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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 2. 24 A CONTRIBUIÇÃO DOS ESCRITOS DE MULHERES MEDIEVAIS PARA UM PENSAMENTO DECOLONIAL SOBRE IDADE MÉDIA THE CONTRIBUTION OF MEDIEVAL WOMEN'S WRITINGS TO A DECOLONIAL THOUGHT ABOUT THE MIDDLE AGES Luciana Calado Deplagne Universidade Federal da Paraíba [email protected] Resumo: Entre medievalistas, o emergente interesse nos estudos de gênero vem demonstrando nas últimas décadas a imprescindível utilização de gênero como categoria de análise histórica (Scott) do longo período designado Idade Média. O presente artigo se propõe a problematizar a retórica colonial/da modernidade acerca do período medieval, a partir de novos conhecimentos, produzidos nas margens da historiografia tradicional, que põem em evidência a contribuição intelectual das mulheres em vários domínios do conhecimento. A reflexão será fundamentada pela contribuição de pesquisadore/as dos estudos de gênero, da crítica feminista (Troch, Telles, Scott, Schmidt, bell hooks, Lemaire) e da história das mulheres (Wemple, Rivera-Garretas, Cirlot, Brochado), em diálogo com o pensamento decolonial (Segato, Mignolo, Quijano, Walsh). Palavras-chave: Gênero; Decolonialidade; Autoria Feminina; Historiografia Medieval Abstract: Abstract: Among medievalists, the emerging interest in gender studies has demonstrated in the last decades the essential use of gender as a category of historical analysis (Scott) of the long period designated Middle Ages. This article aims to problematize the colonial / modern rhetoric about the medieval period, based on new knowledge, produced on the margins of traditional historiography, which highlight the intellectual contribution of women in various fields of knowledge. The reflection will be based on the contribution of researchers from gender studies, feminist criticism (Troch, Telles, Scott, Schmidt, bell hooks, Lemaire) and the history of women (Wemple, Rivera-Garretas, Cirlot, Brochado), in dialogue with decolonial thinking (Segato, Mignolo, Quijano, Walsh). Keyword: Gender; Decoloniality; Female Authorship; Medieval Historiography Considerações introdutórias A reflexão que será desenvolvida neste artigo traz como argumento a necessidade de inclusão de obras de autoria feminina para a efetiva discussão sobre as relações de gênero na Idade Média. Conjuntamente à reflexão, serão trazidos excertos de escritos de mulheres da Alta e da Baixa Idade Média a fim de evidenciar a diversidade das temáticas abordadas e o teor transgressor neles presente. Para tanto, como aponta o título do texto, utilizo o conceito decolonial, criado por

A CONTRIBUIÇÃO DOS ESCRITOS DE MULHERES IDADE MÉDIA

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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 2.

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A CONTRIBUIÇÃO DOS ESCRITOS DE MULHERES MEDIEVAIS PARA UM PENSAMENTO DECOLONIAL SOBRE

IDADE MÉDIA

THE CONTRIBUTION OF MEDIEVAL WOMEN'S WRITINGS TO A DECOLONIAL THOUGHT ABOUT THE MIDDLE AGES

Luciana Calado Deplagne

Universidade Federal da Paraíba [email protected]

Resumo: Entre medievalistas, o emergente interesse nos estudos de gênero vem demonstrando nas últimas décadas a imprescindível utilização de gênero como categoria de análise histórica (Scott) do longo período designado Idade Média. O presente artigo se propõe a problematizar a retórica colonial/da modernidade acerca do período medieval, a partir de novos conhecimentos, produzidos nas margens da historiografia tradicional, que põem em evidência a contribuição intelectual das mulheres em vários domínios do conhecimento. A reflexão será fundamentada pela contribuição de pesquisadore/as dos estudos de gênero, da crítica feminista (Troch, Telles, Scott, Schmidt, bell hooks, Lemaire) e da história das mulheres (Wemple, Rivera-Garretas, Cirlot, Brochado), em diálogo com o pensamento decolonial (Segato, Mignolo, Quijano, Walsh). Palavras-chave: Gênero; Decolonialidade; Autoria Feminina; Historiografia Medieval

Abstract: Abstract: Among medievalists, the emerging interest in gender studies has demonstrated in the last decades the essential use of gender as a category of historical analysis (Scott) of the long period designated Middle Ages. This article aims to problematize the colonial / modern rhetoric about the medieval period, based on new knowledge, produced on the margins of traditional historiography, which highlight the intellectual contribution of women in various fields of knowledge. The reflection will be based on the contribution of researchers from gender studies, feminist criticism (Troch, Telles, Scott, Schmidt, bell hooks, Lemaire) and the history of women (Wemple, Rivera-Garretas, Cirlot, Brochado), in dialogue with decolonial thinking (Segato, Mignolo, Quijano, Walsh). Keyword: Gender; Decoloniality; Female Authorship; Medieval Historiography

Considerações introdutórias

A reflexão que será desenvolvida neste artigo traz como argumento a

necessidade de inclusão de obras de autoria feminina para a efetiva discussão sobre

as relações de gênero na Idade Média. Conjuntamente à reflexão, serão trazidos

excertos de escritos de mulheres da Alta e da Baixa Idade Média a fim de evidenciar

a diversidade das temáticas abordadas e o teor transgressor neles presente. Para

tanto, como aponta o título do texto, utilizo o conceito decolonial, criado por

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pensadores latino-americanos do grupo Modernidade/Colonialidade com a

proposta de se desfazer de certos estereótipos sobre a Idade Média, criados pela

visão moderna/colonial1 na Europa renascentista e reforçada no Iluminismo.

A ideia de atraso - de bárbarie, de trevas - para se referir ao período histórico

precedente à Era denominada Moderna dominou a perspectiva eurocêntrica de

produção de conhecimento em um âmbito global. A esse propósito, o pensador

peruano Quijano, elaborador do conceito de colonialidade do poder, assinala a

intensificação, a partir do século XVI, de um dualismo hierárquico

(modernidade/Idade das trevas, homem/mulher, povos civilizados/povos

selvagens etc.) a afetar sem medida as relações de dominação no âmbito econômico,

racial e de gênero: “Sem considerar a experiência inteira do colonialismo e da

colonialidade, essa marca intelectual seria dificilmente explicável, bem como a

duradoura hegemonia mundial do eurocentrismo.”2

A partir do conceito “colonialidade do poder”, foram derivadas categorias

conceituais em articulação com outras dimensões relacionadas a assimetrias de

poder: colonialidade do saber, do ser, da natureza, do gênero. O pensamento

decolonial implica, pois, no questionamento do processo colonizador aparente

nessas dimensões e a intervenção do/a pesquisador/a no sentido de desarticular

ações coloniais na leitura que se faz da realidade. A opção decolonial sintetiza-se bem

na reflexão da pedagoga Catherine Walsh, que a entende como uma força política,

epistemológica e pedagógica a qual

faz referência às possibilidades de um pensamento crítico a partir dos subalternizados pela modernidade europeia capitalista e um projeto teórico voltado para o repensamento crítico e transdisciplinar, em contraposição às tendências acadêmicas dominantes de perspectiva eurocêntrica de construção do conhecimento.3

1 O uso do par modernidade/colinalidade nos estudos decoloniais visa evidenciar a indissociável constituição dos dois termos, na medida em que a colonialidade se revelou o lado obscuro da modernidade. 2 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: ____. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivaslatino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005, p. 129. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf>. Consulta em: 05 jul. 2019. 3 WALSH, C., OLIVEIRA, L. F., & CANDAU, V. M. (2018). Colonialidade e pedagogia decolonial: Para pensar uma educação outra. Arquivos Analíticos de Políticas educativas, v. 26, n. 83, p. 3.

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Para a teórica equatoriana, sua proposta de suprimir o “s” do termo

descolonial corresponde a uma marca de distinção do significado do “des” em

castelhano, português, compreendido como desconstruir, desfazer, reverter o

colonial, e propor a construção de um novo projeto a partir dos efeitos e resultados

da colonialidade.

Con este juego lingüístico, intento poner en evidencia que no existe un estado nulo de la colonialidad, sino posturas, posicionamientos, horizontes y proyectos de resistir, transgredir, intervenir, in-surgir, crear e incidir. Lo decolonial denota, entonces, un camino de lucha continuo en el cual se puede identificar, visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y construcciones alter-(n)ativas.4

Ao adotar neste artigo o projeto decolonial como pressuposto sustentador da

minha análise sobre as relações de gênero no período medieval, busco questionar a

base da historiografia nas várias áreas do conhecimento, que por trás de um

discurso da Razão, e da universalidade, impôs uma narrativa única sobre as relações

entre homens e mulheres na Idade Média. É importante pensar com Le Goff5 que

“não há realidade histórica acabada, que entregaria por si própria ao historiador”,

assim, o pesquisador, a pesquisadora, “diante da imensa e confusa realidade faz sua

opção” e constrói sua explicação do passado (LE GOFF, 2005: 42). Nessa perspectiva,

interessa saber quem produziu o conhecimento que sabemos sobre o período

medieval? Quais foram as fontes? Por que determinadas fontes foram silenciadas? E

por fim: A historiografia medieval tem gênero?6

A fim de responder às formulações acima levantadas, farei uma exposição em

duas partes. Na primeira, proponho uma breve reflexão em torno de questões

conceituais e críticas que fundamentam e norteiam minha linha de pensamento. Na

segunda parte, serão apresentados testemunhos de relações cooperativas e de

amizade entre homens e mulheres no período medieval, bem como o papel de

4 WALSH, Catherine (Ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2013. p.23. 5 Le Goff Jaques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 42. 6 Refiro-me aqui ao questionamento posto pela crítica feminista Rita Terezinha Schmidt acerca da História das Literaturas Nacionais. SCHMIDTI, R. “A história da literatura tem gênero? Anotações sobre o tempo (in)acabado de um projeto”. Descentramentos/convergências. Ensaios de crítica feminista. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017. p. 247-262.

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relevância desempenhado por algumas obras escritas por mulheres em vários

domínios do conhecimento, na busca de ilustrar minha hipótese acerca da

importância de se considerar obras de autoria feminina para uma efetiva revisão

decolonizadora da era medieval.

