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A Dama de Alicante - Lucila Nogueira 1990

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A Dama de Alicante - Lucila Nogueira 1990

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A DAMA DE .A.LlCl\NTE

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LucHa Nogueira

A D4Mfi 0[ AllCANH

Oficina do Livro, 1 990

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Copyright 1990 by Lucila Nogueira

Todos os direitos desta edição reservados à OFICINA DO LIVRO EDITORA E LIVRARIA LTDA. - ME

Diretores

Ivan Cavalcanti Proença Isis Maria Balter Proença

Consultores Editoriais Florentina Esteves

Luiz Claudio de Faria Vera Moll

Capa:

"Lucila ", óleo sobre 70x50 cm, de Heynaldo Fonseca, para o po?ma "A danut de Alicante".

Arte~ fin~aZ:

Oarlos Alberto Torres

Revisão Damião Nascimento

CIP~Br-2,,~il.

Sindicato Nacim12J dos Editores de Livrns, RJ.

N71Zd

90-C349

l'Jogueira, 1950. A dama de Alicante / Lucila Nogueira. -

Rio de Janeiro: Oficina do Livro Ed., 1990

1. Poesia brasileira. I. Título.

CDD - 869•.91 CDU - 869.0(81)-1

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Nota da Editora, 5 Prefácio, 7

Identidade, 13 Oblívio, 14 Febre, 16 Real Grandeza, 17

SUMÁRIO

A dama de Alicante, 18 A visão de Dona Joana, 1~ Visitação, 20 Rua do Lima, 21 Meu sangue, 25 A águia e os vermes, 26 Sobrevivendo, 27 O dragão e o sonho, 28 Moldura estranha, 29 Carne pálida do mundo, 30 Passagem de Mauro Mota, 31 Aquarela, 32 O sono da esfinge, 33 A Richard Wagner, 34 Perpetuação da vida, 36 Peh~ penalva, 37 Fábula, 38 Ao louco ao delicado ao suicida, 39 Iluminado, 40 Cotidiano, 41

42 Informática, 43

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Concórdia, 44 Confiteor, 45 A faca na cintura, 46 Nave no dilúvio, 47 Passo secreto, 48 O circuito, 49 Guinevere, 50 Alguidar, 51 Nem mesmo em sonho, 52 A solidão dos vendavais, 53 Alheamento, 54 O espírito das fadas, 55 Anos depois, 56 Resíduo, 57 Na hora da queda, 58 A escrava e as asas, 59 Final, 60 Desencanto, 61 O mundo é mais embaixo, 62

QUASE POSFÁCIO

E se inda houver amor, 65 E se inda houver amor, 66 E se inda houver amor, 67 E se inda houver amor, 68 E se inda houver amor, 69

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NOTA DA EDITORA

-Lucíla Nogueira é carioca. Mas cresceu e estudou, e vive, na cidade do Recife, Pernambuco. Neta de espa­nhóis de Santiago de Compostela, filha de português da Régua, e mãe do interior de Pernambuco.

Poeta, tradutora, ensaísta. Professora Mestra em Teo­ria Literária pela Universidade Federal de Pernambuco. Alguns de seus ensaios no campo da Literatura vêm obten­do importantes premiações em todo o país. Nomeada Pro­fessora de Literatura Portuguesa, por Concurso Públi­co, na Universidade Federal de Alagoas.

Já publicou, como poeta: Alrnenara (Prêmio Manuel Bandeira, do Governo do Estado de Pernambuco, 1978), Peito Abeirto (Ed. José Olympio, 1983) e Quasar (Prê­mio Manuel Bandeira, do Governo do Estado de Pernam­buco, 1986).

A Editora Oficina, do Livro resiste. E publica ape­nas o autor brasileiro e o que seu Conselho Editorial con­sider·a obra importante. Se serão tais livros best-se'llers brasileiros ou não, é irrelevante. E, na verdade, não são. O que, aliás, se compreende no flagelado quadro sócio­cultural brasileiro.

A damCl de Alicante, de Lucila Nogueira, segura­mente se coloca no plano niais destacado, elevado, da

no Brasil, nesses últimos e penúltimos tempos. É

co.m indisfarçável um prazer que só quem lida orgulho mesmo, que a

c~'YLa do Li1)1 'o esta obra.

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PREFÁCIO

RESIST:l!JNCIA

Ivarn Cavaloonti Proenc;rL

O artesanal

Do ponto de vista técnico, estritamente artesanal, a autora se vale de simples estrofações em quadras, versos decassílabos predominantemente heróicos (aqui e ali o sá­fico), em estruturas rímicas não esquematizadas. Uma que outra aventura pelo alexandrino e pelo verso bár­baro. O título de dois de seus poemas, justamente os já conhecidos, lidos porque publicados em periódicos, antes de no livro, formam hexassílabos perfeitos: E se inda hou­ver amor (a completar-se no decassílabo heróico: eu me apresento) e A dama de Alicante (possível completar-se, heróico: antiga d'ama).

E que significam tais opções formais? Exatamente a eleição de quadras e decassílabos heróicos, inclusive mar­telo agalopado, formas essencialmente musicais, com in­tens:oi carga da literatura popular, oralizante. E isto em poesia, a da Autora Lucila, elaboradíssima, de atitudes e posturas clássicas. Paradoxo? Estabelece-se, aí, a tensão entre duas escolhas, em princípio opostas, mas que na A. se entrelaçam e se compõem, tal o que ocorrerá em seus longos e solitários passeios ·através das oposições, do crescente universo, da antítese, ao paradoxo, ao oximo·

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ro. Jogo dialético em que se define (debatendo-se) uma existência, a da poesia de Lucila Nogueira.

