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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CAMPUS DE DOURADOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA A CONSTRUÇÃO FÍSICA, SOCIAL E SIMBÓLICA DA RESERVA INDÍGENA KADIWÉU (1899 – 1984): MEMÓRIA, IDENTIDADE E HISTÓRIA GIOVANI JOSÉ DA SILVA

A CONSTRUÇÃO FÍSICA, SOCIAL E SIMBÓLICA DA RESERVA … · 2017. 6. 20. · GIOVANI JOSÉ DA SILVA A CONSTRUÇÃO FÍSICA, SOCIAL E SIMBÓLICA DA RESERVA INDÍGENA KADIWÉU (1899

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CAMPUS DE DOURADOS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA

A CONSTRUÇÃO FÍSICA, SOCIAL E SIMBÓLICA DA RESERVA INDÍGENA KADIWÉU (1899 – 1984):

MEMÓRIA, IDENTIDADE E HISTÓRIA

GIOVANI JOSÉ DA SILVA

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GIOVANI JOSÉ DA SILVA

A CONSTRUÇÃO FÍSICA, SOCIAL E SIMBÓLICA DA RESERVA INDÍGENA KADIWÉU (1899 – 1984):

MEMÓRIA, IDENTIDADE E HISTÓRIA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)/ Campus de Dourados, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História, Região e Identidades. Linha de Pesquisa: História Indígena. Orientador: Prof. Dr. Gilson Rodolfo Martins.

Dourados, Mato Grosso do Sul 2004

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981.17 José da Silva, Giovani J83c A construção física, social e simbólica da Reserva Indígena

Kadiwéu (1899-1984): memória, identidade e história / Giovani José da Silva. Dourados, MS: UFMS, CPDO, 2004.

144 p. Orientador : Prof. Dr. Gilson Rodolfo Martins. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de

Mato Grosso do Sul, Campus de Dourados. 1. Mato Grosso do Sul – Ocupação – História. 2. História. 3.

Memória. 4. Identidade. 5. Território. 6. Índios Kadiwéu – História. I. Título.

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Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Campus de Dourados

Departamento de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História

Dissertação de Mestrado intitulada A construção física, social e simbólica da Reserva

Indígena Kadiwéu (1899-1984): memória, identidade e história, de autoria do mestrando

Giovani José da Silva aprovada, em 23 de agosto de 2004, pela banca examinadora

constituída pelos seguintes professores:

______________________________________________________

Prof. Dr. Gilson Rodolfo Martins (UFMS) – Orientador

________________________________________________________________________________

Profª. Drª. Joana Aparecida Fernandes Silva (UFG) – Examinadora

__________________________________________________

Prof. Dr. Osvaldo Zorzato (UFMS) – Examinador

____________________________________________________________

Prof. Dr. Cláudio Alves de Vasconcelos Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História

UFMS/ Campus de Dourados

Dourados, 23 de agosto de 2004.

Rua João Rosa Góes, 1761 – Vila Progresso – Dourados, MS – 79825-070 – Brasil – tel: (67) 411-3628

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DADOS CURRICULARES

Giovani José da Silva

Data e Local de Nascimento 29/06/1972, São Paulo, SP

Filiação Gregória Ramona Torres Silva

João José da Silva

Trajetória Acadêmica 1991-1995 – Licenciatura Plena em História,

pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

(UFMS)/ Campus de Aquidauana.

1999-2000 – Pós-Graduação Lato Sensu

(Especialização) em Antropologia: Teorias e

Métodos, pela Universidade Federal de Mato

Grosso (UFMT).

2001 – Prêmio Victor Civita – Professor Nota 10

(Melhor Professor da Escola Pública do Brasil),

pelas Fundações Victor Civita (Grupo Abril) e

Padre Anchieta (TV Cultura).

2002-2004 – Pós-Graduação Stricto Sensu

(Mestrado) em História, pela Universidade

Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)/ Campus

de Dourados.

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Aos mestres, com carinho, Arnaldo e Vilma Begossi.

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AGRADECIMENTOS

Muitas foram as pessoas e as instituições que contribuíram direta ou indiretamente

para a elaboração desta Dissertação de Mestrado e quero aproveitar o presente espaço para

agradecê-las, tentando não cometer alguma injustiça.

Primeiramente, ao Programa de Pós-Graduação em História da Fundação

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)/ Campus de Dourados, onde pude

contar com o estímulo de vários professores, dentre os quais o meu orientador, Prof. Dr.

Gilson Rodolfo Martins, a quem agradeço especialmente.

Aos colegas acadêmicos Léia Teixeira Lacerda, Rosely A. Stefanes Pacheco e

Waldson C. Luciano Diniz que tornaram minha permanência em Dourados, em 2002, uma

proveitosa experiência de estudos e debates. A eles o meu respeito e a minha amizade.

Aos Profs. Drs. Cláudio Alves de Vasconcelos, Jérri Roberto Marin e Paulo Roberto

Cimó Queiroz que contribuíram, cada qual ao seu modo, para uma sólida formação

acadêmica.

Aos Profs. Drs. Joana Aparecida Fernandes Silva e Osvaldo Zorzato, pelo aprendizado

no âmbito da Antropologia e pelas valiosas observações na banca de qualificação deste

trabalho, realizada em outubro de 2003.

À Gregória Ramona Torres Silva e ao José Luiz de Souza, pessoas a quem amo e

dedico todos os meus esforços. Obrigado pela paciência, apoio e força espiritual!

À família dos amigos Marcelino César M. de Oliveira e June Ângela Amaral T. de

Oliveira, pela acolhida em Dourados e pelo carinho com que me receberam.

Aos funcionários do Departamento de Documentação (Dedoc) e da Divisão de

Assuntos Fundiários (DAF) da Fundação Nacional do Índio (Funai), em Brasília, pela

presteza com que me atenderam na realização das pesquisas nos respectivos arquivos.

À Prefeitura Municipal de Porto Murtinho, na pessoa do senhor prefeito Dr. Abel

Nunes Proença, pela concessão de afastamento parcial dos trabalhos pedagógicos da Escola

Municipal Indígena “Ejiwajegi” – Pólo, aldeia Bodoquena, no ano de 2002, enquanto

realizava os créditos em Dourados.

Por fim, e não menos importante, aos Kadiwéu, aos quais fico devendo uma História

da Educação Escolar Indígena, por terem me ensinado a ser o melhor professor da Escola

Pública do Brasil!

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A poesia da história repousa no fato quase milagroso de que, por esta mesma terra, por este mesmo chão familiar, já caminharam outros homens e mulheres, tão reais quanto nós, com pensamentos próprios, levados pelas próprias paixões, todos mortos agora, gerações e gerações completamente desaparecidas, da mesma forma que nós muito em breve desapareceremos como fantasmas ao raiar do dia (G. M. Trevelyan, historiador estadunidense).

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RESUMO

A presente dissertação tem por objeto de estudo a construção física, social e simbólica

da Reserva Indígena Kadiwéu, localizada ao norte do município de Porto Murtinho, Estado de

Mato Grosso do Sul, Brasil. Partindo de considerações acerca dos limites e das possibilidades

no uso de alguns conceitos utilizados na elaboração da História Indígena, este trabalho

começa por desvelar a história dos ancestrais dos Kadiwéu, os Mbayá-Guaikuru, nos séculos

XVI, XVII e XVIII e parte do século XIX. Registrando os principais eventos ocorridos entre a

primeira demarcação de 1899-1900 e a última, realizada no início dos anos 1980, recupera

personagens e tramas que envolveram o processo histórico da constituição da Reserva

Indígena Kadiwéu. A partir disso, o objetivo central passa a ser a percepção e o entendimento

de como os Kadiwéu, ao longo do século XX, elaboraram internamente a delimitação de um

espaço físico para viverem e quais as estratégias adotadas pelo grupo que lhes garantiram a

sobrevivência física e cultural até os dias atuais. Nesta elaboração estão presentes importantes

elementos na construção do território para os indígenas, tais como a memória social e a

identidade étnica, analisadas em uma perspectiva histórica.

Palavras-chave: Kadiwéu; História; memória; identidade; território.

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ABSTRACT

The subject of this paper is the phisical, social and simbolical formation of the

Kadiweu Indian Reservation, located north of city of Porto Murtinho, Mato Grosso do Sul,

Brazil. Considering the limitations and concepts used to elaborate the indian history, this

paper begins to unveil the history of the Kadiweu ancestors, the Mbaya-Guaikuru, in the 16th,

17th and 18th centuries, and part of the 19th century. Characters and facts that affected the

historical process that formed the Kadiweu Indian Reservation, are recovered from registering

the main events occurred between the first demarcation in 1899-1900, and the last in the

beginning of the 1980s. From then, the perception and understanding of how the Kadiweu,

along the 20th century, determined internally their physical boundaries and the strategies

adopted by the group to ensure their physical and cultural survival up to now, become the

main objective of this paper. Important elements for the formation of the indigenous territory,

such as social memory and ethnic identity, analyzed from a historical perspective, are part of

this determination.

Key-words: Kadiwéu; History; memory; identity; territory.

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SUMÁRIO

RESUMO .........................................................................................................................................................

7

ABSTRACT .....................................................................................................................................................

8

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................................................

10

CAPÍTULO 1 – APONTAMENTOS PARA A HISTÓRIA INDÍGENA, EM MATO GROSSO DO SUL: LIMITES E POSSIBILIDADES NO USO DE ALGUNS CONCEITOS ........................................ INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 1.1. TERRA E TERRITÓRIO INDÍGENAS ............................................................................................................... 1.2. IDENTIDADE ÉTNICA ................................................................................................................................... 1.3. MEMÓRIA SOCIAL ....................................................................................................................................... 1.4. MITO E CULTURA ........................................................................................................................................ CONCLUSÃO .......................................................................................................................................................

19

19 20 24 28 31 33

CAPÍTULO 2 – DE MBAYÁ-GUAIKURU A KADIWÉU: UMA SOCIEDADE DE GUERREIROS . INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 2.1. SÉCULOS XVI E XVII ................................................................................................................................. 2.2. SÉCULO XVIII ............................................................................................................................................ 2.3. SÉCULO XIX ............................................................................................................................................... CONCLUSÃO .......................................................................................................................................................

37

37 39 46 52 58

CAPÍTULO 3 – A CONSTRUÇÃO FÍSICA DA RESERVA INDÍGENA KADIWÉU: DEMARCAÇÕES E CONFLITOS PELA POSSE DA TERRA ............................................................... INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 3.1. OS KADIWÉU NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX ................................................................................ 3.2. A ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DE MATO GROSSO E A TENTATIVA DE USURPAÇÃO DAS TERRAS DOS KADIWÉU ........................................................................................................................................................... 3.3. INVASÕES DAS TERRAS DOS KADIWÉU E ARRENDAMENTOS ....................................................................... CONCLUSÃO .......................................................................................................................................................

62

62 63

78 80 85

CAPÍTULO 4 – A CONSTRUÇÃO SOCIAL E SIMBÓLICA DA RESERVA INDÍGENA KADIWÉU: MITOLOGIA, MEMÓRIA SOCIAL E IDENTIDADE ÉTNICA ...................................... INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 4.1. RELAÇÕES INTERÉTNICAS ........................................................................................................................... 4.2. A GUERRA CONTRA O PARAGUAI ............................................................................................................... 4.3. O TERRITÓRIO INDÍGENA ............................................................................................................................ 4.4. O IMPERADOR D. PEDRO II......................................................................................................................... CONCLUSÃO .......................................................................................................................................................

89

89 92 94 97

100 103

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................................... 108

REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................. 118

ANEXOS .......................................................................................................................................................... 126

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Única sociedade indígena do Centro-Sul brasileiro a viver em um território com

mais de meio milhão de hectares, os Kadiwéu1, únicos falantes no Brasil de uma língua

filiada à família lingüística isolada Guaikuru, habitam, atualmente, no município de Porto

Murtinho, Estado de Mato Grosso do Sul.2 O conjunto de terras onde esses índios estão

localizados, juridicamente denominado Reserva Indígena Kadiwéu3 e regionalmente

conhecido como Campo dos Índios, possui aproximadamente 538.536 hectares, onde

vivem cerca de 1.400 indivíduos4, sobretudo das etnias indígenas Kadiwéu, Kinikinau e

Terena, com predominância da primeira. Até o final da década de 1990, os Kadiwéu eram

parcialmente desconhecidos pelos moradores de Porto Murtinho, devido às enormes

distâncias entre a sede do município e as aldeias (Barro Preto, Bodoquena, Campina, São

João e Tomázia). Havia, ainda, a idéia errônea de que esses índios viviam nos municípios

de Bodoquena e Bonito, confusão, em parte, gerada pela proximidade da maior aldeia

Kadiwéu, chamada nos dias de hoje de Bodoquena (antigo Posto Indígena Presidente

Alves de Barros), com a cidade sul-mato-grossense homônima. A partir do ano de 1997,

através dos primeiros contatos que fiz com o grupo indígena — em meus trabalhos de

campo como consultor de Educação Escolar Indígena e professor5 — algumas inquietações

intelectuais se fizeram presentes. Algumas delas podem, aqui, ser apresentadas: como a

Reserva Indígena Kadiwéu foi constituída? Qual a memória dos índios sobre os eventos

relacionados às demarcações? De que forma a identidade étnica Kadiwéu afirmou-se a

1 Devo alertar que, exceto nas citações, em todas as nomenclaturas referentes às sociedades indígenas foram seguidas as normas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Cf. SCHADEN, 1976, p. XI-XII. 2 Cf. Anexos – Mapas: Mapa E. 3 A Reserva Indígena Kadiwéu possui fauna e flora extremamente diversificadas em função, principalmente, do fato de boa parte desta área inserir-se no ecossistema do Pantanal Sul-mato-grossense e da presença da Serra da Bodoquena, que constitui um relevo com características muito diferentes daquelas normalmente encontradas no Brasil Central. Cf. Anexos – Mapas: Mapa C. 4 Cf. Censo Kadiwéu, 1998. 5 Entre os anos de 1997 e 2004, trabalhei na rede pública municipal de ensino de Porto Murtinho, ocupando, sucessivamente, os cargos de professor de História no Ensino Fundamental, chefe do Departamento de Cultura e Esportes, consultor de Educação Escolar Indígena das aldeias da Reserva Indígena Kadiwéu, coordenador geral do Curso Normal em Nível Médio — Formação de Professores Kadiwéu e Kinikinau e professor de História e Antropologia Cultural do referido Curso Normal.

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partir dessa memória? Estas são algumas das questões que procuro desvelar no presente

trabalho.

Uma parte considerável das terras da Reserva Indígena Kadiwéu encontra-se, hoje,

sub judice, por conta de ações movidas por fazendeiros da região contra a União,

proprietária legal das terras indígenas no Brasil. Essas ações referem-se, sobretudo, a

questões ligadas a arrendamentos ilegais e titulação de terras. Há, portanto, a necessidade

de se compreender o processo de demarcação da Reserva Indígena Kadiwéu, na busca de

uma interpretação histórica dos posteriores e atuais desdobramentos da construção física

do chamado Campo dos Índios. Procura-se, assim, verificar, no decorrer desta história,

personagens e tramas que a envolveram. Penso, que sem um território delimitado, teria

sido mais difícil à sociedade indígena Kadiwéu manter-se coesa como grupo, firmar-se e

reproduzir-se física e culturalmente até os dias de hoje. Essa coesão teria garantido aos

índios a elaboração de uma identidade étnica e cultural — a de índios cavaleiros,

guerreiros, remanescentes dos Mbayá-Guaikuru —, o que os diferenciaria não somente dos

não-índios, mas, sobretudo, de outros índios, pois, como afirma a antropóloga Manuela

Carneiro da Cunha (1992a, p. 20), “[...] ter uma identidade é ter uma memória própria. Por

isso a recuperação da própria história é um direito fundamental das sociedades. É também,

pela atual Constituição, o fundamento dos direitos territoriais indígenas e, particularmente

da garantia de suas terras”.

Essa posição interpretativa está de acordo com a afirmação de outra antropóloga,

Lux Vidal. A autora afirma: “[...] é evidente que em primeiro lugar deve se reconhecer que

índio e terra são assuntos indissociáveis, só pode existir o índio (indivíduo) quando estiver

preservada a sua coletividade (etnia) e esta conseguir manter um território próprio” (VIDAL,

1994, p. 197). Através da compreensão do processo histórico da ocupação de parte das

terras do sudoeste do atual Estado de Mato Grosso do Sul pelos Kadiwéu, creio ser

possível chegar a um melhor entendimento das práticas que reproduziram um modo de

vida considerado próprio dessa sociedade indígena. Tais práticas foram e ainda são

permeadas pelo universo simbólico dos indivíduos, pelas categorias por meio das quais

pensam e vivem coletivamente suas próprias existências. Portanto, escrever a história dos

Kadiwéu é, de certa forma, escrever a história da Reserva Indígena Kadiwéu, percebendo

que uma e outra se imbricam e confundem-se, posto que não se pode dissociá-las.

A elaboração da história de sociedades indígenas esbarra, porém, em obstáculos

teóricos e metodológicos de diversas ordens. As dificuldades decorrem, dentre outros

fatores, da escassez de material escrito pelos próprios indígenas sobre seu passado, o que

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obriga o pesquisador a recorrer a textos produzidos por cronistas, viajantes, antropólogos e

outros não-indígenas que mantiveram contato com o grupo ao longo do tempo. Esses

textos seriam, no dizer do antropólogo estadunidense Clifford Geertz (1989), de “segunda

ou terceira mão”. No caso dos Kadiwéu, o contato sistematizado com métodos de

alfabetização, seja em língua materna ou em língua portuguesa, através da educação

escolar, ocorreu somente nas duas últimas décadas do século XX.6 Debruçar-se sobre esse

material, portanto, requer que o historiador não perca de vista que “[...] da reunião dos

documentos à redação do livro, a prática histórica é inteiramente relativa à estrutura da

sociedade” (CERTEAU, 2000, p. 74). Essa prática, ao meu ver, não está relacionada somente

à sociedade não-índia que a produz, mas, também, à sociedade indígena sobre a qual é

produzida, traduzindo a idéia da elaboração de uma história antropológica.

História e Antropologia: que diálogos podem ser estabelecidos entre esses dois

campos do conhecimento? Realizando um balanço das relações mantidas entre as áreas, a

antropóloga estadunidense Aletta Biersack revela que:

Cada qual a seu modo, a antropologia e a história têm canalizado as mesmas correntes intelectuais diversas provenientes da Europa. Cada campo, indiscriminado em suas origens, é hoje um reduto de fermentação teórica onde diversas tradições lutam pela hegemonia ou capitulam, cruzam-se e unem-se, e onde palavras e conceitos fundamentais são extremamente contestados. Esses conflitos provêem um solo fértil, a partir do qual cada disciplina, no momento, esforça-se por criar seu próprio futuro. Tributárias dos mesmos afluentes, alimentadas pelas mesmas forças intelectuais, a antropologia e a história vêem-se agora diante das mesmas possibilidades (BIERSACK, 1992, p. 99).

Ao reivindicar uma maior aproximação entre História e Antropologia, o historiador

italiano Carlo Ginzburg compara, em um de seus textos, os antropólogos a inquisidores e

os nativos a réus. Segundo o autor, “[...] o conceito de prova parece ser a questão crucial

neste contexto” (GINZBURG, 1991, p. 206), pois “[...] os historiadores das sociedades do

passado não podem indicar as suas fontes como os antropólogos” (GINZBURG, 1991, p.

206). Na opinião de Ginzburg, os estudos clássicos de feitiçaria entre os africanos Azande,

elaborados pelo antropólogo britânico Evans-Pritchard, teriam inspirado posteriores

trabalhos historiográficos sobre a feitiçaria na Europa Moderna. Este e outros exemplos

refletiriam, portanto, uma crescente influência da Antropologia sobre a História, já que:

6 Cf. JOSÉ DA SILVA, 2002.

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[...] para bem ou para mal, os historiadores, que estudam as sociedades do passado, não podem apresentar o mesmo tipo de elementos de prova que os antropólogos apresentam, ou que os inquisidores apresentaram. Mas para a interpretação desses elementos, eles têm algo a aprender com ambos (GINZBURG, 1991, p. 214).

A História, entre outras tantas definições oferecidas por Ginzburg (1991, p. 180), é

“[...] uma disciplina que estuda fenômenos temporalmente irreversíveis ‘enquanto tais’”,

uma “[...] tentativa de captar o concreto dos processos sociais por meio da reconstituição

de vidas de homens e mulheres de condição não privilegiada” (GINZBURG, 1991, p. 181).

As observações do autor possibilitam a percepção de que, em termos de metodologia,

História e Antropologia possuem especificidades no que diz respeito ao modo como

abordam e interpretam seus respectivos objetos de estudo. Contudo, essas especificidades

não podem se tornar um obstáculo para a aproximação de ambos os campos de

conhecimento, pelo contrário, devem criar, entre os mesmos, uma relação dialógica. Para

Geertz:

A onda recente de interesse dos antropólogos não apenas pelo passado [...], mas pela maneira como os historiadores lhe dão um sentido atual, e do interesse dos historiadores não apenas pela estranheza cultural [...], mas também pelas maneiras como os antropólogos a trazem para perto de nós, não é um simples modismo; sobreviverá ao entusiasmo que gera, aos medos que desperta e às confusões que cria. Bem menos claro é a que levará essa onda, ao sobreviver (GEERTZ, 2001, p. 123).

O francês Jacques Le Goff, entre outros historiadores, há tempos vem

empreendendo esforços objetivando estabelecer um diálogo mais profícuo entre História e

Antropologia. Provas desses esforços encontram-se em obras, tais como A história nova

(1998) e Memória e história (1992). Penso ser legítimo trabalhar memória e história,

aproximando-as. Essa é uma das propostas desta dissertação. Através dessa abordagem

integrada — na qual memória e história se complementam —torna-se possível reunir um

maior número de informações, aproximando-se do real, esteja esse real distante ou não em

relação ao tempo e ao espaço. Afinal, relembrando o historiador francês Fernand Braudel

(1990, p. 84), “[...] não existirá ciência social [...] senão na reconciliação, numa prática

simultânea dos nossos diferentes ofícios. Erguê-los um contra o outro é coisa fácil, mas já

muito ouvida. Do que precisamos é de música nova”. Essa música nova a que se refere

Braudel, de acordo com a historiadora Sandra Jatahy Pesavento, significa, entre outras

coisas, que:

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[...] em termos de método, a História se faz antropológica quando se volta para as fontes na prática de uma descrição densa, como assinala Geertz, a tecer, com a fonte, toda a gama de relações e observações possíveis, em uma recomposição cuidadosa de toda a trama de significados socialmente estabelecidos que possa conter. [...] os historiadores, ao se utilizarem das propostas da Antropologia, historicizam esses conceitos, e o que buscam na recuperação das experiências dos homens no passado são exatamente as mudanças e as permanências, as unidades e as diversidades de sentidos. [...] Também no que toca a temas e objetos, a preocupação com ritos e festas, mitos e crenças, sociabilidades e atitudes mentais, ou mesmo a incorporação da história material pela cultura, ou ainda o ingresso dos historiadores no campo das identidades pode ser considerado como um indício da aproximação realizada entre a História e a Antropologia (PESAVENTO, 2002, p. 111-112).

Essa aproximação não ocorre, porém, sem atritos. A esse respeito, o eminente

historiador britânico Edward Thompson ressalva que:

Contudo, ao colocarmos a história social numa relação com a muito mais sofisticada disciplina da antropologia, então claramente nos deparamos com dificuldades teóricas ainda maiores. Supõe-se algumas vezes que a antropologia possa fazer descobertas não apenas acerca de sociedades particulares, mas sobre as sociedades em geral, que funções ou estruturas básicas tenham sido reveladas e que, por mais sofisticadas ou disfarçadas que possam estar nas sociedades modernas, ainda fundamentem as formas modernas. Entretanto, a história é uma disciplina do contexto e do processo: todo significado é um significado-dentro-de-um-contexto e, enquanto as estruturas mudam, velhas formas podem expressar funções novas, e funções velhas podem achar sua expressão em novas formas (THOMPSON, 2001, p. 243).

Assim, para a elaboração desta dissertação, o trabalho inicial com as fontes

documentais, cartográficas e bibliográficas consistiu em realizar uma síntese histórica a

respeito dos indígenas Kadiwéu, preocupando-me, sobretudo, com os relatos de viajantes,

antropólogos e etnógrafos que conviveram com o grupo entre o final do século XIX e o

século XX. Não deixei, entretanto, de mencionar alguns fatos relacionados à sociedade

Mbayá-Guaikuru nos séculos XVI, XVII, XVIII e na primeira metade do século XIX,

referida na literatura etnográfica e histórica como uma sociedade de guerreiros e ancestral

da atual sociedade indígena Kadiwéu. O segundo capítulo da dissertação trata, pois, de

uma sumária apresentação dos Kadiwéu, vistos por aqueles que os conheceram no passado

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e sobre eles escreveram7, constituindo-se em apontamentos que me permitiram a

elaboração de uma parte da História Indígena do antigo sul do Mato Grosso, atual Estado

de Mato Grosso do Sul. Antes, porém, no primeiro capítulo, apresento, de maneira

sintética, alguns dos principais conceitos teóricos de que faço uso na abordagem do tema

proposto.

Prossigo o trabalho tratando, especificamente no terceiro capítulo, dos processos de

demarcação que, ao longo do século passado, sofreram inúmeros reveses como, por

exemplo, a fracassada tentativa de usurpação das terras reservadas aos Kadiwéu,

empreendida por deputados da Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso, no final

da década de 1950. A primeira demarcação das terras dos Kadiwéu data do final do século

XIX (1899-1900) e o recorte temporal proposto para este trabalho acadêmico avançou até a

demarcação empreendida pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em colaboração com o

Exército Brasileiro, na primeira metade da década de 1980. Entre a primeira e a última

demarcação, a Reserva Indígena Kadiwéu foi invadida, arrendada e disputada por índios e

não-índios. O arquivo do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), no Rio de Janeiro,

serviu de referência para essa parte da pesquisa, bem como os arquivos da Divisão de

Assuntos Fundiários (DAF) e do Departamento de Documentação (Dedoc) da Funai, em

Brasília. Tenho claro que a maioria absoluta dos documentos desses arquivos é oficial e,

por essa razão, reflete as posições dos lugares onde foram produzidos, o que permite uma

aproximação com as idéias do historiador francês Michel de Certeau (2000, p. 77), para

quem “[...] a articulação da história com um lugar é a condição de uma análise da

sociedade”.

No quarto capítulo deste trabalho, coloco em cena a memória social Kadiwéu sobre

os eventos relativos às demarcações de suas terras. As fontes utilizadas consistiram,

sobretudo, em relatos de anciãos indígenas Kadiwéu coletados por antropólogos não-índios

que conviveram com o grupo, sobretudo ao longo do século passado (Darcy Ribeiro8, entre

outros). Assim, o que parece, à primeira vista, ser um trabalho de Antropologia resultou,

espero, em um estudo de História Indígena, pois perseguindo uma outra idéia de Certeau

(2000, p. 92-93), acredito que “[...] mesmo se a etnologia substitui, parcialmente, a história

nesta tarefa de instaurar uma encenação do outro, no presente — [...] — o passado é,

inicialmente, o meio de representar uma diferença”. Não recorri, entretanto, à teoria

7 Entre as obras consultadas a respeito de dados etnográficos e históricos, cito, entre outros: BOGGIANI, 1975; RIBEIRO, 1980a; SENA, 1983; SIQUEIRA JR., 1992; WENCESLAU, 1996. 8 Cf. RIBEIRO, 1980a.

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estruturalista de Claude Lévi-Strauss, ainda que, também, trabalhe com material coletado

por ele entre os Kadiwéu, na década de 19309, pois, tive por objetivo, neste capítulo, não o

sistemático estudo dos mitos, mas o trabalho da memória social que os insere no processo

histórico. E foi “[...] nesta fronteira mutável, entre o dado e o criado e finalmente entre a

natureza e a cultura, que ocorre[u] a pesquisa” (CERTEAU, 2000, p. 78).

Como se deu a construção física, social e simbólica da Reserva Indígena Kadiwéu?

Na última parte do trabalho, que propositadamente chamo de Considerações Finais,

procuro sintetizar as contribuições que espero ter obtido com o presente estudo. Também

procurei elencar alguns pontos pouco explorados e que podem servir de referência para

outros pesquisadores da temática indígena, especialmente em relação aos Kadiwéu. O tema

da territorialidade é rico e complexo (e por isso mesmo desafiador) e preferi abordá-lo sob

a perspectiva da identidade étnica e da memória, sem perder de vista a análise histórica,

pois acredito que “[...] ‘fazer história’ é uma prática”, como já observou Certeau (2000, p.

78). Ao realizar o trabalho aqui proposto, procurei tomar alguns dos cuidados apontados

pela historiadora francesa Madeleine Rebérioux, ao afirmar que:

[...] todas as memórias devem ser convocadas, evocadas, confrontadas, mas nenhuma delas, individualmente ou em conjunto, constituem a história. Esta consiste necessariamente na escolha e construção de um objeto, operação que pode dar-se a partir de evocação de lembranças, mas que não pode levar à redução da história a essas memórias (REBÉRIOUX, apud D’ALESSIO, 1998, p. 118-119).

As construções física, social e simbólica da Reserva Indígena Kadiwéu foram

estudadas a partir de fontes documentais, cartográficas e bibliográficas (arqueológicas,

históricas e etnográficas), arroladas ao final da dissertação. O entrecruzamento dessas

informações caracteriza a proposta da linha de pesquisa História Indígena que estabelece

um contato entre a História e a Antropologia e que tem como ponto de partida a noção de

história etnográfica desenvolvida, entre outros, pelo historiador estadunidense Robert

Darnton. Diante disso, verifica-se a necessidade de se tentar refletir não apenas sobre o que

as pessoas pensavam, mas, também, como elas pensavam (DARNTON apud MALDI, 1993, p.

11). A linha de pesquisa História Indígena, do Programa de Pós-Graduação em História, da

Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)/Campus de Dourados,

privilegia os estudos sobre a história das populações indígenas antes, durante e pós-contato

9 Cf. LÉVI-STRAUSS, 1996.

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com as sociedades européias e ibero-americanas, enfatizando, dentro da ótica da

diversidade e da dinâmica culturais, as diferentes historicidades em termos espaço-

temporais. Esses estudos, portanto, são direcionados pela perspectiva das indissociáveis

práticas culturais, ecológicas, socioeconômicas e políticas que marcam a trajetória dessas

populações ao longo de sua história no espaço regional. Assim, é importante que não se

perca a noção de universalidade da história humana e as transformações advindas do

processo de conquista e colonização ibero-americanas.

Com isto, penso ser possível contribuir sobremaneira para a elaboração de uma

História Indígena de longa duração, em seus múltiplos aspectos e perspectivas espaço-

temporais, com ênfase nas realidades regionais relacionadas ao contexto sul-mato-

grossense. A história das demarcações das terras reservadas aos Kadiwéu, no antigo sul do

Estado do Mato Grosso, atual Estado de Mato Grosso do Sul, está, ao mesmo tempo,

inserida em um contexto regional mais amplo e intimamente relacionada à problemática da

memória e da identidade. Espero ter contribuído, através deste trabalho, para a

compreensão de como a memória social do grupo indígena distribuiu internamente o poder

e de que forma o processo histórico criou e influenciou os suportes identitários sobre os

quais os Kadiwéu se apóiam até o momento presente e que lhes garantiram a sobrevivência

física e cultural através do tempo, na região.

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Não se pode ter certeza sobre os tempos antigos, pode-se apenas dizer que todos os indícios sugerem o que foi o passado (Tucídides, historiador grego).

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CAPÍTULO 1

APONTAMENTOS PARA A HISTÓRIA INDÍGENA, EM MATO GROSSO DO

SUL: LIMITES E POSSIBILIDADES NO USO DE ALGUNS CONCEITOS

INTRODUÇÃO

Os estudos de História Regional vêm recebendo significativas contribuições por

meio de diversos trabalhos universitários produzidos nos últimos anos. Segundo a

historiadora Janaína Amado (1990), esses estudos receberam grande impulso no meio

acadêmico brasileiro, especialmente a partir da década de 1970. Isto se deveu a inúmeros

fatores, dentre eles pode-se destacar: a mudança do conceito de região, o esgotamento das

“macro-abordagens” e das grandes sínteses, a instalação e o desenvolvimento de cursos de

pós-graduação em todo o país (dentre os quais os de Mato Grosso e de Mato Grosso do

Sul, na área de História, ambos no final da década de 1990) e as transformações recentes

da história brasileira, chamando a atenção para regiões até então pouco estudadas como o

Norte e o Centro-Oeste. Entretanto, não se deve confundir História Regional com

regionalismo, como bem alerta o historiador Valmir Batista Corrêa (1994, p. 56), para

quem, “[...] a história só adquire sentido quando expressa o homem e a sua universalidade,

em qualquer tempo ou qualquer espaço”. O autor ainda salienta que:

[...] dentro da perspectiva metodológica do estudo do particular e seus reflexos para atingir o geral, a compreensão da História do Brasil deve sem dúvida passar pelo resgate e pela análise crítica da historiografia regional (aqui entendida como a produção historiográfica sobre uma determinada região, independente da origem de seus autores) (CORRÊA, V., 1994, p. 52).

Em uma perspectiva regional, mas não regionalista, o objetivo desta pesquisa é

compreender o processo histórico que engendrou a definição dos limites físicos,

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geográficos e espaciais da Reserva Indígena Kadiwéu e a apropriação social e simbólica

que desse processo fizeram os indígenas. Essa apropriação está estreitamente relacionada,

como procuro demonstrar, aos suportes identitários étnicos do grupo e à memória social.

Especificamente, espero ter elaborado um estudo que esteja em sintonia com a

preocupação primordial de todo historiador, qual seja, “[...] com o tempo, com a duração,

com a mudança e as permanências ou sobrevivências” (CARDOSO, 1986, p. 107),

preocupação essa que o distingue de outros cientistas sociais, inclusive dos antropólogos.

Entretanto, busquei, também, na Antropologia contribuições para a compreensão dos

conceitos que envolvem o estudo dos grupos humanos, em especial das sociedades

indígenas. São esses conceitos que, sinteticamente, procuro apresentar a seguir.

Dentre os conceitos teóricos utilizados na presente pesquisa estão os de território,

memória social e identidade étnica, associados a outros, como os de cultura e mito. Os

mesmos serviram para nortear toda a pesquisa, desde a fase de coleta e sistematização dos

dados às fases de redação, crítica e revisão do texto da dissertação, pois, como afirma

Certeau (2000, p. 66), em História “[...] como em qualquer outra coisa, uma prática sem

teoria desemboca necessariamente, mais dia menos dia, no dogmatismo de ‘valores

eternos’ ou na apologia de um ‘intemporal’”. Se, como afirma o mesmo teórico, tudo

começa com o gesto de separar, reunir, transformar em documentos objetos distribuídos de

outra maneira, creio que, neste gesto, já estejam presentes categorias de análise que não

devem, entretanto, tornar-se camisa-de-força para o pesquisador. A elaboração do presente

texto foi, portanto, resultado da articulação entre um lugar social, práticas sociais e a

escrita, já que “[...] toda interpretação histórica depende de um sistema de referência”

(CERTEAU, 2000, p. 67).

1.1. TERRA E TERRITÓRIO INDÍGENAS

Iniciei as reflexões a partir da noção de território, desenvolvida, entre outros, pelo

etnólogo João Pacheco de Oliveira (1998), para o estudo da construção física, social e

simbólica da Reserva Indígena Kadiwéu. Segundo esse autor, o território indígena não se

define somente por critérios históricos, mas, também, por critérios culturais próprios dos

grupos que o habitam, sendo mapeado a partir das necessidades de sobrevivência do grupo,

entendida em sentido amplo e não simplesmente material. Disso resulta que o conceito de

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território foi aplicado no presente trabalho em duplo aspecto: como meio básico de

produção e, também, sustentáculo da identidade étnica. Portanto, se “[...] o tema do

território é preponderante nas representações cosmológicas desse grupo [Kadiwéu],

demonstrando o quanto é culturalmente contextualizado e valorizado em função da própria

história de contato” (SIQUEIRA JR., 1993. p. 195), foi necessário tentar definir a importância

da dimensão territorial para a constituição da identidade étnica Kadiwéu, objetivando

entender através de quais categorias ou representações os indígenas pensaram seu

território, ao longo do tempo, e que instrumentos têm utilizado para manter sua unidade e

controle. Dessa forma:

É preciso sublinhar a diferença entre um conceito de terra como meio de produção, lugar do trabalho agrícola ou solo onde se distribuem recursos animais e de coleta, e conceito de território tribal, de dimensões sócio-político-cosmológicas mais amplas. Vários grupos indígenas dependem, na construção de sua identidade tribal distintiva, de uma relação mitológica com um território, sítio da criação do mundo, memória tribal, mapa do cosmos — [...] Via de regra, são os grupos que praticam formas de subsistência mais sedentárias os que apresentam tal enraizamento simbólico com seu território (SEEGER e CASTRO, 1979, p. 104).

Os antropólogos Anthony Seeger e Eduardo B. Viveiros de Castro, no trabalho

intitulado Terras e territórios indígenas no Brasil (1979), fazem uma análise de como as

mudanças na relação com a terra, conseqüências da dominação e contato com a sociedade

envolvente, tendem a afetar a organização social e a definição étnica dos diferentes grupos

indígenas. Os autores advertem que os conceitos de terra e território — que variam de uma

sociedade indígena para outra, por dependerem da percepção que cada uma tem da terra e

do entorno — tendem a se unificar, produzindo uma concepção de território como espaço

homogêneo, fechado por fronteiras definidas pelo Direito, que distingue duas identidades

étnicas em oposição: os não-índios (fora) e os índios (dentro). Em outro ensaio,

denominado Conceitos em conflito: terras e territórios indígenas (1980), o estadunidense

Anthony Seeger argumenta que há um conflito entre a percepção da terra indígena por

parte da sociedade nacional e o uso que algumas sociedades indígenas fazem de suas

terras, construindo territórios para a sua própria autodefinição e contrastando com a

sociedade não-indígena. Reafirmando a análise feita no primeiro texto, o autor acrescenta

que o conceito de território como espaço identificado com um grupo étnico configura-se a

partir de uma política de delimitação e demarcação de terras indígenas e fornece meios que

possibilitam a sobrevivência das sociedades indígenas.

