significado daexpressão “que as aves não conseguem atingir” associado àquarta ilha, situada a NO? Teriam, nesta altura, já algumainformação sobre a Islândia, ou sobre a Gronelândia, oumesmo sobre a América do Norte? Se a resposta éafirmativa, como teriam obtido esse conhecimento de terrastão longínquas da Babilónia e, nessa altura, praticamenteinacessíveis aos habitantes da Europa? Se não, o quesignifica tal expressão?

Nessa tábua de argila, a Terra propriamente dita estárepresentada por um círculo, em que duas linhas paralelas,

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traçadas desde as montanhas e passando pela Babilónia,representam, seguramente, o rio Eufrates. Este desaguanuma zona pantanosa, identificada por Bit Jakinu, quecorresponde ao actual baixo Iraque.

Fig. 34 - Representação interpretativa da tábua de argilababilónica (600 – 500 A.C.).

No contexto da história do conhecimento do oceano, érelevante recordar que foi este povo o responsável pelosistema que utilizamos para medir ângulos, e que, de certaforma, influenciou toda a Ciência e, nomeadamente, anavegação.

O sistema de numeração babilónico não tinha base 10, massim base 12. é devido a esta influência que o círculo sedivide em 360º, subdividido em 60’, e estes subdivididosem 60’’. É também por causa do sistema de numeração queo dia se divide em 24 horas, subdivididas em 60 minutos, eestes subdivididos em 60 segundos.

4.2. O Mundo segundo Anaximenes (580 A.C.)

Mais ou menos da mesma época em que era produzida atábua de argila babilónica, em que se representava aconcepção que este povo tinha do mundo, Anaximenes deMileto, filósofo iónico sucessor de Anaximandro, tinha umaconcepção diferente, a qual nos foi transmitida,essencialmente, por Aristóteles.

A Terra, de acordo com Anaximenes, consistia num mundorectangular (fig. 35), suportado pelo ar comprimido pelopeso deste. As terras emersas (e o Mediterrâneo) eramcircundadas por um mar oceano.

É de referir que, ao contrário da visão predominante daépoca, que aceitava que o Sol e as estrelas desciam para aTerra e se elevavam posteriormente na outra extremidade,este filósofo defendia que estes astros se movimentavam emredor da Terra, a grande distância, e que a luz solar erainterrompida, durante a noite, por altas montanhas.

É interessante contrastar as concepções do Mundo,produzidas aproximadamente na mesma altura, presentes natábua de argila babilónica e na versão de Anaximenes. Naparte central, aparentemente, este localiza o Mediterrâneo, oque revela a forte ligação dos helénicos a este mar, e aimportância deste como via de comunicação entre os povosmediterrâneos. Pelo contrário, é discutível que os babilóniostenham sequer representado o Mediterrâneo na suarepresentação do Mundo, o que não deixa de ser estranho.

Fig. 35 - O mundo na concepção de Anaximenes (século 6ºA.C.), numa reconstrução de Arthur Cavanagh.

É interessante, também, constatar que na referida tábua deargila há referências explícitas e descritivas das terrasdistantes, o que, na maior parte, está omisso na concepçãode Anaximenes. É possível que tal revele as diferentescaracterísticas dos dois povos: os babilónios, centrados naregião que habitavam, mas eventualmente visitados porviajantes que traziam novas de terras longínquas, o quecertamente despertava grande interesse e estimulava aimaginação; e os helénicos, para quem o Mediterrâneo era avia de comunicação privilegiada, e que de tão rica emdiversidade e novidades, deixaria para segundo planonotícias duvidosas de outras terra longínquas.

4.3. A Concepção Esférica da Terra (~500 A.C.)

A acumulação progressiva dos conhecimentos, associado aopoder analítico e dedutivo do Homem, permitiu que, cercade 500 A.C., Parménides de Elea defendesse já aesfericidade da Terra, a qual dividiu conceptualmente emzonas paralelas ao equador, em cada uma das quais o diatinha determinada quantidade de horas de iluminaçãonatural. Estas zonas foram designadas por Klima (klimatano plural), da palavra grega que significa inclinação, devidoa essas horas de dia estarem relacionadas com a inclinaçãodo Sol.

A aludida acumulação dos conhecimentos está sintetizadana descrição do mundo conhecido dos gregos, efectuada porHeródoto cerca de 450 A.C.

4.4. O “Mapa” de Heródoto (~450 A.C.)

As “Histórias”, como se chama o livro de Heródoto (c.480-c.425 A.C.), grande escritor e viajante aventureiro, tinhamcomo primeiro objectivo descrever a história das longas

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lutas entre os gregos e o Império Persa, mas o autor incluiuaí, também, praticamente tudo o que conhecia sobregeografia e sobre os povos de que tinha notícia. Estetrabalho, associado ao mapa que pode ser reconstruído apartir das descrições apresentadas (fig. 36), fornecem umaimagem detalhada do mundo conhecido dos gregos doséculo 5º A.C..

