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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 11 SETEMBRO/2014 Antônio Jackson de Souza Brandão & Elizabeth Ramos de Oliveira Takeda 6 A CONSTRUÇÃO E A REPRESENTAÇÃO IMAGÉTICA DA INFÂNCIA Prof. Dr. Antônio Jackson de Souza Brandão 1 http://lattes.cnpq.br/0770952659162153 Profª Elizabeth Ramos de Oliveira Takeda 2 http://lattes.cnpq.br/7451234190022248 RESUMO - O presente artigo procurará abordar, por meio de imagens, o desenvolvimento da infância e sua valorização ao longo da história, retratando não só seu percurso histórico-social, desde o seu anonimato e até o entendimento de suas capacidades e habilidades, como também as várias transformações pelas quais as crianças passaram em decorrência das mudanças socioculturais e econômicas, ocorridas ao longo dos séculos até chegar ao século XX. PALAVRAS-CHAVE – Representação, imagem, infância, teóricos da pedagogia, transformação sociocultural. ABSTRACT – This article will try to address, through images, childhood development and its recovery throughout history, portraying not only its historical and social path from their anonymity and to the understanding of their skills and abilities, as well as several transformations in which children spent as a result of socio-cultural and economic changes that occurred over the centuries to reach the 20th century. KEYWORDS – Representation, image, childhood, theorists of education, socio-cultural transformation Infância: da marginalização ao centro-motor da vida familiar Ao se falar em infância, deveria vir-nos à mente a imagem de crianças interagindo com o mundo que as cerca por meio de atividades lúdicas, ou seja, divertindo-se e tendo seu espaço garantido na sociedade, como um ser que necessita de cuidados específicos 1 Antônio Jackson de Souza Brandão, mestre e doutor em Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo (USP), é docente no Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP). 2 Elizabeth Ramos de Oliveira Takeda, especialista em Psicopedagogia e mestranda em Ciências Humanas na Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP), é professora na Universidade de Santo Amaro (UNISA) e no Centro Universitário SENAC/SP.

A Construção Representação Imagética Infância

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Ensaio acerca da construção imagética da infância da Grécia antiga até princípios do séc. XX.

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A CONSTRUÇÃO E A REPRESENTAÇÃO

IMAGÉTICA DA INFÂNCIA

Prof. Dr. Antônio Jackson de Souza Brandão1

http://lattes.cnpq.br/0770952659162153

Profª Elizabeth Ramos de Oliveira Takeda 2

http://lattes.cnpq.br/7451234190022248

RESUMO - O presente artigo procurará abordar, por meio de imagens, o

desenvolvimento da infância e sua valorização ao longo da história, retratando não só

seu percurso histórico-social, desde o seu anonimato e até o entendimento de suas

capacidades e habilidades, como também as várias transformações pelas quais as crianças

passaram em decorrência das mudanças socioculturais e econômicas, ocorridas ao longo

dos séculos até chegar ao século XX.

PALAVRAS-CHAVE – Representação, imagem, infância, teóricos da pedagogia,

transformação sociocultural.

ABSTRACT – This article will try to address, through images, childhood development

and its recovery throughout history, portraying not only its historical and social path

from their anonymity and to the understanding of their skills and abilities, as well as

several transformations in which children spent as a result of socio-cultural and

economic changes that occurred over the centuries to reach the 20th century.

KEYWORDS – Representation, image, childhood, theorists of education, socio-cultural

transformation

Infância: da marginalização ao centro-motor da vida familiar

Ao se falar em infância, deveria vir-nos à mente a imagem de crianças interagindo

com o mundo que as cerca por meio de atividades lúdicas, ou seja, divertindo-se e tendo

seu espaço garantido na sociedade, como um ser que necessita de cuidados específicos

1

Antônio Jackson de Souza Brandão, mestre e doutor em Literatura Alemã pela Universidade de São

Paulo (USP), é docente no Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo

Amaro (UNISA/SP).

2

Elizabeth Ramos de Oliveira Takeda, especialista em Psicopedagogia e mestranda em Ciências Humanas

na Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP), é professora na Universidade de Santo Amaro (UNISA) e

no Centro Universitário SENAC/SP.

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para desenvolver-se e ampliar sua visão de mundo; tendo, em meio a tudo isso, o

carinho, o afeto e a proteção dos pais, a alegria dos avós e dos familiares. Tal situação, no

entanto, nem sempre foi assim.

