A Construção Da Identidade de Sujeitos Deficientes No Grupo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

sujeitos

Citation preview

  • 189Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    Construo da identidade de sujeitos deficientes Relato de Pesquisa

    A CONSTRUO DA IDENTIDADE DE SUJEITOS DEFICIENTES NO GRUPOTERAPUTICO-FONOAUDIOLGICO1IDENTITY FORMATION OF DISABLED INDIVIDUALS WITHIN A SPEECH THERAPYGROUP

    Gabriela Almeida LEITE2Maria Ins Bacellar MONTEIRO3

    RESUMO: neste estudo, consideramos que o sujeito se constitui medida que suas aes vo sendo interpretadaspelo outro, atravs da internalizao de papis, definidos, inicialmente, pelas pessoas que so referncia maisconcreta da criana, como a famlia e, posteriormente, pelo grupo social maior do qual ela faz parte. Nossoobjetivo foi refletir sobre a formao/construo da identidade de jovens deficientes mentais que participavamde atendimento fonoaudiolgico, realizado em grupo, analisando o papel da linguagem no processo deconstruo da imagem que o sujeito faz de si mesmo. O estudo teve sua origem a partir dos resultados obtidosem pesquisas realizadas anteriormente, com grupos de irmos de sujeitos considerados deficientes mentais.Esses resultados revelaram a imagem negativa que os irmos tm em relao ao irmo deficiente. O materialanalisado faz parte de um banco de dados de dois anos de filmagens das interaes de jovens deficientes nogrupo teraputico-fonoaudiolgico de uma clnica-escola. Os dados foram transcritos e analisados segundodiretrizes da anlise microgentica considerando as mincias dos acontecimentos, os detalhes e o recorte deepisdios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos, as relaes intersubjetivase as condies sociais da situao. As anlises realizadas procuraram relacionar a imagem que esses sujeitostm de si com a imagem transmitida pelo grupo social do qual eles fazem parte. Os resultados mostraram aressonncia do discurso do grupo social nos dizeres dos sujeitos. Conclumos que para transformar a imagemque os sujeitos deficientes mentais tm de si mesmos, precisamos aes que incidam sobre aqueles que osrodeiam, ou seja, a famlia, os amigos, os colegas e o grupo social em geral.

    PALAVRAS-CHAVE: constituio da subjetividade; deficincia mental; grupo de jovens; educao especial.

    ABSTRACT: in this study, we consider the personality of our subjects as being shaped by means of theiractions being interpreted by others. This happens via the internalization of roles. These roles are defined, inthe first instance, by those persons who provide the most concrete reference points for the child, in particulartheir family, and beyond that by the wider social group to which they belong. Our objective was to reflectupon the formation of the personal identity of mentally disabled young people who were receiving speechtherapy, this therapy being conducted in a group context. Transcripts of the language used by the subjects inconstructing their self image were analyzed. This study was based upon the results obtained from previousresearch, conducted with groups of siblings of subjects classified as mentally disabled. These results revealeda negative image held by those siblings of their disabled brother or sister. The material analyzed is part of adata bank of videotapes, of disabled youngsters receiving group speech therapy in a school clinic setting,taken over a two year period. This data was transcribed and analyzed according to the guidelines of microgenetic analysis, taking into consideration minute details of interviews and in particular details and clips ofinteractive episodes. The examination of the data was directed towards the actions of the subjects of the study,their interpersonal relations and the social context in which these took place. The analysis conducted in thisstudy aims to establish a relationship between the images these subjects have of themselves and the image putacross by the social group to which they belong. The results demonstrated the resonance of the discourse of thesocial group in the verbalizations of the subjects. We conclude that to transform the image that the subjectswith intellectual disability have of themselves it is necessary to direct actions to those who are close to them,namely family, friends, colleagues and their social group in general.

    KEYWORDS: formation of subjectivity; mental disability; groups of young people; special education.

    1 Apoio Financeiro: CNPq (Programa PIBIC Iniciao Cientfica)2 Graduada em Fonoaudiologia, Universidade Metodista de Piracicaba, Curso de Fonoaudiologia [email protected] Doutora, Universidade Metodista de Piracicaba, Programa de Ps-Graduao em Educao [email protected]

  • 190

    LEITE, G. A.; MONTEIRO, M. I. B.

    Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    1 INTRODUO

    Neste estudo, partimos do pressuposto que o sujeito vai se constituir medida que suas aes vo sendo interpretadas pelo outro atravs da internalizaode papis, definidos, inicialmente, pelas pessoas que so referncia mais concretada criana, como a famlia e, posteriormente, pelo grupo social maior no qual estinserida.

    Assim, consideramos que o sujeito deficiente mental formar a imagemde si mesmo a partir de como os outros o significam.

    Alguns pesquisadores j apontaram para a importncia das interaessociais na formao dos sujeitos e destacaram as implicaes das interpretaes dogrupo social na constituio do sujeito deficiente mental. Encontramos nessestrabalhos apoio para realizar uma reflexo inicial a que nos propusemos nesteestudo, ou seja, conhecer de que maneira as interaes travadas no interior dogrupo fonoaudiolgico poderiam contribuir para a formao da identidade dosjovens participantes.

    Glat (1989), por exemplo, afirma que os sujeitos vo configurando assuas respectivas identidades a partir das percepes e representaes dos que estoa sua volta. Neste sentido, conclui-se que a imagem que a pessoa deficiente constride si mesma reflete a viso de seus parceiros sociais.

    Lima, Maia e Distler (1999) acrescentam a essa idia, o fato de que sendoa famlia o ncleo social bsico, as relaes a estabelecidas iro depender dasrelaes interpessoais de seus integrantes. Assim, as experincias da vida familiarpodem auxiliar ou dificultar o processo de desenvolvimento de seus membros.Em outras palavras, o que a pessoa depende de como so estabelecidas as relaesfamiliares (LIMA; MAIA; DISTLER, 1999, p. 37).

    Podemos afirmar, ainda, que na e com a famlia que a criana adquirea linguagem e com ela os valores socioculturais. Portanto, nesse grupo que elainiciar a construo das bases para o relacionamento social.

    Alm disso, necessrio considerar que os valores culturais,transmitidos pelo grupo familiar, refletem os valores do grupo social maior emque a famlia est inserida.

    Seguindo essa linha de raciocnio, devemos refletir sobre as influnciasda famlia e do grupo social na formao/constituio de pessoas que apresentamcaractersticas que fogem ao padro comum dos demais sujeitos que compemesse grupo.

    Partindo do pressuposto que a sociedade que estabelece as regras oupadres dos atributos fsicos e comportamentais considerados normais, podemosdeduzir que os indivduos que se desviam dessa norma sero rotulados deanormais e, conseqentemente, sero estigmatizados. O conceito de normalidade, portanto, determinado pelas exigncias de cada momento histrico; assim, os

  • 191Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    Construo da identidade de sujeitos deficientes Relato de Pesquisa

    critrios de desvio, excepcionalidade, ou deficincia, esto sempre relacionadosao contexto social. Considerando que o sujeito vai se constituir a partir dasinterpretaes de suas aes pelo grupo social no qual est inserido, podemosconcluir que a viso do sujeito a respeito de si mesmo depender dos valores e dapoca em que vive.

    O grupo social vai expressar suas crenas e valores atravs dalinguagem. Esta, por sua vez, um fator relevante para o desenvolvimento mentalda criana, tem um papel social importante e exerce uma funo organizadora eplanejadora de seu pensamento.

    Esta idia foi amplamente discutida por importantes pesquisadores,tais como Vygotsky e Bakhtin. Suas pesquisas revelam que atravs da linguagemque a criana entra em contato com o conhecimento humano e adquiri conceitossobre o mundo que a rodeia, apropriando-se da experincia acumulada pelo gnerohumano no decurso da histria social. Assim, a partir da interao social, da quala linguagem expresso fundamental, que a criana constri a prpriaindividualidade.

    A presena do grupo social ou do outro aparece, portanto, desdecedo, como uma realidade cujo objetivo ajustar ou normalizar o indivduo. Ossujeitos que apresentam padres diferentes daqueles comuns maioria do grupogeralmente no conseguem encontrar identificao com os demais sujeitos dogrupo.

    Pessoas rotuladas como deficientes mentais podem se apresentar maisdependentes e incapacitadas, do que seria resultante de sua condio orgnica,por terem aprendido a desempenhar o papel de deficientes. Como esses indivduosso geralmente assim rotulados, logo aps seu nascimento ou nos primeiros anosde vida, acabam socializados em uma situao de desvantagem enquanto pessoasestigmatizadas. Isso afeta sua identidade pessoal, aumentando a probabilidade deassumirem o papel que lhes atribudo.