Pode dizer-se que Heródoto era realmente um escritor-investigador, pois que, para obter dados para o seu livro,partiu de sua casa, em Halicarnassus, na Ásia Menor, para oMediterrâneo, tendo navegado por quase todo o mundoentão conhecido. Assim, a fiabilidade das descrições queefectua é muito elevada, pois que estão alicerçadas nasobservações efectuadas pelo próprio autor, emboracombinadas com informações obtidas dos povos com quefoi contactando. O rigor é tal que, com frequência, elepróprio expressa algumas dúvidas de histórias que narra,mas que lhe chegaram através de outras pessoas. Dos seusescritos pode concluir-se que estava familiarizado com asteorias sobre a esfericidade da Terra, parecendo que nuncaaceitou as velhas crenças de que a Terra era um disco.

Fig. 36 - O mundo segundo Heródoto (circa 450 A.C.).Adaptado de The Challenger Reports – Summary (1895).

As informações de índole geográfica, entre outros sobre ospaíses, os rios e os mares, bem como sobre as suasdimensões relativas e as suas posições são tãopormenorizadas que vários autores tentaram desenharmapas baseados nessas informações (fig. 36).

O “mapa” de Heródoto revela que os gregos do século 5ºA.C. tinham já um conhecimento bidimensional do oceanobastante aperfeiçoado. Aí estão bem representados os trêscontinentes conhecidos na altura (Europa, Ásia e Líbia,como então se designava a África). Escreveu Heródoto:“rio-me quando vejo que, apesar de muitos antes de mimterem desenhado mapas da Terra, nunca nenhum conseguiurepresentá-la de forma inteligente, pois que desenhamOceanus fluindo em volta da Terra, representada de formacircular, exactamente como se tivesse sido traçada comcompasso, e põem a Ásia igual em tamanho à Europa …”.Assim, o autor escarnece das crenças dominantes de que aEuropa, a Ásia e a África tinham dimensões semelhantes,formando, no conjunto, um mundo circular.

É relevante referir que Heródoto descreveu também, entremuitos outros assuntos, sobre a regularidade das marés doGolfo Pérsico e sobre a deposição de sedimentos finos do

Delta do Nilo, discorrendo sobre a própria evolução destaacumulação sedimentar. Foi o primeiro autor a utilizar otermo “Atlântico” para descrever o oceano ocidental.

4.5. O Mapa de Eratóstenes (257-195 A.C.)

Eratóstenes (257-195 A.C.) legou para a posteridade umavisão bastante pormenorizada do mundo conhecido no seutempo, ou seja, da distribuição das terras emersas e dosmares. Já antes do tempo de Eratóstenes os conhecimentosgeográficos tinham começado a ser expressos de modoregular e sistemático, assumindo a forma de mapas. Autilização de mapas do mundo conhecido tinha sidointroduzido mais de 3 séculos antes, na altura deAnaximandro (c.610 - 564 A.C.), e tinham-se, de certaforma, vulgarizado no tempo de Heródoto (c.489 - 425A.C.), embora praticamente nenhum dos exemplares dessesmapas tenha chegado aos nossos dias.

Entretanto, nomeadamente com as conquistas de Alexandre,o Grande, e com a intensificação dos contactos comcivilizações diferentes, o conhecimento geográfico ampliou-se muito. Eratóstenes, que tinha estudado em Atenas,tornou-se bibliotecário chefe da biblioteca de Alexandria,tendo consequentemente acesso privilegiado a toda ainformação aí depositada, tendo-se empenhado em efectuara “reconstrução do mapa do mundo” baseado em princípiosmais científicos. Tal permite considerá-lo, segundo muitosinvestigadores, como o “pai da geografia sistemática”.

Embora Eratóstenes tivesse adoptado o ponto de vistageocêntrico, dominante no seu tempo, teve o mérito deefectuar contribuições muito válidas, designadamente noque se refere à esfericidade da Terra. Por exemplo,determinou com precisão notável (erro inferior a 4%) operímetro do globo terrestre.

Embora nenhum dos seus documentos tenha chegado aosnossos dias, muito deste material foi descrito e utilizado porautores posteriores, nomeadamente por Estrabão (63 A.C. –24 A.D.), e por Ptolomeu (138 – 180 A.D.), e é por estesque podemos aferir os conhecimentos de Estrabão,incluindo a cartografia que produziu, que se tem tentadoreconstituir (fig. 37).

Fig. 37 - O mundo segundo Eratóstenes (circa 250 A.C.).Adaptado de The Challenger Reports – Summary (1895).

O seu mapa do mundo habitado teria precisão notável para aépoca, sendo aí possível reconhecer, entre vários outrosterritórios longínquos relativamente a Alexandria, as Ilhas

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Britânicas, Ceilão e, possivelmente, o Japão. De acordo comas crenças prevalecentes no seu tempo, o oceano erarepresentado imediatamente a oriente da Índia, para elefluindo directamente o rio Ganges. A deformação(interrupção) meridional da África e da Índia, bem como alocalização incorrecta do Ceilão, resultam da percepção,obviamente errada, de que as águas equatoriais eramexcessivamente quentes para serem navegadas.