Na Grécia antiga, como em toda a cultura antiga, a infância era simplesmente

ignorada, posta à margem de toda vida e atividade social, como uma fase sem nenhuma

importância para o pleno desenvolvimento humano: mera “idade de passagem, ameaçada

por doenças, incerta nos seus sucessos; sobre ela [...] se faz um mínimo investimento

afetivo.” (CAMBI, 1999, p. 81-82) Seu destino é selado no momento do nascimento, já

que o pai pode, simplesmente, enjeitá-la; e, caso isso ocorra, é largada à própria sorte, ou

melhor, acudida por alguém que fará dela um objeto pecuniário ou sexual, pois em

breve poderá vendê-la ou explorá-la sexualmente, já que muitas crianças nessas condições

eram submetidas “a estupro, a trabalho, até a sacrifícios rituais. O menino [...] é um

‘marginal’ e como tal é violentado e explorado sob vários aspectos”. (ibidem, p. 82)

Figura 1

Banquete ou cerimônia familiar, antes de 79 A.D.

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Não muito diferente era a infância em Roma, já que as crianças eram tratadas nos

mesmos tom e termos e com que se lidava com os escravos e os seres inferiores

(VEYNE, 2009); além disso, o nascimento para o cidadão romano não era um mero

acontecimento biológico, já que havia muitas implicações (fig. 2):

Os recém-nascidos só vêm ao mundo, ou melhor, só são recebidos na

sociedade em virtude de uma decisão do chefe de família [...]. Em Roma um

cidadão não “tem” um filho: ele o “toma”, “levanta” (tollere); o pai exerce a

prerrogativa, tão logo nasce a criança, de levantá-la do chão, onde a parteira a

depositou, para tomá-la nos braços e assim manifestar que a reconhece e se

recusa a enjeitá-la. [...] A criança que o pai não levantar será exposta diante da

casa ou num monturo público, quem quiser que a recolha. (ibidem, p. 21)

Isso poderia ocorrer mesmo na ausência do pai, caso este já houvesse rejeitado a

criança ainda na gravidez da mulher. Tal fato se dava devido a vários fatores, como uma

suspeita de infidelidade da esposa, ou para que o nascimento não perturbasse “as

disposições testamentárias já estabelecidas” (ibidem, p. 21) anteriormente, pois a lei era

clara a esse respeito: “‘o nascimento de um filho (ou filha) rompe o testamento’ já

selado” (ibidem, p. 22).

É evidente que o instinto maternal impelia muitas mulheres aristocráticas, à

revelia dos maridos, a entregarem seus filhos enjeitados a pessoas próximas, inclusive a

escravos, a fim de que os criassem. Apesar de saber que nunca poderiam tê-los

novamente, afinal também se tornariam escravos, bastava-lhes a vaga esperança de que

também seriam, quem sabe um dia, libertados.

Convém ressaltar que, se crianças sadias – geradas dentro do casamento – eram

tratadas como objeto, as que nasciam com algum tipo de má formação eram, de pronto,

rejeitadas ou afogadas, já que “é preciso separar o que é bom do que não pode servir para

nada”, conforme disse Sêneca. (ibidem, p. 22)

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Figura 2

Cenas da vida de uma criança, sarcófago de Cornélio, Museu do Louvre, séc. II A.D.

Se, por um lado, mulheres aristocráticas entregavam suas crianças para que

escravos as adotassem, salvando-lhes da morte, mesmo que o preço fosse a escravidão;

por outro, também havia escravas que concebiam de seus senhores. Muitos destes

aproveitavam de seu senhorio para valer-se de suas servas (ancillarioulus) sexualmente, as

quais poderiam engravidar, gerando filhos ilegítimos também escravos. De um modo

diferente do que ocorre hoje, isso não representava alguma garantia, segurança ou

mesmo benefício para a serva. Isso porque a rígida legislação romana não permitia

regularizar tais concepções fora do casamento, sequer se poderia falar a esse respeito:

agia-se como se nada houvesse ocorrido, sendo o silêncio da serva tácito; bem como a

indiferença do senhor que via o número de seus servos aumentar.

Um costume romano, no entanto, poderia fazer com que tais crianças

permanecessem dentro da casa do senhor, salvando as aparências desses filhos ilegítimos

que eram, algumas vezes, reconhecidos e amados por seus pais; sem, contudo, chamar a

atenção da sociedade:

Os romanos gostavam de ter em casa um menino ou uma menina, jovem

escravo ou criança encontrada, que criavam (alumnus, threptus) porque o

"mimavam" (deliciae, delicatus) e o achavam engraçadinho; tinham-no consigo

durante os jantares, brincavam com ele, suportavam-lhe os caprichos; às vezes

davam-lhe uma educação "liberal", reservada, em princípio, aos homens livres.

A vantagem desse costume consistia em ser perfeitamente equívoco: o

queridinho pode servir como brinquedo, mais também como favorito; pode

ser uma espécie de filho adotivo sem que se deva pensar mal, e pode ser

igualmente um rebento que se favorece em segredo; sem esquecer o batalhão

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de aparato composto de adolescentes que se chamariam pajens, se fossem de

bom nascimento: mas também são escravos. (VEYNE, 2009, p. 80-81)

Muitas dessas crianças, contudo, não passavam de brinquedos com os quais os

amos e seus convidados se divertiam afetuosamente (fig. 1); para uns era um favorito

entre os outros serviçais; para outros, não passava de um animal de estimação, já que os

brinquedos mais apreciados naquele momento “eram vivos: pássaros, cães, coelhos.”