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Entretanto, a terra indígena, na visão do Estado brasileiro, é tão somente um espaço

homogêneo onde estão distribuídos recursos naturais. No texto da Lei n º 6.001 de 19 de

dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio — ainda em vigor e utilizada pela

Funai —, evita-se o termo território, aplicando-se o termo terras indígenas, que ocupa

todo o Título III (Das Terras dos Índios) e classifica as terras indígenas em ocupadas ou

habitadas, reservadas e as terras de domínio.10 Na concepção de diversas sociedades

indígenas brasileiras, porém, território é um mosaico de recursos materiais, morais e

espirituais, pois suas terras, além de conterem dimensões sociopolíticas, contêm uma

ampla dimensão cosmológica. Sobre essas diferentes concepções, o jurista Carlos F. Marés

de Souza Filho, no ensaio denominado Alguns pontos sobre os povos indígenas e o Direito

(1982)11, esclarece que as sociedades indígenas não dispõem de autonomia e nem de

soberania em seus territórios. Ele ainda afirma, categoricamente, que dotá-las dos poderes

de estado-membro da federação é algo ilusório, por dois motivos: primeiro, pelo fato de os

sistemas indígenas serem incompatíveis com o sistema jurídico brasileiro. Segundo, devido

aos limites da fronteira, pois os Estados da Federação são delimitados por divisas rígidas, e

no caso de alguns dos territórios indígenas, eles ultrapassam-nas, indo além dos limites

nacionais estabelecidos com os países vizinhos.

Em um estudo sobre território e territorialidades indígenas do Alto Rio Negro, no

Estado do Amazonas, a géografa Ivani Ferreira de Faria recolheu alguns depoimentos que

dão pistas sobre a dimensão do que significam terra e território para determinados grupos

indígenas daquela região do país. Braz França, da etnia Baré, assim se exprimiu à

pesquisadora:

A demarcação da terra contínua significa para os índios o futuro de suas gerações. Por que nós estamos lutando por isto? [...] Porque nós percebemos que estamos perdendo espaço dentro da nossa própria terra com invasões, grandes projetos econômicos e penetração de políticos e empresários. [...] nós vivemos na terra, andamos na terra, usamos a terra. A terra é atividade cultural, ritual, para outros tipos de sobrevivência. [...] o índio sobrevive da terra. A terra é quem dá sustentação. Por isto é preciso ampliar, é preciso que a terra seja suficiente para manter esta sobrevivência (FARIA, 2003, p. 97-98).

Outro entrevistado, Gersem Santos, da etnia Baniwa, tentando diferenciar terra e

território, afirmou à Faria que:

10 Para maiores informações e para o conhecimento do texto completo da lei, ver MAGALHÃES, 2002. 11 SOUZA FILHO, apud FARIA, 2003, p. 11.

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[...] na concepção tradicional, original, não existia o termo território. Não teria sentido discutir isso. O sentido de território só existe após o contato. Antes do contato, o índio podia ir e vir, ele definia sua própria vida, seu destino sem tutela, sem nada e sem pré-condições. [...] Depois do contato há pré-condições. Estas são impostas pela dominação, exploração, pela violência. E você precisa afirmar-se. Antes não, a natureza te garante isto. A terra te garante isto. Por isto terra é tudo. Depois a terra já não é tudo. Você precisa de elementos políticos. Aí você tem um conceito de território, que tem sentido de poder, sentido de domínio e de limite. Território é limite. É você limitar o espaço. A terra é uma coisa ilimitada; ilimitável. Ela é tudo. Como você vai considerar limite numa concepção ilimitada de terra que seria o território! Não tem como fazer a relação. Só é possível pensar o território depois do contato porque você limita as coisas (FARIA, 2003, p. 105-106).

A fala do indígena Gersem Santos parece confundir os termos terra e território,

pois, concordando com o antropólogo boliviano Roberto Balza Alarcón (2001), defino o

território como todo espaço que é atualmente imprescindível para que um grupo indígena

tenha acesso aos recursos naturais que tornam possível a sua reprodução material e

espiritual, segundo características próprias de organização produtiva e social. Este espaço

pode se apresentar, ainda, de maneira contínua ou descontínua. O conceito de terra refere-

se ao espaço geográfico que tem sido fixado para uma comunidade ou pessoa em função de

critérios exclusivamente agrários e que, por isso mesmo, não contempla os sistemas

produtivo e sociocultural de um grupo indígena, ainda que seja útil para que este efetue,

parcialmente, as atividades referidas àqueles âmbitos. A antropóloga Joana Fernandes, a

esse respeito, esclarece que:

Terra então tem uma definição jurídica e é o lugar onde se realiza a produção, onde ocorre o trabalho agrícola ou do solo. Para as sociedades indígenas, no entanto, esse espaço é mais abrangente, não se resumindo apenas ao lugar do trabalho. Por isso, o conceito de terras é insuficiente para designar o habitat indígena. Para precisar melhor essa noção usa-se o conceito de território indígena. [...] Falar em território indígena significa dizer que este é um espaço da sobrevivência e reprodução de um povo, onde se realiza a cultura, onde se criou o mundo, onde descansam os antepassados. Além de ser um local onde os índios se apropriam dos recursos naturais e garantem sua subsistência física é, sobretudo, um espaço simbólico em que as pessoas travam relações entre si e com os deuses. Há que se ressaltar, ainda, que a apropriação de recursos naturais não se resume em produzir alimentos, mas consiste em extrair matéria-prima para a construção de casas, para enfeites, para a fabricação de arcos, flechas, canoas e outros e, ainda, em retirar as ervas medicinais que exigem determinadas condições ecológicas para vingarem. [...] Para que um povo possa sobreviver e se reproduzir, necessita de muito mais terras do que as que utiliza simplesmente para plantar. E é justamente esse

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espaço de sobrevivência, com tudo que ela implica, que denominamos território (FERNANDES, 1993, p. 81).

Assim, ao meu ver, a Reserva Indígena Kadiwéu configura-se como um conjunto

de terras demarcadas por não-índios. Uma parte do imenso território ocupado pelos

ancestrais Mbayá-Guaikuru, sobre as quais, ao longo do século XX, os Kadiwéu

procuraram constituir social e culturalmente um território, quer no plano físico, quer no

plano simbólico. De acordo com João Pacheco de Oliveira Filho:

Pode-se distinguir três tipos de terras indígenas, contrastantes por sua finalidade e natureza: a) as áreas de posse permanente dos índios, que constituem o seu habitat e cuja eficácia legal independe inclusive de ato demarcatório; b) as áreas reservadas pelo Estado para os índios, podendo constituir-se em reservas e parques [...]; c) as terras dominiais recebidas pelos índios em virtude de ações do direito civil, como a doação compra e venda ou permuta (OLIVEIRA FILHO, apud TOURINHO NETO, 1993, p. 40).

As terras da Reserva Indígena Kadiwéu, que podem ser enquadradas no tipo “b”

descrito por Oliveira Filho, pertencem à União, como todas as terras indígenas

homologadas no Brasil. De acordo com a Constituição Federal de 1988 12, aos indígenas é

garantido o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas

terras indígenas, sendo estas inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas

imprescritíveis. As garantias legais conquistadas em 1988 já vinham sendo, de alguma

forma, asseguradas pelas Constituições Republicanas de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969. 13

A partir dessas garantias, da conquista do direito à terra e da configuração social e

simbólica de um território próprio, a identidade étnica vai se afirmando e sendo

reelaborada, re-significada pelas diferentes sociedades indígenas brasileiras.

1.2. IDENTIDADE ÉTNICA

A respeito da noção de identidade, parti daquela formulada, dentre outros, pelo

antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira que afirma que a identidade contrastiva:

12 Cf. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Capítulo VIII. Artigos 231 e 232. 13 Cf. SANTILLI, 1993.

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[...] parece se constituir na essência da identidade étnica, i. é, à base da qual esta se define. Implica a afirmação do nós diante dos outros. Quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam. É uma identidade que surge por oposição. Ela não se afirma isoladamente (OLIVEIRA, 1976b, p. 5).

Sendo a história dos Kadiwéu, desde o final do século XIX, a história de

progressiva sedentarização do grupo e de intensificação do contato com a sociedade não-

indígena, foi preciso verificar o papel dessa sociedade no processo de identificação étnica,

especialmente ao delimitar fisicamente uma área para o grupo, limitando espaço e,

conseqüentemente, movimentos. Isso significou “[...] tomar as unidades étnicas reais como

categorias a codificarem uma teia de relações” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976b, p. 10).

Nesse aspecto, a História Indígena possibilita investigar o conjunto de representações (em

que também se incluem os valores) que o grupo étnico fez da situação de contato em que

está inserido e nos termos da qual identificou a si próprio e aos outros. Não tratei, pois, de

realizar uma descrição Kadiwéu, mas uma descrição histórica sobre os Kadiwéu, como

sugere Geertz (1989). Concordando com esse autor ao afirmar, numa linha de pensamento

weberiana, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo cria,

compreendo que:

[...] a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível — isto é, descritos com densidade (GEERTZ, 1989, p. 10).

Para Max Weber (1979), a identidade étnica constrói-se a partir da diferença. De

acordo com o autor, as comunidades étnicas podem ser formas de organização eficientes

para resistência ou conquista de espaços, ou seja, podem ser formas de organização

política. Os traços culturais poderão variar no tempo e no espaço, como de fato variam,

sem que isso afete a identidade do grupo. Essa perspectiva, retomada por Geertz, entre

outros, percebe a cultura como algo essencialmente dinâmico e perpetuamente re-

significado. O grupo étnico é, no sentido weberiano, claramente uma construção social,

cuja existência, sempre problemática, articula-se não no isolamento dos indivíduos, mas na

comunicação das diferenças das quais estes se apropriam para estabelecer fronteiras

étnicas. A grande contribuição do sociólogo alemão aos estudos da identidade étnica

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consiste, pois, na definição dos grupos étnicos a partir da crença subjetiva na origem

comum, já que estes são:

[...] grupos que alimentam uma crença subjetiva em uma comunidade de origem fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou dos dois, ou nas lembranças da colonização ou da migração, de modo que esta crença torna-se importante para a propagação da comunalização, pouco importando que uma comunidade de sangue exista ou não objetivamente (WEBER, 1979, p. 318, tradução do autor).14

A identidade étnica, portanto, diferentemente de outras formas de identidade

coletiva, é orientada para o passado. O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão auxilia na

compreensão dessa característica, ao afirmar que:

[...] grupos étnicos distinguem-se de outros grupos, por exemplo, de grupos religiosos, na medida em que se entendem a si mesmos e são percebidos pelos outros como contínuos ao longo da história, provindos de uma mesma ascendência e idênticos, malgrado separação geográfica. Entendem-se também a si mesmos como portadores de uma cultura e de tradições que os distinguem de outros (BRANDÃO, 1986. p. 117).

Na identificação de um grupo indígena enquanto tal, o senso comum, ainda nos dias

de hoje, recorre aos chamados traços culturais e/ou fenotípicos para estabelecer quem é ou

não é índio. A cultura e a fenotipia, porém, não ajudam a definir um grupo étnico. Ao

contrário, tornam muitas vezes confusa a identificação do mesmo, pois a cultura, em vez

de ser o pressuposto de um grupo étnico, é de certa forma produto deste. Já os traços

fenotípicos dão a idéia de que a noção de grupo étnico define-se biologicamente,

relacionando grupo étnico a grupo racial, o que a Antropologia Social já rechaçou

formalmente há tempos. Entretanto, nem sempre é o próprio grupo quem determina os

traços culturais a serem utilizados na elaboração de sua etnicidade. Trata-se de uma

tentativa de fazer a própria história de dentro para fora e, ao mesmo tempo, buscar mover-

se além das condições impostas sobre o grupo. Partindo dessa premissa, afastei-me da

perspectiva das teorias de aculturação e este trabalho alinhou-se, portanto, com a idéia

weberiana de que a identidade étnica não é dada e/ou estabelecida, e sim uma construção

social e/ou situacional. A etnicidade Kadiwéu foi percebida, então, como uma categoria

objetiva de auto-reconhecimento de diferenças, como a definição de terrenos simbólicos,

14 Traduzido do original em espanhol.

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em que os sinais diacríticos construídos sobrepõem-se àquilo com que se vive e pensa: a

própria marca da diferença. Segundo Brandão:

[...] as identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo confronto com o outro; por se ter de estar em contato, por ser obrigado a se opor, a dominar ou ser dominado, a tornar-se mais ou menos livre, a poder ou não construir por conta própria o seu mundo de símbolos e, no seu interior, aqueles que qualificam e identificam a pessoa, o grupo, a minoria, a raça [sic], o povo. Identidades são mais do que isto, não apenas o produto inevitável da oposição por contraste, mas o próprio reconhecimento social da diferença (BRANDÃO, 1986, p. 42).

O grupo étnico encontra sua expressão mais visível a partir da identidade étnica, o

que significa a classificação e a separação de um grupo de pessoas em um conjunto de

categorias definidas em termos de oposição. Os símbolos de identificação variam, podendo

ser lingüísticos, raciais, religiosos etc., mas são sempre usados como critérios de

classificação inclusivos e/ou exclusivos. A manipulação da identidade, portanto, envolve a

utilização de categorias que incluem ou excluem pessoas e determinam seu comportamento

e interação. Esse processo se desenvolve num contexto de relações interétnicas, colocando

em ação relações de oposição, o que Roberto Cardoso de Oliveira (1976b) qualificou,

notadamente, de identidade contrastiva. Há, pois, um dualismo presente na identidade

étnica: o fato dela ser uma combinação de fatores externos e internos.

As teorias de aculturação previam o gradual desaparecimento dos grupos étnicos,

que seriam incorporados, em maior ou menor grau, ao grupo majoritário. Egon Schaden

(1969), por exemplo, refere-se a processos de mudança decorrentes dos contatos entre

grupos culturalmente diversos, nos quais a aculturação seria o conjunto de transformações

irreversíveis das sociedades indígenas em contato com populações não-índias. Esses

grupos, como o Kadiwéu, persistiram, apesar das pressões assimilacionistas e, longe de

desaparecerem, foram capazes de se renovarem e se transformarem ao longo do tempo. De

acordo com Joana Fernandes:

A teoria da aculturação, muito difundida entre nós, vem sendo questionada pela antropologia desde a década de [19]70. Até aí, os estudos sobre sociedades indígenas eram, em sua maioria, orientados pela teoria da aculturação. [...] De um conceito teórico, a teoria da aculturação transforma-se em discurso, em julgamento de valor, em definição de linhas políticas para conduzir a política indigenista brasileira. Passa mesmo a ser sinônimo de índio descaracterizado, de índio que perdeu sua cultura, de índio que não é de verdade. [...] Por que a Antropologia abandona esses conceitos? [...] Abandona por um motivo simples: pela

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constatação de que inúmeras sociedades indígenas após quatro séculos de contato não desapareceram como seria previsível. Essas sociedades sofreram transformações decorrentes de seu processo histórico, mas persistiram e persistem diferenciadas da sociedade nacional (FERNANDES, 1993, p. 17-18).

Dessa forma, procurei demonstrar que os Kadiwéu fazem parte de um grupo étnico,

não apenas por compartilharem um mesmo modo peculiar de vida, mas, também, pela

representação dessa vida social. Esse grupo possui mecanismos de inclusão e/ou de

exclusão de indivíduos, assim como todos os grupos étnicos. Privilegiei o aspecto

diacrônico da elaboração da identidade étnica Kadiwéu, apontando para momentos

específicos da mesma, o que não significou uma preocupação exclusiva com eventos

isolados. Ao reunir fatos históricos relacionados aos Kadiwéu, busquei, portanto,

desvendar um fenômeno cultural historicamente significativo em sua especificidade,

levando em consideração, também, a memória social do grupo.

1.3. MEMÓRIA SOCIAL

Como a memória social está relacionada à construção da identidade étnica? Para o

historiador anglo-francês Michael Pollack (1992, p. 204), há, entre a memória e o

sentimento de identidade, a auto-imagem “[...] que uma pessoa adquire ao longo da vida,

[...] que constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria

representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos

outros”. Pollack explica essa ligação ao identificar três elementos essenciais na construção

da identidade: primeiro, a unidade física, ou seja, o sentimento de ter fronteiras físicas, no

caso do corpo da pessoa, ou fronteiras de pertinência a grupos, no caso de um coletivo;

segundo, a continuidade dentro do tempo, no sentido físico da palavra, mas também no

sentido moral e psicológico; terceiro, o sentimento de coerência, ou seja, de que os

diferentes elementos que formam um indivíduo são efetivamente unificados. Assim se

exprime Pollack a esse respeito:

Podemos portanto dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente muito importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLACK, 1992, p. 204).

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A contínua reconstrução da memória corresponde, portanto, à contínua

reconstrução do sentimento de identidade, pois:

[...] ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação, de transformação em função dos outros. [...] Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo. Se é possível o confronto entre a memória individual e a memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos (POLLACK, 1992, p. 204-205).

Assim, o estudo relacionado a uma sociedade indígena, cuja tradição oral resiste

com força até os dias atuais, fez-me recorrer ao conceito de memória, pois, segundo Le

Goff (1992, p. 476), “[...] são as sociedades cuja memória social é, sobretudo, oral ou que

estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita que melhor permitem

compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da

memória”. Acredito, como o historiador anglo-francês Robert Frank (1999, p. 112), que

“[...] a memória é também para o historiador, tomada globalmente, com suas verdades e

mentiras, suas luzes e sombras, seus problemas e suas certezas, um objeto de estudo”. O

conceito de memória coletiva, desenvolvido pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs

(1990), foi útil como ponto de partida para se pensar, entre outros aspectos, o que Jacques

Le Goff chama de “homens-memória”, ou seja, especialistas da memória nas sociedades

sem escrita. Halbwachs afirmou que as memórias são construídas por grupos sociais, ou

seja, os indivíduos lembram, no sentido físico, mas são os grupos sociais que determinam o

que é importante ser lembrado e de que forma será lembrado. Os indivíduos identificam-se

com os acontecimentos públicos que possuem importância para seu grupo, sendo a

memória uma espécie de reconstrução do passado. Os grupos sociais, entretanto, não

recordam da mesma maneira literal que os indivíduos (BURKE, 2000). Halbwachs fez uma

incisiva distinção entre a memória coletiva, para ele uma construção social, e a história

escrita, considerada — à maneira tradicional — objetiva. Contudo, inúmeros estudos

recentes a tratam de modo semelhante ao que Halbwachs tratou a memória, ou seja, como

produto de grupos sociais:

História científica e memória coletiva não se confundem, assim, como facetas intercambiáveis de uma mesma visão irracional do mundo, mas se

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constituem e se diferenciam pelos lugares distintos em que são produzidas. Ambas são produtos sociais e, como tal, ambas são marcadas pelas determinações de seu local de produção. Embora se voltem igualmente para o passado, memória e história fazem-no de modos distintos e é essa diferença mesma que funda a possibilidade de uma história científica (GUARINELLO, 1994, p. 185).

Para Halbwachs, a memória coletiva possui uma função social integradora. A esse

respeito, o historiador Norberto Luiz Guarinello (1994, p. 188) afirma que “[...] a memória

é, assim, uma forma de ação, uma ação representativa, parte da atividade auto-

representativa que uma sociedade, grupo ou indivíduo produzem de si, para assumirem e

defenderem sua identidade e para orientarem sua ação individual ou coletiva”. A memória

fixa os sentidos e as identidades, permitindo às sociedades indígenas traçarem suas origens,

garantindo permanência e auto-reconhecimento, a despeito do tempo. Pollack ressalta que

Halbwachs:

[...] longe de ver nesta memória coletiva uma imposição, uma forma específica de dominação ou violência simbólica, acentua as funções positivas desempenhadas pela memória comum, a saber, de reforçar a coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, donde o termo que utiliza, de “comunidade afetiva” (POLLACK, 1989, p. 6).

Concordo apenas parcialmente com Halbwachs e ao invés de utilizar a expressão

memória coletiva, preferi uma outra, memória social, estabelecida na última década por

antropólogos e historiadores como uma forma útil e simplificada que resume o complexo

processo de seleção e interpretação em uma fórmula simples, enfatizando a homologia

entre os meios pelos quais se recorda o passado. Se for arriscado tratar o conceito de

memória social como algo concreto, há o perigo de, ao recusá-lo, não perceber as

diferentes maneiras pelas quais as idéias dos indivíduos são influenciadas pelos grupos aos

quais pertencem. Afinal, todos nós temos acesso ao passado por meio de categorias e

esquemas de nossa própria cultura (BURKE, 2000). Penso que, como deseja o historiador

britânico Peter Burke, a memória deve ser estudada como uma fonte histórica, elaborando-

se uma crítica da confiabilidade da reminiscência no teor da crítica tradicional de

documentos históricos. A memória social, como a individual, é seletiva e flexível, e é

preciso identificar os princípios de seleção e flexibilidade e como ocorrem mudanças

nestes, com o passar do tempo. Quais os modos de transmissão de memórias coletivas

entre os Kadiwéu? De modo inverso, quais são os usos do esquecimento entre esses

índios? O que o presente não solicita à memória é esquecido, pois “[...] as fronteiras desses

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silêncios e ‘não-ditos’ com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente [...] estão

em perpétuo deslocamento” (POLLACK, 1989, p. 8). O rememorar também é estimulado

pelos lugares, testemunhos atuais de acontecimentos passados, de personagens e relações

pessoais. A memória individual, portanto, é, em parte, herdada, e, como a coletiva, é social

(MANCUSO, 2000, p. 83). Para Guarinello, a força e a fraqueza da memória residem na sua

fragilidade:

Os vínculos entre memória coletiva e história científica podem, na verdade, ser pensados em termos opostos. Podem ser vistos, em primeiro lugar, como uma relação positiva, pois a história produzida por historiadores, por especialistas da história, enriquece as representações possíveis da memória coletiva, fornece símbolos, conceitos, instrumentos rigorosos para que a sociedade pense a si mesma em sua relação com o passado. Mas podem também ser vistos sob um ângulo negativo, porque a história científica se volta regularmente contra as representações produzidas pela memória “espontânea” da sociedade, destruindo seus suportes, atacando seus princípios, seus pressupostos, seus símbolos (GUARINELLO, 1994, p. 181).

1.4. MITO E CULTURA

Em relação às sociedades indígenas, esses princípios, pressupostos e símbolos estão

intimamente ligados à mitologia desenvolvida pelos grupos. De acordo com Burke, o mito

está relacionado com a memória social, sendo composto por versões que nem sempre são

consideradas como parte integrante da história científica. Para tanto, o autor utiliza o termo

mito:

[...] não no sentido positivista de “história imprecisa”, mas no sentido mais rico e mais positivo de história com significado simbólico, composta a partir de incidentes estereotipados e envolvendo personagens de forma exagerada em relação à realidade, quer se trate de heróis quer dos seus opositores (BURKE, 2000, p. 243).

História e mito foram aqui entendidos como processos de percepção cultural, como

modos complementares de consciência social. A capacidade coletiva de a sociedade

indígena regular a sua própria produção em conjunção com sua situação de contato, não

somente condiciona a forma de seus mitos, de suas representações, mas condiciona,

também, sua forma histórica. Como enfatiza Pollack (1992, p. 211), “[...] a memória [...]

pode sobreviver a seu desaparecimento, assumindo em geral a forma de um mito que, por

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não poder se ancorar na realidade política do momento, alimenta-se de referências

culturais, literárias ou religiosas”. Segundo o antropólogo estadunidense James Fentress e

o historiador britânico Chris Wickham,

As memórias morrem, mas só para serem substituídas por novas memórias. Ao tentarmos explicar qual o verdadeiro significado das imagens e histórias da memória social, observámos uma tendência para deslizar de um tópico para outro ou apenas para racionalizar as imagens e histórias recontextualizando-as sob outras formas. Parece que, por vezes, podemos estar apenas a criar ilusões quanto à tentativa de “desenterrar” a memória social separando o mito do facto: pode acontecer que não obtenhamos senão mais uma lenda. Isso não significa porém que tenhamos que aceitar passiva e acriticamente a memória social. Podemos dialogar com ela, examinar-lhe os argumentos e pôr a prova as suas bases factuais. Mas esse interrogatório não pode revelar toda a verdade. É um erro pensar que depois de lhe termos espremido os factos, examinando os argumentos e reconstruído as experiências — isto é, depois de a termos transformado em “história” — arrumámos com a memória (FENTRESS e WICKHAM, 1992, p. 242-243).

Para o antropólogo Everardo Rocha (1985, p. 7), “[...] o mito é uma narrativa. É um

discurso, uma fala. É uma forma de as sociedades espelharem suas contradições,

exprimirem paradoxos, dúvidas e inquietações”, objetivando sintetizar as características

para a adoção de modelos a serem seguidos por todo o grupo. Entretanto, o mito não pode

ser visto como uma fala qualquer, pois se apresenta como uma narrativa especial que se

distingue das demais narrativas humanas, revelando funções sociais específicas e

garantindo, assim, sua existência e, por meio dele, a existência do próprio grupo. Nesse

contexto, a permanência do mito se dá, dentre outras formas, através da apresentação não-

linear da realidade social — compreendida como conjunto de caracteres (culturais,

religiosos, morais, econômicos, políticos, etc.) de determinado grupo —, pois a

constituição do mito integra interpretações de fatos que buscam enfatizar aqueles aspectos

que transcendem a um dado momento histórico. Dessa forma, no estudo dos mitos, lança-

se um olhar sobre parte integrante das memórias de um grupo, tendo como objetivo

visualizar elementos do seu ambiente sociocultural e de seu contexto histórico.

Segundo a antropóloga Rita Laura Segato (1987, p. 152), “O mito é capaz de

encarnar, de dramatizar numa narrativa um leque de verdades relevantes ou possíveis que,

mais do que expressar, revela, torna patentes o horizonte mesmo sobre o qual uma

sociedade constrói a sua existência”. O mito movimenta-se, principalmente, por meio do

aspecto simbólico que, de acordo com o historiador polonês Bronislaw Baczko (1984, p.

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309), tem como função “[...] não apenas instituir uma classificação, mas também introduzir

valores, modelando os comportamentos individuais e coletivos, indicando as possibilidades

de êxito de seus empreendimentos”. O mito, portanto, expressa-se por meio de símbolos

que são assumidos por um determinado grupo e de valores que formam um conjunto de

imagens e crenças, que pode ser incorporado pelas pessoas sem necessitar de

comprovações. Essa característica faz com que a narrativa mítica circule em um certo

grupo, mobilizando as ações dos indivíduos, o que, por sua vez, mostra o mito tanto

determinante como determinado pela cultura local.

Nessa perspectiva, as idéias desenvolvidas nos trabalhos de Geertz subsidiaram as

discussões que realizo sobre a cultura Kadiwéu, pois creio que os indivíduos não pensam

isoladamente, mas por meio de categorias engendradas pela vida social. Afinal:

O mundo cotidiano no qual se movem os membros de qualquer comunidade, seu campo de ação social, considerado garantido, é habitado não por homens quaisquer, sem rosto, sem qualidades, mas por homens personalizados, classes concretas de pessoas determinadas, positivamente caracterizadas e adequadamente rotuladas. Os sistemas de símbolos que definem essas classes não são dados pela natureza das coisas – eles são construídos historicamente, mantidos socialmente e aplicados individualmente (GEERTZ, 1989, p. 151).

CONCLUSÃO

Ao utilizar os conceitos teóricos aqui sinteticamente apresentados, espero revelar o

caráter seletivo e parcial da “verdade” histórica, o caráter coletivo e simbólico da memória

social de um grupo e o caráter cultural que uma determinada sociedade indígena dá às

interpretações sobre o passado. Concordando com Geertz (1989, p. 10), acredito que “[...]

compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir a sua

particularidade”. Se cabe ao etnógrafo inscrever o discurso social, anotando-o, coube a

mim, um historiador, investigá-lo, tornando visíveis as coincidências imprevistas, as

incoerências ou as ignorâncias que esta investigação revelou, pois “[...] pode ser que nas

particularidades culturais dos povos — nas suas esquisitices — sejam encontradas algumas

das revelações mais estruturais sobre o que é ser genericamente humano” (GEERTZ, 1989,

p. 32). Este trabalho, porém, não se reduziu às falas de indígenas Kadiwéu. Encontrei o

contraponto a esta visão interna dos eventos nos documentos produzidos na época das

demarcações, que revelaram como o espaço regional e a presença dos Kadiwéu na fronteira

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brasileira foram pensados pelos não-índios. Nesse aspecto, fui ao encontro das idéias do

sociólogo e historiador Osvaldo Zorzato, que afirma:

No Brasil, a regionalização do poder foi historicamente viabilizada quando parcela da população apropriou-se de extensos territórios e as elites aí constituídas passaram a pensar o espaço regional como local da própria brasilidade; daí se apresentarem como bandeirantes, mineiros, mato-grossenses etc. Paralelamente, elaborou-se um conjunto de narrativas ligadas à idéia de construir o país a partir de um espaço físico determinado. Em conjunto com esta espacialidade, legitimou-se uma estrutura sócio-cultural desejada, definindo-se então os papéis a serem desempenhados pelos diversos segmentos sociais de cada região (ZORZATO, 2000, p. 419).

Então, como foram pensados os Kadiwéu e qual o papel a ser desempenhado por

eles nas terras que lhes foram destinadas pelas demarcações de 1899-1900 e no início dos

anos 1980? O entendimento da delimitação física da Reserva Indígena Kadiwéu passa,

como se verá, pela mitificação de determinados eventos históricos importantes para o

grupo, pelas tradições orais indígenas relativas à definição dos limites da Reserva Indígena

Kadiwéu, que revelam a construção de uma identidade de guerreiros, cavaleiros, em uma

continuidade histórica com os Mbayá-Guaikuru do passado.

Entretanto, não é possível apenas se ater detidamente sobre a memória social do

grupo indígena, embora esta constitua no presente estudo, uma valiosa fonte histórica, pois,

para uma visão mais completa sobre o passado, é necessário buscar a compreensão do

papel desempenhado pelos diversos atores sociais, indígenas e não-indígenas. Assim, o

entendimento da delimitação física do Campo dos Índios passa, também, pelos discursos

produzidos pelos não-índios, pois, de acordo com a historiadora Lylia Galetti, entre o final

do século XIX e o início do século XX:

A “raça” mato-grossense, por sua vez, tirava seus predicados distintivos desse elemento formador de sua população, bem como, das condições em que teria ocorrido esta formação. O mato-grossense puro era um produto genuíno do bandeirantes [sic] ousado e do guapo guaicuru (GALETTI, 2000, p. 308).

E quem foram os Mbayá-Guaikuru, ancestrais dos atuais Kadiwéu? Quais as

características de seu ethos? É o que o Capítulo 2, intitulado De Mbayá-Guaikuru a

Kadiwéu: uma sociedade de guerreiros, procura desvendar por meio das fontes

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bibliográficas, cartográficas e documentais consultadas, compondo uma síntese a respeito

do tema.

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Dizem que, depois de serem creados os homens, e com elles repartidas as riquezas, uma ave de rapina que no Brazil chamam carácará se lastimára de não haver no mundo Guaycurú; que os creára, e lhes dera o porrete, a lança, o arco e as flechas, e dissera que com aquellas armas fariam a guerra ás outras nações, das quaes tomariam os filhos para captivos, e roubariam o que pudessem [...] (Francisco Rodrigues do Prado, geógrafo português).

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CAPÍTULO 2

DE MBAYÁ-GUAIKURU A KADIWÉU:

UMA SOCIEDADE DE GUERREIROS

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, foi produzido um considerável número de trabalhos acadêmicos,

em programas de pós-graduação, que versam sobre os Kadiwéu, em diversas áreas do

conhecimento. Entre eles, cito Histórias de admirar: mito, rito e história Kadiwéu

(PECHINCHA, 1994) e “Esse campo custou o sangue dos nossos avós”: a construção do

tempo e espaço Kadiwéu (SIQUEIRA JR., 1993) — em Antropologia Social; Memórias do

guerreiro, sonhos de atleta: jogos tradicionais e esporte entre jovens Kadiwéu (VINHA,

1999) — em Educação Física; A arte como trama do mundo: corpo, grafismo e cerâmica

Kadiwéu (PADILHA, 1996) — em Ciências Sociais; A grammar of Kadiwéu (SÂNDALO,

1997) — em Lingüística — e Vozes da Bodoquena: análise semiótica do discurso

Kadiwéu (DINIZ, 1998) — em Letras. Além desses, dois trabalhos na área de História

merecem destaque, por abordarem os Mbayá-Guaikuru, ancestrais dos atuais Kadiwéu. São

eles: Os Eyiguayegui-Mbayá-Guaicuru: encontros e confrontos com os luso-brasileiros na

capitania de Mato Grosso, de Astor Weber (2002), e Os Mbayá-Guaicuru: área,

assentamento, subsistência e cultura material, de Ana Lúcia Herberts (1998b).

No presente capítulo, elaboro sumária apresentação da sociedade indígena

Kadiwéu, especialmente entre o final do século XIX e o início do século XX. Não pretendi,

portanto, realizar um levantamento exaustivo sobre o assunto, mas estabelecer um ponto de

partida para o estudo da construção física, social e simbólica da Reserva Indígena

Kadiwéu. Creio ser suficiente remeter o leitor aos trabalhos de Herberts e Weber para

maiores informações a respeito dos Mbayá-Guaikuru, no período compreendido entre os

séculos XVI e XIX, sem esquecer de mencionar, também, os importantes trabalhos dos

etnólogos de origem européia, Branislava Susnik (1978) e Alfred Metráux (1996), a

respeito desse tema e de outros.

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Segundo estudos realizados pelo arqueólogo Gilson Rodolfo Martins:

Para podermos estabelecer com precisão a origem pré-histórica dos Kadiwéu é necessário aguardar o desenvolvimento da ciência arqueológica na região platina. Até o momento os dados científicos reunidos nos permitem apenas aproximações explicativas (MARTINS, 1992, p. 3).

Em levantamentos arqueológicos realizados recentemente na atual Reserva

Indígena Kadiwéu foram encontrados vestígios de cerâmica Guarani datados de períodos

anteriores ao estabelecimento dos Mbayá-Guaikuru na área (VERBISCK, 2001), o que

poderá indicar, por meio de futuras pesquisas, a presença histórica de outras etnias na

região durante os períodos pré-colonial e colonial. Esses estudos serão necessários,

objetivando a ampliação do entendimento acerca da organização do espaço e da

compreensão da presença indígena na porção ocidental do atual Estado do Mato Grosso do

Sul, anterior à chegada dos colonizadores ibéricos. Não há, até o momento, um número

expressivo de pesquisas sobre o tema, razão pela qual, no presente estudo, não se

privilegiou as fontes arqueológicas, embora eu as considere de suma importância para a

História Indígena, pois:

Apesar de ser uma peça fundamental no “quebra cabeça” que busca compreender o processo de ocupação da América do Sul pelo homem pré-histórico, na maior parte do território de Mato Grosso do Sul, as pesquisas arqueológicas estão ainda na fase preliminar de levantamentos e análises. [...] Uma variada formação pretérita de horizontes culturais revela a existência, em Mato Grosso do Sul, de grupos de caçadores/ coletores/ pescadores e de grupos indígenas ceramistas, cujas origens são anteriores ao desenvolvimento das etnias conhecidas desde os tempos coloniais. Por outro lado, alguns desses sítios, com certeza, atestam a presença passada, pré-colonial, dos grupos étnicos historicamente conhecidos (MARTINS, 2002, p. 19).

A esse respeito, Martins ainda lembra que:

O modo de ser dos Kadiwéu também é um fator que contribui para a escassez de vestígios arqueológicos, já que o seu padrão de assentamento era efêmero e por estarem em constante deslocamento não investiam em um volume de elementos materiais maior do que podiam carregar em seus cavalos (MARTINS, 1992, p. 63).

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2.1. SÉCULOS XVI E XVII

O que se sabe, ao certo, é que o espaço geográfico tradicional dos falantes da

família Guaikuru é o Gran Chaco paraguaio.15 A palavra Chaco é de origem Quíchua e

significa campo de caça. O território conhecido como Gran Chaco, cuja característica

topográfica dominante é a planície, abrange cerca de 700.000 km², distribuídos entre

Paraguai, Bolívia e Argentina. Geograficamente, o Chaco é uma vasta planície circundada

pelas montanhas subandinas a oeste; pelas serras e morros baixos ao final do maciço

central brasileiro e as sierras de San José e San Carlos, na parte norte. Pelo leste, o Chaco

é bordejado pelo rio Paraguai e ao sul pelas sierras de Córdoba e Gauyasán. Os principais

rios que cortam o Chaco são Pilcomayo, Bermejo e Salado, que nascem nos Andes e

alcançam o rio Paraguai. De maneira geral, o Chaco é uma região seca, sendo que a

ocupação humana foi facilitada pela presença de lagoas e canais que abundantemente

irrigam a região. As fronteiras ocidentais desta região estiveram abertas às influências

culturais andinas; as fronteiras orientais, às influências Guarani e, o sul, às influências dos

pampídeos.16 Em tempos remotos — antes da chegada dos europeus, no século XVI —, a

região foi habitada por povos de língua Guaikuru, entre outros.

Segundo Susnik (1978), a classificação das populações da área chaquenha

desenvolveu-se a partir de condicionantes lingüísticos, indicativo considerado mais

eficiente para identificar e classificar a complexidade dos grupos que ocupavam a região.