Embora, muito provavelmente, o conhecimento deEratóstenes sobre as costas setentrionais da Europa e daÁsia não ser substancialmente diferente do de Heródoto, éinteressante verificar que aquele, ao contrário deste,assumia que ambos os continentes eram limitados, a norte,pelo oceano. Tal traduz uma visão, polémica na altura,sobre a expressão bidimensional do oceano: a de que, naTerra, o domínio marinho é dominante, constituindo oconjunto das terras emersas uma “ilha” no seio do oceano.A visão oposta, que de certa forma teria sido dominante,estando bem expressa nos trabalhos de Ptolomeu,considerava que a dominância, na Terra, era a das terrasemersas, constituindo o Atlântico e o Índico maresinteriores, à semelhança do que se verifica com oMediterrâneo.

4.6. O Mundo segundo Crato de Malos (~150 A.C.)

As medições das dimensões da Terra efectuadas porEratóstenes levantaram um problema interessante: otamanho de oikumene (o mundo habitado) era muitopequeno comparado com o da esfera terrestre, ocupandoapenas um quadrante da esfera. Tal chocava com o sentidode simetria da cultura helénica. Foi essencialmente combase em raciocínios dedutivos assentes nestes princípiosque, cerca de 150 A.C., em Pérgamo, na Ásia Menor, Cratode Malos apresentou uma visão do globo terrestre,revolucionária para a época.

Fig. 38 - O Globo de Crato (c.150 A.C.), numareconstituição, adaptada, do século XIX.

No sentido de manter o equilíbrio e a simetria, estematemático concebeu a existência de outras três massascontinentais desconhecidas, mas habitáveis (Antokoi,Periokoi e Antipodas), no que se pode considerar ser umaprevisão ou “pressentimento” da existência das Américas,da Antárctica e da Austrália. Foi assim que nasceram osconceitos de Antípodas e de Terra Australis, que haveriamde ser sistematicamente evocados e utilizados em mapas daIdade Média e da Renascença. Embora os originais nãotenham sobrevivido até aos nossos dias, na figura 38apresenta-se uma reconstrução moderna do que terá sido oGlobo de Crato.

Embora se saiba actualmente que a distribuição doscontinentes não obedece aos princípios considerados porCrato, sendo consequência da deriva continental, tendomesmo havido épocas, no passado geológico, em que asmassas continentais, ao contrário do que por ele eraassumido, se encontravam aglomeradas num único mega-continente, as ideias deste matemático influenciaramdefinitivamente o mundo ocidental durante muitos séculos.

Outra ideia expressa no globo de Crato, errónea masdominante nessa altura (evidente também no mapa deEratóstenes), é a de que a zona tórrida seria apenas ocupadapelo oceano, sendo excessivamente quente para permitir avida humana. O Globo de Crato é, em súmula, o primeiroproduto da cartografia matemática teórica.

O avanço dos conhecimentos conseguido durante adominância da cultura helénica foi verdadeiramenteimpressionante. O conceito de globo terrestre foi sendoprogressivamente aperfeiçoado, transitando da formadiscoidal para a esférica e, nesta, para uma versão comquatro continentes. A forma, dimensionamento epormenorização da oikumene (o mundo habitado) foisujeito, também, a grande evolução. Nesta altura,desenvolveram-se duas escolas antagónicas: uma, quedefendia que as massas continentais constituíam uma ilharodeada pelo oceano; outra, que postulava que adominância, na Terra, era a dos continentes, constituindo oAtlântico e o Índico mares interiores, como o Mediterrâneo.

4.7. O “O Oceano” de Posidónio (c135 - 51 A.C.)

Avanços importantes na concepção que a AntiguidadeClássica tinha da Terra foram introduzidos por Posidónio(c.135 - 51 A.C.). Este foi um filósofo e historiador grego,nascido em Apamea, na Síria, que estudou em Atenas, eacabou por se fixar em Rodes, cerca de 96 A.C., onde,inclusivamente, construiu um planetário para melhortransmitir aos os seus conceitos sobre o cosmos. Os seusinteresses enciclopédicos tornaram-no numa figura muitoinfluente. Sendo apologista do imperialismo de Roma,escreveu parte da sua História (desde 146 A.C. até àditadura de Sula).

Foi Posidónio o primeiro a explicar, de forma bastantecompleta, as marés do Atlântico. Tentou melhorar osresultados obtidos por Eratóstenes no que se refere aoperímetro da Terra, mas obteve um valor que, na realidade,subestima fortemente o valor verdadeiro. Foi um resultadoinfeliz porquanto, devido à sua reputação, este valor foi

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aceite e utilizado por Ptolomeu, tendo acabado por chegar,como válido, até à Renascença. Em compensação,Posidónio sugeriu que a Índia poderia ser alcançadanavegando para Oeste, através do Atlântico, ideia esta quefoi posteriormente retomada por outros investigadores, eque, mais tarde, viria a influenciar, de forma decisiva, aactuação de Colombo. A sua estimativa da distância quesepara a Terra do Sol foi a melhor da Antiguidade (cerca demetade da distância real).

Fig. 39 - O mapa de oikumene (o mundo habitado), segundoPosidónio, numa reconstituição de 1630, da autoria de PetrusBertius.