(ibidem, p. 82)

Figura 3

Crianças brincando com nozes. Dois fatos chamam a atenção da cena: meninos e meninas brincando

juntos (antes dos doze anos, provavelmente) e as roupas com que são representados. Sarcófago do séc. III

Interessante perceber que, não raro, os senhores demonstravam a essas crianças

atitudes afáveis que podemos hoje considerar dignas da paternidade; diferente, no

entanto, daquela que havia em relação a seus seus filhos legítimos:

o gosto da paternidade devia desabrochar mais pateticamente num menino

sem importância social que no filho legítimo que era preciso criar com

severidade, como continuador da família e inimigo secreto do atual detentor

de sua futura herança. [...] o queridinho ou queridinha indubitavelmente é o

rebento secreto do pai de família. Tanto que são tratados como homens livres:

vestidos como príncipes, cobertos de joias, não saem sem um cortejo; falta-

lhes apenas a veste dos adolescentes de nascimento livre. (ibidem, p. 82)

Além dos filhos legítimos e dos enjeitados, havia também os adotados. A adoção,

contudo, não se fazia por compaixão, mas por necessidade. Pretendia-se com ela ou a

manutenção do nome familiar, impedindo sua extinção; ou seguir uma imposição da lei

que exigia, de modo especial para aqueles que queriam participar das honras públicas ou

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do governo das províncias (ibidem, p. 28), uma família e um herdeiro. Não é de se

estranhar que muitos dos adotados fossem, inclusive, adultos, não crianças como hoje.

Quanto à educação, as crianças romanas frequentavam as escolas, que eram

mistas, dos sete aos doze anos. É possível ver isso nas representações escultóricas, nas

quais se veem meninos e meninas brincando juntos (fig. 3). Após essa fase, separam-se: os

meninos, se pertencerem a uma família abastada, continuam a estudar: mesmo que seja

sob o chicote de um gramático ou de um professor de literatura, quando conhecem os

autores clássicos e a mitologia” (ibidem, p. 30); as meninas, por sua vez, entram na idade

núbil, já que aos quatorze são consideradas adultas.

Figura 4

Escola monástica, iluminura do século XIII

Na Idade Média, uma das grandes lutas na infância era a sobrevivência, visto que a

mortalidade infantil era muito grande devido a fome, epidemias ou guerras. Nestas, por

exemplo, as meninas e os meninos com menos de três anos, juntamente com as

mulheres, faziam parte do butim, sendo levados como escravos; os garotos acima dessa

idade eram mortos. (ROUCHE, 2009, p. 450)

Muitos pais, de modo especial os mais pobres, diante de mais um nascimento,

viam naquela criança apenas mais uma boca para alimentar; além disso, ao terem

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consciência de que ela poderia morrer cedo nessas condições, procuravam não se apegar

as mesmas, deixando-as, muitas vezes, em mosteiros para que que ficassem aos cuidados

dos monges (fig. 4). Estes tendiam a ser, extremamente, complacentes com os enjeitados,

de modo especial com os menores tratados com extrema docilidade. Tal tratamento,

porém, mudava, de modo radical, quando chegavam à puberdade e os monges

retomavam “a boa e velha severidade” (ibidem, p. 451).

Figura 5

Santo Agostinho ressuscita criança que caiu do berço, Simone Martini, cerca de 1328.

Ao alcançar a maioridade, os jovens dos monastérios ou

tomavam ou recusavam os votos perpétuos. Entrementes, porém, haviam

recebido uma educação radicalmente contrária às práticas pedagógicas do

século. Em lugar de criar os meninos para a agressividade e as meninas para a

submissão, os pedagogos monásticos recusam a palmatória e procuram

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conservar as virtudes da infância vistas como fraquezas por seus

contemporâneos. (ibidem, p. 450)

É evidente que a infância sempre foi fato desde a Antiguidade, assim como no

medievo, porém faltava à criança um efetivo reconhecimento, não como um adulto em

miniatura, mas como um ser que requer cuidados específicos para seu desenvolvimento.

Assim, diante dessa sua adultização pela qual passou ainda durante seu processo de

formação, era simplesmente explorada em trabalhos excessivos que, muitas vezes,

resultavam em óbito precoce devido a sua fragilidade.

Nesse sentido, como ainda inexistia o cuidado e o sentimento de infância, à

medida que iam morrendo, eram simplesmente substituídas por outras, que davam

continuidade às atividades que precisavam ser terminadas.

