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Pedro Tiago Ferreira A contradição base na ideologia Juche e o seu inerente culto de personalidade (2012) 1. Introdução O presente trabalho centra-se na análise de uma contradição de base presente na ideologia “juche” e no culto de personalidade em redor da pessoa do líder que é inerente a esta mesma ideologia. O tema juche é extremamente vasto, comportando um conjunto de valências cuja totalidade seria impossível abarcar num trabalho como este, razão pela qual optamos por centrar a nossa investigação nos temas acima mencionados. Não nos preocupamos em traçar, em grande detalhe, as origens do conceito, bastando-nos com uma breve referência, na secção 2, à primeira ocasião em que o mesmo foi utilizado por Kim Il Sung; na secção 3, mencionamos de forma breve a sua raiz marxista-leninista, bem como as outras correntes filosóficas que Kim Il Sung incorporou na sua ideologia. A análise do uso do termo “independência”, por parte de Kim Il Sung, para qualificar as massas, e a contradição que esse mesmo uso provoca no quadro do pensamento juche, ocupa grande parte da secção 2. A secção 3, por seu turno, é dedicada à vertente juche do culto de personalidade à volta, em primeira instância, do “Grande Líder” e, posteriormente, do “Querido Líder”, Kim Jong Il, bem como de Kim Jong Un, actual soberano. Na secção 4 oferecemos, em jeito de conclusão, um argumento que defende que o juche é parte do problema da situação económica que se vive na Coreia da Norte, e não parte da solução para livrar a Coreia dos males do

A Contradição Base Na Ideologia Juche e o Seu Inerente Culto de Personalidade

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Page 1: A Contradição Base Na Ideologia Juche e o Seu Inerente Culto de Personalidade

Pedro Tiago Ferreira

A contradição base na ideologia Juche e o seu

inerente culto de personalidade (2012)

1. Introdução

O presente trabalho centra-se na análise de uma contradição de base presente na

ideologia “juche” e no culto de personalidade em redor da pessoa do líder que é inerente

a esta mesma ideologia.

O tema juche é extremamente vasto, comportando um conjunto de valências cuja

totalidade seria impossível abarcar num trabalho como este, razão pela qual optamos

por centrar a nossa investigação nos temas acima mencionados. Não nos preocupamos

em traçar, em grande detalhe, as origens do conceito, bastando-nos com uma breve

referência, na secção 2, à primeira ocasião em que o mesmo foi utilizado por Kim Il

Sung; na secção 3, mencionamos de forma breve a sua raiz marxista-leninista, bem

como as outras correntes filosóficas que Kim Il Sung incorporou na sua ideologia.

A análise do uso do termo “independência”, por parte de Kim Il Sung, para

qualificar as massas, e a contradição que esse mesmo uso provoca no quadro do

pensamento juche, ocupa grande parte da secção 2. A secção 3, por seu turno, é

dedicada à vertente juche do culto de personalidade à volta, em primeira instância, do

“Grande Líder” e, posteriormente, do “Querido Líder”, Kim Jong Il, bem como de Kim

Jong Un, actual soberano. Na secção 4 oferecemos, em jeito de conclusão, um

argumento que defende que o juche é parte do problema da situação económica que se

vive na Coreia da Norte, e não parte da solução para livrar a Coreia dos males do

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imperialismo e do capitalismo, conforme Kim Il Sung e Kim Jong Il advogaram ao

longo das suas vidas. Utilizamos a questão da política económica centralizada para

ilustrar um problema endémico da ideologia juche, que pode ser resumido da seguinte

forma: dada a ligação entre o juche e a divinização da pessoa do líder, será impossível

mudar de política – económica, cultural, social, relações externas, etc. – sem

reconhecer, pelo menos de forma implícita, que Kim Il Sung e Kim Jong Il não eram

infalíveis, algo que o Governo norte-coreano não estará, pelo menos na actualidade,

disposto a fazer, o que contribuirá para a perpetuação do declínio norte-coreano.