Assim, que no campo dos recursos técnicos, mais pre­cisamente das Imagens, aquelas oposições percorrem-lhe os versos. Fiel ao texto: A menina frágil que (entanto) conquista o mundo, aquela que a um tempo é rudeza e é doçura (em Identidade), fragilidade e cristal resisten­tes ( ?) ; às vezes, acrescentamos nós, uma fragilidade cul­tivada (v. A dama de Alicante). A autodefinição metafó­rica "Cristal de nave no dilúvio", entanto mais forte que os deuses (Na11e no dilúvio). Em Rua do Lima, a sensi· bilidade alucinada da menina que (entanto) ninguém no­ta. E o "nunca te· engane o meu olhar tão leve / e esse meu gesto límpido e celeste / um vendaval constante me domina". Prolongam-se oximoros, esse recurso tão ·ao gos­to pessoano (Fernando) . Que, aliás, deixou marcas em Na hora da qued1a os pedaços do vaso (aqui cristal) par­tido, e oposições do cristal fino que se conserta, dos lírios no deserto, do fogo na neve; e marcas em Meu sangue, quando do reconhecimento à Poesia, "e a ti devo, Poesia, estar vivendo / de empréstimo da dor que não passou" (que deveras sente). Oposições que já transitavam por Peito aberto (Ed. José Olympio, Fundarpe, 1983), em Vi­da adentro: "só de fragilidade me sustento", mas pode transformar-se em fúria permanentemente acesa; e em Aprendizagem "eu uma luz perpetuamente acesa / vim dar aqui neste b'alcão de trevas."

Mundo artesanal que coloca a A. diante da tentação de exercer Literatura (crítica) sobre Literatura (Poe­sia). Quando faz a apologia da espontaneidade da poesia: "espontâneo é o verso, claro e limpo / a registrar as pro­porções do abismo" (Febre), poesia prevalecendo sobre o denotativo, o supostamente claro e natural que seria sua fala, evidentemente prosaica: esta fala nem sempre faz sentido. Aqui, curiosa definição: a poesia, a imagem, o sugestivo, o conotativo é que a definem. Não sua própria fala. Por isso, mais contundente o "quantos tristes poe­mas jamais ditos" (Sobrevivendo). Prosseguindo o exer­cício, a autora celebra a força sinestésica: em seus ver­sos, "comenta" também em versos, um turbilhào de san-

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gue, cheiro, cor e pele (Visitação). Talvez por isso, ·arris­camos nós, ela própria (o eu do poeta confessando) re­sulte sangue, cheiro, cor e pele. . . "e sobrevivo apenas nestes versos" (SobreviveriJdo), ela que já fora o sangue, a explosão, a perplexa, em A boba da tragédia (v. o cita­do Peito aberto). Tudo, dentro daquela sensibilidade aln· cinada de que falamos antes. O prazer da reflexão sobre o próprio fazer literário exacerba-se em nova homena­gem que a A. presta à poesia enquanto força vital. Em poesia, ainda, confessa que vive desse bem pouco que lhe resta, o verso que dos astros a persegue "infinito imortal iluminado" - aqui, outra constante na A., triJcólon adje­tivação ternária da literatura oral, como acontecerá tam­bém em poema que eleva ( ! ) um coloquial audacioso do povo: O mundo é mais embaixo.

Significados

Aquele terrível paradoxo que nos diz de alma tão ter· na que nasceu entre penhas tão duras, do sonetista maior Cláudio Manoel da Costa, aqui encontra ressonância di­vernificacb, quando, fugindo ao conformismo e à destina-

(!), a acabou aprendendo - afinal, o mundo é mais embaixo mesmo - a fazer-se, dissimular-se, cris· tal, fragilidade que de fato é, para, a seguir e se p1Tciso for, "cre·scer ao sabor das intempéries". Curioso mimetismo. Faz-se frágil quem já o é, porque, só assim, estimulará indispensáveis reservas para endurecer. E ain­da lança um repto, cumprindo seu papel, apegada a um vestígio, apenas vestígio, de esperança em relação à so· brevivência do amor - e o faz em poema, Concórdia: "vamos amar antes que seja tarde",

O Ub'i sunt?, a busca dos idos e vividos, de uma se feliz ou que· não volta

tudo percorre, intenso, este livro. Nem a carga lírica das merüórias de criança em Rua

encobre a profunda re-sultante e que afinal no pungente, forte, ostensivo JllI eu sar;Jgue. '"Ela nifo foi buscar-me no Colé·

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gio / chorei por toda a noite no portão ... " "o grito a bofetada o descontrole / e o frio bem maior que o cober­tor". Ainda assim, revelações como a da hipálage "ver­sos adolescentes eu vos amo". Sabendo embora (ou por isso?) que "o tempo não devolve nada nada" (Anos de­pois).

Augusto, o dos Anjos, nos veio muito nesta leitura de Lucila Nogueira. No campo semântico de Oblívio, de Alheamento, Anos depois, e ao longo do livro nas ima­gens que facorecem relembrança do Se>wectude Precoce "Viute e quatro anos em vinte e quatro horas / Sei que na infância nunca tive auroras / E afora disso eu já nem sei mais nada", o poeta Augusto que, descrente, deu um balanço no mundo: nada encontrou. Ainda ·assim, grita um grito que é "revelação deste Infinito / que eu trago encarcerado em minha alma". Poesia vital, sobrevivência.

Ccdeidoscópio

Este livro se conclui com uma v1sao caleidoscópica de escritores de Pernambuco. O bis.sexto José Paulo Ca­valcanti Filho, e os poetas Nelson Saldanha, Waldemar Lopes, Edmir Domingues. Trabalhando com e a partir de E se inda houver amor, o incomum exercício resulta ple­no. de afinidades com o poema-fonte, e ressaltando-lhe o "valor alto". Falando de amor, "transformam-se os ama­dores na coisa amada". Na verdade, vale lembrar, o amor aJé que prossegue sua trajetória infindável, mais digna ou menos digna, entre vidas e gentes. O tema do amor é que se extinguiu na Literatura Poesia. Hoje, não há co­lJ:lO. Há, isto sim, exceções. Pois bem, aqui nesse E se inda houver amor, eis que se encontram, pela A., recur­sos técnicos e conteudí.sticos eficazes e atualíssimos, para retomar, revigorar o tema. ]\fo rastro do impulso, e no achado, vêm os outros poetas e mantêm e sustentam o clima. Se ainda há poemas de amor, aí estão ("e se apre­sentam").