Figura 6

“Madona di Crevole”, Duccio di Buonisegna, 1283-84

Partindo do contexto de exploração do trabalho infantil e da pouca importância,

que as crianças teriam naquela sociedade; Ariès (1981), ao analisar a arte medieval,

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constatou que quase não havia a presença de crianças em suas pinturas, apesar de aquela

sociedade possuir pintores habilidosos. A exceção se dava na figura do menino Jesus,

modelo de infância que existia, afinal se vivia em uma Weltanschauung cuja

representação principal era a de um mundo teocrático (fig. 6).

Mesmo assim, tal representação é sempre isolada num mundo adulto em que há a

centralização da figura de Maria, da presença de santos – como no afresco de Fra

Angelico no convento dos dominicanos em Florença, Maria com o Menino Jesus e

Santos, de 1437-1446 –, ou de anjos – como no tondo de Botticelli, Maria com o

Menino Jesus e cinco anjos, de 1483/85.

Figura 7

Madona del Sacco, Pietro Perugino, 1495-1500

Quando, porém, há a representação de uma outra criança, essa é, normalmente, a

figura de São João Batista menino, como na obra de Pietro Perugino, Madona del

Sacco, de 1495 (fig. 7); no tondo de Piero de Cosimo, Adoração da Criança, de 1500; ou

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em várias pinturas de Raffael, como a Maria com o Menino Jesus e João Batista, de

1507.

Não poderemos, portanto, caminhar na percepção da infância, sem considerar o

contexto sociocultural ao qual ela estava inserida, pois sabemos que sua realidade sempre

existiu em todos os períodos da humanidade, mas é a sociedade e sua cultura que

projetam esse conceito, o qual é recente e data, aproximadamente, do século XVII:

Com efeito, crianças existiram desde sempre, desde o primeiro ser humano, e

infância como construção social – a propósito da qual se construiu um

conjunto de representações sociais e de crenças e para a qual se estruturaram

dispositivos de socialização e controle que a instituíram como categoria social

própria – existe desde os séculos XVII e XVIII. (SARMENTO. PINTO, 1997,

p.13)

Na passagem da Idade Média para a Renacença, não há uma expressiva

transformação em relação ao mundo infantil, apesar das significativas mudanças sociais

proporcionadas pela ascendente burguesia, como a busca da privacidade, por exemplo.

Ao nascer, as crianças eram separadas da mãe e confiadas a amas-de-leite que, em raros

casos, conviviam na mesma casa dos patrões. Se sobrevivessem, retornariam à casa dos

pais meses depois (muitas chegavam a permanecer dezoito meses fora). Ao regressarem,

ficavam em berços próximo à cama da mãe ou suspensas no teto (DUBY, 2009),

conforme a figura 5.

Apesar de a ideia de infância ainda não estar totalmente constituída, pelo menos

já apareciam nas artes, mesmo que estejam inseridas nas atividades dos adultos: não se

dava importância para sua fragilidade, sequer havia ambientes apropriados para que

pudessem exercer atividades de acordo com a sua faixa etária. É possível ver esse

embaralhamento no quadro de Bruegel de 1560 (fig. 8), quando é possível ver que

crianças e adultos ocupavam os mesmos espaços sociais. Nota-se, porém, de acordo com

o pintor, que as crianças começam a ocupar o espaço público para suas próprias

brincadeiras.

No quadro, pode-se perceber que as vestimentas das meninas são semelhantes a de

suas mães: não havia diferença entre elas, afinal as crianças não passavam de pequenos

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adultos, envolvidos também em atividades que não deveriam ser suas. Há uma relação

entre trabalho e brincadeira, como se as crianças deixassem rapidamente as brincadeiras

para terminar os afazeres do trabalho.

Ainda segundo Ariès,

Por volta de 1600, a especialização das brincadeiras atingia apenas a primeira

infância; depois dos três ou quatro anos, ela se atenuava e desaparecia. A partir

dessa idade, a criança jogava os mesmos jogos e participava das mesmas

brincadeiras dos adultos, quer entre crianças, quer misturada aos adultos.

Sabemos disso graças principalmente ao testemunho de uma abundante

iconografia, pois, da Idade Média até o século XVIII, tornou-se comum

representar cenas de jogos: um índice do lugar ocupado pelo divertimento na

vida social do Ancien Régime. (...) Inversamente, os adultos participavam de

jogos e brincadeiras que hoje reservamos às crianças. Um marfim do século

XIV representa uma brincadeira de adultos: um rapaz sentado no chão tenta

pegar os homens e as mulheres que o empurram. (...) Logo, podemos

compreender o comentário que o estudo da iconografia dos jogos inspirou ao

historiador contemporâneo Van Marle: “Quanto aos divertimentos dos

adultos, não se pode dizer realmente que fossem menos infantis do que as

diversões das crianças”. É claro que não, pois se eram os mesmos!” (ARIÈS,

1981, p. 92-93).

