12
6287 OS PROCESSOS DE REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE PELA CRIANÇA E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE EDUCAÇÃO INFANTIL Eliza Maria BARBOSA, Unesp/FCL/Departamento de Psicologia da Educação Francisco José Carvalho MAZZEU, Unesp/FCL/Departamento de Didática Eixo 04 – Formação do Professor da Educação Infantil [email protected] Introdução A disseminação das ideias de Vygotsky e outros autores da Psicologia Histórico-Cultural no Brasil, tem trazido novos temas de investigação e debate, bem como colocado novas formas de abordar questões que há muito vêm sendo discutidas no campo do desenvolvimento da criança e dos processos de ensino-aprendizagem na Educação Infantil. Um dos temas recorrentes nesses debates refere-se à formação do pensamento abstrato da criança, entendido esse pensamento como uma das funções psicológicas superiores que se formam sob a direção de processos educativos e constitui, portanto, um dos eixos da educação institucionalizada. O propósito deste trabalho é discutir, à luz de uma experiência concreta de formação continuada de educadores de creches e pré-escolas, desenvolvida junto à rede de ensino de Educação Infantil de Araraquara/SP, como esses fundamentos teóricos iluminam aspectos dessa prática, permitindo avançar na melhoria da qualidade do trabalho dos profissionais que atuam nesse nível do ensino. Há alguns anos um dos autores deste texto tem se dedicado a acompanhar o trabalho pedagógico desenvolvido nos Centros de Educação e Recreação (CERs), instituições que atendem as crianças menores de seis anos no município de Araraquara/SP, não só no sentido de compreendê-lo, mas também oferecendo subsídios teórico-práticos para a promoção de mudanças. Em 2006/2007, foi realizada uma pesquisa empírica na rede de Educação Infantil deste município (BARBOSA, 2008), fornecendo à equipe da Secretaria de Educação um panorama extenso dos elementos pedagógicos e teóricos que se encontravam legitimados pelas práticas dos professores, indicando a adesão a uma perspectiva pedagógica que se assemelha

OS PROCESSOS DE REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE PELA CRIANÇA E ...200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongressoEducadores/6673.pdf · de infância, trabalho docente, aquisição

Embed Size (px)

Citation preview

6287

OS PROCESSOS DE REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE PELA CRIANÇA E A

FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE EDUCAÇÃO INFANTIL

Eliza Maria BARBOSA, Unesp/FCL/Departamento de Psicologia da Educação

Francisco José Carvalho MAZZEU, Unesp/FCL/Departamento de Didática

Eixo 04 – Formação do Professor da Educação Infantil

[email protected]

Introdução

A disseminação das ideias de Vygotsky e outros autores da Psicologia

Histórico-Cultural no Brasil, tem trazido novos temas de investigação e debate, bem

como colocado novas formas de abordar questões que há muito vêm sendo discutidas

no campo do desenvolvimento da criança e dos processos de ensino-aprendizagem

na Educação Infantil.

Um dos temas recorrentes nesses debates refere-se à formação do

pensamento abstrato da criança, entendido esse pensamento como uma das funções

psicológicas superiores que se formam sob a direção de processos educativos e

constitui, portanto, um dos eixos da educação institucionalizada.

O propósito deste trabalho é discutir, à luz de uma experiência concreta de

formação continuada de educadores de creches e pré-escolas, desenvolvida junto à

rede de ensino de Educação Infantil de Araraquara/SP, como esses fundamentos

teóricos iluminam aspectos dessa prática, permitindo avançar na melhoria da

qualidade do trabalho dos profissionais que atuam nesse nível do ensino.

Há alguns anos um dos autores deste texto tem se dedicado a acompanhar o

trabalho pedagógico desenvolvido nos Centros de Educação e Recreação (CERs),

instituições que atendem as crianças menores de seis anos no município de

Araraquara/SP, não só no sentido de compreendê-lo, mas também oferecendo

subsídios teórico-práticos para a promoção de mudanças. Em 2006/2007, foi realizada

uma pesquisa empírica na rede de Educação Infantil deste município (BARBOSA,

2008), fornecendo à equipe da Secretaria de Educação um panorama extenso dos

elementos pedagógicos e teóricos que se encontravam legitimados pelas práticas dos

professores, indicando a adesão a uma perspectiva pedagógica que se assemelha

6288

àquela encontrada nas formulações curriculares nacionais que, orientada pelo critério

de idade ou por etapas do desenvolvimento, transforma este último no principal

condicionante das opções curriculares e consequentemente cria uma noção de

sociabilidade que prescinde da mediação do conhecimento (Miranda, 2005).