2. As contradições da ideologia “juche”.

“Juche” é a designação da filosofia política criada e idealizada por Kim Il Sung,

Presidente Eterno da República Democrática Popular da Coreia (cf. preâmbulo da

Constituição). O termo é traduzido, por Adrian Buzo, para inglês por “self-reliance”.

(Buzo, p. 87) A ideia que o conceito transmite é, nas palavras do próprio Kim Il Sung, a

de “independência política, auto-sustentabilidade da economia e auto-defesa da defesa

nacional.” (Sung, 1972, p. 6)

O termo juche foi utilizado, pela primeira vez, por Kim Il Sung num discurso

efectuado a 28 de Dezembro de 1955, perante os trabalhadores de propaganda do

Partido dos Trabalhadores da Coreia. No entanto, os valores que o conceito juche

transmite vinham sendo advogados por Kim Il Sung desde os seus primeiros discursos,

datados de 1931, ainda nos seus tempos de guerrilha.

Segundo Kim Il Sung, “o que está na base da ideia juche é o facto de o homem

ser o mestre de todas as coisas e de decidir tudo. Refazer a natureza e a sociedade é um

trabalho feito pelas e para as pessoas. O homem é o que há de mais precioso e poderoso

no mundo. Todo o nosso trabalho é para as pessoas, sendo que o sucesso desse mesmo

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trabalho depende da forma como trabalhemos com elas.” (Sung, 1972, pp. 12 e 13)

Assim sendo, a ideia juche parece resumir-se, à primeira vista, à capacidade que o

homem tem em ser mestre do seu próprio destino, sendo dotado da capacidade de se

governar e de subsistir de forma independente. A independência é, aliás, um requisito

fundamental para que o homem possa existir enquanto tal: “O direito à independência

constitui a primeira forma de vida do homem como ser social. Quem careça deste

direito não poderá desfrutar de uma vida independente e criadora. Só quando se lhe

garante este direito é que o ser humano pode ocupar e desempenhar a posição e o papel

de dono na sociedade e levar uma vida humanamente digna.” (Sung, 1991, p. 100)

Contudo, o direito à independência, tido por Kim Il Sung como fundamental

para que o homem seja mestre do seu próprio destino, mestria essa que está na base da

ideia juche, deve ser exercido em prol do colectivo e não em benefício pessoal; por esta

mesma razão, Kim Il Sung considera que é importantíssimo investir na educação:

“Também na formação dos jovens há que dar prioridade à tarefa de os educar com a

ideia revolucionária. Por muitos conhecimentos e técnica que possuam, se não quiserem

trabalhar e não prestarem serviços ao Estado e à sociedade, para que precisam desses

conhecimentos e técnica?” (Sung, 1972, p. 16) Para além disso, há que incutir nos

jovens o “espírito patriótico socialista e a concepção revolucionária do mundo de servir

não para sua ambição pessoal, por fazer carreira e pela ganância do dinheiro, mas sim

para o seu povo e para a sua Pátria.” (Sung, 1972, pp. 16 e 17)

Ao relacionar a ideia de independência individual com a de servir o Estado, que

supostamente agiria em representação da sociedade, ou da colectividade, Kim Il Sung

entra em contradição; com efeito, se o homem é totalmente livre, se é “mestre de decidir

tudo”, por que razão deverá ser obrigado a prestar “serviços ao Estado e à sociedade”?

O papel criador e independente que Kim Il Sung atribui ao homem é incompatível com

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as ideias confucionistas de piedade filial e obediência ao soberano tal como estas são

incorporadas, adaptadas e amalgamadas na filosofia juche, visto que “North Korean

propaganda often used familiar terms”, referindo-se a Kim Il-Sung como “the parental

or fatherly leader of the people” (Seth, p. 360), com o resultado de que obedecer ao

soberano é, no esquema de pensamento da filosofia juche, um imperativo moral (e

jurídico) idêntico ao de obedecer aos pais, o que acaba por desvirtuar o pensamento de

Confúcio na medida em que o respeito ao soberano só seria devido se este fosse justo,

ao passo que somente o respeito aos pais seria verdadeiramente incondicional. No

entanto, se o homem for verdadeiramente independente e dono do seu destino, não pode

ser coagido a trabalhar em prol do Estado, descurando as suas ambições pessoais, ou a

mostrar afecto fanático pelo seu soberano. Quando o homem é verdadeiramente

independente, todos os seus comportamentos e escolhas são livres.

