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Pedro Tiago Ferreira
A contradição base na ideologia Juche e o seu
inerente culto de personalidade (2012)
1. Introdução
O presente trabalho centra-se na análise de uma contradição de base presente na
ideologia “juche” e no culto de personalidade em redor da pessoa do líder que é inerente
a esta mesma ideologia.
O tema juche é extremamente vasto, comportando um conjunto de valências cuja
totalidade seria impossível abarcar num trabalho como este, razão pela qual optamos
por centrar a nossa investigação nos temas acima mencionados. Não nos preocupamos
em traçar, em grande detalhe, as origens do conceito, bastando-nos com uma breve
referência, na secção 2, à primeira ocasião em que o mesmo foi utilizado por Kim Il
Sung; na secção 3, mencionamos de forma breve a sua raiz marxista-leninista, bem
como as outras correntes filosóficas que Kim Il Sung incorporou na sua ideologia.
A análise do uso do termo “independência”, por parte de Kim Il Sung, para
qualificar as massas, e a contradição que esse mesmo uso provoca no quadro do
pensamento juche, ocupa grande parte da secção 2. A secção 3, por seu turno, é
dedicada à vertente juche do culto de personalidade à volta, em primeira instância, do
“Grande Líder” e, posteriormente, do “Querido Líder”, Kim Jong Il, bem como de Kim
Jong Un, actual soberano. Na secção 4 oferecemos, em jeito de conclusão, um
argumento que defende que o juche é parte do problema da situação económica que se
vive na Coreia da Norte, e não parte da solução para livrar a Coreia dos males do
2
imperialismo e do capitalismo, conforme Kim Il Sung e Kim Jong Il advogaram ao
longo das suas vidas. Utilizamos a questão da política económica centralizada para
ilustrar um problema endémico da ideologia juche, que pode ser resumido da seguinte
forma: dada a ligação entre o juche e a divinização da pessoa do líder, será impossível
mudar de política – económica, cultural, social, relações externas, etc. – sem
reconhecer, pelo menos de forma implícita, que Kim Il Sung e Kim Jong Il não eram
infalíveis, algo que o Governo norte-coreano não estará, pelo menos na actualidade,
disposto a fazer, o que contribuirá para a perpetuação do declínio norte-coreano.
2. As contradições da ideologia “juche”.
“Juche” é a designação da filosofia política criada e idealizada por Kim Il Sung,
Presidente Eterno da República Democrática Popular da Coreia (cf. preâmbulo da
Constituição). O termo é traduzido, por Adrian Buzo, para inglês por “self-reliance”.
(Buzo, p. 87) A ideia que o conceito transmite é, nas palavras do próprio Kim Il Sung, a
de “independência política, auto-sustentabilidade da economia e auto-defesa da defesa
nacional.” (Sung, 1972, p. 6)
O termo juche foi utilizado, pela primeira vez, por Kim Il Sung num discurso
efectuado a 28 de Dezembro de 1955, perante os trabalhadores de propaganda do
Partido dos Trabalhadores da Coreia. No entanto, os valores que o conceito juche
transmite vinham sendo advogados por Kim Il Sung desde os seus primeiros discursos,
datados de 1931, ainda nos seus tempos de guerrilha.