O que se percebeu claramente nessa pesquisa é a presença de um

psicologismo exacerbado que concebe o desenvolvimento muito mais como um clichê1

levando a uma fetichização da infância, pois essa etapa da vida é concebida quase

sempre a partir de um naturalismo, sem que se expresse conjuntamente a estreita

relação entre o desenvolvimento e aquilo que o promove, as relações de produção de

conhecimentos, saberes e técnicas culturais, sem as quais nenhum desenvolvimento

humano acontece de forma efetiva.

Diante daquela realidade constatada, a equipe técnica da secretaria municipal

de educação entendeu que era preciso pensar alternativas para as práticas

assistemáticas desenvolvidas na rede municipal de educação infantil. Fez-se, portanto,

imprescindível (re) pensar esta educação infantil, como a articulação entre uma tríade:

formação docente, práticas educativas intencionais e políticas públicas, dando um

papel central para o ensino na educação das crianças pequenas. Pensar a concepção

de infância, trabalho docente, aquisição de conhecimento e, consequentemente

desenvolvimento infantil considerando referenciais teóricos críticos no campo

educacional, como a Psicologia Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica,

demanda clareza do papel educacional da instituição de educação infantil; formação

docente e; interdisciplinaridade entre as diversas áreas do conhecimento, subsidiárias

do pensamento pedagógico.

Em resposta a essas demandas foi criado o programa Cresça e Apareça que

entre outros objetivos visa a revisar e reescrever a proposta curricular da rede

municipal de Educação Infantil. Ainda como parte dessas ações foi criado o LAPEI –

Laboratório Pedagógico da Educação Infantil. O LAPEI reúne aproximadamente 18

educadores sendo: oito educadores de pré-escola, três de creche, três de recreação

(período integral), duas diretoras de instituições de educação infantil, seis supervisoras

da secretaria municipal, docentes do ensino superior e uma bolsistas PIBID da

Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Sob a responsabilidade deste

laboratório ficam as seguintes ações:

1 O uso de clichês é discutido no seguinte trabalho: MAZZEU, F. J. C. Os “clichês” na prática de

ensino: o que há por trás desse problema? Tese (Doutorado) - UFSCar : São Carlos, 1999.

6289

Estudo das principais obras dos autores da Psicologia Histórico-Cultural

e da Pedagogia Histórico Crítica;

Levantamento e avaliação das práticas educativas desenvolvidas nas

instituições de Educação Infantil;

Desenvolvimento e elaboração de atividades a serem trabalhadas com

as crianças nas instituições educativas tomando como pressuposto as

contribuições das teorias acima descritas;

Desenvolver junto aos educadores de novas práticas orientadas pelo

princípio da intencionalidade;

Produzir e distribuir um boletim mensal constituindo-se numa

ferramenta de formação continuada dos professores da rede.

Nesse intuito de pensar novas bases curriculares para o trabalho com as

crianças da educação infantil, temos sistematizado atividades que têm como eixo as

principais formas de representação utilizadas por elas, antes e depois da aquisição da

linguagem oral, pois entendemos que a atividade que se apoia em uma representação

mais abstrata da realidade constitui uma das características tipicamente humanas,

capazes de assegurar às crianças um amplo desenvolvimento em todos os aspectos

do seu psiquismo.

As ações empreendidas no programa Cresça e Apareça, bem como as

atividades realizadas pelo LAPEI, articulam-se com os objetivos estabelecidos pelo

grupo de pesquisa: Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil e Teoria

Histórico-Cultural que é constituído por duas linhas convergentes entre si e que

servem ao propósito de aproximar as atividades de ensino, pesquisa e extensão. A

primeira linha investiga a construção de conceitos não-cotidianos pelas crianças que

frequentam as creches e pré-escola, buscando identificar ações e mediações

pedagógicas que favorecem a produção desses conceitos. Partindo de uma

metodologia dialética de ensino revelamos os tipos de atividade, ações e mediações

que são mobilizadas pelas professoras para ensinar os conteúdos previstos. A

segunda linha é composta por estudos sobre a Teoria Sócio-Histórica da atividade

humana, suas relações com a Pedagogia Histórico-Crítica e suas implicações na

pesquisa sobre o trabalho docente na Alfabetização e na Educação Infantil. No âmbito

dessa linha de pesquisa diversos estudos têm sido realizados no intuito de

compreender os processos de ensino e aprendizagem da linguagem escrita, bem

como elaborar e aplicar procedimentos metodológicos e materiais didáticos.

