A Dama do Pé de Cabra, Alexandre Herculano

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    A DAMA DO P-DE-CABRA

    Alexandre Herculano

    Trova Primeira Captulo I

    Vs os que no credes em bruxas, nem em almas penadas, nem em tropelias de Satans, assentai-vosaqui ao lar, bem juntos ao p de mim, e contar-vos-ei a histria de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia.

    E no me digam no fim: "no pode ser." Pois eu sei c inventar coisas destas? Se a conto, porque a li num livro muito velho. E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que omesmo, a algum jogral em seus cantares.

    uma tradio veneranda; e quem descr das tradies l ir para onde o pague.

    Juro-vos que, se me negais esta certssima histria, sois dez vezes mais descridos do que S. Tomantes de ser grande santo. E no sei se eu estarei de nimo de perdoar-vos como Cristo lhe perdoou.

    Silncio profundssimo; porque vou principiar.

    Trova Primeira Captulo II

    D. Diogo Lopes era um infatigvel monteiro: neves da serra no inverno, sis dos estevais no vero,noites e madrugadas, disso se ria ele.

    Pela manh cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em sua armada, em monte selvoso e agreste,esperando um porco monts, que, batido pelos caadores, devia dar naquela assomada. Eis seno

    quando comea a ouvir cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar.Levantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosadama: era a dama quem cantava.

    O porco fica desta vez livre e quite; porque D. Diogo Lopes no corre, voa para o penhasco.

    "Quem sois vs, senhora to gentil; quem sois, que logo me cativastes?

    "Sou de to alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu senhor de Biscaia."

    "Se j sabeis quem eu seja, ofereo-vos a minha mo, e com ela as minhas terras e vassalos."

    "Guarda as tuas terras, D. Diogo Lopes, que poucas so para seguires tuas montarias; para o desportoe folgana de bom cavaleiro que s. Guarda os teus vassalos, senhor de Biscaia, que poucos so eles

    para te baterem a caa.""Que dote, pois, gentil dama, vos posso eu oferecer digno de vs e de mim; que se a vossa beleza divina, eu sou em toda a Espanha o rico-homem mais abastado?"

    "Rico-homem, rico-homem, o que eu te aceitaria em arras coisa de pouca valia; mas, apesar disso,no creio que mo concedas; porque um legado de tua me, a rica-dona de Biscaia."

    "E se eu te amasse mais que a minha me, por que no te cederia qualquer dos seus muitos legados?"

    "Ento, se queres ver-me sempre ao p de ti, no jures que fars o que dizes, mas d-me disso a tuapalavra."

    "A la f de cavaleiro, no darei uma; darei milhentas palavras."

    "Pois sabe que para eu ser tua preciso esqueceres-te de uma coisa que a boa rica-dona te ensinavaem pequenino e que, estando para morrer, ainda te recordava."

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    "De que, de que, donzela? acudiu o cavaleiro com os olhos chamejantes. De nunca dar trguas mourisca, nem perdoar aos ces de Mafamede? Sou bom cristo. Guai de ti e de mim, se s dessa raadanada!"

    "No isso, dom cavaleiro interrompeu a donzela a rir. O de que eu quero que te esqueas osinal da cruz: o que eu quero que me prometas que nunca mais hs-de persignar-te."

    "Jsso agora outra coisa" respondeu D. Diogo, que nos folgares e devassides perdera o caminhodo cu. E ps-se um pouco a cismar.

    E, cismando, dizia consigo: De que servem benzeduras? Matarei mais duzentos mouros e dareiuma herdade a Santiago. Ela por ela. Um presente ao apstolo e duzentas cabeas de ces deMafamede valem bem um grosso pecado.

    E, erguendo os olhos para a dama, que sorria com ternura, exclamou: "Seja assim: est dito. V,com seiscentos diabos."

    E, levando a bela dama nos braos, cavalgou na mula em que viera montado.

    S quando, noite, no seu castelo, pde considerar miudamente as formas nuas da airosa dama, notouque tinha os ps forcados como os de cabra.

    Trova Primeira Captulo III

    Dir agora algum: Era, por certo, o demnio que entrou em casa de D. Diogo Lopes. O que l noiria! Pois sabei que no ia nada.

    Por anos, a dama e o cavaleiro viveram em boa paz e unio. Dois argumentos vivos havia disso: InigoGuerra e Dona Sol, enlevo ambos de seu pai.

    Um dia de tarde, D. Diogo voltou de montear: trazia um javali grande, muito grande. A mesa estava

    posta. Mandou conduzi-lo ao aposento onde comia, para se regalar de ver a excelente preia que haviapreado.

    Seu filho assentou-se ao p dele: ao p da me Dona Sol; e comearam alegremente seu jantar.

    "Boa montaria, D. Diogo dizia sua mulher. Foi uma boa e limpa caada."

    "Pelas tripas de Judas! respondeu o baro. Que h bem cinco anos no colho urso ou porco montsque este valha!"

    Depois, enchendo de vinho o seu pichel de prata mui rico e lavrado, virou-o de golpe sade de todosos ricos-homens fragueiros e monteadores.

    E a comer e a beber durou at a noite o jantar.

    Trova Primeira Captulo IV

    Ora deveis de saber que o senhor de Biscaia tinha um alo a quem muito queria, raivoso no travar dasferas, manso com seu dono e, at, com os servos de casa.

    A nobre mulher de D. Diogo tinha uma podenga preta como azeviche, esperta e ligeira que mais nohavia dizer, e dela no menos prezada.

    O alo estava gravemente assentado no cho defronte de D. Diogo Lopes, com as largas orelhas

    pendentes e os olhos semicerrados, como quem dormitava.A podenga negra, essa corria pelo aposento viva e inquieta, pulando como um diabrete: o plo liso emacio reluzia-lhe com um reflexo avermelhado.

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    O baro, depois da sade urbi et orbi feita aos monteiros, esgotava um qurie comprido de sadesparticulares, e a cada nome uma taa.

    Estava como cumpria a um rico-homem ilustre, que nada mais tinha que fazer neste mundo, senodormir, beber, comer e caar.

    E o alo cabeceava, como um abade velho em seu coro, e a podenga saltava.

    O senhor de Biscaia pegou ento de um pedao de osso com sua carne e medula e, atirando-o ao alo,gritou-lhe: "Silvano, toma l tu, que s fragueiro: leve o diabo a podenga, que no sabe senocorrer e retouar."