Esses grupos étnicos manifestavam algumas características comuns: tipo físico forte e

definido, modo de subsistência de caçadores e coletores, conduta hostil aos vizinhos

grupos cultivadores e ethos belicoso, próprio dos caçadores-guerreiros. A classificação por

estas pautas teve o caráter de uma identificação etno-ambiental, circunstância que induziu

diversos estudiosos ao erro de se referirem a uma nação Guaikuru, ou de generalizar o

etnônimo, denominando Guaikuru a vários grupos étnicos e parciais que periodicamente

adquiriam importância por suas relações hostis com o mundo colonial. O etnônimo

Guaikuru referia-se, basicamente, aos habitantes com o característico sufixo étnico “-yiqui/

-yegi”. Na área chaquenha, os Mbayá-Guaikuru constituíram um dos grupos mais

representativos, do ponto de vista da resistência à presença ibérica. Os cronistas

15 Cf. Anexos – Mapas: Mapas A e B. 16 Cf. PLANO de Conservação da Bacia do Alto Paraguai (PCBAP), 1994.

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destacaram a grande habilidade e resistência física dos Mbayá e as correrias incessantes o

comprovam; os Mbayá foram, como a maioria das etnias guerreiras, conscientes do valor

que representava a resistência física, e a fomentavam, segundo seu critério cultural, com

diferentes práticas físico-cerimoniais e prescrições alimentares (SUSNIK, 1978). Essas

práticas e prescrições visavam preparar o guerreiro para as incursões realizadas no Chaco

e, especialmente, para a obtenção de cativos:

Assim, começou a se delinear o pathos mbayá de um destino “destruidor”, o mito mbayá de uma necessidade de “conquistar terras” e “destruir gentes” por ter se esquecido deles o herói mítico que foi o primeiro a designá-los caçadores e homens do campo (SUSNIK, 1978, p. 8-9, tradução do autor).17

Para a historiadora Ana Lúcia Herberts:

[...] conclui-se a partir da análise das informações pertinentes aos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, que os Mbayá-Guaicuru possuíam assentamentos pouco estáveis no Chaco, em função das condições ambientais da região, onde há a alternância de períodos de seca e de chuvas torrenciais e do tipo subsistencial característico: caçador-pescador-coletor. Os Mbayá-Guaicuru eram grupos nômades que realizavam deslocamentos constantes no Chaco em busca de locais propícios para seu sustento. Em períodos de seca o grupo procurava áreas próximas a lagoas, pântanos e charcos para seus assentamentos, pois ali obtinha água e alimentos para sua subsistência (HERBERTS, 1998b, p. 75).

Ainda, segundo a mesma autora:

Informações relevantes para os tipos de assentamentos Mbayá-Guaikuru na região do alto Paraguai, principalmente quanto à ocupação da área compreendida entre os rios Taquari e Ypané, na margem oriental do rio Paraguai, somente são encontradas a partir da metade do século XVIII (HERBERTS, 1998b, p. 76).

Os grupos Guaikuru eram os que mais extensamente se distribuíam no Gran Chaco,

compreendendo os Abipon, Mocovi, Toba, Pilagá, Payaguá e os Mbayá, que ocupavam a

área mais setentrional. Essas distintas sociedades comportavam várias subdivisões, mas

mantinham uma certa unidade cultural, sobretudo através da língua. Antes dos contatos

com os não-índios, os Guaikuru apresentavam alguma preponderância sobre outros grupos

indígenas, sendo que essa tendência recrudesceu entre os séculos XVI e XVII, com a

17 Traduzido do original em espanhol.

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introdução do cavalo europeu (Equus cabalus) na região. Sem esse animal, teria sido

praticamente impossível o desenvolvimento do legendário modelo guerreiro dos Mbayá-

Guaikuru, conhecidos desde a época colonial como índios cavaleiros. Isso possibilitou um

aumento do seu território e do seu poderio bélico, pois, com o cavalo, puderam entrar em

contato com grupos indígenas mais distantes, de modo a lhes impor uma espécie de

subordinação. Darcy Ribeiro assinala que:

A consciência de território expressa na ênfase que deram ao tema da distribuição das terras é estranhável numa tribo nômade que vivia da coleta, da caça e do pastoreio. Segundo Schaden ela reflete a importância que alcançou na economia Mbayá a simbiose [...] com povos lavradores. Outra explicação é possível: tamanha preocupação com o “espaço vital” talvez tenha surgido como expressão do encurralamento dos antigos Mbayá numa zona inóspita, pois sua fixação no Chaco não pode ter resultado de uma acomodação pacífica; é muito provável que tenham sido compelidos a aceitar aquele habitat sob pressão de outros povos. Uma indicação disto é que os Mbayá ao aumentarem seu poderio guerreiro, foram se aproximando do rio Paraguai, o que de resto, ocorreu com todos os povos chaquenhos, sempre em luta pela conquista de um nicho melhor (RIBEIRO, 1980a, p. 63).

Os Mbayá autodenominavam-se Eyiguayegi18, que em língua portuguesa

significava gente da palmeira eyuguá. A referida palmeira, também conhecida como

carandá (Copernicia cerifera), representava um bem substancial e era um destaque

quantitativo expressivo na paisagem do habitat étnico, portanto, fundamental para o grupo.

Apesar dos Mbayá-Guaikuru serem caçadores e coletores, os grupos não eram totalmente

nômades. O fato de se tornarem eqüestres intensificou a mobilidade dos grupos. Prova

disso é que os diversos etnônimos dos subgrupos Guaikuru derivavam de alguma

característica de seu habitat: Getiadegodi (povo das montanhas), Apacaxodegodegi (povo

da região das emas), Lixagotegogi (povo da terra vermelha), Eyibogodegi (os

“escondidos”), Gotocogegodegi (povo da região da madeira de confecção dos arcos) e os

Cadigegodi (povo da região do rio Cadigigi). Susnik caracteriza assim esses últimos:

Cadiguegodi (Caduveo-Mbayá-Guaycurú), “os habitantes de lugares onde cresce a planta cadi”; seu antigo habitat parcial abarcava a área próxima ao atual Forte Olimpo, com [...] possessão da terra na margem oposta do R. Paraguay; os vestígios da típica cerâmica caduvea [Kadiwéu] foram encontrados próximos à Laguna Blanca, terra chaquenha localizada distante [no interior do Paraguai]. No início de seu transhabitat oriental

18 Os Kadiwéu, na atualidade, se autodenominam Ejiwajegi (lê-se “edjiúadjegui”). Cf. DICIONÁRIO da Língua Kadiwéu, 2002, p. 42.

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ocupavam a área entre o R. Apa e o R. Ypané, mantendo-se nas margens do rio, mas desde esse ponto seguiam até o norte. O morro Pão de Açúcar persiste na tradição dos Chamacoco, herdeiros do habitat caduveo, “como a montanha dos xamãs caddiot”. Desde as terras desta parcialidade se efetuavam amplas correrias até o oeste, leste e norte, de maneira que os cativos-escravos pertenciam etnicamente a diferentes grupos. As aldeias dos Cadiguegodis não tinham localização separada das aldeias guaná; a plantação, “ittacoli”, e o lote apto para o pastoreio de cavalos, “appolicana”, se uniam; no habitat caduveo se intercambiavam a “dimi” (“casa grande de esteiras”) com as “peti” (casas comunais) Guaná. Esta estreita convivência local contribuiu para uma maior “guananização” dos elementos culturais dos Caduveos que se tornaram posteriormente excelentes ceramistas e bons tecelões (SUSNIK, 1978, p. 11-12, tradução do autor). 19

Os Mbayá-Guaikuru apresentavam, em sua organização social, um aspecto

peculiar, se comparados a outros grupos que habitavam em território que hoje pertence ao

Brasil: a estratificação social. Nessa estratificação havia lugar para três segmentos

distintos: os caciques, que desposavam líderes Guaná (após a morte destas, seus

subordinados permaneciam mantendo relações serviçais aos descendentes); a gente

comum, os Mbayá que não tinham direito aos serviços dos cativos; os cativos, na maioria

das vezes prisioneiros de guerra dos Mbayá. Entretanto, por falta de documentação sobre o

tema, não estão claras as relações mantidas entre estes três segmentos. Também não se

pode afirmar até que ponto existiu, entre eles, uma relação hierárquica e compulsória na

divisão social do trabalho e no sistema político. O etnólogo Darcy Ribeiro afirma,

estabelecendo relações entre as conquistas territoriais e a estratificação social, que:

[...] o território que, no auge de sua expansão, cobriam nas sortidas guerreiras, se estendia de Assunção, no Paraguai, a Cuiabá, em Mato Grosso, e desde as aldeias dos Chiriguano a oeste, no interior do Chaco, até as barrancas do Paraná. Cativos trazidos de tribos de toda esta área, os serviam em suas aldeias, [...]. Suas tendências ao domínio de outros povos e a estratificação de sua sociedade em camadas de senhores e servos é anterior aos primeiros contatos com elementos europeus (RIBEIRO, 1980a, p. 59, grifos do autor).

As primeiras informações que se tem sobre os Guaná, com quem os Mbayá-

Guaikuru estabeleceram relações de dominação ao longo do tempo, mostram que esses

índios possuíam uma agricultura bastante desenvolvida. O naturalista luso-brasileiro

Alexandre Rodrigues Ferreira (1974, p. 78), em fins do século XVIII, observou em seus

19 Traduzido do original em espanhol.

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escritos que “[...] pouca diferença têm [os Guaná] dos Guaikurus, de quem são vizinhos,

amigos e aliados. Casam entre si e reciprocamente se auxiliam, sempre que assim o pede

alguma urgência pública ou particular”. Segundo Cardoso de Oliveira (1976a, p. 31), “[...]

não se pode compreender a cultura dos grupos Guaná sem se atentar para as relações que

se estabeleceram entre eles e os grupos Mbayá-Guaikurú”. Os Terena, os Layana e os

Kinikinau são considerados remanescentes dos antigos Guaná. Atualmente, estão presentes

em território sul-mato-grossense, em sua maioria, na região localizada entre os municípios

de Aquidauana, Miranda e Porto Murtinho.

No processo de relações interétnicas estabelecidas entre esses dois grupos, a

tendência observada por vários autores foi a de domínio dos Mbayá-Guaikuru sobre os

Guaná. Ao longo do tempo, essa relação foi classificada de diferentes maneiras: senhor-

escravo e senhor-servo, por exemplo. Os relatos do viajante austro-alemão Ulrico

Schmidel são considerados uma das fontes mais importantes para a história das populações

que habitavam o Chaco no século XVI. Schmidel serviu de mercenário para

conquistadores espanhóis, como Pedro de Mendoza e Domingos Irala. Na crônica de suas

aventuras descreveu a entrada no estuário do Prata e as fundações de Buenos Aires e

Assunção pelos espanhóis. Dedicou atenção especial aos índios e aos seus costumes,

escrevendo sobre as relações entre os Mbayá-Guaikuru e os Guaná. A esse respeito,

Cardoso de Oliveira comenta:

[...] o depoimento do bávaro Schmidel não é importante apenas por se constituir numa das raras informações que se têm dos Guaná quinhentistas; toda sua relevância se impõe quando nos esclarece sobre o caráter não-escravocrata do domínio Guaikurú, ao projetar sobre as relações intertribais Guaikurú-Guaná o tipo de relações feudais que naquele século [XVI] tinham lugar em sua pátria. Todavia, é comum ler-se nos cronistas a expressão “escravos”, quando se referem à servidão Guaná (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976a, p. 32).

Na sociedade Mbayá-Guaikuru a educação para a guerra era cumprida por meio de

uma série de ritos, nos quais o jovem ia tornando-se, ao mesmo tempo, homem e guerreiro.

A socialização dos homens começava a partir dos 14 anos e, antes dessa idade, as crianças

passavam pela primeira iniciação. Nesse primeiro momento, o menino era pintado de

preto, sem sofrer escarificações. Os pré-puberes, entre 14 e 16 anos, manifestavam

agressividade aos pais como norma de conduta, o que conferia à agressividade a qualidade

de uma espécie de ensaio para a guerra. Os adolescentes ou soldados eram pintados com a

cor vermelha durante a segunda iniciação, ocasião em que tocavam tambor e cantavam

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durante um dia inteiro, enquanto sofriam escarificações, sem que pudessem manifestar dor

ou medo. A partir de então, acompanhavam os guerreiros veteranos em suas incursões,

tornando-se independentes dos maiores. A agressividade contra os pais transformava-se em

distância respeitosa. Adquiriam, então, os direitos de participar de caçadas coletivas e de

ter relações sexuais com cativas.

A terceira graduação ritual tinha características de um rito guerreiro. A partir dos 20

anos, um Mbayá-Guaikuru podia transformar-se em guerreiro-veterano. O ritual ocorria

esfregando-se cera ou gordura de peixe no corpo do iniciado. Em seguida, alguns

guerreiros eram escolhidos para enfeitá-lo com penas de ave de rapina. Deste momento em

diante, deixava de ser acompanhante dos guerreiros para tornar-se participante das

convocações para a guerra, podendo usar pinturas corporais de diversas cores e uma estrela

branca nas costas.20 Susnik relaciona a preparação dos guerreiros Mbayá com as investidas

contra os colonizadores:

As primeiras expedições coloniais tinham caráter punitivo, carecendo da necessária resistência eficaz. Até fins do século 17 manifestou-se a transculturação dos eqüestres Mbayá; a possessão da zona ypanense significava também um contato mais intenso e permanente com o ambiente colonial dos Ecalais como os Mbayá chamavam aos espanhóis; o “aquinaga”, homem-caçador-guerreiro, deu lugar ao “uneleigua”, homem-guerreiro eqüestre, senhor de vassalos e escravos, homem da classe de “capitães e soldados”; a comunidade socioguerreira predominava sobre a comunidade econômica; a pintura corporal, habitual no cerimonial social dos homens mbayá, integrou a “eótedi” (estrela branca) sobre o fundo negro, conhecida logo pelos Chamacoco como “estrela caduvea”; o exame dos elementos culturais “acoinogoa” (“estranhos”) aceitos pelos Mbayá indica uma seleção sumamente utilitária ou com caráter socioexpressivo (SUSNIK, 1978, p. 9-10, tradução do autor).21

Para Darcy Ribeiro:

A guerra foi para a sociedade Guaikuru uma fonte de riquezas e prestígio social, já que o herói guerreiro era o ideal máximo da cultura, mas, principalmente uma fonte de servos. Roubando crianças de outros grupos eles cobriam os claros abertos em suas fileiras pela prática do aborto e infanticídio que levaram a uma escala inigualada mesmo pelos povos modernos (RIBEIRO, 1980a, p. 20).

20 Cf. SÁNCHEZ LABRADOR, 1910. 21 Traduzido do original em espanhol.

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O grande número de grupos e subgrupos que compunha a família lingüística

Guaikuru começou a decrescer, progressivamente, quando do estabelecimento dos ibéricos,

a partir do século XVI, em seus territórios tradicionais. Anteriormente à conquista ibérica,

os Mbayá-Guaikuru estavam concentrados entre os rios Pilcomayo e Bermejo e ao longo

do rio Paraguai. Há estimativas que durante o século XVIII a população Mbayá variava

entre 7.000 e 8.000 indígenas. Nesse período, faziam parte do grupo Mbayá os Cadigegodi,

cujos remanescentes são os atuais Kadiwéu. Diversas denominações aparecem em livros e

documentos referindo-se ao mesmo grupo, entre elas, Caduvei, Caduvéo, Cadiuveos,

Cadiuéu, Cadioéos, Cadiuéos, Cadivéns, Kadiueu, Kadiuéo e Cadineos. Somente em fins

do século XVIII, os Cadigegodi começaram a se deslocar do Gran Chaco para as barrancas

do rio Paraguai. Na passagem do século XVIII para o século XIX, eles se fixaram,

definitivamente, à margem esquerda do referido rio.

Com a destreza na utilização do cavalo, os Mbayá-Guaikuru se defrontavam

litigiosamente com outros grupos indígenas da região, transformando, como mencionado

anteriormente, os prisioneiros em cativos. Na literatura etnográfica, os Guaikuru são

caracterizados como um povo extremamente belicoso. Com a adoção do cavalo pelos

Guaikuru, tomado dos espanhóis provavelmente em fins do século XVI e início do século

XVII, em muito foi aumentado o raio de ação de seus ataques. Para o historiador Sérgio

Buarque de Holanda,

Mesmo depois de o adquirir e de introduzi-lo em seu trem de vida, o guaicuru podia preservar algumas das aptidões aparentemente tradicionais de sua estirpe. Na segunda metade do século XVII observou um jesuíta que ao talhe e boa proporção do corpo correspondia no guaicuru uma agilidade fora do comum nos movimentos. Para montar não se valia de estribos. Corria atrás do animal, apanhando-o e dominando-o com uma velocidade nada inferior à daqueles brutos (HOLANDA, 1986, p. 70).

Contudo, não foram todos os Guaikuru que adotaram o cavalo. Os Mbayá

utilizaram-no de tal maneira que ficaram caracterizados pelo seu uso, passando a serem

conhecidos como índios cavaleiros. Alguns estudiosos calculam que esses índios chegaram

a possuir de 6.000 a 8.000 cavalos ao mesmo tempo, sendo que esse número pode ter sido

maior (HOLANDA, 1986, p. 72). Os ataques Guaikuru aos estabelecimentos espanhóis e

portugueses eram constantes e, do lado dos índios, muitas baixas ocorriam em virtude do

avanço dos colonizadores sobre a terra mbayânica (BASTOS, 1972). No século XVII,

instalaram-se missões jesuíticas na área colonial espanhola, fator importante para o

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aldeamento e pacificação dos índios do Chaco. Somente depois de diversas tentativas

frustradas, os jesuítas conseguiram estabelecer, entre estes índios, uma missão que duraria

até sua expulsão da América, em meados do século XVIII. Contudo, não foram capazes de

dominá-los ou ao menos se imporem a todos os grupos Mbayá.

2.2. SÉCULO XVIII

As fortificações coloniais de Espanha e Portugal, criadas para garantir as áreas

pretendidas por essas metrópoles, eram alvos constantes dos ataques Guaikuru. A forte

resistência apresentada por esses índios à colonização — tanto espanhola como portuguesa

— encontra-se registrada em diversas descrições históricas sobre a então Capitania de

Mato Grosso.22 No início do século XVIII, com a descoberta de metais preciosos na região

de Cuiabá, nova situação foi criada na história do contato dos Guaikuru com os não-índios.

Alguns grupos Mbayá (cavaleiros) estabeleceram uma aliança com os Payaguá (canoeiros)

para atacar as monções:

Na área oriental, os Eyiguayegis-Mbayá também continuaram seus assaltos, aliando-se com freqüência com os Payaguá, ameaçando a destruição dos povos hispano-guaranis e das missões. O principal objetivo destes assaltos constituía ainda o botim como valor econômico, mas já se manifestava uma tendência de expansão ambiental até as terras subsistencialmente mais potenciais do sul, pois seu antigo habitat de caçadores, [...] resultava bastante empobrecido por causa de um intenso aproveitamento; sua estrutura etno-sócio-econômica baseada na norma de “niyolola-vassalos-cultivadores” decaía por haver saído grande parte das comunidades guaná do habitat chaquenho (SUSNIK, 1978, p. 15, tradução do autor).23

Foi com a descoberta de ouro em Cuiabá, pelos bandeirantes paulistas, em 1719,

que as atenções luso-brasileiras direcionaram-se para o eixo Centro-Oeste. O

desenvolvimento da atividade monçoeira (comboios fluviais) entre a região do garimpo

cuiabano e São Paulo, fez do sul do Mato Grosso e de sua extensa malha hidrográfica

suporte para intenso trânsito comercial. Segundo Holanda (1990, p. 43), “[...] a história das

monções do Cuiabá é, de certa forma, um prolongamento da história das bandeiras

22 Cf. CALDAS, 1887; TAUNAY, 1931, por exemplo. 23 Traduzido do original em espanhol.

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paulistas, em sua expansão para o Brasil Central”. Valmir Batista Corrêa corrobora essas

idéias, mas afirma, também:

Esta fase do expansionismo europeu no continente sul-americano encontrou, de maneira determinante, uma poderosa barreira indígena de cultura chaquenha, através dos ataques dos Payaguá e da aguerrida nação Guaikurú, que, com certeza, definiu os rumos da conquista colonial (CORRÊA, V., 1999, p. 113).

Em 1723, o capitão português Antonio Pires de Campos, na Breve notícia que dá o

gentio bárbaro que ha na derrota da viagem das minas de Cuyabá..., afirma, a respeito dos

índios Guaikuru:

[...] e também guerreão com os Payaguas e cavaleiros, estes trios rios parão-se em um só, o qual se chama Betelehu o Rio Claro e o Ariguahu todos estes fazem barra no Paraguay. Abaixo d’ esta barra habitão o gentio Payaguazes... Este gentio consta de tres lotes grande qi semandão todos unidos de muita gente e os Cavalleiros chamados Guaicurus companheiros e amigos com eles andão por termal e os ditos pelos rios, de quaes a quaes mais mal hão de fazer... Cursão até o rio Oraguahy, Rio de Botelehuço, Rio Claro e todas as vargens de Tacuary, e todos estes districtos andão fazendo grandes destruições... e até o Rio do Porrudos e dahi para cima pelo dito Paraguay...24

É também de Pires de Campos a seguinte observação a respeito da aliança entre os

Guaikuru e os Payaguá:

Todo o distrito de Cuiabá nos primeiros anos sofreu muito; principalmente dos assaltos do gentio canoeiro ou Paiaguá, de nação e lingua estranha aos Tupi ou Guaranis, que senhoreava todo o alto Paraguai e seus afluentes. A estes índios o perigo unira de tal modo que em seus ataques preveniam emboscadas às vezes de cem canoas. Já em 1725 haviam eles acometido a expedição de Diogo de Souza Araújo que então perdeu a vida. No ano seguinte, reunidos aos índios Cavaleiros ou Guaicurus, avançaram no Taquari, a uma tropa ou comboio que voltava a Minas e que tive um cerco durante cinco dias não lhe resultando maior mal, por lhe chegar um socorro de cinqüenta canoas. Em 1727 os mesmos índios surpreenderam no rio Paraguai outro comboio de gente nossa, das quaes tomaram duas matando dois sertanistas que nelas iam com os escravos e cativando o filho de um deles.25

24 Breve notícia que dá o Capitão Antonio Pires de Campos do gentio Bárbaro que ha na derrota da viagem das minas de Cuyabá a seus recôncavos... até o dia 20 de maio de 1723. Lata 3. Documento I. Brasília: Dedoc/ Funai, 1723. Manuscrito do IHGB. 25 Breve notícia que dá o Capitão Antonio Pires de Campos do gentio Bárbaro que ha na derrota da viagem das minas de Cuyabá a seus recôncavos... até o dia 20 de maio de 1723. Lata 3. Documento I. Brasília: Dedoc/ Funai, 1723. Manuscrito do IHGB.

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De acordo com Holanda (1990, p. 64), “[...] só cessariam de todo as agressões

desses índios [Payaguá] quando, já em fins do século XVIII, se desconcertou o trato de

amizade que tinham com os Guaicuru, principal esteio de seu antigo poderio”. Rodrigues

do Prado (1908) registra ataques em 1725, 1726, 1728, 1730, 1731, 1733, 1734, 1738,

1743, 1744, 1752 e 1753, com inúmeras vítimas de ambos os lados. Segundo Metráux

(1996, p. 40), o fim da aliança ocorreu por volta de 1768. Para o historiador Astor Weber:

Os ataques dos Eyiguayegi às monções e aos moradores da região pantaneira tornaram-se corriqueiros no século XVIII. Isso preocupou muito o governo colonial; providências deveriam ser tomadas, pois, além do prejuízo financeiro e de perdas de vidas humanas, o projeto político de conquista e colonização da fronteira poderia malograr (WEBER, 2002, p. 67).

A contínua resistência que os Mbayá-Guaikuru ofereceram aos portugueses foi

objeto de sérias preocupações por parte dos colonizadores, os quais tentavam sempre

estabelecer uma aproximação com os índios. Com este objetivo, em 1777, o governador da

Capitania de Mato Grosso e Cuiabá, Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres,

enviou uma expedição à região do rio Paraguai com a intenção de realizar uma

“conferência” com os Guaikuru. Os resultados dessa expedição são descritos num

documento enviado ao rei de Portugal, do qual reproduzo o trecho abaixo:

Ilmo e Exmo. Senhor: Ponho nas mãos de Vossa Excellencia para que hajam de chegar ao real conhecimento de Sua Majestade as copias incluzas onde se conheça as derradeiras noticias que me participaram do Prezidio de Nova Coimbra assim a respeito da exploração última que mandei fazer sobre o Rio Paraguay até 4 dias mais de Boa Viagem para baixo, ou para o sul do mesmo prezydio concernentemente das principais praticas que já se tiveram em conformidade da ordem do dito senhor e das consequentes instrucções minhas com a valeroza nação dos índios Guaycuruz ou Cavalleiros que habitão perto d’aquellas margens em grande número, rezultando desta communicação uns principios de commercio que sendo possível aperfeiçoar bem se vê que elle poderia vir a ser ainda da maior utilidade ao fim principalmente de conservar e mesmo extender os adjacentes territorios que pertencem ao Real Dominio Portuguez cujos por aquellas partes terminam o Brasil ou bem parece que deveriam terminal-o.26

26 Diário da expedição que ultimamente se faz desde o Prezydio de Nova Coimbra pelo Rio Paraguay abaixo... e onde principalmente se relatão algumas conferências que se fizerão pela gente da mesma expedição com o gentio Guaycuruz ou Cavaleiro em 1777. Brasília: Dedoc/ Funai, 1777. Manuscrito do IHGB.

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É possível notar, em trechos de documentos como o acima referido, a intenção dos

portugueses em ganhar a confiança dos índios como meio para ajudar a assegurar a posse

de territórios para o domínio colonial luso-brasileiro, já que este era continuamente

ameaçado, na fronteira do sul de Mato Grosso, pela presença espanhola. Embora atacando,

ora os portugueses (como em 1778, próximo ao Forte Coimbra), ora os espanhóis, os

Mbayá-Guaikuru foram levados a estabelecer relações de proximidade com esses últimos,

perspectiva que deixava os portugueses temerosos das conseqüências que pudessem advir

desta aliança, já que na região de fronteira a situação era de extrema tensão. Em um

documento sobre os Guaikuru, Francisco Rodrigues do Prado escreve que:

Os Guaycurus, que assistem do Fecho dos Morros para baixo, tem paz com os Hespanhóes da provincia do Paraguay desde a era de 1774: esta alliança foi feita por via de um padre, que levado das suas inclinações soube introduzir-se entre os selvagens, [...], e por esta fórma livrou a sua patria das continuas hostilidades que soffria destes barbaros, e adquiriu nome de justo entre a plebe hespanhola (PRADO, 1908, p. 56-57).

O padre ao qual se refere Rodrigues do Prado é o jesuíta José Sánchez Labrador.

Segundo Ribeiro, esse missionário:

[...] fundou em 1760 a Misión de Nuestra Señora de Belén e lá permaneceu até a expulsão da Cia. de Jesus em 1767. Embora vivessem na Redução apenas os Apacachodegodegi, ele conheceu todas as outras subtribos Mbayá. Durante aqueles sete anos de trabalhos apostólicos, este missionário, dotado de viva curiosidade e grande capacidade de observação, adquiriu profundo conhecimento de seus catecúmenos, deixando-nos – não obstante seu dogmatismo religioso – preciosas descrições das suas cerimônias e os primeiros mitos registrados entre eles (RIBEIRO, 1980a, p. 27).

Assim como outros jesuítas da época, o maior objetivo de Sánchez Labrador era

aliar os anseios religiosos aos da colonização espanhola. A conquista do Chaco era

fundamental para o comércio com o Peru e com a Bolívia, sendo que sua missão coincidiu

com a proposta do governo provincial paraguaio de domesticação dos Guaikuru. Segundo

relatos desse jesuíta, os Guaikuru, vizinhos de Assunção, tinham se deslocado para o norte

e viviam a umas 60 léguas daquela povoação quando foram até o missionário pedir que se

estabelecesse entre eles. Sánchez Labrador identificou esses Mbayá com os ancestrais

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daqueles descritos por cronistas dos séculos anteriores e, também, com a população

Guaikuru que vivia mais ao sul.

Os inúmeros combates que os Mbayá-Guaikuru travaram com os colonizadores, na

tentativa de defender seus territórios, foram narrados em detalhes na História dos Índios

Cavalleiros ou da Nação Guaycurú, escrita pelo comandante do Real Presídio de Coimbra

(mais conhecido como Forte Coimbra) Francisco Rodrigues do Prado. Este documento

contém não só pormenorizada descrição do modus vivendi destes indígenas e o relato das

contínuas lutas entre índios e não-índios ao longo do século XVIII, mas, ainda, a descrição

da região ocupada pelos Mbayá-Guaikuru à época:

É a nação Guaycurú errante como todas as outras nações selvagens [...] ella sempre habitou nas margens do Rio Paraguay, que tendo suas primeiras fontes pela latitude austral de 13 gráos, e fazendo contravertentes com as cabeceiras do Rio Tapajoz [...] corre ao sul na extensão de seu curso total de 600 leguas até ir entrar no mar com o nome de Rio da Prata [...] Todo este vasto território é cortado de pequenos rios navegáveis [...] são estes o Imbotatui, hoje chamado Mandego, [...] o rio Queima, [...] rio Tipoti, o rio Branco, o da Lapa e o Queidavau Ipané [...] Pela latitude de 21 gráos e 29 minutos está o logar propriamente chamado Fecho dos Morros, porque pelo lado oriental desde a margem do rio principia uma cadêa de montanhas que se estende para o centro do paiz, fazendo em partes algumas pequenas quebradas, que facilitam aos Guaycurús o irem fazer guerras aos gentios chamados por elles Cayavaba [...] Estes Guaycurús ou Cavalleiros são reconhecidos por differentes nomes [...] Antigamente os Cavalleiros senhoreavam mais vasto terreno, o qual pouco a pouco foram perdendo com as povoações que formavam os Portuguezes e Hespanhoes, estes forçando as correntes do Paraguay, e aquelles acompanhando as suas aguas (PRADO, 1908, p. 25-27).

Na tentativa de cessar os ataques Guaikuru, foi firmado entre os Mbayá e a Coroa

portuguesa um Termo de Perpétua Paz e Amizade, em 1º de agosto de 1791. Por esse

documento, os Mbayá-Guaikuru “[...] reconheciam a suserania dos reis portugueses, mas

tinham assegurado a posse de um extenso território e a aliança portuguesa para suas

guerras” (RIBEIRO, 1962, p. 82). O Termo de Paz consertado entre os líderes Mbayá-

Guaikuru Emavidi Xané (Paulo Joaquim José Ferreira) e Caimá (João Queima de

Albuquerque) e os portugueses foi extremamente importante, não só porque mencionava

uma parte do extenso território ocupado pelos índios, mas, especialmente, por afirmar que

os Mbayá passavam a gozar “[...] livre e seguramente de todos os bens, commodidades e

privilégios, que pelas leis de S. M. Fidelissima são concedidos a todos os Índios [...]”

(PRADO, 1908, p. 53). Isto significava, claramente, que os Guaikuru deveriam ser

beneficiados pelos termos do Alvará de 1º de abril de 1680, tornado extensivo a todos os

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índios do Brasil pelo Alvará de 8 de maio de 1758.27 Creio ser importante enfatizar essas

relações de aliança, pois durante muito tempo a presença indígena foi vista pela

historiografia:

[...] como um problema a ser enfrentado ao lado das feras, insetos e doenças que “infestavam” a região... Dessa forma, enfatizando somente as relações de conflito, terminam por reproduzir e realimentar uma visão preconceituosa com relação às sociedades tribais, em detrimento de uma análise mais significativa das relações de aliança e do papel desempenhado pelo indígena no processo de conquista e colonização de Mato Grosso (PINA DE BARROS, 1989, p. 184).

Entretanto, a aliança trouxe outras conseqüências para os Mbayá-Guaikuru, pois o

contato dos portugueses com os Guaná e outros grupos antes dominados pelos Mbayá,

obrigaram esses últimos a reorientar suas incursões guerreiras para grupos cada vez mais

distantes. Mesmo após a assinatura do Termo, as hostilidades continuaram, sendo que,

cada vez menos os Guaikuru conseguiam impedir a penetração de não-índios em seus

territórios. A preocupação de assegurar a confiança destes índios era constante entre os

portugueses, como é possível perceber pelas anotações feitas pelo tenente-coronel

engenheiro Ricardo Franco de Almeida Serra, na Memória... sobre a Capitania de Matto

Grosso... em... 1800:

[...] vivem fronteiros ao dito morro os mil e quatrocentos índios Guaicuru e Guaná nossos aliados, esta patrulha é indispensável para segurar estas tribos na nossa amizade, e dissipar-lhes o temor pânico que conceberam pelos estragos que lhes fizeram os espanhoes... Estas ponderadas circunstancias mostram o importante interesse do Presidio de Coimbra, fundado em 1755 para cohibir os insultos e atrocidades que os índios Guaicurus e Payaguas cometiam cada dia contra portugueses de que matavam alguns mil. A fortificação de Coimbra consistia em uma simples estacada bastante para conter aquellas tribos inimigas que ocupam um grande espaço do Paraguay entre portugueses e hespanhoes [...] (SERRA, p. 19, 1939-1940).

27 Cf. CARNEIRO DA CUNHA, 1992a, para um conhecimento do teor dessas legislações.

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2.3. SÉCULO XIX

Em 1803, o mesmo Ricardo Franco de Almeida Serra apresentou um parecer sobre

os Mbayá-Guaikuru e os Guaná, no qual cita os Caduveos (Kadiwéu) como um dos

subgrupos Guaikuru, contando, na época, com quase 700 indivíduos. Dessa narrativa

depreende-se que os Mbayá ocupavam uma grande área em conseqüência não só das

atividades pecuárias, que exigiam constante locomoção, mas, principalmente, em razão das

inundações que os empurravam de um lado para outro, conforme a região atingida pelas

águas. O uso do cavalo facilitava a locomoção nas contínuas investidas contra os

portugueses e os espanhóis (SERRA, apud VASCONCELOS, 1999). Para Ribeiro, os escritos

de Ricardo Franco merecem especial destaque pelo grande número de informações que

registram. O etnólogo ressalva, entretanto, que a obra “[...] é também muito prejudicada

pelo etnocentrismo, mas, no caso, tem o valor de documentar a atitude do invasor europeu

frente ao guerreiro Mbayá, ainda altivo” (RIBEIRO, 1980a, p.28).

De acordo com Métraux, no início do século XIX:

[...] muitos Mbayá se mudaram para a região situada ao sul de Albuquerque (Coimbra) devido ao fato que as pradarias desta zona permaneciam secas durante a estação das chuvas. Ali encontraram campos de pastoreio para seus cavalos, abundantes animais silvestres para caça refugiados das enchentes e, [...], inumeráveis peixes e jacarés. Mudavam suas tolderias segundo a enchente e a vazante anual das águas (MÉTRAUX, 1996, p. 40, tradução do autor).28

Até o início do século XIX, o território que hoje constitui Mato Grosso do Sul era

povoado por inúmeros e diversos grupos indígenas. Contudo, os índios foram perdendo as

terras quando, a contar das décadas de 1830 e 1840, começaram a ocorrer sucessivas

entradas de não-índios na região. Os que chegavam tiravam o espaço dos indígenas,

utilizando-se de documentos imperiais que garantiam, inclusive, o uso da violência na

expropriação das terras. A mobilidade dos Guaikuru e a defesa intransigente de seu

território eram mal vistas por muitos, como o religioso Frei José Maria de Macerata,

catequizador entre os Kinikinau, que observou que os Guaikuru formavam uma “[...] nação

vagabunda, malicioza e tão malfazeja... que deveria ser aldeada mais próxima das vistas do

28 Traduzido do original em espanhol.

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governo central”.29 Sobre os Guaikuru, na mesma época, afirmava o bispo de Cuiabá, D.

José Antônio dos Reis, que compunham uma “[...] nação mansa porém vagabunda,

intrepida e malicioza, tem residencia principal na aldeia de Morro Azul, ... dividida em

quatro tribos: Caduveus [Kadiwéu], Catodugueus, Guatidugueus e Broqueos...”.30 Susnik

observa que:

Os Caduveos constituíam neste século [XIX] a parcialidade mbayá numericamente mais forte e com suficiência econômica bastante potencial para poder efetuar ocasionalmente algumas incursões em busca de escravos (Chamacoco). [...] Os Caduveos parecem ter absorvido alguns cacicatos de outras parcialidades (p. ex.: “Beaquíes”); sua potencialidade e resistência físicas justificam a denominação geral de “Caduveos-Guaycurú” em meados do século 19 (SUSNIK, 1978, p. 19-22, tradução do autor).31

Por volta de 1830, os Guaikuru foram armados por não-índios e auxiliados por

tropas oficiais brasileiras para roubarem gado no Paraguai. Por conta dessa situação, foi

expedido, em 09/03/1830, o seguinte aviso pelo governo imperial:

Aviso 1o. – Índios barbaros: sobre haverem habitantes de Matto-Grosso auxiliado-os com armas, soldados, munições; e providencias a atalhar os latrocínios e correrias por elles praticados [...] Constando na Augusta presença de S. M. o Imperador as queixas dirigidas pelo Delegado do Ditador da Republica do Paraguai ao Encarregado de Negócios deste Império, que ali residia, Antonio Manoel Corrêa da Câmara, a respeito de alguns habitantes, da Província de Matto-Grosso, que, protegidos principalmente pelos commandantes de Coimbra e Miranda, tem auxiliado os índios bárbaros com armas, munições e soldados fuzileiros brancos e negros os quais tem roubado imensa quantidade de gado e perpetrado as maiores desordens; e convindo atalhar o quanto antes a continuação de atos tão escandalosos, que podem comprometer a tranqüilidade do Imperio: Ha o mesmo A. S. por bem determinar mui positivamente que o Vice Presidente daquela Provincia ponha em practica as mais energicas providencias para fazer cessar completamente os latrocinios e correrias que o Ditador diz terem sido praticados por Subditos Brasileiros. [...] O que assim lhe participa para sua intelligencia e fiel execução. [...] Palácio do Rio de Janeiro, em 9 de Março de1830. [...] Márquez de Caravella: – Acha-se no Diario Fluminense n. 57 de 12 de Março de 1830 (CARNEIRO DA CUNHA, 1992b, p. 133-134).