Parece-nos que a preocupação nesta época, não era apenas a de retratar atividades

específicas para crianças – considerando, por exemplo, sua faixa etária –, mas apresentar a

apresentação de brincadeiras e jogos, em que todos – crianças e adultos – podiam

participar sem a intenção específica de se focar no desenvolvimento do amplo

repertório de habilidades que tais atividades poderiam acrescentar no campo psicomotor

das crianças.

A sociedada ainda estava em fase de absorver as rápidas mudanças pelas quais

estava passando. Verifica-se, por exemplo, que mesmo diante da alegria retratada no

quadro de Brugel, havia um pessimismo reinante naquela sociedade, para a qual tudo não

passava de melancolia. Tal conceito, segundo Huizinga (1996), possuía vários

significados no período, como fantasia, tristeza e reflexão; estendendo-se, inclusive, para

certas mesquinharias em relação à própria vida e, como não poderia deixar de ser, em

relação à própria criança.

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O historiador holandês cita, inclusive, um texto de Eutache Deschamps, autor

contemporâneo daquele período, em que se demonstra isso:

Feliz é aquele que não tem filhos porque as crianças não fazem senão chorar e

cheiram mal; só dão trabalhos e cuidados; têm de ser vestidas, albergadas,

alimentadas; contraem doenças e morrem. Quando são crescidas podem seguir

por maus caminhos e ser presas. Nada senão cuidados e desgostos; nenhuma

felicidade nos compensa das aflições, dos trabalhos e das despesas com a sua

educação. Há maior mal do que ter filhos aleijados? (HUIZINGA, 1996, p.

35)

O período também foi marcado pelo aumento do infanticídio, de modo especial

praticado pelas famílias mais pobres, bem como do abandono, como demonstra a criação

de vários locais de acolhimento dessas crianças. (DUBY, 2009) As que eram mantidas em

casa, deveriam dividir o espaço (e a comida!) com vários irmãos e, apesar de não lhe ser

negado o direito de brincar, cedo elas viam-se ocupadas com as preocupações dos mais

velhos e tinham de começar a trabalhar muito cedo, por volta dos seis, oito anos.

(ibidem)

Figura 8

Jogos Infantis – Pieter Bruegel, 1560

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A ruptura, porém, com o antigo modelo medieval fazia-se inevitável, como

demonstram duas instituições: a família e a escola. Estas “se tornam cada vez mais

centrais na experiência formativa dos indivíduos e na própria reprodução (cultural,

ideológica e profissinal) da sociedade” (CAMBI, 1999, p. 203) que se torna, da mesma

maneira, mais individualizada.

Figura 9

XXXIX Caput & Manus (cabeça e mão), Orbis Sensualium Pictus, Comenius

Assim, a configuração coletiva da sociedade vai cedendo espaço para uma mais

individual, e o homem do medievo que se reconhecia “apenas como raça, povo, partido,

corporação, família ou sob qualquer outra das demais formas no coletivo”

(BURCKHARDT, 2009, p. 145) vai, aos poucos, reconhecendo a si mesmo e a seu rosto

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particular. Não tardou e, ao descobrir-se enquanto indivíduo e inserido numa família

também individual, surge um “sentimento da infância” em que a criança passa a ser cada

vez mais “o centro-motor da vida familiar”, nascendo o “sentimento moderno da

família”. (CAMBI, 1999, p. 204-205)

A descoberta da Infância

A visão em relação ao bem-estar da criança começou a transformar-se quase

radicalmente já a partir do século XVI, quando se buscava, nos meios mais abastados, a

preservação de sua vida. Isso fica claro diante da não aceitação de sua morte de forma

passiva e resignada: “recusar a desgraça tentando curá-la” (GÉLIS, 2009, p. 309) passa a

ser um dos objetivos dos pais. Antes, esses apenas possuíam “a consciência da vida, do

ciclo vital [...] e não lhes restava outro recurso” (ibidem, p. 309) que gerar um outro

filho; afinal, apesar da dureza da vida, era necessário perpetuar o corpo da linhagem, já

que “seu dever vital resumia-se em dar a vida”. (ibidem, p. 306)

O mesmo sentimento estendeu-se no século XVII, quando a criança precisaria ser

compreendida como um ser em desenvolvimento e, portanto, deveria receber cuidados

especiais que lhe garantissem uma sobrevida maior. Assim, John Locke em seu Da

educação das crianças, de 1693, fala da importância da prevenção da saúde como meio

eficaz para sua preservação:

Falando aqui da saúde, meu objetivo não é dizer-vos como um médico deve

tratar uma criança enferma ou valetudinária, mas apenas indicar o que os pais

devem fazer, sem o recurso da medicina, para conservar e aumentar a saúde de

seus filhos ou pelo menos para dar-lhes uma constituição que não esteja sujeita

a doenças. (LOCKE, apud GÉLIS, 2009, p. 309)

No mesmo período, o grande pedagogo Comenius relembra a importância da

criança em seu Didactica Magna, de 1657, para as quais não se podem medir esforços em

lhe dar uma boa educação, afinal é nessa idade que seu cérebro se molda, já que

“semelhante à cera [...] é apto a receber todas as figuras que se lhe apresentam”