    O canzarro abriu os olhos, rosnou, ps a pata sobre o osso e, abrindo a boca, mostrou os dentesanavalhados. Era como um rir deslavado.

    Mas logo soltou um uivo e caiu, perneando meio morto: a podenga, de um pulo, lhe saltara garganta, e o alo agonizava.

    "Pelas barbas de D. From, meu bisav! exclamou D. Diogo, pondo-se em p, trmulo de clera ede vinho. A perra maldita matou-me o melhor alo da matilha; mas juro que hei-de escorch-la." E,virando com o p o co moribundo, mirava as largas feridas do nobre animal, que expirava.

    "A la f que nunca tal vi! Virgem bendita. Aqui anda coisa de Belzebu." E dizendo e fazendo,BENZIA-SE E PERSIGNAVA-SE.

    "Ui!" gritou sua mulher, como se a houveram queimado. O baro olhou para ela: viu-a com osolhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e os cabelos eriados.

    E ia-se alevantando, alevantando ao ar, com a pobre D. Sol sobraada debaixo do brao esquerdo: odireito estendia-o por cima da mesa para seu filho, D. Inigo de Biscaia.

    E aquele brao crescia, alongando-se para o mesquinho, que, de medo, no ousava bulir nem falar.

    E a mo da dama era preta e luzidia, como o plo da podenga, e as unhas tinham-se-lhe estendido bemmeio palmo e recurvado em garras.

    "Jesus, santo nome de Deus!" bradou D. Diogo, a quem o terror dissipara as fumaas do vinho. E,travando de seu filho com a esquerda fez no ar com a direita, uma e outra vez, o sinal da cruz.

    E sua mulher deu um grande gemido e largou o brao de Inigo Guerra, que j tinha seguro, e,continuando a subir ao alto, saiu por uma grande fresta, levando a filhinha que muito chorava.

    Desde esse dia no houve saber mais nem da me nem da filha. A podenga negra, essa sumiu-se portal arte, que ningum no castelo lhe tornou a pr a vista em cima.

    D. Diogo Lopes viveu muito tempo triste e aborrido, porque j no se atrevia a montear. Lembrou-se,porm, um dia de espairecer sua tristura, e, em vez de ir caa dos cerdos, ursos e zebras, sair caade mouros.

    Mandou, pois, alevantar o pendo, desenferrujar e polir a caldeira, e provar seus arneses. Entregou aInigo Guerra, que j era mancebo e cavaleiro, o governo de seus castelos, e partiu com lustrosamesnada de homens d'armas para a hoste del-rei Ramiro, que ia em fossado contra a mourisma deEspanha.

    Por muito tempo no houve dele, em Biscaia, nem nvas nem mensageiros.

    Trova Segunda Captulo I

    Era um dia ao anoitecer: D. Inigo estava mesa, mas no podia cear, que grandes desmaios lhevinham ao corao. Um pagem muito mimoso e privado, que, em p diante dele esperava seu mandar,disse ento para D. Inigo: "Senhor, por que no comeis?"

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    "Que hei-de eu comer, Brearte, se meu senhor D. Diogo est cativo de mouros, segundo rezam ascartas que ora dele so vindas?"

    "Mas seu resgate no a vossa mofina: dez mil pees e mil cavaleiros tendes na mesnada de Biscaia:vamos correr terras de mouros: sero os cativos resgate de vosso pai.

    "O perro del-rei de Leo fez sua paz com os ces de Toledo e so eles que tm preado meu pai. Oscondes e potestades do rei tredo e vil no deixariam passar a boa hoste de Biscaia."

    "Quereis vs, senhor, um conselho, e no vos custar nem mealha?"

    "Dize, dize l, Brearte."

    "Por que no ides serra procurar vossa me? Segundo ouo contar aos velhos, ela grande fada."

    "Que dizes tu, Brearte? Sabes quem minha me e que casta de fada?"

    "Grandes histrias tenho ouvido do que se passou certa noite neste castelo: reis vs pequenino, e euainda no era nada. Os porqus destas histrias, isso Deus que os sabe."

    "Pois dir-tos-ei eu agora. Chega-te para c, Brearte."

    O pagem olhou de roda de si, quase sem o querer, e chegou-se para seu amo: era a obedincia e, aindamais, certo arrepio de medo que o faziam chegar.

    "Vs tu, Brearte, aquela fresta entaipada? Foi por ali que minha me fugiu. Como e por que, apostoque j to ho contado?

    "Senhor, sim! Levou vossa irm consigo..."

    "Responder s ao que pergunto! Sei isso. Agora cala-te."

    O pagem ps os olhos no cho, de vergonha; que era humildoso e de boa raa.

    Trova Segunda Captulo II

    E o cavaleiro comeou o seu narrar:

    "Desde aquele dia maldito, meu pai ps-se a cismar: e cismava e amesquinhava-se, perguntando atodos os monteiros velhos se, porventura, tinham lembrana de haverem no seu tempo encontrado nas

    brenhas alguns medos ou feiticeiras. Aqui foi um no acabar de histrias de bruxas e almas penadas.

    Havia muitos anos que meu senhor pai se no confessava: alguns havia, tambm, que estava vivosem ter enviuvado.

    Certo domingo pela manh, nasceu alegre o dia, como se fora de pscoa; e meu senhor D. Diogoacordou carrancudo e triste, como costumava.

    Os sinos do mosteiro, l embaixo no vale, tangiam to lindamente, que era um cu aberto. Ele ps-sea ouvi-los e sentiu uma saudade que o fez chorar.

    "Irei ter com o abade disse ele l consigo quero confessar-me. Quem sabe se esta tristura ainda tentao de Satans?"

    O abade era um velhinho, santo, santo, que no o havia mais.

    Foi a ele que se confessou meu pai. Depois de dizer "mea culpa", contou-lhe ponto por ponto ahistria do seu noivado.

    "Ui! filho bradou o frade fizeste maridana com uma alma penada!"

    "Alma penada, no sei tornou D. Diogo; mas era coisa do diabo"."Era alma em pena: digo-to eu, filho replicou o abade. Sei a histria dessa mulher das serras.Est escrita h mais de cem anos na ltima folha de um santoral godo do nosso mosteiro. Desmaios

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    que te vm ao corao pouco me espantam. Mais que nsias e desmaios costumam roer l por dentroos pobres excomungados."