Poder-se-á arguir que a posição por nós manifestada é um caso de Orientalismo,

tal como este termo é definido por Edward Said, 1 ou seja, que nos estamos a deixar ser

influenciados por um concepção ocidental de independência. Com efeito, a

independência, no pensamento filosófico, político e jurídico do Ocidente é uma

manifestação do princípio da dignidade da pessoa humana, estando também

intimamente ligada a direitos fundamentais como, por exemplo, o direito à identidade

pessoal e ao desenvolvimento da personalidade. Sem embargo, para se poder qualificar

a nossa posição como um caso de Orientalismo seria necessário que o termo

“independência”, no Este Asiático em geral, e na Coreia do Norte em particular, tivesse

uma acepção bastante díspar em relação à que tem no Ocidente.

Não disputamos a noção de que a concepção de direitos fundamentais, tal como

é entendida no Ocidente, não encontra equivalência directa no Oriente. O que os

1 “The Orient is an integral part of European material civilization and culture. Orientalism expresses and

represents that part culturally and even ideologically as a mode of discourse with supporting institutions,

vocabulary, scholarship, imagery, doctrines, even colonial bureaucracies and colonial styles.” (Said, p. 2)

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orientais entenderão por “livre desenvolvimento da personalidade” não coincidirá,

decerto, com o pensamento ocidental, até porque os próprios ocidentais discordam,

entre si, acerca de qual o significado e aplicação concreta deste princípio. No entanto,

estamos em crer que “independência” se refere, tanto no Ocidente como no Oriente, à

possibilidade que é conferida ao ser humano de efectuar livremente as suas escolhas. O

que poderá divergir entre o pensamento ocidental e oriental serão os pressupostos

teóricos em que o conceito de “independência” se baseia e as consequências políticas e

jurídicas que advenham desses mesmos pressupostos, mas não a ideia em si de que o ser

humano “independente” é aquele que tem o privilégio de tomar decisões sem estar sob

coacção.

Cremos, todavia, que Kim Il Sung usa o termo “independência” de forma

retórica, isto é, quando fala de “independência” está-se a dirigir ao seu público da

mesma forma que, segundo Platão, os estadistas atenienses se dirigiam ao seu povo:

“Achas que os oradores falam sempre tendo em vista o que é melhor? Almejam sempre

tornar os cidadãos tão bons quanto possível através dos seus discursos? Ou estão

também decididos a gratificar os cidadãos, prejudicando o bem comum em favor do seu

próprio bem privado, tentando somente gratificar o povo sem pensar, de todo, se isto os

tornará melhores ou piores?” (Platão, Górgias, 503 d e, p. 847) Para Platão, a retórica é

uma forma de adulação, é uma espécie de discurso que tem como única finalidade

agradar a quem o ouve. Em nosso entender, é precisamente isto que Kim Il Sung faz ao

falar de independência, dado que o “Grande Líder” apenas e só diz aquilo que ele sabe

que os seus ouvintes, as massas populares, gostam de ouvir, com o intuito de ganhar

uma vantagem para si mesmo, que seria a de desenvolver o culto de personalidade à

volta da sua pessoa de forma a manter-se eternamente no poder.