A fim de responder às formulações acima levantadas, farei uma exposição em

duas partes. Na primeira, proponho uma breve reflexão em torno de questões

conceituais e críticas que fundamentam e norteiam minha linha de pensamento. Na

segunda parte, serão apresentados testemunhos de relações cooperativas e de

amizade entre homens e mulheres no período medieval, bem como o papel de

relevância desempenhado por algumas obras escritas por mulheres em vários

domínios do conhecimento, na busca de ilustrar minha hipótese acerca da

importância de se considerar obras de autoria feminina para uma efetiva revisão

decolonizadora da era medieval.

A historiografia sobre Idade Média tem gênero?

Elaborar esse questionamento é fundamental para se pensar o lugar de fala e

a visão de mundo que estão imbricados nas narrativas construídas sobre a Idade

Média, elaboradas em vários campos do conhecimento.

Não se pode desconsiderar que a lógica binária, tão enfaticamente explorada

na modernidade, não nos deixa, muitas vezes, enxergar bem outras formas de

interação entre homens e mulheres fora da ordem de relações hierárquicas de

poder, de opressão e submissão. Se o avanço dos Estudos de gênero, da História das

mulheres, da crítica feminista nas últimas décadas foi capaz de resgatar algumas

obras medievais que estiveram à margem da Historiografia tradicional, o desafio

atual da/o estudiosa/o da Idade Média é de retirar as lentes escuras que continuam

refletindo a visão do medievo dentro dessa lógica binária de opressão/sujeição ao

se tratar das relações de gênero. Na formulação da antropóloga Rita Segato,7 as

relações de gênero, embora patriarcais no período que antecede o colonialismo

7 SEGATO, Rita. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. e-cadernos CES. Coimbra: Editora Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, [Online], 18 | 2012. p. 203 Consultado em: 30 jun. 2019.

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ocidental, poderiam ser identificadas como “patriarcado de baixa intensidade”,

como o exposto a seguir:

No mundo da modernidade não há dualidade, há binarismo. Enquanto na dualidade a relação é de complementaridade, a relação binária é suplementar, um termo suplementa o outro, e não o complementa. Quando um desses termos se torna “universal”, quer dizer, de representatividade geral, o que era hierarquia se transforma em abismo, e o segundo termo se converte em resto e resíduo: essa é a estrutura binária, diferente da dual.

De fato, ao observar algumas experiências entre homens e mulheres em

determinados períodos do medievo, é possível perceber que nem sempre o lugar da

mulher foi apenas de submissão e apagamento como se é de costume afirmar-se. Se

é inegável que as assimetrias de gêneros com relações de opressão são bem visíveis

nas sociedades patriarcais, seja na Idade Média, seja nos demais períodos históricos,

alguns estudos revelam que a nossa civilização nem sempre foi regida pelo

patriarcado.

Os estudos sobre o matriarcado - iniciados no final do século XIX, com a obra

Das Mutterrecht, de Bachofen - vêm ganhando novo impulso nas últimas décadas

com pesquisas sobre sociedades matriarcais (matricentradas, matrilineares,

matrifocadas) apresentando bases científicas, definições conceituais e

caracterização a partir de pesquisas em diversas comunidades atuais. Uma das

maiores especialistas na área é a pesquisadora alemã Goettner-Abendroth.8 Para a

teórica:

Matriarquias não são apenas uma reversão do patriarcado, mulheres governando homens - como a má interpretação usual poderia indicar. Matriarquias são sociedades matricentradas, baseadas em valores da maternagem: cuidar, nutrir, maternar, o que seria desempenhado por todos e todas: as mães e aqueles/aquelas que não são mães, por mulheres e homens. [...][As sociedades matriarcais] são, em princípio, orientadas para as necessidades. Seus preceitos visam atender às necessidades de todos e todas com o maior proveito. Assim, nas matriarquias, o maternar - que se origina como fato biológico - se transforma em modelo cultural. Esse modelo é muito mais apropriado

8 Sobre as pesquisas atuais sobre matriarcado, algumas indicações: EISLER, Reiane. O Cálice e a Espada. Rio de Janeiro: Imago, 1987.; site da teórica Goettner-Abendroth. Disponível em: <https://www.goettner-abendroth.de/en/matriarchy/matriarchal-studies/>.

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à condição humana do que a maneira como as patriarquias conceituam a maternidade e a usam para transformar as mulheres, e especialmente as mães, em escravas.9

Também Rose Marie Muraro, em um instigante ensaio para a introdução do

livro O martelo das feiticeiras, faz um percurso das relações de gêneros desde o

início de nossa civilização, buscando compreender fases distintas de maior ou

menor agenciamento das mulheres ao longo dos tempos. Segundo Muraro,10

Enquanto as sociedades eram de coleta, as mulheres mantinham uma espécie de poder, mas diferente das culturas patriarcais. Essas culturas primitivas tinham de ser cooperativas, para poder sobreviver em condições hostis, e portanto não havia coerção ou centralização, mas rodízio de lideranças, e as relações entre homens e mulheres eram mais fluidas do que viriam a ser nas futuras sociedades patriarcais.

Com o início da caça aos grandes animais, a supremacia masculina se instaura

aos poucos e com ela a competição, as guerras, as assimetrias de poder entre os

papeis masculinos e femininos. No entanto, na Idade Média, em particular na Alta

Idade Média, as mulheres tiveram um lugar de relevância no seio da sociedade,

alcançando o reconhecimento pelos pares, mesmo dentro daquela sociedade

marcadamente patriarcal, como buscarei demonstrar na segunda parte deste texto.

Porém, mesmo dentro de uma ótica dos estudos de gênero, o discurso tradicional,

que explora a ideia da submissão e apagamento das mulheres no medievo, é muitas

vezes reproduzido.

Cito aqui, como exemplo, o livro Homens e mulheres na Idade Média.

História do gênero séculos XII a XV,11 do medievalista Didier Lett, publicado em

9 Tradução livre do texto online em inglês disponível na página da estudiosa Goettner-Abendroth, <https://www.goettner-abendroth.de/en/matriarchy/>.: “Matriarchies are not just a reversal of patriarchy, with women ruling over men – as the usual misinterpretation would have it. Matriarchies are mother-centered societies, they are based on maternal values: care-taking, nurturing, motherliness, which holds for everybody: for mothers and those who are not mothers, for women and men alike. [...]They are, on principle, need-oriented. Their precepts aim to meet everyone’s needs with the greatest benefit. So, in matriarchies, mothering – which originates as a biological fact – is transformed into a cultural model. This model is much more appropriate to the human condition than the way patriarchies conceptualise motherhood and use it to make women, and especially mothers, into slaves.” 10 MURARO, Rose Marie. “Breve introdução histórica [ao livro O martelo das feiticeiras]”. In: Em Aberto, Brasília, v. 27, n. 91, p. 177-187, jul./dez. 2014, p. 177-187. p. 178. 11 LETT, Didier. Hommes et femmes au Moyen Âge. Histoire du genre. XIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2013.

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2013. Na introdução, o autor seleciona pequenos trechos de algumas autoras

Heloisa, Christine de Pizan e Hildegarde de Bingen em que essas fazem reflexão

sobre a mulher como ser inferior ao homem, como o célebre trecho do primeiro

capítulo do livro A Cidade das Damas,12 em que a protagonista Christine assim se

expressa: “Que pena Meu Deus, por que não me fizeste nascer homem para que

minhas inclinações estivessem ao teu serviço, que eu nunca me enganasse e para

que eu tivesse essa perfeição que os homens dizem ter”. Após as citações o autor

conclui:

Essas três autoras, às vezes citadas erroneamente como as primeiras feministas de nossa história, são convictas da inferioridade natural da mulher, que, fraca e doce, faltando coragem, deve ser submissa ao homem. Para elaborar uma história do gênero entre o século XII e XV, o sexo do locutor conta pouco pois homens e mulheres compartilham os mesmos valores13

A afirmação do pesquisador é importante para compreendermos que, mesmo

dentro dos estudos de gênero, há divergências de percepção. Para defender seu

argumento, o autor escolheu trechos descontextualizados, sem considerar a marca

de ironia e as estratégias retóricas neles contidos.

Percebe-se, portanto, que o estudo das relações de gênero, como o de

qualquer outro domínio de conhecimento, é indissociável da perspectiva adotada

pelo pesquisador/a e do interesse que move suas investigações. Revela-se, portanto,

fundamental observar a perspectiva adotada nos estudos sobre o papel da mulher e

as relações de gênero ao longo do tempo, para não cairmos em armadilhas da

neutralidade ideológica de estudos científicos. Observar o “lugar de fala” do

pesquisador/a pode auxiliar na compreensão do que se deve esperar dos resultados

divulgados, bem como do grau de inovação, adquirido a partir de tal conhecimento,

capaz de intervir na construção de outras narrativas sobre o passado. Tal é desde o

12 A obra foi traduzida para português em 2006 e publicada em 2012. Ver: PIZAN, Christine. A Cidade das Damas. Introdução e Trad. Luciana Calado Delagne. Florianópolis: Editora Mulheres, 2012. 13 Tradução nossa. Ibidem, p. 09: Ces trois auteures, parfois citées à tort comme les permières féministes de notre histoire, sont convaincues de l´infériorité naturelles de la femme, qui, faible et douce, manquant de courage, doit être soumise à l´homme. Pour élaborer une histoire du genre entre le XII et le XV siècle, le sexe du locuteur compte peu car hommes et femmes partagent les mêmes valeurs.

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início a concepção feminista da História das mulheres e dos Estudos de Gênero.