Segundo Kim Il Sung, “o que está na base da ideia juche é o facto de o homem
ser o mestre de todas as coisas e de decidir tudo. Refazer a natureza e a sociedade é um
trabalho feito pelas e para as pessoas. O homem é o que há de mais precioso e poderoso
no mundo. Todo o nosso trabalho é para as pessoas, sendo que o sucesso desse mesmo
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trabalho depende da forma como trabalhemos com elas.” (Sung, 1972, pp. 12 e 13)
Assim sendo, a ideia juche parece resumir-se, à primeira vista, à capacidade que o
homem tem em ser mestre do seu próprio destino, sendo dotado da capacidade de se
governar e de subsistir de forma independente. A independência é, aliás, um requisito
fundamental para que o homem possa existir enquanto tal: “O direito à independência
constitui a primeira forma de vida do homem como ser social. Quem careça deste
direito não poderá desfrutar de uma vida independente e criadora. Só quando se lhe
garante este direito é que o ser humano pode ocupar e desempenhar a posição e o papel
de dono na sociedade e levar uma vida humanamente digna.” (Sung, 1991, p. 100)
Contudo, o direito à independência, tido por Kim Il Sung como fundamental
para que o homem seja mestre do seu próprio destino, mestria essa que está na base da
ideia juche, deve ser exercido em prol do colectivo e não em benefício pessoal; por esta
mesma razão, Kim Il Sung considera que é importantíssimo investir na educação:
“Também na formação dos jovens há que dar prioridade à tarefa de os educar com a
ideia revolucionária. Por muitos conhecimentos e técnica que possuam, se não quiserem
trabalhar e não prestarem serviços ao Estado e à sociedade, para que precisam desses
conhecimentos e técnica?” (Sung, 1972, p. 16) Para além disso, há que incutir nos
jovens o “espírito patriótico socialista e a concepção revolucionária do mundo de servir
não para sua ambição pessoal, por fazer carreira e pela ganância do dinheiro, mas sim
para o seu povo e para a sua Pátria.” (Sung, 1972, pp. 16 e 17)
Ao relacionar a ideia de independência individual com a de servir o Estado, que
supostamente agiria em representação da sociedade, ou da colectividade, Kim Il Sung
entra em contradição; com efeito, se o homem é totalmente livre, se é “mestre de decidir
tudo”, por que razão deverá ser obrigado a prestar “serviços ao Estado e à sociedade”?
O papel criador e independente que Kim Il Sung atribui ao homem é incompatível com
4
as ideias confucionistas de piedade filial e obediência ao soberano tal como estas são
incorporadas, adaptadas e amalgamadas na filosofia juche, visto que “North Korean
propaganda often used familiar terms”, referindo-se a Kim Il-Sung como “the parental
or fatherly leader of the people” (Seth, p. 360), com o resultado de que obedecer ao
soberano é, no esquema de pensamento da filosofia juche, um imperativo moral (e
jurídico) idêntico ao de obedecer aos pais, o que acaba por desvirtuar o pensamento de
Confúcio na medida em que o respeito ao soberano só seria devido se este fosse justo,
ao passo que somente o respeito aos pais seria verdadeiramente incondicional. No
entanto, se o homem for verdadeiramente independente e dono do seu destino, não pode
ser coagido a trabalhar em prol do Estado, descurando as suas ambições pessoais, ou a
mostrar afecto fanático pelo seu soberano. Quando o homem é verdadeiramente
independente, todos os seus comportamentos e escolhas são livres.
Poder-se-á arguir que a posição por nós manifestada é um caso de Orientalismo,
tal como este termo é definido por Edward Said, 1 ou seja, que nos estamos a deixar ser
influenciados por um concepção ocidental de independência. Com efeito, a
independência, no pensamento filosófico, político e jurídico do Ocidente é uma
manifestação do princípio da dignidade da pessoa humana, estando também
intimamente ligada a direitos fundamentais como, por exemplo, o direito à identidade
pessoal e ao desenvolvimento da personalidade. Sem embargo, para se poder qualificar
a nossa posição como um caso de Orientalismo seria necessário que o termo
“independência”, no Este Asiático em geral, e na Coreia do Norte em particular, tivesse
uma acepção bastante díspar em relação à que tem no Ocidente.