6290

O presente texto procura apresentar algumas considerações teóricas que vêm

fundamentando essas atividades de pesquisa e de formação de professores, partindo

do pressuposto de que é necessário aos professores (tanto os que já atuam na rede

quanto os que estão se formando na universidade) ter um conhecimento mais

profundo do processo de formação do pensamento da criança, a sua forma de

compreender e representar a realidade, para que possa intervir de modo mais

qualificado nesse processo, com vistas a atingir os objetivos do trabalho pedagógico.

O processo de conhecimento e a representação da realidade

Um dos pressupostos básicos da concepção histórico-cultural refere-se à teoria

do conhecimento do materialismo histórico-dialético. Nessa corrente teórica, parte-se

do princípio de que a realidade existe fora e de modo independente da consciência

humana, mas de um modo dialético, portanto não como uma “coisa” ou objeto a ser

apreendido por meio de um ato de contemplação que parte da captação das

características exteriores por meio dos sentidos e caminha por abstrações mentais até

chegar ao conceito. Essa visão linear, embora às vezes chegue a ser apresentada

como sendo baseada na abordagem marxiana, está longe de expressar seus

elementos essenciais.

O ponto de partida da teoria materialista dialética do conhecimento não é o

objeto ao qual se conecta um sujeito cognoscente. O ponto de partida é a prática e a

atividade histórico-social dos homens na qual tanto os objetos quanto os sujeitos se

constituem e atuam. O próprio surgimento do ser humano como uma espécie

diferenciada, a chamada filogênese, se explica pelo papel desempenhado pela

atividade vital dessa nova espécie, que é o trabalho. É em função do trabalho e por

meio dele que o ser humano vai percebendo a realidade exterior e percebendo a si

mesmo nessa realidade, o que permite transformar o meio circundante e criar aquilo

que ainda não existe, mas é essencial para a sobrevivência dos indivíduos e da

espécie.

Portanto, do ponto de vista histórico-cultural, o ato de conhecer nunca se dá no

vácuo, como uma abstrata relação sujeito-objeto, já que esse tipo de abstração elimina

os traços essenciais da atividade humana, que é ao mesmo tempo teórica e prática,

abstrata e concreta, individual e coletiva e que permite captar a realidade e, ao mesmo

tempo, transformá-la a partir de objetivos elaborados na consciência humana.

6291

Sendo o contato do ser humano com a realidade uma relação inicialmente

prática, a realidade se apresenta com um desafio ou um problema e não como um

objeto estático. A relação do indivíduo humano com essa realidade é sempre mediada

direta e indiretamente pela sociedade e pelos outros sujeitos envolvidos nessas

atividades.

Assim expressou Marx esse caráter prático do conhecimento, não por acaso,

na primeira das suas “Teses” sobre Feuerbach

“O principal defeito de todo o materialismo existente até agora (o

de Feuerbach incluído) é que o objeto [Gegenstand], a realidade,

o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da

contemplação, mas não como atividade humana sensível, como

prática; não subjetivamente. Daí o lado ativo, em oposição ao

materialismo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo

– que, naturalmente, não conhece a atividade real, sensível, como

tal.” (MARX e ENGELS, 2007, p. 533)

Essa abordagem pode parecer distinta daquela feita pelo mesmo autor, ao

expor o seu método (MARX, 1976), em que situa o primeiro passo do conhecimento

como sendo o terreno do empírico e da síncrese (visão caótica do todo). No entanto,

trata-se do mesmo processo visto por ângulos diferentes, já que a prática, a atividade

é que possibilita o contato com os objetos, mas o único meio de conhecer a realidade