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Rernate

Já que dissemos de poetas de Pernambuco, uma di· gressão que talvez caiba: Por esse Brasil, há escritores rigorosamente ignorados e que criam com extrema com­petência, domínio pleno da escrita. Julga-se que, por es­tarem ou em províncias ou em capitais distantes do gran­de eixo do Sul, não se projetam. Px~,Q,,,,,~iQmQ~,.,~ue

d\§S;,,q~ir .. essa ... Jil.,,,§~ .. !.~~~!:,S;1~~~<;!~,,, . .L\li11-.t() .~() PJ.1!?lt~~~"'2~w~:Mm ~~~,,,,9,~§,,,,tJ,L~~~SJ.".~~,J1I:~Íi~,,,lit§J;At,y;i;~~0~"'·"~t~~~,,~~,~~1r ~~~w,.!l~-"'~~-Y'~,ÇX,t1~~~~.~m~S/JJ2,<i .. ~,,J;~~Q.,",q,1J~t~.,,Çl,,~"""~=gen­~~"J,:i·~C/. .... ::S!Eê:§!L.dJ:'.,,J:;i.QJ.e .. =-S!i1.de.st.aca"'e,,.,j;g,m,~U'ª~··~:i;:ª'§,·,DU-~1!.2~~§1:.ê.1 ..• ~ ... íi.QJJ'.},_~:§,oot~u§.,§ª.2.Jl:9.\lL"'"~ll~,.,.~~.]"~~~ü:.8.:"'.~~~~­~.?-.~1n,I?,!5~_E.()§ ...• ~JJ.P!~m§!!i9.§.,,,ªit!?"'9",!i1~;;~.tiwL.. ,e, JW§Ji,Q.ê..12,r.­u~l,9~;§ .. Quais as fórmulas de que se valem, como se ex­põem e "freqüentam", como se estabelece seu círculo de conhecimentos ( ?) junto à Classe ( ?) e aos meios de Co­municação. Alguns, embora percam em dignidade pessoal, ainda escrevem corn talento, que acaba se diluindo na exata proporção em que se envolvem com o sucesso em

como o nosso. País colonizado culturalmente (por­que social e economicamente), o Capital é que regula as

culturais: ? Os escri-

pa1°a r-e:n­ibo­tão

se se deva lamentar a existência, até certo de escritores (no caso) tão

como o Nordeste brasileiro. Não

Lucila Nogueira escreve e publica. Nada a lamentar, conquanto de poucos conhecida. São raros os poetas no Brasil que atingem o nível, a tensão e força poéticas de

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Lucila. Mantém o Inefável, aura da Poesia de todos os tempos, mas mergulha no "circunstancial", na simplici­dade dos cotidianos. Daí, dessa alternância bendita é que resulta, talvez, o eu da A., transgressor ainda que quan­do (aparentemente) bem-comportado e conformado. Que ninguém se engane com esses ve·rsos. Um eu até irreve­rente e atrevido, questionador, pelos caminhos líricos ou não. Forma, portanto, de transcendência àquele outro eu existencial ( ! ) puro - a A. supera o individualismo e chega à relevante indispensável, individualização.

Um livro clássico, no sentido de "entre o que melhor se produziu e se produz entre nós", este A dama de Ali­cante. Em um poema, embora Desencawto por título, o eu da poeta, através de Lucila, se vale da metáfora-defi­nição "ave dilacerada que resiste". O lírico "Ave" logo se esvai com a carga menos, "dilacerada". Mas resiste.

Tal resistência, com muito engenho e arte, é símbo­lo dessa Poesia, a de Lucila Nogueira .

.. _

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IDENTIDADE

Eu sou somente o espasmo de teu corpo trago a vertigem que acelera o sonho sou ímpeto solar e esse exagero de carne em transe que te aplaca os nervos

sou a rudeza que te imobiliza e essa doçura armada de improviso sou fogo absoluto nas ogivas veludo com que afago a tua ira

eu sou esse desdém luciferino por tudo que é banal e sem poesia e sou febre incessante, obsessiva numa ansiedade p·ara além da vida

sou a menina frágil que resiste e ::i que conquista o mundo, mas é triste e esse peito doente, estiolado a suportar o mundo em intervalos

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OBLíVIO

Trago a flor da mandrágora no ventre e os vapores do ópio me circundam no olhar um:=t saudade irisdescente e uma melancolia de outros mundos

a minha foi meu recomeço nasci durante o eclipse da lua a Inúsica salvou-me muitas vezes e me deu para vi:r à rua

eu cresci ao sabor das entre a,s formas estranhas de loucura fuYor engano ou febre a ilusão dos sentidos me confunde

que importa para o círculo das noites se o teu passo é real ou se é miragem não há erro no sonho mais escuro e a loucura é ·a razão com outra face

o transe a possessão o olhar perdido entre o fundo do abismo e a luz dos astros estava escrito em todos os livros o triunfo imortal dos insensatos

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üblívio lassidão sonambulismo catáfora de um filtro entorpecente e a paz maior venceu o ·algarismo vulgar das existências imperfeitas

doença ou lucidez, pulso ou magia fui vítima ou senhora da beleza? matei-me quando tudo era alegria - meu coração ninguém matou a se<ie

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FEBRE

O que eu f'alo nem sempre faz sentido pouco do que converso me define: espontâneo é o verso, claro e limpo a registrar as proporções do abismo

as palavras só crescem meu silêncio entre o mundo e as pessoas dividido mas à noite sozinha eu ressuscito e passeio febril na labirinto

onde uma voz me chama eternamente fada memória de uma raça extinta e entre guerras e máquinas perdido julgas racionalmente que eu deliro

febre consolidada em meu destino como o ato solene de estar vivo como a pele imantada e complacente que se fecha uma vez é possuída

vulcão lançando lava sobre pedra gelo que das encostas se derrete e depois fica assim, desativado fogo capturado pela neve

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REAL GRANDEZA

Eu não sei se nasci desta maneira ou se assim me talhou o sofrimento a solidão, a falta de carícias como também a falta de dinheiro

sombra desmesurada no silêncio envidraçada sigo pelas ruas atônita arrastando sobre o peito minha incapacidade para o mundo

velho instinto de morte, pesadelo e a sensação de queda pelo sono o duplo desdobrado: a Real Grandeza que se repete aos vinte e cinco anos

eu não sei se nasci desta maneira ou se foi me pintando o desengano esfinge encurralada na poeira construindo o equilíbrio da pirâmide

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A DAMA DE ALICANTE

Sei me vestir de tola, se preciso como essa antiga Dama de Alicante

A Angelo Monteiro

inda que ao fim só reste o que eu ensino cama-de-gato que aprendi criança.