(COMENIUS, 2001, p. 87-88 e 114): esse é o momento propício à formação do homem,

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pois somente a educação é que nos torna, verdadeiramente, humanos: “todos aqueles que

nasceram homens é necessária a educação, porque é necessário que sejam homens, não

animais ferozes, nem animais brutos, nem troncos inertes.” (ibidem, p. 109) Ainda

empregando a imagem da cera, o grande pedagogo continua dizendo, a respeito do

cérebro infantil, que este “é inteiramente húmido e mole e apto a receber todas as figuras

que se lhe apresentam; mas depois, pouco a pouco, seca e endurece” (ibidem, p. 114), daí

a dificuldade, muitas vezes, de se ensinar homens adultos.

Figura 10

Meninos jogando dados, Murillo, 1675

A própria questão da formação e emprego imagéticos como método pedagógico

não ficará apenas na teoria, mas também na prática de Comenius (PIAGET, 1999). Este

empregará, em seu Orbis sensualium Pictus, de 1658 (fig. 9), imagens, direcionando-as

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como metodologia de ensino, de modo especial na aprendizagem de outras línguas e na

produção de conhecimento pelas crianças.

Locke, seguindo a linha de Comenius, falará de como se deve ministrar os

ensinamentos às crianças por meio de “exercícios”, do “raciocínio” e do “hábito”, já que

elas “sabem raciocinar desde quando começam a falar e [...] gostam de ser tratadas como

criaturas racionais” (CAMBI, 1999, p. 319) não como seres brutos.

Verifica-se, na arte, a efetiva retratação da infância, quando se constata certo

alijamento do sacro – deixa de ser apenas inserida nesse contexto – num período

extremamente religioso que foi o século XVII. Isso fica claro nas obras de Murillo (fig.

10) ao retratar seus meninos nas ruas de Sevilla em atitudes banais; como, por exemplo,

jogando dados (que não era, moralmente, aceito), catando piolhos, comendo. Há, nas

cenas retratadas, um ponto comum: a expressividade e a alegria inerentes da infância, sua

descoberta, apreensão, fixação e emprego do mundo que está a sua volta: a criança passa

a ser um motivo artístico, deixando o limbo em que estava reclusa.

Já a partir da século XVIII, as crianças não só são tratadas como seres pensantes e

racionais, como também são amadas e estimadas. Dessa maneira, os pais veem a

necessidade de educá-las e acabam delegando parte dessa sua obrigação – encorajados pela

Igreja e pelo Estado – ao educador e à escola (GÉLIS, 2009), afinal são raros aqueles que

saibam, possam ou “tenham tempo suficiente para se dedicarem à educação de seus

filhos.” (COMENIUS, 2001, p. 120)

Verifica-se, cada vez mais, que os novos teóricos vão descrevendo essa faixa etária

como um mundo cheio de possibilidades que podem ser adquiridas por meio da

aproximação com a cultura e com os objetos pertencentes a este universo; possibilitando,

assim, o desenvolvimento da linguagem oral e escrita. A criança acerca-se, cada vez mais,

do mundo adulto e se favorece dele para a construção de sua própria identidade, não

apenas como um ser a mais, ou um mero dente nessa engrenagem: a partir de modelos

de referências próximos a ela, amplia e desenvolve seu universo pessoal e cultural.

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Vamos nos deparar, já no século XVIII, com outros pensadores que continuaram

investindo no desenvolvimento da concepção de infância, entre eles Rousseau. Este

destaca que este período deve ser visto como autônomo e dotado “de características e

finalidades específicas, bem diversas das que são próprias da idade adulta” (CAMBI, 1999,

p. 346), conforme deixa claro em sua obra Emílio, onde afirma que “a infância não é

absolutamente conhecida” e “se perde” pelas “falsas ideias que se têm dela.” (ibidem, p.

346) Nesse sentido, exaltava a naturalidade e a autenticidade da criança, pois considerava

a infância uma fase diferente da do adulto. A partir desse momento, a pedagogia torna-se

puericêntrica e viu, no menino, “como disse Montessori, ‘o pai do homem.’” (ibidem, p.

387)

Figura 11

A Família Waagepetersen, Wilhelm Marstran, 1836

Pestalozzi, por sua vez, seguindo as ideias de Rousseau, dizia que a criança traz

em si mesma todas as “facilidades da natureza humana” (p. 418), mas para que

desabroche como “um botão que ainda não se abriu” (p. 418), deve-se partir da intuição,

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ou seja, da “observação intuitiva da natureza (p. 418), promotora de seu

desenvolvimento intelectual.