    "Ento, estou eu excomungado?"

    "Dos ps at cabea; por dentro e por fora; que no h que dizer mais nada."

    E meu pai, a primeira vez na sua vida, chorava pelas barbas abaixo.

    O bom do abade animou-o, como a nina criana; consolou-o, como a um mal-aventurado. Depois ps-se a contar a histria da dama das penhas, que minha me... Deus me salve!

    E deu-lhe por penitncia ir guerrear os perros sarracenos por tantos anos quantos vivera em pecado,matando tantos deles quantos dias nesses anos tinham corrido. Na conta no entravam as sextas-feiras, dia da paixo de Cristo, em que seria irreverncia trosquiar a vil rel de agarenos, coisa nestemundo mui indecente e escusada.

    Ora a histria da formosa dama das serras, de verbo ad verbum, como estava na folha branca dosantoral, rezava assim, segundo lembranas do abade.

    Trova Segunda Captulo III

    No tempo dos reis godos bom tempo era esse! havia em Biscaia um conde, senhor de um casteloposto em montanha fragosa, cercado pelas encostas e quebradas de largussimo soveral. No soveralhavia todo o gnero de caa, e Argimiro o Negro (assim se chamava o rico-homem) gostava, comotodos os nobres bares de Espanha, principalmente de trs coisas boas segundo a carnalidade: daguerra, do vinho e das damas; mas ainda mais do que de tudo isso, gostava de montear.

    Dama, possua-a formosa, que era a linda condessa; vinho, no havia melhor adega que a sua; caa,era coisa que na selva no faltava.

    Seu pai, que fora caador e fragueiro, quando estava para morrer, chamou-o e disse-lhe:"Hs me de jurar uma coisa que no te custar nada." Argimiro jurou que faria o que seu pai e senhorlhe ordenasse.

    " que nunca mates fera em cama e com cria, seja urso, javali ou veado. Se assim o fizeres, Argimiro,nunca nas tuas selvas e devesas faltar em que exercites o mais nobre mister de um fidalgo. Almdisso, se tu souberas o que um dia me aconteceu... Escuta-me que um horrendo caso...

    O velho no pde acabar; porque a morte lhe cravou neste momento as garras. Murmurou algumaspalavras emperradas, revirou os olhos e feneceu. Deus seja com a sua alma!

    Passaram depois anos: certo dia chegou ao castelo do moo conde um mensageiro del-rei Wamba.

    Chamava-o el-rei a Toledo para o acompanhar com sua mesnada contra o rebelde Paulo. Os outrosnobres-homens das cercanias eram, como ele, chamados.

    Antes, porm, de partirem, ajuntaram-se todos no castelo de Argimiro para fazerem uma grandemontaria, com mais de cem alos, sabujos e lebrus, cinqenta monteiros, e moos de besta semconto. Era uma vistosa caada.

    Saram no quarto d'alva: correram vales e montes: bateram bosques e matos. Era, contudo, meio-dia eainda no haviami alevantado porco, urso, zebra ou veado. Blasfemavam de sanha os cavaleiros,

    praguejavam e depenavam as barbas.

    Argimiro, que, por longa experincia, conhecia os stios mais profundos da espessura, sentiu l pordentro uma tentao do diabo.

    "Os meus hspedes, pensava ele, no partiro sem beberem alguns canjires de vinho sobre uma ouduas peas de caa. Juro-o por alma de meu pai."

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    E, seguido de alguns monteiros, com suas trelas de ces, afastou-se da companhia e deu a andar, aandar, at que se lanou por um vale abaixo.

    O vale era escuro e triste: corria pelo meio unia ribeira fria e mal-assombrada. As bordas da ribeiraeram penhascosas e faziam muitas quebradas.

    Argimiro chegou primeira volta do rio; parou, ps-se a olhar de roda e achou o que procurava.Abria-se uma caverna na encosta fragosa, que descia at a estreita senda da margem por onde ocavaleiro caminhava. Argimiro entrou na boca da cova e, a um aceno, entraram aps ele monteiros,moos de besta, alos, sabujos e lebrus, fazendo grande matinada.

    Era o covil de um onagro: a fera deu um gemido e, deixando as suas crias, estendeu-se no cho eabaixou a cabea, como quem suplicava.

    "A ela!" gritou Argimiro, mas gritou voltando a cara.

    A matilha saltou no pobre animal, que soltou outro gemido e caiu todo ensangentado.

    Uma voz soou ento nos ouvidos do conde, e dizia: "rfos ficaram os cachorrinhos do onagro:mas pelo onagro tu ficars desonrado."

    "Quem ousa aqui falar agouros?" gritou o rico-homem, olhando iroso para os monteiros. Todosguardavam silncio; mas todos estavam plidos.

    Argimiro pensou um momento: depois, saindo da cova, murmurou: "V com mil Satanases!"

    E, com alegres toques de buzina e latidos da matilha, fez conduzir ao castelo a preia que tinha preado,

    E, tomando o seu girifalte prima em punho, ordenou aos monteiros fossem dizer aos nobres caadoresque dentro de duas horas voltassem, porque achariam em seu pao comida bem aparelhada.

    Depois, seguido dos falcoeiros, comeou a encaminhar-se para o solar, lanando nebris e falces eajuntando caa de volateria, que a havia por aqueles montes mui basta.

    Trova Segunda Captulo IV

    Dobrava a campa da torre de menagem no castelo do conde Argimiro: dobrava pela linda condessa,que seu nobre marido havia matado.

    Andas cobertas de d a levam a enterrar ao mosteiro vizinho: os frades vo atrs das andas, cantandoas oraes dos finados: aps os frades, vai o rico-homem vestido de grossa estamenha, cingido comuma corda, e rasgando pelas saras e pedras os ps que levava descalos.

    Por que matou ele sua mulher, e por que ia ele descalo?

    Eis o que, a esse respeito, refere a lenda escrita na folha branca do santoral.

    Trova Segunda Captulo V

    Dois anos duraram guerras del-rei Wamba: foram guerras mui de contar.

    E por l andou o rico-homem com seus bucelrios, que assim se diziam ento acostados e homensd'armas. Fez estrondosas faanhas e cavalarias; mas voltou coberto de cicatrizes, deixando porcampos de batalha gasta e consumida a sua valente mesnada.