Sei me cobrir de frágil, de improviso sob o furor de um cavaleiro andante e as chaves da cidade conduzindo

que pennaneça por encanto.

Filerm', de amor, doce paixão de abismo navegam meu oUw,r, como essa dama

que, misteriosamente um dia suicidou-se em Alicante.

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A VISÃO DE DONA JOANA

Quarenta e sete anos de clausura custaram~te esse amor que dedicaste inda vejo o teu vulto taciturno caminhando nas noites de Granada

seminua nas torres de Castela fogueira junto à ponte levantada ninguém compre·endeu o teu queixume teu corpo envelheceu ignorado

Dona Joana, a demente por ciúme a paixão alterou o seu estado vejo-te em Flandres, erguendo a tesoura e as tranças da rival decapitadas

o belo Don Felipe, o leviano o insulto indiferente, a bofetada e as mouriscas do harém não devolveram o amor do rei com banhos perfumados

véu negro sobre o rosto melancólico alheia no langor dos delicados na Cartuxa final de Miraflores enfrenta o amado morto como estátua

arrancaram teus filhos e teu reino teus pais morreram sem nunca encontrar-te inda vejo o teu vulto taciturno caminhando nas noites de Granada

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VISITAÇÃO

Vou retirando, enfim, peça por peça para o momento da loucura humana: um quadro abandonado de Correggio vive na casa em que perdi a infância

esse segredo dói, me desgoverna destino exausto de uma lenda estranha nào me busque·m na cEtsa, mas nos versos onde celebro o turbilhão do sangue

exaltação de cheiro, cor e pele circuito em carrossel, fogo de vidro delícia alucinada, sonho e febre: só o anjo da parede me decifra.

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A Audálio Alves

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RUA DO LIMA

A memória da minha avó Lucilla

I

Esses dias de chuva lembram sempre as tardes de leitura no sobrado viagens na cadeira de balanço comendo um alfenim iluminado

João Pé-de-Feijão, Gato de Botas Pele de Asno, Gi:1ta Borralheira A Bela Adormecida, a Moura Torta e eu era Alice atravessando espelhos

os olhos muito verdes no sílêncio a avó dormindo, ·a empregada muda a escada o corrndor a travessia pelos mares da infância absoluta

Unüio, Cabugá, Gervásio Pires, murmúrio das galochas sobre a água a capa, o guarda-chuva e era mais triste no colégio o recreio emparedado

esses dias de chuva lembram sempre o cágado nadando no ·alagado quintal de uma criança dividida .além de Botafogo e Santo Amaro

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a Rua Caimurano, o realejo parado na Voluntários da Pátria e eu ia visitar na Real Grandeza minha avó portuguesa e seus canários

anúncios coloridos pelo bonde Phymatosan, Juvenia, Gato Preto tudo era cheiro de lança-:cperfume e a escuridão do túnel meu segredo

a bica no terraço, a queda d'água seu cântico perene e a Serpentina Gigante que arremessa quando chove um sol no meu cenário de menina.

II

Visões obstinadas me seguiam da porta do sobrado para o sono as roupas penduradas na parede me olhavam como espíritos na sombra

e a umidade escorria das paredes rumo às cores geladas do assoalho só não era sombrio e indiferente o carrossel de vidro sobre o aquário

eu tinha um avental azul e branco e uma lancheira pendurada ao braço dois laços de organdi entre os cabelos e estrelas escondidas no meu quarto

um cristal onde eu via o arco-íris vara de pegar manga-rosa e espada o ímã que atraía os alfir..etes os discos portugueses de saudade

os bambus e ·as roseiras no canteiro minha avó como eu tão delicada

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e o dia em que no sótão alguém disse quereT jogar-me no Capibaribe

letreiros luminosos sobre. o rio cu sentada no ônibus "Cidade" e na volta da escola ao meio-dia o jogo de operários na calçada

número cento e dois, Rua do Lima: casa tão pequenina e tão gigante por onde foi crescendo essa menina fada de Peter Pan tocando o sonho.

III

Ninguém sabia que eu era poeta nem mesmo a noite com seu mar de mágoas ninguém notava no meu dia-a-dia a sensibilidade alucinada

mundo que eu tanto olhava e não me via humanidade: foto congelada assustando a passagem da alegria na criança abstrata e solitária

versos adolescentes, eu vos amo Colégio São José, Rua do Lima Parque Treze de Maio, já não brinC'a na calçada a pobre menina rica

atravessei a vida entontecida olhando para trás, levandG quedas fada feérica em fulgor de febre amarrada ao noturno das comédias

festim feroz, feriu-me a fera fria e o corpo que era etéreo se fez carne carne desmesur:Jda, carne viva perplexa e indefesa C'arne alada

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carne desesperada, estremecida rebelde da paixão fragmentada carne deusa do sonho e da magia a razão se confessa tua escrava

Pó de Pirlimpimpim, Terra do Nunca esses dias de chuva me recordam e eu que sou luz vulcânica entristeço mar de melancolia em plena mágoa.