    Diversos autores, embora no neguem a existncia de fatores orgnicospredeterminantes, postulam que a deficincia antes de mais nada um fenmenosocial.

    Nessa perspectiva, a deficincia no deve ser vista somente como umacaracterstica intrnseca do indivduo, pois, afinal, uma pessoa s deficiente seassim for considerada pelos demais. Torna-se importante, portanto, analisar comose d a relao entre pessoas deficientes e as normais.

    Segundo Lopes (2002), durante sculos, a noo de pessoa permaneceuestruturalmente a mesma: uma pessoa integrada em sua dualidade de corpo ealma, conscincia e ao.

    Esse autor destaca que a concepo de sujeito vai se diferenciando dasconcepes de indivduo passando a englobar a realidade histrica.

  • 192

    LEITE, G. A.; MONTEIRO, M. I. B.

    Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    Segundo Fromm (1977), apesar da personalidade tender a se conformars definies culturais e regras sociais, sua diversidade se d em funo dacomplexidade dessas definies e regras. Para ele, medida que as sociedadestornam-se mais complexas, os indivduos, embora semelhantes, so cada vez maisoriginais na maneira especfica por que solucionam seu problema humano.

    As mudanas, ao longo da histria, na concepo de sujeito, tmimplicaes importantes quando consideramos que a maneira como um indivduov a si mesmo e se situa no mundo depende, fundamentalmente, da mensagemque ele recebe das pessoas com as quais convive. Ou, segundo Goffman (1982), aidentidade pessoal e social uma funo dos interesses e definies que os outrostm em relao a ele. A identidade pessoal determinada essencialmente pelopapel que ocupamos no mundo e pelo modo como somos percebidos e tratadospelos demais.

    Como esse lugar que ocupamos muda, dependendo do momento e doperodo de desenvolvimento pelo qual o sujeito est passando, a construo daidentidade tem um carter dinmico de constante transformao. Segundo Silvares(2003), a construo da identidade pessoal considerada a tarefa mais importanteda adolescncia, o passo crucial da transformao do adolescente em adultoprodutivo e maduro.

    Para Erikson (1972), construir uma identidade implica em definir quema pessoa , quais so seus valores e quais as direes que deseja seguir pela vida.Para ele, o termo identidade pode ser entendido como a concepo de si mesmo,composta de valores, crenas e metas com as quais o indivduo est solidamentecomprometido. O autor afirma que obrigao das geraes mais velhastransmitirem valores slidos, sobre os quais os mais novos iro construir suaidentidade.

    Kimmel e Weiner (1998) afirmam que quanto mais desenvolvido for osentimento de identidade, mais o indivduo valoriza o modo como parecido oudiferente dos demais, e mais claramente reconhece suas limitaes e habilidades.Quanto menos desenvolvida est a identidade, mais o indivduo necessita do apoiode opinies externas para se avaliar, e compreende menos as pessoas como distintas.

    Como vimos em todos os estudos citados, a interpretao que o grupofaz do sujeito muito importante para a leitura que este far de si mesmo e parasua constituio. Se a sociedade tiver concepes negativas dos deficientes, ou noconseguir interpretar suas aes como significativas, esses sujeitos vo se constituira partir dessa imagem, e suas aes retrataro essa viso.

    Na clnica fonoaudiolgica, temos a linguagem como meta central eprecisamos considerar como esta est colaborando para a constituio de sujeitosmais felizes, mais integrados no seu grupo social e mais maduros. Neste sentido, necessrio conhecermos como o grupo, constitudo pelos sujeitos deficientes eterapeutas/estagirios, est colaborando nessa direo.

  • 193Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    Construo da identidade de sujeitos deficientes Relato de Pesquisa

    Considerando-se a linguagem como uma atividade constitutiva dosujeito, procurou-se, aqui, avaliar o seu papel na construo da identidade dossujeitos, relacionando as marcas do grupo social e a formao da significao de simesmo.

    2 MTODO

    O estudo foi realizado numa perspectiva terico-metodolgicahistrico-cultural, uma vez que esta permite a compreenso do processo social deconstituio do sujeito possibilitado pela linguagem. Trata-se, portanto, conformedenominado por Freitas (2003), de uma pesquisa qualitativa de orientao scio-histrica.