A teórica feminista Joan Scott,14 uma das pioneiras e principais referências

em estudos sobre o uso da categoria gênero em história e sobre a História das

mulheres, nos anos 80, define gênero como: "um elemento constitutivo das relações

sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos”15 e “uma forma primária

de significar as relações de poder".16 Junto a essa definição interessa-nos também

incluir em nossas pesquisas o conceito de “suplemento”, relacionado ao uso da

produção da História das mulheres, a partir da perspectiva feminista. Em torno

dessa linha de pensamento, Scott faz referência aos estudos das pesquisadoras Ann

Gordon, Mari Jo Buhle e Nancy Schrom Dye:

As pesquisadoras feministas assinalaram muito cedo que o estudo das mulheres acrescentaria não só novos temas, como também iria impor uma reavaliação crítica das premissas e critérios do trabalho científico existente. “Aprendemos”, escreviam três historiadoras feministas, “que inscrever as mulheres na história implica necessariamente na redefinição e no alargamento das noções tradicionais do que é historicamente importante, para incluir tanto a experiência pessoal e subjetiva, quanto as atividades públicas e políticas. Não é exagerado dizer que, por mais hesitante que sejam os passos iniciais, esta metodologia implica não apenas em uma nova história das mulheres, mas em uma nova história”. A maneira como esta nova história iria simultaneamente incluir e apresentar a experiência das mulheres dependeria da maneira como o gênero poderia ser desenvolvido enquanto categoria de análise.17

Defendo que é imprescindível construir não apenas a história das mulheres

medievais, mas a história dos escritos dessas mulheres. Ao estudar a produção

intelectual das mulheres medievais concretiza-se mais a fundo a percepção de um

novo olhar sobre ideias preconcebidas sobre elas e sobre as relações entre os

gêneros nesse período. Como afirma L´Hermite-Leclerq,18 “Nenhum perigo é mais

14 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. 15 Ibidem. p. 86. 16 Ibidem. p. 88. 17 Ibidem. p. 73. 18 L’HERMITE-LECLERCQ. “A ordem feudal” (séculos XI-XII). In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (Ed.) Historia das Mulheres no Ocidente. vol. 2, A Idade Média, Christiane Klapisch (Org.). Porto, Afrontamento, 1990. p. 277.

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mortal para a história das mulheres do que invocar a natureza humana invariante e

universal, a que veste a mulher como pilar anônimo e invisível”. Complemento essa

primeira parte do texto chamando a atenção igualmente para o risco limitador

alertado pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie19 acerca da difusão de

uma História única.

Decolonizando saberes sobre as relações de gênero na Idade Média

A partir de uma visão decolonial, buscarei apresentar neste tópico, dividido

em 5 blocos, algumas fontes medievais oriundas da epistolografia, de obras

literárias, tratados científicos, filosóficos, teológicos, capazes de revelar uma

narrativa pouco explorada no que diz respeito às relações de gênero no período

medieval. Proponho, portanto, um breve percurso por esses escritos da Alta Idade

Média até os últimos séculos medievais, tendo como foco as relações de cooperação

e amizade entre homens e mulheres, clérigos e leigos, bem como a impactante

contribuição dos escritos de mulheres nas diversas áreas do conhecimento.

Epistolário de religiosas: cooperação entre sorores e fratres

Os abundantes documentos epistolares conservados da Alta à Baixa Idade

Média podem ser um interessante elemento de investigação sobre o relacionamento

entre homens e mulheres, em um contexto de práticas espirituais, viagens de

peregrinação durante a expansão do cristianismo, decisões políticas etc.20 As

medievalistas Maria Milagros Rivera Garretas e Helena Perpinya, em um capítulo do

livro Vozes de mulheres na Idade Média,21 analisaram cartas de religiosas trocadas

com o santo e mártir Bonifácio (672-754). Do epistolário do santo, foram

19 Cf: Conferência da escritora na TEDGlobal, em 2009. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br>. 20 O repositório online do projeto “Epistolae: Medieval Women's Letters”, criado pela professora Joan Ferrante, da Columbia University, disponibiliza uma coleção de cartas de e para mulheres da Idade Média, entre os séculos IV e XIII. Encontram-se mais de uma centena de cartas, escritas em latim e traduzidas para o inglês. Disponível em: <https://epistolae.ctl.columbia.edu/>. 21 PERPINYÀ, RIVERA-GARRETAS. Egburg, Eangyth, Bugga y Lioba> opiniones femininas y política sexual em la epistolografia altomedieval. In: DEPLAGNE, L.; BROCHADO, C. Vozes de mulheres da Idade Média. João Pessoa: Editora da UFPB, 2018. p.18-50.

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conservadas correspondências com oito mulheres religiosas. Segundo apontam as

medievalistas, as cartas das abadessas Egburg, Eangyth, Bugga y Lioba evidenciam

um indiscutível conhecimento da tradição epistolar clássica, bem como o importante

papel por elas desempenhado no seio das comunidades monásticas na Germânia da

Alta Idade Média. Através da análise das cartas, as pesquisadoras atestam o alto grau

de conhecimento das religiosas, versadas em retórica, literatura cristã e mesmo arte

poética, como é o caso de Lioba. Apontam ainda para o teor de confiança e amizade

entre as abadessas e Bonifácio:

En un período en el que la comunidad monástica se convierte en el foco central de la cristianización, las acciones de las mujeres transforman las dinámicas, desempeñando un papel relevante en la estructura social y política: milites Christi utriusque sexus (Tangl, 94, p.215), en palabras de Bonifacio.22

De fato, a pesquisadora Suzanne Wemple, no capítulo “Histórias das mulheres

do século V a X”,23 destaca as múltiplas funções desempenhadas pelas mulheres

religiosas, no seio de abadias e mosteiros femininos e mesmo duplos, por algumas

governados, em especial, a partir da atuação do monge irlandês São Columbano, no

século VII. Segundo a historiadora, São Columbano:

Chegou ao reino franco na última década do século VI, e era tão amistoso com as mulheres como com os homens. No mosteiro de Luxeuil, de que era fundador, os seus discípulos exibiam em relação às mulheres religiosas um espírito diferente do do século anterior. Trabalhavam em parceria com as mulheres e descobriram uma solução prática para o estabelecimento de mosteiros femininos fora das cidades. [...] Criaram assim uma nova instituição, o mosteiro duplo, que tinham alguns precedentes no Oriente e possivelmente também na Irlanda. [...] As comunidades femininas na Alemanha foram geralmente fundadas por mulheres, agindo por si sós ou com a ajuda dos seus maridos ou dos seus parentes eclesiáticos”24

Sabe-se que, com o passar dos séculos, a atuação feminina no contexto

eclesiástico vai gradativamente sendo limitada através de concílios. Se, enquanto

22 Ibidem. p. 48. 23 WEMPLE, S. “Histórias das mulheres do século V a X” In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (Ed.) Historia das Mulheres no Ocidente. vol. 2, A Idade Média, Christiane Klapisch (Org.). Porto, Afrontamento, 1990. p. 227-271. 24 Ibidem. p.251-256

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diaconisas ou conhospitae, mulheres celebravam a Eucaristia, junto aos padres -

celebravam missa e davam a comunhão-, no século VI, os concílios de Epaone e de

Orleães interditam o diaconato feminino através das consagrações de viúvas e

retiram suas funções eclesiásticas.25 Apesar desta interdição, em séculos posteriores

aparecem documentos atestando o diaconato de algumas mulheres e outros

decretos, como o concílio de Worms, no século IX, confirmando a admissão do

diaconato para mulheres acima dos quarenta anos de idade. De todo modo,

malgrado a oscilação, o poder das religiosas na vida eclesiástica na Alta Idade Média

era, ainda assim, maior do que no catolicismo contemporâneo.

Assim como as cartas das abadessas trocadas com São Bonifácio, o epistolário

do monge da Nortúmbia, Alcuíno, no século VIII e início do século IX, pode nos

fornecer outros testemunhos de erudição das mulheres retiradas em mosteiros,

assim como a cooperação e respeito múltiplo entre soror e frater, como revela

Suzanne Wemple:26

Baldonívia redigiu uma segunda biografia de Santa Radegunda; Radegunda é autora de dois poemas que se conservaram até hoje; Cesário de Arles escreveu uma longa carta a Radegunda e a Richilda; Aldegunda de Maubeuge ditou as suas visões a Subino, [...] A biblioteca de Chelles, para onde se retiraram a irmã de Carlos Magno, Grisla e a sua filha, Rotrude, e de onde mantiveram correspondência com Alcuíno, atesta o interesse das religiosas pelos livros. Alcuíno pediu-lhes que criticassem o seu comentário inacabado do Evangelho de S. João e mandou-lhes os escritos de Beda. Em contrapartida, elas pediram-lhe que lhes explicasse algumas passagens obscuras de Santo Agostinho, solicitaram-lhe uma carta de São Jerônimo e pressionaram-no para que acabasse o seu comentário.

O estudo das cartas atesta que, mais do que assuntos puramente de ordem

espiritual, as temáticas eram também de ordem da crítica textual. É possível

observar que longe de serem consideradas ignorantes, as mulheres referidas são

solicitadas a esclarecer passagens do Evangelho de S. João, portanto, evidenciando a

confiança de Alcuíno depositada nas suas avaliações de uma obra exegética.

25 Ibidem. p. 259. 26 Ibidem. p. 264.

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35

A filósofa feminista Lieve Troch27 reitera a tese da cooperação que vimos

desenvolvendo até aqui para os séculos seguintes: “Desde o século XI, mulheres se

distinguiram pela auto-definição, auto-representação e auto-autorização, incluindo

a esfera religiosa, e se definiram como parceiras em posição equivalente a dos

líderes poderosos do sexo masculino no campo político e religioso”.28

Os diversos escritos de mulheres aparecem abarcando várias possibilidades

de interesses, desde a Literatura em prosa e em verso, até tratado de medicina,

visões, cartas e tratados de Mística cristã.

A “modernidade” dos tratados médicos de Trótula e de Hildegarde de Bingen

Para além dos mosteiros, os escritos de mulheres circularam também em

escolas médicas, instituições em que mulheres puderam frequentar, ensinar e

produzir tratados medicinais até o advento das Universidades, pois com ele veio a

proibição do acesso das mulheres ao ensino formal. No entanto, os saberes

medicinais faziam parte da vivência feminina desde os primórdios dos tempos,

como destaca Rose Marie Muraro:29

Desde a mais remota antiguidade, as mulheres eram as curadoras populares, as parteiras, enfim, detinham saber próprio, que lhes era transmitido de geração em geração. Em muitas tribos primitivas eram elas as xamãs. Na Idade Média, seu saber se intensifica e aprofunda.[...] Elas (as curadoras) eram as cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a saúde, e eram também as melhores anatomistas do seu tempo. Eram as parteiras que viajavam de casa em casa, de aldeia em aldeia, e as médicas populares para todas as doenças.