Não disputamos a noção de que a concepção de direitos fundamentais, tal como
é entendida no Ocidente, não encontra equivalência directa no Oriente. O que os
1 “The Orient is an integral part of European material civilization and culture. Orientalism expresses and
represents that part culturally and even ideologically as a mode of discourse with supporting institutions,
vocabulary, scholarship, imagery, doctrines, even colonial bureaucracies and colonial styles.” (Said, p. 2)
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orientais entenderão por “livre desenvolvimento da personalidade” não coincidirá,
decerto, com o pensamento ocidental, até porque os próprios ocidentais discordam,
entre si, acerca de qual o significado e aplicação concreta deste princípio. No entanto,
estamos em crer que “independência” se refere, tanto no Ocidente como no Oriente, à
possibilidade que é conferida ao ser humano de efectuar livremente as suas escolhas. O
que poderá divergir entre o pensamento ocidental e oriental serão os pressupostos
teóricos em que o conceito de “independência” se baseia e as consequências políticas e
jurídicas que advenham desses mesmos pressupostos, mas não a ideia em si de que o ser
humano “independente” é aquele que tem o privilégio de tomar decisões sem estar sob
coacção.
Cremos, todavia, que Kim Il Sung usa o termo “independência” de forma
retórica, isto é, quando fala de “independência” está-se a dirigir ao seu público da
mesma forma que, segundo Platão, os estadistas atenienses se dirigiam ao seu povo:
“Achas que os oradores falam sempre tendo em vista o que é melhor? Almejam sempre
tornar os cidadãos tão bons quanto possível através dos seus discursos? Ou estão
também decididos a gratificar os cidadãos, prejudicando o bem comum em favor do seu
próprio bem privado, tentando somente gratificar o povo sem pensar, de todo, se isto os
tornará melhores ou piores?” (Platão, Górgias, 503 d e, p. 847) Para Platão, a retórica é
uma forma de adulação, é uma espécie de discurso que tem como única finalidade
agradar a quem o ouve. Em nosso entender, é precisamente isto que Kim Il Sung faz ao
falar de independência, dado que o “Grande Líder” apenas e só diz aquilo que ele sabe
que os seus ouvintes, as massas populares, gostam de ouvir, com o intuito de ganhar
uma vantagem para si mesmo, que seria a de desenvolver o culto de personalidade à
volta da sua pessoa de forma a manter-se eternamente no poder.
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Na realidade, o termo “independência”, na boca de Kim Il Sung, é um conceito
vazio. Conforme defendemos supra, não existe um conceito oriental próprio de
independência que colida com o conceito ocidental de independência; se tal existisse,
estaríamos perante um caso de Orientalismo. Ao invés, o que sucede é que, quando Kim
Il Sung proclama a independência do homem como estando na base da ideia juche, o
que ele está a fazer é retórica, é dizer às massas o que estas querem ouvir, aquilo que
lhes agrada, e que convém ao próprio Kim Il Sung, independentemente de ser o melhor
para elas, para o Estado ou de ser verdade.
Para ocultar esta contradição intrínseca ao seu pensamento, Kim Il Sung delimita
o escopo da “independência”: “Consideramos que a questão central na educação é a
implementação dos princípios da pedagogia socialista. O princípio básico da pedagogia
socialista encontra-se na formação de pessoas que sejam trabalhadores revolucionários
fiáveis equipados com a ideologia, o conhecimento e o físico forte que lhes permita
tomar parte na revolução e construção enquanto mestres.” (Sung, 1972, p. 13) A
ideologia a que Kim Il Sung se refere é, claro, a ideia juche: “A ideia juche é a única
ideologia directora do Governo da República. Só quando se aplique estritamente esta
doutrina em todas as suas actividades, tomando-a como invariável guia directora,
poderá o Poder da República cumprir de modo satisfatório a sua missão.” (Sung, 1991,
p. 104) De modo a que o Governo cumpra este desiderato, é necessário “transformar de
modo revolucionário a consciência ideológica destas [das pessoas]. A consciência
ideológica das pessoas determina todas as suas actividades. Ainda que alguém tenha boa
saúde, enquanto for ideologicamente atrasado e moralmente relaxado, não será mais do
que um inválido espiritual totalmente inútil para a nossa sociedade. É por isso que o
nosso Partido enfoca sempre a sua atenção primordial em transformar de modo
revolucionário a ideologia das pessoas.” (Sung, 1972, p. 15)
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Deste modo, o homem só poderá ser “independente” dentro do quadro
proporcionado pela ideologia juche. A “função criadora” que Kim Il Sung atribui ao
homem, enquanto ser social, “radica na organização e na unidade”, visto que “o Poder
Popular é o organizador da capacidade criadora das massas populares trabalhadoras.