é através dos sentidos (ver, ouvir, apalpar). Nesse contato inicial, prático-sensorial,

formam-se as primeiras representações dessa realidade, ainda fragmentárias e

caóticas, ainda impregnada dos desejos, das memórias e de toda a subjetividade dos

indivíduos. Mas a representação da realidade na consciência humana seria pouco

diferente daquela elaborada pelos animais se ficasse somente nesse estágio

perceptivo e reativo. O aspecto essencial do conhecimento humano é a capacidade de

transcender esse momento e captar a realidade em seu movimento interior, que não

se manifesta imediatamente aos sentidos, expressando no pensamento as leis e os

conceitos que explicam o movimento dos objetos, as relações mais íntimas entre os

fenômenos, permitindo prever seu desenvolvimento e interferir na sua dinâmica. Para

chegar a esse resultado é preciso agir sobre o objeto explorando suas características,

decompondo seus elementos e manipulando esses elementos, o que se faz por meio

das análises e abstrações.

O processo de análise, embora esteja presente em qualquer ato de decompor,

no ser humano adquire uma característica qualitativamente nova, pois não se baseia

6292

apenas nos aspectos que a realidade revela por si mesma, mas se apoia no

conhecimento historicamente acumulado pelo grupo social, que orienta a atividade

individual para a identificação de dimensões e relações que foram sendo descobertas

por meio da atividade de outros indivíduos e incorporadas à cultura. Esse processo de

análise se faz, portanto, através de conceitos que são assimilados socialmente e

revelam os objetos em seus aspectos concretos, reais, independentes da forma como

cada um percebe ou se relaciona com eles.

Na assimilação dos conceitos a linguagem exerce um papel essencial, já que

permite não somente a transmissão de conceitos já elaborados, mas também permite

que cada indivíduo opere com esses conceitos como se fossem seus, como parte da

organização do seu pensamento. O desenvolvimento dessas formas mais elaboradas

de pensamento altera a própria percepção e vai “educando” os sentidos para que seja

possível perceber dimensões insuspeitas da realidade. Com o desenvolvimento de

instrumentos que melhoram a percepção dos objetos e ampliam a capacidade de

modificá-los, surgem mais e mais conceitos e relações que vão sendo sistematizadas

e organizadas na forma do saber acumulado.

Nota-se, portanto, a necessidade de possibilitar a cada indivíduo humano o

acesso a esse saber acumulado como uma condição indispensável para elevar o

pensamento ao nível conceitual e, consequentemente, possibilitar que a sua prática

avance para o nível de uma atividade que se baseia em um conhecimento mais

profundo da realidade, isto é, ao nível da práxis. Essa é, na perspectiva Histórico-

Cultural, uma tarefa precípua da educação e, em especial, da educação sistemática,

escolar e pré-escolar.

A formação das representações pela criança

O processo de assimilação, pela criança, desse conhecimento acumulado pela

sociedade não ocorre de uma forma direta, pela simples reprodução do discurso ou

imitação da atividade dos adultos. O processo de desenvolvimento do pensamento

conceitual na criança segue uma trajetória peculiar, no qual a linguagem ocupa um

papel estratégico.

Na perspectiva dos autores soviéticos, a linguagem em seu sentido geral e a

linguagem oral de modo específico, qualificam todas as funções psicológicas e a

atividade da criança, que no primeiro ano de vida, ainda se apresenta involuntária e

sem intencionalidade. O aparecimento da linguagem oral, em torno dos 14 meses de

vida, cria a base para o pensamento abstrato e, portanto, para a representação da

6293

realidade na consciência. A fala, os gestos, o desenho e depois a escrita, constituem

formas de representação do pensamento que vão se desenvolvendo de modo

acelerado durante os anos da educação infantil.

Com a emergência da fala, processos como a memória, atenção, percepção,

etc. começam a funcionar de modo mediado. As crianças conseguem se referir a

objetos, fatos, acontecimentos e fenômenos do passado, do futuro, ausentes e

presentes. Aqui os gestos desempenham um complemento muito importante que pode

ser facilmente observado nas crianças de que têm entre 14 e 24 meses de vida2, visto

que elas têm grande necessidade de usar os gestos como forma complementar à fala.

