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A CONSTRUÇÃO DE CONSENSO EM TORNO DE BENS CONSIDERADOS PATRIMÔNIOS MUNDIAIS: OS EXPERTS E SUAS
REDES DE INFLUÊNCIA NA UNESCO (1970-1980)
Gabriel Lima de Castro1 Fernando Cesar Sossai2
Resumo: este artigo tem por objetivo apresentar os resultados parciais do Projeto de pesquisa “Pelos bastidores da UNESCO: a construção de consenso em torno de bens considerados patrimônios mundiais (PCM)”. Essa investigação busca compreender os meandros do processo de formação de consenso que, no transcurso da década de 1970, levou a UNESCO a elaborar e difundir enunciados consensuais a respeito de 12 bens culturais que passou a considerar patrimônios mundiais. Sobretudo a partir de 1972, com a Convenção para a proteção do Patrimônio Mundial, a Organização passou a atuar na proteção de bens imaginados como patrimônio por, supostamente, evidenciarem aspectos excepcionais de produções culturais de sociedades do passado, assim como monumentos naturais que também possuíssem valor universal excepcional do ponto de vista estético, científico ou da conservação. O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, faremos uma caracterização do projeto apresentado e uma introdução ao que será tratado a seguir. Na segunda parte, iremos apresentar como o projeto se estrutura metodologicamente, atentando para as etapas já concluídas da pesquisa. Na terceira, discutiremos a trajetória da UNESCO e a emergência da noção de patrimônio mundial e, por consequência, das discussões empreendidas no âmbito da Convenção de 1972. Por fim, na quarta parte, faremos a socialização, por meio de um estudo de caso, dos resultados alcançados até o presente momento e uma breve introdução aos próximos passos da pesquisa. Palavras-chave: UNESCO; patrimônio mundial; patrimônio cultural; redes de influência;
Caracterização do projeto PCM
O projeto “Pelos bastidores da UNESCO: a construção de consenso em torno
de bens considerados patrimônios mundiais (PCM)” tem por objetivo compreender o
processo de elaboração e difusão internacional de enunciados consensuais a respeito
dos 12 primeiros bens escolhidos pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a partir da Convenção de 1972, para
1 Graduando em História pela Universidade da Região de Joinville (Univille) e bolsista do PCM ([email protected]). 2 Professor dos cursos de Design, Fotografia e História da Univille. Docente no Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade da Univille. Integrante do grupo de pesquisa Cidade, Cultura e Diferença da Univille (GPCCD). Coordenador do projeto PCM. Contato: [email protected].
integrar a lista do patrimônio mundial em 1978. A investigação empreendida busca
identificar as redes de influência atuantes no processo de decisão sobre o patrimônio
mundial na década de 1970, bem como os agentes participantes dessas redes, os
mecanismos utilizados por tais agentes e as disputas travadas entre eles no decorrer
do mesmo processo.
Metodologicamente, o projeto se estruturou em três frentes de trabalho. A
primeira, trata-se de uma pesquisa bibliográfica atinente aos conceitos e às noções
que estruturam tanto as discussões, quanto os fazeres teórico-metodológicos do
Projeto. A outras duas, consistem em pesquisas documentais empreendidas junto ao
site da UNESCO e ao acervo do UNESCO Archives, em Paris. Tal procedimento foi
realizado por meio de uma parceria entre os pesquisadores e a equipe responsável
pela gestão e tratamento técnico dos documentos históricos salvaguardados por essa
Organização.
Além disso, PCM resulta de reflexões realizadas pelos integrantes do Grupo de
Pesquisa Cidade, Cultura e Diferença da Univille (GPCCD). O GPCCD atua em torno
de duas linhas de pesquisa: “Patrimônio cultural, memória e cidade” e “patrimônio
cultural, educação e tecnologia”. Em linhas gerais, os trabalhos do Grupo estão
voltados para o estudo dos usos, apropriações e jogos de poder que envolvem o
patrimônio cultural na contemporaneidade.
Frente a esse escopo, este artigo constitui-se como um dos resultados do PCM
e se encontra dividido em três partes. Na primeira, apresentamos alguns dos aspectos
metodológicos utilizados no transcurso do projeto. Em seguida, promovemos uma
discussão sobre a relação histórica entre a UNESCO e a emergência da noção de
patrimônio mundial (1970-1978). Na terceira e última parte do texto, realizamos uma
espécie de estudo de caso de parte da documentação coletada no acervo do
UNESCO Archives, procurando desvelar redes de influência constituída por experts
que atuaram na Organização em favor da definição de alguns bens culturais como
patrimônio mundial.