    E, atravessando de Toledo para Biscaia, seguia-o apenas um velho escudeiro. Velho e cheio de cs erugas tambm ele era, no de anos, mas de penas e de trabalho.

    Caminhava triste e feroz no aspecto; porque de seu castelo lhe eram vindas novas d'entristecer e

    http://pt.wikisource.org/wiki/A_Dama_do_P?-de-Cabra/II/III#_note-0http://pt.wikisource.org/wiki/A_Dama_do_P?-de-Cabra/II/III#_note-0
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    raivar.

    E, cavalgando noite e dia por montes e por charnecas, por bosques e por jardins, imaginava no modocomo descobriria se eram falsas ou verdadeiras essas novas de mau pecado.

    Trova Segunda Captulo VI

    No solar do conde Argimiro, um ano depois da sua partida, ainda tudo dava mostras da mgoa esaudade da condessa: as salas estavam forradas de negro; de negro eram os trajos dela; nos ptiosinteriores dos paos crescera a erva, de modo que se podia ceifar: as reixas e as gelosias das janelasno se haviam tornado a abrir: descantes dos servos e servas, sons de saltrios e harpas tinhamdeixado de soar.

    Mas ao cabo do segundo ano tudo aparecia mudado:

    as colgaduras eram de prata e matiz; brancos e vermelhos os trajos da bela condessa; pelas janelas dopao restrugia o rudo da msica e dos saraus; e o solar de Argimiro estava por dentro e por fora

    alindado.Um antigo vlico do nobre conde fora quem destas mudanas o avisara. Doam-lhe tantos folgares econtentamentos; doa-lhe a honra de seu senhor, pelo que ele via e pelo que se murmurava.

    Eis aqui como se passara o caso:

    Trova Segunda Captulo VII

    Longe do condado do ilustre baro Argimiro o Negro, para as bandas de Galiza, vivia um nobre

    gardingo como quem dissesse infano gentil-homem e mancebo chamado Astrigildo Alvo.Contava vinte e cinco anos; os sonhos das suas noites eram de formosas damas; eram de amores edeleites: mas, ao romper da manh, todos eles se desfaziam, que, ao sair ao campo, no havia seno

    pastoras tostadas do sol e das neves e as servas grosseiras do seu solar.

    Destas estava ele farto, Mais de cinco tinha enganado com palavras; mais de dez comprado com ouro;mais de outras dez, como nobre e senhor que era, brutamente violado.

    Com vinte e cinco anos, j no livro da justia divina se lhe haviam escrito mais de vinte e cincomaldades.

    Uma noite sonhou Astrigildo que corria serras e vales com a rapidez do vento, montado em onagro

    silvestre, e que, depois de correr muito, chegava alta noite a um solar, onde pedia gasalhado. E queformosa dama o recebia, e que em poucos instantes um do outro se enamorava.

    Acordou sobressaltado e, durante o dia inteiro, no pensou em outra coisa seno na formosa dama quevira naquele sonhar da madrugada.

    Trs noites se repetia o sonho: trs dias o mancebo cismava. Encostado varanda de um eirado, natarde do terceiro dia, olhava triste para as montanhas do norte, que via l no horizonte, como nuvens

    pardacentas. O sol comeou a descer no poente, e ainda ele estava embebido no seu melanclicocismar.

    Por acaso, volveu ento os olhos para o terreiro que lhe ficava por baixo; um onagro da floresta estavaa deitado, como se fosse manso jumento; era inteiramente semelhante quele com que havia sonhado.

    Sonhos de trs noites a fio no mentem: Astrigildo desceu pressa ao terreiro. Sem bulir p nem mo,o onagro deixou-se enfrear e selar; e, a Deus e ventura, o mancebo cavalgou nele e deitou pelaencosta abaixo.

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    Cumpria-se tudo risca: o onagro no corria, voava. Mas o cu comeou de toldar-se com oanoitecer: a escurido cresceu e desfechou em vento, troves, chuva e raios. O mancebo perdia atramontana, e o onagro dobrava a carreira e bufava violentamente. Parou, enfim, a horas mortas. Semsaber como, Astrigildo achou-se junto das barreiras de um solar acastelado.

    Tocou a sua buzina, que deu um som prolongado e trmulo, porque ele tremia de susto e de frio.Apenas cessou de tocar, a ponte levadia desceu, muitos escudeiros saram a receb-lo entre tochas, e

    as salas dos paos iluminaram-se.Era que tambm a condessa tinha por trs noites sonhado!

    Trova Segunda Captulo VIII

    A clepsidra aponta a hora de sexta nocturna, e ainda dura o sarau no solar do conde de Biscaia;porque a nobre condessa e o gentil Astrigildo assistem s danas e aos jogos dos libertos e servos,que, para eles espairecerem, trabalham l na sala d'armas. Mas, num aposento baixo do solar, umhomem est em p com um punhal na mo, olhar furibundo e o cabelo eriado, parecendo escutarlongnqua toada.

    Outro homem est diante dele, dizendo-lhe:

    "Senhor, ainda no tempo para punir o grande pecado. Quando eles se recolherem, aquela luzque vedes acol h-de apagar-se. Subi ento, e achareis desimpedido o caminho secreto para acmara, que a mesma do vosso noivado."

    E o que falava saiu, e da a pouco a luz apagou-se, e o homem dos cabelos hirtos e do olhar esgazeadosubiu por uma ngreme e tenebrosa escada.

    Trova Segunda Captulo IX

    Quando pela manh cedo o conde Argimiro, do seu balco principal, ordenava que levassem o corpoda condessa a um mosteiro de donas, que ele fundara para a ter seu moimento, ele e os de sua casa, edizia aos homens de armas que arrastassem o cadver de Astrigildo e o despenhassem de um grande

    barrocal abaixo, viu um onagro silvestre deitado a um canto do ptio.

    "Um onagro assim manso coisa que nunca vi disse ele ao vlico, que estava ali ao p. Comoveio aqui este onagro?"

    O vlico ia a responder, quando se ouviu uma voz: dir-se-ia que era o ar que falava.

    "Foi nele que veio Astrigildo: ser ele que o levar. Por ti ficaram rfos os filhinhos do onagro, maspor via do onagro ficaste, oh conde, desonrado. Foste cru com as pobres feras: Deus acaba de ving-las."