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Na realidade, o termo “independência”, na boca de Kim Il Sung, é um conceito

vazio. Conforme defendemos supra, não existe um conceito oriental próprio de

independência que colida com o conceito ocidental de independência; se tal existisse,

estaríamos perante um caso de Orientalismo. Ao invés, o que sucede é que, quando Kim

Il Sung proclama a independência do homem como estando na base da ideia juche, o

que ele está a fazer é retórica, é dizer às massas o que estas querem ouvir, aquilo que

lhes agrada, e que convém ao próprio Kim Il Sung, independentemente de ser o melhor

para elas, para o Estado ou de ser verdade.

Para ocultar esta contradição intrínseca ao seu pensamento, Kim Il Sung delimita

o escopo da “independência”: “Consideramos que a questão central na educação é a

implementação dos princípios da pedagogia socialista. O princípio básico da pedagogia

socialista encontra-se na formação de pessoas que sejam trabalhadores revolucionários

fiáveis equipados com a ideologia, o conhecimento e o físico forte que lhes permita

tomar parte na revolução e construção enquanto mestres.” (Sung, 1972, p. 13) A

ideologia a que Kim Il Sung se refere é, claro, a ideia juche: “A ideia juche é a única

ideologia directora do Governo da República. Só quando se aplique estritamente esta

doutrina em todas as suas actividades, tomando-a como invariável guia directora,

poderá o Poder da República cumprir de modo satisfatório a sua missão.” (Sung, 1991,

p. 104) De modo a que o Governo cumpra este desiderato, é necessário “transformar de

modo revolucionário a consciência ideológica destas [das pessoas]. A consciência

ideológica das pessoas determina todas as suas actividades. Ainda que alguém tenha boa

saúde, enquanto for ideologicamente atrasado e moralmente relaxado, não será mais do

que um inválido espiritual totalmente inútil para a nossa sociedade. É por isso que o

nosso Partido enfoca sempre a sua atenção primordial em transformar de modo

revolucionário a ideologia das pessoas.” (Sung, 1972, p. 15)

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Deste modo, o homem só poderá ser “independente” dentro do quadro

proporcionado pela ideologia juche. A “função criadora” que Kim Il Sung atribui ao

homem, enquanto ser social, “radica na organização e na unidade”, visto que “o Poder

Popular é o organizador da capacidade criadora das massas populares trabalhadoras.

(…) Se não estiveram unidas, não são de facto uma existência criadora nem podem

exercitar grande força. Só quando se unam e cooperem podem constituir entes mais

poderosos capazes de transformar e renovar o mundo.” (Sung, 1991, pp. 100 e 101) A

conclusão a retirar destas ideias é a de que o homem, individualmente, não tem

capacidade para pôr em prática a sua força criadora; por outro lado, essa mesma força

criadora deve ser exercitada sempre em prol do colectivo. Se for exercitada em nome

individual, o homem transformar-se-á num parasita, visto que a sua utilidade, para a

colectividade, é nula. Por outro lado, Kim Il Sung define o Poder Popular como “uma

arma política que assegura às massas do povo trabalhador uma vida independente e

criadora.” (Sung, 1991, p. 99) É manifesto que “independente” e “criador” são

vocábulos retóricos, utilizados para adular as massas e conferir-lhes a ilusão de que

controlam os seus destinos individuais e, por extensão, o do seu país. Na verdade, o que

sucede é que o homem, o cidadão norte-coreano, não tem independência porque se

espera que todos os seus actos se conformem aos princípios da ideologia juche, e que a

sua “força criadora” seja exercitada em benefício do colectivo, e nunca em benefício

individual. Sendo verdade que “a consciência ideológica das pessoas determina todas as

suas actividades”, então o facto de só existir uma única ideologia elimina a

possibilidade de haver uma escolha livre – elimina, na realidade, a possibilidade de

haver uma escolha –, visto que a existência de uma ideologia única formata o modo de

pensar de todas as pessoas na medida em que não lhes é dada a possibilidade de estudar

outras ideologias, o que acarreta necessariamente a inexistência de independência. Neste

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quadro de ideias, o homem é “independente” mas, dentro da sua “independência”, só lhe

é permitido pensar de uma forma consentânea com a ideologia juche, o que o torna

“juche-dependente”.