É por essa razão que atividades de simulação de expressões faciais e sons

correspondentes, imitações simples de “vozes” de animais ou ações e ruídos

produzidos por e com objetos, deixar a criança manipular objetos de diferentes

formatos e texturas, intencionalmente escolhidos pelos educadores, são atividades

importantes, pois estimulam os sentidos da criança levando-a a realizar algo que ainda

não é capaz de fazer sozinha, que é construir suas primeiras formas de representação

da realidade como algo separado do seu próprio pensamento, ou seja, os bebês

começam a operar sobre os objetos mediados pelos adultos, o que lhes possibilita agir

não apenas em função dos seus desejos, mas em função das ideias e conhecimentos

que os adultos possuem e que pode ser compartilhada, demonstrada e interpretada

pelo outro, dando início a uma nova forma de comunicação e de elaboração do

pensamento.

Observando as crianças de dois a três anos, vemos que proporcionalmente à

ampliação do repertório linguístico há uma diminuição do uso de gestos; eles já não

são imprescindíveis para a comunicação. Esse franco desenvolvimento é

acompanhado da especialização do desenho observada entre o final do terceiro e

quinto ano de vida. A representação expressa sob a forma de desenhos cumpre uma

função concomitante: ao mesmo tempo em que dá sequência ao processo de

simbolização, formaliza-se como uma etapa fundamental para a próxima, na qual a

representação pictográfica vai convertendo-se em escrita, forma mais abstrata de

representação do pensamento. Por essa razão é essencial investir no trabalho

intencional com o desenho3, pois ele amplia as possibilidades de comunicação,

2 No município de Araraquara as crianças que têm essa idade são atendidas e ensinadas noagrupamento denominado Berçário II. Em torno do 25º ou 26º ano de vida, elas passam paraum novo agrupamento denominado Classe Intermediária (CI) , permanecendo até completaremtrês anos.3 Para sugestões de trabalho com o desenho ver: MARTINS, L. M. A alfabetização para oconstrutivismo e para a psicologia histórico-cultural/pedagogia histórico-crítica. In: MARTINS, L.M; MARSÍGLIA, A. C. G (Orgs). As perspectivas construtivistas e histórico-crítica sobre o

6294

desenvolve a percepção de traços mais gerais e comuns a vários objetos e ao mesmo

tempo prepara as crianças para o domínio da língua escrita. Isso quer dizer que

quando o desenho não é trabalhado intencionalmente como um precursor da

simbolização (como um signo) fica mais difícil para elas compreenderem que também

a escrita é um sistema de signos que servem para representar o pensamento, que por

sua vez captura a realidade (existente e imaginada, exterior e interior ao sujeito). O

trabalho com os desenhos enquanto precursores de uma escrita pictográfica pode

ajudar a criança a perceber que as letras nada mais são do que um conjunto de

desenhos aos quais atribuímos culturalmente a relação com determinados sons e

formam palavras que são portadoras de significado. Trabalhar a ideia de

representação, portanto, é essencial para a compreensão da natureza simbólica da

escrita, pois assim como as crianças quando desenham não estão desenhando os

objetos em si mesmos, mas registrando uma ideia que os representa e simboliza,

também a escrita não representa o objeto diretamente, mas faz isso pela mediação do

pensamento e da fala. Daí a natureza mais abstrata da escrita que Vygotsky (2001)

destacou.

Sendo assim, o processo de formação do pensamento mais abstrato é fundamental

não apenas para o desenvolvimento geral da criança, mas para a própria assimilação

da linguagem escrita.

Compreender esse percurso de formação do pensamento conceitual traz

grandes implicações para o trabalho que realizamos com as crianças na Educação

Infantil. Em qualquer idade a capacidade de representar a realidade estará em pleno

desenvolvimento e exigirá do educador tanto um conhecimento das especificidades da

etapa em que a criança se encontra quanto dos objetivos as serem atingidos ao longo

desse processo. Como o pensamento humano não se manifesta exceto por meio de

algum tipo de linguagem, que precisa ser assimilada pela criança, os gestos, a fala, o

desenho e a escrita devem ser pensados como objetos de conhecimento, e ao mesmo

tempo em que, o seu uso expressa as possibilidades alcançadas pelo pensamento

infantil.

