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A CONSTRUÇÃO DE CONSENSO EM TORNO DE BENS CONSIDERADOS PATRIMÔNIOS MUNDIAIS: OS EXPERTS E SUAS REDES DE INFLUÊNCIA NA UNESCO (1970-1980) Gabriel Lima de Castro 1 Fernando Cesar Sossai 2 Resumo: este artigo tem por objetivo apresentar os resultados parciais do Projeto de pesquisa “Pelos bastidores da UNESCO: a construção de consenso em torno de bens considerados patrimônios mundiais (PCM)”. Essa investigação busca compreender os meandros do processo de formação de consenso que, no transcurso da década de 1970, levou a UNESCO a elaborar e difundir enunciados consensuais a respeito de 12 bens culturais que passou a considerar patrimônios mundiais. Sobretudo a partir de 1972, com a Convenção para a proteção do Patrimônio Mundial, a Organização passou a atuar na proteção de bens imaginados como patrimônio por, supostamente, evidenciarem aspectos excepcionais de produções culturais de sociedades do passado, assim como monumentos naturais que também possuíssem valor universal excepcional do ponto de vista estético, científico ou da conservação. O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, faremos uma caracterização do projeto apresentado e uma introdução ao que será tratado a seguir. Na segunda parte, iremos apresentar como o projeto se estrutura metodologicamente, atentando para as etapas já concluídas da pesquisa. Na terceira, discutiremos a trajetória da UNESCO e a emergência da noção de patrimônio mundial e, por consequência, das discussões empreendidas no âmbito da Convenção de 1972. Por fim, na quarta parte, faremos a socialização, por meio de um estudo de caso, dos resultados alcançados até o presente momento e uma breve introdução aos próximos passos da pesquisa. Palavras-chave: UNESCO; patrimônio mundial; patrimônio cultural; redes de influência; Caracterização do projeto PCM O projeto “Pelos bastidores da UNESCO: a construção de consenso em torno de bens considerados patrimônios mundiais (PCM)tem por objetivo compreender o processo de elaboração e difusão internacional de enunciados consensuais a respeito dos 12 primeiros bens escolhidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a partir da Convenção de 1972, para 1 Graduando em História pela Universidade da Região de Joinville (Univille) e bolsista do PCM ([email protected]). 2 Professor dos cursos de Design, Fotografia e História da Univille. Docente no Programa de Pós- graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade da Univille. Integrante do grupo de pesquisa Cidade, Cultura e Diferença da Univille (GPCCD). Coordenador do projeto PCM. Contato: [email protected].

A CONSTRUÇÃO DE CONSENSO EM TORNO DE BENS …...O projeto Pelos bastidores da UNESCO: a construção de consenso em torno de bens considerados patrimônios mundiais (PCM)´ tem por

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A CONSTRUÇÃO DE CONSENSO EM TORNO DE BENS CONSIDERADOS PATRIMÔNIOS MUNDIAIS: OS EXPERTS E SUAS

REDES DE INFLUÊNCIA NA UNESCO (1970-1980)

Gabriel Lima de Castro1 Fernando Cesar Sossai2

Resumo: este artigo tem por objetivo apresentar os resultados parciais do Projeto de pesquisa “Pelos bastidores da UNESCO: a construção de consenso em torno de bens considerados patrimônios mundiais (PCM)”. Essa investigação busca compreender os meandros do processo de formação de consenso que, no transcurso da década de 1970, levou a UNESCO a elaborar e difundir enunciados consensuais a respeito de 12 bens culturais que passou a considerar patrimônios mundiais. Sobretudo a partir de 1972, com a Convenção para a proteção do Patrimônio Mundial, a Organização passou a atuar na proteção de bens imaginados como patrimônio por, supostamente, evidenciarem aspectos excepcionais de produções culturais de sociedades do passado, assim como monumentos naturais que também possuíssem valor universal excepcional do ponto de vista estético, científico ou da conservação. O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, faremos uma caracterização do projeto apresentado e uma introdução ao que será tratado a seguir. Na segunda parte, iremos apresentar como o projeto se estrutura metodologicamente, atentando para as etapas já concluídas da pesquisa. Na terceira, discutiremos a trajetória da UNESCO e a emergência da noção de patrimônio mundial e, por consequência, das discussões empreendidas no âmbito da Convenção de 1972. Por fim, na quarta parte, faremos a socialização, por meio de um estudo de caso, dos resultados alcançados até o presente momento e uma breve introdução aos próximos passos da pesquisa. Palavras-chave: UNESCO; patrimônio mundial; patrimônio cultural; redes de influência;