Além do conhecimento empírico, mulheres também obtiveram acesso a

conhecimento teórico em determinadas escolas médicas. Algumas médicas eram

solicitadas para atuar em hospitais, cortes e foram reconhecidas pelo domínio na

área. Conforme a historiadora Christine Dabat:30

27 TROCH, Lieve. Mística Feminina na Idade Média: historiografia feminista e descolonização das paisagens medievais. Revista Graphos. Revista da Pós-graduação em Letras da UFPB, v. 15, n. 1, 2013. 28 Ibidem. p.02. 29 MURARO, Idem. p. 184. 30 DABAT, Christine. “Mas, onde estão as neves de outrora?” Notas bibliográficas sobre a condição das mulheres no tempo das catedrais. Cadernos de História. UFPE, v. 1, n. 1, p. 21-57, 2002. p. 35.

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36

Na época medieval existem corriqueiramente médicos e médicas. Os hospitais empregam ambos, e os mosteiros femininos e masculinos mantêm dispensários e farmácias, abrigando inúmeros especialistas dos respectivos sexos que tratam a população. Médicas e cirurgiães atuam neles, bem como em casas de saúde urbanas. Em grande número, as parteiras auxiliam tanto médicos como médicas; todas têm, igualmente, vastos conhecimentos de farmácia, que, transformados em contos demoníacos, forneceriam à Inquisição a base de inúmeras acusações de bruxaria contra elas.

Uma das escolas mais famosas, Schola Medica Salernitana, foi fundada no

século X, em uma região da Itália caraterizada pela multiculturalidade oriunda de

antigas colonizações e de trocas comerciais e intelectuais com a cultura árabe,

hebraica, latina e grega. A escola se tornou conhecida principalmente por ter sido

espaço de produção e tradução de obras de medicina e aceitar a participação de

mulheres no seu corpo docente e discente. Tratados médicos árabes e gregos foram

traduzidos para o latim, possibilitando a expansão do conhecimento da medicina

antiga. Com base na prática médica e nesse conhecimento teórico adquirido surgiu

um dos mais importantes tratados de medicina durante a Idade Média: De curis

mulierum, obra escrita pela médica e professora Trotula de Ruggiero.

Trotula nasceu em Salerno em meados do século XI e especializou-se em

ginecologia e obstetrícia. Seu tratado de ginecologia e o compêndio de cosméticos

lhe conferiram alta notoriedade e fizeram de Trotula a maior autoridade na área até

final da Idade Média. Com a chegada da modernidade, a primeira edição impressa

de seus manuscritos causou suspeita aos olhos dos renascentistas, que atribuíram a

autoria do tratado a um possível médico.

No prólogo da obra de Trotula, traduzido para português “Sobre as doenças

das mulheres”,31 pelos pesquisadores Alder Calado e Karine Simoni, a médica revela

sua motivação para escrever o tratado:

Como esses [órgãos femininos] estão posicionados em um lugar mais íntimo, por pudor e pela fragilidade da sua condição, elas não ousam revelar ao médico as aflições das suas enfermidades. Por tal motivo, eu, tendo compaixão pela sua desventura e particularmente

31 Trotula di Ruggiero. Sobre as doenças das mulheres. Organização: SIMONI, K, DEPLAGNE, L. CALADO, A. Tradução de SIMONI, K, CALADO, A. Florianópolis: UFSC/DLLE/PGET, 2018. p. 37.

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impulsionada pela solicitação de uma certa senhora, comecei a ocupar-me diligentemente das doenças que muito frequentemente molestam o sexo feminino.

É importante ressaltar esse trecho do prólogo porque exatamente essa parte

citada será apagada em algumas cópias e de traduções do manuscrito, como

acontece com o manuscrito hebraico Še’ar yašub, composto na segunda metade do

século XIII. De acordo com o estudo de Carmen Caballero Navas,32 a obra

corresponde quase integralmente à tradução anônima para o hebreu, produzida na

Provença, no século XII, sob o título Sitrē našim (Secretos de mujeres). Baseada nas

pesquisas de Grenn e Barkai, Caballero afirma “que en algún momento de la baja

Edad Media, la tradición misógina de los Secreta mulierum se apropió de la tradición

ginecológica no misógina representada por el Trotula”.33 O tratado hebreu Še’ar

yašub, traduzido para o espanhol por Caballero Navas, foi atribuído a um misterioso

Jacob e, de acordo com a tradutora, apesar do conteúdo corresponder ao tratado de

Trotula, “el supuesto autor del Še’ar yašub no explicita en ningún momento, o al

menos no en la copia conservada, que ha copiado casi todo su tratado de una obra

anterior”.34

Observa-se, com esse exemplo, que houve um processo gradual de

apagamento do nome de Trotula, o que contribuiu para a dúvida a respeito de sua

autoria, no século XVI. A retirada da autoridade feminina em atividades e obras de

prestígio faz parte da lógica da modernidade que teve como uma das principais

ações a marginalização das mulheres e a colonização de outras etnias. A esse

propósito, Dabat35 questiona:

Por que a nova classe ascendente, a burguesia, que lutava por representação política e liberdades econômicas, contra as tradições feudais e corporativas, excluiu as mulheres de qualquer participação? Um projeto capitalista fundamentalmente misógino? De qualquer modo, retomando a pergunta de Joan Kelly, parece que o “Renascimento”, para as mulheres, correspondeu mais a um declínio.

32 CABALLERO NAVAS, C. Algunos “secretos de mujeres” revelados. El ŠE’AR YAŠUB y la recepción del Trotula en hebreo. Meah, sección Hebreo, v. 55, p. 381-425, 2006. 33 Ibidem. p. 384. 34 Ibidem. p. 389. 35 Ibidem. p. 39.

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De fato, é pertinente pensar nessa relação Renascimento/declínio para as

mulheres, principalmente ao atestar o prestígio e reconhecimento do tratado de

Trotula, durante quatro séculos, pela indiscutível propriedade com que a fisiologia

da mulher foi tratada no livro. O medievalista Jacques Rossiaud constata, a esse

propósito, a existência de três tratados médicos que constituíram a base das

enciclopédias em línguas vernáculas:

As ideias fundamentais dos grandes corpora da medicina greco-latina (interpretadas ou não pelos árabes), que jamais haviam desaparecido dos discursos, circulavam livremente entre os doutos graças a alguns tratados fundamentais (como o De coitu, atribuído a Constatino, o Africano, o De curis mulierum, cuja autora teria sido a misteriosa Trotula e, sobretudo, o Canon de Avicena, que viria a ser o manual de base a partir do século XIII).36

No tratado de Trotula, o corpo feminino obteve atenção especial em relação

aos outros, como se observa no prólogo e na quantidade de capítulos dedicados às

doenças e cuidados com a saúde física e mental das mulheres. Interessante destacar

alguns trechos nos quais se evidencia sua preocupação com o bem-estar feminino

no que diz respeito à sexualidade, e à gestação - antes, durante e depois do parto -

como explicita o título da primeira edição do tratado: “Trotula e curandarum

aegritudinum muliebrium. Ante, in et post partum liberunicus, nusquam antea

editua”.37

O cuidado com a gestante no momento do parto apresenta-se no tratado com

uma sensibilidade inovadora e mesmo transgressora, se lembrarmos do peso da

tradição patrística de considerar necessárias as dores do parto ao aludir à punição

feminina pela queda de Eva. Além de receitar à parturiente o emprego analgésico de

“um cálice de estoraque, com olíbano e suco de ópio de papoula” para evitar dor

desnecessária, o tratado apresenta um caráter precursor relativo às recomendações

atuais no que se refere ao parto humanizado, como ilustra o trecho a seguir do

capítulo XVII:

36 ROSSIAUD, J. Sexualidade. In: LE GOFF, J., SCHMITT, J-C. (Org.) Dicionário temático do ocidente medieval. Bauru, SP: EdUSC, 2006. p. 477-494. 37 Livro único de Trotula sobre a cura das doenças das mulheres, antes durante e depois do parto, nunca antes editado.

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A mulher deve ser conduzida pela casa com passos lentos e aqueles que cuidam dela não devem olhar em seu rosto, porque as mulheres a esse olhar costumam envergonhar-se durante e depois do parto38

Sobre cuidados necessários para uma boa formação do bebê, nos primeiros

anos de vida, Trotula faz a seguinte recomendação no capítulo XVIII:

[...] deve-se observar com atenção para que não fique em um lugar muito iluminado. Imagens diversas, tecidos de diferentes cores e pérolas devem ser expostos diante dele. Perto do bebê é preciso fazer uso de canções e de palavras fáceis, e não cantar com voz estridente ou rouca como morteiros ... Diante dele é preciso falar com frequência e pronunciar palavras fáceis ... Quando chegar o tempo de começar a comer, devem ser dados ao bebê rolinhos de massa feitas de açúcar, semolina e leite, que ele consiga segurar com as mãos, brincar, chupar e engolir partes. Deve ser oferecida carne de peito de galinha, de faisões e de perdizes. Quando começar a compreender bem, no início da substituição do leite das mamas, não deve ser permitido que sugue à noite. Mesmo de dia isso deve ser sistematicamente controlado, atentando bem para que não seja afastado do leite na estação de calor.39

Também a sexualidade feminina mereceu a atenção da mestra de Salerno. O

efeito da abstinência sexual foi destacado pela médica no capítulo XI como algo que

pode trazer malefícios ao funcionamento do corpo feminino. Podemos ler nas

entrelinhas de sua constatação científica, que indiretamente ela questiona práticas

sociais preconceituosas e desfavoráveis ao bem-estar das mulheres:

A algumas mulheres não é permitido ter relações íntimas, às vezes porque são impedidas pelos votos, às vezes pelas crenças, outras vezes porque são viúvas, pois a algumas mulheres não é permitido um segundo casamento. Estas, como têm vontade de se relacionar e não se relacionam, incorrem em uma grave enfermidade.[...] Acontece também com virgens que chegaram solteiras a certa idade e não podem ter relações com homens, nelas há um grande excesso de esperma que a natureza gostaria de expelir por meio do homem. Esse sêmen excessivo e impuro libera um vapor frio que sobe para algumas partes, que vulgarmente são conhecidas Collaterales [Colaterais], porque estão próximas do coração, do pulmão e do restante dos órgãos vocais, por conta disso pode ocorrer impedimento da voz.40

O tratado de Trotula é indiscutivelmente inovador sobretudo em contexto em

38 TROTULA, ibidem. p.83. 39 Ibidem. p. 89. 40 Ibidem. p. 67-68.

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que a produção científica era majoritariamente masculina e, como assinala

Rossiaud,41 o discurso sobre o sexo era “essencialmente desenvolvido por homens

– monges ou eclesiásticos – que, por voto, renunciaram a toda vida sexual, e

escrevem então com precaução e parco conhecimento – em princípio – daquilo

sobre o que falam”.