(…) Se não estiveram unidas, não são de facto uma existência criadora nem podem
exercitar grande força. Só quando se unam e cooperem podem constituir entes mais
poderosos capazes de transformar e renovar o mundo.” (Sung, 1991, pp. 100 e 101) A
conclusão a retirar destas ideias é a de que o homem, individualmente, não tem
capacidade para pôr em prática a sua força criadora; por outro lado, essa mesma força
criadora deve ser exercitada sempre em prol do colectivo. Se for exercitada em nome
individual, o homem transformar-se-á num parasita, visto que a sua utilidade, para a
colectividade, é nula. Por outro lado, Kim Il Sung define o Poder Popular como “uma
arma política que assegura às massas do povo trabalhador uma vida independente e
criadora.” (Sung, 1991, p. 99) É manifesto que “independente” e “criador” são
vocábulos retóricos, utilizados para adular as massas e conferir-lhes a ilusão de que
controlam os seus destinos individuais e, por extensão, o do seu país. Na verdade, o que
sucede é que o homem, o cidadão norte-coreano, não tem independência porque se
espera que todos os seus actos se conformem aos princípios da ideologia juche, e que a
sua “força criadora” seja exercitada em benefício do colectivo, e nunca em benefício
individual. Sendo verdade que “a consciência ideológica das pessoas determina todas as
suas actividades”, então o facto de só existir uma única ideologia elimina a
possibilidade de haver uma escolha livre – elimina, na realidade, a possibilidade de
haver uma escolha –, visto que a existência de uma ideologia única formata o modo de
pensar de todas as pessoas na medida em que não lhes é dada a possibilidade de estudar
outras ideologias, o que acarreta necessariamente a inexistência de independência. Neste
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quadro de ideias, o homem é “independente” mas, dentro da sua “independência”, só lhe
é permitido pensar de uma forma consentânea com a ideologia juche, o que o torna
“juche-dependente”.
A filosofia de Kim Il Sung enferma, assim, de uma contradição insanável na sua
base, na medida em que é logicamente impossível coagir toda a população a pensar de
forma uniformizada, colocando sempre o benefício do Estado em primeiro lugar, em
detrimento do conforto pessoal, e advogar simultaneamente que todas as pessoas são
independentes. O pensamento livre e independente é antitético de uma filosofia política
que exige coercivamente uma única forma de pensar a todos os cidadãos. Não estamos,
obviamente, a argumentar que é possível, a um indivíduo, pensar de forma
ideologicamente neutra; todas as nossas ideias surgem em resultado de convicções
morais, políticas, filosóficas, religiosas e sociais. Um ateu, por exemplo, não é
religiosamente neutro, é alguém que nega a existência de Deus; esta forma de pensar é,
em si mesma, religiosa, isto é, assume uma posição religiosa, não assume uma posição
exterior de neutralidade face ao fenómeno da religião. Assim sendo, quando se fala de
política, todas as opiniões serão ou comunistas, ou socialistas, ou republicanas, ou nazis,
ou fascistas, ou monárquicas, ou democráticas, etc. Nem mesmo quem defenda a
anarquia está a ser politicamente neutro, visto que a anarquia mais não é do que a
negação da existência de Estado e de poder organizado e, por isso, não é uma posição
politicamente neutra. O juche não poderia, por conseguinte, ser uma doutrina
politicamente neutra, visto que nenhuma doutrina política pode ser neutra. É uma
doutrina marcadamente socialista e, desse facto, não emana qualquer contradição. A
contradição surge, isso sim, a partir da noção que Kim Il Sung pretende disseminar de
que as pessoas que só conhecem esta ideologia, que só podem conhecer esta ideologia –
9
o povo norte-coreano – são independentes e criadoras, ou seja, que conseguem pensar
pela sua própria cabeça e têm o seu próprio destino nas mãos.