Caracterização do projeto PCM

O projeto “Pelos bastidores da UNESCO: a construção de consenso em torno

de bens considerados patrimônios mundiais (PCM)” tem por objetivo compreender o

processo de elaboração e difusão internacional de enunciados consensuais a respeito

dos 12 primeiros bens escolhidos pela Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a partir da Convenção de 1972, para

1 Graduando em História pela Universidade da Região de Joinville (Univille) e bolsista do PCM ([email protected]). 2 Professor dos cursos de Design, Fotografia e História da Univille. Docente no Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade da Univille. Integrante do grupo de pesquisa Cidade, Cultura e Diferença da Univille (GPCCD). Coordenador do projeto PCM. Contato: [email protected].

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integrar a lista do patrimônio mundial em 1978. A investigação empreendida busca

identificar as redes de influência atuantes no processo de decisão sobre o patrimônio

mundial na década de 1970, bem como os agentes participantes dessas redes, os

mecanismos utilizados por tais agentes e as disputas travadas entre eles no decorrer

do mesmo processo.

Metodologicamente, o projeto se estruturou em três frentes de trabalho. A

primeira, trata-se de uma pesquisa bibliográfica atinente aos conceitos e às noções

que estruturam tanto as discussões, quanto os fazeres teórico-metodológicos do

Projeto. A outras duas, consistem em pesquisas documentais empreendidas junto ao

site da UNESCO e ao acervo do UNESCO Archives, em Paris. Tal procedimento foi

realizado por meio de uma parceria entre os pesquisadores e a equipe responsável

pela gestão e tratamento técnico dos documentos históricos salvaguardados por essa

Organização.

Além disso, PCM resulta de reflexões realizadas pelos integrantes do Grupo de

Pesquisa Cidade, Cultura e Diferença da Univille (GPCCD). O GPCCD atua em torno

de duas linhas de pesquisa: “Patrimônio cultural, memória e cidade” e “patrimônio

cultural, educação e tecnologia”. Em linhas gerais, os trabalhos do Grupo estão

voltados para o estudo dos usos, apropriações e jogos de poder que envolvem o

patrimônio cultural na contemporaneidade.

Frente a esse escopo, este artigo constitui-se como um dos resultados do PCM

e se encontra dividido em três partes. Na primeira, apresentamos alguns dos aspectos

metodológicos utilizados no transcurso do projeto. Em seguida, promovemos uma

discussão sobre a relação histórica entre a UNESCO e a emergência da noção de

patrimônio mundial (1970-1978). Na terceira e última parte do texto, realizamos uma

espécie de estudo de caso de parte da documentação coletada no acervo do

UNESCO Archives, procurando desvelar redes de influência constituída por experts

que atuaram na Organização em favor da definição de alguns bens culturais como

patrimônio mundial.

Alguns aspectos teórico-metodológicos do PCM

Até o momento o projeto desenvolveu-se em três frentes de pesquisa. A

primeira, diz respeito a uma pesquisa bibliográfica atinente aos conceitos e

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fundamentos do trabalho. As bases utilizadas para a pesquisa foram repositórios on-

line de textos acadêmicos, onde foi possível encontrar artigos científicos, dissertações

de mestrado, teses de doutorado e capítulos de livros.

Buscou-se fontes bibliográficas também em bibliotecas universitárias próximas,

às quais o grupo tem acesso físico. A bibliografia foi encontrada por meio das

ferramentas de pesquisa on-line das bibliotecas. As buscas foram empreendidas por

meio da utilização de palavras-chave que correspondiam aos objetivos do projeto.