    "Misericrdia!" bradou Argimiro, porque naquele momento se lembrou da maldita caada.

    Neste comenos os homens do conde saam com o cadver sangrento do mancebo: o onagro, apenas oviu, saltou como um leo no meio da turba, que fez fugir, e, travando do morto com os dentes,arrastou-o para fora do castelo, e, como se tivesse em si uma legio de demnios, foi precipitar-secom ele do barrocal abaixo.

    Era por isso que o conde ia cingido de corda e descalo, aps os frades e a tumba. Queria fazerpenitncia no mosteiro por haver quebrado o juramento que tinha feito a seu pai.

    As almas da condessa e do gardingo caram de chofre no inferno, por terem deixado a vida emadultrio, que pecado mortal.

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    Desde esse tempo as duas miserveis almas tm aparecido a muita gente nos desvios da Biscaia: elavestida de branco e vermelho, assentada nas penhas, cantando lindas toadas: ele retouando a perto,na figure de um onagro.

    Tal foi a histria que o velho abade contou a meu pai, e que ele me relatou a mim, antes de ir cumprirsua penitncia nessa guerra de mouros que lhe foi to fatal.

    Assim concluiu Inigo Guerra. Brearte, o pagem Brearte, sentia os cabelos arrepiarem-se-lhe. Por largotempo ficou imvel defronte de seu senhor: ambos eles em silncio. O moo rico-homem no podiaengolir bocado.

    Tirou por fim da escarcela a carta de D. Diogo para a tornar a ler. As misrias e lstimas que o rico-homem a recontava eram tais, que D. Inigo sentiu o pranto gotejar-lhe abundante pelas faces abaixo.Ento ergueu-se da mesa para se ir deitar. Nem o baro nem o pagem pregaram olho toda a noite; estede medroso, aquele de desconsolado.

    E nos ouvidos de Inigo Guerra soavam contnuo as palavras de Brearte: "Por que no ides serraprocurar vossa me?" S por encantamento seria, de feito, possvel tirar das unhas dos mouros onobre senhor da Biscaia.

    Rompeu, finalmente, a alvorada.

    Trova Terceira Captulo I

    Mensageiros aps mensageiros, cartas sobre cartas so vindas de Toledo a Inigo Guerra. El-rei deLeo resgatava todos os dias cavaleiros seus por cavaleiros mouros, mas no tinha wali ou kayidcativo, que pudesse dar em troca por to nobre senhor como o senhor de Biscaia.

    E muitos dos redimidos eram das bandas das serras; e estes, trazendo as mensagens, contavam aindamais lstimas do velho D. Diogo Lopes, do que, se possvel, essas de que rezavam as cartas.

    "A porta do aguio, em Toledo diziam eles tem a mourisma um grande campo, todo mui bemapalancado. Aqui fazem grandes festas, guinolas e touros nos dias dos seus perros santos, segundo llhos pregam e determinam khatibs e ul-mis.

    "Gaiolas de bestas-feras muitas h a, coisa mui de ver e pasmar: os tigres e lees no as rompem;romp-las mos de homens, fora pequice to somente imagin-lo.

    "Numa destas prises, quase nu, com adovas de ps e mos, est o ilustre rico-homem, que j foicapito de grandes e lustrosas mesnadas.

    "Corteses costumam ser mouros com seus cativos fidalgos. Fazem esta perraria a D. Diogo Lopes,porque j so passados trs anos, e no h ver seu resgate."

    E os peregrinos que vinham do cativeiro e relatavam tais coisas, bem ceados e agasalhados no castelo,iam-se no outro dia com Deus, levando provida a escarcela, e em boa e santa paz.

    Quem no ficava em paz era D. migo: "Por que no vais tu serra"' dizia-lhe uma voz ao ouvido. "Por que no ides procurar vossa me?" repetia-lhe o pagem Brearte.

    Que lhe havia de fazer? Uma noite inteira levou em claro a pensar nisso. Pela manh, a Deus e sorte,ei-lo que, enfim, se resolve a tentar a aventura, bem que de seu mau grado.

    Benzeu-se vinte vezes, para no ter l de persignar-se. Rezou o Pater, a Ave e o Credo; porque nosabia se em breve essas oraes seriam coisa de recordar-se.

    E, seguido de um mastim seu predilecto, a p e com uma ascuma na mo, foi-se atravs das brenhas,

    por uma vereda que dizia para os pncaros tristes e ermos onde era tradio que a linda dama tinhaaparecido a seu pai.

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    Trova Terceira Captulo II

    Trinam os rouxinis nos balseiros; murmuram ao longe as guas dos regatos; ramalha a folhagembrandamente com a virao da manh: vai uma linda madrugada.

    E Inigo Guerra galga, manso e manso, os carris empinados, trepa de barrocal em barrocal e, apesar deseu muito esforo, sente bater-lhe o corao com nsia desacostumada.Onde as matas faziam alguma clareira ou as penhas alguma chapada, D. Inigo parava um pouco,tomando flego e pondo-se a escutar.

    Muito havia que andava embrenhado: o sol ia alto, e o dia calmoso: ao canto do rouxinol seguira orechinar da cigarra.

    E encontrou uma fonte que rebentava de rochedo negro e, saltando de aresta em aresta, vinha cair emalmcega tosca, onde o sol parecia danar no bulir das ondazinhas que fazia o despenho da cascata.

    D. Inigo assentou-se sombra da rocha e, tirando a sua monteira, matou a sede que trazia, e ps-se alavar o rosto e a cabea do suor e p, que no lhe faltava.

    O mastim, depois de beber, deitou-se ao p dele e, com a lngua pendente, arquejava de cansado.

    De repente, o co ps-se em p e arremeteu, com um grande ladro.

    D. Inigo volveu os olhos: um jumento silvestre pascia na orla da clareira junto de um frondosocarvalho.

    "Trik! gritou o mancebo. Trik!" Mas Trik ia avante e no escutava.

    "Ai, deixa-o correr, meu filho! No para o teu mastim levar a melhor desse onagro."

    Isto dizia uma voz que, l em cima no alto da penha, comeou de soar.

    Olhou: linda mulher estava a assentada e, com gesto amoroso e sorriso d'anjo, para ele se inclinava.