    A situao de estudo, grupo de adolescentes deficientes ematendimento fonoaudiolgico, no foi criada especificamente para fins de realizaoda pesquisa, pois faz parte de uma prtica comum da clnica-escola defonoaudiologia na qual foi desenvolvido o estudo. Esta atende a populao deuma cidade do interior do Estado de So Paulo e est dividida em setores, incluindoas reas de linguagem, voz, surdez e neurologia. Alm disso, a clnica ofereceservios de otorrinolaringologia, neurologia e audiologia.

    Nos estudos desenvolvidos na perspectiva scio-histrica, conformeapontado por Freitas (2003), procura-se, no processo de pesquisa, a oportunidadede reflexo e ressignificao do pesquisador e do pesquisado, uma vez que opesquisador considerado parte integrante da pesquisa, pois a sua compreensodos fenmenos se constri a partir do lugar que ocupa e das relaes que estabelececom os sujeitos os quais pesquisa. Assim, os dados obtidos durante a situao deinterao entre os sujeitos permitiro tambm a compreenso do contexto socialno qual eles emergem, permitindo que se estabeleam relaes entre eventosinvestigados, numa integrao do individual com o social.

    Segundo Wertsch (1998), possvel entender a relao entre ofuncionamento mental humano e o contexto cultural, histrico e institucional,atravs da pesquisa desenvolvida sob o enfoque histrico-cultural.

    Neste estudo, os sujeitos que compuseram o grupo de jovens comdeficincia mental foram: Edson, Gilmar, Lcia, Fernanda, Lucas, Daniel e Alex.4Os jovens tinham entre 16 e 27 anos quando as reunies foram realizadas e4 Vale ressaltar que os nomes verdadeiros dos sujeitos foram substitudos por fictcios, a fim de que fossemantida a privacidade dos mesmos: Edson, 26 anos, deficincia mental leve, pertencente famlia extrema-mente religiosa, h pouco tempo passou a assistir televiso e ouvir rdio, reside apenas com sua me, quepossui perda auditiva moderadamente severa; Gilmar, 24 anos, Sndrome de Down, comunica-se basicamen-te por gestos, reside em um stio com uma famlia adotiva; Lucia, 25 anos, deficincia mental moderada,nica filha que reside com os pais, pertencente famlia bastante religiosa; Fernanda, 16 anos, Sndrome deDown, mora com os pais e um dos irmos, estuda em escola regular classe especial; Lucas, 19 anos, Dficitde Ateno-Hipoatividade, reside com sua me e um irmo mais novo, embora tenha condies, no traba-lha, nem estuda, a famlia demonstra uma baixa expectativa em relao a ele; Daniel, 25 anos, Sndrome doX-frgil, mora com me, padrasto e uma irm mais nova; Alex, 16 anos, Sndrome de Down, reside com suame e seu irmo mais novo, freqenta uma instituio de reabilitao.

  • 194

    LEITE, G. A.; MONTEIRO, M. I. B.

    Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    participavam semanalmente de atendimento fonoaudiolgico, em grupo, com duasestagirias do curso de fonoaudiologia.

    O grupo de jovens foi filmado em vdeo durante os encontros semanais,realizados sem a criao de nenhuma situao especial. As reunies, com este grupo,j aconteciam a cerca de um ano quando iniciamos este estudo e, tinham comoobjetivo propiciar atividades interativas em diferentes situaes discursivas.Levavam em conta a diversidade das configuraes textuais (relatos, dilogos,comentrios, recontagem, instrues etc.), ou seja, a tarefas de reformulao,modalizao e fortalecimento de quadros interativos e esquemas de trocas verbais,favorecendo a diminuio de tenses emocionais e a partilha de experincias,evocando experincias sociais positivas, valorizando o interesse de um pelo outroe impedindo o isolamento social, alm de encorajar a necessidade de outras formasde comunicao ou possibilidades de significao que no apenas a lingstica.

    Posteriormente, as fitas gravadas foram literalmente transcritas, o quepermitiu a reconstruo dos dilogos, a descrio dos sujeitos e dos eventosocorridos. Os dados analisados, neste estudo, referem-se s filmagens realizadasno perodo de dois anos.