Escreveu um tratado, intitulado “O Oceano”, que nãochegou aos nossos dias, mas que se conhece através dosescritos de Estrabão. Nesse trabalho considerava umadivisão da Terra baseada nos trópicos e nos círculos polares,considerando uma zona anfisquiana2, entre os trópicos(onde a sombra de uma vara espetada verticalmente no solose projecta, ao longo do ano, alternadamente para norte epara sul), e duas zonas heterosquianas, entre os trópicos eos círculos polares (onde a sombra da vara se projectasempre para norte ou para sul). Considerando, além destadivisão, claramente baseada em critérios astronómicos, adistribuição das temperaturas, Posidónio considerou que naTerra se podem considerar sete zonas: duas zonas frígidas,em redor dos pólos; duas zonas temperadas; duas zonasestreitas e extremamente áridas localizadas nos trópicos; euma zona equatorial, mais temperada e mais húmida do queas antecedentes. Esta visão está bastante próxima da que aGeografia Climática viria, séculos mais tarde, a definir.

Posidónio relata ainda ter-se efectuado uma sondagem(determinação de profundidade) próxima da Sardenha,tendo-se encontrado fundo a 1 828 metros. A ser verdade,pois existem poucas informações sobre os métodosutilizados, este feito reveste-se de grande importância dadasas dificuldades que existiam, na altura, em efectuarsondagens profundas, as quais só começaram a serpraticadas, com alguma frequência, no século XVII.

4.8. A “Geographia” de Estrabão (63 A.C. – 24 A.C.)

A compilação dos conhecimentos geográficos sobre omundo conhecido, tal como existiam no início da EraCristã, foi efectuada por Estrabão, com base nos relatos de

2 Em grego skia significa sombra

viajantes e em escritos dos “antigos”. Toda essa informaçãoestá expressa nos 17 volumes da sua “Geographia” (quefelizmente chegaram até nós), e sintetizada em mapas (queinfelizmente se perderam). De acordo com o conceito desteautor, o objectivo da geografia não é o de descrever einterpretar o mundo como um todo, mas sim apenas omundo habitado, o que expressa o pensamento de umacorrente dominante vinda, pelo menos, desde inícios dacivilização helénica, e traduz as preocupações principais doseu tempo.

Estrabão (63 A.C. –24 A.D.) nasceu em Amasya, no MarNegro, tendo viajado intensivamente pela parte oriental doImpério Romano. Visitou Roma por várias vezes e, durantealguns anos, viveu em Alexandria, no Egipto. Para o seumapa de oikumene (o mundo habitado) e para as descriçõespormenorizadas incluídas na sua “Geographia”, utilizou osconhecimentos obtidos nas suas múltiplas viagens, mastambém, intensivamente, informações constantes no vastoespólio da biblioteca de Alexandria e relatos de outrosviajantes. Tais descrições bastante pormenorizadas têmpermitido tentar efectuar reconstruções do seu mapa deoikumene (fig. 40).

Baseado na estimativa do perímetro da Terra efectuada porEratóstenes, e na ideia, vulgar na altura, de que as zonasequatoriais eram, devido à temperatura, inabitáveis, adescrição (e mapa) de Estrabão estende-se do País daCanela , na região do corno de África, a sul, até Ierne(Irlanda), a norte, considerada pelo autor como dificilmentehabitável devido ao frio. Consequentemente, negava aexistência da Ilha de Thule (Islândia?), pelo menos comoterra habitada.

É interessante ver como é que Estrabão concebia a Terra e,nesta, a localização do mundo habitado. Dizia o autor: (…)“partamos do princípio de que a terra, juntamente com omar, é esférica, (…) embora não como uma esfera mas maiscomo um fuso”. Considerando e Equador e um paralelolimitativo da zona frígida setentrional, e um círculo máximo(meridiano) cortando estes ortogonalmente, obtêm-se doisquadriláteros no hemisfério norte. “Num destesquadriláteros localiza-se o mundo habitado, rodeado pelomar, como se fosse uma ilha”.

Fig. 40 - O mapa de oikumene (o mundo habitado), segundoEstrabão, numa reconstituição de John Murray.

Outra passagem interessante de Estrabão é a seguinte(II.5.17): “É o mar que, sobretudo, dá forma e define a

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terra, modelando golfos, oceanos e estritos, tal comoistmos, penínsulas e promontórios. Mas os rios e asmontanhas também ajudam. É através destascaracterísticas geográficas que continentes, nações, sítiosfavoráveis para cidades e outros refinamentos se foramconstituindo…”

Para o seu mapa de oikumene, Estrabão adoptou um sistemade coordenadas rectangulares, constituído por paralelos emeridianos, referindo que a representação dos círculos daTerra através de linhas rectas quase não faz diferença poisque “a nossa imaginação pode facilmente transferir para asuperfície globular e esférica a imagem vista pelo olhohumano numa superfície plana”.

Num dos capítulos da “Geographia”, Estrabão tenta analisara navegação através dos tempos. Refere aí o autor que “nãoé razoável supor que o Atlântico é constituído por doismares, confinados por istmos estreitos, de tal forma queestes impedem a circum-navegação; pelo contrário, devemser confluentes e contínuos”.