    "Minha me! minha me! bradou migo Guerra, alevantando-se: e l consigo dizia: Vade retro!Santo Hermenegildo me valha!"

    E como molhara a cabea, sentiu que os cabelos se lhe iam alando de arrepiados.

    "Filho, na boca palavras doces; no corao palavras danadas. Mas que importa, se s meu filho? Dizeo que queres de mim, que ser tudo feito a teu talento e vontade."

    O moo cavaleiro nem acertava a falar com medo. J a este tempo Trik gemia uivando debaixo dosps do onagro.

    "Cativo est de mouros h anos meu pai D. Diogo Lopes disse por fim titubeando. Quisera meensinsseis, senhora, o modo como hei-de salv-lo."

    "Seu mal, to bem como tu, eu sei. Se pudesse, ter-lhe-ia acorrido, sem que viesses requer-lo: mas ovelho tirano do cu quer que ele pene tantos anos quantos viveu com a... com a que sandeus chamamDama P-de-Cabra."

    "No basfemeis contra Deus, minha me, que enorme culpa" interrompeu o mancebo, cada vezmais horrorizado.

    "Culpa?! No h para mim inocncia nem culpa" replicou a dama, rindo s gargalhadas.

    Era um rir de dormente, triste e medonho. Se o diabo ri, como aquele deve ser o rir do diabo.

    O cavaleiro no pde dizer mais palavra. "Inigo! prosseguiu ela falta um ano para cumprir-se ocativeiro do nobre senhor de Biscaia. Um ano passa depressa: mais depressa eu to farei passar. Vs tu

    aquele valente onagro? Quando uma noite, acordando, o achares ao p de ti, manso como cordeiro,cavalga nele sem susto, que te levar a Toledo, onde livrars teu pai. E bradando acrescentou: Ests por isto, Pardalo?"

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    O onagro fitou as orelhas e, em sinal de aprovao, comeou a azurrar; comeou por onde, s vezes,academias acabam.

    Depois, a dama ps-se a cantar uma cantiga de bruxas, acompanhando-se de um saltrio, de que tiravamui estranhas toadas:

    Pelo cabo da vassoura,Pela corda da pol,

    Pela vbora que v,

    Pela Sura, e pela Toura;

    Pela vara do condo,

    Pelo pano da peneira,

    Pela velha feiticeira,

    Do finado pela mo;

    Pelo bode, rei da festa,

    Pelo sapo inteiriado,

    Pelo infante dessangrado

    Que a bruxa chupou sesta;

    Pelo crnio alvo e lustroso

    Em que sangue se libou,

    E do irmo que irmo matou,

    Pelo arranco doloroso;

    Pelo nome de mistrio

    Que em palavras se no diz,

    Vinde l precitos vis;

    Vinde ouvir o meu saltrio!

    E danai-me, aqui na terra,

    Uma dana doudejante,

    Que entontea dum instante O

    meu filho Inigo Guerra.

    Que ele durma um ano inteiro,

    Como em sono de uma hora,

    Junto fonte que ali chora,Sobre a relva deste outeiro.

  • 8/8/2019 A Dama do P de Cabra, Alexandre Herculano

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    Enquanto a dama cantava estas cantigas, o mancebo sentia um quebrantamento nos membros quecrescia cada vez mais e que o obrigou a assentar-se.

    E logo, logo, ouviu-se um rudo abafado, como de troves e de ventanias engolfando-se em covoadas:depois o cu comeou de toldar-se, e cada vez era mais cris, at que, enfim, apenas uma luz decrepsculo o alumiava.

    E a mansa almcega refervia, e os penedos rachavam, e as rvores torciam-se, e os ares sibilavam.

    E das bolhas da gua da fonte, e das fendas dos rochedos, e d'entre as ramas dos robles, e da vastidodo ar via-se descer, subir, romper, saltar... o qu? Coisa muito espantvel.

    Eram mil e mil braos sem corpos, negros como carvo, tendo nos cotos uma asa, e na mo cada umuma espcie de facho.

    Como a palha que o tufo alevanta na eira, aquela multido de candeias cruzava-se, revolvia-se, unia-se, separava-se, remoinhava, mas sempre com certa cadncia, como que danando a compasso.

    A D. Inigo andava a cabea roda: as luzes pareciam-lhe azuis, verdes e vermelhas: mas corria-lhepelos membros uma languidez to suave, que no teve nimo para fazer o sinal da cruz e afugentaraquele bando de Satanases.

    E sentia-se esvaecer e, pouco a pouco, adormecia e, dali a pouco, roncava.

    Entretanto, no castelo tinham dado pela sua falta. Esperaram-no at noite; esperaram-no umasemana, um ms, um ano, e no o viam voltar. O pobre Brearte correu por muito tempo a serra; mas ostio onde o cavaleiro jazia, isso que no havia l chegar.

    Trova Terceira Captulo III

    Inigo acordou alta noite: tinha dormido algumas horas: ao menos, ele assim o cria. Olhou para o cu,

    viu estrelas: apalpou ao redor, achou terra: escutou, ouviu ramalhar as rvores.Pouco a pouco que se foi recordando do que passara com sua mal-aventurada me; porque, a

    princpio, no se lembrava de nada.

    Pareceu-lhe ento ouvir respirar ali perto: afirmou a vista: era o onagro Pardalo.

    "J agora meio enfeitiado estou eu pensou ele: corramos o resto da aventura, a ver se posso salvarmeu pai."

    E pondo-se em p, encaminhou-se para o valente animal, que j estava enfreado e selado: cujos eramos arreios, isso sabia-o o diabo.

    Hesitou, todavia, um momento: tinha seus escrpulos a boas horas vinham eles de cavalgar

    naquele corredor infernal.Ento ouviu nos ares uma voz vibrada, que cantava muito entoado. Era a voz da terrvel Dama P-de-Cabra:

    Cavalga, meu cavaleiro,

    No alentado corredor;

    Vai salvar o bom senhor;

    Vai quebrar seu cativeiro.

    Pardalo, no comers

    Nem cevada nem aveia,

    No ters jantar nem ceia,

  • 8/8/2019 A Dama do P de Cabra, Alexandre Herculano

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    Rijo e leve voltars.

    Nem aoite, nem espora

    Requer ele, oh cavaleiro!

    Corre, corre bem ligeiro,

    Noite e dia, a toda a hora.

