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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO A DIALÉTICA DO DESESPERO EM KIERKEGAARD E SUA INFLUÊNCIA SOBRE O CONCEITO DE ALIENAÇÃO EM PAUL TILLICH Por Elias Gomes da Silva SÃO BERNARDO DO CAMPO 2014

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO

A DIALÉTICA DO DESESPERO EM KIERKEGAARD E SUA

INFLUÊNCIA SOBRE O CONCEITO DE ALIENAÇÃO EM

PAUL TILLICH

Por

Elias Gomes da Silva

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2014

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ELIAS GOMES DA SILVA

A DIALÉTICA DO DESESPERO EM KIERKEGAARD E SUA

INFLUÊNCIA SOBRE O CONCEITO DE ALIENAÇÃO EM

PAUL TILLICH

Dissertação de mestrado apresentada à banca examinadora, com vistas à obtenção de título de mestre, do Curso de Mestrado em Ciência da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Área de concentração: Linguagens da Religião Orientação: Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Silva, Elias Gomes da Si38d A dialética do desespero em Kierkegaard e sua influência sobre o Conceito de alienação em Paul Tillich/-- São Bernardo do Campo, 2014. 144fl. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – Faculdade de Humanidade e Direito, Programa de Pós-Graduação da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Bibliografia. Orientação de: Rui de Souza Josgrilberg 1. Homem – Cristianismo 2. Alienação 3. Pecado 4. Tillich, Paul I. Título CDD 230

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A dissertação de mestrado sob o título A Dialética do Desespero em Kierkegaard e sua

Influência sobre o Conceito de Alienação em Paul Tillich, elaborada por Elias Gomes da

Silva foi apresentada e aprovada em 11 de Junho de 2014, perante banca examinadora

composta por Dr. Rui de Souza Josgrilberg (Presidente/UMESP), Dr. Claudio de Oliveira

Ribeiro (Titular/UMESP) e Dr. Ricardo Quadros Gouvêa (Titular/Mackenzie).

__________________________________________

Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg

Orientador/a e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Linguagens da Religião

Linha de Pesquisa: Teologia das Religiões e Cultura

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“Dedico este trabalho a Deus por guiar meus passos; e a todos que me

ensinaram o que aprendi: aos meus queridos através do amor; e aos meus

desafetos através da dor”.

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AGRADECIMENTOS

À minha família: minha mãe, minha irmã e meu sobrinho, pelo apoio incondicional aos meus

estudos.

Em particular à Claudia Rodrigues (minha esposa querida) pelo incentivo, compreensão, e

motivação.

Ao meu amigo Admilson Leite pelo companheirismo que fora de grande importância nesta

trajetória.

Ao Prof. Rui, pela orientação, pela paciência, pela confiança, sem as quais não seria possível

a conclusão do curso.

Aos funcionários e professores do Departamento de Ciência da Religião da UMESP, que de

alguma forma contribuíram significadamente neste trabalho.

Ao CAPES, por ter financiado esta pesquisa.

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“A condição de alienação do homem moderno é resultado do seu pecado, de um ato de rebeldia contra o Senhor do Universo. Por causa de uma decisão

voluntária, ele mesmo quebrou suas relações com Deus, e vive alienado da fonte da vida. Daí decorre também sua alienação com relação ao próximo e a crise

interna em que sempre vive.”

Richard Schaull

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SILVA, Elias Gomes da. A dialética do desespero em Kierkegaard e sua influência sobre o conceito de alienação em Paul Tillich. Dissertação de Mestrado em Ciência da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