É de referir, ainda, que Estrabão, na sequência deobservações da actividade vulcânica na península itálica,concluiu que existem movimentos de emergência esubsidência devidos a esta actividade. Aliás, foi estefilósofo talvez o primeiro a reconhecer a importância daescorrência superficial e, mais especificamente, dos rios, namodelação e erosão dos continentes, e no transporte desedimentos para o meio marinho, onde estes se depositam,assoreando por vezes vastas regiões.

As modificações geomorfológicas parecem ter interessadobastante Estrabão. Outro exemplo deste interesse estáexpresso na Geographia (I.3.16), quando é referido que “ameio caminho entre Tera e Terasia fogos saíram do mar econtinuaram durante quatro dias, de tal modo que todo omar fervia e ardia, e os fogos provocaram uma ilha que sefoi gradualmente elevando (…) formada por massasincandescentes…”. Citando Demócles, refere ainda (I.3.17),“alguns grandes tremores de terra que aconteceram hámuito tempo na Lydia e na Ionia (…) por acção dos quaisnão só aldeias foram engolidas, mas o Monte Sipylus foidestruído (…). E lagos ergueram-se dos leitos e uma ondasubmergiu …”. O autor continua falando de muitas outrasmodificações que ocorreram na região mediterrânica, entreas quais a abertura das “Colunas de Hércules” (Gibraltar).

4.9. O Orbis Terrarum de Agripa (circa 27 A.C.)

Os romanos eram bastante indiferentes a muitas daspreocupações da cultura helenística, nomeadamente no quese refere à geografia matemática, com os seus sistemas delatitudes e longitudes, as observações astronómicas e osproblemas de projecções. Estavam muito mais preocupadoscom a parte de aplicação e, no que se refere á cartografia,com a produção de mapas práticos que pudessem serutilizados com fins militares, administrativos e/oupropagandísticos. Assim, preterindo as elaboradasprojecções concebidas pela civilização helénica,consideraram que as formas discoidais utilizadas pelogeógrafos iónicos eram mais adaptadas aos seus objectivos.Consequentemente, foi com esta forma circular que os

cartógrafos romanos desenharam os mapas do mundohabitado, designados como Orbis Terrarum.

Poucos destes mapas sobreviveram até aos nossos dias. Omais antigo parece ter sido produzido entre 167 A.C. e 164A.C. Frequentemente, estes mapas eram gravados oupintados nas paredes de templos ou em locais públicos.

Um dos mais conhecidos (embora apenas dele se conheçamreconstruções) é o Orbis Terrarum de Agripa, produzidopor ordem do Imperador Octaviano Augustus (27 A.C. -14A.D.), e completado apenas no ano 20 A.D. É possível que,originalmente, o mapa tivesse formato circular.Representava os três continentes de modo mais ou menossimétrico, com a Ásia localizada a Este, no topo do mapa. APenínsula Itália situa-se próximo da parte central do mapa e,neste tipo de representação, as províncias romanas têmtendência para aparecerem ampliadas. Na realidade, oImpério Romano ocupa cerca de quatro quintos da área dasterras emersas, aparecendo, por exemplo, Seres (China),Scytia e Sarmatia (Rússia) na periferia, com reduzidadimensão. É provável que tal representação tivesse comoobjectivo o enaltecimento do Império Romano.

Fig. 41 - Reconstrução do Orbis Terrarum de Agripa,completado em 20 A.D.

Com efeito, Augustus tinha interesses práticos directos aoencomendar este mapa: por um lado, ajudava a viabilizar oestabelecimento de novas colónias em que os veteranos deguerra se fixassem, através da doação de terras; por outro,construía uma nova imagem de Roma como o centro de umimpério vastíssimo. Por outras palavras, o mapa foiconcebido para ser utilizado como um instrumento eficaz dapropaganda de Roma, antecedendo assim, em váriosséculos, objectivos e técnicas por vezes utilizadosintensivamente por estados modernos e contemporâneos.

O mapa foi compilado por Marcus Vipsanius Agripa (64A.C. -12 A.C.), cônsul do império e comandante emarinheiro experimentado que, entre outros feitos, foigovernador da Gália, esmagou uma rebelião na Aquitânia, epacificou algumas regiões da Germânia. Construiu para

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Octaviano uma poderosa armada com a qual, em 31 A.C.,derrotou as de Marco António e Cleópatra, na batalha deActium, na Grécia ocidental. Devido ao facto de ser umhomem muito ligado ao mar, de ter viajado intensivamente,de dominar os aspectos técnicos (nomeadamente dacartografia), e de ser amigo pessoal de Octaviano Augustus(tendo-se tornado seu genro ao casar com Júlia, filha doImperador), a sua escolha para executar o mapa referido foióbvia. No entanto, Agripa morreu antes do mapa estarcompleto, tendo sido finalizado pelo próprio Augustus.Ficou exposto, não se sabe se gravado ou pintado, numaparede de um pórtico chamado Pórtico de Agripa, ondepodia ser visualizado pelos romanos e pela multidão devisitantes.