Os textos encontrados foram distribuídos entre os pesquisadores envolvidos no

projeto, lidos e sistematizados por meio de uma ficha de leitura concebida previamente

(Figura 1). A ficha de leitura criada tem espaços destinados à legenda, a informações

do texto, como sua referência bibliográfica e os trechos pertinentes à pesquisa, à

pertinência do trecho à pesquisa e comentários feitos pelo leitor. No caso dos textos

em outro idioma, uma tradução da citação também aparece no campo destinado aos

trechos pertinentes. Todos os textos encontrados, assim como os fichamentos

produzidos a partir deles, foram reunidos e organizados em pastas digitais para a

consulta dos pesquisadores

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Figura 1: exemplo de ficha de leitura

Fonte: os autores, 2018

Também foi pesquisado na Biblioteca da Univille o periódico oficial da UNESCO

chamado “Correio da UNESCO”. Foram selecionados os números publicados entre

os anos de 1973 e 1983. Um por um, os periódicos foram analisados e os números

que traziam informações pertinentes à pesquisa foram registrados em um caderno de

anotações. As informações registradas no caderno de anotações foram, mais tarde,

sistematizadas em um quadro (Figura 2) que apresenta, além de uma legenda,

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campos destinados ao mês e ano da edição, ao título do artigo, ou da edição, relevante

e à pertinência daquele artigo, ou edição, para a pesquisa.

Figura 2: Sistematização de informações do periódico Correio da Unesco (1973-1983)

Fonte: acervo dos autores, 2018

As outras duas frentes foram pesquisas de caráter documental. Uma delas,

uma procura por documentos pertinentes à pesquisa no site da UNESCO

(unesco.org). A busca teve resultados menos volumosos que a referente às fontes

bibliográficas, mas igualmente relevantes. Numa ação mais direcionada, buscaram-

se fontes documentais sobre os processos de análise e inclusão dos primeiros sítios

na lista do patrimônio mundial. Foram recolhidos documentos atinentes a oito dos

doze bens pesquisados, mais especificamente os documentos referentes à análise

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feita pelo órgão consultivo responsável pelo bem e o relatório final da inclusão do bem

em questão na lista.

A última frente se trata de uma pesquisa exploratório-documental desenvolvida

na sede do UNESCO Archives, em Paris, com o propósito de encontrar e recolher

fontes produzidas pelos agentes envolvidos diretamente no processo estudado.

A visita ao acervo ocorreu em julho deste ano e as fontes documentais

recolhidas nesse processo estão sendo sistematizadas de acordo com critérios

delimitados no PCM. A sistematização é feita pelos pesquisadores utilizando um

quadro descritivo, que em seu corpo apresenta o álbum digital no qual o documento

está armazenado, os anos de produção dos documentos encontrados, o link direto

para o álbum digital, o título do documento e sua pertinência à pesquisa.

Após a sistematização estar completa, os documentos selecionados serão

interrogados por meio de uma ficha de análise baseada em um exemplo previamente

construído. Com ela, pretende-se detalhar melhor as características do documento,

os agentes envolvidos em sua construção e circulação e suas relações com a

construção de consensos sobre o patrimônio mundial.

A UNESCO e a noção de patrimônio mundial

O ano de 1972 foi de extrema importância para o patrimônio cultural e natural

e os esforços para sua salvaguarda. Nesse ano, ocorreu na sede da UNESCO, em

Paris, a 17ª edição da Conferência Geral da organização, na qual foi firmado um

compromisso sob o título de “Convenção para a proteção do patrimônio mundial

cultural e natural”. A Convenção protege patrimônios culturais e naturais de “Valor

Universal Excepcional” ao redor do mundo e delimita obrigações referentes ao tema

para todos os países signatários (UNESCO, 1972) e foi, sem dúvida, um passo

significativo no sentido de preservar o patrimônio.

Ao que tudo indica, a emergência da noção de patrimônio mundial desdobra-

se da própria historicidade da UNESCO. Fundada no ano de 1945, a Organização

constitui-se durante a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas (ONU),

sediada em Londres. No contexto do pós-segunda guerra mundial, são concebidas

diversas organizações mundiais voltadas a, por meio da regulação das relações

políticas e econômicas estabelecidas entre os Estados nacionais com o findar do

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conflito, reconstruir o mundo (SOSSAI, 2017). A UNESCO surge nesse contexto,

como um órgão da ONU na tentativa de acabar com os conflitos e reconstruir o mundo

material e moralmente (MESKELL, 2016 apud GUITTON, 2006). No ano seguinte ao

de sua idealização, a organização foi de fato fundada após a ratificação de seu Ato

Constitutivo pela Grécia, o último dos vinte países (Quadro 1) a entregar o dispositivo

de ratificação (UNESCO, 1985).