A filosofia de Kim Il Sung enferma, assim, de uma contradição insanável na sua

base, na medida em que é logicamente impossível coagir toda a população a pensar de

forma uniformizada, colocando sempre o benefício do Estado em primeiro lugar, em

detrimento do conforto pessoal, e advogar simultaneamente que todas as pessoas são

independentes. O pensamento livre e independente é antitético de uma filosofia política

que exige coercivamente uma única forma de pensar a todos os cidadãos. Não estamos,

obviamente, a argumentar que é possível, a um indivíduo, pensar de forma

ideologicamente neutra; todas as nossas ideias surgem em resultado de convicções

morais, políticas, filosóficas, religiosas e sociais. Um ateu, por exemplo, não é

religiosamente neutro, é alguém que nega a existência de Deus; esta forma de pensar é,

em si mesma, religiosa, isto é, assume uma posição religiosa, não assume uma posição

exterior de neutralidade face ao fenómeno da religião. Assim sendo, quando se fala de

política, todas as opiniões serão ou comunistas, ou socialistas, ou republicanas, ou nazis,

ou fascistas, ou monárquicas, ou democráticas, etc. Nem mesmo quem defenda a

anarquia está a ser politicamente neutro, visto que a anarquia mais não é do que a

negação da existência de Estado e de poder organizado e, por isso, não é uma posição

politicamente neutra. O juche não poderia, por conseguinte, ser uma doutrina

politicamente neutra, visto que nenhuma doutrina política pode ser neutra. É uma

doutrina marcadamente socialista e, desse facto, não emana qualquer contradição. A

contradição surge, isso sim, a partir da noção que Kim Il Sung pretende disseminar de

que as pessoas que só conhecem esta ideologia, que só podem conhecer esta ideologia –

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o povo norte-coreano – são independentes e criadoras, ou seja, que conseguem pensar

pela sua própria cabeça e têm o seu próprio destino nas mãos.

Kim Il Sung passa por cima desta contradição, não procurando sequer resolver

este problema através de qualquer argumento, ao pôr em pé de igualdade a noção de

“independência do cidadão” com a de “independência da nação”: “De forma a tornar-se

mestre do seu próprio destino, uma nação tem que ter um governo independente e que

garantir firmemente a sua independência política. É por isso que a ideia juche deverá,

em primeiro lugar, ser corporizada como o princípio da independência na política. De

forma a garantir uma independência sólida na política, uma pessoa tem que ter a sua

própria ideia condutora e a capacidade para formular todas as suas políticas tendo em

vista somente os interesses do seu povo e em conformidade com as condições

específicas do seu país, segundo a sua própria ponderação. O governo que age sob a

pressão ou instruções de outrem não pode ser genuinamente apelidado de governo do

povo, responsável pelo destino do povo. Um país com este tipo de governo não pode ser

visto como um estado independente e soberano.” (Sung, 1972, p. 8) A “independência”

da nação manifesta-se na “independência” do Governo e, implicitamente, na ponderação

que é efectuada pelo seu líder. Kim Il Sung pretende legitimar o seu poder, a sua

“independência” – ou, diríamos nós, o seu poder absoluto – radicando-a na

“independência” do povo; sem embargo, este salto que é dado a partir da

“independência” do cidadão para a da nação é ilógico, carecendo de qualquer

fundamentação por parte de Kim Il Sung que, ao advogar que o juche configura a única

forma de pensamento correcta e que, por isso mesmo, o mero conhecimento de

quaisquer outras ideologias está interdito aos cidadãos, de forma a que estes não possam

sequer pensar em subverter a ordem social perfeita que, no quadro de pensamento juche,

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só o juche consegue proporcionar, coarcta toda e qualquer possibilidade de efectiva

independência.