    Os dados foram analisados segundo diretrizes da anlise microgentica,conforme postulados da linha histrico-cultural, atravs do exame pormenorizadoda fala de cada participante, turno a turno, com o intuito de identificar os episdiosnos quais os componentes do grupo manifestavam seus sentimentos a respeito daprpria imagem e de suas histrias. Em seguida, esses episdios foram novamenteanalisados, com o propsito de identificar aspectos relevantes para o atendimentofonoaudiolgico do deficiente, buscando transformaes na auto-imagem,decorrentes da construo da linguagem no grupo teraputico-fonoaudiolgico.

    Pautando-nos em Bakhtin (1988), procuramos examinar como sedesenvolveram as argumentaes de cada participante ao longo das interlocuesocorridas nos encontros. Procurou-se determinar de que modo os vrios discursosdos diferentes membros da reunio refletiram suas posies (lugares) sociais, e emque medida esta diferena influenciou os sentidos construdos.

    3 RESULTADOS

    Conforme descrito anteriormente, o presente estudo buscou refletirsobre a formao da identidade de jovens deficientes mentais que participam deatendimento fonoaudiolgico, realizado em grupo, analisando o papel dalinguagem nesse processo de construo da imagem que o sujeito faz de si mesmo.

    Aps a leitura e re-leitura dos dados transcritos, foram levantadosalguns temas, resultantes dos momentos da reunio nos quais ficaram maisexplcitos os sentimentos relacionados imagem que os sujeitos fazem de simesmos. Vale ressaltar, que nem sempre o discurso dos jovens permitia uma

  • 195Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    Construo da identidade de sujeitos deficientes Relato de Pesquisa

    identificao explcita da imagem que ele estava fazendo de si, naquele momento.Mas o contexto no qual o discurso emergia e o olhar atento para os detalhes dainterao que acontecia no grupo possibilitaram que se compreendesse e serelacionasse eventos singulares com o discurso circulante em nossa cultura,permitindo, dessa forma, direcionarmos nossa reflexo para o foco proposto nesteestudo.

    A seguir, apresentamos dois episdios que ocorreram em momentosdistintos de atendimento no grupo teraputico-fonoaudiolgico, os quais permitemrefletir sobre a imagem que esses sujeitos fazem de si.

    EPISDIO 1:

    Os sujeitos discutiam sobre a preferncia musical de cada um. Adiscusso teve incio aps a terapeuta, G, questionar o gosto musical de Lucas.Participavam da reunio, G e C (fonoaudilogas/terapeutas) e os jovens: Lucas(18 anos), Fernanda (16 anos), Lcia (25 anos), Alex (16 anos), Gilson (24 anos) eEdson (26 anos).

    1. Lucas - Gosto de Rap.2. G - Voc gosta de Rap? Verdade?3. Lucas - (faz sinal positivo com a cabea).4. Fernanda - Eu tambm gosto de Rap.5. G - Que grupo voc gosta? (referindo-se, ainda, Lucas).6. Lucas - Um monte.7. G - Um Monte. Meu irmo tambm gosta de rap, sabia?8. Lcia - Eu gosto s hino.9. G - Voc gosta de hino?10. Lcia - Gosto, voc no gosta?11. G - Eu gosto, eu acho bonito. Voc no acha bonito o que eles falam nohino? (referindo-se Lcia).12. Fernanda - Eu gosto. A Damara, a minha colega, gosta do hino.13. G - Verdade!? Como que o hino?14. Fernanda - (levanta os ombros, referindo no saber).15. G - No lembra? Que hino voc gosta, Lcia?16. Fernanda - (fala ininteligvel, ao mesmo tempo em que a terapeuta faz apergunta para Lcia).17. Lcia - Cassiane.18. G - Qu?19. Lcia - Cassiane.20. G - Cassiane? uma cantora?21. Lcia - Ela .22. C - Como que chama, Lu?23. Lcia - Cassiane.24. C - Cassiane?25. Lcia - (faz gesto afirmativo com a cabea).26. G - E voc, Alex? Voc gosta de algum cantor, alguma msica?

  • 196

    LEITE, G. A.; MONTEIRO, M. I. B.

    Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    27. Alex - (faz gesto afirmativo com a cabea).28. G - De quem voc gosta?29. Alex - Da Xuxa.30. G -De qu?31. Alex - Da Xuxa.32. G - Da Xuxa? Ah, que legal, quem mais?33. Alex - (No responde).34. C - E voc, Edson, voc ouve msica?35. Edson - No.

    EPISDIO 2:

    Num outro encontro, participavam da reunio, G e C (fonoaudilogas/terapeutas) e os jovens: Lucas (18 anos), Fernanda (16 anos), Lcia (25 anos), Alex(16 anos), Daniel (23 anos) Gilson (24 anos) e Edson (26 anos). As terapeutasretomam o assunto sobre a preferncia musical dos sujeitos.

    1. C - Que tipo de msica voc gosta?2. Edson - Da Xuxa (sorrindo).3. C - Da Xuxa, ele gosta da msica da Xuxa (falando com Daniel).4. G - E voc, Lcia?5. Lcia - Eu gosto... (inaudvel).6. G - Rock? E voc, Alex?7. Alex - Daniel.8. G - Daniel! Daniel bom!9. Edson - (d risada e bate na mesa).10. C - E voc, Gilson? Que msica voc gosta?11. Gilson - (estica uma das mos, e com o dedo indicador da outra mo fazum crculo em sua mo esticada).12. Fernanda - Ele que rock.13. C - O que isso?14. Gilson - (continua fazendo o movimento com as mos).15. G - o disco?16. Gilson - (com uma mo faz como se estivesse pegando algo, como umapina).17. C - Voc comprou tambm?18. (Fernanda) (faz gesto afirmativo com a cabea).19. G - Eu vi o seu CD. Como que chamava mesmo? Voc mostrou o CD quevoc comprou, de uma dupla sertaneja!20. Gilson - (verbaliza e aponta para cima)21. G - de uma dupla sertaneja, n!22. C - E voc Fernanda, que msica voc gosta?23. Fernanda - Zez di Camargo e Luciano (dando risada e deitando a cabeasobre a mesa)24. Daniel - comea a msica e Fernanda, logo em seguida, acompanha-o)Minhoca, minhoca, me d uma beijoca, no d...25. C - Mas essa msica de criana, canta outra que voc gosta.26. Fernanda - Eu gosto di...(fala inaudvel).

  • 197Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    Construo da identidade de sujeitos deficientes Relato de Pesquisa

    27. C - Ah? Voc gosta de qual?28. Fernanda - Esse a.29. C - Essa que a gente tava cantando?30. Fernanda - No.31. C - Ento canta!32. Daniel - Minhoca, minhoca...

    Nestes dois episdios, podemos observar a postura infantil que algunssujeitos assumem ao revelarem as suas preferncias musicais. Alex, no primeiroepisdio, diz que gosta da Xuxa. Edson, ento com 26 anos de idade, tambmafirma, no segundo episdio, gostar da Xuxa. Fernanda e Daniel, ao seremquestionados sobre as suas preferncias musicais, comeam a cantar uma msicatpica de criana: Minhoca, minhoca.... Os sujeitos revelam ora ocupar o lugarde jovens, quando alguns manifestam gostar de msicas ouvidas e apreciadas porjovens de seus grupos sociais (Rap e Hinos religiosos), ora assumem a posio decrianas, quando outros indicam preferncia por um estilo de msica bastanteinfantil, que, provavelmente, no seria um estilo apreciado pelos outros jovens demesma idade. Fica explcita, assim, a imagem no clara que os jovens fazem de si.Entretanto, esta imagem no formada independentemente do grupo social, masconstruda socialmente por este grupo.

    Conforme apontado por Ges (2004), aquilo que os sujeitos revelamem seus discursos o resultado do modo como eles assimilam em suas prpriasfalas os dizeres das diferentes vozes do grupo social. Os enunciados produzidospelo grupo so incorporados e vo compor a imagem que fazem de si. Isto significadizer que a constituio do sujeito se d pela linguagem, atravs de um processoessencialmente dialgico, que procede das e ocorre nas interaes sociais. Naspalavras de Bakhtin:

    O sujeito constitudo por diversas vozes polifonia. Quando seexpressa, usa uma linguagem que no s dele, tambm de outros. O fato de serconstitudo por muitas vozes concorre para a heterogeneidade do sujeito. Essaheterogeneidade provm da constituio do eu e do outro, o outro que constitudo, tambm, por muitas vozes, numa cadeia infinita de outros.(BAKHTIN, 1997, p. 314).