Quadro 1: Estados Nacionais que ratificaram o Ato Constitutivo da UNESCO em 1946

(em ordem alfabética)

África do Sul Grécia

Arábia Saudita Índia

Austrália Líbano

Brasil México

Canadá Nova Zelândia

China Noruega

Dinamarca Reino Unido

Egito República Dominicana

Estados Unidos Tchecoslováquia

França Turquia

Fonte: acervo dos autores, 2018.

A organização define como um de seus propósitos “[...] contribuir para a paz e

para a segurança, promovendo colaboração entre as nações através da educação, da

ciência e da cultura” (UNESCO, 2002, p. 2, grifos nossos). Ao analisar este propósito,

já se pode perceber o papel central da cultura e, por consequência, do patrimônio

cultural na busca pelos já citados objetivos da UNESCO. Ainda no mesmo propósito,

é possível perceber o caráter internacional das ações da organização, que,

pretendendo promover uma “colaboração entre as nações”, denota um ideal de

internacionalização das questões da cultura. Esse ideal fica ainda mais claro ao

analisarmos outro trecho do texto constitutivo da organização, que traz mais um

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propósito: manter, expandir e difundir o conhecimento, onde se faz nítida a

preocupação da UNESCO com o patrimônio no âmbito mundial já no ato de sua

fundação, demonstrada pelo esforço na conservação e proteção de monumentos e

pela proposta de recomendações de convenções internacionais que sejam

necessárias:

(c) Manter, expandir e difundir o conhecimento: Garantindo a conservação e a proteção do legado mundial de livros, obras de arte e monumentos de história e de ciência, recomendando as convenções internacionais necessárias às nações envolvidas; Estimulando a cooperação entre as nações em todos os ramos de atividade intelectual, incluindo o intercâmbio internacional de pessoas ativas nos campos da educação, da ciência e da cultura [...] (UNESCO, 2002, p. 3, grifos nossos).

Dessa forma, faz-se clara a posição da UNESCO, junto à ONU, como uma das

organizações mediadoras de um projeto de paz e colaboração mundial. No caso da

UNESCO, o proposto é, entre outras coisas, um ideal de internacionalização das

questões culturais, no qual estão inseridas também as políticas sobre patrimônio

cultural e, mais tarde, patrimônio mundial.

Antes mesmo da elaboração da Convenção, já existiam políticas sobre o

patrimônio que tiveram a participação da UNESCO no seu desenvolvimento e que,

portanto, traziam consigo um ideal internacional de patrimônio. Dentre elas podemos

citar a Convenção de Haia, concebida em 1954, que versa sobre a preservação do

patrimônio cultural em casos de conflito armado e em seu texto considera “que a

conservação do patrimônio cultural tem uma grande importância para todos os povos

do mundo e que convém seja dispensada a esse patrimônio uma proteção

internacional” (BRASIL, 1958). Além da grande mobilização em torno do complexo

arqueológico de Abu Simbel, que é, segundo a UNESCO (2015, tradução nossa), “[...]

a campanha que revolucionou a abordagem internacional para salvaguardar o

patrimônio”.

Porém, a “Convenção para a proteção do patrimônio mundial cultural e natural”

de 1972 é relevante, pois pela primeira vez delimitaram-se conceitos de patrimônio

que abrangessem tanto o patrimônio cultural, quanto o patrimônio natural (BO, 2003).