Kim Il Sung passa por cima desta contradição, não procurando sequer resolver
este problema através de qualquer argumento, ao pôr em pé de igualdade a noção de
“independência do cidadão” com a de “independência da nação”: “De forma a tornar-se
mestre do seu próprio destino, uma nação tem que ter um governo independente e que
garantir firmemente a sua independência política. É por isso que a ideia juche deverá,
em primeiro lugar, ser corporizada como o princípio da independência na política. De
forma a garantir uma independência sólida na política, uma pessoa tem que ter a sua
própria ideia condutora e a capacidade para formular todas as suas políticas tendo em
vista somente os interesses do seu povo e em conformidade com as condições
específicas do seu país, segundo a sua própria ponderação. O governo que age sob a
pressão ou instruções de outrem não pode ser genuinamente apelidado de governo do
povo, responsável pelo destino do povo. Um país com este tipo de governo não pode ser
visto como um estado independente e soberano.” (Sung, 1972, p. 8) A “independência”
da nação manifesta-se na “independência” do Governo e, implicitamente, na ponderação
que é efectuada pelo seu líder. Kim Il Sung pretende legitimar o seu poder, a sua
“independência” – ou, diríamos nós, o seu poder absoluto – radicando-a na
“independência” do povo; sem embargo, este salto que é dado a partir da
“independência” do cidadão para a da nação é ilógico, carecendo de qualquer
fundamentação por parte de Kim Il Sung que, ao advogar que o juche configura a única
forma de pensamento correcta e que, por isso mesmo, o mero conhecimento de
quaisquer outras ideologias está interdito aos cidadãos, de forma a que estes não possam
sequer pensar em subverter a ordem social perfeita que, no quadro de pensamento juche,
10
só o juche consegue proporcionar, coarcta toda e qualquer possibilidade de efectiva
independência.
3. O culto de personalidade
A linha de pensamento juche, ainda que autoritária, não deixa de ser coerente consigo
própria – na medida em que procura vincar a sua supremacia e defender-se de ataques
provindos de outros quadrantes ideológicos, o que é perfeitamente legítimo – até ao
momento em que, para adular as pessoas, Kim Il Sung coloca a ideia de independência
individual na base do juche e a par da necessidade de colocar os interesses colectivos
em primeiro lugar. Estas duas ideias são antinómicas e criam uma contradição
insanável, cuja motivação se encontra no facto de Kim Il Sung querer manter o poder
para si próprio e para a sua família, independentemente de isso ser, efectivamente, o
melhor para a sua nação. De forma a conseguir este objectivo, vai dizendo aquilo que
ele julga que as pessoas querem ouvir e que, dentro do seu esquema de pensamento,
impedirá – ou minimizará a possibilidade de – qualquer sublevação ou ataque ao
regime. De forma a conseguir a sua independência enquanto líder, Kim Il Sung faz um
uso retórico de “independência” do indivíduo de forma a legitimar a sua posição de
soberano. Consideramos, no entanto, pelo exposto na secção 2, que o “Grande Líder”
não consegue evitar contradizer-se; esta contradição que temos vindo a analisar, e que
se encontra na base da própria filosofia, é apenas uma das muitas contradições que se
manifestam no pensamento de Kim Il Sung. Segundo Paul French, o juche “was partly
an adaptation of the ‘universal truth’ of Marxism–Leninism to a Korea that for centuries
had looked ostensibly to China as its major frame of reference, but it also represented
Kim Il-sung’s bid to be recognised as a prominent – indeed, the pre-eminent –
ideological figure in the communist world.” (French, p. 31) Com o passar do tempo, o
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regime foi inculcando a ideia de que o juche é uma doutrina totalmente criada pela
família Kim: “Officially Juche theory is a creation of Kim Il-sung and his son Kim
Jong-il. They are the fathers of Juche, according to the official record, which states that
Juche is a ‘gift bestowed by the Kims to North Korea’s people’.” (French, p. 43)
Seguindo cronologicamente as instâncias de utilização do termo juche por Kim Il Sung,
o juche “at first meant a creative adaptation of Marxism-Leninism without slavishly
imitating Moscow or Beijing.” (Seth, p. 356) No entanto, a partir de 1960, “official
publications began to suggest that juche was a complete system of thought. It was the
ideological basis of a way of socialism more appropriate to North Korean conditions.
