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A cristianização do império romano No final do século IV, Santo Agostinho assinalava que a conversão do mundo romano ao cristianismo fora "extremamente rápida". Sua afirmação é totalmente verdadeira se considerarmos, sobretudo, o grau de influencia que a antiga religião pagã havia exercido sobre a cultura, sobre os valores morais e sobre a organização social da Antiguidade clássica. No extraordinário capitulo quinze de seu livro Decadência e queda do Império Romano, Gibbon descreveu com todos os detalhes as dificuldades que enfrentavam os primeiros cristãos que desejavam manter sua fé pura sem deixar de tomar parte na vida regular da sociedade; em alguns dos acontecimentos sociais em que desejavam ou se viam obrigados a participar (casamentos, funerais, pleitos judiciais e "todos os ofícios e diversões da sociedade"), eles se encontravam imersos, contra a sua vontade, nos ritos e cerimônias religiosos, e em "armadilhas infernais" das quais não podiam escapar sem excluir-se da vida cotidiana. Desde o principio, a religião ancestral ganhou em tenacidade, vendo-se forçada a ficar na defensiva diante de um cristianismo agressivo apoiado pelos imperadores. Demonstrou-se que era quase impossível, por ação do governo, isolar os elementos religiosos dos contextos sociais e culturais a que estavam intimamente vinculados. O próprio Constantino permitiu o estabelecimento de um templo da segunda dinastia dos Flavios em Cirta (Numidia) e em Hispelo (Itália central) com a condição, explicita no segundo caso, de que estivesse livre de toda e qualquer suspeita de "contagio" de sacrifícios. A legislação imperial, durante todo o século IV, e culminando nas leis de Teodosio da década de 380 e principio da de 390, limitou e acabou por abolir os sacrifícios pagãos; os antigos templos foram fechados e seus bens confiscados, mas se demonstrou a necessidade de que os jogos e festas tradicionalmente associadas aos templos continuassem a ser realizados "para o desfrute comum de todos os homens". Por uma lei de 382, o grande templo de Edessa em Osrhoene foi fechado para a pratica religiosa, mas mantido como obra de arte e museu de antiguidades. Foi uma situação que os imperadores cristãos

A Cristianização Do Império Romano

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A cristianizao do imprio romano

No final do sculo IV, Santo Agostinho assinalava que a converso do mundo romano ao cristianismo fora "extremamente rpida". Sua afirmao totalmente verdadeira se considerarmos, sobretudo, o grau de influencia que a antiga religio pag havia exercido sobre a cultura, sobre os valores morais e sobre a organizao social da Antiguidade clssica. No extraordinrio capitulo quinze de seu livro Decadncia e queda do Imprio Romano, Gibbon descreveu com todos os detalhes as dificuldades que enfrentavam os primeiros cristos que desejavam manter sua f pura sem deixar de tomar parte na vida regular da sociedade; em alguns dos acontecimentos sociais em que desejavam ou se viam obrigados a participar (casamentos, funerais, pleitos judiciais e "todos os ofcios e diverses da sociedade"), eles se encontravam imersos, contra a sua vontade, nos ritos e cerimnias religiosos, e em "armadilhas infernais" das quais no podiam escapar sem excluir-se da vida cotidiana. Desde o principio, a religio ancestral ganhou em tenacidade, vendo-se forada a ficar na defensiva diante de um cristianismo agressivo apoiado pelos imperadores. Demonstrou-se que era quase impossvel, por ao do governo, isolar os elementos religiosos dos contextos sociais e culturais a que estavam intimamente vinculados. O prprio Constantino permitiu o estabelecimento de um templo da segunda dinastia dos Flavios em Cirta (Numidia) e em Hispelo (Itlia