A primeira metade do século XIX, vemos o surgimento do Romantismo e de seus

ideais, quando se buscou uma renovação na concepção do espírito do homem e do fazer

artístico. Período em que, de modo especial, se expressam de um lado o sentimentalismo

e a idealização; e, de outro, uma forte consciência histórica com a consequente a

retomada do ideais da Europa Medieval. Além disso será, de certa forma, herdeiro do

Iluminismo e da Revolução Francesa; coroando, por fim, os ideias burgueses e

capitalistas.

Figura 12

Crianças brincando (estudo), Max Liebermann, 1875

Esse século também será paradoxal de muitas maneiras: se de um lado a criança

passa a ser reconhecida como um ser humano de fato, mas inserido em um outro estágio

de desenvolvimento diferente da fase adulta; por outro, será refém de sua própria

fragilidade: empregada como mão de obra barata e submissa. Além disso, apesar de o

emprego das amas de leite atingirem altos níveis, as mães burguesas aprenderam a se

ocupar, efetivamente, de seus filhos (PERROT, 2009), conforme a retratação de Morisot.

(fig. 13)

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Diante de tanta transformação, a própria imagem da criança também mudará,

assim como o conceito de educar, calcado agora na formação completa do homem, em

sua Bildung, cujo fulcro principal será a busca pelo homem integral, capaz de conciliar,

sensibilidade e razão (CAMBI, 1999, p. 420), a fim de que cresça em sua totalidade

humana e que de catalize a tensão do eu. Não é à toa que a arte terá um papel central

nesse processo, elaborando “por meio da fantasia, um equilíbrio de necessidade e de

liberdade, de intelecto e sentimento,” (ibidem, p. 421)

Figura 13

O berço, de Berthe Morisot, 1872

Para Fröbel, um dos grandes pedagogos do período, deve-se reforçar a capacidade

cognitiva da criança, sua “vontade de mergulhar no mundo-natureza [fig. 15], de

conhecê-lo, dominá-lo, participando de sua atividade criativa com o sentimento e pela

arte” (ibidem, p. 426); mas, para isso, são imprescindíveis as brincadeiras, o canto, o

jogo, com os quais se estimularão não só sua aprendizagem e desenvolvimento internos,

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como também sua aptidão para vencer obstáculos que se acercarão dela em sua fase

adulta (fig. 14):

Figura 14

Momento de brincar de cozinhar no Jardim da Infância, Frankfurt a.M., por volta de 1900

A brincadeira é a fase mais alta do desenvolvimento da criança [...], pois ela é a

representação autoativa do interno – representação do interno, da necessidade

e dos impulsos internos. A brincadeira é a mais pura, a mais espiritual

atividade do homem neste estágio e, ao mesmo tempo, típica da vida humana

como um todo – da vida natural interna escondida no homem e em todas as

coisas. (FRÖBEL apud ARCE, 2002, p. 60-61).

Mesmo ainda sem ter acesso à química do cérebro e a seus neurotransmissores,

como a endorfina descoberta em 1975, Fröbel, empiricamente, constatou que a

brincadeira

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dá alegria, liberdade, contentamento, descanso interno e externo, paz com o

mundo. Ela tem a fonte de tudo que é bom. A criança que brinca muito com

determinação autoativa, perseverantemente até que a fadiga física proíba,

certamente será um homem (mulher) determinado, capaz do autossacrifício

para a promoção do bem estar próprio e dos outros. (ibidem, p. 60-61)

Figura 15

Crianças na jardinagem no Jardim da Infância do Pratt Institut, Nova York, 1905

Afinal a brincadeira é, naturalmente, um “indutor de produção e de circulação de

endorfinas” (NEGRINE, 2014), ou seja, vai além de um mero ato desprovido de

significado, individual, inútil ou mesmo banal que se acerca de uma determinada atuação

sociocultural, para adentrar em fatores biológicos extremamente relevantes (ibidem).

Brincar, portanto, libera esses “agentes ‘biolétricos’ transmissores de energia vital”

(ibidem) que nos dão uma não apenas uma sensação de bem-estar e prazer (fig. 11), como

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também nos preparam para enfrentar os reveses da vida, já que sua ausência pode,

inclusive, causar certas patologias.

Dessa maneira, brincar faz parte integrante do se estar criança; e não é, de

maneira alguma, trivial, pois diante de todas as conquistas da criança ao longo dos

tempos, a importância do brinquedo e da brincadeira na prática educativa é,

seguramente, uma das mais expressivas. Isso porque, por meio do brincar revela-se,

mesmo que de maneira incipiente,

o futuro da vida interna do homem. As brincadeiras da criança são as folhas

germinais de toda a vida futura; pois o homem todo é desenvolvido e

mostrado nelas, em suas disposições mais carinhosas, em suas tendências mais

interiores. (FRÖBEL apud ARCE, 2002, p. 60-61).