29 Ofício de Frei José Maria de Macerata (“Descripção das Diversas Nações de Índios que residem em diversos lugares da província de Matto-Grosso de 1817 a 1831”), encaminhado ao Bispo de Cuyabá, José Antônio dos Reis... em 1843. Lata 763. Pasta 19. Brasília: Dedoc/ Funai, 1843. Manuscrito do IHGB. 30 Ofício de Frei José Maria de Macerata (“Descripção das Diversas Nações de Índios que residem em diversos lugares da província de Matto-Grosso de 1817 a 1831”), encaminhado ao Bispo de Cuyabá, José Antônio dos Reis... em 1843. Lata 763. Pasta 19. Brasília: Dedoc/ Funai, 1843. Manuscrito do IHGB. 31 Traduzido do original em espanhol.

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Apesar da presença não-indígena, os índios eram a maioria do contingente

populacional no então Mato Grosso, até a época da Guerra do Paraguai. Durante esse

conflito, que perdurou de dezembro de 1864 a março de 1870, a aliança com os Guaikuru

revelou-se bastante benéfica para os brasileiros (DORATIOTO, 2002). São do coronel

Francisco Rafael de Melo Rego, um ex-presidente da Província de Mato Grosso, as

seguintes palavras com relação aos Guaikuru:

Da sua fidelidade e dedicação não interrompidas deram-nos inequívocas provas até na Guerra do Paraguay, em que nos prestaram serviços. Tão firmes se mostraram na amizade que dos Portuguezes passaram para os Brazileiros, tanto na inimizade que dos Hespanhóes passaram para os Paraguayos (REGO, 1904, p. 171).

A participação não só dos Mbayá, mas de outros grupos indígenas na Guerra do

Paraguai, especialmente dos Terena, encontra-se amplamente documentada em relatos de

época.32 A guerra, entretanto, provocou uma considerável diminuição na população

indígena de uma forma geral. Em relação aos Mbayá-Guaikuru, Métraux afirma que:

Ao longo do tempo, os Mbayá utilizaram a rivalidade entre os espanhóis e os portugueses para obter favores de ambas as partes. Os portugueses, e mais tarde os brasileiros, reconheceram o valor da aliança e ganharam os índios com generosos donativos de armas, ferramentas e alimentos, estabelecendo mais adiante relações comerciais normais com eles. Os Mbayá permutavam peles, couros e cerâmica por mercadorias manufaturadas, e seus caciques recebiam cargos honorários no exército brasileiro. No início do século XIX, os Mbayá reiniciaram as hostilidades contra os paraguaios. Durante a ditadura de Francia (1814-40), os índios atacaram o departamento e a cidade de San Salvador e até chegaram a ameaçar Concepción. O ditador López construiu uma cadeia de fortes ao longo do rio Apa para conter suas incursões. Os Mbayá-Caduveo lutaram com os brasileiros na Guerra da Tríplice Aliança, realizando incursões na região do rio Apa, onde destruíram a cidade de San Salvador (MÉTRAUX, 1996, p. 41, tradução do autor). 33

Sobre as desastrosas conseqüências da guerra para os indígenas, Martins comenta:

A eclosão do conflito entre os países platinos entre 1864 e 1870 veio a ser um rude golpe na [...] nação Guaikurú. A tradicional hostilidade entre os Mbayá e os paraguaios foi eficazmente explorada pelo Império Brasileiro que, na impossibilidade de deslocar tropas para uma reação imediata à

32 Cf., entre outros, TAUNAY, [195-]. 33 Traduzido do original em espanhol.

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invasão do território sul-matogrossense [sic] pelas tropas de Lopez, utilizou-os como linha de frente no amortecimento do avanço em direção à Cuiabá. Os anos de ocupação do pantanal pelas tropas invasoras desestruturou física e culturalmente o universo Kadiwéu registrando-se daí um acelerado refluxo populacional (MARTINS, 1992, p. 9).

Com o fim do conflito, a fronteira oeste abriu-se novamente para as intenções

colonizadoras atlânticas. O governo imperial brasileiro — ciente da necessidade da

permanente ocupação demográfica como forma de garantir a posse dessa porção centro-

ocidental de seu território — articulou algumas iniciativas pecuárias e extrativistas na

região, dentre elas a poaia e a erva-mate. A partir de 1870, foi promovida a reconstrução de

Corumbá, tendo por base o porto fluvial que se transformou, em poucos anos, no mais

importante pólo comercial do Médio Paraguai, atraindo investimentos estrangeiros.

Ocorreu, a partir de então, o primeiro grande surto de valorização fundiária da região

pantaneira e as boas perspectivas provocaram acirrada disputa pela sua posse.

Em 1872, estabeleceu-se em Barranco Branco, um trecho do rio Paraguai logo

abaixo do rio Aquidaban, um português chamado Antônio Joaquim Malheiros. Neste local,

existia a antiga aldeia Kadiwéu Ealanokodi. Negociando aguardente com os índios,

Malheiros conseguiu constituir uma imensa fazenda de gado na região. Intitulado coronel

da Guarda Nacional, acumulou, durante vinte anos, o cargo de Diretor dos Índios Kadiwéu

e, dessa forma, apossou-se de parte considerável do território indígena, nas últimas décadas

do século XIX. A partir de 1880, apareceram muitos outros requerimentos de compra ou

concessão de terras nas regiões dos Pantanais e na fronteira seca, em Corumbá, Miranda,

Nioaque, Bela Vista, Dourados, e nas margens dos rios Miranda, Paraguai, Verde,

Amambaí, Apa e muitos outros. Um desses requerimentos, dirigido à Câmara Municipal de

Corumbá, era assinado pelo coronel Antônio Joaquim Malheiros, senhor de muitas posses

na fronteira do Baixo Paraguai. O documento tinha a finalidade de legalizar grandes lotes

de terras, limitados entre os rios Nabileque e Tereré para a criação de gado, terras

tradicionalmente ocupadas pelos Kadiwéu.

O coronel Malheiros notabilizou-se por ter sido um grande proprietário na fronteira

sul, no município de Corumbá, e, também, empresário do comércio de exportação com o

Paraguai e da navegação fluvial, no pós-guerra contra a nação paraguaia. Pesou sobre ele,

porém, graves denúncias de desmandos e contrabando de gado na fronteira, além de

violências praticadas contra os indígenas e moradores não-índios da região. O contato

freqüente com estes últimos alterava gradativa e sistematicamente o modo de vida dos

Kadiwéu e o alcoolismo generalizava-se entre eles, enfraquecendo-os e tornando-os

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vulneráveis a diversas doenças infecciosas. Entre 1886 e 1890, um surto de varíola na

região fez, entre os índios, grande número de vítimas. Apesar de toda essa situação

desfavorável, a prática de capturar cativos em incursões guerreiras continuava a operar o

ethos Kadiwéu, bem como a prática do infanticídio, por meio do aborto. A historiadora

Lúcia Salsa Corrêa registra que:

[...] fato curioso, e digno de menção no contexto do pós-guerra, ocorreu com os índios brasileiros acusados de aprisionarem paraguaios na região dos Pantanais do Nabileque, região de aldeamento Kadiwéu. Na verdade, os Kadiwéu, tendo por inimigos os Xamacoco (habitantes da banda paraguaia do Rio Paraguai), estavam habituados a escravizar seus prisioneiros, em especial, crianças. O Diretor Geral dos Índios da Província relatava o episódio, alertando as autoridades da fronteira para coibir... o indecente e deshumano comercio praticado pelos mesmos Cadiuéus, fazendo prisioneiros aos Chamacôcos, e vindo em Corumbá vendel-os como escravos... (CORRÊA, L., 1999, p. 211).

Ao final do século XIX, Guido Boggiani, explorador e artista italiano, encontrou os

Kadiwéu na região em que, ainda hoje, habitam seus remanescentes.34 O viajante europeu

anotou em diários a existência, então, de três tolderias (maneira como os cronistas

chamaram os conjuntos de moradias Mbayá) Kadiwéu: Nalike, Morrinhos e Etokija

(PECHINCHA, 1994). Calculou em 200 o número destes índios, sendo nesta época grande a

pressão que sofriam por parte dos criadores de gado que procuravam pastagens no sul do

Pantanal (BOGGIANI, 1975). De acordo com a cientista social Solange Padilha (1996, p.

38), “[...] a documentação iconográfica e a coleção coletada [sic] por Guido Boggiani são

mais importantes que suas anotações escritas, mas essas têm o mérito de descrever

aspectos da vida cotidiana e processos artísticos”. Boggiani visitou pela primeira vez a área

habitada pelos Kadiwéu em 1892 e anotou em diários diversas observações etnográficas e

artísticas que deram origem à obra Os caduveos.35 Retornou à região em 1897, registrando,

nessa segunda viagem, as rivalidades entre o coronel Malheiros e os Kadiwéu (BOGGIANI,

1929). Fez, ainda, novas anotações que geraram outro trabalho, no qual aprofundou seus

34 Guido Boggiani (1861-1901) esteve na América do Sul entre o final do século XIX e o início do século XX. Interessado, sobretudo, no comércio de peles de animais, legou, entretanto, um rico acervo de escritos, fotografias e material etnográfico que permitem uma melhor compreensão sobre os índios que viviam à época nas imediações do rio Paraguai, especialmente os Kadiwéu, chamados por ele de Caduveos. O conjunto de sua obra é, sem dúvida alguma, a mais importante fonte de informações etno-históricas dos Kadiwéu, às vésperas da criação da Reserva, em 1903. 35 Uma primeira edição da obra foi publicada no Brasil pela Livraria Martins Editora, em 1945. A edição por mim consultada é uma reprodução fac-similar da primeira, com revisão, introdução e notas de Herbert Baldus. A primeira edição italiana é de 1895.

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conhecimentos sobre o modo de vida dos indígenas e suas relações com o contexto

regional.

Compondo um dos grupos mais populosos do Chaco, os Guaikuru foram

continuamente, desde o início da colonização ibérica, ameaçados por espanhóis e

portugueses, a quem opuseram constante resistência, não o suficiente, contudo, para evitar

o desaparecimento de boa parte da população no decorrer de três séculos — mais

expressivamente a partir da segunda metade do século XIX. No Album Graphico do

Estado de Matto Grosso (1914), à guisa de exemplo, era estimada uma população de 850

índios Kadiwéu, identificados como Cadiuéos. Embora editado em 1914, o Album traz

informações que são, na realidade, de 1848 (trata-se de um relatório do então Diretor Geral

dos Índios, Joaquim Alves Ferreira), portanto, anterior à Guerra do Paraguai e à primeira

demarcação das terras reservadas aos Kadiwéu. O referido relatório contém, sobre os

indígenas, as seguintes informações:

3º Guaicuru Cadiveos [...] He bem conhecida a historia dos antigos Guaycurus; seus usos e costumes forão objeto de muitas e miudas descripções. D’ entre as tribos restantes, que dentre nós existem dessa nação celebre pela porfiada resistencia que oppõe aos conquistadores, a dos Cadiveos he que tem conservado mais vestigios de primitivo espirito altivo e belicoso dos seos antepassados. Orça perto de 800 seo numero dividido em diversas hordas, habitão por ambas as margens do Paraguay, de Coimbra para baixo [...] (ALBUM graphico, 1914, p. 89).

Os Kadiwéu, ao que tudo indica, foram os últimos Mbayá a migrarem para a

margem esquerda do rio Paraguai. Atualmente, além dos Kadiwéu, existem índios Mbayá,

identificados como Guaikuru, na aldeia Lalima, dos índios Terena, localizada às margens

do rio Miranda, a 60 km ao sul da cidade de mesmo nome, em Mato Grosso do Sul.

Pelo exame de documentos e obras consultados para a presente pesquisa, constatei

que a maior parte deles menciona a presença dos Mbayá-Guaikuru e a existência de aldeias

no extenso conjunto de terras ocupado hoje pela Reserva Indígena Kadiwéu. Assim, a Lei

601, de 18 de setembro de 1850 e o Regulamento baixado com o Decreto 1.318, de 30 de

janeiro de 1854 36, entre outros, reiteraram os direitos dos Kadiwéu às suas terras, já que

por esses regulamentos somente seria permitido ao Governo vender ou aforar os terrenos

de antigas missões ou aldeias que já estivessem abandonadas. Aos indígenas, desde a Lei

de 1o de abril de 1680, jamais revogada, foi reconhecida a condição de primários e naturais

36 Cf. CARNEIRO DA CUNHA, 1992b.

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senhores das terras do Brasil. O fundamento do direito às terras está baseado no indigenato,

que não é direito adquirido, e sim congênito.37 Apesar desse reconhecimento, os índios

foram expulsos de suas terras, lentamente, a princípio por omissão da Coroa portuguesa e,

depois, muitas vezes, com o apoio do próprio Serviço de Proteção aos Índios.

CONCLUSÃO

Com a crescente colonização de Mato Grosso, a partir de meados do século XIX, os

Kadiwéu tiveram que se subjugar ao regime de aldeamento. De acordo com Herberts

(1998a, p. 67-68), os Kadiwéu sofreram ataques de tropas governamentais armadas com

artilharia pesada por duas vezes, em 1897 e 1898, que quase os dizimaram por completo.

Depois disso, mudaram-se para outros locais, constituindo duas novas aldeias: uma ao pé

do Morro Niutaca e outra próxima ao Morro do Tigre. Ainda em 1898, aliaram-se a uma

das facções coronelistas (a de Antônio Pedro Alves de Barros) que disputavam o poder no

Estado, com o intuito de se contraporem à aliança governista com o coronel Malheiros, que

os reprimia violentamente. Mais uma vez, entre o fogo cruzado, os indígenas buscaram

refúgio nas cercanias da Serra da Bodoquena, onde se concentram seus remanescentes até

os dias atuais. Apesar de sofrerem significativas baixas no conflito civil, com a vitória de

seus aliados passaram a gozar de relativa proteção governamental e foram contemplados,

como forma de pagamento pelos serviços prestados, com um despacho assinado pela

Presidência do Estado, de criação da reserva indígena.38 A primeira demarcação das terras

dos Kadiwéu data do período compreendido entre 1899 e 1900 (SIQUEIRA JR., 1993),

realizada pelo engenheiro agrimensor José de Barros Maciel.39 Outro agrimensor, o francês

Emile Rivasseau (1941, p. 68-69), que esteve entre os Guaikuru acompanhando Barros

37 A respeito do indigenato, o professor titular da Faculdade de Direito da USP, José Afonso da Silva, citado por TOURINHO NETO (1993, p. 13), afirma que: “[...] é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, ao fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”. 38 “Vistos e examinados os presentes autos de medição da área concedida aos índios Cadiuéos, sita no município de Corumbá em grau de recurso ex-offício interposto pela Directoria de Terras, de seu despacho nesta mesma folha, que approvou a referida medição, rogo provimento ao dito recurso para confirmar, como confirmo o despacho recorrido. A mesma Directoria para os fins devidos. Palacio da Presidência do Estado em Cuyabá, 7 de agosto de 1903. (declara em tempo que a área acima é para o uso-fruto dos índios Cadiuéos). Antonio Pedro Alves de Barros”. Brasília: DAF/ Funai, 1903. 39 Cf. Anexos – Textos: Texto D.

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Maciel, registra que os índios participaram ativamente ao lado de tropas não-

governamentais nas revoltas ocorridas no sul de Mato Grosso, em fins do século XIX. No

início do século XX, foram recrutados pelo Governo para combater os dissidentes

derrotados e alijados do poder. É o que confirmam as pesquisas documentais realizadas por

Lúcia Corrêa no Arquivo Público de Mato Grosso:

[...] quanto ao movimento revolucionário de 1901, é interessante observar que, enquanto paraguaios foram mobilizados para reforçar o lado rebelde, o Governo do Estado, também, mobilizou índios Kadiwéu para engrossar as forças da situação. O episódio está atestado em documento do Diretor dos Índios Kadiwéu, Mariano Rostey, respondendo a uma solicitação do Governo estadual. Os Kadiwéu estavam nessa ocasião vivendo dispersos e afastados de seus redutos nas margens do rio Paraguai, no extremo Sul mato-grossense, em razão dos conflitos e tropelias ocorridas nessa região. Conforme Rostey, os índios refugiaram-se na serra da Bodoquena, para fugir dos desmandos das tropas rebeldes que lançavam fogo nas matas e nos campos pertencentes às suas aldeias (CORRÊA, L., 1999, p. 226-227).

Os documentos pesquisados pela mesma historiadora mencionam, ainda, que os

Kadiwéu:

[...] foram reunidos, então, para entrarem em ação contra as forças de Mascarenhas, armados por ordem do Governo do Estado e incumbidos de defender a fronteira contra os estrangeiros (paraguaios) na região dos campos do rio Nabileque (Pantanais do Nabileque), e obstando o contato dessas forças rebeldes da fronteira com seus simpatizantes no interior de Mato Grosso. Dessa forma, os Kadiwéu atuaram ao lado dos Batalhões Patrióticos organizados como forças legalistas contra os coronéis rebeldes, na linha de fronteira entre os rios Nabileque e Caracol, em grupos de 180 a 200 indivíduos com armas compradas e cedidas pelo Governo do Estado e com um reforço de 500 a 600 cavalos de propriedade dos próprios índios (CORRÊA, L., 1999, p. 227).

Ainda segundo informações de Lúcia Corrêa, a expropriação das terras indígenas

continuou por longo tempo, não obstante as diversas denúncias formalizadas junto aos

órgãos públicos, na capital do Estado. Desde fins do século XIX, portanto, o avanço das

posses não apenas incluía as terras devolutas, como também as terras indígenas,

reconhecidas legalmente pelo Estado. Por sua vez, o Governo de Mato Grosso havia

determinado a realização de medição e demarcação de terras reservadas aos aldeamentos

indígenas, medida prevista na Lei Estadual nº 20 de 1892, para defender, entre outros, os

Kadiwéu. Entretanto, estes índios foram, pouco a pouco, expropriados de suas terras, em

um processo que viria intensificar as relações de resistência e acirramento da violência

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entre índios e não-índios, mediadas por um Estado fragilizado, omisso e representante do

poder oligárquico. Estudos de Valmir Corrêa ajudam a compreender o quadro mais amplo

da situação política de Mato Grosso entre o final do século XIX e o início do século XX:

A região de fronteira de Mato Grosso, configurou-se, portanto, como área propícia às relações de violência, quer pela falta de controle do poder estadual, quer pela intensa mobilidade de pessoas que a ultrapassavam sem maiores dificuldades. Assim, a extensão da fronteira mato-grossense, especialmente os seus limites internacionais na região extremo-sul do estado com o Paraguai, jamais possibilitou um controle de maneira a coibir o contrabando generalizado de mercadorias diversas, inclusive de armas, ou de impedir fugas e/ ou invasões de elementos envolvidos em banditismo ou rebeliões políticas de ambos os lados da fronteira (CORRÊA, V., 1995, p. 61).

Verificar essa situação de extrema violência na fronteira foi importante para este

trabalho, a fim de não torná-lo circunscrito apenas à sociedade indígena Kadiwéu, uma vez

que esta fazia e faz parte de um contexto regional que não pode, de modo algum, ser

ignorado. A conturbada situação política que se seguiu à Proclamação da República (1889)

contrapôs, na disputa pelo poder regional, segmentos da oligarquia estadual.

Particularmente, no então Estado do Mato Grosso, os conflitos políticos entre os grupos

oligárquicos locais tomaram características de quase guerra civil, em que a alternância no

poder se fazia, freqüentemente, por meio do emprego da força de tropas mercenárias. Na

polarização política entre as facções oligárquicas era envolvida toda a sociedade mato-

grossense, inclusive as populações indígenas. Na passagem do século XIX para o século

XX, com a ascensão ao poder estadual do grupo adversário ao grupo político do coronel

Malheiros (liderado por Jango Mascarenhas), os Kadiwéu foram contemplados com o

reconhecimento e a proteção do governo estadual. Como teria ocorrido a construção física,

ou seja, a delimitação do espaço geográfico da Reserva Indígena Kadiwéu, antes mesmo da

criação de um órgão indigenista oficial no Brasil? Que desdobramentos teve essa primeira

demarcação? Por que foi necessária uma segunda demarcação, em meados da década de

1980? No capítulo seguinte, intitulado A construção física da Reserva Indígena Kadiwéu:

demarcações e conflitos pela posse da terra, procuro responder a essas questões, com base

em documentos pesquisados nos arquivos da Divisão de Assuntos Fundiários (DAF) e do

Departamento de Documentação (Dedoc) da Funai, em Brasília, e dos arquivos do Museu

do Índio e do SPI, no Rio de Janeiro.

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Mas antigamente, quando nós nascemos, nascemos aqui mesmo. Nossos finados avós. Nós não tínhamos chefe. Quando o Brasil nos descobriu, nós estávamos aqui mesmo, neste lugar (Nestor Rufino, líder indígena Kadiwéu).

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CAPÍTULO 3

A CONSTRUÇÃO FÍSICA DA RESERVA INDÍGENA KADIWÉU:

DEMARCAÇÕES E CONFLITOS PELA POSSE DA TERRA

INTRODUÇÃO

De acordo com Herberts:

A partir do século XX, as fontes documentais não mencionam mais as incursões Mbayá-Guaicuru realizadas anteriormente. Os Kadiwéu encontravam-se então em conflito com a sociedade nacional pela garantia de suas terras e a manutenção de seus padrões culturais (HERBERTS, 1998b, p. 68).

A história dos Kadiwéu, no século passado, é a história do contato sistemático

desse grupo indígena com a sociedade envolvente. Esse contato foi, na maioria das vezes,

pouco amistoso, além de bastante prejudicial aos índios, apesar de ter sido mediado pelo

órgão indigenista oficial, como se verá a seguir. Em fins do século XIX e início do século

XX, portanto, os Kadiwéu já se encontravam praticamente sedentarizados no conjunto de

terras atualmente demarcado e juridicamente denominado Reserva Indígena Kadiwéu.40

O etnólogo Antônio Carlos de Souza Lima (1992, p. 40) define as reservas

indígenas como “[...] porções de terra reconhecidas pela administração pública através de

seus diversos aparelhos como sendo de posse de índios e atribuídas, por meios jurídicos,

para o estabelecimento e a manutenção de povos indígenas específicos”. Ainda segundo o

mesmo autor, essas porções de terras são definidas à custa de um processo de alienação e

compõem parte de um “[...] sistema estatizado de controle e apropriação fundiária” (LIMA,

1992, p. 40). Segundo o historiador Leandro Mendes Rocha (2003, p. 155-156), a

finalidade da criação de reservas seria disciplinar o acesso e a utilização das terras, ao

40 Cf. Anexos – Mapas: Mapa F.

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mesmo tempo mediando sua mercantilização, aplicando-lhes sistemas de registro e

cadastramento às diversas unidades sociais surgidas historicamente. Sendo mananciais de

riquezas (terras para agricultura, pecuária e extração de minerais; florestas para extração de

madeiras, borracha e castanha), a administração tutelar manteria as reservas para a

exploração direta ou indireta (arrendamento, por exemplo) sempre em suposto benefício

dos indígenas e utilizando-se de sua mão-de-obra. A criação de reservas pode ser vista,

ainda, como uma das táticas do poder tutelar para a transformação de indígenas caçadores

nômades em lavradores sedentários.

No final de 1899, o presidente do Estado de Mato Grosso mandou proceder à

medição e demarcação das terras reservadas aos Cadiuéos. De acordo com o historiador

Valmir Batista Corrêa (1995), o governo do capitão-de-mar-e-guerra Antônio Pedro Alves

de Barros caracterizou-se por violentas perseguições políticas e a demarcação das terras

dos Kadiwéu, como visto no final do capítulo 2, esteve relacionada às lutas pelo poder

oligárquico. A medição e a demarcação foram realizadas entre dezembro de 1899 e

fevereiro de 1900, por José de Barros Maciel. A medição teve início em 15 de dezembro de

1899 e foi encerrada em 09 de janeiro de 1900. A área total dos terrenos demarcados foi de

373.024 ha (trezentos e setenta e três mil e vinte e quatro hectares). De acordo com o

memorial descritivo de medição e demarcação entregue por Maciel ao Governo do Estado

em 23 de fevereiro de 1900:

É limite dos terrenos demarcados para os índios Cadiuéos: ao norte o córrego Niutaca, desde a sua barra até a cabeceira na Serra de Nabodoquena [Bodoquena]; a leste esta mesma serra; ao sul o rio Aquidauana [Aquidaban]; e a oeste os rios Paraguay e o seu braço Nabileque até a barra do Niutaca. 41

3.1. OS KADIWÉU NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

Em 1903, já no final do mandato Alves de Barros, a medição e a demarcação

efetuadas por Barros Maciel foram aprovadas por meio de despacho pela Presidência do

Estado. Em 27 de agosto desse mesmo ano, foi publicado o seguinte expediente na Gazeta

(Diário) Official, retroativo ao dia 10:

41 Cf. Anexos – Textos: Texto D.

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Snr. Dr. Director da Repartição de Terras. – Estando já medidos, demarcados e approvados por esta Presidência os rocios da freguezia da Chapada e das povoações do Registro do Araguaya, do Capim Branco, do Santa Rita do Araguaya, da Conceição, do Capão do Piquí e da Várzea Grande no município desta capital; de S. Domingos Albuquerque e Fóz do Apa no município de Corumbá; e de Ponta Porá, Bella Vista e Porteira no município de Nioac; convêm que por essa Repartição sejam expedidos ás competentes autoridades municipaes para os fins legaes, os títulos de propriedade dos mesmos rocios. Emquanto aos campos igualmente já demarcados do Nabilec e do Jacadigo no município de Corumbá, lembro-vos que elles são terrenos reservados os primeiros para usofructo dos índios cadiuéos residentes n’aquella localidade, e os do Jacadigo, para serventia da União e do estado, menos no que respeita aos três lotes alli medidos ultimamente e que ficais autorisado para vender em hasta publica (GAZETA Official do Estado do Mato Grosso, 1903, p. 1).

Nessa época, a Reserva Indígena Kadiwéu ainda não possuía oficialmente essa

denominação, pois era conhecida, entre outros nomes, como Campo dos Índios, terras

reservadas aos Cadiuéos ou, simplesmente, Reserva, e localizava-se no município de

Corumbá.42 Sobre a demarcação das terras reservadas aos Cadiuéos entre 1899 e 1900,

Emile Rivasseau, em nota à segunda edição de A vida dos índios Guaycurus, informa que

acompanhou em viagem:

[...] o Dr. José de Barros Maciel, então Director da Repartição das Terras, Minas e Colonisação do estado de Matto-Grosso. [...] Incumbido naquella época, pelo Governo do Estado, de uma missão relativa a uma questão de terras, no Sul do estado, conjugamos nossas vistas para objectivamente, cada um de nós, executar as suas atribuições combinando a viagem e o itinerário que juntos tínhamos de percorrer (RIVASSEAU, 1941, p. 20).

A missão a qual o francês referiu-se era justamente a demarcação das terras dos

Kadiwéu. Sobre o assunto, o agrimensor afirma que:

Sem embargo, na época em que percorri essa região, o Governo do Estado já tomava providências para assegurar a todos os indios do sul do território de Matto-Grosso, onde estavam em contacto com a população, a posse de glebas especialmente destinadas e reservadas ás differentes tribus esparsas, que vivam entremeadas nas propriedades particulares. [...] Pouco tempo após minha passagem na zona occupada pelos Guaycurus, foi officialmente decretado que todo o território comprehendido entre o rio “Aquidauana” [Aquidaban] ao sul, o rio “Paraguay” a oeste, os rios “Nabileque e Niutaque” a norte e nordeste, e a serra da “Bodoquena” a leste, seria dahi por deante reservado á tribu dos Guaycurus ou

42 Porto Murtinho foi criado e desmembrado de Corumbá em 20 de setembro de 1911, através da Lei Estadual nº 560. Em 13 de junho de 1912, foi instalado o município e as terras dos Kadiwéu passaram a integrar oficialmente o mesmo. Cf. GRESSLER e SWENSSON, 1988.

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“Caduveos” como muitas vezes se intitulam, (alguns autores têm escripto “Cadineos” e mesmo cadiuéos) (RIVASSEAU, 1941, p. 68).

Ainda que tenha permanecido pouco tempo entre os Kadiwéu (quinze dias, como o

próprio subtítulo de seu livro indica), a obra de Rivasseau constitui importante fonte

histórica e etnográfica para o entendimento da situação vivida por esses índios na virada

entre os séculos XIX e XX. Sobre o coronel Malheiros, Rivasseau comenta que:

O Senhor de Barranco-Branco que tomara posse – a titulo de primeiro ocupante – (o que não era fundamentalmente exacto, em relação a todos os terrenos aos quaes pretendia, mas uma situação de facto creada e imposta pela força) – do immenso território de mais meio milhão de hectares; havia fundado, além do estabelecimento principal que chamou Barranco-Branco, na margem esquerda do rio Paraguay e abaixo um pouco da foz do rio “Branco”, alguns outros menores e secundários, pousos e retiros disseminados nessa vasta superfície de que se assenhoreou; mas forçosamente, muito distantes uns dos outros, e onde não podia manter, senão um pessoal mui reduzido e incapaz de dar conta dos trabalhos que exigiam todos os cuidados com o gado (RIVASSEAU, 1941, p. 66-67).

Apesar de toda essa situação, as acusações de ataques violentos recaíam somente

sobre os índios. Numerosos eram, dentre os homens do grupo indígena, os que haviam sido

mortos nos ataques mandados por ordem superior da polícia de Corumbá e que,

indiretamente, vinham do Senhor de Barranco-Branco. Enviaram destacamentos militares

contra eles, por duas vezes — em 1897 e 1898 — conduzindo dois canhões de campanha,

o que foi amplamente divulgado na ocasião em que se deram os fatos. Entre o rio

Nabileque que se destaca da margem esquerda do rio Paraguai, e o rio Branco, até as

nascentes deste último na serra da Bodoquena, todos os terrenos eram considerados

propriedade de Malheiros, que atribuiu a si mesmo naquela região, uma zona territorial de

mais de 150 léguas quadradas, ou seja, mais de meio milhão de hectares, às margens do rio

Paraguai. À sua margem esquerda, situava-se o principal estabelecimento de Malheiros,

chamado Barranco Branco. Opunha-se a que qualquer pretendente fosse ali se estabelecer,

ainda que em lugares muito afastados e desocupados. Poderoso junto à Presidência do

Estado, Malheiros conseguiu tudo o que desejava, enquanto o governo recusava-se,

sempre, a reconhecer os direitos de propriedade adquiridos por alguns desses pretendentes,

ali estabelecidos há algum tempo. De acordo com Rivasseau:

O mesmo se dava com os índios Guaycurus que, segundo os desejos do Senhor de Barranco-Branco o Governo devia expulsar das “suas terras”,

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apesar de ahi estarem desde longas décadas e muito antes que elle próprio viesse para o Matto-Grosso. [...] Por isso, os Guaycurus tiveram, muitas vezes, necessidade de defender-se contra as forças de policia e até de soldados do Governo federal, mandados pelo Presidente do Estado, de accordo com o Coronel – então Commandante dessas forças e á instigação de amigos influentes, a pedido do Senhor Portuguez. [...] Apesar de tudo quanto foi tentado e feito, os bugres resistiram e não foi possível desalojal-os dos lugares que occupavam. [...] E até agora os índios Guaycurus, moram e vivem nos mesmos terrenos. [...] Finalmente, uma lei do Governo do estado que recentemente fora promulgada, lhes concedeu, em parte, os ditos terrenos, depois de haver mandado demarcal-os (RIVASSEAU, 1941, p. 54-55).

Rivasseau ainda esclarece como a situação política no final do século XIX mudou

favoravelmente em relação aos Kadiwéu, até então perseguidos pelo governo do Estado:

Foi a política que interveio na mudança de tratamento que se havia verificado, tão favoravelmente aos índios. [...] Desde 1896 e daquella época em deante, o sul de Matto-Grosso havia soffrido as conseqüências desastrosas de revoluções de caracter chronico, devido ás dissensões existentes entre os partidos políticos e sabidamente mantidas pelos Governos que applicavam – talvez sem pensarem – a famosa doutrina: “Dividir para reinar”. [...] Em 1898, um dos caudilhos revolucionários do Sul – de Miranda – teve a ideia de propor aos Guaycurus unirem-se a elle, para engrossar a sua força e vencer mais facilmente o partido opposto, seu adversário. [...] Os índios acceitaram. As promessas que lhes foram feitas em pagamento dos serviços prestados, eram vantajosas, e a mais, tratava-se de combater e derrubar do poder as autoridades que, annos seguidos, favoreceram as perseguições tão cruentas que tinham soffrido, e que protegiam tão escandalosamente o Senhor de Barranco-Branco em todos os seus caprichos e fantasias, sobretudo quando se tratava de vexações tão criminosas, como sangrentas dirigidas contra os Guaycurus, por espírito de vingança, no qual o interesse nunca estava ausente; vexações que lhe vinham á cabeça ou que lhes eram suggeridas por alguns de seus próprios servidores ou empregados, apoiando-se em falsas accusações (RIVASSEAU, 1941, p. 68-69).

O etnógrafo tcheco Alberto Vojtěch Frič esteve entre os Kadiwéu alguns meses em

1904, prosseguindo os estudos de Guido Boggiani, assassinado na região por índios

Tumrahá (Xamacoco bravo) cerca de três anos antes.43 Suas investigações orientaram-se,

sobretudo, para o estudo da religiosidade e da mitologia Kadiwéu. O feiticeiro indígena

Apatxanro [Apaxaºo] fez o seguinte relato sobre Malheiros a Frič:

Em 1872 veio de Assunção o vapor Vila Maria. Ancorou num lugar chamado Ealanokodi, o atual Barranco Branco. Lá estava a aldeia dos

43 Cf. JOSÉ DA SILVA, 2002b.

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Caduveos. Era em fevereiro. Em novembro chegaram outros brancos e com eles Malheiros. Começaram a negociar. Ele (Malheiros) fez um contrato com os Caduveo, pagando 300 mil réis para estabelecer o aldeamento do Nalique. Os índios aceitaram o trabalho na fazenda. E assim até hoje. Malheiros era um velho português que se estabeleceu entre os Caduveos negociando com cachaça. Durante vinte anos foi diretor dos índios Caduveo, obtendo quantidade considerável de terras (mais de duzentas léguas quadradas). Aumentou sempre a sua fazenda. Tomou terras aos índios (LOUKOTKA, apud RODRIGUES, 1985, p. 20-21).

Ainda de acordo com o relato do mesmo feiticeiro, gaúchos chegaram à região do

Nabileque, sob o comando do coronel Benito Chovier (Bento Xavier?), atendendo a um

pedido de Malheiros para combaterem os Kadiwéu:

Afinal, Malheiros tratou com o coronel Benito Chovier que lhe acudiu com os refugiados do Rio Grande do Sul. Êles tinham fugido da revolução e levado consigo o gado. Compraram fuzis de repetição (sistema Mauser). Mas antes de chegarem à fazenda, foram atacados por Nauvilla e dezoito Caduveo que mataram muitos homens do Rio Grande. Os outros se fecharam nas casas. Os Caduveo os assediaram. Havia lá encerrados cento e vinte gaúchos. Tinham sòmente facões. Um valente correntino, Miguel Pires, apoderou-se corajosamente de um fuzil Remington. Feriu um Caduveo que estava trepado no telhado. Os outros fugiram para as florestas. Os refugiados do Rio Grande pensavam que havia lá muitas centenas de índios. Nesse momento nasceram grande desconfiança e muito medo nos dois partidos. Os infelizes Caduveo foram perseguidos como caça, de um lugar para outro. Não puderam nem fazer plantações nem construir aldeias (BOGGIANI, 1975, p. 37).

Para Jaime G. Siqueira Jr. (1993), o conflito com Malheiros provocou o

acirramento das divergências políticas internas entre os Kadiwéu, em função das quais os

dissidentes mais jovens resolveram estabelecer novas aldeias em áreas próximas à Serra da

Bodoquena. Essas novas gerações viveram sob as conseqüências do conflito e sob uma

maior descentralização política. A grande quantidade de gado do fazendeiro invasor, a qual

se espalhou pela área no decorrer dos anos, aproximou definitivamente os Kadiwéu da

atividade pecuária.

O enfrentamento com Malheiros é fartamente descrito e comentado pela tradição

oral Kadiwéu como um evento importante que marcou a defesa da integridade do território

indígena. O evento marcou, também, uma das grandes interferências na organização

espacial Kadiwéu, no processo de sedentarização do grupo. A presença de Malheiros nas

terras dos Kadiwéu, por mais de vinte anos, foi caracterizada por barganhas que

envolveram, principalmente, aguardente, intensificação de conflitos armados e introdução

de grandes quantidades de gado bovino nas terras da futura Reserva Indígena Kadiwéu.

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Evidentemente, essa pressão externa gerou crises políticas entre os indígenas e as

repercussões desse acontecimento foram diversas, afetando a vida social do grupo em

diferentes níveis. Os Kadiwéu, primeiramente, toleraram a convivência com Malheiros.

Isso porque este atendia a alguns interesses do grupo, enquanto comerciante e até mesmo

como Diretor dos Índios. Porém, quando perceberam a situação em que se encontravam,

com grandes parcelas de seu território expropriadas pelo coronel, partiram para um

enfrentamento longo e penoso.

As terras dos Kadiwéu foram demarcadas, em âmbito estadual, antes mesmo da

criação de um órgão indigenista oficial no Brasil. Este órgão surgiu somente em 1910, no

interior do Ministério da Agricultura, por meio do Decreto n º 8.072, de 20 de junho

daquele ano. Com a denominação de Serviço de Proteção aos Índios e Localização de

Trabalhadores Nacionais, o SPILTN, como ficou conhecido, de acordo com o cientista

social José Mauro Gagliardi foi:

[...] uma vitória política dos setores republicanos. Foi também um golpe desfechado sobre a Igreja Católica que, durante o Império, havia desfrutado os privilégios especiais para catequizar índios. Na jovem nação, outra atividade da vida social, portanto havia sido laicizada (GAGLIARDI, 1989, p. 253).