Alguns aspectos teórico-metodológicos do PCM
Até o momento o projeto desenvolveu-se em três frentes de pesquisa. A
primeira, diz respeito a uma pesquisa bibliográfica atinente aos conceitos e
fundamentos do trabalho. As bases utilizadas para a pesquisa foram repositórios on-
line de textos acadêmicos, onde foi possível encontrar artigos científicos, dissertações
de mestrado, teses de doutorado e capítulos de livros.
Buscou-se fontes bibliográficas também em bibliotecas universitárias próximas,
às quais o grupo tem acesso físico. A bibliografia foi encontrada por meio das
ferramentas de pesquisa on-line das bibliotecas. As buscas foram empreendidas por
meio da utilização de palavras-chave que correspondiam aos objetivos do projeto.
Os textos encontrados foram distribuídos entre os pesquisadores envolvidos no
projeto, lidos e sistematizados por meio de uma ficha de leitura concebida previamente
(Figura 1). A ficha de leitura criada tem espaços destinados à legenda, a informações
do texto, como sua referência bibliográfica e os trechos pertinentes à pesquisa, à
pertinência do trecho à pesquisa e comentários feitos pelo leitor. No caso dos textos
em outro idioma, uma tradução da citação também aparece no campo destinado aos
trechos pertinentes. Todos os textos encontrados, assim como os fichamentos
produzidos a partir deles, foram reunidos e organizados em pastas digitais para a
consulta dos pesquisadores
Figura 1: exemplo de ficha de leitura
Fonte: os autores, 2018
Também foi pesquisado na Biblioteca da Univille o periódico oficial da UNESCO
chamado “Correio da UNESCO”. Foram selecionados os números publicados entre
os anos de 1973 e 1983. Um por um, os periódicos foram analisados e os números
que traziam informações pertinentes à pesquisa foram registrados em um caderno de
anotações. As informações registradas no caderno de anotações foram, mais tarde,
sistematizadas em um quadro (Figura 2) que apresenta, além de uma legenda,
campos destinados ao mês e ano da edição, ao título do artigo, ou da edição, relevante
e à pertinência daquele artigo, ou edição, para a pesquisa.
Figura 2: Sistematização de informações do periódico Correio da Unesco (1973-1983)
Fonte: acervo dos autores, 2018
As outras duas frentes foram pesquisas de caráter documental. Uma delas,
uma procura por documentos pertinentes à pesquisa no site da UNESCO
(unesco.org). A busca teve resultados menos volumosos que a referente às fontes
bibliográficas, mas igualmente relevantes. Numa ação mais direcionada, buscaram-
se fontes documentais sobre os processos de análise e inclusão dos primeiros sítios
na lista do patrimônio mundial. Foram recolhidos documentos atinentes a oito dos
doze bens pesquisados, mais especificamente os documentos referentes à análise
feita pelo órgão consultivo responsável pelo bem e o relatório final da inclusão do bem
em questão na lista.
A última frente se trata de uma pesquisa exploratório-documental desenvolvida
na sede do UNESCO Archives, em Paris, com o propósito de encontrar e recolher
fontes produzidas pelos agentes envolvidos diretamente no processo estudado.
A visita ao acervo ocorreu em julho deste ano e as fontes documentais
recolhidas nesse processo estão sendo sistematizadas de acordo com critérios
delimitados no PCM. A sistematização é feita pelos pesquisadores utilizando um
quadro descritivo, que em seu corpo apresenta o álbum digital no qual o documento
está armazenado, os anos de produção dos documentos encontrados, o link direto
para o álbum digital, o título do documento e sua pertinência à pesquisa.
Após a sistematização estar completa, os documentos selecionados serão
interrogados por meio de uma ficha de análise baseada em um exemplo previamente
construído. Com ela, pretende-se detalhar melhor as características do documento,
os agentes envolvidos em sua construção e circulação e suas relações com a
construção de consensos sobre o patrimônio mundial.
A UNESCO e a noção de patrimônio mundial
O ano de 1972 foi de extrema importância para o patrimônio cultural e natural
e os esforços para sua salvaguarda. Nesse ano, ocorreu na sede da UNESCO, em
Paris, a 17ª edição da Conferência Geral da organização, na qual foi firmado um
compromisso sob o título de “Convenção para a proteção do patrimônio mundial
cultural e natural”. A Convenção protege patrimônios culturais e naturais de “Valor
Universal Excepcional” ao redor do mundo e delimita obrigações referentes ao tema
para todos os países signatários (UNESCO, 1972) e foi, sem dúvida, um passo
significativo no sentido de preservar o patrimônio.