4.10. A “Chorographia” de Pomponius Mela (c. 40AD)

Uma outra visão do mundo é apresentada, cerca do ano40AD, por Pompónio Mela. Este geógrafo, que nasceu emTimgentera (cuja exacta localização se desconhece, massituada no sul da actual Espanha, próximo de Gibraltar, naaltura habitada por púnicos), expressou nos seus escritos asua concordância geral com os grandes escritores helénicos,de Eratóstenes a Estrabão. Porém, as suas descrições daparte ocidental do Império, designadamente da parteatlântica, e especificamente das Ilhas Britânicas, sãobastante mais pormenorizadas do que as daqueles autores.

E interessante verificar que foi um dos primeirosinvestigadores a discordar dos conceitos dominantes, aodefender que as zonas temperadas do hemisfério sul eramhabitadas, explicando, todavia, que essas regiões eraminacessíveis devido a, entre a Europa e essas terras, existir azona tórrida, inultrapassável.

Fig. 42 - O mapa do mundo segundo Pompónio Mela, numareconstrução de 1628, de Petrus Bertius.

A sua obra mais conhecida, composta por três livros,intitula-se “Chorographia” (geografia regional), e nela sedescreve, região por região, todo o mundo habitadoconhecido dos romanos. O formato é quase o de um relatode viagem através dos três continentes conhecidos: África,Ásia e Europa.

É interessante constatar que, para Pompónio, aEscandinávia é descrita não como parte do continente, massim como uma grande ilha. O Golfo de Codanus (isto é, oMar Báltico), é apresentado como enorme e polvilhado porpequenas e grandes ilhas. Diz o escritor que, neste golfo, “ailha mais importante é a de Codanovia, ainda habitada porteutónicos, que ultrapassa as outras não só eminfertilidade, mas também em tamanho”.

Pompónio expressa, também, ter algum conhecimento doschineses, bem como fornece informações de índolegeográfica e cultural designadamente do Sri Lanka e daÍndia.

Fig. 43 - Reconstrução do mapa do mundo segundoPompónio Mela, numa reconstrução de 1883, da autoria deJohn Murray.

Para aferir da importância que a sua obra teve durantevários séculos, basta referir que Pedro Álvares Cabral tinhauma cópia deste trabalho, profusamente anotada, e que nonavio que comandou durante a “descoberta” do Brasil iatambém Juan Faras, físico e astrónomo, que foi o primeiro atraduzir para castelhano, em 1490, a obra de PompónioMela.

4.11. A “Historia Naturalis” de Plínio (c.23-79AD)

Contribuição sem dúvida relevante foi, também, a de GaiusPlinius Secundus, conhecido por Plínio, o Velho (c.23-79AD), até porque, entre vários outros assuntos, estabeleceuas relações entre as fases da Lua e as marés, e estudou ascorrentes que fluem através do Estreito de Gibraltar.

Plínio nasceu em Como, no norte da actual Itália, ecompletou os seus estudos em Roma, após o que seguiu acarreira militar na Germânia (Alemanha). Em 69AD voltoupara Roma, tendo assumido o comando de uma das frotasromanas que tinha base em Nápoles. Na terminologiamoderna pode-se dizer que foi historiador e enciclopedista.Apesar de muitos dos seus trabalhos se terem perdido,deixou-nos, além da sua História Natural, 160 volumescom notas sobre os mais variados assuntos científicos e daantiguidade, designadamente sobre história, astronomia,meteorologia, geografia, mineralogia, zoologia e botânica.

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Evidentemente que, em vários destes textos, o mar estáfrequentemente presente. Para Plínio, o mundo eracomposto por quatro elementos: terra, ar, água e fogo. Assubstâncias mais leves eram impedidas de subir devido aopeso das mais pesadas e vice-versa. De certa forma pode-seinterpretar esta visão do mundo como uma precursora dateoria da gravidade…

Plínio tinha a paixão de observar directamente osfenómenos, tomando notas do que ia observando. Era ométodo “científico” mais preciso da antiguidade, muitodiferente do actual método científico em que a formulaçãode hipóteses, a concepção e realização da experimentaçãocontrolada, e o registo e interpretação dos resultados sãobasilares no processo do conhecimento. A ciência daAntiguidade não era interventiva, e Plínio foi um exímiopraticante deste tipo de ampliação do conhecimento.Observava cuidadosamente o que acontecia (o que, como severá, lhe foi fatal), não raro recorrendo a observaçõescomparativas, e tentava discorrer racionalmente por forma aencontrar explicação para o que observava.

Entre os variadíssimos assuntos abordados por Plínio estãoas marés. Na sua História Natural, o autor descreve como éque, diariamente, ocorrem dois ciclos de maré (marés semi-diurnas), que as amplitudes máximas se verificam poucoapós a Lua Cheia e a Lua Nova, e que essas amplitudes sãomáximas nos equinócios de Março e de Setembro emínimas nos solstícios de Junho e de Dezembro. Aindarelacionado com as marés, descreve uma das regiões donorte da Europa (História Natural, 16.2-3), aí referindocomo é que as marés inundam grandes áreas (ambiente demacro-marés), discorrendo sobre se essas áreas pertencem aterra ou ao mar.