Em janeiro de 1918, seguindo a decisão da Lei n º 3.454, artigo 118, o órgão foi

dividido. O setor que cuidava da localização de trabalhadores nacionais foi removido para

o Serviço de Povoamento do Solo (SPS), ficando constituído, definitivamente, aquele que

por muitos anos seria o SPI, que passou a manter postos administrativos junto aos

Kadiwéu, dentre outros grupos indígenas, a partir da década de 1920.

Entre 1914 e 1915, o pesquisador russo Henri H. Manizer esteve no Brasil

recolhendo dados sobre a música e os instrumentos musicais de diversos grupos indígenas,

dentre os quais Botocudo, Guarani, Kaingang e Krenak. Visitou, nessa época, a aldeia

Kadiwéu de Nalique, permanecendo dois meses entre os índios. Entretanto, não fez

nenhuma consideração, em seus trabalhos, sobre a vida cotidiana que levavam esses índios,

a não ser observações referentes à música.44 Nessa época, os Kadiwéu transitavam pela

Serra da Bodoquena, passando pela aldeia Xatelodo, a fim de chegarem à estação

ferroviária Guaicurus, oficialmente inaugurada pela Estrada de Ferro Noroeste do Brasil

44 Cf. CAMÊU, 1977.

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em fins de 1912, e, assim, viajarem e/ou estabelecerem relações comerciais com os não-

índios. Trocavam, sobretudo, peles de animais por produtos industrializados e aguardente.

Ocorrida na década de 1910, a demarcação de 1.000.000 ha (um milhão de

hectares) de terras próximas ao Nabileque para o Fomento Argentino Sud Americano S/A

não respeitou as terras reservadas aos Cadiuéos pelo despacho de 1903 e outros lotes

adquiridos por particulares na região.45 O engenheiro Emílio Amarante Peixoto de

Azevedo foi o profissional designado pela Secretaria da Agricultura do Estado de Mato

Grosso, em 1912, para proceder medição e demarcação da extensa porção de terras do

Fomento Argentino na região do Nabileque, então município de Corumbá. Os direitos do

Fomento Argentino sobre a área tiveram como origem a concessão de arrendamento feito a

favor de Celso Pasini, em virtude da Lei nº 412 de 23/03/1905, concessão essa que teve o

aval pela Resolução Legislativa nº 461 de 14/12/1906. Por escritura passada em Cuiabá,

capital do então Estado de Mato Grosso, em 23/10/1908, Celso Pasini transferiu ao

Fomento Argentino sua concessão e foi, no exercício do direito de preferência para

aquisição de terras em concessão (art. 3º da cláusula 8ª), que o Fomento Argentino, em

22/06/1910, celebrou com o Governo do Estado de Mato Grosso um contrato de compra de

um milhão de hectares de terras da bacia do Nabileque.

Assim, o engenheiro Peixoto de Azevedo, fazendo cumprir normas legais para o

desempenho das funções para as quais foi designado, fez remessa em 26/07/1912, por

telegrama, do respectivo edital de medição à Câmara Municipal de Corumbá, para fixação

pelo prazo de lei e, em seguida, fez-se a publicação na Gazeta (Diário) Oficial de nº 3.448,

marcando o dia 31/08/1912 para início dos trabalhos de campo. Peixoto de Azevedo

realizou os trabalhos de medição e demarcação da Bacia do Nabileque em duas etapas,

sendo a primeira de 31/08/1912 a 14/12/1912 e a segunda etapa iniciada em princípios de

setembro de 1914 e encerrada em 16 de janeiro de 1915 (o longo tempo entre as duas

etapas ocorreu em virtude da grande cheia de 1913, que provocou o transbordamento do

rio Paraguai e seus tributários nessa região). Em 1916, o engenheiro Federico Corrêa foi o

45 Nunca houve, por parte do Fomento, tentativa para apossar-se das terras porque, na verdade, nenhuma existência prática teve esta companhia no Estado de Mato Grosso, por conta de um desentendimento entre os acionistas, ocorrido após a expedição dos títulos definitivos. O Fomento jamais procurou povoar e cultivar as terras que permaneceram em completo abandono por muitos anos. Algumas décadas depois, com o atraso do pagamento dos impostos, a Fazenda Pública do Estado de Mato Grosso moveu ação executiva fiscal contra o Fomento e, em virtude dessa situação, foram expedidas cartas de arrematação, em outubro de 1943. Essas cartas não levaram em consideração as ocupações por particulares realizadas durante o período de abandono. Toda essa situação se arrasta nos tribunais até os dias de hoje, com severos prejuízos aos Kadiwéu e aos proprietários não-indígenas da região do Nabileque.

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profissional contratado pelo Fomento Argentino para chefiar uma equipe responsável pela

medição da extensa área de sua propriedade denominada Valle del Nabileque, mais tarde

transformada no Condomínio Nabileque, constituído pela reunião de muitas propriedades

particulares e várias empresas que se organizaram para a exploração da terra. A

contratação de Federico Corrêa para proceder ao trabalho citado foi para executar revisão

no trabalho levado a efeito, anteriormente, pelo engenheiro Peixoto de Azevedo.46

Em 1919, Adriano Metelo, inspetor do Serviço de Proteção aos Índios, requereu e

obteve da Diretoria de Repartição de Terras Públicas do Estado de Mato Grosso, por

certidão, a cópia verbo adverbum dos autos de medição e demarcação terras reservadas

aos Cadiuéos no município de Corumbá e a cópia da planta da mesma medição feita no

ano de 1900.47 O requerimento do inspetor Metelo provavelmente teve como objetivo

conhecer melhor a área a fim de que fossem tomadas medidas, pelo órgão indigenista

oficial, quanto à instalação de postos administrativos entre os Kadiwéu. Os documentos

consultados para esta pesquisa revelaram que os indígenas Kadiwéu convivem com a

presença do órgão desde o início da década de 1920: primeiro o Serviço de Proteção aos

Índios (SPI) e depois a Fundação Nacional do Índio (Funai), por meio da instalação do

Posto Indígena Nalike, na aldeia Pitoco, seguida da instalação do Posto Indígena

Presidente Alves de Barros (atual Posto Indígena Bodoquena) na aldeia Bodoquena e, mais

tarde, do Posto Indígena São João, na aldeia de mesmo nome. A leitura de parte do

relatório do inspetor interino da I.R. 5, Antonio Martins Vianna Estigarribia, datado de

07/02/1928, encaminhado ao então diretor do SPI, José Bezerra Cavalcanti, revela a

situação do Posto Indígena Presidente Alves de Barros em fins da década de 1920:

É uma das nossas grandes esperanças este posto, dos outrora tão mal afamados Cadiueus e hoje tão bons que só classificando-os de “excellentes” poderemos fazer-lhes justiça. Quase a totalidade dos índios que se espalhavam pelos campos fronteiriços do paraguay, e que por ahi praticavam, açulados pelo bandido Antonio Rufino, e outros as tropelias e roubos de que não tinham conciencia, achão-se estabelecidas em torno do posto, sob a chefia do Capitão “Duas Lanças” e de mais um outro Capitão. Apenas um pequeno grupo se mantem no Nalique e não devemos fazer muita questão que de lá saia, para não desocupar a terra. Lá também deve ser fundado um outro núcleo de criação porque os campos comprehendidos entre a serra da Bodoquena, o rio Aquidavão (para não confundir com o Aquidauana que banha a cidade desse nome) o rio Paraguay, o seu affluente Nabileque e o Niutaca afffluente deste

46 Documento intitulado Reserva Índios Cadiués – Condomínio Nabileque, de autoria do engenheiro agrimensor Euclydes Faria, datado de 23 de junho de 1980. 47 Cf. Anexos – Textos: Texto D.

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último, são bons. Desde muito houve o desejo de afastal-os dahi e o celebre fazendeiro portuguez Malheiros de accordo com autoridades estaduaes praticou todas as violências e atrocidades para o conseguir. A valorosa resistência dos índios ficou celebre. Finalmente o benemérito almirante Alves de Barros quando presidente, mandou-lhes reservar as terras que ainda ocupão e que constituem hoje, sob a égide deste serviço, o posto Presidente Alves de Barros. [...] Os cadiueus forão reduzidos a situação em que o fomos encontrar, decahidos de sua antiga força tanto em numero como em civilisação, devido a influência deletéria dos civilisados sobre elles.48

No mesmo relatório, Vianna Estigarribia antevia problemas fundiários com as

terras reservadas aos Cadiuéos:

Apezar do acto protector do digno Presidente Alves de Barros, as investidas para tomar-lhes terras não cessaram senão depois que pudemos installar-nos lá dentro e, não sei mesmo, se ainda não virá alguma espoliação por ahi, semelhante a outras que tem havido em outras partes apezar dos nossos protestos que, por incomprehensão ou propósito são sempre mal informados pela Repartição de Terras do Estado. É muito corrente no Sul a opinião de ser um verdadeiro desperdício estarem cem léguas de terra occupadas por duzentos e pouco índios. Em todo caso os mais leaes cedem ao argumento de que dividindo-se essas léguas pelo numero e famílias o que toca a cada uma ainda não é igual ao latifúndio dos inúmeros donos de terra no Estado, que a não occupão. A população indígena do posto elevou-se de 204 a 212; o gado vaccum já encerrado nos campos enumera-se em 926 cabeças, havendo ainda em deposito no posto de Cachoeirinha 159 rezes. Mantemos ahi, como nos outros, postos o systema de só distribuir gado de criação aos índios como premio, ou em pagamento de serviço. Assim selecionamos os mais capazes de possuil-os e obtemos os maiores proveitos para o posto. É a continuação do critério que adoptamos de que, a não ser os brindes de approximação, não devemos “dar de graça” nada, aos validos para não habitual-os a mendicância, de que os índios “aproximados” dão em geral, um tão triste espectaculo.49

Na época em que Vianna Estigarribia escreveu o citado relatório, grandes

proprietários de terras — os chamados coronéis — dominavam o cenário político em Mato

Grosso. O poder desses coronéis mato-grossenses sofreu grandes abalos com a presença

efetiva do governo federal, a partir de 1930, representado pelos interventores no Estado.

48 Relatório do Inspetor Interino da I. R. 5, Antonio Martins Vianna Estigarribia, de 07/02/1928, encaminhado ao diretor do SPI, José de Bezerra Cavalcanti. Museu do Índio. MI-PE37.18. Caixa 99. Acesso 336. Levantamento sobre os índios Kadiwéu, localizados no Estado de Mato Grosso do Sul, datado de 17 de junho de 1981, realizado por Jane Lúcia Faislon Galvão. 49 Relatório do Inspetor Interino da I. R. 5, Antonio Martins Vianna Estigarribia, de 07/02/1928, encaminhado ao diretor do SPI, José de Bezerra Cavalcanti. Museu do Índio. MI-PE37.18. Caixa 99. Acesso 336. Levantamento sobre os índios Kadiwéu, localizados no Estado de Mato Grosso do Sul, datado de 17 de junho de 1981, realizado por Jane Lúcia Faislon Galvão

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Em Mato Grosso, a década de 1930 foi marcada por momentos nos quais a ação do

governo se fez mais rigorosa e repressora junto aos poderosos senhores locais. A investida

inicial contra os coronéis ocorreu com o primeiro interventor no Estado, o coronel do

exército Antonino Mena Gonçalves, nomeado a 03/11/1930, cuja atuação atingiu mais

duramente alguns dos principais líderes nortistas. O coronel Mena Gonçalves fora um dos

líderes revolucionários que trouxera material bélico proveniente do Rio Grande do Sul para

a região sul do Estado, e que deveria comandar a revolução na região mato-grossense com

a participação de gaúchos, no caso de algum confronto. Sua gestão, como interventor do

Estado, ainda que só tivesse a duração de cinco meses, caracterizou-se, nas palavras de

Valmir Corrêa (1995), por uma ação “saneadora” e “moralizadora” contra os grandes

proprietários usineiros do norte que chegaram a ser presos e humilhados em seus próprios

domicílios.

Essa atuação política do coronel Mena Gonçalves, objetivando quebrar a espinha

dorsal do poder dos líderes nortistas, deve ser compreendida como um posicionamento

revanchista contra o domínio absoluto da oligarquia do norte do Estado nas décadas

anteriores. O certo, porém, foi que o interventor desencadeou uma perseguição obstinada

contra os usineiros que, nesse momento, eram os principais representantes do grupo

dominante nortista. Ainda em janeiro de 1931, Mena Gonçalves, em ofício dirigido ao

presidente Getúlio Vargas, dava conhecimento de sua ação “moralizadora” em Mato

Grosso. Por sua vez, os usineiros denunciaram o interventor, acusando-o de castigar os

próprios coronéis em seus instrumentos de tortura encontrados nas usinas (o tronco, por

exemplo) e de ser desqualificado para administrar o Estado, apontando falhas no governo.

A despeito de a repressão ter se concentrado na região norte, foi no sul que se esboçou uma

reação mais concreta em oposição ao governo de Mena Gonçalves. Após infrutíferos

apelos junto ao próprio Getúlio Vargas, alguns chefes locais declararam-se dispostos a

recorrer às armas. De qualquer modo, a intervenção de 1930, impondo uma nova ordem

política em Mato Grosso por meio de medidas drásticas, refletiu negativamente na

produção e exportações do Estado que já vinham se ressentindo pela conjuntura de crise

em todo o país (CORRÊA, 1995).

A ratificação dos limites da Reserva, por Mena Gonçalves, pode estar relacionada

com a quebra de poder dos coronéis no sul de Mato Grosso. A 24 de abril de 1931, Mena

Gonçalves foi substituído pelo interventor Artur Antunes Maciel. Antes de deixar o poder,

porém, ratificou a demarcação de 1903 e baixou o decreto n º 54, em 1º de abril, dando em

usufruto aos Kadiwéu as terras que vão da Serra da Bodoquena ao rio Paraguai e do rio

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Niutaca ao rio Aquidabã.50 A Gazeta Official de 16 de abril de 1931 publicou, na seção

Várias Notícias, a seguinte nota:

Confirmada a posse dos índios Cadiuéos na região Nabileque [...] Com referência ao Decreto nº 54, de 9 do corrente mez e que hoje publicamos na secção competente, o Exmo. Snr. Coronel Antonino Menna Gonçalves, honrado Interventor federal, recebeu do Snr. General Candido Marianno da Silva Rondon o seguinte telegramma: [...] Coronel Menna Gonçalves, [...] Interventor Federal [...] Cuiabá [...] Queira Sr. Interventor, receber os meus profundos agradecimentos pelo vosso patriótico acto, confirmando a reserva dos terrenos ocupados pelos índios Cadiuéos, na região Nabileque, comprehendida entre a Serra da Bodoquena e a margem esquerda do rio Paraguay. [...] O novo Decreto uniu o vosso nome ao do presidente Alves de Barros numa acção de benemerência patriótica, só cabível aos governantes de alto descortino político, pois elle ultrapassa os interesses de uma nação indígena, para abarcar também os mais transcendentes da nossa política nacional.[...] Affectuosas saudações. [...] General Rondon (GAZETA Official do Estado do Mato Grosso, 1931, [s.p.]).

Na segunda metade da década de 1930, os Kadiwéu foram visitados por dois

pesquisadores europeus: o francês Lévi-Strauss e o alemão Freundt. Claude Lévi-Strauss,

além de lecionar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da então recém-criada

Universidade de São Paulo, da qual foi um dos fundadores, realizou trabalhos de campo

entre 1935 e 1936, no Brasil, junto aos Nambikuara e aos Bororo, entre outros. Esteve em

uma expedição junto aos Kadiwéu51, na qual registrou algumas observações sobre o estado

em que encontrou, à época, o grupo indígena. Seus trabalhos de campo visavam,

sobretudo, a arte Kadiwéu, a pintura corporal e a decoração da cerâmica. Em Pitoco, onde

havia um antigo posto do SPI, encontrou apenas três casas em ruínas. Em Nalique,

restavam somente cinco casas. Engenho, aldeia que ficava próxima a Nalique, era o mais

populoso aglomerado de índios. O número populacional das três aldeias, nessa época, não

ultrapassava duzentas pessoas que, segundo Lévi-Strauss (1996, p. 162), “[...] viviam da

caça, da coleta de frutos silvestres, de alguns bois e de animais de criação, e do cultivo das

roças de mandioca que avistávamos do outro lado da única nascente, que corria ao sopé do

terraço [...]”.

50 Cf. Anexos – Textos: Texto C. 51 Anos mais tarde, Lévi-Strauss escreveu Tristes trópicos (LÉVI-STRAUSS, 1996) com base nas experiências vivenciadas durante essa primeira expedição e uma segunda (1938-39), em que além dos Nambikuara, visitou, também, os Kabixiana, os Paresi e os Tupi-Kawahib. Cf. GRUPIONI, 1998.

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Freundt visitou os Kadiwéu no final da década de 1930, após Lévi-Strauss. De

acordo com o etnólogo teuto-brasileiro Herbert Baldus, na introdução à obra Índios de

Mato Grosso, Erich Freundt registrou, em 1939, que as duas aldeias Kadiwéu possuíam

cerca de cem habitantes e que o número desses índios havia diminuído nos últimos anos

em virtude da febre amarela e de outras epidemias, mas também por causa da contínua

prática do infanticídio, por meio de abortos. Naquela época, os Kadiwéu se ocupavam da

criação de gado, trabalhando, também, como vaqueiros e lenhadores nas fazendas vizinhas

à Reserva.

A documentação pesquisada nos arquivos da Funai revelou que na década de 1940

houve a necessidade de se verificar as linhas divisórias da Reserva para dirimir dúvidas

com fazendeiros da região.52 Por essa razão, o coronel Nicolau Horta Barbosa, então chefe

da Inspetoria Regional 5, em ofício encaminhado à Chefia da Inspetoria do SPI, apontou a

necessidade de instruções e esclarecimentos sobre os reais limites da Reserva.53 Esses

limites, até essa época, eram praticamente ignorados pelos Kadiwéu, que transitavam para

além deles, causando preocupação aos regionais. A esse respeito, a antropóloga austríaca

Wanda Hanke, que esteve entre os Kadiwéu e os Terena no início dos anos 1940, referiu-se

aos locais onde os primeiros habitavam e por onde perambulavam:

Desde os tempos remotos os Cadivéns ocupam toda a região entre a costa do rio Paraguay e Miranda, concentrando-se perto do rio Nabileque e formando várias aldeias. As maiores atualmente são Alike [Nalike], Pitoco y Limera [Limoeiro]. Mas encontramos Cadivéns também em Xatelodi [Xatelodo], sede do posto, e nas estações vizinhas, como Guaikurús, km. 1221 e especialmente em Caixeira e Carandazal trabalhando na turma. Passando pelos montes daquelas zonas amiúde encontramos grupos de Cadivéns em seus acampamentos ou em viagem (HANKE, 1942, p. 82, tradução do autor).54

A aldeia Xatelodo, citada por Hanke, ficava próxima à trilha que os Kadiwéu

usavam para chegar à estação ferroviária Guaicurus, constituindo-se uma importante

parada para a maioria dos que viajavam para as cidades, gerando ocasiões propícias para a

manutenção das relações intercomunitárias. Tratava-se, portanto, de uma grande aldeia,

52 Carta datada de 12 de junho de 1942, assinada por Francisco Vilela de Figueiredo, dirigida ao Chefe da 5 ª Inspetoria Regional do SPI. Pastas Kadiwéu 1-14.Arquivo da Divisão de Assuntos Fundiários (DAF) da Funai. 53 Instruções e esclarecimentos sobre a divisa na cabeceira do Aquidauana [Aquidaban], datadas de 21 de fevereiro de 1944, assinadas pelo Cel. Nicolau Horta Barbosa, chefe da I.R. 5. Pastas Kadiwéu 1-14. Arquivo da Divisão de Assuntos Fundiários (DAF) da Funai. 54 Traduzido do original em espanhol.

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com organização própria e inserida na ampla e complexa rede de relações sociais Kadiwéu,

mas que se encontrava fora dos limites oficialmente demarcados para os índios. No início

da década de 1940, surgiram as primeiras tentativas de entrada de não-índios, com

anuência do SPI, nas terras reservadas aos Cadiuéos. Uma carta datada de 1941, cuja

cópia está arquivada no Departamento de Documentação (Dedoc) da Funai, revela que

naquele ano foi dirigido, informalmente, um pedido ao encarregado do SPI de

arrendamento e ocupação de pastagens em terras Kadiwéu. Embora não tenha encontrado

resposta a essa carta, creio que o pedido tenha sido rejeitado.55

O mapa de localização dos Postos Indígenas do SPI, em 1944 56, aponta a existência

de três postos na Reserva, subordinados à Inspetoria Regional 5 (mais tarde transformada,

pela Funai, em 9ª Delegacia Regional): Posto Indígena de Alfabetização e Tratamento

(PIT) São João do Aquidavão, Posto Indígena de Fronteira e Vigilância (PIF) Alves de

Barros e Posto Indígena de Criação (PIC) Nalique. Embora com nomes diferentes, os

postos indígenas possuíam as mesmas atribuições, ou seja, eram as unidades de base da

política indigenista praticada na época e passaram a ter uma classificação baseada no grau

de contato dos indígenas com a sociedade envolvente, prestando assistência aos índios que

estavam sendo incorporados à civilização. Os PIF tinham a função de policiar as fronteiras

brasileiras, evitando que a população indígena fosse atraída para países limítrofes. Os PIT

eram considerados os mais econômicos dos postos indígenas e foram criados para prestar

assistência aos indígenas com maior grau de contato com a sociedade envolvente. Já os

PIC estavam voltados para despertar no índio o interesse pela pecuária (ROCHA, 2003).

Por ocasião das visitas de Darcy Ribeiro (1980b) entre os Kadiwéu, realizadas nos

anos de 1947 e 1948, como parte do plano de trabalhos da Seção de Estudos do SPI, a

população Kadiwéu era composta, segundo o autor, de 235 pessoas, distribuídas da

seguinte forma: 94 pessoas junto ao Posto Indígena Presidente Alves de Barros, na Serra

da Bodoquena; 66 nas imediações do Posto de Criação de Pitoco (Nalique); 31 em

Tomásia; 11 em Limoeiro, residência isolada. Ribeiro registrou, em 1948, em dois trechos

de seus diários de campo, a situação em que se encontravam os Kadiwéu. Segundo ele,

O modo de ser dos Kadiwéu é, hoje, essencialmente, uma variante do modo de ser dos brasileiros. Andam vestidos como a gente mais pobre da região onde vivem, quase todos os homens adultos se exprimem bem em português e muitos deles trabalham, por temporadas, nas fazendas

55 Cf. Anexos – Textos: Texto B. 56 Cf. Anexos – Mapas: Mapa D.

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vizinhas. Constitui, porém, uma variante singular, porque recheada de valores culturais próprios e, sobretudo, porque os Kadiwéu não se identificam como “brasileiros” e sim como uma entidade étnica em si, distinta de todas as demais: como um povo oprimido pelo grande mundo dos brancos que os cerca e os hostiliza por todos os lados e de todas as formas (RIBEIRO, 1980a, p. 7).

E prossegue o autor:

Vivendo principalmente da caça ao cervo e ao veado e da coleta de cocos e palmitos; acompanhando hoje, como vem fazendo secularmente, o fluxo e refluxo das águas do Paraguai que inundam o Pantanal durante 5 meses e voltam vagarosamente ao leito, arrastando atrás de si a caça e o caçador Kadiwéu. Despojados de seus rebanhos – perdidos nas trocas com os brancos, principalmente no comércio de aguardente – os Índios Cavaleiros de nossos dias, quase todos a pé, vivem como seus vizinhos neobrasileiros: vestindo-se, pastoreando o gado, caçando e curtindo peles com os mesmos métodos destes; mas conservando, ainda, algumas das características do antigo povo senhorial e dominador (RIBEIRO, 1980a, p. 24).

Ribeiro não se preocupou em registrar o número de moradores da aldeia São João

(Posto Indígena São João do Aquidavão), pois a maioria absoluta da população do local era

composta, à época, como é também atualmente, por indígenas Terena e Kinikinau, etnias

que não eram objeto de estudo da pesquisa do etnólogo. De acordo com Cardoso de

Oliveira, “[...] São João, dentro da reserva dos Kadiwéu, foi formada pela introdução de

famílias Terêna num retiro à margem do rio Aquidavão e próximo à serra da Bodoquena,

com o objetivo de garantir a posse daquelas terras pelo povoamento” (CARDOSO DE

OLIVEIRA, 1976, p. 71). Em relação à presença dos Kinikinau na aldeia São João, não

encontrei maiores referências na documentação consultada sobre a Reserva, embora a

memória de alguns membros desse grupo registre a primeira chegada de duas famílias

Kinikinau, em 13 de junho de 1940, acompanhadas pelo coronel Nicolau Horta Barbosa.57

Sobre invasões na Reserva, as mais antigas notícias que encontrei datam do período

compreendido entre as décadas de 1940 e 1950.58 Em 1953, o Chefe da Inspetoria Regional

5, Iridiano Amarinho de Oliveira, ventilou ao diretor do SPI uma proposta de

arrendamento das terras dos Kadiwéu. A preocupação do então inspetor era com a

obtenção de rendas por parte do órgão indigenista. O fundo conhecido como renda

57 Conforme informação pessoal fornecida a mim pelos indígenas da etnia Kinikinau, Rosaldo de Albuquerque Souza e Leôncio Anastácio, no final de 2003. 58 Arquivo do Departamento de Documentação (Dedoc) da Funai. Caixas 1-4, referentes aos índios Kadiwéu. Arquivo da Divisão de Assuntos Fundiários (DAF) da Funai. Pastas Kadiwéu 1-14.

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indígena foi instituído pelo Decreto n º 10.652, artigo 9º, de 16 de outubro de 1942. O

dinheiro proveniente das transações da renda indígena (dentre os quais, o de

arrendamentos) deveria ser movimentado em uma conta corrente especial, controlada por

uma seção do SPI. A respeito dos arrendamentos, em geral, Rocha afirma que:

[...] o SPI aceitou o arrendamento não só como forma de garantir recurso para a renda indígena, mas principalmente como forma de contemporizar com os inúmeros invasores existentes que, lentamente, haviam ocupado as reservas indígenas (ROCHA, 2003, p. 239).

A resposta do antropólogo Eduardo Galvão, responsável pela Seção de Orientação e

Assistência (SOA) do SPI, merece ser transcrita na íntegra:

Somos, em princípio, contra quaisquer propostas de arrendamentos, visando a cessão de terras para agricultura ou pecuária. Neste caso particular os termos do contrato não são vantajosos ao SPI, e aberto o precedente teríamos os campos dos Cadiueu transformados em fazendas particulares. Será preferível elaborar um plano, mesmo a longo prazo, em [que] o SPI forneça aos índios meios para o estabelecimento dessas fazendas. E visto que parte do gado dos Postos da IR 5 foi transferido para esses campos, recomendávamos à Chefia atenção para a necessidade de desenvolver aí um criatório, sempre com recursos próprios e não recorrendo a arrendamentos com particulares (grifos do autor).59

A opinião de Galvão, entretanto, não prevaleceu entre os funcionários do órgão,

que viram com certa simpatia, a entrada de não-índios nas terras dos Kadiwéu. Em 1953,

em um relatório de viagem aos postos da Reserva, o agente Enoch Alvarenga Soares

afirmou:

[...] não encontrei invazores, apenas sabemos que alguns fazendeiros tem terras requeridas na área, mas crêm que tais requerimentos não foram despachados pelo Departamento de Terras, motivo pelo qual os invasores ainda não penetraram para dentro da Reserva. 60

A postura de diversos funcionários do SPI foi clara em relação aos arrendamentos.

Muitos deles foram favoráveis, pois viram, nesta prática, a oportunidade de realizar o que

59 Ofício protocolado sob nº 481, datado de 20 de maio de 1953, assinado por Eduardo E. G. Galvão, responsável por exp. da S.O.A. Pastas Kadiwéu 1-14. Arquivo da Divisão de Assuntos Fundiários (DAF) da Funai. 60 Relatório da viagem aos postos da Reserva “Cadiuéos” I.R. 5, datado de 30/09/53, assinado por Enoch Alvarenga Soares, Agente ref. 21. Pastas Kadiwéu 1-14. Arquivo da Divisão de Assuntos Fundiários (DAF) da Funai.

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consideraram um melhor aproveitamento das terras dos Kadiwéu. Em um documento de

09/08/54, por exemplo, o então chefe da IR 5, Deocleciano de Souza Nenê, afirma ser

favorável ao arrendamento de uma parte do campo da reserva de terras dos índios Kadiwéu

a Laudelino Barcelos & Filhos.61

3.2. A ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DE MATO GROSSO E A TENTATIVA DE

USURPAÇÃO DAS TERRAS DOS KADIWÉU

Como visto, ao longo da primeira metade do século XX, as terras da Reserva foram

cobiçadas por muitos e, na segunda metade desse século, a situação não foi diferente. Os

anos 1950 foram marcados pela entrada dos primeiros arrendatários na área e pela

fracassada tentativa de usurpação das terras dos Kadiwéu, empreendida por deputados

estaduais de Mato Grosso, no final da década (RIBEIRO, 1962). Entre 1957 e 1958, a

Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso propôs a redução da área dos Kadiwéu

para 100.000 ha (cem mil hectares). Na época, esta resolução provocou vários protestos e

gerou um processo que foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal favoravelmente aos

índios. Ignorando garantias constitucionais, a Assembléia aprovou e remeteu à sanção do

Governador o Projeto de Lei nº 1.077, tornando devolutas e revertendo ao domínio do

Estado as terras concedidas aos índios Kadiwéu. Para dar a este projeto aparência de

simples redução das terras indígenas, o artigo 2o delimitou uma gleba que ficaria em

usufruto dos índios. Situou-a, porém, precisamente, na faixa de fronteira, ao longo do rio

Paraguai, porque esta, por um dispositivo constitucional, não poderia ser possuída, senão

em condições muito especiais, fixadas pela legislação federal e não tendo, por isto mesmo,

valor de venda. Acresceu, ainda, que a faixa de terras destinada aos Kadiwéu ficava no

Pantanal, sendo inabitável durante seis meses do ano, por ficar coberta pelas águas do

Paraguai e seus afluentes.

A usurpação foi tão evidente que o governador João Ponce de Arruda negou-se a

sancionar a lei, declarando-a inconstitucional e imoral.62 Voltou, então, a Assembléia a

reunir-se e, rejeitando o veto, aprovou novamente o projeto original e o fez sancionar como

61 Carta datada de 09 de agosto de 1954, não assinada, referente ao processo SPI – 2631/ 54. Pastas Kadiwéu 1-14. Arquivo da Divisão de Assuntos Fundiários (DAF) da Funai. 62 Cf. Anexos – Textos: Texto A.

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Lei nº 1.077 de 10 de abril de 1958, pelo seu presidente, deputado Rachid Mamede. O

presidente da Assembléia e os demais deputados, uma vez lavrada a ata de votação,

dirigiram-se à Imprensa Oficial e ali fizeram imprimir apenas dois exemplares do Diário

Oficial daquela data, com a nova lei, guardando um no Arquivo do Estado para servir,

posteriormente, de prova e levando o segundo, mais tarde, para a cidade de Campo Grande,

sede da repartição que processava as concessões de terras devolutas de Mato Grosso.

Tomaram o cuidado, também, de inutilizar temporariamente a oficina gráfica do Estado,

para que o governador não pudesse publicar imediatamente ato próprio ou do Poder

Judiciário, invalidando a lei.

Em Campo Grande, os deputados, exibindo o texto da lei, registraram mais de uma

centena de requerimentos de concessão de lotes de dois a cinco mil hectares das terras dos

Kadiwéu. Desde o dia seguinte, surgiram dezenas de requerimentos; a prioridade, porém,

estava assegurada aos que tinham numeração mais baixa no protocolo de entrada e estes

eram exatamente os dos deputados mato-grossenses. Muitos destes requerimentos

atingiram os três postos do SPI, cujas casas, escolas, enfermarias, pastagens, cercas de

arame farpado, currais de madeira de lei e outras benfeitorias quiseram-se apropriar.

Quarenta e dois dias depois, ou seja, antes de esgotado o prazo mínimo de 60 dias fixado

em lei, após a entrada dos requerimentos, começaram a ser depositados, na repartição

competente, os laudos de medição de terras. Eram claramente falsos, porque ninguém

procedera à medição sobre o terreno como mandava a lei e, muito menos, à demarcação.

Entretanto, mesmo sendo falsos, os laudos foram aceitos como válidos, apesar dos

protestos formulados pelo órgão indigenista oficial.

À entrega dos laudos de demarcação seguiu-se o recolhimento, ao Tesouro do

Estado, da importância de dez cruzeiros por hectare das glebas referidas. Em conseqüência

da Lei nº 1.077, já havia sido recolhido ao Tesouro mais de um milhão de cruzeiros, cujo

recibo dava direito à concessão de título provisório de posse, negociável à média de mil a

dois mil cruzeiros por hectare! Assim, se montou uma das mais abusadas tentativas de

grilagem de terras indígenas do Brasil, apesar dos protestos do governador, do procurador

geral da Justiça e dos dirigentes da Repartição de Terras e Colonização do Estado e da

Inspetoria Regional do Serviço de Proteção aos Índios. Esta última impetrou mandado de

segurança contra o ato do presidente da Assembléia que tramitou durante meses pelos

tribunais de Mato Grosso, sem solução. O juiz Antônio de Arruda esforçou-se mesmo por

justificar o ocorrido, pronunciando-se pela desapropriação das terras dos Kadiwéu, porque

“[...] este seria, sem dúvida, o processo mais eqüitativo e salutar, sobretudo se as terras

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expropriadas fossem depois cedidas aos pequenos agricultores, [...] como solução, ao

menos parcial, do problema agrário de que hoje tanto se fala!” (CORREIO da Manhã, 1959,

[s.p.]).

Em 18 de abril de 1958, o Jornal do Comércio publicou em primeira página a

manchete Trama escandalosa para apoderar-se das terras dos índios. Segundo a

reportagem, parlamentares de todos os partidos políticos estariam envolvidos no que foi

denominado de marmelada imoral. A Delegacia de Terras de Campo Grande havia

recebido, desde o dia 16, centenas de requerimentos e o governador Ponce de Arruda

recusava-se a assinar os títulos de propriedade. Em 23 de abril do mesmo ano, o jornal

voltou a publicar na primeira página o assunto com o título O veto governamental e o

parecer da Comissão de Justiça rejeitando a opinião do Executivo. A matéria veiculou a

mensagem governamental de veto à lei que reduzira as terras dos Kadiwéu e o parecer da

CJ da Assembléia Legislativa, rejeitando o veto governamental. A publicação dos dois

documentos foi tratada como sendo de:

[...] transcendental importância, que bem refletem a posição dos nossos homens de governo face ao momentoso assunto do avanço nas terras dos índios, que si fossem reduzidas em favor de pequenos lavradores, e não para benefício de grupos para posteriores negociatas, teriam um significado muito mais elevado para o Estado [...] (JORNAL do Comércio, 1958, p.1).

Em 13 de março de 1959, o Correio da Manhã, de circulação nacional, publicou

em seu 1o caderno uma reportagem com o seguinte título: Trama-se em Mato Grosso a

mais torpe grilagem de terras indígenas do Brasil. Darcy Ribeiro foi entrevistado nesta

matéria e mostrou-se indignado contra o que denominou de “usurpação escandalosa”.63

3.3. INVASÕES DAS TERRAS DOS KADIWÉU E ARRENDAMENTOS

A presença de pecuaristas não-indígenas tornou-se constante na Reserva desde a

grande enchente do rio Paraguai de 1959. A expansão das fazendas de pecuária na região e

os conflitos com invasores pressionaram os índios a se estabelecerem em uma pequena

63 A decisão da Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso gerou um processo julgado pelo Supremo Tribunal Federal que, através do Recurso Extraordinário nº 44.585, de 30 de agosto de 1961, deu ganho de causa aos indígenas Kadiwéu e manteve a área com os limites originais.

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parcela do seu território tradicional, área que ocupam atualmente. A intensificação da

agricultura e a inserção do SPI, que impôs a desarticulação de aldeias, o reagrupamento em

torno dos postos indígenas e o arrendamento das terras para fazendeiros da região

provocaram, também, profundas alterações no modo de vida dos Kadiwéu e na maneira de

se relacionarem com o seu território. No início dos anos 1960, José Mongenot, chefe

substituto da Inspetoria Regional 5 encaminhou ao diretor do SPI um documento intitulado

Irregularidades apuradas na sindicância, procedida pelo Agente José Mongenot, dentro

da Reserva Indígena dos Índios Kadiuéus por ordem do Exmº Sr. Ten. Cel. Moacyr

Ribeiro, DD. Diretor do Serviço de Proteção aos Índios. Neste documento, Mongenot

revelou que os arrendatários, em sua grande maioria, fechavam áreas maiores às que lhes

eram permitidas pelos contratos de arrendamento com o órgão. Além disso, muitos

ocupantes encontrados não possuíam qualquer tipo de contrato e de controle por parte do

SPI. O Posto Indígena São João, por exemplo, estava completamente cercado por

arrendatários que vendiam as terras indígenas e transferiam-nas a outros como se fossem

propriedades suas. Nessa época, os choques entre índios e arrendatários eram constantes e

a resposta dos Kadiwéu constituía-se em apropriação de gado e de cavalos dos invasores.64

Em dezembro de 1962, José Fernando da Cruz, chefe da IR 5, encaminhou um

relatório de ocorrências na Reserva. Segundo o inspetor:

Dentro da Reserva há diversas áreas arrendadas a fazendeiros pecuaristas, através de Contratos ilegalmente celebrados por esta Inspetoria com prejuízos às áreas ocupadas pelos índios habitantes dessa reserva. Acontece porem, que indivíduos inescrupulosos, invadiram também a Reserva e ocuparam clandestinamente uma grande área (80.000 HA) inclusive as aguadas em que os índios mantêm seus animais e ainda privando-lhes o direito da caça, a que são acostumados. [...] Em face dessas irregularidades, um grupo de índios procurou entrar em entendimentos com os invasores, com o objetivo de, pacificamente, solucionar a situação, quando foram recebidos a bala e em conseqüência entrando em luta corporal da qual resultou a morte de um invasor e ferimento de alguns índios. Ao ensejo, os índios, retirando das moradias, mulheres e crianças, incendiaram os ranchos.65

64 Irregularidades apuradas na sindicância, procedida pelo Agente José Mongenot, dentro da Reserva Indígena dos Índios Kadiuéus por odem [sic] do Exm º Sr. Ten. Cel. Moacyr Ribeiro, DD. Diretor do Serviço de Proteção aos Índios. Documento datado de 12 de março de 1962. Caixas 1-4, referentes aos índios Kadiwéu. Brasília: Dedoc/ Funai, 1962. 65 Relatório das ocorrências nas reservas dos índios “Kadiuéus”, datado de 14 de dezembro de 1962 e assinado por José Fernando da Cruz, chefe da I.R. 5. Pastas Kadiwéu 1-14. Brasília: DAF/ Funai, 1962.