Juche emerged as a comprehensive ideology in North Korea in the early 1960s when the
Soviet Union reduced its aid to the regime, making it less secure.” (Seth, p. 356)
O juche era, portanto, originariamente uma adaptação do marxismo-leninismo às
condições específicas da Coreia do Norte, conforme o próprio Kim Il Sung o admitiu:
“O que é o juche no labor ideológico do Partido? O que é isto que estamos a fazer? Não
estamos a fazer uma revolução noutro país, mas sim precisamente a revolução coreana.
Precisamente esta revolução coreana constitui o juche para o labor ideológico do nosso
Partido. Por tal motivo, todo o labor ideológico, não se pode duvidar, deve estar
subordinado aos interesses da revolução coreana. Quando estudamos a história do
Partido Comunista da União Soviética, a da revolução chinesa, ou os princípios
universais do marxismo-leninismo, fazemo-lo sempre com o propósito de levar a cabo
acertadamente a nossa revolução.” (Sung, 1982, p. 417) Isto significa que o juche não
era marxismo-leninismo, era algo parecido.
Nas décadas de 60 e de 70 do séc. XX, Kim Il Sung foi incorporando, na
ideologia juche, elementos do maoísmo, do confucionismo, do nacionalismo e
tradicionalismo coreano bem como as suas próprias ideias idiossincráticas. Por este
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prisma, não deixa de ser verdadeira a asserção de que o juche é uma “‘original, brilliant
and revolutionary contribution to national and international thought’” (French, p. 30)
feita por Kim Il Sung, conforme o asseveram os documentos oficiais coreanos. Com
efeito, Kim Il Sung limitou-se a coligir, ao longo do tempo, os aspectos das ideologias
acima mencionadas que melhor serviam os seus interesses – aquilo que Kim Il Sung
chama adaptação à realidade coreana –, complementando-os com as suas próprias
ideias, o que ajuda a explicar as inerentes contradições; no fundo, Kim Il Sung vai-se
revogando a si próprio, eliminando aspectos da ideologia que, em determinada altura,
lhe foram retoricamente úteis mas que, posteriormente, não poderiam ser mantidos, por
serem contrários aos seus próprios interesses.
Os interesses de Kim Il Sung resumem-se à sua manutenção no poder, bem
como à perpetuação da sua família no topo da elite coreana. Por esta razão, a ideologia
juche, que, como vimos, era originariamente uma versão do marxismo-leninismo
“adaptada” à realidade coreana, está intimamente ligada com o culto de personalidade
desenvolvido à volta de Kim Il Sung e sua descendência. Conforme observa French, “in
the DPRK the underlying theme of Juche is that Kim Il-sung bequeathed a nation to the
people and that they should repay his benevolence with unquestioning loyalty and
devotion.” (French, p. 36) Poderá não ter sido assim ao início, na fase em que o próprio
Kim Il Sung admitia a influência marxista-leninista no conceito juche; contudo, com o
passar do tempo, o juche passou a ser visto, pelos norte-coreanos, como uma ideologia
original e totalmente independente de influências externas, idealizada por Kim Il Sung.