3. O culto de personalidade

A linha de pensamento juche, ainda que autoritária, não deixa de ser coerente consigo

própria – na medida em que procura vincar a sua supremacia e defender-se de ataques

provindos de outros quadrantes ideológicos, o que é perfeitamente legítimo – até ao

momento em que, para adular as pessoas, Kim Il Sung coloca a ideia de independência

individual na base do juche e a par da necessidade de colocar os interesses colectivos

em primeiro lugar. Estas duas ideias são antinómicas e criam uma contradição

insanável, cuja motivação se encontra no facto de Kim Il Sung querer manter o poder

para si próprio e para a sua família, independentemente de isso ser, efectivamente, o

melhor para a sua nação. De forma a conseguir este objectivo, vai dizendo aquilo que

ele julga que as pessoas querem ouvir e que, dentro do seu esquema de pensamento,

impedirá – ou minimizará a possibilidade de – qualquer sublevação ou ataque ao

regime. De forma a conseguir a sua independência enquanto líder, Kim Il Sung faz um

uso retórico de “independência” do indivíduo de forma a legitimar a sua posição de

soberano. Consideramos, no entanto, pelo exposto na secção 2, que o “Grande Líder”

não consegue evitar contradizer-se; esta contradição que temos vindo a analisar, e que

se encontra na base da própria filosofia, é apenas uma das muitas contradições que se

manifestam no pensamento de Kim Il Sung. Segundo Paul French, o juche “was partly

an adaptation of the ‘universal truth’ of Marxism–Leninism to a Korea that for centuries

had looked ostensibly to China as its major frame of reference, but it also represented

Kim Il-sung’s bid to be recognised as a prominent – indeed, the pre-eminent –

ideological figure in the communist world.” (French, p. 31) Com o passar do tempo, o

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regime foi inculcando a ideia de que o juche é uma doutrina totalmente criada pela

família Kim: “Officially Juche theory is a creation of Kim Il-sung and his son Kim

Jong-il. They are the fathers of Juche, according to the official record, which states that

Juche is a ‘gift bestowed by the Kims to North Korea’s people’.” (French, p. 43)

Seguindo cronologicamente as instâncias de utilização do termo juche por Kim Il Sung,

o juche “at first meant a creative adaptation of Marxism-Leninism without slavishly

imitating Moscow or Beijing.” (Seth, p. 356) No entanto, a partir de 1960, “official

publications began to suggest that juche was a complete system of thought. It was the

ideological basis of a way of socialism more appropriate to North Korean conditions.

Juche emerged as a comprehensive ideology in North Korea in the early 1960s when the

Soviet Union reduced its aid to the regime, making it less secure.” (Seth, p. 356)

O juche era, portanto, originariamente uma adaptação do marxismo-leninismo às

condições específicas da Coreia do Norte, conforme o próprio Kim Il Sung o admitiu:

“O que é o juche no labor ideológico do Partido? O que é isto que estamos a fazer? Não

estamos a fazer uma revolução noutro país, mas sim precisamente a revolução coreana.

Precisamente esta revolução coreana constitui o juche para o labor ideológico do nosso

Partido. Por tal motivo, todo o labor ideológico, não se pode duvidar, deve estar

subordinado aos interesses da revolução coreana. Quando estudamos a história do

Partido Comunista da União Soviética, a da revolução chinesa, ou os princípios

universais do marxismo-leninismo, fazemo-lo sempre com o propósito de levar a cabo

acertadamente a nossa revolução.” (Sung, 1982, p. 417) Isto significa que o juche não

era marxismo-leninismo, era algo parecido.