Ao que tudo indica, a emergência da noção de patrimônio mundial desdobra-
se da própria historicidade da UNESCO. Fundada no ano de 1945, a Organização
constitui-se durante a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas (ONU),
sediada em Londres. No contexto do pós-segunda guerra mundial, são concebidas
diversas organizações mundiais voltadas a, por meio da regulação das relações
políticas e econômicas estabelecidas entre os Estados nacionais com o findar do
conflito, reconstruir o mundo (SOSSAI, 2017). A UNESCO surge nesse contexto,
como um órgão da ONU na tentativa de acabar com os conflitos e reconstruir o mundo
material e moralmente (MESKELL, 2016 apud GUITTON, 2006). No ano seguinte ao
de sua idealização, a organização foi de fato fundada após a ratificação de seu Ato
Constitutivo pela Grécia, o último dos vinte países (Quadro 1) a entregar o dispositivo
de ratificação (UNESCO, 1985).
Quadro 1: Estados Nacionais que ratificaram o Ato Constitutivo da UNESCO em 1946
(em ordem alfabética)
África do Sul Grécia
Arábia Saudita Índia
Austrália Líbano
Brasil México
Canadá Nova Zelândia
China Noruega
Dinamarca Reino Unido
Egito República Dominicana
Estados Unidos Tchecoslováquia
França Turquia
Fonte: acervo dos autores, 2018.
A organização define como um de seus propósitos “[...] contribuir para a paz e
para a segurança, promovendo colaboração entre as nações através da educação, da
ciência e da cultura” (UNESCO, 2002, p. 2, grifos nossos). Ao analisar este propósito,
já se pode perceber o papel central da cultura e, por consequência, do patrimônio
cultural na busca pelos já citados objetivos da UNESCO. Ainda no mesmo propósito,
é possível perceber o caráter internacional das ações da organização, que,
pretendendo promover uma “colaboração entre as nações”, denota um ideal de
internacionalização das questões da cultura. Esse ideal fica ainda mais claro ao
analisarmos outro trecho do texto constitutivo da organização, que traz mais um
propósito: manter, expandir e difundir o conhecimento, onde se faz nítida a
preocupação da UNESCO com o patrimônio no âmbito mundial já no ato de sua
fundação, demonstrada pelo esforço na conservação e proteção de monumentos e
pela proposta de recomendações de convenções internacionais que sejam
necessárias:
(c) Manter, expandir e difundir o conhecimento: Garantindo a conservação e a proteção do legado mundial de livros, obras de arte e monumentos de história e de ciência, recomendando as convenções internacionais necessárias às nações envolvidas; Estimulando a cooperação entre as nações em todos os ramos de atividade intelectual, incluindo o intercâmbio internacional de pessoas ativas nos campos da educação, da ciência e da cultura [...] (UNESCO, 2002, p. 3, grifos nossos).
Dessa forma, faz-se clara a posição da UNESCO, junto à ONU, como uma das
organizações mediadoras de um projeto de paz e colaboração mundial. No caso da
UNESCO, o proposto é, entre outras coisas, um ideal de internacionalização das
questões culturais, no qual estão inseridas também as políticas sobre patrimônio
cultural e, mais tarde, patrimônio mundial.
Antes mesmo da elaboração da Convenção, já existiam políticas sobre o
patrimônio que tiveram a participação da UNESCO no seu desenvolvimento e que,
portanto, traziam consigo um ideal internacional de patrimônio. Dentre elas podemos
citar a Convenção de Haia, concebida em 1954, que versa sobre a preservação do
patrimônio cultural em casos de conflito armado e em seu texto considera “que a
conservação do patrimônio cultural tem uma grande importância para todos os povos
do mundo e que convém seja dispensada a esse patrimônio uma proteção
internacional” (BRASIL, 1958). Além da grande mobilização em torno do complexo
arqueológico de Abu Simbel, que é, segundo a UNESCO (2015, tradução nossa), “[...]
a campanha que revolucionou a abordagem internacional para salvaguardar o
patrimônio”.