Outro tratado científico no século XII que merece destaque é o intitulado De

Causae et curae, escrito pela abadessa alemã Hildegarde de Bingen (1098-1179).

Uma das figuras de maior prestígio em sua época pelo protagonismo no cenário

sócio, político e cultural, a abadessa era também cientista, teóloga, pregadora,

filósofa, linguista, pintora, compositora, poeta, dramaturga e terapeuta. De grande

erudição, Hildegarde é autora de várias obras e gêneros diversificados: hagiografia,

visões, tratados científicos, setenta composições musicais, auto sacro, epístolas e

mesmo um livro sobre uma lingua ignota.

Não é propósito neste artigo desenvolver maiores comentários acerca da

extensa obra de Hildegarde de Bingen, que já conta com um número significante de

trabalhos acadêmicos, teses de doutorado e artigos científicos, inclusive em língua

portuguesa.42 Interessa aqui situar, de forma breve, o tratado médico da abadessa

renana dentro das concepções teóricas vigentes no século XII, a fim de destacar a

originalidade e posicionamento do mesmo, em particular no que respeita o

funcionamento do corpo feminino. Esse interesse é justificável porque em pesquisas

recentes43 sobre corpo feminino no período medieval, os tratados de Hildegarde et

de Trotula são os que mais se destacam.

Se no contexto em que Hildegarde viveu não havia consenso entre os teóricos

41 Ibidem. p. 477. 42 Cf: PINHEIRO, Mirtes. Desvendando Eva: o feminino em Hildegarda de Bingen. Tese de doutorado. UFMG, 2017.; PINHEIRO, Mirtes Emília; EGGERT, Edla. Hildegarda de Bingen: as autorias que anunciam possibilidades. In: PACHECO, Juliana (Org.). Filósofas: A presença das mulheres na filosofia. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2016.; XAVIER, Maria Leonor L.O. Hildegarda, uma autora multidisciplinar. In: FERREIRA, Maria Luísa Ribeiro (Org.). Pensar no Feminino. Lisboa: Edições Colibri, 2001. 43 Ver, por exemplo: MOULINIER, Laurence. Le corps des jeunes filles d’après les traités médicaux dans l’Occident médiéval. dir. L. Bruit Zaidman, G. Houbre, Chr. Klapisch-Zuber, P. Schmitt Pantel. Le corps des jeunes filles de l’Antiquité à nos jours. Paris : Perrin, 2001. p. 80-109.; JACQUART, Danielle. "La morphologie du corps féminin selon les médecins de la fin du Moyen Age" Micrologus, I, 1993, I discorsi dei corpi, p. 81-98.; THOMASSET, Claude. "Le corps féminin ou le regard empêché", Micrologus, I, 1993, I discorsi dei corpi, p. 99-114.

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acerca da participação da mulher na concepção - de um lado os seguidores de

Aristóteles, que negavam a atuação de emissões femininas na geração, de outro os

defensores da participação do “esperma feminino” na concepção do embrião,

apoiados nas teorias de Galeno -, seu tratado Causae et curae44 vai além dessa

questão e, de forma inovadora, defende que aos elementos físicos, devem ser

acrescentados os fatores psíquicos no momento da concepção.

Também surpreendente é a descrição do funcionamento do órgão feminino

durante o orgasmo, como se observa no trecho, transcrito a seguir, retirado do

parágrafo 222, intitulado “Concepción”, incluído na II parte “Secreciones internas”

que trata do “funcionamento y disfunciones, procreación, hombres y mujeres”:

Cuando la mujer está en coyunda con el varón, entonces el calor de su cerebro, que tiene el placer dentro de sí, prefigura el gusto de ese placer de la coyunda, así como la efusión de semen del varón. Después que el semen cae en su lugar, el fortísimo calor del cerebro del que hablábamos lo atrae hacia sí y lo retiene, y después los riñones de la mujer se contraen y todos los miembros, que en el tiempo de la menstruación estaban preparados para abrirse se cierran enseguida, como un hombre fuerte que encierra alguna cosa en su mano.45

Com propriedade e descrição detalhada, Santa Hildegarde descreve o

orgasmo feminino, considerado como parte do processo da concepção. Em outro

trecho do tratado (parágrafo 150), a abadessa utiliza metáforas para tratar o prazer

feminino, o qual ela compara ao sol pela ação eficaz:

El placer en la mujer es comparable al sol que con su calor empapa la tierra con dulzura, suavidad y constancia, de suerte que nacen frutos, porque si el sol quemara la Tierra constantemente perjudicaría a los frutos más que beneficiarlos. Así también el placer en la mujer tiene un calor agradable y suave, pero continuo, y así concibe y da a luz a su prole.46

Ao considerar o prazer feminino, em seu tratado, Hildegarde de Bingen se

distancia do aristotelismo e se alinha mais ao galenismo que fornecia a ideia do

44 Causae et curae foi traduzido para o espanhol em 2009, por José María Puyol y Pablo Kurt Rettschlag, e, no âmbito do projeto Hildegardiana, a tradução foi corrigida e disponibilizada em 2013 no site <http://www.hildegardiana.es/5pdf/causas_y_remedios.pdf>. É essa versão utilizada no presente artigo. 45 Ibidem. p.89 46 Ibidem. p. 72.

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prazer como finalidade aceitável, pela continuidade da espécie. O historiador Claude

Tomasset47 ressalta ainda dois aspectos originais nas teorias da abadessa:

primeiramente, a importância do amor multo e do afeto entre os pais para a

concepção de uma criança virtuosa; a outra noção é a possibilidade da criança ser

parecida com a mãe e não apenas com o pai, quando a mulher tem uma boa

constituição.

Com originalidade e poesia, os tratados médicos de Hildegarde de Bingen e

de Trotula dão prova de uma relevante contribuição ao pensamento científico

medieval acerca da fisiologia do corpo feminino e de sua sexualidade.

Corpo e resistência na poética trovadoresca em voz feminina

Corpo e desejos das mulheres também são foco da poética trovadoresca

produzida por escritoras nas emergentes línguas vernáculas. As mulheres

trovadoras participaram da arte poética do período trovadoresco constituída tanto

de monólogos amorosos (cansós, coblas), quanto de diálogos poéticos (tensons),

manifestando em suas cantigas um elevado grau de consciência autoral e um caráter

transgressor no que se refere à forma e escolha das temáticas. O trovadorismo em

voz feminina muitas vezes parece romper com a lírica dos trovadores, regida pelas

regras do amor cortês, e com ênfase na mesura e comedimento.

Na introdução da antologia das cantigas das trobairitz provençais intitulada

Chants d ́amour des femmes-troubadours, Pierre Bec48 faz menção a essa distorção

do código de amor cortês trovadoresco:

Enquanto para o trovador, o desejo eternamente insaciado (ao menos em princípio), se junta às tensões sociais que o dinamizam, fixando-se à imagem idealizada de uma mulher altiva e inacessível, para a grande dama poetisa, a sensualidade continua mantendo um valor bem preciso de prova de amor. Vê-se, por outro lado, que a discrição (celar), valor fundamental nos trovadores, não parece existir na poesia das trobairitz que, ao contrário, falam de seu amor com ostentação”49

47 THOMASSET, Claude. Da natureza feminina”. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (Ed.) Historia das Mulheres no Ocidente. vol. 2, A Idade Média, Christiane Klapisch (Org.). Porto: Afrontamento, 1990. p. 65-98. 48 BEC, Pierre. Chants d ́amour des femmes-troubadours. Paris: Éditions Stock, 1995. p. 40. 49 Alors que pour l ́homme-troubadour, le désir éternellement inassouvi (du moins en príncipe), joint aux tensions sociales qui le dynamisent, se fixe sur l ́image idéalisée d ́une dame hautaine et

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Observa-se, pois, que o código sócio-poético trovadoresco foi utilizado pelas

mulheres trovadoras em grande medida de forma invertida no que concerne a

posição do eu-lírico, na medida em que é a voz feminina que assume o papel ativo

do prejador, cabendo a ela rogar o amor do seu pretendente (cavalier ou amic), como

expressam os versos da poetisa Castelosa: “[...]Que pòis dòmna s ́avé / D ́amar,

prejar deu be / Cavalièr, s ́em lui vê / Proez ́e vassalatge.” (“Pois, quando uma dama

decide amar, é ela quem deve pedir o amor do cavaleiro, se ela vê nele proeza e

qualidades cavalerescas”). Ao assumir a posição de sujeito lírico nessa arte de

trovar, os poemas de trobairitz negam a norma patriarcal que regia

predominantemente os papeis sociais destinados a cada gênero.

A ousadia poética das trobairitz pode ser facilmente remetida a duas tradições

de cantigas de mulheres: às cantigas de amigo galaico portuguesa e aos versos das

poetisas al-andalusas. De acordo com a tese da medievalista Ria Lemaire,50 as

cantigas de amigo são originalmente oriundas de uma tradição oral de criação

comunitária de mulheres, através da qual cantavam exprimindo nas composições

sua perspectiva, ativa e plena de desejo amoroso, em atividades laborais ou em

momentos festivos, acompanhadas de uma performance corporal de dança. A

pesquisadora destaca ainda que durante o processo de transcrição dessas cantigas

nos cancioneiros do final da Idade Média, “elas foram atribuídas aos trovadores da

época. Essas atribuições tardias foram utilizadas, pelos literatos dos séculos XIX e

XX, como provas de autoria individual e masculina, no sentido moderno da

palavra.”51

A expressão do desejo é também marca da poética al-andalusa que floresceu

ainda na Alta Idade Média, no século VIII, conforme a pesquisa de Teresa Garulo,

inaccessible, pour la grande dame poétesse, la sensualité continue de maintenir une valeur bien précise de preuve d ́amour. On voit d ́autre part que la discrétion (le celar), valeur fondamentale chez les troubadours, ne semble pas exister chez les trobairitz qui, au contraire, parlent de leur amour avec ostentation. 50 Cf. LEMAIRE, Ria. Do cancioneiro das donas às cantigas d´amigo dos trovadores galego-portugueses. Fragmentum, n. 49, p. 213-227, Jan./Jun. 2017.; LEMAIRE, Ria. Patrimônio e matrimônio: proposta para uma nova historiografia da cultura ocidental. Educar em Revista. Curitiba, Brasil, v. 34, n. 70, p. 17-33, jul./ago. 2018, entre outros. 51 Ibidem. p. 08.