E, principalmente, esse documento surgiu como o ponto culminante do projeto de

internacionalização empreendido pela UNESCO em relação à cultura, de modo que

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sustenta, diferente das convenções anteriores atinentes ao patrimônio, uma visão de

patrimônio comum e importante a toda humanidade, determinando “[...] que a

degradação ou o desaparecimento de um bem cultural e natural acarreta o

empobrecimento irreversível do patrimônio de todos os povos do mundo” e que “[...]

cabe à coletividade internacional participar da proteção do patrimônio cultural e natural

de valor universal excepcional...” (UNESCO, 1972, p. 1 e 2). O texto da Convenção

também propõe um plano de identificação e preservação de patrimônios culturais e

naturais de todo o planeta, bem como uma ação conjunta e colaborativa dos Estados-

partes assinantes da convenção na busca por esse objetivo. (UNESCO, 1972)

A Convenção entrou em vigor em 1976, quando foi ratificada por vinte países

e, dois anos mais tarde, foram escolhidos os primeiros doze bens considerados

patrimônios mundiais, oito deles de caráter cultural e quatro de caráter natural.

O documento final da Convenção de 1972 traz em seu corpo a definição do

conceito de patrimônio cultural:

- Os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, - Os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas, que, por sua arquitetura, unidade ou integração à paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, - Os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas, que incluem os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. (UNESCO, 1972, p. 2 e 3)

E, também, a definição de patrimônio natural:

- Os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por conjuntos de formações de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico; - As formações geológicas e fisiográficas, e as zonas estritamente delimitadas que constituam habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico; - Os sítios naturais ou as áreas naturais estritamente delimitadas detentoras de valor universal excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou da beleza natural. (UNESCO, 1972, p. 3)

Presente em todas as definições de patrimônio apresentadas, a expressão

valor universal excepcional (VUE) se mostra importante na construção do documento.

Porém, existe um problema na definição deste conceito, uma vez que na Convenção

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não se apresenta qualquer delimitação do que seria um valor universal excepcional.

A discussão sobre o tema extrapola a dimensão teórica do dispositivo, de modo que

na dimensão prática é impossível definir algo de valor universal, pois, como escreve

Leere (1996, p. 228, tradução nossa), “levando em conta todo o espectro da cultura

humana, é difícil conceber qualquer propriedade cultural como possuidora da

verdadeira universalidade, como está implícito nessa definição [...]”.

Titchen (1996), no entanto, observa que essa definição vaga de VUE foi

deliberadamente escolhida pelos experts envolvidos na construção da Convenção e

que a intenção desse movimento seria deixar a cargo de alguns critérios oficiais, que

mais tarde seriam estabelecidos, a tarefa de definir o que seria um valor universal

excepcional e, por consequência, o que seria de valor universal excepcional.

Os critérios foram estabelecidos no ano de 1977 e publicados nas “Diretrizes

operacionais para a implantação da Convenção do patrimônio mundial”, documento

direcionado ao Comitê de Patrimônio Mundial (CPM), responsável pela escolha dos

bens que integrariam a primeira lista do patrimônio mundial.

A produção dos critérios, assim como do conceito de VUE, não é de

responsabilidade apenas da UNESCO, outros agentes também têm parte no

processo. Os que se destacam são as agências que se tornaram peças chave na

elaboração e aplicação do conceito de patrimônio mundial e órgãos consultivos da

UNESCO na política de patrimônio mundial: o Conselho Internacional de Monumentos

e Sítios (ICOMOS) e a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).

Os órgãos consultivos são exemplos da influência de experts coletivos na construção

de consensos sobre o patrimônio mundial de modo que, por vezes, influenciam a

criação de critérios usados na escolha da lista pelo CPM (TITCHEN, 1996).

Segundo Bertacchini e Saccone (2012, p. 332):

O ICOMOS e a IUCN são ONGs internacionais formadas por uma rede de experts que, dentro da organização, pertencem a diferentes filiais nacionais (se estabelecidas) e a comitês internacionais dedicados a tipos específicos de patrimônio.

Estudos quantitativos (PRESSOUYRE, 1996; VAN DER AA, 2005), retomados

por Bertacchini e Saccone (2012), demonstram que em grande parte dos casos o CPM

segue as recomendações advindas dos órgãos consultivos no processo de tomada de

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decisão acerca da inclusão de bens na lista do patrimônio mundial. Esse cenário

denota forte influência dos experts no objeto estudado. Doravante, é a esse assunto

que dispensamos atenção por meio de um estudo documental de fontes coletadas

junto ao acervo do UNESCO Archives.