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MEU SANGUE

Ela não foi buscar-me no colégio chorei por toda a noite no portão já bem perto das onze aparecia estranha entre a tristeza e a escuridão

ela falava s·ó dentro do ônibus sua veia avermelhava o corredor o grito a bofetada o descontrole e o frio bem maior que o cobertor ~ •·• '''"'' ""-~"'"'""*'.'""""·'l;''">'~Xo{1~,;,i.~~,;, ...,,,.:i; • •."\·lP'1''"'1''.c:> •.~'(l',..,--1'.i~l~jf,jo\'~C't:•W-~-""~"1~

meu pai, o perfumista silencioso o Alcântara o Dom Pedro, o Vera Cruz o aze·ite o bacalhau o vinho do Porto e a filha louca de Madam'Brandão

de pai ausente e mãe sempre doente a forç·a de escrever me equilibrou e a ti devo, Poesia, estar vivendo de empréstimo da dor que não passou

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A .AGUIA E OS VERMES

Foi muito sofrimento acumulado agora eu vou sonhar tudo o que resta

··-~O mundo é um papagaio destroçado fa. no arvoredo infantil de uma quimera

os pombos já na praça aterrissaram e nenhum São Francisco foge à guerra ai selvagem cidade desumana que envergonha a ternura d·as cavernas

ridícula e banal vulgaridade papéis que decorei, que já não servem que futuro há de ter a águia gigante se insistir em cruzar o sol dos vermes?

De ti, raça cruel, sei que me salvo pendurada na cruz deste meu verso:

''~"o mundo é um papagaio destroçado agora eu vou sonhar o que me resta

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SOBREVIVENDO

Para te suportar, mundo terrível dias de amor desperdiçados

quantos tristes poemas jamais ditos queimando o coração na madrugada

Para te suportar, mundo insensível máscaras dormem neste armário

pesadelos pavores precipícios navegam minhas horas neste aquário

Para te , sem suicídio diariamente a consciência cego cego a ahna inocente, cego a vida e sobrevivo apenas nestes versos

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O DRAGÃO E O SONHO

Piedade jogou-se do edifício. Quem vai ficar para a tortura humana? À saúde imortal dos suicidas eu bebo e alguém criou a bomba atômica

enquanto eu amo eu danço eu faço versos colhendo flores a sonhar romántica m:c1s o mundo conspira em cada fresta e ('ID cada porta sempre ronda um monstro

dragão desesperado em meus sentidos a teu veneno misturei meu canto maior que a dor, maior que o desencanto que mata cruelmente os suicidas

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MOLDURA ESTRANHA

Existe um horizonte muito breve entre o universo e o desespero humano e um rosto solitário se despede da multidão que gira no abandono

existe uma promess·a indefinida que não cumpriu seu rito luminoso um ímpeto fatal que não se entende e uma argola de ferro presa ao sonho

vegetação solar sempre ao poente deus labirinto derivando o sangue mágoa perdida na palavra ausente e um coração numa moldura estranha

vertigem que se ampara no vazio chão colorido, búzio milenar um trêmulo cometa desce a noite, e o corpo enfim retorna para o mar

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CARNE FALIDA DO MUNDO

Por entre os alicerces do silêncio além das águas trágicas do sono eu decidi mudar-me para o centro da formação das rochas e do tempo.

Eu vou descer agora e para sempre: meus olhos queimam nesta terra escura. Pássaro azul ou lâmpada secreta a multidão me acena sob o tronco.

Desaparece enfim a fada estranha pela corrente de seu próprio encanto. E a tatuagem de uma estrela breve rola na carne pálida do mundo.

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PASSAGEM DE MAURO MOTA

A dama fez girar os parafusos sob os olhos dos filhos solitários e o poeta desceu a escadaria livre da multidão que soluçava

livre da humana areia movediça da surpresa homicida dos sicários livre do desencanto e da saudade o poeta partiu dentro da tarde

- devo encarar a morte: eis o tempo do mergulho final dentro da árvore verei a face exata dos amigos reunidos na Porta de Passagem

a disputar ·a vida, enquanto o risco do cimento inda seca sobre o mármore onde estarei a salvo desse abismo amarrado aos meus últimos sapatos.

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AQUARELA

Eu vivo pelo traço de Van Gogh neste corpo talvez de Renoir e os sátiros perseguem na floresta a fada bailarina de Degas

Sou a maja desnuda na fogueira cigana de Franz Hals presa ao luar e o rapto de Rubens me extasia mu her oriental de Delacroix

Alumbra e me alumia, grada plena no zênite perpétuo vou sonhar jardim de encantamento, flor de abismo eu vivo pelo traço de Van Gogh

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O SONO DA ESFINGE

Numa taça de ouro dorme a esfinge como ninfa de bronze em mar de prata eu dançarei a guerra de Nijinsky mas sempre hei de vencer a realidade

aceitarei a orelha de Van Gogh qual se fora uma jóia ou um perfume oh damas, não recusem com pavor a luz crepuscular do vaga-lume

alvaiade aguarrás terebentina monstros em girassol sob o relâmpago e eu acordo em circuito repentino suspensa nas muralhas de Alicante

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A RICHARD WAGNER

I

Que existe em ti que tanto me fascina e atravessa a miragem na neblina a noite me encontrou embriagada meu coração flutua sobre as águas

~

Que existe em ti que tanto me fascina a marcha para o céu definitiva primitiva alegria permanente no drama do teu ímpeto solene

Que existe em ti que tanto me fascina a grandeza de um deus apaixonado a fúria das valquírias pelo espaço D filtro que liberta os condenados

II

Sem dúvida era imenso o teu fascínio C'anção dilacerada pela guerra teus deuses já são homens sem remédio pela sobrevivência da matéria

Acordes de teu mundo irredutível ao racional limite dos modernos

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cercada de robôs e maqmmsmos eu choro ter nascido neste século

Sem dúvida era imenso o teu fascínio força tão delicada de um poeta. Sem dúvida era imenso o teu fascínio a música dos deuses sobre a terra

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I

PERPETUAÇÃO DA VIDA

(Visita ao atelier de Francisco BrennandJ

São mudos os acasos, mudos ícones divindades do barro sob a água exatas mutações, mudos sentidos curvas energizadas para o alto

fogo de cartilagem na mazia totêmica e orgástica e selvagAm muda população, muda po9::>Í8, imóvel entre o chão e a e~ernidade

perpétua labareda, muda er_guia no azulejo do forno ilum'·1aclo cabeça muda de boneca ar/;êgp, quem sobreviverá para e-ncortrar-te

quando a fúria fatal de un fogo frio deixar longe o tumulto ds::i pdavras corpo e vegetação, muda ene::gia na balsa silenciosa sobre p, tarde

são mudos os acasos, mudos ícones divindades do barro sob a água muda população, muda poesia imóvel entre o chão e a eternidade.