Porém, a “Convenção para a proteção do patrimônio mundial cultural e natural”
de 1972 é relevante, pois pela primeira vez delimitaram-se conceitos de patrimônio
que abrangessem tanto o patrimônio cultural, quanto o patrimônio natural (BO, 2003).
E, principalmente, esse documento surgiu como o ponto culminante do projeto de
internacionalização empreendido pela UNESCO em relação à cultura, de modo que
sustenta, diferente das convenções anteriores atinentes ao patrimônio, uma visão de
patrimônio comum e importante a toda humanidade, determinando “[...] que a
degradação ou o desaparecimento de um bem cultural e natural acarreta o
empobrecimento irreversível do patrimônio de todos os povos do mundo” e que “[...]
cabe à coletividade internacional participar da proteção do patrimônio cultural e natural
de valor universal excepcional...” (UNESCO, 1972, p. 1 e 2). O texto da Convenção
também propõe um plano de identificação e preservação de patrimônios culturais e
naturais de todo o planeta, bem como uma ação conjunta e colaborativa dos Estados-
partes assinantes da convenção na busca por esse objetivo. (UNESCO, 1972)
A Convenção entrou em vigor em 1976, quando foi ratificada por vinte países
e, dois anos mais tarde, foram escolhidos os primeiros doze bens considerados
patrimônios mundiais, oito deles de caráter cultural e quatro de caráter natural.
O documento final da Convenção de 1972 traz em seu corpo a definição do
conceito de patrimônio cultural:
- Os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, - Os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas, que, por sua arquitetura, unidade ou integração à paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, - Os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas, que incluem os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. (UNESCO, 1972, p. 2 e 3)
E, também, a definição de patrimônio natural:
- Os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por conjuntos de formações de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico; - As formações geológicas e fisiográficas, e as zonas estritamente delimitadas que constituam habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico; - Os sítios naturais ou as áreas naturais estritamente delimitadas detentoras de valor universal excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou da beleza natural. (UNESCO, 1972, p. 3)
Presente em todas as definições de patrimônio apresentadas, a expressão
valor universal excepcional (VUE) se mostra importante na construção do documento.
Porém, existe um problema na definição deste conceito, uma vez que na Convenção
não se apresenta qualquer delimitação do que seria um valor universal excepcional.
A discussão sobre o tema extrapola a dimensão teórica do dispositivo, de modo que
na dimensão prática é impossível definir algo de valor universal, pois, como escreve
Leere (1996, p. 228, tradução nossa), “levando em conta todo o espectro da cultura
humana, é difícil conceber qualquer propriedade cultural como possuidora da
verdadeira universalidade, como está implícito nessa definição [...]”.
Titchen (1996), no entanto, observa que essa definição vaga de VUE foi
deliberadamente escolhida pelos experts envolvidos na construção da Convenção e
que a intenção desse movimento seria deixar a cargo de alguns critérios oficiais, que
mais tarde seriam estabelecidos, a tarefa de definir o que seria um valor universal
excepcional e, por consequência, o que seria de valor universal excepcional.
Os critérios foram estabelecidos no ano de 1977 e publicados nas “Diretrizes
operacionais para a implantação da Convenção do patrimônio mundial”, documento
direcionado ao Comitê de Patrimônio Mundial (CPM), responsável pela escolha dos
bens que integrariam a primeira lista do patrimônio mundial.
A produção dos critérios, assim como do conceito de VUE, não é de
responsabilidade apenas da UNESCO, outros agentes também têm parte no
processo. Os que se destacam são as agências que se tornaram peças chave na
elaboração e aplicação do conceito de patrimônio mundial e órgãos consultivos da
UNESCO na política de patrimônio mundial: o Conselho Internacional de Monumentos
e Sítios (ICOMOS) e a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).
Os órgãos consultivos são exemplos da influência de experts coletivos na construção
de consensos sobre o patrimônio mundial de modo que, por vezes, influenciam a
criação de critérios usados na escolha da lista pelo CPM (TITCHEN, 1996).
Segundo Bertacchini e Saccone (2012, p. 332):
O ICOMOS e a IUCN são ONGs internacionais formadas por uma rede de experts que, dentro da organização, pertencem a diferentes filiais nacionais (se estabelecidas) e a comitês internacionais dedicados a tipos específicos de patrimônio.