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publicada em 1986. Seu trabalho reúne cerca de quarenta poetisas árabico-

espanholas, com pequenos apontamentos sobre vida e obra de cada uma.

Vejamos a seguir o fragmento de um poema de Hafsa Bint A-Rakuniyya, uma

das mais famosas poetisas de Granada do século XII:

Voy a verte o vienes a mi casa? Mi corazón siempre se inclina a tus deseos. Te encontrarás a salvo de la sed Y del ardor del sol Quando me des la bienvenida: Mis labios son aguada dulce fresca, Y dan las ramas de mis trenzas densa sombra.

A mesma audácia aparece nos versos da poetisa Wallãda Bint Al-Mustakfi, do

século XI:

Estoy hecha, por Dios, para la gloria, y camino, orgullosa, por mi propio camino. Doy poder a mi amante sobre mi mejilla y mis besos ofrezco a quien lo desea

A leitura desses versos nos permite identificar a presença de elementos

sensuais na representação dos desejos do eu-lírico e de uma liberdade que nos

interpela a refletir acerca da ousadia e do papel das mulheres na sociedade al-

andalusa.

Ainda sobre desejo e representação do corpo, trago um trecho de uma cantiga

de subgênero tenson, cuja particularidade é o debate cantado entre dois poetas ou

poetisas, cada um/uma desenvolvendo uma opinião distinta em relação a um

determinado tema, como acontece no gênero desafio cultivado entre os cantadores

e cantadoras no Nordeste. Transcrevo duas estrofes de uma tenson, na qual a

trobairitz Na Carenza é interpelada a responder a dúvida de duas irmãs, Alaisina e

Iselda, acerca da (des)vantagem de se casar e de ter filhos:

Aconselhai-me com vossa consciência, De acordo com vossa sabedoria Casar-me ou ficar virgem deveria? Ter filhos não deve ser prazeroso, Mas, parece triste não ter esposo.

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- Dona Carenza, ter marido queria, Mas, ter filho é penitência sandia, Pois deixa o seio tão flácido e feioso E o ventre enrugado e doloroso.52

Como se sabe, o festejo do verdejar da estação primaveril pelos jovens amantes

é um topos recorrente nas cantigas da lírica trovadoresca - tornou-se, inclusive, uma

modalidade específica desta poética, intitulada “reverdie”, porém, a recorrência

desse topos é menos expressiva nas cantigas das trobairitz. Como já referido,

frequentemente as cantigas de trobairtiz iniciam-se de forma direta, expressando os

desejos do eu-lírico, sem que a contemplação da natureza obtenha muito espaço.

Quando o cenário aparece, ele ultrapassa a função decorativa e atua como elemento

de fusão com o eu-lirico, participando do seu estado de espírito através da expressão

de tristeza, revolta, indignação, denúncia. Um exemplo disso é o soneto A la stagion

che ‘l mondo foglia e fiora, do século XIII, escrito pela trovadora italiana, conhecida

pelo pseudônimo Compiuta Donzella. O soneto foi traduzido recentemente para o

português por Karine Simoni.53

De acordo com a tradutora, de Compiuta chegaram até nossos dias três

sonetos: além do já citado A la stagion che ‘l mondo foglia e fiora [Na estação em que

o mundo folha e flora], a poetisa escreveu também Lasciar vorria lo mondo e Dio

servire; [Deixar queria o mundo e Deus servir] e Ornato di gran pregio e di valenza

[Ornado de grande valor e grandeza], ambos compilados no Cancioneiro Vaticano

de código 3793. Vejamos na íntegra a tradução do soneto:

Na estação em que o mundo fronda e flora cresce o prazer dos corteses amantes: seguem juntos pelos jardins afora até os passarinhos solfejam diletantes; a franca gente se enamora,

52 Tradução nossa do original: Consilhatz mi segon costr´escienz:/ Penrai marit a vòstra concoissença,/ O´starai mi pulcela? E si m´agença,/ Que far filhons non cuit que sai bos/ E sens marit mi par tròp angoissós. - Na Carenza, penre marit m´agença,/ Mas far infanz cuit qu´es gran penitença,/ Que las tetinas pendon aval jos/ E lo ventrilh es rüat e ´nojós. In: DEPLAGNE, L.; BROCHADO, C. Ibidem. p. 334. 53 Cf. SIMONI, Karine. Da impossibilidade do amor à possibilidade da poesia: notas para a tradução de Compiuta Donzela ao português. In: DEPLAGNE, L.; BROCHADO, C. (Org.). Vozes de mulheres da Idade Média. João Pessoa: Editora da UFPB, 2018.

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e para servir cada um se coloca adiante, e cada donzela em alegria mora; e em mim abundam tristeza e choro angustiante. em casa meu pai me colocou no erro, e me mantém contínua em grande aflição: doar-me quer à força a um senhor, e eu disso não tenho desejo nem afeição, e grande tormento vivo todas as horas; por isso não me alegra nem flor nem fronda.54

O poema explora um topos bastante recorrente nas chamadas “chansons de

femme” (cantigas de mulher), a queixa e denúncia do eu-lírico aos abusos de poder

impostos pela família patriarcal, sejam eles por parte do marido, sejam pela figura

paterna, como é o caso aqui. É possível inserir este soneto de Compiuta Donzella na

tradição dessas cantigas, em particular na modalidade intitulada “chansons de

malmariées” (cantigas de mal-maridadas). Como aparece neste subgênero literário,

o eu-lírico feminino denuncia a prática do casamento arranjado, a tirania do pai, a

violência física praticada pelo marido. Os versos de Compiuta Donzella expressam

as aspirações e lamentos do eu-lírico dentro de um cenário primaveril, mas como

assinala Karine Simoni,55 o tom de denúncia retratado no poema “encontra[m]-se

completamente dissonantes com a leveza da estação primaveril: errore

[sofrimento], forte doglia [grande for], a mia forza [à força], non ho disio né doglia

[não tenho desejo nem vontade], gran tormento [grande tormento], non mi ralegra

[não me alegra]”.

Espiritualidade feminina e seu o impacto na teologia mística ocidental

Dentro desse novo contexto de intensificação da produção escrita das

mulheres, é possível considerar a Mística como uma das expressões mais evidentes,

tanto no campo da espiritualidade, quanto no campo da produção literária e da

construção de obras religiosas. A partir do fim do século XIII, com o recorrente

emprego de metáforas, alegorias, várias escritoras materializam suas vivências

54 Ibidem. p. 319. 55 Ibidem. p. 206.

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místicas em forma de poemas, cartas, visões. A importância de seus escritos

ultrapassa o plano da espiritualidade, pois algumas são consideradas fundadoras da

literatura vernácula. Esse foi o caso das místicas Hadewych de Antuerpia (1210-

1260) e Beatriz de Nazareth (1200-1268), na língua holandesa. Seus estilos

literários evidenciam o conhecimento da literatura cortês, das Sagradas Escrituras,

do latim.

Algumas místicas como Hadewych, Marguerite Porète e Marie d’Oignies

(1177-1213) se agruparam em comunidades, formando um movimento de

mulheres, as Beguinas. Como descreve Troch: “Elas não viviam em mosteiros, mas

individualmente viajaram por diversos países, ou viveram em comunidades e

beguinarias. Até o século XVI na Europa Ocidental, este foi um movimento muito

influente no âmbito religioso.”.

O movimento das beguinas causou reações ambíguas no seio da Igreja:

suspeita e admiração. Não é surpreendente que um tal grau de autonomia proposto

e experimentado pelas beguinas, sendo algumas errantes, outras vivendo entre

mulheres em comunidades, desvinculadas de qualquer ordem religiosa e se

sustentando pelo seu próprio trabalho, não causasse alguma reação por parte do

clero e sobretudo o Alto Clero. Apesar da desconfiança em relação às beguinas, elas

conseguiram apoio e admiração por parte de bispos, cardeais, outros religiosos que

as acompanharam no movimento, na posição de beguinos, guias espirituais,

apoiadores, como é o caso de Lamprecht von Regensburg, Jacop de Vitry, Jean de

Nivelle, Maître Guidon de Nivelle, Jean de Lierre. Destacaremos a seguir os três

primeiros, Jacop de Vitry, Lamprecht von Regensburg e Guidon de Nivelle. O

primeiro, autor da biografia de Marie d´Oignies, foi, de acordo com estudiosos

(Swart(2001), Certeau (1982), provavelmente o primeiro a reconhecer a força e a

relevância do movimento beguinal e suas variadas manifestações em diferentes

países europeus. O bispo que abandonou seus estudos de Teologia, na universidade

de Paris, para acompanhar a vida espiritual de Marie d´Oignies, na região de

Brabante, na Bélgica, dá o seguinte depoimento sobre o movimento das beguinas,

em Vita de Marie D´Oignies: “las únicas fuerzas religiosas vivas capaces de detener,

por uma parte, a herejía, u, por outra, la decadência y el aniquilosamiento de la vida