A propaganda em torno de Kim Il Sung, e a ideia de que ele era uma espécie de “Deus
na Terra” atingiu um grau de elevação sem paralelo com outros cultos de personalidade,
conforme comenta French: “Although other major personality cults in the socialist
world have been similar to that in North Korea, arguably none has been so total and
13
complete as in the DPRK, or has had such blatant theoretical justifications as those
enshrined in Juche.” (French, p. 48)
A ideologia juche foi desenvolvida também por Kim Jong Il, sucessor de Kim Il
Sung. No seu tratado intitulado On the Juche idea, as mesmas ideias retóricas
perfilhadas pelo seu pai são abordadas, não havendo nada de substancialmente novo a
registar em termos dogmáticos. O principal resultado desta obra, bem como de outras
intervenções suas, foi o de adquirir, conforme escreve French, o estatuto de “intérprete”
da filosofia juche: “As the son and heir of Juche’s creator it [juche] is essentially Kim’s
specialist subject. He has no background in the military, as a political theorist or as an
economist, yet as the interpreter of Juche he accrues power. As Kim Jong-il came to
assume greater power throughout the 1970s and 1980s and was designated the official
heir (in 1980), so his input into Juche’s development grew. Kim Jong-il is thought to
have been largely responsible for ending official references to Marxism–Leninism. He
also emphasised that the best way to implement Juche was for people to follow more
closely the guidance of the Party and the leader.” (French, p. 45) Os cidadãos, homens
“independentes”, deverão, por conseguinte, seguir impreterivelmente o líder, que
corporiza a independência da nação. Tal como o seu pai, Kim Jong Il continua a utilizar
a retórica nos seus discursos.
4. Conclusão
O culto de personalidade garantiu, até ao momento, a continuidade da dinastia Kim na
liderança da Coreia do Norte. Após a morte de Kim Il Sung, Kim Jong Il assumiu o
poder, em 1994; actualmente, o soberano é Kim Jong Un, terceiro filho de Kim Jong Il,
que assumiu o poder após a morte deste, em 2011.
14
A suposta infalibilidade dos líderes norte-coreanos é, paradoxalmente, o grande
óbice ao desenvolvimento da economia coreana e à resolução do marasmo em que o
país actualmente se encontra, não só em termos económicos mas também em termos das
suas relações internacionais.
A política económica centralizada, que é uma das ideias de Kim Il Sung e uma
das manifestações do juche, é desadequada para o desenvolvimento económico em
geral, sendo que a Coreia do Norte não é excepção a esta regra. Por muito que o Estado
tenha que exercer algum controlo sobre a economia, não pode regular a economia
integralmente. É totalmente desadequado, nos tempos modernos – tal como já o era há
50 anos atrás – que, conforme prescreve o artigo 20º da Constituição da Coreia do
Norte, “In the DPRK, the means of production are owned only by the State and social
cooperative organizations.” Não existe livre iniciativa económica privada, o que
acarreta uma miríade de consequências negativas: inexistência de investimento
estrangeiro; nível de exportações irrisório; empobrecimento da população, que se vê
impedida de obter meios alternativos de riqueza; a lista é infindável, e seria fútil
continuá-la. O ponto onde queremos chegar, no entanto, é o seguinte: a livre iniciativa
económica privada não é possibilitada, pelo Governo, não tanto por se recear que o
regime viesse a cair em consequência do aumento das condições de vida no país, mas
sim porque a mudança de política, nesta questão – bem como em qualquer outra –, seria
uma admissão implícita de que Kim Il Sung está errado, ou seja, que não seria um ser
humano infalível. Mudar de política económica abrindo, por exemplo, as portas da
Coreia do Norte ao comércio com o exterior, seria reconhecer que o país não pode
atingir independência económica total sem estabelecer um mínimo de relações
internacionais com outros Estados. Ao invés, Kim Il Sung, nos seus últimos anos de
vida, acompanhado por Kim Jong Il, preferem fazer uso do discurso retórico e culpar os
15
imperialistas capitalistas, bem como a falta de juche em alguns cidadãos,
nomeadamente os hostis e aqueles que se encontram no limbo – cerca de 25% para os
primeiros e 50% para os segundos, de acordo com French (French, p. 42) – pelas parcas
condições de vida no país.