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Preocupado com o trágico desfecho que poderia advir dessa situação, o inspetor

salientou que:

[...] bem difícil tem sido o desempenho de nossas atribuições, visto termos que enfrentar o poderio bastante pujante dos pecuaristas ocupantes de vastíssimas áreas na Reserva. [...] Interesses políticos contrariados, criam clima de incerteza de dias futuros a esta Chefia, deixando antever ameaças de invasão total da área reservada. [...] Isto poderá trazer conflitos graves à ordem pública com rastilho em todo o sul do estado.66

Em 08 de abril de 1963 o chefe da IR 5, Alísio de Carvalho, por meio de ofício,

encaminhou ao diretor do SPI, em Brasília, exposição de motivos em que apresentou um

quadro amplo do processo que culminou na entrada de fazendeiros na Reserva. Segundo

Carvalho, por volta de março de 1959, houve uma grande cheia no rio Paraguai e a

subseqüente inundação de todo o Nabileque67, o que obrigou os fazendeiros da região a

transportarem às pressas o gado para as terras altas da Reserva. Esses fazendeiros, em

número de sessenta e um, entraram com pedidos de arrendamento junto ao SPI e, após

difíceis negociações, foram feitos os contratos com duração de seis anos (1961 a 1967).

Ocorre que, além desses fazendeiros, muitos outros entraram nas terras indígenas, sem

documentação alguma, e, por esse motivo, Alísio Carvalho pediu a regularização de todos

os contratos.68 Em 1965, os mesmos foram cancelados, embora isso não significasse o fim

dos arrendamentos e dos problemas gerados por tal prática.69 Não só a presença de

pecuaristas nas terras da Reserva afligia os Kadiwéu. O consumo de álcool crescia,

estimulado pelos não-índios que faziam o comércio da bebida através dos rios e da estação

ferroviária Guaicurus. Um exemplo dessa situação foi registrado em um documento,

datado de 22 de maio de 1967, assinado pelo capitão-de-corveta, capitão dos portos

Roberto Buarque Goulart, que pediu ao agente da Capitania dos Portos, em Porto

66 Relatório das ocorrências nas reservas dos índios “Kadiuéus”, datado de 14 de dezembro de 1962 e assinado por José Fernando da Cruz, chefe da I.R. 5. Pastas Kadiwéu 1-14. Brasília: DAF/ Funai, 1962. 67 De acordo com a pesquisadora Aline Figueiredo (1994, p. 175-176), “A respeito das enchentes extraordinárias do Pantanal, neste século [XX] ocorridas em 1905, 1920, 1932, 1959, 1974 e 1988, procedem algumas observações. Nota-se, entre elas um intervalo de 12 a 15 anos, exceto os 27 do período 1932/1959”. 68 Ofício 90/63, datado de 08 de abril de 1963, assinado por Alísio de Carvalho, chefe da I. R. 5 e encaminhado ao Sr. Cel. Diretor do SPI, em Brasília. Pastas Kadiwéu 1-14. Brasília: DAF/ da Funai, 1963. 69 Ofício 9/65, datado de 21 de janeiro de 1965, assinado por Alan Cardec Martins Pedroza, chefe da I.R/5 do SPI. Pastas Kadiwéu 1-14. Brasília: DAF/ Funai, 1965.

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Murtinho, colaboração para coibir a venda de bebidas alcoólicas aos Kadiwéu pelos rios da

região.70

A partir de 1968, os Kadiwéu tiveram contato intermitente com missões religiosas,

sobretudo protestantes. Desde o início da década de 1970, a Missão Evangélica Pró-

Redenção aos Índios, de origem alemã, atuou entre estes índios. Inicialmente, os

missionários, quase todos de nacionalidade estrangeira, estabeleceram-se dentro da aldeia

Bodoquena, se deslocando, mais tarde, para as vizinhanças da mesma. Entretanto,

inúmeros atritos tornaram a presença dos missionários um outro problema a ser enfrentado

pelos indígenas. Além disso, pesavam acusações sobre os estrangeiros de estarem

interferindo nas tradições Kadiwéu e de possuírem outros interesses, além dos religiosos

(comércio ilícito de madeira, exploração de mão-de-obra indígena etc.). A antropóloga

Olga Cristina Lopes de Ibañes-Novion, em documento datado de 14 de dezembro de 1979

ao chefe do Departamento de Estudos e Pesquisas (DEP) da Funai, em vista das acusações

levantadas por funcionários do órgão, pediu a retirada da Missão Pró-Redenção aos Índios

da Reserva, o que não ocorreu de imediato.71

Em janeiro de 1974, a pesquisadora Sônia Chevalier realizou uma visita ao Campo

dos Índios, tendo permanecido no Posto Indígena Bodoquena (antigo Presidente Alves de

Barros). Nessa época, segundo Chevalier, o grupo contava com 373 indivíduos, divididos

em três aldeias, sendo a principal a da Bodoquena. De acordo com a pesquisadora, a

situação dos Kadiwéu era a seguinte:

Embora mantivessem seu idioma e identidade, externamente seu modo de vida pouco se distinguia do de nosso caipira, cultivando suas roças de mandioca, milho, algodão, cana e feijão, criando galinhas, realizando esporádicas caçadas ou trabalhando como peões nas fazendas de gado vizinhas à reserva. As condições de vida eram bastante precárias e o auxílio vinha principalmente da Missão Evangélica protestante ali sediada e da ajuda esporádica de instáveis funcionários da FUNAI (CHEVALIER, 1974, p.1).

A década de 1970 foi marcada por inúmeras invasões de posseiros, oriundos

principalmente do Nordeste e apelidados em seu conjunto, pelos Kadiwéu, de baianada. A

invasão de trechos das terras indígenas por posseiros e fazendeiros durante parte do século

70 Ofício n º 0306, datado de 22 de maio de 1967, do Capitão-de-Corveta, Capitão dos Portos Roberto Buarque Goulart ao Sr. Agente da Capitania em Porto Murtinho. Caixas 1-4, referentes aos índios Kadiwéu. Brasília: Dedoc/ Funai. 71 Processo Funai 1.811/ 80. Folha 31. Ofício s/ n º datado de 14 de dezembro de 1979. Caixas 1- 4, referentes aos Kadiwéu. Brasília: Dedoc/ Funai, 1979.

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XX, notadamente entre as décadas de 1960 e 1970, justificou a realização de uma nova

demarcação, atualizando a de 1899-1900. Com a instalação da Colônia Agrícola

Bodoquena, nos limites da área indígena Kadiwéu, em localidade denominada Morraria,

intensificou-se a intrusão de lavradores nas terras dos Kadiwéu. Por conta dessas invasões,

no final dos anos 1970, foram criados, postos de vigilância (PV) nos limites da Reserva,

visando impedir a reincidência dos posseiros expulsos: Tarumã (PV1), Califórnia (PV2) e

Salobra (PV3), que contavam com um considerável número de indígenas como vigilantes.

Os arrendamentos continuavam sendo praticados, em prejuízo dos índios, apesar das

inúmeras reclamações dos mesmos. Em ofício, datado de junho de 1976, o chefe do Posto

Indígena São João, Raimundo Romeu Fontenele de Andrade, expôs que os índios da

aldeia, cansados de terem suas roças invadidas pelo gado dos arrendatários, estariam se

mudando para outra localidade dentro da Reserva e pediu a Gerson da Silva Alves,

delegado da 9ª Delegacia Regional da Funai, que tomasse providências.72 O mesmo

encaminhou a carta à Brasília e, embora a resposta não tenha sido encontrada nos papéis do

arquivo, creio que nenhuma providência foi tomada. 73

Neste mesmo ano de 1976, o jornal O Estado de São Paulo noticiou que um grupo

de índios Ofaié foi encontrado no município de Brasilândia (atual Mato Grosso do Sul).

Dados como extintos por Darcy Ribeiro, um grupo de 24 indígenas era tudo o que restava

daquela sociedade indígena que, no início do século XX, compunha-se de cerca de 2.000

indivíduos. Depois de muitas promessas por parte da Funai, os Ofaié foram transferidos,

em 1978, para a Serra da Bodoquena, segundo a lógica do órgão indigenista de que os

Kadiwéu possuíam muitas terras. Chegando à Reserva, os Ofaié viram-se no meio do

conflito entre posseiros e indígenas Kadiwéu e foram hostilizados por ambos os lados.

Assim como os Ofaié, um grupo de índios Guarani-Kaiowá também foi levado, pela Funai,

para o interior da Reserva. Estes últimos saíram a pé das terras dos Kadiwéu logo após sua

chegada, decidindo voltar ao antigo território tradicional do grupo, denominado Rancho

Jacaré. Os Ofaié, entretanto, permaneceram na área dos Kadiwéu até 1986, retornando à

Brasilândia após enfrentarem inúmeros problemas com os não-índios e com os próprios

Kadiwéu.74

72 Ofício manuscrito 008/PI S. João/76, datado de 11 de junho de 1976, assinado pelo Sr. Raimundo Romeu Fontenele de Andrade. Pastas Kadiwéu 1-14. Brasília: DAF/ Funai, 1976. 73 Ofício nº 361/9 DR/76, datado de 1º de julho de 1976, assinado por Gerson da Silva Alves, delegado da 9ª DR/Funai, encaminhado ao Sr. Diretor do D.G.O. Pastas Kadiwéu 1-14. Brasília: DAF/ Funai, 1976. 74 Cf. DUTRA, 1996.

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CONCLUSÃO

A definitiva demarcação da Reserva Indígena Kadiwéu foi empreendida pela Funai,

em colaboração com o Exército Brasileiro, no início da década de 1980. Nessa época, as

terras dos Kadiwéu localizavam-se no recém-criado Estado de Mato Grosso do Sul

(desmembrado de Mato Grosso em 11 de outubro de 1977, cujo primeiro governo foi

instalado em 1º de janeiro de 1979).75 Especialmente entre 1979 e 1980, o clima de tensão

na área foi grande, uma vez que alguns arrendatários e proprietários limítrofes à área

Kadiwéu se sentiram prejudicados com o processo demarcatório e impediram mais de uma

vez a nova delimitação da área. Logo após o início dos trabalhos, cerca de 30 fazendeiros

invasores constituíram advogados visando uma nova paralisação. À imprensa chegaram

denúncias, por meio da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP), da invasão da Reserva

Indígena Kadiwéu por milhares de posseiros. Os Kadiwéu mobilizaram-se e

acompanharam a fixação dos marcos, convictos de que a demarcação de suas terras

solucionaria definitivamente o problema das invasões. Na época, a Funai manifestou-se a

favor da continuidade dos arrendamentos, apesar da posição contrária dos índios. O

capitão Kadiwéu João Príncipe, por exemplo, denunciou que pecuaristas e posseiros da

região da Serra da Bodoquena estavam invadindo e demarcando terras dentro dos limites

da área indígena, chegando a proibir os índios de cuidarem de suas plantações. O fato

contribuiu para aumentar o clima de tensão e animosidade entre os índios e centenas de

famílias de colonos que se encontravam na área.

A nova demarcação das terras, concluída em 1981, definiu a área da Reserva

Indígena Kadiwéu em 538.535,7804 ha (quinhentos e trinta e oito mil, quinhentos e trinta e

cinco hectares, setenta e oito ares e quatro centiares)76 e cercou-se de muita tensão com os

invasores, deixando de fora do perímetro estabelecido a aldeia Kadiwéu Xatelodo,

localizada na Serra da Bodoquena. Em 1983, eram em número de 1.868 os posseiros que

ocupavam a Reserva Indígena Kadiwéu e os conflitos gerados por esta presença maciça de

ecalailegi (não-índios), notadamente nos anos de 1982 e 1983, foram amplamente

75 Cf. BITTAR, 1999. 76 A diferença de tamanho da primeira (1899-1900) para a segunda demarcação (1980-81), ainda hoje motivo de disputas judiciais, deveu-se, segundo os técnicos agrimensores da Funai e do Exército, a correções realizadas nos precários resultados obtidos por José de Barros Maciel.

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divulgados pela imprensa.77 Segundo Siqueira Jr. (1993), embora a participação direta dos

Kadiwéu no processo de demarcação de sua área não tenha influenciado os critérios

utilizados pelo Exército nos trabalhos realizados em 1981 e tenha deixado de fora várias

áreas de ocupação tradicional desses índios, representou um importante evento para a

afirmação da identidade étnica do grupo. Apesar disso, a situação de violência continuou

explosiva. Em carta dirigida ao delegado do município de Bodoquena, datada de 22 de

abril de 1982, o Sr. José Nunes afirmou ter sido agredido, juntamente com seu filho, por 25

indígenas.78 Em ofício datado de 28 de abril de 1982, a Federação dos Trabalhadores em

Agricultura de Mato Grosso do Sul (Fetagri-MS) expôs, do ponto de vista dos posseiros, a

situação do conflito fundiário instalado entre os Kadiwéu e os invasores. Os dirigentes da

Federação pediram o imediato desarmamento dos índios, a substituição do delegado

regional da Funai e a demarcação das terras indígenas, respeitando antigos limites.79 Os

Kadiwéu reagiram atacando os posseiros invasores, enquanto as lideranças exigiram da

presidência da Funai a retirada de todos os arrendatários.

Ainda no início de 1983, dois invasores da localidade Tarumã foram mortos em

conflito com os índios, dentro da área Kadiwéu. Após o incidente, uma equipe composta

por técnicos da Funai, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do

Departamento de Terras e Colonização de Mato Grosso do Sul (Terrasul) e homens da

Polícia Federal, em dez dias de trabalho, cadastraram 174 famílias de posseiros invasores.

Um episódio ocorrido após o cadastramento aumentou a tensão na área quando um

posseiro violentou uma indígena de 15 anos. Em resposta, foram mortos três posseiros e os

Kadiwéu exigiram a remoção imediata dos invasores. O líder indígena Domingos

Veríssimo, da etnia Terena, representante da União das Nações Indígenas Centro-Oeste,

propôs o lançamento de uma campanha pela preservação da integridade das terras dos

Kadiwéu e a expulsão dos arrendatários e das cerca de 406 famílias de posseiros. Os não-

índios também se mobilizaram e “Em 1983, a FAMASUL (Federação da Agricultura de

Mato Grosso do Sul) e a TERRASUL (Departamento de Terras e Colonização de Mato

77 Dentre os diversos jornais consultados no Arquivo do Departamento de Documentação (Dedoc) da Funai, cito exemplares dos jornais Diário da Serra (06 e 09/12/79; 28/04/1982), Jornal da Manhã (27/04/1982) e Folha de Bonito (2 a 17/09/1979). 78 Carta datada de 22 de abril de 1982, assinada pelo Sr. José Nunes, morador da Chuvarada, endereçada aos representantes da Segurança Pública de Mato Grosso do Sul no município de Bodoquena. Pastas Kadiwéu 1-14. Brasília: DAF/ Funai, 1982. 79 Ofício FETAGRI-MS 066/82, datado de 28 de abril de 1982, assinado pelo presidente Pedro Ramalho e pelo secretário Antônio da Silva. Pastas Kadiwéu 1-14. Brasília: DAF/ Funai. Fotocópia.

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Grosso do Sul) pediram uma nova demarcação das terras Kadiwéu, mas nada

conseguiram” (SIQUEIRA JR., 1992, p. 111).

Em abril de 1984 ocorreu, finalmente, a homologação da Reserva Indígena

Kadiwéu, através do Decreto nº 89.578.80 Ainda em setembro do mesmo ano, os Kadiwéu

confiscaram os bens de invasores nas localidades de Babaçu e Água Fria e estabeleceram

um prazo final para a retirada dos posseiros.

Uma vez desvendada a construção física da Reserva Indígena Kadiwéu, é possível

perceber como os indígenas Kadiwéu construíram social e simbolicamente, ao longo do

tempo, o território que lhes foi destinado pelos não-índios e que elementos estão presentes

nessa atualização de tradições. Eis a proposta do quarto capítulo, intitulado A construção

social e simbólica da Reserva Indígena Kadiwéu: mitologia, memória social e identidade

étnica.

80 A Reserva Indígena Kadiwéu está regularizada e registrada no CRI e SPU. Registrada no Cartório de Porto Murtinho, sob n. 1/ 1154, liv. 2, fl. 01 em 22/05/84 e no SPU MS-371 em 06/11/84.

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Será incompatível preservar a memória e construir a identidade a partir do território e ao mesmo tempo arrendar e obter recursos desse mesmo território? (Jaime Garcia Siqueira Jr., antropólogo).

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CAPÍTULO 4

A CONSTRUÇÃO SOCIAL E SIMBÓLICA DA

RESERVA INDÍGENA KADIWÉU:

MITOLOGIA, MEMÓRIA SOCIAL E IDENTIDADE ÉTNICA

INTRODUÇÃO

Neste capítulo pretendo discutir questões relativas aos mitos, à memória e à

identidade como elementos presentes na construção social e simbólica da Reserva Indígena

Kadiwéu. Penso que se há um discurso de fora para dentro do grupo, ou seja, dos não-

índios para os índios, há, também, uma apropriação desse discurso que faz o caminho

inverso, ou seja, de dentro para fora do grupo. Nele, os Kadiwéu se assumem perante

outras sociedades, inclusive indígenas, identitariamente como guerreiros, cavaleiros, ativos

participantes da Guerra do Paraguai e, por essa razão, únicos beneficiários de uma suposta

doação de terras por parte do Imperador D. Pedro II (suposta porque a prova documental

que comprove a doação jamais foi encontrada). Procuro demonstrar que, internamente, os

Kadiwéu estariam realizando, na verdade, a atualização de uma tradicional divisão

hierárquica (senhores e cativos) por meio da posse da terra (OLIVEIRA, 1999, p. 40-45),

pois, afinal, “[...] um grupo, sabe-se, não pode exprimir o que tem diante de si — o que

ainda falta — senão por uma redistribuição do seu passado” (CERTEAU, 2000, p. 93). Em

pesquisas de campo, realizadas no início dos anos 1990 na Reserva Indígena Kadiwéu,

Martins observou:

[...] o papel destacado que os idosos ocupam no seio dessa comunidade. São eles os portadores e baluartes das tradições tribais num momento em que, sem precedentes, o sistema cultural vê-se permeado e ameaçado pela introdução de valores adquiridos da sociedade envolvente. Além disso são também os idosos aqueles que conhecem melhor a área da reserva, as divisas, os locais de ocupações passadas o que os tornam imprescindíveis nos encaminhamentos fundiários (MARTINS, 1992, p. 50).

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Entretanto, apenas afirmar que os idosos constituem a categoria mais conservadora

no interior de uma cultura é, ao meu ver, simplificar demasiadamente uma questão

complexa. A continuidade de uma cultura, como a dos Kadiwéu, fundamenta-se em

princípios que explicam que conhecer o mundo é classificá-lo segundo categorias prévias.

Estas categorias são sociais, ou seja, são também comunicáveis e, portanto, significam, e,

por significarem, são públicas, são compartilhadas entre os membros de um mesmo grupo.

Assim, parte dos estudos que desenvolvi sobre a Reserva Indígena Kadiwéu

colocou em evidência a memória social do grupo indígena a respeito dos eventos relativos

à forma como esse conjunto de terras foi constituído. As fontes utilizadas foram,

sobretudo, relatos de anciãos indígenas, coletados por antropólogos e viajantes que

conviveram com os Kadiwéu ao longo do século XX. Como se pode perceber, há nas

narrativas Kadiwéu selecionadas uma insistência quanto à reivindicação de identidade

territorial e de afirmação étnica, uma clara necessidade do estabelecimento da

especificidade de seu patrimônio cultural e a ênfase em símbolos de diferenciação. Os

Kadiwéu não são os únicos índios com longo tempo de contato com a sociedade não-

indígena a acionarem símbolos de diferenciação étnica. No que diz respeito aos

movimentos reivindicatórios indígenas e sua penetração na esfera política nacional, tem

sido constante o reforço de distinções étnicas como marca da alteridade frente à sociedade

envolvente, que se fundamentam em um reconhecimento e em uma exigência de que os

vínculos culturais garantam direitos territoriais. No diálogo que as sociedades indígenas

mantêm com a sociedade não-indígena, a afirmação da alteridade estende-se ao que ela

pode representar como garantia de direitos históricos.

Os Kadiwéu, ao formularem suas narrativas, utilizam-se de categorias de marcação

temporal. Freqüentemente, são empregadas referências, como: quando eu era bem

pequeno, quando os meus pais andavam por aí, vivendo só da caça, no tempo em que nós

caçávamos, dos tempos que eu falava muito, quando existia ainda índios que gostavam de

matar estrangeiros. Embora historiograficamente imprecisas, essas categorias apontam

para referências temporais, a partir da perspectiva Kadiwéu, delimitando características do

modo de vida do grupo que se transformaram ao longo do tempo (SIQUEIRA JR., 1993). Para

melhor compreender os depoimentos selecionados e recortados é necessário saber com

quais categorias de narrativas os Kadiwéu operam. De acordo com os trabalhos de campo

da antropóloga Mônica Pechincha, realizados em meados da década de 1990:

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Os Kadiwéu diferenciam pelo menos duas categorias de narrativas [...], parte delas pode ser classificada imediatamente na categoria de mitos, aquelas que os Kadiwéu chamam de “histórias de admirar”, ou “histórias que fazem milagres”, ou “exemplos de primeira indiada” (PECHINCHA, 1994, p. 80).

Um outro tipo de narrativas seria aquele que reúne histórias que, segundo os

informantes, são histórias que aconteceram mesmo. Nessa categoria, incluem-se as

narrativas sobre guerras contra outros povos e a memória de um passado que se apresenta

como descrição histórica de determinados acontecimentos. Entre essas narrativas incluem-

se, também, relatos de conflitos com os brancos, notadamente a participação na Guerra do

Paraguai (PECHINCHA, 1994, p. 80). Ainda segundo a mesma antropóloga:

[...] o passado de guerreiros é buscado como norma para ações possíveis. O índio quer continuar a viver como índio e para tanto irá mostrar que ainda é índio. E o Kadiwéu recorre ao passado para mostrar que ainda é índio. A força desta identidade está no passado. O Kadiwéu é mais Kadiwéu quando pode reeditar a guerra, ainda que com novos significados (PECHINCHA, 1994, p. 116).

Os critérios para a seleção de eventos entre os Kadiwéu, e sua reprodução na

memória social do grupo, priorizam aqueles relacionados à defesa e reconhecimento do

território, ocorrendo uma mitificação desses eventos. Os mitos não transcendem o contexto

vivido e, assim, entendo o uso que os Kadiwéu fizeram e fazem dos mitos, indissociado da

necessidade de marcar posição frente ao confronto intercultural, constituindo-se em uma

necessidade de controlar o passado mais do que tudo para definir o presente e (por que

não?) o futuro. Os indígenas fazem uma divisão de suas narrativas, classificando-as em

histórias que fazem milagres e histórias que aconteceram mesmo. Todas elas falam da

realização do chamado sistema de índio e, em qualquer uma delas, o tempo sempre conta

(PECHINCHA, 1994). As narrativas Kadiwéu aqui recortadas representam apenas um

fragmento dentro do panorama histórico e sinalizam para estratégias de identidade étnica,

pois mobilizam símbolos capazes de impulsionar a ação do grupo. A consciência histórica

Kadiwéu reaplica, assim, o modelo cosmológico na abordagem do passado, que não se

divorcia, porém, de questões relacionadas ao presente. Os temas mais recorrentes das

narrativas selecionadas são as relações com não-índios e com outros grupos indígenas, a

Guerra do Paraguai, o território indígena e o Imperador D. Pedro II.

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4.1. RELAÇÕES INTERÉTNICAS

Os grupos que conviveram com os Kadiwéu na Reserva, ao longo do tempo, foram

principalmente os Terena e os Kinikinau, além dos Guarani-Kaiowá e Ofaié, que tiveram

curta passagem pelas terras dos Kadiwéu entre as décadas de 1970 e 1980. Apesar do

caráter das relações mantidas pelos Mbayá-Guaikuru com outros grupos étnicos —

historicamente baseadas na dominação, convívio e troca de favores e obrigações — houve

a incorporação de membros de inúmeras outras sociedades indígenas em meio aos

Kadiwéu, notadamente os Xamacoco. A questão das relações interétnicas parece ter

sempre preocupado os Kadiwéu e essa preocupação se reflete, por exemplo, no mito de

criação, cujas versões coletadas não só evidenciam o caráter das relações interétnicas

assimétricas, mas contextualizam, também, o surgimento dos não-índios.81 As divergências

na maneira de se relacionarem com os ecalailegi (não-índios) provocaram, historicamente,

divisões internas no grupo. A falta de lideranças que reagissem energicamente, na época

dos primeiros arrendamentos das terras da Reserva, foi, por exemplo, um dos fatores

decisivos para o sucesso do empreendimento do SPI:

Muitos Kadiwéu comentam um caso que exemplifica as diferenças de posturas entre [Antônio] Mendes e [João] Príncipe: nos primeiros anos em que o SPI implantava o arrendamento na área Kadiwéu, um fazendeiro chamado de “Primitivo” pelos índios permanecia invadindo suas terras e recusava-se a sair apesar dos vários avisos que tinha recebido. Mendes propôs então juntamente com Gico [Pedroso] e outras lideranças, resolver a questão com a morte do invasor. Príncipe negou-se a participar dessa investida, alegando que deveriam esperar pela ação do SPI; ao que Mendes respondeu que ele “deveria usar saias”, saindo a seguir com Gico para executarem a tarefa (SIQUEIRA JR., 1993, p. 181).

Com os Terena e os Kinikinau, ao longo do século XX, os Kadiwéu mantiveram

relações de convívio, através de casamentos interétnicos e pela presença majoritária de

membros desses grupos indígenas na aldeia São João, localizada no interior das terras

reservadas aos Kadiwéu. Segundo Martinho da Silva:

81 “Várias são as versões que possuímos do gênese kaduveo. As diferenças entre as variantes são por vezes consideráveis. [...] Em todas elas salienta-se uma idéia fundamental: a de que os Kaduveo foram criados para dominar os outros povos. [...] O problema das relações intertribais parece ter preocupado desde sempre o espírito kaduveo. E o mito da criação é como uma pauta pela qual se moldam essas relações” (SHADEN, 1989, p. 68).

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[...] na época que abriu o SPI [...] então eles acharam um meio de que botasse algumas, digamos assim, alguns colonizadores, no caso dos Terenas, Sabe? Os Terenas começaram, os patrícios usaram os Terenas para poder ser assim um ponto de auxílio para eles. Eles plantaram, os Terenas toda vida gosta de agricultura, eles plantam mandioca, arroz, feijão, milho, isso aí, eles não eram, não são verdadeiros donos, mas cuidavam para os patrícios Kadiwéu, enquanto eles vigiavam essa enorme área que nós temos aqui. [...] Esse São João, aldeia de São João, já vem há muito tempo essa história aí. Esses Terenas, vem sendo aliado com os Kadiwéu, sempre vivendo subordinado, os Kinikinau subordinados aos Kadiwéu. Não podia fugir porque eles tinham uma tarefa a fazer com ele, então trouxeram eles. Eles escolheram um lugar como de agricultura e coisa e tal. O único, o recurso mais próximo que eles mesmo acharam de tocar um recurso de agricultura, no caso, uma lavourinha que eles fazem, é aqui para o lado do PI São João, porque fica perto de Três Morros, que existia primeiro bolixo que eles se mantinha daquele lugar. Então eles, os patrícios disseram: – Então vocês ficam aqui [...] aqui é o canto da nossa área, aqui qualquer coisa, qualquer irregularidade que vocês vê, procuram nos localizar, nos avisar o que está acontecendo. Agora vocês têm obrigação, planta milho, arroz feijão, tudo o que se dá aqui vocês planta, e nós vamos comercializar entre nós mesmos, lá pelo rio Paraguai, por aí, tudo o que nós conseguir nós entrega aqui, nós não temos como negociar [...] Nós vamos negociando, isso aí, vocês ficam como vigilante nosso, como ponto de segurança nosso. Aí toparam, onde existe o PI São João. 82

A respeito do convívio com os Xamacoco, Domingos Soares, um descendente

desses índios, conta que:

Antigamente, quando a gente vivia os costumes, mas agora a gente já está misturado. Ainda existe um Kadiwéu, mas os outros não são Kadiwéu puro. A gente já está tudo misto nesta aldeia. Eu sou da nação dos Xamacoco, mas já estou vivendo entre os Kadiwéu. Os Kadiwéu antigos (oniwotagodepodi ejiwajigi = nossos senhores Kadiwéu) quase não existem mais. Já não existem mais, existe só os Xamakoko e os Enimaga [respectivamente, os Ishir e os Maká, do Paraguai na atualidade83]. Eu ainda sou um Kadiwéu dos antigos. Eu não sou considerado como escravo. A minha culpa foi eu mesmo, que não tinha aquele prazer de saber como eram os costumes Kadiwéu. Antigamente era verdade que os brancos não entravam nessa área. Se algum entrasse era morto. Os Kadiwéu não gostavam dos brancos. Era só Kadiwéu aqui nesta área. É por isso que os Kadiwéu invadiam as outras tribos, a tribo dos Xamakoko. Eles começaram a invadir os paraguaios, pegavam-nos para ser seus escravos. E também já existe o civilizado no meio de nós. Existe um civilizado que era escravo e um paraguaio também. Agora já existem os Terena, mas já são Kadiwéu. Já existe os Terena, os paraguaios. É porque existiu essa escravidão, é por isso que tem a nação dos bolivianos, mas não são mais um boliviano de raça. As crianças do Sr. Adriano são todas da nação de boliviano. Em outras partes eles são Kadiwéu. O pai do

82 Citado por SIQUEIRA JR., 1993, p. 130-131. 83 Cf. ZANARDINI e BIEDERMANN, 2001.

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Sr. Adriano era Kadiwéu puro a mãe dele é que era da nação dos bolivianos. O pai dele se chamava Nigodenigi. Quando eles ainda pegavam as pessoas para serem escravos, aí existiu os bolivianos, os paraguaios, os Terena, todos eles são escravos. Já está tudo misturado. Até os Xamakoko eram escravos. Eles trouxeram também para cá. Os Kadiwéu antigos não procuravam casar com qualquer outra nação. Agora já não existe mais isso. Tem alguns que ainda são Kadiwéu, mas eles já procuraram casar com outra nação, pode ser de Xamakoko. Antigamente eles não casavam com aquele escravo, porque, se um filho casa com aquela nação da escravidão, seus pais já o consideravam como um escravo, porque ele se casou com aquela nação da escravidão. Também já existe capitão que é da nação dos Enimaga. Ele casou-se com uma outra nação, mas ele ainda tem o sangue dos Enimaga. Tem capitão que é dos Kadiwéu e ele casa com a tribo dos Enimaga, mas por seu lado não desaparece que ele ainda é um Kadiwéu.84

Darcy Ribeiro (1980a, p. 24) recolheu a seguinte fala em sua passagem pela aldeia

Kadiwéu no final da década de 1940: “Ediu-adig (Kadiwéu) antigo era a nação mais

poderosa; este mundo todo foi nosso: tereno, xamacoco, brasileiro, paraguaio, todos foram

nossos cativeiros, hoje estamos assim”. Essa fala, não identificada pelo autor, revela o

quanto mudaram as percepções dos Kadiwéu sobre as relações interétnicas estabelecidas

ao longo do tempo e de que forma o passado guerreiro é evocado nas lembranças dos mais

velhos como um período de conquistas territoriais e obtenção de cativos. Sobre as guerras,

há um destaque especial nas narrativas para a guerra contra o Paraguai, a grande guerra

para os Kadiwéu.

4.2. A GUERRA CONTRA O PARAGUAI

Em Mato Grosso, nos primeiros anos após a proclamação da independência política

do Brasil, as ações governamentais relativas aos indígenas foram tomadas arbitrariamente

no âmbito da província, já que ao governo central só interessavam as questões de

fronteiras. A política indigenista no Império foi norteada pelo binômio defesa contra os

índios / aproveitamento da mão-de-obra indígena, submetida basicamente ao controle

militar. Além disso, foram tentados, sem grande sucesso, projetos de catequese dos

indígenas, entregues a diversas ordens religiosas. Por parte do governo central, a

preocupação maior era em manter uma política de amizade com os Estados vizinhos

recém-formados. Essa política de amizade sofreu sérios abalos na segunda metade do

84 Citado por PECHINCHA, 1994, p. 72-73.

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século XIX, com a guerra contra o Paraguai. De acordo com o historiador Cláudio Alves

de Vasconcelos:

A guerra do Paraguai acelerou o fracasso dos débeis projetos de catequese ensaiados na província de Mato Grosso. Aliás, foi exatamente onde se desenvolveram estas experiências com missionários capuchinhos na catequese, que se deu a invasão paraguaia e o conseqüente conflito que envolveu [...] as duas nações vizinhas (VASCONCELOS, 1999, p. 86).

A ocupação pelos paraguaios da área situada entre os rios Apa e Blanco, no sul da

província de Mato Grosso, em dezembro de 1864, contribuiu para explicitar qual era a

função histórica do indígena na formação do Estado nacional brasileiro.

Durante esse período, a importância do índio na defesa e expansão do território

nacional ficou mais uma vez evidenciada: tanto os Guaná como os Mbayá-Guaicuru,

Kadiwéu, atuaram ativamente ao lado do exército brasileiro durante o conflito. O

recrutamento e o engajamento dos indígenas na tropa não se deram apenas pela força do

exército, mas, também, pela própria necessidade de impedir que suas terras invadidas

ficassem sob o domínio dos paraguaios (VASCONCELOS, 1999, p. 86-87). No entanto, após

a Guerra contra o Paraguai:

[...] os índios não conseguiram o essencial, que era a garantia de permanecerem livres e seguros em suas terras. Pelo contrário, com o fim do conflito intensificou-se a apropriação das áreas indígenas por fazendeiros da região e por antigos soldados envolvidos na guerra. Esta situação foi se agravando até o início do século XX, quando constatada e denunciada por Cândido Mariano Rondon. A partir daí algumas práticas foram adotadas para amenizá-la. A dispersão dos indígenas e a constituição de famílias errantes foram algumas das grandes conseqüências da guerra do Paraguai (VASCONCELOS, 1999, p. 95).

Ainda que a sociedade Kadiwéu tenha sofrido mudanças ao longo do tempo,

valores ligados à guerra ainda marcam o limite de sua identidade étnica. O relembrar a

relação com os não-índios, por meio dos mitos, está mediada pela afirmação da identidade.

O ethos guerreiro é recordado pelas narrativas míticas e acionado na relação com os não-

índios como advertência contra a ameaça à integridade cultural e territorial. Segundo

Pechincha:

A Guerra do Paraguai é, sem dúvida, o acontecimento da história das relações com o branco mais contemplado pela memória deste povo. Razão de orgulho nacional, reconhecem um desempenho glorioso na sua

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participação nesta guerra. É evento que posiciona os Kadiwéu frente à nação brasileira. É marco fundamental na reivindicação de direitos territoriais (PECHINCHA, 1994, p. 135).

Relembrando situações contadas pelos pais e avós, estes últimos vivos à época do

conflito platino, Antônio Mendes afirma que:

E lá no governador dele os soldados brasileiros já idearam falar para ele que a indiada ajudou, senão já tinham perdido. No outro dia, chamou a indiada o tal de Coronel de Barros. Coronel de Barros, comandante do batalhão. Aquela indiada, indiada sem roupa, nada. É indiada. Alguns deles falava um pouco português. E falou: “aqui, pessoal, vamos fazer nossa reunião. Eu quero saber o que você queria ganhar. Espera, eu te dou dinheiro. Está lá a sacola de dinheiro. Eu vou te dar esse daqui agora, sacola de dinheiro, olha lá”. O capitão falou: “senhor, índio não sabe pegar dinheiro. Não vamos pegar a sacola. O que vamos fazer com este dinheiro? Então nós queremos, se fossemos ganhar algum, ganhar o nosso lugar. Nós não vamos querer o dinheiro, nós vamos querer a área para criar os nossos filhos”. Como até hoje é nosso lugar aqui. É sagrado. Não é como Terena, Kayowá, Xavante. Toda esta indiada é nativa ali. Nós somos nativos daqui. Mas ainda temos a segurança que ajudamos a segurar a bandeira do Brasil. Por isso mesmo que ganhamos esta terra. Aqui é sagrado. Já veio esse sabido que iludiu os índios... mas aqui ninguém toma, ninguém toma. 85

A apropriação que estes índios fazem de sua participação na Guerra do Paraguai,

associando o conflito à legitimação da posse do território indígena, pode ser caracterizada

como um exemplo de mitificação da história, pois como rememora a anciã Durila:

Ninguém jamais poderá tomar posse desse campo, isto vem desde antigamente, ninguém podia entrar. Hoje é diferente, ninguém teme mais os índios, ninguém mais respeita, nós que tememos as altas autoridades, parece que eles que querem ser o dono do que na realidade é nosso, mas foi uma autoridade superior de quem o capitão ganhou esta terra, como recompensa no término da guerra contra os paraguaios. Dizia para ele: – Tome esta terra capitão, esta será sua, se eu pagasse em dinheiro não daria, mas essa terra durará para sempre, cuide sempre desta terra, não deixe que ninguém a tome. 86

Segundo o antropólogo Jaime Garcia Siqueira Jr. (1993, p. 210), “[...] os

depoimentos sobre a participação na guerra têm uma grande riqueza de detalhes, revelando

a minúcia com que elaboraram esse evento na sua memória e ressaltando um ‘ethos’

85 Citado por PECHINCHA, 1994, p. 153. 86 Citada por SIQUEIRA JR., 1993, p. 210.

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guerreiro [...] com que enfrentaram os brancos”. Desse enfrentamento, os Kadiwéu teriam

saído fortalecidos e, por essa razão, agraciados com o conjunto de terras que hoje

constituem a Reserva Indígena Kadiwéu.