Nas décadas de 60 e de 70 do séc. XX, Kim Il Sung foi incorporando, na

ideologia juche, elementos do maoísmo, do confucionismo, do nacionalismo e

tradicionalismo coreano bem como as suas próprias ideias idiossincráticas. Por este

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prisma, não deixa de ser verdadeira a asserção de que o juche é uma “‘original, brilliant

and revolutionary contribution to national and international thought’” (French, p. 30)

feita por Kim Il Sung, conforme o asseveram os documentos oficiais coreanos. Com

efeito, Kim Il Sung limitou-se a coligir, ao longo do tempo, os aspectos das ideologias

acima mencionadas que melhor serviam os seus interesses – aquilo que Kim Il Sung

chama adaptação à realidade coreana –, complementando-os com as suas próprias

ideias, o que ajuda a explicar as inerentes contradições; no fundo, Kim Il Sung vai-se

revogando a si próprio, eliminando aspectos da ideologia que, em determinada altura,

lhe foram retoricamente úteis mas que, posteriormente, não poderiam ser mantidos, por

serem contrários aos seus próprios interesses.

Os interesses de Kim Il Sung resumem-se à sua manutenção no poder, bem

como à perpetuação da sua família no topo da elite coreana. Por esta razão, a ideologia

juche, que, como vimos, era originariamente uma versão do marxismo-leninismo

“adaptada” à realidade coreana, está intimamente ligada com o culto de personalidade

desenvolvido à volta de Kim Il Sung e sua descendência. Conforme observa French, “in

the DPRK the underlying theme of Juche is that Kim Il-sung bequeathed a nation to the

people and that they should repay his benevolence with unquestioning loyalty and

devotion.” (French, p. 36) Poderá não ter sido assim ao início, na fase em que o próprio

Kim Il Sung admitia a influência marxista-leninista no conceito juche; contudo, com o

passar do tempo, o juche passou a ser visto, pelos norte-coreanos, como uma ideologia

original e totalmente independente de influências externas, idealizada por Kim Il Sung.

A propaganda em torno de Kim Il Sung, e a ideia de que ele era uma espécie de “Deus

na Terra” atingiu um grau de elevação sem paralelo com outros cultos de personalidade,

conforme comenta French: “Although other major personality cults in the socialist

world have been similar to that in North Korea, arguably none has been so total and

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complete as in the DPRK, or has had such blatant theoretical justifications as those

enshrined in Juche.” (French, p. 48)

A ideologia juche foi desenvolvida também por Kim Jong Il, sucessor de Kim Il

Sung. No seu tratado intitulado On the Juche idea, as mesmas ideias retóricas

perfilhadas pelo seu pai são abordadas, não havendo nada de substancialmente novo a

registar em termos dogmáticos. O principal resultado desta obra, bem como de outras

intervenções suas, foi o de adquirir, conforme escreve French, o estatuto de “intérprete”

da filosofia juche: “As the son and heir of Juche’s creator it [juche] is essentially Kim’s

specialist subject. He has no background in the military, as a political theorist or as an

economist, yet as the interpreter of Juche he accrues power. As Kim Jong-il came to

assume greater power throughout the 1970s and 1980s and was designated the official

heir (in 1980), so his input into Juche’s development grew. Kim Jong-il is thought to

have been largely responsible for ending official references to Marxism–Leninism. He

also emphasised that the best way to implement Juche was for people to follow more

closely the guidance of the Party and the leader.” (French, p. 45) Os cidadãos, homens

“independentes”, deverão, por conseguinte, seguir impreterivelmente o líder, que

corporiza a independência da nação. Tal como o seu pai, Kim Jong Il continua a utilizar

a retórica nos seus discursos.

4. Conclusão

O culto de personalidade garantiu, até ao momento, a continuidade da dinastia Kim na

liderança da Coreia do Norte. Após a morte de Kim Il Sung, Kim Jong Il assumiu o

poder, em 1994; actualmente, o soberano é Kim Jong Un, terceiro filho de Kim Jong Il,

que assumiu o poder após a morte deste, em 2011.

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A suposta infalibilidade dos líderes norte-coreanos é, paradoxalmente, o grande

óbice ao desenvolvimento da economia coreana e à resolução do marasmo em que o

país actualmente se encontra, não só em termos económicos mas também em termos das

suas relações internacionais.