Estudos quantitativos (PRESSOUYRE, 1996; VAN DER AA, 2005), retomados
por Bertacchini e Saccone (2012), demonstram que em grande parte dos casos o CPM
segue as recomendações advindas dos órgãos consultivos no processo de tomada de
decisão acerca da inclusão de bens na lista do patrimônio mundial. Esse cenário
denota forte influência dos experts no objeto estudado. Doravante, é a esse assunto
que dispensamos atenção por meio de um estudo documental de fontes coletadas
junto ao acervo do UNESCO Archives.
Um estudo de caso sobre o papel dos experts na patrimonialização de bens
culturais pela UNESCO
Durante a análise e sistematização das fontes documentais coletadas,
percebeu-se, além da presença de uma rede de influência política, atuações intensas
de uma poderosa rede de influência intelectual no processo de patrimonialização de
bens culturais por parte da UNESCO.
Na investigação sobre redes de influência, partimos da percepção de que o
conceito de rede:
[...] remete ao “conjunto de vínculos institucionais e informais” construídos entre “atores interdependentes” (governos, organizações, empresas, ONGs, membros da sociedade civil) que, em suas interações, “estruturam-se em torno de crenças e interesses compartilhados”, negociando a “formulação e o desenvolvimento” de políticas consideradas estratégicas ao seu posicionamento em determinado segmento (governamental, econômico, educacional, cultural etc.). (SOSSAI, 2017, apud RHODES, 2006, p. 426 e 429).
Portanto, nossa investigação parte da hipótese de que existem redes
estabelecidas dentro do processo de escolha dos patrimônios mundiais dirigido pela
UNESCO e que essas redes atuam com considerável influência nesse processo. Para
elucidar um pouco de nossos avanços no sentido de desvelar essas redes, trazemos
um estudo de caso de um dos documentos coletados na pesquisa feita à sede do
UNESCO Archives.
O documento estudado tem o título de “Estudo comparativo de nomeações e
critérios para o patrimônio mundial cultural” (PARENT, 1979, tradução nossa) (Figura
3), que data de 20 de setembro de 1979 e foi produzido por Michel Parent, na época
vice-presidente do CPM. Michel Parent foi inspetor do Serviço Principal de Inspeção
dos Monumentos e de Inspeção de Sítios na França e, mais tarde, seria presidente
do CPM e do ICOMOS (LEAL, 2008).
Figura 3: “Estudo comparativo de nomeações e critérios para o patrimônio mundial cultural”
Fonte: coletado em UNESCO Archives, em julho 2018.
Esse documento foi encontrado numa pasta chamada Etudes des Critères,
junto a outros nove documentos relacionados ao estudo, por parte de experts, de
critérios culturais produzidos entre 1976 e 1984 (Figura 4). Existem duas versões
desse documento escolhido (francês e inglês). Selecionamos a versão em inglês para
a investigação por ser o idioma que possuímos um conhecimento mais amplo.
Figura 4: Lista de documentos na pasta Etudes des Critères
Fonte: coletado em UNESCO Archives, em julho 2018
Segundo Parent, o birô do Comitê do Patrimônio Mundial o convidou a produzir
um relatório para “‘definir mais precisamente’ os critérios utilizados para escolher os
bens que deveriam integrar a lista do patrimônio mundial”, com a intenção de associá-
lo a outro documento construído pelo ICOMOS e pela IUCN, que versaria sobre “‘os
procedimentos usados por essas organizações na avaliação de nomeações’”. Os
documentos seriam usados na construção de um balanço acerca dos processos de
nomeação que foram aceitos e serão considerados, bem como os critérios utilizados
nas decisões até o momento, buscando assegurar que a lista fosse construída de
maneira mais consistente, por conta de “[...] todas as discussões que sua compilação
já provocou” (PARENT, 1979, p. 1, tradução nossa).
Parent (1979), continua o documento fazendo uma análise da carga de
subjetividade que pesa na escolha de um patrimônio mundial cultural, por conta das
referências utilizadas para tal: aspectos artísticos, históricos e científicos. Isso
dificultaria o alcance de uma noção de universalidade. Desse modo, era necessário
analisar os métodos de abordagem utilizados e procurar por propostas possíveis para
resolver o problema da ambiguidade e da inconsistência.