Na abordagem Histórico-Cultural, quando as crianças observam um gesto para

em seguida reproduzi-lo, desenham ou ensaiam a escrita, inicialmente fazem isso de

forma sincrética, como uma “representação caótica do todo”; todos os âmbitos do

objeto podem ser representados da forma como a criança acredita que ele é a partir

de sua prática cotidiana e não necessariamente como o objeto se manifesta aos

sentidos. Por exemplo, a criança desenha uma casa com a pessoa dentro, como se as

desenvolvimento da escrita. Campinas: Autores Associados, 2015, p. 35-43.

6295

paredes fossem transparentes porque ela sabe que a tem alguém lá e não porque

pode ver essa pessoa. Entretanto, se queremos que as crianças cheguem às sínteses

mais elaboradas, devemos ensiná-las a analisar os objetos, mostrar-lhes as partes, os

aspectos, as características, as possibilidades de uso. No caso dos gestos, por

exemplo, as crianças precisam ter a oportunidade na escola de expressar-se por meio

de atividades que impliquem em gestos diferentes daqueles produzidos

espontaneamente em situações cotidianas de comunicação. As situações escolares

teriam que trabalhar a relação entre o gesto e seu significado, evidenciando o caráter

simbólico dessa relação. Representar situações e acontecimentos por meio de mímica

por ser uma atividade que possibilita esse trabalho.

As atividades de desenho, por sua vez, devem oferecer à criança técnicas e

recursos diversos para representar objetos observados, pois assim as crianças

começam a representar não somente o que acreditam estar percebendo, mas o que

realmente percebem num contato inicial com os objetos, pessoas ou fenômenos. A

partir daí abre-se o caminho para atribuir aos desenhos outros significados e sentidos,

que não têm relação direta com o objeto representado, mas podem então expressar o

novo, o extraordinário, aquilo que pode existir enquanto produto da atividade humana

criadora. Para que desenhem o novo, o não percebido, os educadores precisam

revelar os âmbitos, a contradição entre o que as crianças veem ou compreendem e a

forma especializada de representar.

A escrita por sua vez precisa ser discutida com as crianças. Quando elas

iniciam a experiência de escrita, representam signos que podem ou não guardar

alguma relação com a escrita convencional e, em qualquer uma dessas

circunstâncias, o trabalho do educador deve intensificar os momentos analíticos, tais

como: comparação entre letras, sílabas, posição que ocupam nas palavras, tamanho

das palavras; relações de simetria e assimetria entre o som da fala e a escrita. Por

exemplo, na palavra camaleão os dois primeiros A (s) estabelecem uma relação

simétrica entre o som da fala e a escrita. As crianças ouvem A e grafam A. Já o A que

se junta com o O e recebe um acento, não tem correspondência com a fala, ou seja,

as crianças ouvem ÃO e por isso, quando têm que grafar, em geral apresentam

dificuldade, pois o som que o A produz nesse encontro vocálico (AN) é muito diferente

da letra que irão escrever (A). Há aqui, portanto, uma assimetria.

Essas e outras tantas análises precisam ser feitas pela mediação dos

educadores porque são convencionalidades da língua que não são compreendidas

pelas crianças por processos espontâneos, já que não há um princípio lógico que

possa ser por elas deduzido. Nessas análises, a totalidade que se apresenta

6296

inicialmente, fragmenta-se: as crianças reconhecem os diversos âmbitos e têm, em

seguida, a possibilidade de produzir uma síntese nova, outra totalidade, só que agora

compreendendo a essência do que estão representando. Quando construímos com as

crianças um brinquedo usando materiais reciclados e vamos comparando passo a

passo os objetos originais e as novas formas que eles assumem, ou mesmo quando

“desconstruímos” com elas um brinquedo produzido, voltando-se à forma original dos

objetos, as crianças vão de uma totalidade à outra por meio das ações mediadas pelos

educadores.

Outro aspecto que deve ser considerado quando compreendemos essas

formas de representação como objetos de conhecimento é considerá-las como

produtos e criações humanas dependentes de uma reprodução antes que possam ser

modificados, inventados ou transformados. As crianças precisam de modelos, domínio

de técnicas, possibilidade de refletir sobre o que expressam. A reprodução é uma

exigência, visto que, representar é uma atividade simbólica produzida pelo

pensamento e em qualquer situação, o que será representado só faz sentido no

interior das relações criadas pelo homem; não se dão a conhecer pelas crianças de

modo literal ou assistemático. Será fruto das relações interpessoais que elas

estabelecem com os adultos.