    Um terceiro episdio torna mais clara a relao entre as vozes do grupoe os dizeres do sujeito deficiente. Nele vemos as duas terapeutas, que alirepresentam o grupo social, revelando uma expectativa bastante infantil em relaoao sujeito deficiente.

    EPISDIO 3:

    Neste episdio, participavam da reunio, G e C (fonoaudilogas/terapeutas) e os jovens: Lucas (18 anos), Fernanda (16 anos), Lcia (25 anos), Alex

  • 198

    LEITE, G. A.; MONTEIRO, M. I. B.

    Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    (16 anos), Gilson (24 anos) e Edson (26 anos). O grupo est conversando sobre suaspreferncias. A discusso tem incio aps uma das terapeutas perguntar a um dossujeitos sobre a sua preferncia.

    1. G - O que voc mais gosta de fazer, Fernanda?2. Fernanda - Tudo!3. G - Tudo. Mas o que voc mais gosta de brincar, de fazer?4. Fernanda - Brincar, de assistir televiso e vrias coisas!5. G - Ah, e voc, Lucas?6. Lucas - Fala ininteligvel.7. G - Nossa, legal, mas eu no sei jogar muito bem e o que mais?8. Lucas - S.9. G - E voc, Edson, o que mais gosta de fazer?10. Edson - (est concentrado, folheando uma revista, por isso nada responde).11. G - Oh, agora a gente t conversando.12. Edson - (permanece olhando para a revista).13. G - Voc gosta de recortar?14. Edson - (faz gesto afirmativo com a cabea).15. G - Que mais?16. Edson - (faz gesto negativo com a cabea).17. G - S? E voc, Gilson?18. Gilson (no responde)19. G - Voc gosta de andar a cavalo, n?20. Gilson - (faz gesto afirmativo com a cabea).21. G - Que mais?22. Fernanda - Eu tambm gosto de andar de cavalo.23. G - Oi?24. Fernanda - Eu tambm gosto de andar de cavalo.25. G - Voc tambm gosta? E vocs tambm gostam? (referindo-se a Lucas eEdson).26. Fernanda - Ele faz assim: Segura peo!27. G - assim que faz, Gilson?28. Gilson - (faz gesto afirmativo com a cabea).

    Na tentativa de obter uma resposta mais especfica, a terapeuta tentaexplicar melhor a sua pergunta (turno 187) e acaba revelando uma expectativainfantil em relao ao sujeito deficiente. Vemos a prpria terapeuta perguntando auma jovem de 20 anos: Mas o que voc mais gosta de brincar, de fazer? Este pequenodetalhe no s revela a imagem que o terapeuta tem do sujeito, mas colabora paraincentivar a conversa nessa direo.

    Segundo Kassar (2000), a constituio da subjetividade do indivduo marcada pelas condies materiais e ideolgicas nas quais o indivduo se insere. Acapacidade de significar (dar sentido a, interpretar e fazer-se entender) de cadaindivduo passa a existir pelos significados atribudos pelos outros s suas aes.O significar do outro est na gnese do comportamento significativo do eu,na gnese do pensamento de cada indivduo, que vai constituindo-se inserido em

  • 199Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    Construo da identidade de sujeitos deficientes Relato de Pesquisa

    um mundo simblico/lingstico, onde a linguagem possibilita a constituio/organizao do pensamento.

    4 DISCUSSES E CONCLUSES

    Kassar (2000) afirma que, assim como os demais conceitos e valores, omodo como as pessoas significam sua existncia tambm acontece socialmente, natenso entre diferentes vozes, que aos poucos vo encontrando ou no ressonnciano indivduo.

    No discurso dos jovens que participaram deste estudo, pudemosobservar uma imagem de si mesmo reveladora dos valores e imagens atribudospela sociedade a sujeitos deficientes mentais. A imagem infantil que os jovens tmde si mesmos reflete o discurso do grupo social que est a sua volta. A prpriaterapeuta, quando pergunta ao jovem do que ele gosta de brincar, deixa escaparem seu discurso a viso infantil que tem do mesmo.

    A transformao ou no da imagem que os sujeitos deficientes mentaisfazem de si mesmos permite-nos avaliar o quanto a clnica pode colaborar ou nopara o desenvolvimento da linguagem e para a constituio de cidados.