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eclesiástica” .56

O segundo místico, Lamprecht von Regensburg, dedicou um poema a

Margarete Porète, fazendo referência à sua obra Espelho das almas simples e

aniquiladas, pela qual foi morta, queimada na fogueira, em 1310, uma das primeiras

vítimas da caça às bruxas, prática persecutória das mulheres que, como se sabe, será

intensamente desenvolvida no início da Modernidade, a partir do século XVI. O

poema de Regensburg, intitulado Trocht Syon, foi altamente difundido na Europa e

rende homenagem à arte da mística feminina. Alguns versos do poema foram

transcritos por Loet Wart na introdução da obra referida sobre as místicas

Hadewijch de Amberes e Beatriz de Nazareth:“Em nuestros días,/ En Brabante y

Baviera,/ El arte se há erigido entre mujeres./ Señor Dios, qué arte es esse/ Que una

vieja compreende mejor/ Que un hombre de espíritu?”57

O último exemplo de religiosos apoiadores das mulheres beguinas é o de

Maître Guidon de Nivelles, talvez o menos conhecido dos três mencionados. Logo

após sua morte, Guidon de Nivelles, padre de Saint-Sépulchre, recebeu uma

homenagem das beguinas em forma de poema, como atesta. Os versos, publicados

em Vita S. Beggae, foram traduzidos para francês por Pascal Majérus e transcritos

no artigo “Fondateur ou formateur? Maître Guidon et l´établissement des proto-

béguines de Nivelles".58 Em linguagem metafórica, o poema revela os laços

colaborativos entre o religioso e as beguinas, como se percebe nos versos a seguir:

“Pois ele era o sábio jardineiro guardião da Santa virgindade,/ cujo trabalho, ao

florescer e propagar um doce perfume,/ levou, por amor, as abelhas ao trabalho da

verdadeira flor”.59

Acerca da opção das místicas em se expressarem no idioma natal e não em

latim, podemos nos referir ao sentido do termo “illiteratus” esclarecido por Paul

56 Flores de Flandes: Hadewijch de Amberes, Beatrizde Nazreth. Introducción y notas por Loet Sart, traducción por Carmen Ros y Loet Swart. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 2001. p. 07. 57 Ibidem. p. 03. 58 MAJÉRUS, P. Fondateur ou formateur? Maître Guidon et l´établissement des proto-béguines de Nivelles. In: THION, André. (Dir.) Revue d'histoire religieuse du Brabant wallon, 1995. p. 68. 59 Tradução não literária nossa do texto fonte: “Car si quis quaerat, quia Sanctae virginitatis/ Hortulanus erat sapiens, custosque fidelis:/ Cujus opus florens dulcem dum sparsit odorem,/ Traxit apes ad opus veri floris per amorem.” (RYCKEL, Vita S. Beggae, apud. MAJERUS: 1998, p. 68).

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Zumthor nos seus estudos da oralidade no contexto medieval. No artigo

“Litteratus/Illitteratus. Remarques sur le contexte vocal de l'écriture médiévale”,60

publicado em 1985, na revista Romania, o teórico chama atenção para a falsa

dicotomia criada no século XIX sobre os termos literatus/illiteratus, erudito e

popular, frisando as nuances que possue cada termo em seu contexto. Até o século

XIII, a oposição literatus/ illiteratus coincidia com clérigo/ laico. A diferença seria,

então, de ordem contextual, pois “litteratus e illiteratus se referem menos a um

indivíduo na sua totalidade do que a níveis de culturas que podem coexistir

(coexistem com frequência) no seio do mesmo grupo, ver no comportamento e

mentalidade do mesmo indivíduo”.61

A recorrente presença da autodenominação de “iletradas” nos escritos de

mulheres, frequentemente interpretada como sendo o autoreconhecimento de seus

limites e inferioridade em relação à erudição dos clérigos letrados, pode ter outras

interpretações dependendo do contexto, ora como recurso retórico, ora como ironia,

após se revelarem de grande erudição. Pode-se falar também, no caso das místicas,

do triunfo do illeteratus, em relação ao literatus, a língua materna como via mais

legítima para descrever a experiência mística, como podemos ver no trecho que

segue. Trata-se de uma carta (Lettre XVII) da beguina Hadewijch a uma amiga. Após

transcrever um poema e comentar o significado de cada verso, finaliza a carta com

a revelação de uma experiência mística e comenta:

Pois as palavras divinas são coisas que a terra não pode compreender: para tudo que se encontra aqui embaixo, podem-se encontrar palavras suficientes em flamengo, mas para o que eu quero dizer, não há nem em flamengo, nem em palavras. Tenho, porém, tanto conhecimento da língua quanto um homem pode ter; mas para isso, repito, não há nenhuma língua, e nenhuma expressão que eu entenda ser conveniente.62

60 ZUMPTHOR, Paul. Litteratus/Illitteratus. Remarques sur le contexte vocal de l'écriture médiévale. Paris : Romania, tome 106, n. 421, 1985. p. 1-18. 61 “literatus e illiteraturs referent moins à des individus pris à leus totalité qu´à des niveaux de cultures que peuvent coexister (coexistente solvente) au sein du même groupe, voir dans le comportement et la mentalité du même individu”. 62 Tradução livre da versão francesa da carta : "Car les paroles divines sont chose que la terre ne peut comprendre : pour tout ce qui se rencontre ici-bas, on peut trouver assez de paroles en flamand, mais pour ce que je veux dire, il n’y a ni flamand ni paroles. J’ai pourtant connaissance de la langue autant qu’homme peut l’avoir ; mais pour ceci, je le répète, il n’est point de langage, et nulle expression que je

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De fato, é possível atestar pelos documentos referidos – tanto os escritos das

beguinas, quanto testemunhos de autoridades eclesiásticas – a força do movimento

protagonizado pelas beguinas, a profundidade da discussão teológica e sua forma

inovadora reconhecidas pelos pares e seus seguidores e a (re)avaliação desses

documentos afirma-se a importância do legado feminino na teologia,63 inclusive na

atualidade.

A crítica feminista bell hooks, em artigo recente sobre espiritualidade

feminista,64 chama a atenção para o lugar da prática feminista que, segundo ela, bem

antes do formato e direcionamento presentes no feminismo atual, estava presente

no período em que vigorava o teocentrismo e cita o exemplo da beguina Juliana de

Norwich, do século XV:

Apesar do sexismo das religiões dominadas pelos homens, as mulheres encontraram em práticas espirituais um lugar de consolo e um santuário. Ao longo da história da igreja na vida ocidental, mulheres se voltaram para tradições monásticas para encontrar um lugar delas, onde pudessem estar com deus, sem a intervenção do homem, onde elas pudessem servir ao divino sem a dominação do homem. Com uma percepção espiritual aguçada e clareza divina, Juliana de Norwich escreveu bem antes do advento do feminismo contemporâneo: “Nossa salvadora é a nossa verdadeira Mãe, em quem eternamente nascemos e de quem jamais sairemos.” Atrevendo-se a contrariar a noção de nossa salvação vir sempre e somente de um homem, Juliana de Norwich planejou um caminho de retorno ao sagrado feminino, para ajudar a libertar as mulheres da servidão à religião patriarcal.

sache n’y convient". Hadewijch LETTRES SPIRITUELLES Béatrice de Nazareth SEPT DEGRÉS D’AMOUR. Traduction du moyen-néerlandais par Fr. J.-B. M. P. [Jean-Baptiste Porion] Claude Martingay, Genève, 1972, p. 129. Texto online: <http://www.cheminsmystiques.fr/PDFcm2/!Hadewijch %20LIlian%20&%20Lettres.pdf>. 63 A propagação de estudos de teólogas sobre o legado feminino na teologia, juntamente com publicações de edições, reedições modernas e traduções de obras de autoras medievais, nas últimas décadas do século XX, vêm tendo um impacto relevante até mesmo no seio do Vaticano. É possível constatar tal revelação em algumas recentes decisões episcopais: em 2012, o reconhecimento de santa Hildegarde de Bingen, como doutora da igreja; em 2016, o reconhecimento de Maria Madalena como apóstola (Evangelista), de Jesus, e referência em audiência púbica ou na página oficial do Vaticano, aos escritos de mulheres religiosas da Idade Média, como santa Juliana de Norvich, autora de Revelações divinas. 64 HOOKS, Bell. Espiritualidade feminina. In: O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Trad. Ana Luiza Libânio. 3 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

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Para finalizar este tópico, a justa contatação de Troch:65 “Curiosamente,

entretanto, o que elas proclamam não é geralmente definido como teologia, mas

como mística.[...] os homens – para garantir a sua própria definição teológica –

classificam estereotipadamente a teologia das mulheres como mística”, pode ser

complementada com a afirmação da teóloga Forcades,66 de que: “la teologia

feminista há existido desde que existe la teologia patriarcal”.

Discurso teológico e literário na Querelle des femmes

Além das beguinas, outras mulheres escritoras contribuíram para a

construção de um debate teológico alternativo ao discurso oficial de cunho

patriarcal. É verdade que nem todas as religiosas que gozaram determinado status

no seio social e político romperam com o discurso canônico acerca das escrituras.

Porém, um número considerado de escritos de monjas, anacoretas, abadessas,

apresenta leituras diferentes ao legado teológico que fundamentou o cristianismo

atual. Uma das obras mais representativas da chamada teologia feminista é Vita

Christi, escrita por sor Isabel de Villena (1430-1490). A obra da abadessa do

mosteiro de Clarissas teve uma grande repercussão no final da Idade Média,

chegando a obter nos primeiros anos do surgimento da imprensa três edições em

trinta anos. Segundo Forcades, as edições foram todas publicadas com zelo e

acompanhadas de ricas xilogravuras. A pesquisadora acrescenta ainda que “de todas

las Vidas de Cristo que circularon por Europa entre los siglos XV-XVII, la de Isabel

de Villena está condiderada actualmente como la de mayor calidad literária y

teológica”.67 Tal afirmação se confirma sem dúvida a julgar pelas pesquisas das

últimas décadas sobre a repercussão da obra e autoridade da autora em fins do

século XV.

Na introdução da edição de 2011, Estrela e Escartí68 destacam a celebridade

da abadessa e a influência que teve sobre as altas autoridades intelectuais e

65 Ibidem. p. 03. 66 FORCADES, T. La teologia feminista en la história. Fragmenta Editorial, 2011. p.13. 67 Ibidem. p. 57. 68 VILLENA, Isabel. Vita Christi. A cura de Vicent J. Escartí i J. Enric Estrela. Alzria: Bromera, 2011. p. 10.

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eclesiásticas, em Valência, onde ela foi considerada uma das figuras mais ilustres do

século XV. Sua reputação levou o vigário geral de Valência, Jaume Eixarc, a querer

que seu cargo passasse a ser por ela executado, deixando-a ainda sua biblioteca.