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PELE PENALVA

Pele penalva, dísse o bailarino e as janelas fecharam-se sozir~~,as.

Mágica solução de uma cantíf,?": tapete colorido nas urtigas, Pele penalva, disse o baila:;_ºino fatal da minha febre de irripossíveL

Reino de absoluto do invisível tensão do rosto anterior à vida estrela pendular, bola de vidro fiquei assinalada pelo enigma pele penalva, disse o bailarino e eu amo essa palavra inacessíveL

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FABULA

Não me destruirão, pensou a fada vestindo a sua pele de jaguar assim também a esfinge olhando a terra: no dorso do animal eu recupero duas cabeças vivas de mulher.

Solitária na sala dos espelhos sei que um deles é porta milenar rosto que me contempla do outro lado a febre em preto e branco a identidade a esfinge a dupla escada o interior

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AO LOUCO AO DELICADO AO SUICIDA

Comigo o simbolismo dos possessos dramáticas visões transfiguradas solene desespero desconexo a febre o precipício o gosto amargo:

menos que o sonho, pede a vida ao louco ao delicado ao suicida.

! /

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ILUMINADO

Eu prefiro chamar-te de inocente liberdade secreta da verdade doce sabedoria que não mente filtrando as rédeas da realidade

eu prefiro chamar-te de inocente exagerado em sensibilidade gigante alucinado comovente eu prefiro chamar-te iluminado

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COTIDIANO

As pernas oscilando sobre a praia na varanda no forte na janela o soco no baú e a luz do acrílico quebrada como o sonho da princesa

a noite o carnaval a corda e os ramos da árvore arrancados no delírio o frevo o desafio a força o transe e eu tudo segurando em corrupio

e en tudo segurando pelo instante de paz fora da crise, de sossego de meiguice infantil entre farsantes fascinação febril vencendo o medo

só me atrai a miragem dos eleitos e -a possessão sagrada dos perfeitos serena lucidez própria dos deuses soltando no universo o seu novelo

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OPÇÃO

Eu escolhi os loucos e confirmo: os monstros são produtos da razão Goya, meu companheiro de capricho só na arte há o triunfo da ilusão

eu e·scolhi os loucos invencíveis guerrilheiros febris das convenções vinde a mim, loucos, ébrios, suicidas contra a monotonia dos normais

vinde ·a mim, Holderlin, Van Gogh e Nietzsche Quixotes embarcados para a luz Descartes e seu demônio é que traíram o sonho e o cravejaram numa cruz

O delírio: só ele me fascina sabedoria avessa em turbilhão a lógica é a coroa do medíocre o exílio na loucura é salvação

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INFORMÁTICA

Antes que tudo seja teoria e o sentimento morra na sacada ferido pelo herói de nossos dias - polícia executivo tecnocrata -

vou digitar a máquina do tempo vou passar meu cartão de eternidade: quero a aldeia de mares sem limite onde reinam os Pássaros Sagrados

e o sonho é sempre o único sistema harmônico universo telepático onde a sobrevivência é a natureza e o dinheiro uma troca de milagres.

A Roberto Pereira

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CONCóRDIA

Que sobrará ao fim desse tumulto da luta sem cessar por ouro e glória e do ressentimento e da disputa que a morte .sempre cura a qualquer hora

ai corações tão duros, tudo morre e tudo é vaidade e tudo passa ai de·smemoriados do futuro vamos amar antes que seja tarde

n§.o contra-ataco e não me sacrifico nen1 dio nem seguem vôo de

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é a mesma e sem saída se ·:,f.erte a outra face

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CONFITEOR

Pedir condenação num mundo transitório tirar de sua casa, trabalho, amada ou filhos alguém inda que vil, medonho ou sanguinário: não sei, Senhor, não sei - me livra e desobríga.

Sair cada manhã esmiuçando atritos o sangue a faca o tiro o engano o roubo o vícío na volta exorcizar do meu sono esses crimes: Senhor, Senhor, Senhor - me livra e desobriga.

Eu temo a violência - delicada e sensível ,só entendo de amor, o da carne e o do espírito -- por pura virn cantare neste sítio.

a enredo homicida

e o balcão da feitos da i11es111a ca.r11.:2 prisioneiros e vitimas.

dure a o ar que se e o mar não dissinmle sua força invencível eu devo ser fiel ao meu sonho e destino :

sou mais a descoberta do que a melancolia sou mais a fé nas coisas, sou mais a alegria sou a dança infinita, sou a carne no cio - eu sou mais a justiça que rege os passa-rinhos.