central) com a condio, explicita no segundo caso, de que estivesse livre de toda e qualquer suspeita de "contagio" de sacrifcios. A legislao imperial, durante todo o sculo IV, e culminando nas leis de Teodosio da dcada de 380 e principio da de 390, limitou e acabou por abolir os sacrifcios pagos; os antigos templos foram fechados e seus bens confiscados, mas se demonstrou a necessidade de que os jogos e festas tradicionalmente associadas aos templos continuassem a ser realizados "para o desfrute comum de todos os homens". Por uma lei de 382, o grande templo de Edessa em Osrhoene foi fechado para a pratica religiosa, mas mantido como obra de arte e museu de antiguidades. Foi uma situao que os imperadores cristos do sculo IV tiveram de enfrentar cada vez com maior frequncia.O elemento mais notvel de continuidade do passado pago, na prpria atitude dos imperadores, foi a conservao do titulo depontifex maximus. Este titulo no foi abandonado seno por Graciano, provavelmente em 382, sob a influencia do bispo Ambrsio, quando chegou a Milo uma embaixada de Roma para oferecer-lhe as vestiduras pontificais. Graciano acompanhou a recusa delas e do titulo depontifex maximusde medidas muito prticas. Retirou dos colgios sacerdotais e das virgens vestais o subsidio financeiro e outros privilgios que eles recebiam havia sculos e retirou do Senado o altar da Vitoria, onde desde os dias de Augusto se inauguravam as sesses senatoriais com um sacrifcio. A ao de Graciano motivou, da parte do prefeito de Roma, o orador pago Simaco, um apelo de protesto dirigido em nome do Senado a seu sucessor, Valentiniano II. Simaco reivindicava a religio ancestral por razes de costume e utilidade. Ele afirmava que os velhos deuses tinham defendido Roma ao longo dos tempos e que seu apoio no devia ser rejeitado de maneira despreocupada. Os argumentos de Simaco foram infrutferos diante do raciocnio de Santo Ambrsio, que clamava pela extenso da religio sob o patrocnio de um imperador cujo dever cristo era apoia-la. O ressurgimento pago de Eugenio e Nicmaco Flaviano em 393-94 no foi mais que o ultimo gesto da causa pag, que sucumbiu com seus chefes na batalha de Frigido.Enquanto se travava o combate pblico em defesa dos antigos cultos do Estado romano, as atitudes dos ltimos pagos estavam embebidas, com no menos fora, dos denominados cultos "orientais", que eles tinham adotado, as vezes em grande profuso. O senador Pretextato (morto em 384), como sabemos por seu epitafio, combinou sacerdcios e iniciaes de no menos que seis religies de mistrios gregas e orientais e quatro sacerdcios pblicos dos antigos cultos estatais. Tais cultos de mistrios, os mais destacados dos quais eram o da Magna Mater (Cibeles), o de Mitra e o de Serapis, ofereciam a seus iniciados a purificao da alma e uma esperana de vida eterna, exigindo deles uma genuna devoo religiosa e, num plano superior, conhecimentos Filosficos. Para Pretextato, como para Juliano, o Apstata, os deuses do panteo pago formavam uma unidade, segundo a interpretao neoplatnica, como as diversas funes do Sol todo-poderoso. A iniciao ao culto da Magna Mater se realizava mediante o rito conhecido como taurobolium, em que o iniciado se colocava de p num fosso sob uma grade, sobre a qual se sacrificava um touro, salpicando-o assim com seu sangue. Esse rito deu lugar, sobretudo, a uma exaltada polemica crist, em parte por causa de sua natureza intrnseca desagradvel; mas tambm porque, como outros ritos parecidos, funcionava como uma espcie de "batismo" pago e mostrava que o paganismo, tal como se expressava em tais cultos, tinha capacidade de apelar tanto para a imaginao religiosa dos indivduos como para o senso de dever publico dos senadores e sacerdotes romanos.Embora as opinies difiram, provvel que na poca do