Um estudo de caso sobre o papel dos experts na patrimonialização de bens

culturais pela UNESCO

Durante a análise e sistematização das fontes documentais coletadas,

percebeu-se, além da presença de uma rede de influência política, atuações intensas

de uma poderosa rede de influência intelectual no processo de patrimonialização de

bens culturais por parte da UNESCO.

Na investigação sobre redes de influência, partimos da percepção de que o

conceito de rede:

[...] remete ao “conjunto de vínculos institucionais e informais” construídos entre “atores interdependentes” (governos, organizações, empresas, ONGs, membros da sociedade civil) que, em suas interações, “estruturam-se em torno de crenças e interesses compartilhados”, negociando a “formulação e o desenvolvimento” de políticas consideradas estratégicas ao seu posicionamento em determinado segmento (governamental, econômico, educacional, cultural etc.). (SOSSAI, 2017, apud RHODES, 2006, p. 426 e 429).

Portanto, nossa investigação parte da hipótese de que existem redes

estabelecidas dentro do processo de escolha dos patrimônios mundiais dirigido pela

UNESCO e que essas redes atuam com considerável influência nesse processo. Para

elucidar um pouco de nossos avanços no sentido de desvelar essas redes, trazemos

um estudo de caso de um dos documentos coletados na pesquisa feita à sede do

UNESCO Archives.

O documento estudado tem o título de “Estudo comparativo de nomeações e

critérios para o patrimônio mundial cultural” (PARENT, 1979, tradução nossa) (Figura

3), que data de 20 de setembro de 1979 e foi produzido por Michel Parent, na época

vice-presidente do CPM. Michel Parent foi inspetor do Serviço Principal de Inspeção

dos Monumentos e de Inspeção de Sítios na França e, mais tarde, seria presidente

do CPM e do ICOMOS (LEAL, 2008).

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Figura 3: “Estudo comparativo de nomeações e critérios para o patrimônio mundial cultural”

Fonte: coletado em UNESCO Archives, em julho 2018.

Esse documento foi encontrado numa pasta chamada Etudes des Critères,

junto a outros nove documentos relacionados ao estudo, por parte de experts, de

critérios culturais produzidos entre 1976 e 1984 (Figura 4). Existem duas versões

desse documento escolhido (francês e inglês). Selecionamos a versão em inglês para

a investigação por ser o idioma que possuímos um conhecimento mais amplo.

Figura 4: Lista de documentos na pasta Etudes des Critères

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Fonte: coletado em UNESCO Archives, em julho 2018

Segundo Parent, o birô do Comitê do Patrimônio Mundial o convidou a produzir

um relatório para “‘definir mais precisamente’ os critérios utilizados para escolher os

bens que deveriam integrar a lista do patrimônio mundial”, com a intenção de associá-

lo a outro documento construído pelo ICOMOS e pela IUCN, que versaria sobre “‘os

procedimentos usados por essas organizações na avaliação de nomeações’”. Os

documentos seriam usados na construção de um balanço acerca dos processos de

nomeação que foram aceitos e serão considerados, bem como os critérios utilizados

nas decisões até o momento, buscando assegurar que a lista fosse construída de

maneira mais consistente, por conta de “[...] todas as discussões que sua compilação

já provocou” (PARENT, 1979, p. 1, tradução nossa).

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Parent (1979), continua o documento fazendo uma análise da carga de

subjetividade que pesa na escolha de um patrimônio mundial cultural, por conta das

referências utilizadas para tal: aspectos artísticos, históricos e científicos. Isso

dificultaria o alcance de uma noção de universalidade. Desse modo, era necessário

analisar os métodos de abordagem utilizados e procurar por propostas possíveis para

resolver o problema da ambiguidade e da inconsistência.

O autor continua propondo um caminho para se tentar chegar ao objetivo

proposto: atentar para a tipologia apresentada na Convenção de 1972 para definir um

patrimônio cultural. Os tipos de bens que podem ser selecionados como patrimônios

mundiais culturais são monumentos, grupos de construções e sítios e estes ainda se

subdividem em mais categorias (PARENT, 1979). Porém, mesmo com essa tipologia,

o trabalho de criar uma lista consistente é difícil, ainda por conta do problema da

ambiguidade, de modo que Parent (1979, p. 2) afirma que “alguns exemplos são

suficientes, entretanto, para provar que muitos bens pertencem simultaneamente a

diversas categorias”

Após uma análise de vários exemplos de propostas e inclusões de bens

culturais na lista do patrimônio mundial, Parent propõe algumas diretrizes para a

solução desse problema. A solução estaria no próprio texto da Convenção.