    Freio ou sela no lhe tires,

    No lhe fales, no o ferres,

    Na carreira no te aterres,

    Para trs nunca te vires.

    Upa! firme! avante, avante!

    Breve, breve, a bom correr!Um minuto no perder,

    Bem que o galo ainda no cante.

    "V!" gritou Inigo Guerra, com uma espcie de frenesi que nele produzira aquele cantar estranho;e de um pulo cavalgou no quedo onagro.

    Mas apenas se firmou na sela, pst! ei-lo que parte!

    Trova Terceira Captulo IV

    Posto que em paz com os cristos, os mouros de Toledo tm pelas torres, cubelos e adarves seusatalaias e vigias, e nos montes que dizem para a fronteira de Leo seus fachos e almenaras.

    Mas se o rei leons soubesse como descuidosa jaz Toledo; como, ao anoitecer, se deixam dormirvigias, se deixam de acender fachos, quebraria seus juramentos, e faria contra aquelas partes umrepentino fossado.

    Salvo ter de ir depois ao seu confessor dizer confiteor Deo, e peceavi; porque o quebrar o juramento,ainda que seja a ces descridos, dizem ser feio pecado.

    Era a hora do lusco-fusco: ao sol posto os de Toledo, mirando para a banda do Norte, viram, l muitoao longe, vir correndo uma nuvem negra, ondeando e fazendo voltas no cu, como a estrada as faziana terra por entre os montes: dir-se-ia que vinha embriagada.

    Era primeiro um pontinho; depois crescera e crescera: quando anoiteceu, estava j perto e cobria umgrande espao.

    O almuadem, subindo torre da mesquita, chamava os crentes de Mafamede para a orao da tarde.

    Mas com a sua voz esganiada misturou-se o estrondear dos troves: era como um tiple e um baixo.

    E passou um tufo de vento, que, embrenhando-se e remoinhando nas barbas longas e brancas doalmuadem, lhe fustigou com elas a cara.

    Comeou ento a cair uma corda de chuva, que nem moos nem velhos se lembravam de ter vistocoisa semelhante em nenhuma parte.

  • 8/8/2019 A Dama do P de Cabra, Alexandre Herculano

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    Aqui vereis os esculcas a aninharem-se nas guaritas das torres; os roldas e sobre-roldas a fugirempelos adarves; os facheiros a sumirem-se debaixo das almenaras; os hajibes a acolherem-se smesquitas molhados at os ossos; as velhas, que tinham sado ao vozear do almuadem, levadas pelastorrentes das ruas tortuosas e estreitas, bradando por Mafoma e por Allah. E a gua caindo cada vezmais!

    Dois nicos movimentos fazem ento os moradores de Toledo: uns fogem, outros agacham-se. E a

    gua caindo cada vez mais!O pavor quebra todos os nimos: os cacizes esconjuram a procela: os faquires penitentes gritam quese acaba o mundo, e que lhes deixe os seus haveres aquele que quiser salvar-se. E a gua caindo cadavez mais!

    A salvao de Toledo foi no se terem fechado suas portas: se assim no sucedesse, dentro do recintodos muros morria toda a mourisma afogada.

    Na priso estava D. Diogo encostado s grades de ferro. O pobre velho entretinha-se a ouvir aquelemedonho chover; porque a noite era comprida, e ele no tinha que fazer mais nada.

    Mas, como o terreiro ante a sua gaiola de feras era rodeado de muros, a chuva no podia escoar-se

    toda, e vinha crescendo de modo que j elo sentia os ps molhados.E tambm comeou a ter medo de morrer, apesar da sua misria. Bem sabia D. Diogo que a morte amaior delas todas; que no era o senhor de Biscaia ateu, filsofo, nem parvo.

    Mas l divisa um vulto alvacento que salvou por cima do palanque, e sente ao mesmo tempo no meiodo terreiro plash!

    E ouviu uma voz que dizia "Nobre senhor D. Diogo, onde que vs vos achais?"

    "Que vejo e ouo ! exclamou o velho. Um trajo que no alveja no trajo d'ismaelita; umavoz que no fala algaravia no d'infiel; um salto de tal altura no de cavaleiro do mundo. Porvossa f dizei-me, sois anjo ou sois Santiago."

    "Meu pai, meu pai! acudiu o cavaleiro j no conheceis a fala de Inigo? Sou eu, que venho salvar-vos."

    E D. migo descavalgou e, travando das grossas reixas, tentava alu-las: a gua dava-lhe j pelosartelhos, e ele no fazia nada.

    Cheio de aflio, o mancebo quis invocar o nome de Jesus; mas lembrou-se de como ali viera, e obento nome expirou-lhe nos lbios.

    Todavia, Pardalo pareceu adivinhar o seu ntimo pensamento; porque soltou um gemido agudo epronto, como se lhe houvessem tocado com um ferro em brasa.

    E, empurrando com a cabea D. Inigo, voltou a anca para a grade.

    Pau! foi o som que se ouviu. Com um s couce a reixa estava no cho, e as ombreiras de pedratinham voado em mil rachas. Quer mo creiam, quer no, di-lo a histria: eu com isto no perco nemganho.

    D. Diogo, esse ficou-o crendo: porque uma lasca de pedra bateu-lhe nos dois ltimos dentes que tinhae meteu-lhos pela goela abaixo. Por isso, ele, com a dor, no podia dizer palavra.

    Seu filho f-lo cavalgar ante si, e, cavalgando aps ele, bradou: "Meu pai, estais salvo!"

    E Pardalo de um pulo galgou de novo o palanque. Pois tinha bons quinze palmos!

    Pela manh no havia sinal de chuva; o ar estava limpo e sereno, e quando os mouros foram ver o quesucedera a D. Diogo Lopes, no lhe acharam sequer o rasto.

  • 8/8/2019 A Dama do P de Cabra, Alexandre Herculano

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    Trova Terceira Captulo V

    D. Inigo e seu pai, o velho senhor de Biscala, passam as portas de Toledo com a rapidez da frecha:num abrir e fechar d'olhos ficam-lhes para trs muros, torres, barbacs e atalaias. A btega vaidiminuindo: rasgam-se as nuvens, e vem-se j reluzir algumas estrelas, que parecem outros tantos

    olhos com que o cu espreita atravs do negrume o que se passa c em baixo.A estrada, pelas descidas e subidas dos recostos, converteu-se em leito de torrente, nos plainosconverteu-se em lago.