apelo de Simaco a Valentiniano o Senado romano j fosse - como So Ambrosio afirmava - composto em sua maioria de cristos. Do que no h duvida o sentido da mudana, do paganismo para o cristianismo, como resultado da presso politica e social, das converses verdadeiras (embora sejam raros os casos conhecidos) e - talvez com maior eficcia - dos casamentos mistos entre cristos e pagos, em que a educao crist dos filhos assegurava a f da gerao seguinte.Qualquer que fosse o ponto alcanado pela nobreza da cidade na mudana, o certo que o povo simples de Roma j estava cristianizado na segunda metade do sculo IV e participava vivamente da vida de sua Igreja (em uma ocasio, os distrbios com relao eleio de um bispo de Roma deixaram 137 cadveres num templo). Esse mesmo interesse se manifestou entre as populaes de outras grandes cidades do Imprio. O caso de Antioquia relativamente bem documentado pelos escritos de um retorico pago, Libanio, e de um sacerdote cristo, So Joo Crisostomo. Antioquia mantinha um ncleo de seguidores dos deuses antigos; o mais destacado era Libanio. No entanto - como pode observar com espanto Juliano, o Apostata, ao chegar ali, em 362 -, a populao geral da cidade, com grande parte de sua aristocracia e sem duvida a maioria dos funcionrios imperiais, j estava ento firmemente cristianizada.Como outras cidades srias, Carras foi pag e continuou a ser por muito tempo, enquanto cidades como Helipolis (Baalbek), Emesa e Aretusa conservaram solidamente (se no sempre unanimemente) as tradies baseadas em antigos cultos, como, mais ao sul, se fez na Fencia. Edessa, por outro lado, com suas tradies de So Tom, suas comemoraes de mrtires e a posse das supostas cartas escritas por Cristo ao rei Abgar, estava em grande medida cristianizada j no tempo de Juliano, que se negou a visita-la quando foi convidado a faze-lo por uma embaixada no ano de 363.Em outras partes do Imprio, como, por exemplo, Atenas, mantiveram-se as tradies intelectuais pags at os sculos V e VI; mais ainda, a escassez de smbolos cristos nas numerosas lmpadas de argila do sculo IV achadas em escavaes da Agora, bem como a ausncia de qualquer construo eclesistica claramente identificada ou de algum bispo conhecido no mesmo perodo, sugere que a populao em geral resistia cristianizao. Alexandria, centro de estudo da filosofia neoplatnica e das cincias, foi na mesma poca uma sementeira crista encabeada pelo enrgico bispo Atanasio, cuja influencia dominante na cidade fez com que os imperadores o exilassem em varias ocasies. Alm de sua tradio intelectual, Alexandria se destacou por suas desordens civis, que as divises religiosas sem duvida contriburam para aumentar. No ano de 391, uma multido, conduzida por monges e incitada pelo bispo, derrubou a grande estatua e o templo de Serapis, uma das grandes maravilhas do mundo antigo.Os testemunhos no so to abundantes nas provncias ocidentais quanto nas do Oriente. No final do sculo IV, nas provinciais predominantemente rurais da Galia, os bispos dirigiram sua ateno para a evangelizao de suas comunidades, e fontes como a Vida de So Martin de Tours, escrita por Sulpicio Severo, evidenciam que os esforos se dirigiam para as reas rurais tradicionalmente conservadoras, com a destruio dos santurios locais e o inicio da organizao de igrejas paroquiais, fundadas em cidades e aldeias. As cidades, como era de supor, progrediram. Para citar um exemplo, enquanto Juliano, o Apostata, que se havia comprometido em segredo com o paganismo, esperava em Vienne, em 360, para partir para a sua campanha contra Constncio, fez profisso aberta de f crist e assistiu aos servios da Epifania. E o fez assim para no perder o apoio de Vienne ao seu empreendimento, j que a cidade era predominantemente crist.Na frica, onde desde o principio o