Plínio escreve, ainda, sobre o estilo de vida dos povos quehabitam estas regiões, descrevendo, nomeadamente, as suashabitações (estilo palafita), construídas acima do nível damaré mais alta, o que faz com que os seus habitantes“pareçam marinheiros num barco” quando a maré estácheia, assemelhando-se a náufragos durante a maré vazia.Efectuando a comparação com as tribos que vivem em terrafirme, o autor refere a sua dieta alimentar, baseada empescado, e a forma como apanham o peixe.

Outro tema abordado por Plínio na História Natural (II.89),directamente relacionado com a geomorfologia, é aformação de algumas ilhas (devido à actividade vulcânica eà tectónica). Diz o autor: “A terra forma-se algumas vezes(…) emergindo subitamente do mar. Há registos de que asilhas de Delos e de Rodes, agora famosas há muito,emergiram desta forma. Mais recentemente, constituíram-sealgumas outras ilhas”, sendo aí referidas as de Anafa, Nea,Halone, Tera, Terasia, Hiera e Thia, a última formada notempo de Plínio. Sob o título de “ilhas que se ligaram aterra”, o autor menciona, a título exemplificativo, Antissaque se ligou a Lesbos, e Zephyrium que se conectou comHalicarnassus.

Ainda relacionado com a geomorfologia, sob a epígrafe de“Terras que foram totalmente convertidas em mar”, Plíniorefere que, a acreditar em Platão, a imensa área ocupadapelo Atlântico teria sido previamente terra emersa. NoMediterrâneo Oriental, o autor diz que Acarnania foi

inundada pelo Golfo de Ambracia, que Achaia foi tomadapelo Golfo de Coríntia, e que o mar separou Leucas,Antirrhium, Hellespont e os dois Bospori. No que se referea “Cidades que foram absorvidas pelo mar”, Plínio refere ascidades de Pirra e Antissa, Elice e Bura no Golfo deCoríntio, a ilha de Cea, onde “o mar subitamente avançou30000 passos vitimando muitas pessoas” (devido a umepisódio de submergência co-sísmica? devido a umtsunami?), e metade da cidade de Tyndaris, na Sicília.Refere ainda o autor o desaparecimento da montanha deCybotus com a cidade de Curites, bem como a de Sipylus,na Magnesia, onde, no mesmo lugar, teria anteriormentedesaparecido a célebre cidade de Tantalis.

Dos seus escritos, o mais importante é a sua “HistoriaNaturalis”, dividida em 37 livros e completada em 77AD.Segundo o próprio Plínio, o título da obra justifica-se poisque o que ele tenta realizar é o estudo “da natureza dascoisas, isto é, da vida”. De acordo com o escritor, abordou20 000 assuntos importantes, tendo-se baseado em 100autores seleccionados, a cujas observações adicionou assuas próprias. Escrita em latim, esta obra teve umainfluência notável na sociedade durante séculos. Bastareferir que, durante a Idade Média, na Europa, grande partedas maiores bibliotecas monásticas tinham cópias destetrabalho.

Como se referiu, Plínio era comandante da frota imperial,que tinha base em Misenum, na Baía de Nápoles. Na manhãde 24 de Agosto de 79 A.D., a sua mulher notou umanuvem estranha saindo do topo do Monte Vesúvio, do outrolado da Baía. Quando contou isso ao marido, este deimediato decidiu ir observar o que se estava a passar,mandando preparar um navio para atravessar a baía. Era oinício de uma grande erupção do Vesúvio, durante a qual ascidades de Pompeia e de Herculano viriam a ficarsoterradas. Plínio foi efectivamente até tão próximo quantopode da erupção, acabando por morrer asfixiado pelo gasestóxicos libertados pelo vulcão. Pode dizer-se que foi umadas primeiras vítimas da Ciência.

4.12. O “Orbis Terrae Descriptio” de Periegetes. (124AD)

No sentido de facilitar a memorização e popularizar oconhecimento e o significado das imagens cartográficas,existiam descrições em forma de poemas. É possível que osnovos conhecimentos que iam sendo obtidos pelos grandesautores passassem, em grande parte, desapercebidos damaioria das classes mais educadas. É isso que se podededuzir do facto dos poemas aludidos reflectiremessencialmente os conceitos geográficos helenísticos,traduzindo, por exemplo, os conhecimentos expressos nasobras de Eratóstenes e de Estrabão, mas não reflectindo asobras e conhecimentos mais recentes. Um desses poemas,que obteve grande divulgação, foi o de Dionísio Periegetes.

Dionísio foi um autor grego do tempo do ImperadorAdriano, que era vulgarmente conhecido por Periegetes (oguia), devido ao título do seu poema. Na realidade, a obraintitulava-se, em latim, Orbis terrae descriptio, sendotambém conhecido pelo nome de De situ habitabilis orbis(Narrativa Descritiva do Mundo Habitável).

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Fig. 44 - Reconstrução do mapa de oikumene (o mundohabitado) descrito por Dionísio Periegetes.