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A FACA NA CINTURA

A Francisco AusterUano Bandeira de Meloi

Cigana, sim, a faca na cintura tudo ·abandono no ímpeto mais súbito leopardo ou leão, brilho em perigo águia que tem descanso nas alturas

encaro a luz do sol desde menina num corrupio sôfrego e selvagem sou nômade e pagã e desafio os cães domesticados da cidade.

cigana, sim, as garras de veludo carrego a sorte na casa-rolante o teu segredo eu sei e o teu futuro dançarina andaluz num véu de chamas

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NAVE NO DILúVIO

Sou mais forte que os deuses nesta hora seios queimando sob o odor da chuva sangue na foz do sonho, rosa e pedra: fêmeia abstrata de um dragão noturno

concha dilacerada, espada bruta sebe de solídão única e múltipla e as folhas, astros, cores, mares súbitos jamais podem conter essa volúpia

soberana visão, p·antera acesa simétrica memória seminua sou mais forte que os deuses nesta hora fugaz, cristal de nave no dilúvio

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PASSO SECRETO

Prodigiosa força sem remédio furor infinitésimo e completo duende alucinado que só perde suas amarras no meu corpo aberto

tudo suporto e nada me perdoam nada me e tudo sempre oferto e eu vou chorando por todas as ruas me arrasto cor de no

quero descer ao sol de toda gente do sonho maís b:ceve dran1ática e solene

enorme e sonolento rne anunciando uma estrela sem te/co

nunca te engane o meu olhar tão leve e esse meu e celeste: un1 vendaval constante me domina incendiando o meu passo secreto e eu só conheço a mansidão das feras que pelo amor a selva desvanece

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O CIRCUITO

Resiste a essa pa1xao que desmorona a heróica fortaleza do equilíbrio: o sonho de me ter te impressiona bem mais que as ameaças do inimigo

há uma fatalidade no mistério que te agita e e te estremece sou a fada fantástica da febre circuitos agasalho a

meu corpo é vivo desses astros que eu em teu olhar segu·es

história de araor <t cada. e .ft c?_.da gesto

que te enfeitiço sn sem remédio resiste ao e11ca:nta111ento irresistível~

sinto arorna de sangue sobre a terra

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GUINEVERE

Eu andarei em círculos na tarefo presa no telescópio de cristal Guinevere do sonho, Guinevere sonâmbula no amor de Lancelot

macia como ·a flor do pessegueiro tingida pelo sangue do dragão oh turco narguilê, sari de estrelas bandeja do oriente sob o sol

Guinevere do sonho, Guinevere doce duplo da lenda, flor fatal ai trompas de marfim, búzio de neve no anel que em diadema se tornou

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ALGUIDAR

Tive um sonho de xales coloridos na cruz medieval de um coração tive um sonho de altares e patíbulos fogueiras desenhando a solidão

e no pátio de pedra havia um sino e havia um poço e um alguidar de luz e ·a visão repentina de um menino turvando as águas do meu sonho azul

El~~~w-~,C],,~~~,, .. ,<L~ •. ,f!2,;1~s.-,~. 2'.:.~lJ. 4.ª.8 acacias e J asmms e r ªllJ-.Mc~ª'~,,..~

,u~.tig;Q .n.a.JJ;\~~~~~~,,,Q;ª'~"'~.uhÊ"s

para o tempo onde o corpo faz sentido para o incenso opiário das paixões para o que há de divino em todo sonho rasgando o véu cinzento da razão

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NEM MESMO EM SONHO

Preciso de você quando escurece e o coração encontra a plenitude faltando amor na infância falta o resto e há de ser muito triste a juventude

preciso de você, tão triste e séria - eis a face real que eu sempre escondo preciso de você que o mundo é fera jamais domesticada pelos homens

são muitas solidões desmesuradas perdidas nos espasmos do abandono são pássaros sem vida agasalhados nas folhas deste livro que componho

melodia cruel girando o abismo que a vertigem me arrasta na distância preciso de você, bondoso e belo como jamais eu vi nem mesmo em sonho

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A SOLIDÃO DOS VENDA VAIS

Eu trago a solidão dos vendavais à solidão de pedra do teu peito. Guardo o segredo dos canaviais ondulando as colunas do meu leito.

Tenho na pele o pássaro e a fera meu sangue é uma cascata prisioneira. Adormeço no mar e nas crateras no eterno movimento das fogueiras.

Perdoa-me se parto da planície que em erma calmaria tu me dás. Eu quero o precipício das vertigens: eu trago a solidão dos vendavais.

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ALHEAMENTO

Desgovernei a órbita dos sonhos mudei a foz e o terminal dos rios deixei o fogo do universo aceso: estou cansada, amor. E tenho frio.

Estilhacei a rota das algemas incendiei as catedrais vazias dei o meu corpo aos deuses mais sedentos: estou cansada, amor. E tenho frio.

Lavei a chaga milenar do homem busquei saídas, mapas, utopias foi muito tempo consertando o mundo: estou cansada, amor. E tenho frio.

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O ESPíRITO DAS FADAS

'Sérgio, eu te amo nesta tarde estranha relâmpago que a chuva desampara 'e a magia infantil dos delicados derrota o equilibrismo dos sicários.

Desde esse amor, o mundo envergonhado afasta os seus verdugos desta casa: túnel do céu, canéfora estrelada luz onde mora o espírito das fadas

ardósia ardente em catedral de orvalho chão prisioneiro de uma estátua líquida 'Sérgio, eu te amo, exausta e obsessiva . sobr e o teu corpo em êxtase vencida.

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ANOS DEPOIS

Eu sei que envelheci, que o tempo marca as rotas do meu corpo cor de mármore e já não sou a mesma que no rio fazia amor sempre ao cair da tarde

mas quem foi que mudou, o que é que esfria os amantes na ·curva do cansaço? Ai, mas como eu te amei. Rio Doce, Olinda são tantas as paisagens sob os astros

O J anga entre os sargaças e coqueiros a noite enluarando os nossos passos eu sei que envelheci, que tudo passa e o tempo não devolve nada nada

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RESíDUO

Resta apenas o som e a natureza o mar visto do alto da colina o verde iluminado e essa certeza de violões ~w pôr-do-sol de Olinda

restam anjos na talha da madeira baú vazio de um tesouro errante e o desencanto balançando a rede da infância nas varandas do mirante

resta a noite que desce na ladeira arrastando estrelinhas de latão e a menina ferida na colheita final da última safra de ilusão

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NA HORA DA QUEDA

Posso te perdoar, pois 'a serpente também teve um lugar no paraíso mesmo quando se quebra o encantamento a vida sai girando sob o abismo

Posso te perdoar, doce e materna guirlandado por espinhos

madona oriental que expulsa a fera tremendo sob a seda do vestido

Posso te , se é que concebes que um cristal assün fino se conserta que os lírios frutificam no deserto que o se alimenta pela neve

Posso te tal como um pássaro na hora da queda

posso te perdoar, feita em pedaços inocência abatida pela treva

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A ESCRAVA E AS ASAS

Dirás que fui somente a ensolarada escrava calêndula estendida a plena madrugada. Um caminho estrelado, uma estória encantada na tenda de teus braços p·assada para a vida.