A política económica centralizada, que é uma das ideias de Kim Il Sung e uma

das manifestações do juche, é desadequada para o desenvolvimento económico em

geral, sendo que a Coreia do Norte não é excepção a esta regra. Por muito que o Estado

tenha que exercer algum controlo sobre a economia, não pode regular a economia

integralmente. É totalmente desadequado, nos tempos modernos – tal como já o era há

50 anos atrás – que, conforme prescreve o artigo 20º da Constituição da Coreia do

Norte, “In the DPRK, the means of production are owned only by the State and social

cooperative organizations.” Não existe livre iniciativa económica privada, o que

acarreta uma miríade de consequências negativas: inexistência de investimento

estrangeiro; nível de exportações irrisório; empobrecimento da população, que se vê

impedida de obter meios alternativos de riqueza; a lista é infindável, e seria fútil

continuá-la. O ponto onde queremos chegar, no entanto, é o seguinte: a livre iniciativa

económica privada não é possibilitada, pelo Governo, não tanto por se recear que o

regime viesse a cair em consequência do aumento das condições de vida no país, mas

sim porque a mudança de política, nesta questão – bem como em qualquer outra –, seria

uma admissão implícita de que Kim Il Sung está errado, ou seja, que não seria um ser

humano infalível. Mudar de política económica abrindo, por exemplo, as portas da

Coreia do Norte ao comércio com o exterior, seria reconhecer que o país não pode

atingir independência económica total sem estabelecer um mínimo de relações

internacionais com outros Estados. Ao invés, Kim Il Sung, nos seus últimos anos de

vida, acompanhado por Kim Jong Il, preferem fazer uso do discurso retórico e culpar os

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imperialistas capitalistas, bem como a falta de juche em alguns cidadãos,

nomeadamente os hostis e aqueles que se encontram no limbo – cerca de 25% para os

primeiros e 50% para os segundos, de acordo com French (French, p. 42) – pelas parcas

condições de vida no país.

A ideia juche, tida como salvadora e saudada como património cultural coreano

impede, paradoxalmente, o desenvolvimento do país, devido à sua estreita ligação com

a figura do Líder, que é venerado como um Deus, o que torna, efectivamente, o juche

numa religião. O juche não pode ser abolido porque tal seria reconhecer a falibilidade

do Presidente Eterno e dos seus herdeiros. Contudo, por ser desadequada para a era da

globalização, acaba por penalizar fortemente o povo coreano. Ao contrário do que

sucedeu na União Soviética e na China, que corrigiram as suas políticas socialistas e

comunistas, no respeitante à economia, conseguindo evitar o colapso que a Coreia do

Norte acabou por sofrer, a Coreia do Norte, na pessoa do seu líder, não se soube adaptar

aos tempos. A justificação para esta situação encontra-se precisamente no culto de

personalidade que acompanha a ideologia juche; na China e na União Soviética, por

exemplo, o culto de personalidade não se encontrava tão identificado com as ideologias

perfilhadas por Mao e Stalin, o que lhes permitiu adoptar as suas políticas aos eventos

contemporâneos – apesar de, em última instância, a União Soviética não ter evitado o

colapso. A situação, na Coreia do Norte, é diferente. A solução para o problema norte-

coreano implicaria retirar os seus ex-líderes do pedestal em que se encontram o que

levaria, necessariamente, à destituição de Kim Jong Un, algo que não é previsível que

aconteça por sua própria iniciativa.

Page 16: A Contradição Base Na Ideologia Juche e o Seu Inerente Culto de Personalidade

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REFERÊNCIAS

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(As traduções do castelhano para o português são da nossa responsabilidade.)

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(As traduções do castelhano para o português são da nossa responsabilidade.)

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preguntas de los periodistas del diario japonés “Mainichi Shimbun” El 17 de

Septiembre de 1972, Ediciones en lenguas extranjeras, Pyongyang, 1972. (Sung, 1972)

(As traduções do castelhano para o português são da nossa responsabilidade.)

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SETH, Michael J., A History of Korea – From antiquity to the present, Rowan &

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