RESUMO

A respectiva pesquisa procurou estabelecer a relação de influência da filosofia de Søren Kierkegaard sobre a construção teológica de Paul Tillich. Para tanto, utilizamos como pano de fundo ou estrutura argumentativa o conceito de Desespero humano de Kierkegaard, comparando-o ao conceito de Alienação do ser de Tillich. Objetivamos com isso, demonstrar o entrelaçamento dialogal composto no desenvolvimento da chamada doutrina do pecado em ambos os autores. Isto é, como o desdobramento da antropologia kierkegaardiana problematizou os fundamentos da teologia sistemática, sobretudo, na questão da harmatiologia, e, como esta mesma problematização, foi capaz de padronizar o modus operandi que determinou a elaboração feita por Tillich sobre o mesmo assunto. Obviamente, que, no decorrer dessa investigação, não se pretendeu “desqualificar” ou “eliminar” a originalidade dos autores, nem tampouco transformar seus argumentos em uma espécie de amálgama conceitual. Assim, antes de uma suposta crítica de ter se proposto uma “fusão arbitrária de ideias”, buscamos, mais uma vez apontar, soluções de dialéticas e centros comuns, que apontem para aqueles elementos de convergência, aonde de fato, o diálogo é possível. Palavras chaves: desespero. alienação. pecado. antropologia.

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SILVA, Elias Gomes da. The dialectic of despair in Kierkegaard and his influence on the concept of alienation in Paul Tillich. Dissertation in Science of Religion, Methodist University of São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

ABSTRACT Their research sought to establish the relationship of influence of the philosophy of Soren Kierkegaard on the theological construction of Paul Tillich. Therefore, we use as background or argumentative structure the concept of human despair Kierkegaard, comparing it to the concept of Transfer of being Tillich. We objectify it, demonstrate the dialogical intertwining compound in the development of so-called doctrine of sin in both authors. That is, as the unfolding of Kierkegaard's anthropology problematized the foundations of systematic theology, especially in the matter of harmatiologia, and how this same questioning, was able to standardize the modus operandi that led to the drafting done by Tillich on the same subject. Obviously, that in the course of this research, are not intended to "disqualify" or "eliminate" the originality of the authors, nor turn their arguments into a kind of conceptual amalgam. Thus, before a review is supposed to have brought an "arbitrary fusion of ideas" seek, once again pointing solutions dialectical and common centers, pointing to those elements of convergence, where in fact, dialogue is possible. Keywords: despair. alienation. sin. anthropology.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Principais características da soterologia de kierkegaardiana..........................41

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SUMÁRIO Introdução……………………....…………………..………………………………..………12 1. O desespero humano em Kierkegaard e sua relação com a doutrina do pecado.......16 1.1. O desespero humano como problema antropológico...................................................18 1.2. O problema antropológico como um problema teológico ou a doutrina do pecado...28 1.2.1. O pecado como consequência de um eu teológico.............................................33 1.2.2. O pecado como consequência de um eu desesperadamente escandalizado........35 1.2. 3. O pecado como consequência de um eu desesperadamente ignorante..............40 1.3. Desespero e salvação..................................................................................................43 1.3.1. A “cura” do desespero.........................................................................................46 1.3.2. O caminho da edificação.....................................................................................51 2. O conceito e alienação em Tillich e sua relação com a doutrina do pecado...............55 2.1. A alienação como um problema antropológico..........................................................58 2.1.1. A alienação como reflexo dialético da finitude humana..........................................65 2.1.2. A alienação como reflexo direto da transição da essência à existência...................65 2.2. O problema antropológico como um problema teológico ou como doutrina do pecado.......................................................................................................................................68 2.2.1. Alienação como pecado...........................................................................................71 2.2.2. Alienação como descrença.......................................................................................71 2.2.3. Alienação como hybris.............................................................................................73 2.2.4. Alienação como “concupiscência”...........................................................................75 2.2.5. Alienação como fato e como ato..............................................................................76 2.2.6. Alienação individual e coletiva................................................................................78 2.3. Alienação e salvação........................................................................................................81 2.3.1. A “cura” do ser alienado..........................................................................................83 2.3.2. O messias e a vitória sobre a alienação....................................................................85 2.3.3. A coragem de ser......................................................................................................90 3. Entre Kierkegaard e Tillich............................................................................................94 3.1. O panorama contextual e a influência mútua..............................................................96 3.2. A influência de Kierkegaard sobre Tillich segundo Tillich......................................108 3.3. A influência de Kierkegaard sobre Tillich no conceito de Alienação......................114 3.4. A influência de Kierkegaard sobre Tillich na doutrina do pecado............................117 3.5. A influência de Kierkegaard sobre Tillich no problema da salvação.......................124 4. Considerações finais........................................................................................................132 5. Referências bibliográficas..............................................................................................136