A ideia juche, tida como salvadora e saudada como património cultural coreano
impede, paradoxalmente, o desenvolvimento do país, devido à sua estreita ligação com
a figura do Líder, que é venerado como um Deus, o que torna, efectivamente, o juche
numa religião. O juche não pode ser abolido porque tal seria reconhecer a falibilidade
do Presidente Eterno e dos seus herdeiros. Contudo, por ser desadequada para a era da
globalização, acaba por penalizar fortemente o povo coreano. Ao contrário do que
sucedeu na União Soviética e na China, que corrigiram as suas políticas socialistas e
comunistas, no respeitante à economia, conseguindo evitar o colapso que a Coreia do
Norte acabou por sofrer, a Coreia do Norte, na pessoa do seu líder, não se soube adaptar
aos tempos. A justificação para esta situação encontra-se precisamente no culto de
personalidade que acompanha a ideologia juche; na China e na União Soviética, por
exemplo, o culto de personalidade não se encontrava tão identificado com as ideologias
perfilhadas por Mao e Stalin, o que lhes permitiu adoptar as suas políticas aos eventos
contemporâneos – apesar de, em última instância, a União Soviética não ter evitado o
colapso. A situação, na Coreia do Norte, é diferente. A solução para o problema norte-
coreano implicaria retirar os seus ex-líderes do pedestal em que se encontram o que
levaria, necessariamente, à destituição de Kim Jong Un, algo que não é previsível que
aconteça por sua própria iniciativa.
16
REFERÊNCIAS
BUZO, Adrian, The Making of Modern Korea, Routlegde, Londres e Nova
Iorque, 2ª ed., 2007. (Buzo)
FRENCH, Paul, North Korea, the paranoid peninsula – A modern history, Zed
Books, Londres e Nova Iorque, 2ª ed., 2007. (French)
KIM IL SUNG, Obras, Ediciones en lenguas extranjeras, vol. 9, Pyongyang,
1982. (Sung, 1982)
(As traduções do castelhano para o português são da nossa responsabilidade.)
KIM IL SUNG, Obras, Ediciones en lenguas extranjeras, vol. 37, Pyongyang,
1991 (Sung, 1991)
(As traduções do castelhano para o português são da nossa responsabilidade.)
KIM IL SUNG, Sobre algunos problemas de la idea Zuche de nuestro Partido y
la política interior y exterior del Gobierno de la República – Respuestas a las
preguntas de los periodistas del diario japonés “Mainichi Shimbun” El 17 de
Septiembre de 1972, Ediciones en lenguas extranjeras, Pyongyang, 1972. (Sung, 1972)
(As traduções do castelhano para o português são da nossa responsabilidade.)
PLATÃO, Gorgias, in Plato - Complete Works, editado por John M. Cooper e
D.S. Hutchinson, Hackett Publishing Company, Indianápolis e Cambridge, 1997.
(Platão, Górgias)
(As traduções do inglês para o português são da nossa responsabilidade.)
17
SAID, Edward, Orientalism. Western conceptions of the Orient, Penguin Books,
Londres, 2ª reimp., 2003. (Said)
SETH, Michael J., A History of Korea – From antiquity to the present, Rowan &
Littlefield Publishers, Inc., Lanham, Boulder, Nova Iorque, Toronto e Plymouth, RU,
2011. (Seth)