O autor continua propondo um caminho para se tentar chegar ao objetivo
proposto: atentar para a tipologia apresentada na Convenção de 1972 para definir um
patrimônio cultural. Os tipos de bens que podem ser selecionados como patrimônios
mundiais culturais são monumentos, grupos de construções e sítios e estes ainda se
subdividem em mais categorias (PARENT, 1979). Porém, mesmo com essa tipologia,
o trabalho de criar uma lista consistente é difícil, ainda por conta do problema da
ambiguidade, de modo que Parent (1979, p. 2) afirma que “alguns exemplos são
suficientes, entretanto, para provar que muitos bens pertencem simultaneamente a
diversas categorias”
Após uma análise de vários exemplos de propostas e inclusões de bens
culturais na lista do patrimônio mundial, Parent propõe algumas diretrizes para a
solução desse problema. A solução estaria no próprio texto da Convenção.
Primeiramente, para Parent (1979, p. 23, tradução nossa), “o texto da
Convenção é soberano” e, para facilitar o trabalho dos órgãos consultivos e do CPM
na implementação da Convenção, os Estados-parte deveriam, no ato da inscrição da
proposta, deixar clara a sua intepretação de quais tipo e categoria abarcam tal bem
cultural. Para isso, o CPM deveria definir previamente a classificação “[...] sem fazer
referência a qualquer texto senão a Convenção”.
Porém, segundo o autor, a ambiguidade aparece também no texto da
Convenção, por conta de problemas de tradução entre o francês e o inglês. Para
Parent (1979, p. 23, tradução nossa), a resposta para esse problema seria encontrada
retornando ao trabalho dos experts, nos “[...] relatórios e notas de acompanhamento
na reunião de elaboração [do texto da Convenção] que reuniu aproximadamente 40
especialistas durante um mês em 1972”.
Finalmente, Parent (1979) declara que o trabalho a ser feito deve ser um
esclarecimento da tipologia que está presente na Convenção, atentando
principalmente para os bens que se encaixam em mais de uma classificação, e uma
movimentação por parte do CPM no sentido de solicitar aos Estados-parte que estes
utilizem esta tipologia e expressem a ambivalência do bem que se encaixa em mais
de uma categoria. Isso tornaria possível a publicação de listas de categorias, o que
facilitaria a comparação feita pelos experts na análise da documentação de
nomeações futuras.
Dessa forma, faz-se presente em diversos pontos do documento a rede de
influência intelectual que aqui pretendemos apontar. Destarte já se percebe a força da
opinião dos experts na compilação da lista, uma vez que, além de já terem construído
os critérios e fazerem avaliações das nomeações, ainda são, na figura de Michel
Parent, convidados a avaliar o seu próprio trabalho.
Além disso, as diversas análises de conceitos relacionados ao patrimônio
mundial e propostas para melhorias do processo de nomeação de bens culturais
denotam a importante posição de Michel Parent na manutenção das diretrizes para a
aplicação da Convenção.
Portanto, a posição dos experts na construção e difusão de consensos
relacionados ao patrimônio mundial é de considerável influência para os caminhos
seguidos na aplicação da política de patrimônio mundial empreendida pela UNESCO.
Considerações Finais
Desde sua concepção, a UNESCO busca construir uma política internacional
para o patrimônio. As ações empreendidas pela Organização nesse âmbito
perpassam sua história se apresentando em seu Ato Constitutivo e se materializando
em convenções internacionais que versam sobre a preservação do patrimônio e em
ações diretas de defesa de bens culturais e naturais. Essa política culmina em 1972
na elaboração da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e
Natural. O processo de construção dessa política não se dá sem a participação de
especialistas no tema, experts em patrimônio que, representando outros órgãos, ou
mesmo atuando internamente na UNESCO, ajudam a elaborar e difundir conceitos e
consensos utilizados na construção de uma noção de patrimônio comum a toda a
humanidade. A atuação dos experts no tema tem pesada influência na compilação da
lista resultante da Convenção, uma vez que têm participação na criação de critérios
oficiais utilizados na aplicação desta última e nas alterações que ocorrem nas
diretrizes operacionais para esta aplicação.
O PCM já consegue esboçar resultados contundentes na busca pelo seu
objetivo: compreender o processo de elaboração e difusão de consenso no âmbito da
escolha dos doze primeiros bens como patrimônios mundiais. Alguns desses
resultados estão presentes neste artigo. A metodologia e a sistematização de
informações levantadas pelo trabalho em pesquisa são algumas das razões para esse
avanço considerável nos objetivos do projeto. Os próximos passos no avançar desta
pesquisa sugerem a continuação da sistematização e interrogação das fontes
documentais recolhidas, bem como um aprofundamento nas discussões relacionadas
ao patrimônio mundial e na própria investigação da documentação coletada.
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