Finalmente, lembramos que, seja qual for a forma predominante de

representação das crianças em cada idade: gestos e expressões nos dois primeiros

anos de vida, o desenho entre os três e quatro anos e a escrita nos anos seguintes,

seu domínio será mais progressivo e sistemático se considerarmos a atividade

principal. Nas atividades de comunicação emocional, manipulação objetal e

brincadeiras e jogos de papéis sociais temos a relação motivo-ação articulada de

modo coerente, favorecendo as aprendizagens aí produzidas. Todos os objetos

representados pelas crianças, exceto os fenômenos naturais, são objetos culturais e

convertem-se em objetos de conhecimento dada à necessidade de domínio da

realidade humana que elas têm. Essa necessidade impõe-nos outra, a de que sejam

ensinados.

Nossa experiência com o LAPEI tem encaminhado esse desenvolvimento do

sistema de representação como eixo curricular das atividades que realizamos com as

crianças da Educação Infantil da rede municipal de Araraquara, pois entendemos que

a apropriação desse sistema cria as formas mais desenvolvidas de pensamento e

asseguram o seu processo de humanização.

6297

Considerações finais

Uma ideia bastante comum entre os professores da Educação Infantil,

reforçada fortemente pelas abordagens construtivistas, é de que a criança em idade

pré-escolar se encontra em uma fase de pensamento concreto, sendo incapaz de

“abstrair”. Dessa forma, os educadores deveriam “respeitar” essa fase e trabalhar

somente com o “concreto” evitando introduzir elementos simbólicos e abstratos na

atividade da criança. Existe uma crença de que basta promover o contato espontâneo

com os gestos, desenhos e escrita e, sobretudo, com as brincadeiras, para que o

desenvolvimento possa ocorrer naturalmente, já que o seu motor principal seria a

maturação biológica.

Na perspectiva Histórico-Cultural procura-se superar essas ideias e crenças, já

que se concebe o ensino como um motor da aprendizagem e do desenvolvimento da

criança. Essa abordagem coloca, portanto, uma grande ênfase na importância da

intencionalidade do educador no direcionamento das atividades das crianças, tanto na

brincadeira, quanto no contato com elementos simbólicos.

Uma ação intencional desse tipo exige dos educadores um sólido

embasamento teórico que ajude a compreender o processo de desenvolvimento da

criança em seus diversos aspectos (cognitivo, afetivo, motor) como um processo

educativo e formativo, com fases e etapas específicas cuja sucessão requer a

intervenção dos adultos. Saber identificar a forma mais adequada de atuar em cada

uma dessas fases para provocar esse avanço consiste em um elemento fundamental

da formação do professor da Educação Infantil e tem sido um eixo essencial das

atividades de formação continuada desenvolvidas na FCL/Unesp/Araraquara.

Referências

BARBOSA, E. M. Educar para o desenvolvimento: críticas a esse modelo em

consolidação da educação infantil. Tese de Doutorado em Educação, Programa de

Pós-Graduação em Educação Escolar, Universidade Estadual Paulista “Júlio de

Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, 2008.

MARTINS, L. M. A alfabetização para o construtivismo e para a psicologia histórico-

cultural/pedagogia histórico-crítica. In: MARTINS, L. M; MARSÍGLIA, A. C. G (Orgs).

6298

As perspectivas construtivistas e histórico-crítica sobre o desenvolvimento da

escrita. Campinas: Autores Associados, 2015, p. 35-43.

MARX, K. O método da economia política. In: MARX, K. Manuscritos Econômico-

Filosóficos e Outros Textos Escolhidos. São Paulo : Abril Cultural. Os Pensadores.

1976, pp. 122-129.

_______. ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em

seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus

diferentes profetas (1845-1846), São Paulo : Boitempo, 2007

MAZZEU, F. J. C. Os “clichês” na prática de ensino: o que há por trás desse

problema? Tese (Doutorado) - UFSCar : São Carlos, 1999.

MIRANDA, M. G. de. Pedagogias psicológicas e reforma educacional. In: DUARTE, N

(Org.) Sobre o Construtivismo. 2º ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2005, p.

23-40.

VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo :

Martins Fontes, 2001.