O sucesso que obteve na altura e, posteriormente, durantevários séculos, deve-se à forma fácil como sumariava etornava fácil a memorização do conhecimento geográficotradicional. Parece que, originalmente, o poema eraacompanhado por um mapa (ou mapas) desenhado deacordo com os de Eratóstenes e de Estrabão. Isso écomprovado pelas notas abundantes que existem nasmargens dos manuscritos que chegaram até aos nossos dias,e em que, inclusivamente, se anotam sítios não assinaladosno mapa, e se efectuam correcções à descrição efectuadapor Dionysius.

Embora o mapa se tenha perdido, pela descrição deduz-seque apresentava o oikumene (o mundo conhecido) comouma ilha fusiforme, localizada inteiramente a norte doequador, estendendo-se entre Thule (Islândia?), a norte, e aLíbia (África), a sul. Embora refira os Seres (chineses etibetanos), localizava-os bastante mais a ocidente do que os“investigadores” do seu tempo, isto é, a oriente do rioGanges, onde, pela ele, começaria o mundo habitado.

Embora o poema e o mapa de Dionysius estivessem jádesactualizados quando foram produzidos, foram traduzidospara latim, por Rufius Festus Avieno, no século quatrodepois de Cristo, tendo permanecido como texto de ensinodurante toda a Idade Média, obtendo grande popularizaçãodurante a Renascença.

4.13. A “Geographia” de Ptolomeu (138?-180 A.D.)

O período que, na bacia mediterrânica, tradicionalmente sedesigna por Antiguidade Clássica culmina com acontribuição de Claudius Ptolomaeus (138?-180 A.D.), queinfluenciou toda a sociedade ocidental pelo menos até aoRenascimento. Para muitos investigadores, a sua obraescrita teve maior influência na geografia e na cartografia,do que qualquer outro trabalho ao longo da História.

Pouco se conhece da sua vida, mas muitos dos seustrabalhos sobreviveram, felizmente, até aos nossos dias.Ptolomeu, geógrafo e astrónomo helénico, viveu pelomenos grande parte da sua vida em Alexandria. Esta cidadeera, nesse tempo, o centro cultural e científico maisimportante do mundo ocidental. Era aí, também, queafluíam, por mar e por terra, mercadores e viajantes de todasas partes do mundo então conhecido, o que propiciava aacumulação de informações sobre todas as terras e mares,

inclusivamente sobre as que se situavam em regiões maislongínquas. Nestas condições, Ptolomeu encontrava-senuma situação privilegiada que lhe permitia, por um lado,conhecer bem a documentação produzida pelos autores queo precederam e, por outro, aceder facilmente a informaçõessobre todo o mundo conhecido.

Como era vulgar nesses dias, Ptolomeu tinha interessesmuito diversificados, tendo deixado escritos sobre os maisvariados assuntos, nomeadamente astronomia, história,música e óptica. Todavia, os seus trabalhos mais marcantesincidiram na geografia e na cartografia. No seu trabalhoPlanisphaerium discorreu sobre sistemas de projecção,descrevendo como se pode projectar uma esfera no plano doequador, tendo como ponto de vista um dos pólos,projecção esta que, mais tarde, se viria a designar comoestereográfica.

Provavelmente o seu trabalho mais monumental é aMathematike Syntaxis, título convertido pelos árabes emA l m a g e s t , com 13 volumes, e em que Ptolomeudesenvolveu e demonstrou a teoria geocêntrica do Universo,discorreu sobre os eclipses, abordou a duração dos anos edos meses, evidenciou a precessão dos equinócios, eexplicou as utilizações do astrolábio.

No entanto, o seu tratado mais famoso intitula-seGeographike Syntaxis, título este que, nos séculossubsequentes foi encurtado para Geographia . Nem omanuscrito original, nem nenhuma das cópias coevas,chegaram até nós. Existem ainda, porém, várias cópiasmanuscritas durante o Império Bizantino (circa século XI -XII), constituídas por oito Livros.

Do que escreveu deduz-se que a sua abordagem à geografiaera estritamente científica e impessoal, revelando uminteresse na Terra global e não apenas na parte habitada.Aliás, o autor refere mesmo que, na cartografia, deve-secontemplar a forma e tamanho da Terra inteira.

Logo na parte introdutória da Geographia, Ptolomeu define“corografia” como sendo uma abordagem selectiva eregional, tratando até “da mais pequena localidadeconcebível, tal como os portos, quintas, aldeias, cursos derios…”. A “geografia” refere-se à “representação picturalda globalidade do mundo conhecido, juntamente com osfenómenos que aí se processam”.

O livro I da Geographia é dedicado aos princípios teóricos,incluindo designadamente a descrição de dois sistemas deprojecção. Segundo o autor, há duas formas de fazer um“retrato” da Terra: reproduzi-la numa esfera ou projectá-lanuma superfície plana. Segundo o autor, “quando a Terra édesenhada numa esfera, a forma é igual, não havendonecessidade de alterar absolutamente nada”. No entanto,não é fácil encontrar espaço suficiente na esfera pararepresentar todos os detalhes que aí deveriam estarincluídos, a não ser que se aumentem as dimensões dessaesfera, o que tem o inconveniente desta ficarexcessivamente grande para ser facilmente apreensível, notodo, pela vista. No entanto, Ptolomeu dá instruçõesespecíficas sobre a forma de construir essa representaçãoesférica.