    Concordamos com Manfezolli (2004) quanto constituio restritapossibilitada pelo grupo social aos sujeitos deficientes mentais e quanto

    [...] necessidade de uma efetiva mudana na maneira de olhar para essesjovens e adultos, a necessidade da promoo de prticas realmentesignificativas para que eles possam identificar-se como tais, com direitos edeveres de cidados numa sociedade democrtica, que diz ofereceroportunidades de desenvolvimento e autonomia para todos. (MANFEZOLLI,2004, p. 95)

    Para conseguirmos obter as mudanas necessrias e transformar aimagem que os sujeitos deficientes mentais tm de si mesmos, precisamos aesque incidam sobre aqueles que os rodeiam, ou seja, a famlia, os amigos, os colegase o grupo social em geral. urgente que tais aes sejam iniciadas e que considerema natureza do processo, muitas vezes lento e difcil, para conquistar mudanas nosvalores e prticas sociais.

    Precisamos levar tais reflexes para os cursos de formao dosprofissionais que atuaro junto a esses sujeitos e suas famlias. Atravs da mudananos olhares de educadores e clnicos podemos transformar, ainda que lentamente,a imagem que o grupo social tem dos deficientes mentais e, assim, garantir osdireitos destes em nossa sociedade.

  • 200

    LEITE, G. A.; MONTEIRO, M. I. B.

    Rev. Bras. Ed. Esp., Marlia, Mai.-Ago. 2008, v.14, n.2, p.189-200

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 4.ed. So Paulo: Hucitec, 1988.

    ______. Esttica da criao verbal. So Paulo: Martins Fontes, 1997.

    ERIKSON, E. H. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

    FREITAS, M. T. de A. A perspectiva scio-histrica: uma viso humana da construo doconhecimento. In: FREITAS, M. T. A. et al. Cincias Humanas e Pesquisa: leituras de MikhailBakhtin. So Paulo: Cortez, 2003. p. 26-38.

    FROMM, E. Conscincia e sociedade industrial. In: MARTINS, J. S. et al. Sociologia e sociedade.So Paulo: 1977.

    GLAT, R. Somos iguais a vocs: depoimentos de mulheres com deficincia mental. Rio dejaneiro: Editora AGIR, 1989.

    GOES, M. C. R. de. Desafios da incluso de alunos especiais: a escolarizao do aprendiz esua constituio como pessoa. In: GES, M. C. R.; LAPLANE, A. L. F. (Org.). Polticas eprticas da educao inclusiva. Campinas: Autores Associados, 2004. p. 69-91.

    GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:Zahar Editores, 1982.

    KASSAR, M. C. M. Marcas da histria social no discurso de um sujeito: uma contribuiopara a discusso a respeito da constituio social da pessoa com deficincia. Cad. Cedes,v.20, n.50, p.41-54, 2000.

    KIMMEL, D.C.; WEINER, I. La adolescencia: una transicin del desarrollo. Barcelona: Ariel,1998.

    LIMA, R. P; MAIA, R.; DISTLER, S. D. Reflexo sobre um trabalho com famlias. Espao,v.11, p. 37-39, 1999.

    LOPES, J. R. Os caminhos da identidade nas cincias sociais e suas metamorfoses naPsicologia Social. Psicologia Social. v.14. n.1. p.7-27, 2002.

    MANFEZOLLI, R. R. Olha eu j cresci: a infantilizao de jovens e adultos com deficinciamental. 2004. Dissertao (Mestrado em Educao)-Universidade Metodista de Piracicaba,Programa de Ps-Graduao em Educao, Piracicaba, 2004.

    SILVARES, E. F. M.; SHOEN-FERREIRA, T. H; AZNAR-FARIAS, M. A construo daidentidade em adolescentes: um estudo exploratrio. Estudos em Psicologia, Natal, v.8, n.1,p. 107-115, 2003.

    WERTSCH, J. V. A necessidade da ao na pesquisa sociocultural. In: WERTSCH, J. V.;RIO, P.; ALVAREZ, A. Estudos Socioculturais da mente. Porto Alegre: Editora Artes MdicasSul Ltda, 1998. p.56-71.

    Recebido em 05/10/2007Reformulado em 25/03/2008Aprovado em 16/08/2008