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa teve como principal finalidade, descrever, analisar e problematizar os

conceitos de Desespero e Alienação a partir do pensamento desenvolvido pelo filósofo

dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855); e pelo teólogo alemão Paul Tillich

(1886-1965). O elemento de ligação entre os dois autores deve repousar, sobre a questão da

chamada doutrina do Pecado Original. Isto é, como é possível, através destes conceitos

(desespero e alienação), pensar efetivamente o problema do pecado? Nossa hipótese

argumentativa irá defender que existe certa relação de influência entre a noção de desespero

humano de Kierkegaard, e o conceito de alienação do ser de Tillich, utilizando como

elemento estrutural o problema do pecado. Obviamente, no decorrer dessa investigação, não

se pretendeu “desqualificar” ou “eliminar” a originalidade dos autores, nem tampouco

transformar seus argumentos em uma espécie de amálgama conceitual.

Por outro lado, reconhecemos também, que toda tentativa de comparação entre autores

distintos, costuma se estabelecer – ainda que não intencionalmente – a partir de ambiguidade.

No entanto, quando analisamos o trabalho de um autor, não podemos nos esquecer de que ele

sempre está ligado ao contexto maior. Toda produção de conhecimento ou saber é

desenvolvido socialmente (TOMAZI, 2010, p. 9). Portanto, se quisermos interpretar a

cosmovisão ou como pensavam as pessoas de determinada época, precisamos saber em que

meio social elas viveram, pois o pensamento de um período da história é criado pelos

indivíduos em grupos ou classes, reagindo e respondendo a situações, histórias e vigentes de

seu tempo (TOMAZI, 2010, p. 9). Se quisermos saber por que indivíduos, grupos e classes

pensam de determinada forma, e, por que explicam a sociedade deste ou daquele ponto de

vista, precisaremos entender como os membros dessa mesma sociedade se organizaram

(conceitualmente) para suprir suas necessidades, tais como: as relações sociais, as normas, os

valores, os costumes, as tradições e a própria religiosidade (TOMAZI, 2010, p. 9).

Quando um filósofo ou um teólogo surge, ele já está obrigatoriamente inserido dentro

de uma cosmovisão preestabelecida. Ele já encontrou pronto: valores, normas, costumes,

geralmente expressados em formas de conceitos (TOMAZI, 2010, p. 14). Assim, o indivíduo

está de alguma maneira, condicionado por decisões e escolhas que ocorrem fora de seu

alcance (TOMAZI, 2010, p. 14). Até mesmo a chamada “originalidade”, isto é, as decisões de

um indivíduo podem levá-lo a se destacar em certas situações históricas, passando-nos a

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suposta sugestão de poder classificá-lo como sendo uma espécie de indivíduo de “vida

notável”. Porém, ainda continuará sendo perceptível, a relação de dependência que este tem

com os períodos predecessores. [...] a sociedade não é um baile à fantasia, em cada um pode

mudar a máscara ou fantasia a qualquer momento (ELIAS, 1994, p. 34). Desde o

nascimento, estamos “presos” às relações que foram estabelecidas antes de nós e que existem

e se estruturam durante nossa vida (TOMAZI, 2010, p. 15).

Do ponto de vista dos objetivos – gerais e específicos – busca-se descrever a

complexidade do conceito de desespero humano apresentado por Kierkegaard, situando-o

como um resultado de uma empresa argumentativa que se desenvolveu a partir do prisma de

uma construção antropológica, onde em última instância, objetiva-se a formação e a

constituição do eu, marcado por uma relação consigo mesmo (o finito) e com Deus ou a ideia

de Deus (o infinito). Procuramos apontar as principais características daquilo que o autor

chamou de desespero visto sob a categoria do eu relacionado com a problemática da doutrina

do pecado em Paul Tillich. Ainda em um segundo momento, busca-se também especificar os

objetivos da pesquisa, investigando e problematizando se é possível a partir do referido

conceito de desespero apresentado por Kierkegaard, estabelecer ou não concordância ou

equiparação como a concepção da doutrina de pecado (como sendo um estado de “alienação

do ser”) elaborada por Tillich. Nossa hipótese, é que tanto a noção de desespero em

Kierkegaard, como a concepção de pecado em Tillich, possui um intercâmbio fecundo de

relações profundamente relevantes. Ou seja, estamos diante de um processo dialético, visto

que se em Kierkegaard a autoconsciência do eu, remete a doutrina do pecado em Tillich,

teríamos supostamente uma espécie de “processo inverso”.