Não é à toa que uma das grandes contribuições de Fröbel para o desenvolvimento

da criança foram os “jardins de infância” (Kindergarten). Espaços aparelhados e voltados,

de maneira especial, para o jogo e o trabalho infantil, organizados por uma professora

que orienta as atividades, “sem que estas jamais assumam uma forma orgânica e

programática, como ocorre nas escolas”. (CAMBI, 1999, p. 426) A “intuição das coisas”

e do mundo que a cerca é colocada no centro das atividades num local onde há áreas

verdes e canteiros que visam a estimular as mais variadas atividades das crianças, sempre

a partir do lúdico:

Der wissenschaftliche Fokus auf den Kindergarten hat seinen Ursprung in

religiösen Konzepten, die ausgehend von Friedrich Fröbels (1782-1852) Idee

über die Enheit von Individuum, Gott und Natur die Aufgabe des

Kindergartens darins sah, diese Einheit dem Kind mithilfe eigens konstruirter

Spiel- oder Baugaben erfahrbar zu machen. (ECARIUS. KÖBEL. WAHL,

2011, p. 102)

Infelizmente, apesar de todas essas descobertas referentes à infância no século

XIX, o período presenciou o emprego de muitas crianças – a partir dos sete, oito, nove

anos – em regime de quase escravidão em minas de carvão (fig. 16) ou em fábricas (fig. 17

e 18), nas quais trabalhavam mais de quinze horas por dia (HUBERMAN, 1985, p. 191-

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192); vendo-se, portanto, alijadas dessa necessidade básica que são os jogos e as

brincadeiras.

Figura 16 Breaker boys das minas de carvão, Lewis Hine, 1909

Huberman (1985, p. 190), ao falar dos horrores do capitalismo industrial, diz que

os industriais

compravam o trabalho das crianças pobres, nos orfanatos; mais tarde, como

os salários do pai operário e da mãe operária não eram suficientes para manter

a família, também as crianças que tinham casa foram obrigadas a trabalhar nas

fábricas e nas minas.

Anteriormente, o mesmo autor afirmou que os donos das fábricas viam tudo o

que estava no inteirior de sua propriedade como algo que lhe pertencesse, fossem as

mãos fossem as máquinas; davam, no entanto, sempre preferência a estas – por

representarem um investimento – em detrimento daquelas. Além disso, por as crianças e

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as mulheres receberem menos que os homens, cabiam a elas trabalhar, enquanto muitos

homens ficavam em casa, sem ocupação. (ibidem, p. 190)

Figura 17

Gravura do século XIX retratando meninas em uma fiação

De forma lamentável, tal situação não se limitou ao século XIX, mas estendeu-se

também pelo XX, conforme demonstrou o fotógrafo estadunidense Lewis Hine, em sua

série de fotografias-protesto contra o trabalho infantil, quando nos mostra os rostos de

crianças desprovidas de alegria, de sonhos e de esperanças, conforme se pode ver na

figura 16.

Assim, ao se chegar ao século XX, deparamo-nos com uma criança que, apesar de

todas as vicissitudes da pobreza e do capitalismo selvagem que ainda vai explorá-la como

mão de obra barata; é possivel ver que, enquanto representação, a mesma já é retratada

demonstrando seu sentimento de infância. Isso pressupõe que a sociedade mudou e,

mesmo com seu resgate da penumbra da história ainda que de forma incompleta, se

manteve a preocupação por seu desenvolvimento.

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Figura 18

Crianças trabalhando em uma fiação, primeira década do século XX, Lewis Hine

Tendo isso em mente, vemos, por exemplo, Picasso com sua sensibilidade cubista

retratar sua filha, Maya, segurando uma boneca (fig. 19): não é mais possível dissociar a

imagem da criança da brincadeira, nem do brinquedo: afinal, este vai auxiliá-la a ter

iniciativa, a desenvolver sua imaginação, a expressar sua criatividade.

Nesse sentido a obra é demonstração do retrato da infância, ao longo de suas

transformações sociais, uma vez que esta obra demonstra bem o perfil infantil que

retrata tanto a antiga situação da infância, quanto a atual com seus direitos garantidos.

Mesmo geomentricamente esfacelada em sua representação, Maya representa a vitória

da infância (mesmo que ainda se encontre estilhaçada em muitos lugares), já sua boneca

mantém-se íntegra e de braços abertos: continua cumprindo seu papel de conduzir e

reconduzir a infância à idade adulta.

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Não se pode esquecer, porém, que conforme a época, o perfil de infância também

vai se pautando em vários modelos vivenciados pela sociedade em que está inserida, além

daqueles “delineados nas esferas científicas, políticas, econômicas e artísticas, construindo

e desconstruindo imagens” (FURLANETTO, 2006, p. 12); mas, apesar disso, não se

pode esquecer que “a criança tem um mundo próprio – com seu tempo, seus desejos,

suas ideias – cabendo ao adulto compreendê-la.” (ibidem, p. 12)

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Figura 20

Maya com sua boneca, Picasso,1938

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