cristianismo havia conquistado muitos adeptos, as disputas entre catlicos e donatistas cismticos parecem pressupor a existncia de comunidades fortemente cristianizadas, frequentemente com bispos rivais que pertenciam a diversas seitas. Mas no final do sculo IV ainda havia porta-vozes do paganismo, como um correspondente de Santo Agostinho, Maximo de Madauro, e ainda em 408 houve distrbios anticristos em Calama (Numidia), quando o bispo tentou suprimir uma procisso pag. Em geral, evidente que, embora na maior parte do Imprio predominasse o cristianismo no final do sculo IV, persistiam, no entanto, pequenos focos locais de paganismo, frequentemente baseados em associaes tradicionais com certos deuses, e que em seus nveis mais complexos - ainda que com um interesse minoritrio - ainda se fundamentavam numa seriedade intelectual merecedora de uma critica racional.Juliano, assim como outros intelectuais gregos, usou o termino heleno ("grego", ou seja, grego educado) para designar o crente nos deuses antigos. A opinio de Juliano foi compartilhada, do ponto de vista oposto, por So Jeronimo, que afirmou que a aceitao do cristianismo implicava a rejeio da cultura clssica e de todos os seus vnculos com o passado pago. Uma terceira opinio, representada pelo bispo cristo Gregrio Nanzianzeno, afirmava que a cultura clssica era patrimnio comum de todos os homens. Os cristos, segundo ele, eram capazes de apreciar a literatura clssica e beneficiar-se dela sem sucumbir a seus perigos. Tambm eles eram "gregos" (Gregrio ps em duvida o uso restritivo da palavra por parte de Juliano) e era intolervel que fossem privados de sua herana de seres humanos educados. Outros escritores, como Santo Agostinho, escreveram tratados defendendo o uso apropriado que podiam fazer os cristos da cultura clssica, comparando-a em certa ocasio ao "ouro dos egpcios" tomado pelos filhos de Israel (Exodo, 12.35); mas evidente que, de fato, a postura de Gregrio foi adotada pela maioria. A importncia de uma educao clssica para ter acesso ao governo romano da retrica para a sua direo no menos notvel no sculo IV e nos sculos do baixo Imprio do que nos sculos II e III. Os exemplos de homens como Temistio, o filsofo (um pago), e o poeta Ausnio (um cristo), que exerceram seus cargos sob os imperadores cristos do sculo IV, poderiam ser multiplicados sem dificuldade alguma.Ao mesmo tempo, o sculo IV conheceu a florao de uma cultura especificamente crist, baseada na Bblia, exposta pelos bispos e desenvolvida em obras de exegese por escritores cristos. A nova verso latina da Bblia de Jeronimo, a Vulgata, foi uma tentativa consciente de proporcionar a um publico cristo novo uma traduo erudita e cuidada; apoiava-se num vasto programa de comentrios bblicos dedicados aos amigos que Jeronimo tinha na aristocracia crist de Roma, mas claramente dirigidos a uma audincia ampla.A cristianizao do Imprio implicou a aquisio de uma nova cultura, baseada na cartilha de conduta crist (Bblia) compilada por Constantino e vrios bispos cristos, por um pblico que em geral no esperava perder suas antigas tradies. Esta situao comporta certas dificuldades para a interpretao de muitas criaes artsticas e da cultura intelectual do perodo romano tardio. Nos casos em que no sabemos a religio de um poeta, do destinatrio de uma dedicatria literria ou do proprietrio de uma vila com mosaicos de temas clssicos, tentador deduzi-la da natureza da obra artstica da qual e autor ou a qual associado. Sobre essa base, no obstante, o poeta Ausnio, cujas obras so cheias de temas clssicos, poderia passar por pago, embora as provas de seu cristianismo sejam evidentes. A coexistncia de uma autentica devoo crist com a sobrevivncia do amor cultura clssica no somente foi possvel, mas tambm frequente, apesar da hipocrisia.