Do ponto de vista justificativo, a pesquisa demonstra que está de fato, embasada no

reconhecimento de que tanto Kierkegaard quanto Tillich são figuras importantes e

inspiradoras para se pensar uma religiosidade de caráter plural, que seja ao menos capaz de

dialogar com a cultura vigente. Proporcionalmente, o trabalho se consolida na medida em que

o mesmo permite-nos a oportunidade de investigar o conteúdo e as extensões desta

perspectiva, em relação, e entorno da problemática da doutrina do pecado, sobretudo por um

viés teológico-filosófico, colaborando assim, para uma expansão consciente e sistemática da

obra de Kierkegaard e Tillich. É preciso que fique mais uma vez claro, que esta investigação

deve sempre estar sob o prisma de uma perspective análoga, ou seja, que não é uma ousadia,

tampouco uma reviravolta nas interpretações sobre Kierkegaard e Tillich, mas antes a

exigência de uma leitura plural, ciente de suas problemáticas, interlocuções, disposições e

limitações, que coloca a perspectiva de se pensar o respectivo tema, tendo como referencial

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outro solo, nomeadamente ‘extra’, ‘para além’ do solo da tradição “filosófica” ou “teológica”

e suas facetas lógicas, epistemológicas, morais etc. Haja vista, talvez seja esta a grande

inovação de Kierkegaard e Tillich que, de fato, precisa ser compreendida e que justifica este

trabalho, com efeito de interpretar a religiosidade do pensamento ocidental, a partir de uma

“exterioridade”, de outra ótica, – de uma nova ótica –, que justamente por esta “inovação” e

distanciamento sejam capazes de enxergá-la em seu verdadeiro valor, ou seja, enquanto algo

que contribui ou não para a expansão da vida. Nas palavras de Kierkegaard, de forma irônica,

a verdade eterna nunca é facilmente encontrada através de argumentos sistemáticos

(KIERKEGAARD, 2013, p. 46).

Do ponto de vista metodológico, estabelecemos uma abordagem de caráter

bibliográfico. Como será explicitado ao longo do trabalho, o referencial teórico é suficiente

para um levantamento das problemáticas que aqui forem elencadas. Foi feito uma análise

apurada dos textos que contribuíram para o avanço da pesquisa. Criteriosamente estas obras

constituir-se-ão de matérias publicadas em livros, ensaios científicos, artigos e revistas

especializadas. Tudo isso, na tentativa e objetividade de extrair o máximo de avanço através

de uma pesquisa bibliográfica rigorosa das fontes e comentadores. No decorrer desse trabalho,

adotamos como critério, o de procurar estabelecer certa “autonomia” na descrição dos

respectivos capítulos, permitindo assim, ao leitor, a possibilidade de compreender mais

detalhadamente cada autor, de maneira mais individual possível, ou seja, a partir de seus

próprios textos, procurando não fazer nenhuma relação precipitada e imediata. Estruturando o

que fora dito, os respectivos capítulos terão três divisões.

No primeiro capítulo, as reflexões se destinam a analisar e a interpretar a maneira

como Kierkegaard desenvolveu a sua estrutura argumentativa o chamado conceito de

desespero humano. A ideia principal é a de procurar apontar que, segundo esse autor, a

problemática em questão, encontra-se envolvida e entrelaçada a um problema de maior

abrangência de caráter filosófico-antropológico que, por sua vez, deve remeter,

necessariamente, à doutrina e ao dogma do pecado original. No segundo, pretendemos

debruçar nossa atenção, sobre o conceito de alienação no ser de Tillich, relacionando-o a sua

concepção de pecado original; visualizando todos os possíveis desdobramentos apresentados

pelo ator, isto é, a associação que o mesmo faz com conceitos correlatos como: transição,

descrença, hybris e “concupiscência” etc.; objetivando apontar para uma suposta soterologia.

