2
A CULPA QUE O DEFUNTO CARREGA: OS EXUS DE UMBANDA E SUA PERTENÇA ÀS “CLASSES PERIGOSAS” Em Totem e Tabu: Alguns pontos de concordância entre a vida mental dos selvagens e dos neuróticos (1913), Freud examina a relação que, do ponto de vista da teoria psicanalítica, poder-se-ia observar entre os tabus que existem entre os povos à época ditos primitivos, cujos sistemas religiosos e de parentesco passam a constituir o objeto de estudo da antropologia nascente, e as proibições obsessivas que se impõe em certas neuroses. O autor constata, a partir da análise das descrições de Wundt que “como no caso do tabu, a principal proibição, o núcleo da neurose, é contra o tocar e daí ser às vezes conhecida como ‘fobia do contato’, ou ‘délire du toucher’” (Freud, 2006, p. 45), esclarecendo que o termo contato deve ser entendido aqui de forma tão ampla “quando o emprego metafórico da expressão ‘entrar em contato com’” (Idem, p. 45), de modo que todo ato neurótico está diretamente dirigido à evitação de qualquer contato com o objeto proibido, entendendo que já o pensar nele implica em que se ele torne presente de maneira efetiva. Entre os neuróticos, a fobia do contato encontraria suas raízes no recalcamento, durante a infância, de um forte desejo de tocar que se depara com uma proibição externa relativa ao contato, a qual encontra apoio nas forças internas pelas quais responde “a relação amorosa da criança com os autores da proibição” (Idem, p. 46, nota de rodapé). O desejo de tocar não é plenamente suprimido, mas permaneceria presente no neurótico como domínio do inconsciente resultando a fobia do contato de um estado de ambivalência ocasionado pelo instinto, apenas reprimido, e pela proibição, que, no momento em que cessasse, traria o instinto do domínio do inconsciente de volta para o campo da consciência. Os tabus, tanto entre os selvagens quanto entre os neuróticos revelam o desejo inconsciente do contato. Assim, Freud pretende, por analogia com a origem da fobia de contato, explicar em que consistem tanto estas quanto os tabus dos selvagens, que estariam fundados sobre a ambivalência entre um desejo de contato reprimido (inconsciente) por uma proibição relativamente ao contato (consciente). Freud toma como

A Culpa Que o Defunto Carrega

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Estudo freudiano sobre Exu baseado na obra Totem e Tabu.

Citation preview

Page 1: A Culpa Que o Defunto Carrega

A CULPA QUE O DEFUNTO CARREGA: OS EXUS DE UMBANDA E SUA PERTENÇA ÀS “CLASSES PERIGOSAS”

Em Totem e Tabu: Alguns pontos de concordância entre a vida mental dos selvagens e dos neuróticos (1913), Freud examina a relação que, do ponto de vista da teoria psicanalítica, poder-se-ia observar entre os tabus que existem entre os povos à época ditos primitivos, cujos sistemas religiosos e de parentesco passam a constituir o objeto de estudo da antropologia nascente, e as proibições obsessivas que se impõe em certas neuroses. O autor constata, a partir da análise das descrições de Wundt que “como no caso do tabu, a principal proibição, o núcleo da neurose, é contra o tocar e daí ser às vezes conhecida como ‘fobia do contato’, ou ‘délire du toucher’” (Freud, 2006, p. 45), esclarecendo que o termo contato deve ser entendido aqui de forma tão ampla “quando o emprego metafórico da expressão ‘entrar em contato com’” (Idem, p. 45), de modo que todo ato neurótico está diretamente dirigido à evitação de qualquer contato com o objeto proibido, entendendo que já o pensar nele implica em que se ele torne presente de maneira efetiva. Entre os neuróticos, a fobia do contato encontraria suas raízes no recalcamento, durante a infância, de um forte desejo de tocar que se depara com uma proibição externa relativa ao contato, a qual encontra apoio nas forças internas pelas quais responde “a relação amorosa da criança com os autores da proibição” (Idem, p. 46, nota de rodapé). O desejo de tocar não é plenamente suprimido, mas permaneceria presente no neurótico como domínio do inconsciente resultando a fobia do contato de um estado de ambivalência ocasionado pelo instinto, apenas reprimido, e pela proibição, que, no momento em que cessasse, traria o instinto do domínio do inconsciente de volta para o campo da consciência. Os tabus, tanto entre os selvagens quanto entre os neuróticos revelam o desejo inconsciente do contato. Assim, Freud pretende, por analogia com a origem da fobia de contato, explicar em que consistem tanto estas quanto os tabus dos selvagens, que estariam fundados sobre a ambivalência entre um desejo de contato reprimido (inconsciente) por uma proibição relativamente ao contato (consciente). Freud toma como exemplos por meio dos quais pode-se comprovar a relação entre a vida mental dos selvagens e dos neuróticos em três classes de tabus: os que se referem aos inimigos, aos chefes e aos mortos. Neste nosso trabalho, importa a análise dos tabus relacionados aos mortos. Pretendemos encontrar, entre a situação da pessoa que se torna tabu entre os povos ditos selvagens, e a situação de membros de classes estigmatizadas pelas estruturas de dominação da sociedade capitalista, a mesma relação encontrada entre aquele e o neurótico.