4.3. O TERRITÓRIO INDÍGENA

Para Halbwachs (1990), o conceito de pertencimento grupal é afetivo e não

exclusivamente físico. Assim, situações vividas somente se transformam em memória se

aquele que se lembra sentir-se afetivamente ligado ao grupo ao qual pertence. A partir

disso, é possível supor que é tecida uma espécie de teia de pertencimento afetivo que

mantém a vida, o vivido da memória. É dessa forma que o relato de uma anciã Kadiwéu

sobre o território, recolhido tempos atrás, pode ser tomado como parte integrante e

referência da memória social daquela sociedade indígena:

Então esta terra custou o sangue dos Kadiwéu. Na verdade nós ganhamos esta terra do próprio Deus. Pode ser o mundo que Deus faz para toda a humanidade, mas que essa terra foi doada pelas autoridades brancas para o líder Kadiwéu, capitão Matxua. [...] Nós íamos percorrendo a divisa, sempre à frente o capitão... posso dizer que esta terra é nossa, não tem dono individual, é de todos os Kadiwéu pois todos participaram, se o capitão saía para alguma batalha todos os homens se levantavam e acompanhavam... é nossa a terra, todos os Kadiwéu que vivem aqui dentro, até as crianças que nasceram ontem... ninguém jamais poderá tomar posse desse campo, isto vem desde antigamente, ninguém podia entrar. 87

Esta fala, entre outras, foi recolhida por Siqueira Jr. durante a realização de

pesquisas de campo entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990. A informante,

Durila Bernaldino (Nigodena, em idioma Kadiwéu) era, à época, a mais velha indígena

viva entre os Kadiwéu (hoje conta com mais de 100 anos de idade!). Pode ser considerada

uma especialista da memória, ou parafraseando Le Goff (1992, p. 429), uma “mulher-

memória”, cujo papel é ser depositária das histórias mantenedoras da coesão do grupo.

Percebe-se, através do pequeno trecho recortado, que a paisagem faz parte da memória, ou

melhor, ela própria engendra a memória, sendo, por isso mesmo, enfatizada em momentos

cruciais na história dos índios em contato com os não-índios e com outras sociedades

87 Citada por SIQUEIRA JR., 1993, p. 188.

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indígenas. A fala Kadiwéu, evocada nas palavras de Durila é, portanto, simultaneamente,

memória e controle do território indígena, já que:

O uso e controle do território também se constituem em elementos definidores da diferença desse grupo junto aos outros grupos indígenas do MS, com áreas reservadas proporcionalmente muito menores e, especialmente junto aos ekalai, interessados nas possibilidades econômicas da RI Kadiwéu (SIQUEIRA JR., 1993, p. 191).88

O relato de Durila e de outros anciãos Kadiwéu, relembrando os tempos de

antigamente, inscreve a paisagem natural na cosmologia do grupo. Narrativas Kadiwéu

como essas, porém, não se situam nem no domínio do mito nem no domínio da história,

mas na interseção de ambos. Não se trata, ao meu ver, de assimilar a história ao mito, ou

vice-versa, mas de observar o caminhar da história em direção ao mito, por meio do

trabalho da memória. Assim, a memória social Kadiwéu está em estreita relação com seu

suporte espacial e simbólico, intimamente associada ao território e à identidade étnica,

refletindo em sua estrutura a trama dos caminhos e lugares que recortam e selecionam

pontos onde a sociedade indígena se reproduz. Nesse sentido, os caminhos percorridos

pelos Kadiwéu são também os caminhos percorridos pela memória, em que a paisagem

oferece o quadro de referências a partir do qual o discurso sobre o passado é reconstruído,

como sugere a antropóloga Emília Pietrafesa de Godoi (1999) em seu trabalho com

camponeses no sertão do Piauí.

Assim como os índios Xerente, de Tocantins, que “[...] não se intimidam no contato

com os brancos e sabem enfrentá-los altivamente como que afirmando sua identidade

étnica” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976b, p. 18), os Kadiwéu entendem que somente

enfatizando a identidade étnica de indígenas podem assegurar para si um lugar na

sociedade brasileira. Sua visibilidade nos cenários políticos regional e nacional e a garantia

das terras que têm dependem desse reconhecimento de pertencer a um grupo étnica e

socialmente diferenciado. É o que se depreende desse outro trecho da fala da “mulher-

memória” Durila:

O nosso costume era andar muito, vivíamos mudando em beira de rios e riachos, o muntado era gado, às vezes carregava muita palera de carandá, os homens de couro de cervo. [...] Sofri por ser Kadiwéu, mas cresci sendo Kadiwéu e os filhos dos Kadiwéu cresciam com essa vida, não adoeciam porque decerto a carne era bem fedida. Agora com essa vida de

88 A palavra em negrito designa não-índio, embora o Dicionário do SIL grafe a palavra como ecalailegi.

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ser mais brasileiro (civilizado), as crianças volta e meia já estão doentes, já vê moço doente, antigamente não existia isso, porque talvez nossa carne fosse mais forte. [...] Antigamente não tinha ninguém para impedir nós de andar muito em nossa terra, [...].89

Júlia Lange, outra “mulher-memória”, relacionando a conquista do território e os

conflitos com não-indígenas, afirma que:

É da terra que nós vivemos, é o lugar onde todos os homens caçam, e agora todos os brancos só querem tomar nossa terra, mas mesmo assim estamos tentando impedir que eles tomem, porque é nossa terra. Ninguém pode tomar essa terra, nenhum branco pode tomar, porque nós ganhamos de Deus essa terra, é uma terra que Deus deu pra gente morar e desfrutar do que ela tem.90

André Soares reitera:

Pra nós conseguir esse campo custou sangue dos nossos avós, esse campo ninguém toma, o branco não pode tomar, que esse campo custou nosso sangue, o sangue dos nossos avós. Por isso não devemos deixar esse campo, porque custou sangue dos nossos avós. Porque cada um conhece a divisa, até o branco conhece a divisa nossa e eles querem tomar esse campo, mas nós não deixamos, porque custou o sangue dos nossos avós. Por isso essa terra não é emprestada, é nossa, eles querem tomar mas nós não deixamos, não emprestamos, é nosso.91

João Matexua assim se refere aos tempos em que os Kadiwéu viviam de um lado

para o outro:

E antigamente os Kadiwéu eram viajantes. Saíam viajando pelo Pantanal. Os índios saíam para o campo e comiam o que eles achavam de caça. Eles comiam tartaruga, queixada, porco-do-mato, todos os que eles sabiam que era bom para comer, até os peixes, e também os pés de coqueiro. Deus não deu para os Kadiwéu uma fama de ser ricos. Ele deu para os Kadiwéu para serem viajantes pelo Pantanal.92

O mesmo João Matexua, um descendente de antigos nobres, completa:

[...] esse campo é do meu pai, o Capitãozinho. O meu pai morreu, mas eu ainda tenho alegria de lutar por essa terra. Eu não quero ver os fazendeiros tomando posse desta terra. É por isso que os Kadiwéu sempre

89 Citada por SIQUEIRA JR., 1993, p. 200. 90 Citada por SIQUEIRA JR., 1993, p. 219. 91 Citado por SIQUEIRA JR., 1993, p. 218. 92 Citado por PECHINCHA, 1994, p. 113.

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lutam por esta terra. Porque tem índios que é bravo, carrega porrete para matar branco. Mas agora já tem encarregado [...] e não deixa. [...] Os brasileiros sempre querem invadir o nosso campo. Esse campo os Kadiwéu não vão deixar perder, porque é deles. [...] Vamos lutar contra os fazendeiros. A gente pode até matá-los. Esse costume já não sai mais de nós, porque somos índios. A gente ainda pode lembrar do costume dos antigos Kadiwéu.93

4.4. O IMPERADOR D. PEDRO II

A contrapartida que os Kadiwéu afirmam ter recebido pela participação na Guerra

do Paraguai foi o reconhecimento, pelo Imperador D. Pedro II, sobre o território que

ocupavam tradicionalmente. Outros grupos indígenas do Nordeste brasileiro, a exemplo

dos Kadiwéu, também afirmam que a posse das terras que habitam foi confirmada pelo

Imperador. “Alguns Kadiwéu chegam a especular sobre a existência de um documento

assinado pelo Imperador, que estaria muito bem guardado (embora ninguém saiba onde),

confirmando a posse do território aos Kadiwéu” (SIQUEIRA JR., 1993, 214-215). Em 1981, a

Funai incumbiu a antropóloga Jane Lúcia Faislon Galvão de encontrar o tal documento ou

qualquer referência ao mesmo, mas a pesquisadora afirmou nada ter conseguido nos

arquivos visitados.94 Interessante notar esse destaque dado à figura de D. Pedro II na

aquisição do vasto território que hoje ocupam os Kadiwéu. Tanto índios quanto não-índios,

nos dias de hoje, se referem ao monarca como o grande responsável pela doação de terras

ao grupo por causa de sua participação na Guerra do Paraguai. Entretanto, até o momento

não foram encontrados, por nenhum pesquisador, quaisquer documentos que comprovam

essa doação. A única referência que obtive a respeito de uma possível ligação dos

Guaikuru com o Imperador, foi encontrada em um texto de autoria do Ten. Cel. Cav. Davis

Ribeiro de Sena, publicado na Revista do Exército Brasileiro:

O Imperador D. Pedro II estava tão certo da influência decisiva dos intrépidos índios cavaleiros nessa incorporação, que recomendava, com particular carinho e elevada gratidão, aqueles silvícolas amigos, como o fez ao General Mello Rego, quando este regressava de Cuiabá, depois de cumprido seu período de governo: – “Como vão os meus amigos Guaicurus? Que notícias me dás deles?” E ao saber que viviam dispersos

93 Citado por PECHINCHA, 1994, p. 116. 94 Informação sobre os índios Kadiwéu, datada de 17 de junho de 1981, assinada pela antropóloga Jane Lúcia Faislon Galvão e encaminhada à assistente do DGPI/ Funai, Hidegart Rick. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 1981.

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e caminhavam fatalmente para a extinção: – “Eles muito me merecem e, ao menos por gratidão, não deveríamos deixa-los chegar a esse estado”.95

Sobre a postura do Imperador D. Pedro II em relação aos indígenas, a pesquisadora

Adriana Vargas Marques, ressalta, entretanto, que:

[...] podemos perceber no pronunciamento de Dom Pedro II do dia 23 de setembro de 1867, ao encerrar a Primeira Sessão da Décima Terceira Legislatura da Assembléia Geral, Rio de Janeiro, cujo objetivo era informar sobre a situação da guerra e nenhuma menção aos feitos indígenas é feita, sendo os elogios direcionados apenas à coluna expedicionária de Mato Grosso, que restituíram à liberdade grande número de famílias brasileiras (MARQUES, 2004, p. 49).

Em entrevista à antropóloga Mônica Pechincha, Cândido Kadiwéu referiu-se ao

Imperador dessa forma:

Não é Reserva, é propriedade. Na guerra do López, ajudamos o governo, ajudamos o Brasil, o Kadiwéu. Finado Pedro II. Se não fosse essa indiada, o López tinha pegado até Campo Grande, até Campo Grande, até Paraná. A indiada não quer entregar a bandeira do Brasil. Foi flecha, porrete, faca, machado, disse que matava paraguaio igual peixe, na porta de Porto Coimbra. Diz que correu o sangue do paraguaio igual água. O comandante do exército falou: “o indiada, vocês querem dinheiro?”. O capitão falou que não queria dinheiro, queria que entregasse o campo do índio, para caçar, propriedade para herança dele, a troco do sangue do índio. Por isso nós ganhamos esta terra aqui. Porque a indiada ajudou o Brasil, aí entregou o campo para o índio caçar.96

A apropriação que os índios Kariri-Xocó, de Alagoas, fazem de um evento

envolvendo a figura do Imperador, comentada pela antropóloga Vera Calheiros Mata, pôde

ajudar-me na compreensão dessa narrativa Kadiwéu, presente com muita força até os dias

atuais, e que foi entendida, aqui, como uma mitificação da história:

Porém, é importante recuperar a maneira como a história é interpretada pelo grupo. Se a tradição oral atribui à viagem de D. Pedro a doação ou reconhecimento de terras, esta viagem se torna um marco significativo para legitimar a “posse imemorial” das terras. Já vimos que a figura “paternal” do Imperador, que doa terras aos índios, extrapola os grupos aqui estudados. Contudo, enquanto se registra na memória social esta imagem de D. Pedro II, a legislação do Império é implacável em sua política de “erradicação do problema indígena”. Além disso, como

95 Citado por SENA, 1983, p. 97. 96 Citado por PECHINCHA, 1994, p. 146, grifos do autor.

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podemos verificar, o Imperador partilha da ideologia corrente, a respeito das populações indígenas “remanescentes”, desqualificando-as pela mestiçagem e degenerescência... (MATA, 1989, p. 69, grifos do autor).

A exemplo dos Kadiwéu:

[...] os Wassu, [...], destacam a sua participação na Guerra do Paraguai, em conseqüência da qual teriam recebido as quatro léguas de terra que reivindicam: “Os caboclos foram para os reis para pedir a D. Pedro nós deseja um chão de casa para criar família. Ele deu.” Ao mesmo tempo, esse apelo à história funciona como mecanismo justificador das perdas a que foram submetidos com a ocupação dos seus territórios originais dando bem a medida exemplar de uma autopercepção fundada na perspectiva histórica, vital para a sua sobrevivência, enquanto povos etnicamente diferenciados (CARVALHO, 1984, p. 176-177).

A antropóloga Maria Rosário G. de Carvalho, em artigo sobre a identidade dos

povos do Nordeste (1984), refere-se ao fato de que diversos grupos indígenas nordestinos

atribuem a D. Pedro II a doação de terras, hoje em litígio. Outros autores também registram

o mesmo fato entre grupos indígenas distintos. Darcy Ribeiro relata que os Xerente

recordavam aos seus vizinhos sertanejos as ordens dadas pelo Imperador como título de

posse de seu território:

Ainda hoje os Xerente recordam aos vizinhos sertanejos as “ordens do Imperador”, como seu título indiscutível ao território tribal cada vez mais reduzido. A figura do imperador D. Pedro II assumiu tamanha importância para estes nossos contemporâneos Xerente que eles o incluíram na sua mitologia, identificando-o como o ancestral mítico de uma das metades tribais. Naqueles textos, o imperador é a própria personificação dos direitos da tribo à terra em que sempre viveram, cuja posse é a condição de sua sobrevivência como povo. Ele é o herói que garante, a seus olhos, a validade da justiça tão desmoralizada dos homens brancos. Em alguns textos o imperador é apontado como imortal; outros anunciam sua morte próxima que será marcada por um cataclismo que destruirá todo o mundo; um terceiro já o dá como morto e explica pela profanação de seus ossos sagrados a epidemia de gripe espanhola que assolou as aldeias Xerente. Nas evidentes contradições formais desses textos é que se afirma sua consistência psicológica. Não pode morrer o herói que é a única garantia de sua sobrevivência, por isto é imortal. Mas a própria tribo se extingue lentamente e nela é o herói que morre aos poucos e com ele todo o mundo; por isto o herói vai morrer e com ele perecerão todas as coisas; o mundo de um povo é ele próprio. O imperador mítico não garante somente as terras, mas tudo que sua posse representa; ele é o guardião da tribo contra todos os males que adviriam de sua morte; assim, e por extensão, só dele podem vir as grandes desgraças. Por isto, quando estão enfermos, sofrem e morrem, é o herói mesmo que está morto e do túmulo comanda o destino de seu povo (RIBEIRO, 1970, p. 67).

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CONCLUSÃO

De acordo com Siqueira Jr.:

As representações Kadiwéu sobre seu território, apreendidas através de seu discurso, revelam a perenidade e a recorrência da questão do uso e controle do espaço territorial. Esse conjunto de depoimentos corresponde a cinco fases: um primeiro período onde as caçadas, hábitos alimentares e viagens são destacadas, que se referem a uma etapa histórica anterior à sua sedentarização; um segundo período que se refere ao fato de terem ganho o território do imperador D. Pedro II pela sua participação na Guerra contra o Paraguai; um terceiro período, marcado pela ocupação e defesa desse mesmo território; um quarto período, caracterizado pela inserção do SPI, e depois a FUNAI, e suas interferências na forma dos Kadiwéu se relacionarem com o espaço e o ambiente; e um último momento, que apresenta as perspectivas atuais e futuras desse grupo na reorientação de sua relação com o território (SIQUEIRA JR., 1993, p. 198).

Praticamente todos os períodos abordados apresentam sinais de importantes

mudanças, na medida em que foram estabelecidos a partir de marcos da história do contato

Kadiwéu com a sociedade não-indígena, em que a relação com o território foi sendo

alterada. Entretanto, acredito, concordando com Siqueira Jr., que o processo de

sedentarização, a interferência do SPI e a invasão de fazendeiros representaram as

influências mais significativas na forma dos índios se relacionarem com o espaço. A noção

de território perpassa, assim, por todo o quadro das relações interétnicas, constituindo-se

em elemento crucial no engendramento da identidade étnica da sociedade indígena

Kadiwéu. Propus-me a apreender a identidade étnica dos Kadiwéu, fundamentalmente da

perspectiva do território, fator indispensável à sua integridade física e sociocultural,

entendido como dimensão espacial de populações humanas socialmente organizadas.

Importou-me entender como essa sociedade pensa o seu território, mediante a que

categorias ou representações, e que instrumentos têm historicamente utilizado para

assegurar a sua unidade no âmbito do espaço regional mais amplo, politicamente dominado

pela sociedade não-indígena. Assim, procurei definir a importância da dimensão territorial

no engendramento da identidade étnica, sempre procurando apreendê-la referida ao sistema

de relações sociais. Tomei em conta a particular condição do território, como espaço

reconhecido, reivindicado pelo grupo e objeto de suas atividades extrativas (caça, pesca,

coleta), distinto de terra, meio de produção agrícola no qual se incorpora o trabalho dos

homens (CARVALHO, 1984). Segundo Seegers e Viveiros de Castro, citados por Siqueira Jr

(1993, p. 253),

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Cada situação tem uma dinâmica própria, e sugere políticas de defesa também específicas. Além disso é possível supor que o grau de consciência étnica de cada grupo varia de modo diretamente proporcional a duas variáveis: a) o grau de controle que ainda dispõe sobre seu território; b) o tipo e grau de pressões que ameaçam este território. Outras variáveis são relevantes: a situação histórica do contato; o grau de domínio dos códigos culturais brasileiros; o tipo de agência mediadora entre a comunidade e a sociedade nacional.

Creio que uma análise histórica da práxis da defesa do território pelos Kadiwéu

deve levar em consideração algumas variáveis, tais como, o faccionalismo existente no

interior desse grupo, cujas bases são de caráter histórico-cultural, fazendo com que não

haja unanimidade quanto aos procedimentos a serem adotados na defesa do território; a

dependência das iniciativas do órgão indigenista oficial no tocante à defesa dos interesses

dos Kadiwéu; o fato de que parte dos invasores era, também, de arrendatários, o que

colocou outras condições a serem enfrentadas pelo grupo em relação ao seu território

(SIQUEIRA JR., 1993). O estudo da mitologia Kadiwéu, portanto, ajudou-me na

compreensão dessas variáveis e permitiu entrever como esse repertório de mitos vai se

transformando com o passar do tempo. O passado mítico reporta à tradição oral em que a

linguagem estilizada adapta-se aos requisitos da composição oral, ou seja, de uma cultura

da palavra mais afeita ao ouvido e à memória do que à letra e à escrita. Dessa forma, a

memória social Kadiwéu, como fonte organizadora da informação, tem um papel ativo

como registro, assumindo, então uma função conservadora para o grupo. Em outras

palavras, a memória se constrói por meio da identidade étnica e esta se constrói por meio

daquela. A esse respeito, o historiador Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes afirma que:

[...] o conceito de identidade implica semelhança a si próprio, formulada como condição de vida psíquica e social. Nessa linha, está muito mais próximo dos processos de re-conhecimento, do que de conhecimento. A busca de uma identidade se alia mal a conteúdos novos, sempre. Ao contrário, ela se alimenta do ritmo, que é repetição, portanto, segurança. [...] O suporte fundamental da identidade é a memória, mecanismo de retenção de informação, conhecimento, experiência, quer em nível individual, quer social e, por isso mesmo, eixo de atribuições, que articula, categoriza os aspectos multiformes de realidade (BEZERRA DE MENEZES, 1987, p. 33).

Muito antes de alguém refletir sobre a história, o mito deu respostas. É uma das

funções do mito tornar o passado compreensível, selecionando e focalizando alguns de

seus componentes, uma vez que o passado apresenta-se como uma massa incompreensível

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de dados incontáveis. O mito é atemporal, sugere fatos concretos, mas completamente

isolados, sem ligação nem com os acontecimentos anteriores nem com os posteriores.

Embora a história seja um novo discurso que contém a verdade, o mito nas sociedades

indígenas continua a desempenhar, ainda nos dias de hoje, o papel de explicar muitos

eventos no passado. De acordo com Ribeiro:

A mitologia assegurou à sociedade Kadiwéu, no período de sua máxima expansão – quando sua coesão e solidariedade estavam ameaçadas pela presença de uma maioria de cativos tomados a diferentes tribos – um núcleo de valores altamente consistente e unanimemente co-participado, que contribuiu para a preservação de sua unidade política. Através de suas representações episódicas, a mitologia assegurou ao grupo a consciência de uma origem, situação e destino comuns, acentuando a noção de sua especificidade como povo diferenciado pelos costumes e pela “destinação” (RIBEIRO, 1980a, p. 92).

Quando das visitas de Ribeiro entre os Kadiwéu, no final da década de 1940, uma

das preocupações do etnólogo era o estudo da mitologia desses índios:

A atual mitologia Kadiwéu reflete seus esforços para adaptar-se às condições de vida que lhe foram impostas; é em grande parte uma expressão da nova visão do mundo que vão adquirindo como povo dominado, impedido de fazer a guerra e que tem de acomodar-se aos meios de vida aprovados pelos seus vizinhos neobrasileiros (RIBEIRO, 1980a, p. 92).

Se a necessidade identitária compõe a experiência coletiva dos homens, a

identidade tem no passado seu lugar de construção por excelência. Nos momentos de

ruptura da continuidade histórica, as atenções se voltam para a memória e a duração. A

memória recompõe a relação entre passado e presente e é estratégia de sobrevivência

emocional. Memória e história evocam o mesmo tempo, o passado, mas apesar da matéria-

prima comum, ambas não se confundem. Halbwachs (1990) sublinhou a diferença entre

memória e história. A história começa onde a memória social acaba e a memória social

acaba quando não tem mais como suporte um grupo, pois é vivida física e afetivamente. A

transformação das memórias em falas e destas falas em palavras, frases, parágrafos e

textos, passíveis de serem analisados, pode gerar dúvida quanto à autenticidade desses

documentos. A esse respeito, faço minhas as palavras da antropóloga Alcida Rita Ramos,

ao comentar em um artigo o processo de transformação de falas indígenas em textos

escritos:

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Congeladas no papel, essas falas perderam uma gama de elos comunicativos com suas platéias – expressões faciais fugidias, inflexões e altura de voz, pausa, velocidade, gestos, olhares, alusões de toda sorte – para em compensação, ganhar a permanência da mensagem registrada, sem aparas, qualificações ou retoques. Na versão escrita não há mais o gesto mediador, o olhar solidário, o silêncio enfático. Nós, que as lemos sem tê-las ouvido, temos que nos contentar com essa rendição empobrecida do esforço dialógico dos falantes (RAMOS, 1990, p. 128).

Entretanto, creio ser legítimo analisar a fala dos anciãos Kadiwéu, ainda que não

tenha estado junto a eles para recolhê-las, pois:

[...], embora o gesto esteja invisível, o silêncio inaudível e o olhar perdido, a fala tornada texto adquire uma força própria. Nós, que não estivemos lá para vê-los e ouvi-los, mesmo longe desses índios no tempo e no espaço, podemos apreciar suas mensagens, compreender sua situação, interpretar sua postura. O momento efêmero da palavra falada é transformado em discurso fixo ao qual se pode voltar indefinidamente e descobrir sempre significados novos, por vezes, surpreendentes (RAMOS, 1990, p. 128).

O historiador inglês Peter Burke prefere ver os historiadores como guardiões dos

segredos da memória social: “Houve outrora um funcionário chamado ‘Lembrete’. O título

na verdade era um eufemismo para cobrador de dívidas. A tarefa oficial era lembrar às

pessoas o que elas gostariam de ter esquecido. Uma das mais importantes funções do

historiador é ser um lembrete” (BURKE, 2000, p. 89). Tentando ser um lembrete sobre o

processo histórico que engendrou a formação da Reserva Indígena Kadiwéu, encerro este

capítulo convidando à leitura das Considerações Finais, nas quais pretendi sintetizar as

contribuições que ofereço através do presente estudo.

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A questão da memória indígena é permeada pelas condições psicológicas e sociais vividas pelas populações que sofreram e sofrem todo o tipo de pressão e desencontros na socialização dos seus membros. Lançados num caminho sem volta de contacto intenso, miscigenação e incorporação cultural de novas experiências e valores, as comunidades indígenas vêem-se em verdadeiros dilemas quanto à reprodução da história do grupo (Maria Hilda Baqueiro Paraíso, antropóloga).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Escrever a presente dissertação constituiu-se, para mim, em um saudável exercício

intelectual, reiniciado há alguns anos com a elaboração de uma monografia de

especialização, em teorias e métodos da Antropologia.97 Naquele texto, procurei

demonstrar proficiência na execução de tarefas que a mim foram atribuídas pela

orientadora, dando os primeiros passos na elaboração de uma escrita mais pessoal e

profissional. Dentro da mesma lógica, foi na elaboração da dissertação de Mestrado que

busquei realizar um progressivo afastamento do plano da heteronomia, em que se deu o

aprendizado e o treinamento da almejada autonomia acadêmica. Talvez, exatamente por

isso, o texto ainda esteja repleto de citações e também de inúmeras referências a

antropólogos, o que o torna problemático e, ao mesmo tempo, rico em possibilidades e

desafios para os estudos de História Indígena. De acordo com a historiadora Margarida de

Souza Neves:

De um aluno de mestrado espera-se na elaboração de sua dissertação, um exercício crítico sobre seu material de trabalho, sobre as possibilidades que seu tema oferece, sobre a produção historiográfica, sobre os procedimentos utilizados, sobre os conceitos com os quais opera e sobre seu próprio trabalho que se constitui, simultaneamente na condição e na expressão da conquista da autonomia (NEVES, 1996, [s.p.]).

Portanto, penso que será no Doutorado que demonstrarei essa autonomia e a

maturidade para exercê-la plenamente na proposta e na elaboração de uma tese. Quanto à

exagerada interface com a Antropologia, faço coro às palavras do historiador Edward P.

Thompson (2001, p. 263): “Na minha própria atividade, descobri que não posso lidar com

as congruências e com as contradições do processo histórico mais profundo sem observar

os problemas revelados pelos antropólogos”.

À guisa de considerações finais, creio ser importante sintetizar, nesta última parte

do trabalho, as contribuições que espero ter oferecido com o estudo sobre a construção

física, social e simbólica da Reserva Indígena Kadiwéu. Reitero, também, alguns conceitos

97 Cf. JOSÉ DA SILVA, 2000.

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aqui aplicados como importantes para a elaboração de estudos da História Indígena. Foi

necessário explicitar esses conceitos no primeiro capítulo, ainda que houvesse muito mais

o que discorrer sobre os mesmos. No segundo capítulo procurei demonstrar as origens dos

Kadiwéu e de como eles se organizaram, ao longo do tempo, na sociedade indígena que

ocupa hoje uma vasta porção de terras no sudoeste do Estado de Mato Grosso do Sul. Este

conjunto de terras, juridicamente denominado Reserva Indígena Kadiwéu, conhecido pelos

regionais como Campo dos Índios, constituiu-se por meio de um processo histórico que foi

desvendado no terceiro capítulo, através das personagens e tramas que o envolveram. A

maneira como a memória social Kadiwéu, por meio dos mais velhos, criou respostas para a

interpretação desses eventos, foi analisada no quarto capítulo.

A Reserva Indígena Kadiwéu é hoje uma pequena porção de terras, se comparada

ao imenso território por onde os Mbayá-Guaikuru transitavam em séculos anteriores.

Ainda assim, a sociedade não-indígena elabora um discurso de que os Kadiwéu possuem,

na atualidade, mais terras do que necessitam. Esses índios, por sua vez, criaram uma

tradição e nela se apóiam para explicar a posse das terras que hoje ocupam. Segundo essa

tradição, o Imperador D. Pedro II teria doado a eles as terras da Reserva. Interessante notar

que esse mesmo discurso é utilizado por antropólogos e indigenistas, mas sem qualquer

comprovação de sua veracidade! De acordo com Manuela Carneiro da Cunha, por

exemplo:

Quanto aos Kadiweu ou Guaicurus, foram, em 1830, armados pelos habitantes e auxiliados pela tropa para roubarem no Paraguai. Algumas décadas mais tarde, sua participação inicial em apoio aos brasileiros na Guerra do Paraguai valeu-lhes a demarcação de terras por ordem de D. Pedro II (CARNEIRO DA CUNHA, 1992b, p. 29, grifos do autor).

Penso que se faz necessário deixar claro que não houve de fato doação alguma,

embora eu acredite que a memória social Kadiwéu continuará a reproduzir o evento dessa

maneira para as próximas gerações. É nesse ponto que história e memória, aqui trabalhadas

conjuntamente, se distanciam: ambas estão voltadas para o passado, mas possuem, cada

qual, distintas percepções sobre esse passado. Eis a razão porque, como professor, sempre

me preocupei com o fato de que reunir um conjunto de depoimentos de anciãos indígenas

não poderia ser considerado como História Indígena.

A verdade que contam os Kadiwéu em suas memórias não é a mesma verdade do

historiador e nem poderia ser. Os indígenas legitimam o que contam por meio da

autoridade que conferem aos mais velhos: os “Joões dos tempos”, na feliz expressão

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cunhada por Taunay (1931). O historiador busca legitimação no que escreve por meio de

documentos, naquilo que sobreviveu ao tempo para contar o que teria acontecido.

Entretanto, muito daquilo que contam os anciãos Kadiwéu está impregnado da chamada

verdade do historiador. Jamais se saberá o que realmente aconteceu no passado e a

memória, portanto, pode ser um auxiliar útil nessa doce e difícil tarefa de perscrutar o

passado. Sob pena de descontextualizar as falas Kadiwéu recolhidas por outros, eu as

selecionei, recortei e procurei analisá-las sob uma determinada perspectiva. Desejo ter

conseguido, ao menos, mostrar que os indígenas, ao contrário do que sugeriu a

historiografia durante muito tempo, não reagiram passivamente à presença do outro em

seus territórios, em suas vidas. Na elaboração dos discursos aqui apresentados, foi revelada

uma profunda re-significação de sentidos, de posturas e da própria cultura dos Kadiwéu

que, obrigados a deixarem de ser nômades, de renunciarem à guerra, ao infanticídio e a

tantas outras características de seu antigo ethos, mudaram para continuarem sendo

Kadiwéu.

Ao reconstruir historicamente, ainda que de forma fragmentada, o processo de

constituição da Reserva Indígena Kadiwéu deparei-me com a força da memória e dos

mitos como explicação de determinados eventos importantes para idosos, jovens e

crianças, enfim, gente de toda a idade. Se, em sala de aula, ouvia de meus alunos indígenas

nas aulas de História da Escola Municipal Indígena “Ejiwajegi” – Pólo, onde fui professor

dos Ensinos Fundamental e Médio durante anos, que a Reserva fora doada pelo Imperador

D. Pedro II, em gratificação pela bravura demonstrada pelos Kadiwéu na Guerra do

Paraguai, também é verdade que já ouvi de professores doutores a mesma versão, como se

essa fosse a mais absoluta verdade. Creio que a melhor contribuição deste trabalho foi

chamar a atenção da memória como uma possível (e valiosa) fonte histórica. Longe de

querer colocar a história contra a memória, esforcei-me por colocar as duas frente a frente,

na busca de um diálogo que pudesse fertilizar a ambas. Cada uma a seu modo, memória e

história não querem deixar que homens e mulheres esqueçam o que são e nem de onde

vieram. Alterará a escrita a forma como pensam os Kadiwéu? Hoje, eles próprios estão

escrevendo mais sistematicamente e também serão leitores deste e de outros trabalhos: é

também para eles que escrevi a presente dissertação.

Assim, o pressuposto básico com que trabalhei foi a concepção de história e

memória enquanto critérios definidores da territorialidade e fatores intrínsecos à

construção da identidade étnica Kadiwéu. Não se tratou aqui, exatamente, de uma

reconstituição das experiências passadas de ocupação das terras da Reserva a partir de

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dados da História Oral. Tratou-se, sim, do exame de documentação escrita oficial, aliado à

análise de um corpo de narrativas, entendido como produto de reflexão de uma sociedade

indígena sobre sua particular experiência histórica. Meu interesse esteve em examinar o

que foi escrito pelos não-indígenas a respeito dos Kadiwéu e da organização espacial do

grupo e, ao mesmo tempo, compreender que aspectos da história foram selecionados pela

memória de membros dessa sociedade indígena e incorporados ao acervo de

conhecimentos sobre o seu próprio passado. Dessa forma, procurei conhecer, de diferentes

perspectivas, o que importa reter dos acontecimentos. A forma como apresentam os

eventos históricos por eles recordados e recontados fez-me refletir sobre o que querem os

Kadiwéu dizer quando contam as histórias de admirar ou as histórias que aconteceram

mesmo. Argumento que essas narrativas portam outros sentidos, pois, embora sejam relatos

sobre o passado, fundem os tempos pretérito e presente, revelando que são

contemporâneos. Reitero que essa forma de conhecer o passado é fundamental para o

reforço da coesão e da identidade étnica e cultural do grupo.

A Reserva Indígena Kadiwéu foi demarcada pela primeira vez entre 1899 e 1900 e

reconhecida oficialmente pela Presidência do Estado de Mato Grosso em 1903, passando a

ser administrada, na década de 1920, pelo Serviço de Proteção aos Índios. Em 1931, foram

ratificados os limites propostos por José de Barros Maciel na primeira demarcação. Os

problemas fundiários, porém, foram uma constante na história das terras dos Kadiwéu e os

indígenas não apagaram da memória as invasões e conflitos ocorridos no século passado.

Os pecuaristas começaram a adentrar as terras dos Kadiwéu a partir da segunda metade do

século XX e, desde o final da década de 1950, iniciaram, portanto, a ocupação desse

espaço com autorização oficial do SPI. Os arrendamentos provocaram profundas alterações

na organização espacial das novas gerações dos Kadiwéu, que passaram a se deslocar cada

vez menos pelas terras. A apropriação que fizeram da administração do arrendamento de

suas terras, o tipo de ocupação territorial disperso que realizavam e o faccionalismo interno

espelharam a adaptação e a reprodução de antigos modelos de organização socioterritorial.

O arrendamento introduziu, portanto, novas questões para a realização da trajetória

histórica dos Kadiwéu pelo território. A pecuária passou a ser um aspecto a considerar na

definição de lugares para moradia, plantio de roças e realização de caçadas, sendo mais um

processo de ruptura instaurado entre esses índios. A divisão das terras em fazendas, com

cercas de arame, e a entrada de uma enorme quantidade de gado dos arrendatários, aliados

aos esforços do SPI na redução do número de aldeias e fusão de agrupamentos, causaram

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profundas modificações na forma de ocupação e na relação social e política que os

Kadiwéu mantinham com o território tradicional.

As décadas de 1950 e 1960 foram marcadas pela desarticulação de inúmeros

aldeamentos em função da crescente entrada de fazendeiros com grande quantidade de

gado nas áreas arrendadas da Reserva. Os indígenas que resistiram às tentativas do SPI de

transferir as moradias para as proximidades dos postos tiveram que fazê-lo sob pressão dos

fazendeiros. A criação de postos indígenas na Reserva gerou a mudança de várias aldeias

para as proximidades dos mesmos, em busca de assistência. As interferências naquele

momento não se referiam apenas a algumas etapas no processo de sedentarização desse

grupo, já consolidadas anteriormente. Mais do que isso, as antigas e inúmeras aldeias,

politicamente autônomas e amplamente distribuídas pelo território, foram fundidas ao

redor dos postos indígenas e a composição social e política dessas aldeias tornou-se,

portanto, bastante heterogênea. A institucionalização pelo SPI do papel de capitão,

enquanto único representante político do conjunto da sociedade indígena, tendeu,

inclusive, a aumentar as tensões internas resultantes da fusão forçada de agrupamentos

Kadiwéu.

Um aspecto pouco explorado por mim no trabalho foi a divisão do interior da

Reserva em fazendas, pelos membros do grupo. Penso que futuras pesquisas poderiam

aprofundar o tema e verificar se a hipótese levantada por antropólogos, de que estaria se

realizando uma atualização da antiga divisão hierárquica (senhores e cativos) é correta.