Os pesquisadores relatam igualmente sua celebridade no meio intelectual,

citando nomes ilustres de escritores valencianos, como Ausiàs March, Joan Roís de

Corella, Miquel Peres, Bernart Fenollar e Jaume Roig. Muitos deles escreveram

dedicatórias a Isabel de Villena em seus escritos, como na obra Lo Passi em cobles

(1493), de Bernart Fenollar i pere Martines; em Imitació de Jesucrist (1482), de

Miquel Peres; ou ainda em Expositio super cantica evangélica (1485), escrito pelo

bispo de Jerusalem, Jaume Peres.69

Mais surpreendente do que o status alcançado pela abadessa em vida é saber

do sucesso de seu livro, publicado sete anos após a morte da autora, sobretudo pelo

teor revolucionário de narrar a vida de Cristo a partir da sua relação com as

principais figuras femininas do Evangelho: Maria e Maria Madalena, baseando-se

tanto no evangelho canônico, na patrística, quanto nos Evangelhos apócrifos, em

especial o Evangelium pseudo Matthaei, como revela o estudo de Riquet (apud

Estrela e Escartí).70

Na sua versão da Vida de Cristo – que inicia com o milagre da concepção de sua

mãe (La verge es casà amb Sant Josep per voluntat divina. I Anà a Natzaret, a visitar

la seua mare, Santa Anna) e finaliza com a sua assunção (El gloriós trànsit de la

sacratíssima Mare de Deu) –, sor Isabel narra, de maneira evidente, a vida de Cristo

através das mulheres, ressaltando o seu apreço por elas. No capítulo CXII (El Senyor

començà a predicar i a fer miracles), diz a voz narrativa: “E ele realizou os principais

milagres às mulheres e a pedido delas, porque, devido à estima e respeito que sentia

por sua mãe, sempre as apreciava e as favorecia”.71

Para Forcades72, “Sor Isabel pone en boca de Jesus un ataque contra los

misóginos y la misoginia, y una defensa de las capacidades intelectuales y

69 Ibidem. p. 11. 70 Ibidem. p. 19. 71 “I els principal miracles els féu a dones i a petició d´aquelles, perquè per l´estima i el respecte que sentia envers as mare les apreciava i les afavoria sempre”. Ibidem. p. 131. 72 Ibidem. p. 58.

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espirituales de las mujeres”. Compartilha igualmente dessa opinião a pesquisadora

Cláudia Brochado que destaca o livro da abadessa como uma obra inserida dentro

do debate da Querelle des femmes, iniciado no século XIV pela escritora Christine de

Pizan. Para Brochado73, a Vita Christi de Isabel Villena,

pode ser lido como resposta à corrente literária misógina (Bloch, 1995; Bosch Fiol et al., 1999; Rivera Garretas, 2006) que se manifesta na Baixa Idade Média. Villena, assim como outras autoras medievais, procurou defender as mulheres das acusações e hostilidades que sofriam nos escritos que se disseminavam nesse período.

De fato, o final da Idade Média é caracterizado por um crescente aumento de

obras com teor misógino, fenômeno acompanhado de um cerceamento dos espaços

de poder para as mulheres, o que iria ocasionar reações diversas por parte delas,

como já nos referimos, a partir dos estudos de Dabat, Forcades, entre outros.

A referida “Querelle des femmes” situa-se nesse contexto de resistência

feminina e teve seu início com a obra Epître au Dieu D´Amour (1399), de Christine

de Pizan, uma das escritoras medievais de maior notoriedade. Essa obra em verso

corresponde a uma crítica à misoginia contida na segunda parte do Roman de la

Rose, de autoria de Jean de Meung. A obra provocou fervor entre as autoridades

intelectuais da época e fez surgir o primeiro debate dessa “querela”, o “Debate sobre

o Roman de la Rose”, através de troca de epístolas entre defensores e opositores à

essa crítica poética feita por Pizan.

Exercendo um duplo papel – de poetisa e de crítica literária –, Christine de

Pizan traz nesse poema um diálogo crítico com obras consagradas pela tradição

literária, como Ars Amatoria e Remedia, de Ovídio, e Le Roman de la Rose, de Jean de

Meung. Na epístola, Cupido assume o eu-lírico e a fim de defender as mulheres

dirigisse-se a todos seus “verdadeiros leais servidores” na Corte do Amor para

revelar as queixas “vindas da parte de todas as damas e senhoritas, nobres,

burguesas e donzelas, e todas as mulheres em geral” contra os ataques misóginos de

falsos amantes, clérigos e escritores. Dentre os escritores, Ovídio é o primeiro a ser

73 BROCHADO, C. Evangelhos em feminino: interpretações de uma escritora medieval ibérica. Cad. Pagu, Campinas, n. 42, Jan./Jun. 2014. p. 346.

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citado.74 Sob um tom irônico, a figura alegórica do Cupido lança sua crítica ao poeta:

“ele chamou o livro de Arte de amar, porém, não ensina modos, nem como amar

verdadeiramente. Ao contrário, pois se os homens fizerem o que manda o livro não

amarão nunca, mesmo sendo amados. Por essa razão, o livro é mal nomeado, pois

trata da Arte da grande decepção, e da falsa aparência.”75

Em seguida, o Cupido continua seu julgamento a respeito da obra Le Roman de

la Rose, de Jean de Meug, a qual recebe críticas pela generalizada difamação das

mulheres. Fundada em uma tradição teológica e clerical misógina, ampliada com a

escolástica, Jean de Meung escreve nos versos (9903-9904) do poema: “Todas vós

sóis, fostes ou sereis/ de fato, ou de vontade, putas;”.76 Em resposta, Cupido

enumera vários exemplos de mulheres leais e que deram prova de amor intenso aos

seus amantes e maridos: Medeia, Dido, Penélope, também sublinha a importância

das figuras femininas no evangelho, como Maria, Eva e descreve a mulher como de

natureza pacífica, amável, devota, humilde, caridosa.

Buscando explicação para a misoginia propagada na literatura da época, o eu-

lírico chega a tal conclusão: “Se as mulheres tivessem escritos os livros,/ bem sei que

de fato seria diferente /pois elas têm consciência de que são condenadas sem

merecer/ e se as partes não são repartidas por igual,/ os mais fortes pegam sempre

/a maior parte e o melhor para si.”77

Além da Epítre au Dieu d´Amour, outras obras da escritora contribuíram para

o debate acerca dos papeis de gênero e para a defesa das mulheres, como A Cidade

das Damas, e o Dit de Jeahnne D´Arc. Mesmo insistindo em temas polêmicos para o

seu contexto, o prestígio da escritora foi tal que recebeu convite do duque de

Borgonha, Philippe Le Hardi, para redigir a biografia do rei Carlos V, sendo escolhida

entre os cronistas da sua época. O Livre des faits et bonnes moeurs du Sage Roi

Charles V (1404) tornou-se um relevante documento histórico sobre o rei e o

74 O poema está disponível na íntegra em: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9614325n/f39.image>. Cf: v. 365-383. 75 Cf. v. 371-378 76 “Vous êtes toutes, vous serez ou vous fûtes, en acte et en intention, des putes!” 77 “Mais se femmes eussent les livres fait/ je sçay de vray qy´autrement fust du fait, /car bien scevent qu´a tort encoulpées, /si ne sont pas a droit les pars coupées/ car les plus fors prenent la plus grant part,/ et le meilleus pour soy qui pieces part”. (Cf. v. 417-422)

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contexto do século XIV.

Por essa fértil e ousada produção literária, o poeta Eutaches Duchamps (1345-

1406), contemporâneo da escritora, dedicou-lhe os versos dessa balada, em

resposta a uma epístola de Christine de Pizan, datada de 1403:

Musa eloquente entre as IX, Christine/ és incomparável hoje,/ em sabedoria e em qualquer doutrina/ de Deus tens o saber, e não de outrem/ tuas epístolas e livros que li em diversos lugares, de grande filosofia/ e o que me escrevestes uma vez/ me fazem ter a certeza da grande abundância/ de teu saber que continua se multiplicando, /és única em teus feitos no reino da França (tradução não literária nossa).

Considerações finais

Os breves excertos aqui reunidos correspondem a uma pequena amostra de

obras de autoria medieval que durante séculos estiveram ausentes da historiografia

sobre Idade Média. A recorrência a essas fontes teve o propósito de possibilitar a

elaboração de novas hipóteses relacionadas à representação das relações de gênero

no período medieval, ao enfatizar o agenciamento das mulheres em inovações

literárias, científicas, místicas e em outros saberes, bem como seu poder de

resistência frente às imposições patriarcais que foram se intensificando com a

chegada do Renascimento. Considerar a inclusão dos escritos de mulheres às fontes

canônicas, utilizadas até então pela retórica da colonialidade/modernidade, pode

contribuir para a projeção de novas narrativas em torno da falsa imagem de uma

mulher medieval submissa, iletrada e silenciosa.

Sem a pretensão de querer limitar os estudos de gênero sobre a Idade Média à

perspectiva feminista aqui infundida, o apelo é antes de propor legitimidade aos

estudos medievais sob esse prisma. O desafio foi partir das ainda subterrâneas

veredas desses escritos medievais para avançar a ideia de que é possível identificar

em determinados períodos da História relações entre homens e mulheres baseadas

em cooperação e respeito, contrariamente às que foram narradas pela historiografia

tradicional.

Quem sabe tal caminho não sirva de inspiração para se pensar na atualidade

outras formas de se representar os papéis do “masculino” e do “feminino” ao longo

da História? De um lado, tornar mais visíveis os abundantes exemplos de mulheres

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protagonistas, e não apenas os de vítimas injustiçadas, por outro lado, refletir sobre

posicionamentos positivos de homens em relação às mulheres, proporcionando-

lhes identificações outras, além da masculinidade tóxica que as narrativas

tradicionais nos ensinaram e que a nossa vivência atual nos confirma.

Encerro este texto com as palavras de Mignolo que resumem bem a essência

do pensamento decolonial, o qual inspirou o caminho trilhado neste artigo.

a meta das opcões descoloniais não é dominar, mas esclarecer, ao pensar e agir, que os futuros globais não poderão mais ser pensados como um futuro global em que uma única opção é disponível; afinal, quando apenas uma opção é disponível, “opção” perde inteiramente o seu sentido.78

Artigo recebido em 13.07.2020 Artigo aceito em 01.08.2020

78 MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Rev. bras. Ci. Soc. São Paulo, v. 32, n. 94, 2017. p. 14.