Primeiramente, para Parent (1979, p. 23, tradução nossa), “o texto da

Convenção é soberano” e, para facilitar o trabalho dos órgãos consultivos e do CPM

na implementação da Convenção, os Estados-parte deveriam, no ato da inscrição da

proposta, deixar clara a sua intepretação de quais tipo e categoria abarcam tal bem

cultural. Para isso, o CPM deveria definir previamente a classificação “[...] sem fazer

referência a qualquer texto senão a Convenção”.

Porém, segundo o autor, a ambiguidade aparece também no texto da

Convenção, por conta de problemas de tradução entre o francês e o inglês. Para

Parent (1979, p. 23, tradução nossa), a resposta para esse problema seria encontrada

retornando ao trabalho dos experts, nos “[...] relatórios e notas de acompanhamento

na reunião de elaboração [do texto da Convenção] que reuniu aproximadamente 40

especialistas durante um mês em 1972”.

Finalmente, Parent (1979) declara que o trabalho a ser feito deve ser um

esclarecimento da tipologia que está presente na Convenção, atentando

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principalmente para os bens que se encaixam em mais de uma classificação, e uma

movimentação por parte do CPM no sentido de solicitar aos Estados-parte que estes

utilizem esta tipologia e expressem a ambivalência do bem que se encaixa em mais

de uma categoria. Isso tornaria possível a publicação de listas de categorias, o que

facilitaria a comparação feita pelos experts na análise da documentação de

nomeações futuras.

Dessa forma, faz-se presente em diversos pontos do documento a rede de

influência intelectual que aqui pretendemos apontar. Destarte já se percebe a força da

opinião dos experts na compilação da lista, uma vez que, além de já terem construído

os critérios e fazerem avaliações das nomeações, ainda são, na figura de Michel

Parent, convidados a avaliar o seu próprio trabalho.

Além disso, as diversas análises de conceitos relacionados ao patrimônio

mundial e propostas para melhorias do processo de nomeação de bens culturais

denotam a importante posição de Michel Parent na manutenção das diretrizes para a

aplicação da Convenção.

Portanto, a posição dos experts na construção e difusão de consensos

relacionados ao patrimônio mundial é de considerável influência para os caminhos

seguidos na aplicação da política de patrimônio mundial empreendida pela UNESCO.

Considerações Finais

Desde sua concepção, a UNESCO busca construir uma política internacional

para o patrimônio. As ações empreendidas pela Organização nesse âmbito

perpassam sua história se apresentando em seu Ato Constitutivo e se materializando

em convenções internacionais que versam sobre a preservação do patrimônio e em

ações diretas de defesa de bens culturais e naturais. Essa política culmina em 1972

na elaboração da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e

Natural. O processo de construção dessa política não se dá sem a participação de

especialistas no tema, experts em patrimônio que, representando outros órgãos, ou

mesmo atuando internamente na UNESCO, ajudam a elaborar e difundir conceitos e

consensos utilizados na construção de uma noção de patrimônio comum a toda a

humanidade. A atuação dos experts no tema tem pesada influência na compilação da

lista resultante da Convenção, uma vez que têm participação na criação de critérios

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oficiais utilizados na aplicação desta última e nas alterações que ocorrem nas

diretrizes operacionais para esta aplicação.

O PCM já consegue esboçar resultados contundentes na busca pelo seu

objetivo: compreender o processo de elaboração e difusão de consenso no âmbito da

escolha dos doze primeiros bens como patrimônios mundiais. Alguns desses

resultados estão presentes neste artigo. A metodologia e a sistematização de

informações levantadas pelo trabalho em pesquisa são algumas das razões para esse

avanço considerável nos objetivos do projeto. Os próximos passos no avançar desta

pesquisa sugerem a continuação da sistematização e interrogação das fontes

documentais recolhidas, bem como um aprofundamento nas discussões relacionadas

ao patrimônio mundial e na própria investigação da documentação coletada.

REFERÊNCIAS

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