Nesse caso, a História poderia contribuir com a Antropologia, da mesma forma que a

Antropologia colaborou com o presente trabalho. Como isso teria se originado? Como

ocorreu o processo de distribuição das fazendas entre os membros do grupo? Siqueira Jr.

levanta a hipótese:

[...] de que a forma de apropriação das fazendas arrendadas pelos Kadiwéu, espelha aspectos da antiga divisão territorial entre os “cacicatos”, tendo em vista que o controle que predomina atualmente sobre estas terras arrendadas pertence justamente às famílias de líderes e chefias da área, e que também descendem do antigo estrato dos Otagodepodi (SIQUEIRA JR., 1993, p. 195).98

Infelizmente, o tempo disponível e a dificuldade de visitar todos os arquivos, em

diferentes e distantes lugares, não me possibilitaram contemplar essa questão com a

98 Otagodepodi: “senhores”. Palavra que designa senhor ou patrão (DICIONÁRIO DA LÍNGUA KADIWÉU, 2002).

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profundidade desejada. Outro aspecto por mim não abordado, e que mereceria maior

atenção, é a arte Kadiwéu, compreendida como um dos sustentáculos da identidade étnica

do grupo. A arte Kadiwéu contemporânea encontra sua maior expressão na confecção da

cerâmica. É no processo de decoração das peças que as ceramistas Kadiwéu demonstram

toda sua habilidade e manifestam de forma clara um estilo étnico, na medida em que, por

meio dessa arte, reafirmam sua identidade. Evidentemente essa arte não se sustenta

sozinha. Ela reflete todo um conjunto de valores e tradições do grupo indígena, sem os

quais também estaria fadada ao desaparecimento.

Pretendi demonstrar como se construiu historicamente a identidade étnica Kadiwéu,

ao longo do processo de construção física da Reserva, e as fontes para a realização dessa

análise constituíram-se de um conjunto de narrativas e depoimentos coletados junto aos

anciãos Kadiwéu por outros pesquisadores da área da Antropologia. Por meio desse corpus

de representações, em que se expressaram e se manifestaram a própria história dos

Kadiwéu, tentei apreender o modo de ser desse grupo, especialmente quanto ao seu

posicionamento em relação ao território. Nesse contexto, história e mito foram tratados

como modos complementares da consciência social. O sentido histórico que os sujeitos

conferiram ao processo que atravessaram foi dado pelo reconhecimento das mudanças e

pelo grau de consciência que o grupo demonstrou em relação às novas perspectivas de

vida. Perspectivas essas em que as condições de existência, de produção e reprodução de

uma memória social e de uma articulação do presente com o passado apresentaram o

sentido para essas mudanças.

As memórias são influenciadas pela organização social de transmissão e pelos

diferentes meios de comunicação empregados: tradição oral, relatos escritos, imagens e

monumentos, ações e o próprio espaço físico. Do ponto de vista da transmissão de

memórias, cada veículo tem suas próprias forças e fraquezas. Quais as funções da memória

social? Por que algumas sociedades indígenas parecem mais preocupadas que outras em

lembrar seu passado? Por que esse agudo contraste de atitudes para com o passado em

diferentes culturas? A Guerra do Paraguai, exaustivamente contada e recontada entre os

Kadiwéu como fonte de legitimação da posse da Reserva Indígena Kadiwéu é, ao meu ver,

exemplo claro do uso do passado, da memória social e dos mitos para construir a

identidade étnica dessa sociedade indígena, pois a finalidade de tudo isso é, sem dúvida,

dizer quem são eles e diferenciá-los de outros. A memória social não é homogênea e é

impossível discuti-la sem se observar conflitos e dissensões. Se há, entre os Kadiwéu,

memória de conflitos, tais como a Guerra do Paraguai, há também conflito de memórias.

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Haveria, então, uma guerra pela memória no interior do grupo? De quem são as versões

registradas ou preservadas? Para entender os mecanismos da memória social, talvez

valesse a pena examinar a organização social do esquecer, as regras de exclusão, supressão

ou repressão.

As imagens de continuidade ininterrupta costumam ser meras ilusões. A

transmissão da memória social é um processo de evolução e mudança que pode ocultar-se

à própria sociedade, pois para ela, a sua reserva de recordações — técnicas, histórias e

identidade — surge como algo que sempre foi assim. Mas isso é apenas uma aparência,

resultado do contínuo borrar que acompanha a transformação da memória. O processo de

transformação em uma comunidade agrária tradicional pode ser lento, mas, apesar disso,

essas comunidades não estão fora da história. Se a memória não pode ser considerada fiel

depositária do conhecimento, nem registro da experiência passada, poderá ela ter algum

interesse para o historiador? Ocorre que, ao meu ver, por detrás da demonstração do

conhecimento e da representação da experiência, por detrás de fatos, emoções e imagens

de que a memória social Kadiwéu está repleta, encontram-se apenas os próprios Kadiwéu.

São eles que se recordam e é a eles próprios que, em última análise, se referem as imagens,

as emoções e os fatos. O que se esconde nos padrões da memória social como uma

superfície na qual se inscreve o conhecimento ou a experiência é a própria presença

Kadiwéu.

Somente quando a memória faz parte de uma sociedade é que pode ser partilhada

com outros. A memória, portanto, desempenha um importante papel social. Diz quem são

as pessoas, integrando o seu presente ao próprio passado e dando, assim, fundamento a

todos os aspectos daquilo que chamamos de imaginário. Para muitos grupos, e com os

Kadiwéu não é diferente, isso significa montar um quebra-cabeça: reinventar um passado

adequado ao presente ou, do mesmo modo, um presente adequado ao passado. Os Kadiwéu

preservam o passado à custa de o descontextualizar e, de em parte, o borrar. Assim, uma

tradição sobrevive numa determinada versão porque, para o grupo que a recorda, apenas

essa versão parece a mais adequada. A memória social é, portanto, o conjunto de

acontecimentos essenciais do passado de um grupo e desse passado retém-se apenas aquilo

que é capaz de viver na consciência do grupo, pois:

No primeiro plano da memória de um grupo se destacam as lembranças dos acontecimentos e das lembranças que concernem ao maior número de seus membros e que resultam quer de sua própria vida, quer de suas

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relações com os grupos mais próximos, mais freqüentemente em contato com ele (HALBWACHS, 1990, p. 45).

Ainda segundo Halbwachs (1990, p. 60), “[...] não é na história aprendida, é na

história vivida que se apóia nossa memória”. Ouso discordar de Halbwachs e afirmo que

ambas, a história aprendida e a vivida, alimentam a memória, sem fazer essa distinção

radical entre uma e outra. Trabalhar com a memória dos anciãos Kadiwéu foi estar, a todo

tempo, tateando a presença da morte, lidando com o tempo que se esgota lentamente e que

se transforma, em um determinado momento, somente em tempos de antigamente. Os

desejos, os sonhos e as esperanças transmutam-se, assim, em recordações. Isso tudo leva a

uma característica básica do passado reconstituído pela memória: ele é sempre uma

reconstrução, por mais detalhes que contenha, feita no presente. Este trabalho alinha-se

com a proposição de que a história fertiliza e renova a memória social, ao invés de voltar-

se contra ela. Assim, não seria tão radical como Jacques Le Goff (1984, p. 166) que afirma

haver “[...] duas histórias, a da memória coletiva e a dos historiadores. A primeira é

essencialmente mítica, deformada, anacrônica. A tarefa da história científica é corrigir essa

memória falseada, esclarecê-la e ajudá-la a retificar seus erros”.

Ainda sobre a noção de memória, ao se pensar que “[...] as sociedades são

comunidades que se auto-interpretam” (CONNERTON, 1999, p. 14), foi legítimo inferir que

os fatores presentes tendem a influenciar, ou mesmo provocar inversões, nas recordações

do passado. Não perdi de vista, porém, que os fatores passados também tendem a

influenciar ou inverter as representações sobre a vivência no presente. No que diz respeito

à memória social, a evocação das imagens do passado legitima uma ordem social presente

e, por essa razão, no processo de auto-interpretação “[...] o presente deve ser separado

daquilo que o precedeu por um ato de demarcação inequívoco” (CONNERTON, 1999, p. 9).

Assim, na tentativa de estabelecer um ponto de partida, tomei como referência um padrão

de reminiscências sobre a ocupação do território Kadiwéu, pois acredito que o controle da

memória de uma sociedade condiciona largamente a hierarquia social, já que “[...] a

memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e objeto de

poder” (LE GOFF, 1992, 476). A esse respeito, Le Goff afirma que:

[...] a memória coletiva foi um grande elemento da luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhor da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os

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silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 1992, p. 426).

O mito integra os aspectos que acompanham o percurso histórico da memória dos

grupos sociais. Desse modo, o ponto de associação entre memória e mito, estabelecido em

circunstâncias peculiares, reside no exercício reiterativo de transmissão social da

lembrança. Assim sendo, o mito foi entendido por mim como um dos vários elementos que

compõem a memória social, em que a lembrança é caracterizada como momento que une,

dialogicamente, essas manifestações socioculturais. Tal característica se deve ao fato de

que a memória se apresenta como algo que, além do mito, engloba outros movimentos que

acompanham os indivíduos em seu deslocamento histórico. Nesse sentido, as reflexões

aqui apresentadas vincularam-se às propostas teóricas de Peter Burke que mostram o papel

da recordação do passado como responsável pela constituição do mito. De acordo com o

autor, esse processo se desenvolve na medida em que essa recordação esteja ancorada em

“[...] estereótipos presentes na memória social de uma dada cultura” (BURKE, 1992, p. 244).

Portanto, inseridos nessa discussão, tanto a memória quanto o mito estão relacionados à

reaparição de lembranças ligadas aos tempos de antigamente. Antes de se constituir em

narrativas, esses tempos de antes sofrem mutações durante o processo de transformação do

fato em lembrança, pois ocorre a interferência de circunstâncias relacionadas ao presente.

O tema central do presente estudo, o processo histórico que engendrou a definição

dos limites físicos, geográficos e espaciais da Reserva Indígena Kadiwéu e a apropriação

que dele fizeram os indígenas, estreitamente relacionada ao suporte identitário étnico do

grupo, teve como fio condutor o trabalho da memória, apreendido por meio dos indícios99,

sinais fornecidos pelos próprios índios: a história da delimitação e ocupação de suas terras.

Verificando que a memória do grupo foi e é ativada em contextos de pressão sobre o

território, reitero que ela atua como fortalecedora de laços comunitários, produtora de

identidade e portadora de representações, erigindo regras de pertencimento e exclusão,

demarcando, enfim, fronteiras sociais e simbólicas. Dessa forma, o entendimento do

processo histórico da delimitação física das terras dos Kadiwéu vincula-se à compreensão

das tradições orais indígenas relativas à constituição da Reserva, que revelaram a

construção de uma identidade — sociedade guerreira, de cavaleiros, em uma continuidade

histórica com os Mbayá-Guaikuru — ancorada no pertencimento a um mesmo grupo

étnico, ligado a um mesmo território. Essa postura garantiu, ao meu ver,

99 A respeito do paradigma indiciário, cf. GINZBURG, 2001.

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[...] pensar a produção do conhecimento histórico como aquele que é capaz de apreender essa experiência vivida por sujeitos ativos que problematizaram sua própria existência, implica elaborar procedimentos que permitam recuperar essa problematização colocada pelos agentes do passado, a partir das questões que o presente coloca ao pesquisador (VIEIRA et al., 1991, p. 37-38).

Assim, verifiquei que a memória Kadiwéu se exercita por meio do cruzamento das

noções de territorialidade e historicidade, de modo a criar um corpo de conhecimentos

próprios e exclusivos, constitutivos de sua identidade étnica. Referir-se, portanto, à

construção de identidade a partir da relação com o espaço, através do tempo, é falar de

representações e de adoção de atributos específicos aos Kadiwéu, em oposição a outras

sociedades indígenas e à sociedade não-indígena. De todos os aspectos da organização

social e cultural dos Kadiwéu, escolhidos como sinais diacríticos na história de sua relação

interétnica para a construção de sua identidade, o uso do território se constitui num dos

elementos mais importantes. Ele é o resultado de uma situação de expansão da sociedade

nacional sobre as áreas originais e sucessivamente ocupadas pelos índios. As lutas do

tempo presente não são mais as lutas dos tempos de antigamente, mas reeditam a guerra

para uma sociedade de guerreiros. De acordo com a antropóloga Silvia Carvalho,

Após uma longa história de lutas somente os Kadiwéu tinham conseguido manter sua identidade enquanto grupo étnico. Alguns remanescentes de outro grupo mbayá ainda vivem em aldeias terena. A resistência toma, hoje, outras formas, as reivindicações fazendo-se presentes por meio de uma articulação das lideranças indígenas, em âmbito tanto nacional quanto internacional. A luta pelas terras que continuam sempre invadidas, aqui e acolá, por fazendeiros, é hoje jurídica, não mais armada (CARVALHO, 1992, p. 469-470).

Engana-se, pois, quem imagina que a homologação e o registro das terras da

Reserva Indígena Kadiwéu, ocorrida em 1984, pôs fim aos problemas de invasões,

arrendamentos ilegais e conflitos pela posse fundiária no sudoeste do Estado de Mato

Grosso do Sul. Essa, porém, é uma outra história...

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ANEXOS

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TEXTOS

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TEXTO A

DESPACHO: Nego sanção ao projeto por considerá-lo inconstitucional e contrário ao interesse público. Em 16/11/57 (A.) J. Ponce de Arruda Governador do Estado MENSAGEM Nº 92/57 Em 16 de Novembro de 1957. Senhores Membros da Assembléia Legislativa do Estado. No uso da atribuição que me é conferida pelo artigo 16, § 1o da Constituição do Estado resolvi negar sanção ao projeto de Lei que dá nova redação aos dispositivos do Decreto-Lei nº 54, de 9 de abril de 1931, que me fora encaminhado com o ofício nº 572/57, de 8 do corrente, por considera-lo inconstitucional e contrário ao interesse público. A medição das terras reservadas ao usufruto dos Índios Cadiuéos, foi aprovada pelo governo. Trata-se de ato perfeito e acabado que não pode ser unilateralmente desfeito, nem siquer alterado. É de interesse público que as decisões governamentais principalmente as que gerem direitos subjetivos não sejam revogadas pela própria Administração, a não ser nos casos especiais ofensa à lei ou à moralidade administrativa. O respeito pelas terras dos nossos índios que foram uma constante preocupação de alguns estadistas do Império, se elevou na república, em dogma constitucional (art. 216 da Constituição Federal). Não contestamos que a área reservada tenha ultrapassado os limites razoáveis, mesmo tendo-se em conta a área devoluta de que o Estado então dispunha e o número dos índios beneficiados. Mas si o caso é de redução de área desnecessária, parece-nos que o caminho legal seria a desapropriação, desde que motivada, ou o entendimento com os representantes legais dos índios Cadiuéos que tem, como os demais selvicolas brasileiros, um Serviço Oficial, criado e mantido pela União, com a incumbência de assisti-los, protege-los e representa-los. A Constituição Federal vigente no art. 216, garante aos selvicolas a posse das terras em que acham localisados e esse mesmo principio inscrito na Constituição Estadual de 1935 (art. 14) não foi revogado pelo que se encontra em vigor. Ao lado desse princípio constitucional, se alinha também o que recusa legitimidade a Lei que fere direito adquirido e o ato jurídico perfeito (art. 141, § 3º da Constituição Federal). A reserva de terras aos índios Cadiuéos, se faz por ato legal que gerou direitos a esses índios de usufruírem a referida área. A redução dela, mesmo determinada por lei, não pode vingar, face aos preceitos citados de nossa Lei maior. Essas as razões que ditaram o meu veto ao projeto de lei que ora restituo a essa ilustre Assembléia, a quem cabe apreciá-lo como julgar mais acertado. Renovo a VV. Excias nesta oportunidade os protestos de minha alta estima e mui distinta consideração. (A) J. Ponce de Arruda Governador do Estado. NOTA – Todos publicados no Diário Oficial do Estado, do dia 27 de Novembro de 1957 – quarta feira nº 13.412

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TEXTO B

Serradinho 23/ 9/ 941

Ilmo Snr general Horta Barboza Dignicimo director dos Índios

Recordando-me que V. Excia. Já tendo-me prestado tantos cerviços como também

as imenças conciderações como aquele auxilio do Patrimônio do Bonito, não só a mim

como aquela população, e como V. Excia mostrou sempre muita força de vontade por esta

nossa zona, hoje com a recente vizita do Presidente da republica, que ficou conhecendo

também de perto o que é Matto Grosso, mormente a parte Sul. Snr. General, tendo precizão

de 2 leguas de campo para meu gado, lembrei-me que V. Excia. poderá me conceder a

licença de ocupar nos campos que pertence aos Índios Cadiveos na costa da Serra da

Bodoquena a direita de São João lugar denominado serra Brava, a titulo de arrendamento

na forma que V. Excia. achar conveniente. Espero de V. Excia. que serei atendido. E desde

já agradeço de V. Excia.

Stto. Cel. Simplissio Assis.

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TEXTO C

N. 54 – O Coronel Antonino Menna Gonçalves Interventor Federal no Estado de Matto

Grosso, usando das attribuições que lhe foram conferidas pelo Governo Provisório do

Brasil, e

Considerando a posse trintenal dos índios Cadiuéos nans terras que lhe foram reservadas

em usufructo pelo Governo estadoal na Presidência Alves de Barros segundo a demarcação

realizada em 1900, que os installou officialmente na região entre o Nabileque e a Serra da

Bodoquena, córrego Niutaca e o Rio Aquidauana;

Considerando que esse acto governamental foi precedido da “posse secular natural” que

ditos índios exerceram na dita região;

Considerando que o referido acto governamental foi de alta sabedoria política, pois com

elle cessaram as hostilidades entre Cadiuéos e civilizados, as quaes chegaram a provocar a

mobilização de forças do Exército com graves damnos de ambas as partes;

Considerando que a conducta desses índios correspondeu à gratidão que delles se esperava

diante da justiça e benevolência governamental;

Considerando o progresso actual em que aquelles índios se encontram sob a direcção da

Inspetoria do Serviço de Protecção aos Índios, que lhes estabeleceu as creações, abriu

estradas carroçáveis e de automóvel e construiu extensos aramados,

DECRETA:

Art. 1. – Fica ratificado e confirmado para todos os efeitos o acto governamental de 7 de

agosto de 1903, que approvou a demarcação das terras reservadas em usufructo para os

índios adiuéos, nas seguintes condições:

a) – Ao Serviço de Protecção aos Índios pela Inspetoria regional competente, ficará a

obrigação de localizar os índios Cadiuéos em núcleos novos ou desenvolvendo os

já existentes, conforme melhor convier para o cultivo e guarda dos campos;

b) – Em defici6encia de índios dessa Nação, poderá a Inspectoria localizar quaesquer

outros que sobrarem de outras regiões do Estado, guardada a harmonia com

aquelles, promovendo a sua fusão, e de forma que no mínimo corresponda uma

família para cada légua útil;

c) – A Inspectoria proseguirá as obras de abertura de estrada de automóveis para

Barranco Branco, de modo a entroncar na de Miranda a Bella Vista já existente;

d) – A Inspectoria fará outra estrada de autos desembocando em Guaycurus e subindo

por Chatelodo na Serra da Bodoquena;

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e) – A Inspectoria fornecerá, dentro de um anno, a contar desta data, uma planta na

escala de 1/ 100.000 das terras a que se refere o acto governamental de 7 de agosto

de 1903, agora confirmado, destinada aos índios Cadiuéos, levantada por methodos

regularesa bússola e corrente métrica; ou a bússola e telêmetro nos rios navegáveis,

a qual mencione as aldeias existentes e as bemfeitorias de qualquer espécie,

inclusive estradas e aramados;

f) – A planta será acompanhada das cadernetas de campo, memorial e estatística dos

índios localizados, e organizada por um engenheiro designado pelo governo do

Estado, correndo as despesas por conta da Inspectoria de Índios;

g) – Annualmente, a Inspectoria fornecerá à Repartição de Terras, Minas e

Colonização um exemplar da mesma planta em que venham assignaladas as

modificações e expansões das bemfeitorias realizadas e mapppas estatísticos da

população indígena installada;

h) – A planta mencionará as terras inundáveis e as firmes, permitindo morada

permanente, e respectivas áreas approximadas, e servirá de verificação e correcção

da primitiva, levantada pelo demarcador em 1930;

i) À Inspectoria mandatária fica explicitamente reconhecida a liberdade de methodos

de administração dentro das terras referidas, segundo as leis e regulamentos

federaes e estadoaes;

j) À Inspectoria caberá a expedição de títulos de propriedade de lotes aos índios

localizados, com recurso obrigatório para o governo estadoal e clausula de

inalienabilidade, passando em usofructo de paes a filhos ou a outros herdeiros;

k) Se, dentro de dez annos, a Inspectoria não houver cumprido as condições

estbalecidas e, em especial, si não houver providenciado o aumento de habitantes

nessa região, fica o estado no direito de restringir a área concedida.

Art. 2 – Revogam-se as disposições em contrário.

Palácio da Presidência do Estado em Cuiabá, 9 de abril de 1931, 43. da República

Antonino Menna Gonçalves

Acimar Noronha Marchant

(publicado na Gazeta Official do Estado de Matto-Grosso em 16/ 04/ 1931)

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TEXTO D

MEMORIAL DESCRITIVO DE “CADIUÉUS”

Medição e demarcação dos terrenos ocupados pelos índios

TERRAS DOS INDIOS CADIUÉUS.

Ramo da tribu Guaicurus possuem em uso fruto entre os rios Paraguai e Nabileuqe

a Oeste; Nabileque e Niutaca ao Norte; - Serra de Bodoquena (figura na carta com

Nabodoquena) a Leste; e o rio Aquidavão (que impropriamente figura na carta com o nome

de – Aquidauana, próprio a outro rio do Estado afluente do Miranda) ao Sul, uma área de

373.024 hectares que lhes foi mandada reservar pelo Capitão de Mar e Guerra Antonio

Pedro Alves de Barros, Presidente no Estado no período de 1900 a 1904.

Está medida e demarcada conforme se verifica do memorial cuja copia vai a seguir

e da planta que acompanhará essa exposição. –

COPIA – Illmo. Sr, Agrimensor Otavio de Vasconcellos Neve, DD. Diretor da repartição

de terras do estado. Como requer, Ao Sr. Oficial Arquivista para atender. Diretoria de

terras 1-3-1919. Assinada O. de E. Neves.-

Adriano Metello, Inspetor de Serviço de Proteção aos Índios neste Estado, vem requerer

mandeis lhe dar por certidão a copia verbo adverbum dos autos de medição e demarcação

das terras reservadas para os índios Cadiuéus no Município de Corumbá e a copia autentica

da planta da mesma medição feita no ano de 1900. Cuiabá 28 de fevereiro de 1919.

Assinado: Adriano Metello. Inspetor. – (Estava selada e devidamente inutilizada um selo

estadual no valor de dois mil reis) – Antonio Ferreira da Silva, Oficial arquivista de

Diretoria de Terras Minas e Colonisação do Estado de Mato Grosso.-

Certifico, em observância ao despacho retro, que a copia autentica dos autos de que trata a

presente petição, é a seguinte: Autos numero quatro: - Estado de Mato Grosso – Cuiabá,

vinte e quatro de março de mil novecentos. Com grande satisfação venho dar-vos

conhecimento do resultado, dos serviços de que fui por vós encarregado, no Sul de Mato

Grosso, em o vosso oficio de treze de Novembro do ano passado. Conforme as vossas

determinações, transportei-me para Corumbá, a fim de com urgência efetuar a medição e

demarcação dos terrenos ocupados pelos índios Cadiuéus, nas imediações do Nabileque,

braço do rio Paraguai, aportando-me em Corumbá, a 23 daquele supramencionadao mês.

Ali chegado, tratei de colher informações dos entendidos cobre as condições daqueles

selvagens, sua posição relativamente aos povoados, quais os campos que sempre ocuparam

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e quais os elementos com que se podia contar para os serviços da medição. Primeiramente

o senhor Mariano Rostey, diretor dos índios e sucessivamente os outros unânimes em

informar-me que aqueles selvagens desde que se bateram a ultima vez com gente do

Coronel Malheiros tinham-se internado nas matas de Nabodoquena, e mais freqüentavam o

distrito de Caracol, no município de Miranda, do que as margens do rio Paraguai. Não

havendo morador algum dentro da zona por eles ocupadas e compreendida entre os rios

Paraguai, Nabileque e Niutaca ao Norte, e ao Oeste; a Serra de Nabodoquena a Leste e o

pequeno rio Aquidauana ao Sul, antes de avistar-me com os selvagens que nenhum auxilio

ou elemento podia ou contar, visto que não havia moradores visinhos nas condições de

prestar-me qualquer auxilio. Sobre qual meio falar aos Cadiuéus, foi-me presente o cidadão

Pedro de Souza Benevides, conhecedor desses sertões que conviveu muito com esses

selvagens, o qual assegurou-me conduzir aquele resultado, evitando a aldeia seus dois

filhos menores, digo maiores. A condução, porém, de Corumbá ao Nabileque tornou-se a

maior dificuldade, pois que o único morador daqueles sertões que nos podia dar um ou dois

cavalos, era de dez a doze léguas subindo o Nabileque, e que só por meio de uma lancha

particular podia obter o resultado. Preparei a comissão demarcadora, composta de

camaradas e o prático Benevides e não sendo possível obter condução a aquele ponto do

Nabileque, fui forçado a fretar uma lancha dos senhores Cavassa & Companhia a fim de

nos conduzir a aquele destino. Forçoso é confessar-vos que só pela confiança da Comissão

e pela necessidade de liquidar-se de uma vez com uma questão tão emaranhada e que tem

já custado sangue de brasileiros é que me vi na contingência de lançar mãos de meios

extraordinários para ser executado um trabalho apontado há muito pela necessidade.

Munido de viveres suficientes para dois meses e de materiais para o trabalho, segui no dia

vinte e oito a bordo da lancha Floreano Peixoto em busca de Barranco Branco, onde devia

conferenciar com o Coronel Malheiros, confrontante dos terrenos a demarcar. A 30 de

novembro aportei-me ao Barranco e, indagando do referido Coronel, fui informado que ele

vivia a bordo e em um porto Paraguaio, então suspeito ao Brasil. Não podendo ter a

confer6encia pretendida, escrevi-lhe uma carta minuciosa, expondo os motivos de minha

viagem, os limites que pretendia dar aos terrenos dos índios, e convidando-o para uma

conferencia no forte de Coimbra no dia quinze de dezembro, a fim de ele poder reclamar o

que fosse de direito. Segui depois a fazenda de Tereré, sitio do cidadão Antonio Vieira de

Moraes que me cedeu dois animais e fiz seguir os dois rapazes que deviam trazer os

Cadiuéus no sitio do Nabileque até o morador onde devíamos esperar. Ali, não tendo mais

necessidade da lancha e não convindo que ela por mais tempo demorasse em meu poder, a

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devolvi aos senhores Cavassa & Companhia por intermédio do Sr. Mariano Rostey que me

havia acompanhado. Enquanto esperava os índios e os animais para a demarcação,

empreguei-me em fazer o levantamento do rio Nabileque até aquele ponto e vários outros

estudos que mais tarde terei de publicar. Confrontando as minhas observações com a carta

geral do Estado, levantada por Pimenta Bueno, vi que a dita carta encerra grandes vícios

nesta parte do nosso território. Com efeito, quem vir o Nabileque na carta, formando uma

imensa ilha, a semelhança da do rio Paraguai-mirim. O canal chamado Nabileque sae

defronte do morro do Puga, um tanto estreito, alargar-se mais tarde, recebe vários outros

tributários e entra de novo no Paraguai duas léguas acima do rio Branco. Outra incorreção

que encontrei na carta, é que quando menciona o rio Branco, logo abaixo do Nabileque e

dá com um afluente desconhecido. Uma légua abaixo do Nabileque está o pequeno rio

chamado pelos Cadiuéus Aquidauana que tem curso igual ao rio Branco e nasce com ele na

serra de Nabodoquena. O rio Branco está uma légua abaixo deste e não tem afluente algum

digno de menção, como lhe dá aquela carta. Penso por isso que o referido e suposto

afluente do rio Branco seja o Aquidauana na carta erradamente colocada. Quanto a posição

da Serra de Nabodoquena, também não é exata, pois esta dista dezesseis a dezoito léguas

do Paraguai e separa Corumbá do município de Miranda. O morro “Opaca” mencionado na

carta, está na ilha do Nabileque e não merece menção onde estão os morros Grande e de

Nabileque. Só no dia quatro de Dezembro chegaram os selvagens com a cavalhada para os

serviços e no dia quinze segui a fim de fazer conhecimento de terreno e verificar se havia

dentro dos limites escolhidos alguma posse nas condições de ser legitimada. No morrinho

denominado Manilla onde outrora morreu o capitão do mesmo nome, existe ainda alguns

riachos, cercados e um cemitério do lado oposto do rio; há também antiga capoeira daquele

velho Capitão. Subindo costeando o Nabileque cheguei no sito S. Antonio, fundado pelo

portuguez José de Siqueira Braga, maquinista reformado da Armada. Pelo mesmo senhor

que ali tem fundado uma fazenda de gado, me foi apresentado um requerimento pedindo

que nos termos do artigo quinze do regulamento de quinze de fevereiro de mil oitocentos e

noventa e trez, lhe concedesse aquele lote, onde tem benfeitorias, cultura efetiva e morada

habitual, e nomeasse o agrimensor Emilio Rivasseau para fazer a sua medição. Reconheci

de fato que a sua era justa, visto como ali mantem uma fazenda de criar, com mais de mil

cabeças de gado, além dos animais cavalares suficientes para o seu custeio. Mas, como

aquele lugar estivesse compreendido nos limites que eu havia estabelecido, fiquei indeciso,

sem saber como deliberar e lancei no requerimento o seguinte despacho. “A Presidência do

Estado para deliberar como entender”. Continuando o reconhecimento, a uma légua de

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Santo Antonio deparou-se-me uma casa velha, feita de carandá, com um pequeno curral,

todos abandonados. Chama o lugar Santa Cecília e foi fundado por João Lopes, genro de

um tal Cardozo que fundou uma fazenda, uma légua acima do Santa Cecília, no logar

denominado São João. São João ainda tem casa regular e um bom espaçoso quintal; foi

registrado por Malheiros em virtude da Lei numero vinte de mil oitocentos e noventa e

dois, mas, nem aquele Coronel ali esteve nem cultivou os seus campos. Estando

abandonado há oito anos e sem cultura de espécie alguma, resolvi incluir São João nos

terrenos a medir. O Capitãozinho, chefe da tribu, e Manilla afirmaram-se que sempre

protestaram contra aquela ocupação por Cardozo e mais tarde por seu genro João Lopes,

porque ali é a sua passagem para irem a Coimbra, e onde tem cemitério atraz do morro

grande. Continuando, visitei o referido cemitério, onde admirei a devotação dos Cadiueus

pelos mortos, no asseio e amor aquele repouso eterno. Vi na fralda do morro do gavião um

retiro onde os selvagens antigamente tinham rouçadas, mas que abandonaram por falta de

águas. O Niutaca, por onde seguimos, é a princípio uma espécie de corixão, mudando-se

mais tarde por um córrego barrancoso e empedrado tem um pantanal de mil e trezentos

metros que o acompanha e uma s erie de morro que fraldea o pantanal, ora baixando e ora

elevado até as morrarias do Nabileque, no morro do Limoeiro, o Niutaca recebe pela

margem esquerda, que percorremos, o corregozinho de Mimoeiro, que vem daquele

morrote. Do Limoeiro a Serra de Nabodoquena há quatro léguas. Fui a antiga Aldeia de

Nalique, construído em uma colina, cercado de morretes; foi incendiada e destruída em

maio de mil oitocentos e noventa e seis pelos capatazes do Coronel Malheiros. Teria cento

e tantas casas, todas em linha, hoje só restam os esteios que por serem de madeiras de

carandaes maduros o fogo não pode devorar. Quando foi destruído o Nalique, os cadiuéus

foram-se alojar no Tigre, estabelecimento de Pedro de Souza Benevides, a margem do

Niutaca. Entrincheiraram e sendo atacados mais tarde, rechaçaram a gente de Malheiros

em numero de sessenta e os perseguiram até longe. Desesperados e despidos de recursos e

amedrontados, os cadiuéus despacharam Benevides a pedir providências em Miranda e

nada obtendo dali, o enviaram de novo ao Rio para representa-los perante o Governo

Federal e pedir-lhe proteção, já que o Estadual em vez de protege-los prestigiava cada vez

mais o Coronel Malheiros. Diversos outros encontros tiveram, perecendo em laguns não só

cadiuéus, mas brasileiros, civilisados, bem como as cinco praças do Exército, mortas no

ataque de mil oitocentos e noventa e oito. Exaustos de recursos e perseguidos como se

achavam, os aborigenes, meteram-se pelas matas, e foram fundar a Aldeia Nova, quase na

fralda da Serra de nabodoquena. Existem na Aldeia quinhentos homens índios, sendo

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duzentos homens de armas e trezentas mulheres e crianças. São perfeitamente civilisados,

de boa índole e muito dados ao trabalho. Cultivam milho, e feijão, arroz e aipim, cana de

assucar e criam animais vacum e cavalar. Perto de Nabileque está a aldeia de Joãozinho um

mirandense, nascido e criado entre os cadiuéus, fala a sua língua e é muito seu amigo.

Saindo de Nalique para o sul está o Aquidauana, antigo retiro do Coronel Malheiros,

registrada em virtude da Lei.. de mil oitocentos e noventa e dois; tem apenas um ranchinho

e está abandonado. Mais abaixo está o Chat-Lodo, outra posse do Coronel Malheiros, poré,

a excepção de um ranchinho Nanilla, nenhum outro vestígio apresenta de habitação

comum humana. Chat-Lodo é o lugar onde vão os cadiuéus fazer farinha de bocaiúva, a

que chamam mocaia libelí, e que se dá em certa estação do ano. O acorizal que Malheiros

registrou não poude encontrar e dizem que está sobre o Aquidauana. Este rio a principio

bem largo, profundo e belo, desaparece com três léguas em um brejo que até hoje nem os

naturaes puderam transpor. Depois aparece e corre na direção de Leste até a Serra. Feito

este reconhecimento, dei começo a medição da cabeceira do Niutaca, na Serra de

Nabodoquena, como tudo se vê memorial anexo ao presente relatório. No dia nove de

janeiro conclui os serviços, tendo medido uma área de trezentos e setenta e três mil vinbte

e quatro hectares (373.024) de terras, entre campo de criação e lavoura que ali os tem

muito excelentes. Tendo vós também, mandado, digo, me ordenado que chegasse até os

campos de “Jacadigo”, a fim de descriminar a área reservada para uso comum, nos termos

do artigo vinte da Lei numero vinte mil oitocentos noventa e dois, para ali me dirigi tão

logo me portei em Corumbá. Estudando os terrenos que estivessem nos casos do artigo

vinte da referida Lei, e fazendo o reconhecimento dos campos, entendi que toda a

campanha que estende desde a baia de “Jacadigo” até a baia Negra deve ser campos

reservados. Nestas condições, deixei de descriminar a pequena área limitando-me a correr

aquela zona e conhece-la bem, a fim de indeferir qualquer pretensão que possam nutrir

acerca daquela campanha. Desde os remotos tempos da monarquia que diversos

pretendentes oferecem compra a aqueles terrenos, mas o Imperador, quis aliena-los. Os

moradores dali podem montar a umas vinte famílias, que criam e usufruem em comum

aqueles campos. O cidadão Joanini Galachi apresentou-me um registro de posse dentro

daquela área, porém nem ele nem o suposto posseiro ali não residem e nem possuem

qualquer requisitos legaes. Exatamente no lugar registrado com o nome do corixo da

Bocaina é que tem os diversos moradores suas casas, entre as quaes citarei os irmãos,

Barraca. As despezas feitas tanto com a medição e demarcação dos terrenos dos índios,

como os de “Jacadigo” que montaram em dois contos quatrocentos e oitenta e oito mil reis,

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foram pagas pelo coletor daquela cidade. Tenente Coronel Salvador Augusto Moreira,

conforme vossa ordem. Taes foram os resultados dos serviços que executei no município

de Corumbá, e que trago ao vosso conhecimento esperando serem aprovadas as medidas

por mim tomadas no desempenho de vossas ordens. Agradecendo sinceramente a

confiança que em mim depositaste na presente comissão, peço desculpas se os meus

serviços não corresponderam aos vossos patrióticos desejos, assegurando-vos que as

minhas intenções foram boas e os meus sacrifícios não foram preocupados, digo, poupados

no desempenho da árdua, mas honrosa missão de que fui incumbido. Aproveito o ensejo

para mais uma vez acentuar-vos os meus protestos de alta estima e consideração.

Saúde e Fraternidade.

Ao eminente Cidadão Coronel Antonio Pedro Alves de Barros, Digníssimo

Presidente do Estado.

José de Barros Maciel

Memorial descritivo de medição e demarcação dos terrenos ocupados pelos índios

Cadiueus, sitos na margem esquerda do rio Paraguai, no município de Corumbá.

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MAPAS

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ANEXOS – MAPAS

139

Vista parcial do Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendaju, com destaque para a presença Kadiwéu. (Fonte: NIMUENDAJU, 2002).

MAPA A

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ANEXOS – MAPAS

140

Vista parcial do mapa dos grupos indígenas do Chaco com a localização dos grupos Mbayá. (Fonte: MÉTRAUX, 1996).

MAPA B

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ANEXOS – MAPAS

141

Bodoquena

Tomázia

São João

Planta de Demarcação da “Reserva Indígena Kadiwéu”, localizando as três maiores aldeias nos dias de hoje. (Fonte: SIQUEIRA JR, 1992).

MAPA C

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ANEXOS – MAPAS

142

I.R.5 – Mato Grosso 1 – PIT São João do Aquidavão 6 – PIF Alves de Barros 7 – PIC Nalique

Mapa de localização dos Postos Indígenas do SPI, em 1944, de acordo com o Relatório Paranhos. (Fonte: ROCHA, 2003).

MAPA D

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ANEXOS – MAPAS

143

Sem escala

&

Localização do Município de Porto Murtinho no Estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. (Fonte: SOUZA, 2001).

MAPA E

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ANEXOS – MAPAS

144

Sem escala

&

Localização aproximada da “Reserva Indígena Kadiwéu” no Município de Porto Murtinho, Estado de Mato Grosso do Sul. (Fonte: SOUZA, 2001).

MAPA F