Ah, tu dirás sorrindo que eu te adorava tanto que me desesperava se ao fim adormecia. Que eu fui o teu espasmo, e fui tua alegria e quanto mais te amava, menos me pertencias.

Dirás que fui somente a musa alucinada a guardià do fogo, em seus ramos perdida. Dirás que fui talvez, quem sabe a tua amada e verão no teu corpo minhas asas partidas.

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FINAL

Vegetação de sonho destruído exatidão de fonte ressequida nenhuma luz aclara aquel€' rosto nenhum gesto ou palavra o traz à vida.

Nada sobre esta terra que restaure o brilho a pele a cor daquela imagem: partida ela estará todas as tardes na gruta imóvel de sua própria carne.

Todo começo é belo, antes do sangue antes da cicatriz que não demora. Todo começo é belo. E todo sonho se quebra sobre a mesma plataforma.

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DESENCANTO

Eu amo a perfeição unicamente nada tenho a fazer na espécie humana cada decepção :me põe doente e o :mundo inteiro é choro e desencanto

Ave dilacerada que resiste já não sei refazer-me a cada instante lavar diariamente a face triste efígie derrotada no abandono

Já não tenho a esperança que conquista e remete ao passado os desenganos já não sei me iludir, contorcionistas que a morte deslumbrais com tantos planos ....

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O MUNDO É MAIS EMBAIXO

Mas tudo é sempre injusto e repetido nada que seja livre, mar fechado barca desesperada sobre o enigma de onde ninguém saiu aliviado.

Pobre Lucila, o mundo é mais embaixo muito aquém das soberbas utopias do teu sonho de infância destronado.

Nada escapa ao humano labirinto: um por um vão chegando ao precipício teus heróis para sempre enfeitiçados.

Vive desse bem pouco que te resta: o verso que dos astros te persegue infinito imortal iluminado.

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QUASE POSFÁCIO

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E SE INDA HOUVER AMOR

E se inda houver amor eu me apresento. E me entrego ao princípio do oceano. E se me atinge a onda, úmida eu tremo esquecida de insones desenganos.

E se inda houver amor eu me arrebento feliz, atravessada de esperança e mesmo lacerada inda assim tento quebrar com meu amor todas as lanças.

E se inda houver amor terei alento para agüentar o inútil destes anos. E não me matarei, sonhando o tempo em que me afogarei no seu encanto

e se inda houver amor, ah, me consente ser pasto de tua chama, astro medonho. E se inda houver amor, eu simplesmente apago esta ferida do meu sono.

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E SE INDA HOUVER AMOR

José Paulo Cavalcanti Filho

E se inda houver amor eu me apresento Como quem pede um pouco de comida Ou quem procura a dor desconhecida Ou como o pássaro espreitando o vento.

E se preciso for eu me arrebento Como uma onda a mais na vasta vida Buscando a calma dessa alma perdida Deixando as marcas de seu desalento.

E fica o sono, o tempo, o vento, o sonho E a lança inútil nesse mar medonho E a ilusão de tanto tempo atrás.

E fica a chama dess·a insensatez Que se ilumina como ainda uma vez E que se apaga como nunca mais.

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E SE INDA HOUVER AMOR

Waldemar Lopes

E se inda houver amor, que a mão da morte (ou sua eRguia sombra, em chão de medo) se liberte do tempo, e pouco importe que ela demore a vir, ou venha cedo.

E se inda houver amor, no mais profundo do ser, onde se oculta a angústia do homem, que seja uma visão ideal do mundo a desfazer os males que o consomem.

E se inda houver amor, que fique a vida fiel ao sonho, imune às leis da idade, e mesmo na emoção da despedida a dor se transfigure em claridade.

E se inda houver amor, que o sentimento (pena e glória nos céus de seu inferno) tão alto, e belo!, seja um ,só momento que, se mais transitório, mais eterno.

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E SE INDA HOUVER AMOR

Se ainda houver amor, como o que havia sob as ogivas místicas de Dante que ele se estenda ao mundo circundante como um fulgor que abrange e contagia.

Se ainda houver amor ou pelo menos restar como palavra em decionários que se renove e se refaça em vários vários modos de ser da própria Vênus.

Se ainda houver amor, por estes dias de acrílico e de máquinas que seja algo como uma estrela benfazeja por dentro e para além das alquimias.

Se ainda houver amor, que surja então: e que a poesia o acolha, e que o atice. E se inda houver amor, que se eternize nas próprias inconstâncias da paixão.

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Nelson Saldanha

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E SE INDA HOUVER AMOR

Edmir Domingues

Se ainda houver amor, mesmo no inverno há de haver o calor quando deitados, e haverá, no verão, o frio interno que arrepia os sentido excitados.

Se ainda houver amor, em plena chuva há de brilhar um sol de quentes raios, melhor vinho há de vir da melhor uva, temperando sussurros e desmaios.

Se ainda houver amor haverá tudo. O nada reduzido a nada, quando o manso olhar trocado seja mudo, da mudez, da nudez, do amar amando.

Se ainda houver amor, a luz mais pura será mais do que luz, fruto e semente da multiplicação que lhe assegura de que seja infinito. Eternamente.

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Page 73: A Dama de Alicante - Lucila Nogueira 1990

Este livro foi composto e im',Presso p ela REAL RIO GRAFICA E EDITORA LTDA. -Rua Arist ides Lobo, 106 - R io Comprido, RJ - em m aio de 1990, para a OFICINA

DO LIVRO