    Mas, quer pelos lagos, quer pelas torrentes, o valente onagro rompia avante, bufando como umdanado.

    No subiram bem um monte, j descem pelo outro recosto abaixo; ainda bem no chegaram a umaclareira, j sentem em profunda floresta gotejarem-lhes em cima os ramos agitados das rvores.

    Pouco mais de meia-noite, e os topos nevados do Vindio recortam o cho estrelado do cu j limpo,semelhantes aos dentes de uma serra gigante capaz de dividir crceo o hemisfrio austral dohemisfrio boreal.

    E Pardalo investe, sempre em galope desfeito, com as montanhas disformes, e desce aos valestemerosos, e, cada vez mais ligeiro, como o seu nome o indica, parece menos quadrpede que

    pssaro.

    Mas que rudo esse que sobreleva o do vento? Que isso que, l ao longe, ora alveja, ora reluz nastrevas, como uma alcateia de lobos envoltos em sudrios brancos, com os olhos s descobertos, edespregando em fio pelo fundo do vale abaixo?

    um rio caudal e furioso, com o seu manto de escuma, e com as escamas angulosas de seu dorsoeriado, onde batem e chispam os raios das estrelas em mil reflexos quebrados.

    Negreja sobre o rio uma ponte, ao meio desta um vulto esguio. "Ser um marco, uma esttua?

    pensaram os cavaleiros. Pinheiro no pode ser; no consta que em pontes nasam."Pardalo ria-se de rios; pontes, fazia tanto cabedal delas como de um retrao de palha. Todavia, bemque pudesse de um pulo saltar vinte ribeiras como aquela, foi-se direito ponte; porque no eraanimal que fizesse fricas escusadas.

    Semelhante a relmpago, se arrojou o onagro quele passo estreito... Mas, t.... Ei-lo que de repentepra.

    E tremia como varas verdes, e arquejava com violncia: os dois cavaleiros olharam.

    O vulto esguio era um cruzeiro de pedra alevantado a meia ponte: por isso Pardalo emperrava.

    Ento, dentre uns altos choupos, que da margem dalm se meneavam, um pouco mais abaixo daquele

    stio, ouviu-se uma voz fadigosa e trmula que cantava:Para trs, para trs, a galgar.

    J!

    De redor, de redor, vem passar

    C!

    Que no h nada aqui que te empea.

    Bus,

    Nem palavra, vs dois! Fugi dessa

    Cruz!

  • 8/8/2019 A Dama do P de Cabra, Alexandre Herculano

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    "Santo Nome de Cristo!" exclamou D. Diogo, benzendo-se ao escutar aquela voz que bemconhecia, mas que, depois de tantos anos, no esperava ali ouvir, porque seu filho no lhe dissera quemeio achara para o salvar.

    Apenas o grito do velho soou, assim ele como D. Inigo foram bater contra o poial do cruzeiro, ondeficaram de bruos, envoltos em lodo. O onagro, ao sacudi-los de si, soltara um rugido de besta-fera.Sentiram ento um cheiro intolervel de enxofre e de carvo de pedra ingls, que logo se percebia ser

    coisa de Satans.E ouviram como um trovo subterrneo; e a ponte balouava, como se as entranhas da terra sedespedaassem.

    Apesar do seu grande terror, e de chamar pela Virgem Santssima, D. Inigo abriu um cantinho do olhopara ver o que se passava.

    Ns os homens costumamos dizer que as mulheres so curiosas. Ns que o somos. Mentimos comouns desalmados.

    Que veria o cavaleiro? Um fojo aberto, bem prximo deles sobre a ponte, e que depois rompia pelagua.

    E depois pelo leito do rio; e depois pela terra dentro, dentro; e depois pelo tecto do inferno, que outracoisa. no podia ser um fogo muito vermelho que reverberava daquela profundidade.

    Tanto era assim, que ainda l viu passar de relance um demnio com um desconforme espeto nasmos em que levava um judeu empalado.

    E Pardalo descia remoinhando por esse boqueiro, como uma pena caindo em dia sereno do alto deuma torre abaixo.

    Aquela vista fez perder os sentidos a D. Inigo, que, indo tambm a chamar por Jesus, achou que nopodia proferir este nome sagrado.

    De terror, tanto o velho como o moo ficaram ali em desmaio.

    Quando tornaram a si, com o romper do sol claro, conheceram o stio em que se achavam. Era a ponteprxima aldeia de Nustrio, no alto da qual campeava o castelo construdo por D. From, o saxnio,avoengo de D. Diogo Lopes e primeiro senhor de Biscaia.

    Nenhum vestgio restava do que ali se passara; os dois, modos e cheios de lodo e pisaduras, foram-searrastando como puderam at encontrar alguns vilos, a quem se deram a conhecer, e que os levarama casa.

    Festas que em Nustrio se fizeram por sua vinda, coisa que vos no direi; porque no tarda a hora decear, rezar e deitar.

    Trova Terceira Captulo VI

    D. Diogo pouco tempo viveu: todos os dias ouvia missa; todas as semanas se confessava. D. Inigo,porm, nunca mais entrou na igreja, nunca mais rezou, e no fazia seno ir serra caar.

    Quando tinha de partir para as guerras de Leo, viam-no subir montanha armado de todas as peas evoltar de l montado num agigantado onagro.

    E o seu nome retumbou em toda a Espanha; porque no houve batalha em que entrasse que seperdesse, e nunca em nenhum recontro foi ferido nem derribado.

    Diziam boca pequena em Nustrio que o ilustre baro tinha pacto com Belzebu. Olhem que eragrande milagre!Meio precito era ele por sua me; no tinha que vender seno a outra metade da alma.

  • 8/8/2019 A Dama do P de Cabra, Alexandre Herculano

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    Por oitenta por cento de lucro no recibo de um egresso, a d a inteiro ao demo qualquer onzeneiro, ecr ter feito uma limpa veniaga.

    Fosse como fosse, Inigo Guerra morreu velho: o que a histria no conta o que ento se passou nocastelo. Como no quero improvisar mentiras, por isso no direi mais nada.

    Mas a misericrdia de Deus grande. A cautela rezem por ele um Pater e um Ave. Se no lheaproveitar, seja por mim. Amm.