No terceiro, e último capítulo, nossa atenção foi posta em descrever e analisar o

estabelecimento relacional entre da teologia de Paul Tillich com a filosofia de Sören

Kierkegaard. Objetivamos como isso, confirmar nossa argumentação, que de fato existe uma

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forte influência do filósofo nas reflexões do teólogo, sobretudo, em relação ao problema da

alienação e do pecado, tendo como principal pano de fundo o conceito kierkegaardiano de

desespero humano, ou seja, sua antropologia. Em outras palavras, a estratégia metodológica

serviu – pelo menos essa foi nossa intenção – para tentar não executar uma fusão superficial

de conceitos. Portanto, nos dois primeiros capítulos, nos propomos a citar expressamente de

maneira sistemática cada autor a partir de suas obras, buscando ao máximo uma apresentação

concisa dos mesmos pelos mesmos. O que também não garante em absoluto a imunidade

acadêmica das típicas famigeradas comparações.

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1. O DESESPERO HUMANO EM KIERKEGAARD E SUA RELAÇÃO COM A

DOUTRINA DO PECADO

As reflexões desse primeiro capítulo se destinam em poder analisar e interpretar a maneira

como o filósofo dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard desenvolveu a sua estrutura

argumentativa, o chamado conceito de desespero humano. A ideia principal é a de procurar

apontar que, segundo esse autor, a problemática em questão, encontra-se envolvida e

entrelaçada a um problema de maior abrangência de caráter filosófico-antropológico que, por

sua vez, deve remeter, necessariamente, à doutrina e ao dogma do pecado original.

Obviamente, isso pressupõe que, embora estejamos diante de uma preocupação filosófica,

essa deve também refletir a uma temática de caráter teológico, mítico e religioso. Portanto, é

compreensível e faz-se necessário mais uma vez pensar nas múltiplas faces que comportam a

difícil relação da interdisciplinaridade entre filosofia e religião ou entre filosofia e mito. 1 Isto

é, assim como não se pode avançar em estudo teológico público e no plural, sem que antes o

teólogo reconheça a sua inerente herança filosófica, sobre a qual a teologia encontra-se

firmada, assim também não é possível ao filósofo desenvolver sua pesquisa se tão somente

passar a ignorar dos ditames regulatórios e influenciantes que proporcionaram o seu

nascedouro (PENNENBERG, 2008, p. 9- 10). Devemos reconhecer que a transição da

exegese histórico-crítica da Bíblia para a teologia sistemática não pode ser efetuada

adequadamente – em termos de passagem para a formação autônoma da opinião – sem uma

consciência constituída filosoficamente (PANNENBERG, 2008, p. 17). 2

Poder-se-ia, desde logo, continuar perguntando por que Kierkegaard se propõe a fazer

filosofia da religião sem recorrer necessariamente, aos tradicionais métodos do discurso? Ou

seja, sem ter que apelar imediatamente a uma dogmática divinatória ou aos princípios lógicos

e formais de uma teologia sistemática. Para responder essa pergunta, compreendemos que em

Kierkegaard o trabalho discursivo que se propõe a estabelecer para compreensão do fenômeno

1 É necessário considerar que a filosofia nasce passando pelo interior da epopéia homérica e dos poemas de Hesíodo, de tal modo ou forma que “o começo da filosofia não coincide com o princípio do pensamento racional nem com o fim do pensamento mítico” (CHAUI, 2006, p. 35). Como também já afirmava J. P. Vernant que não se trata apenas de encontrar na filosofia o elemento antigo, mas de destacar o verdadeiramente novo (VERNANT, 1958, p. 82). 2 Segundo Pannenberg (2008), os desdobramentos dessa discussão obrigatoriamente devem remeter a diversos questionamentos como: O cristianismo como uma espécie de verdadeira filosofia, a filosofia como função da “razão natural” que se diferencia da revelação sobrenatural, a generalidade racional e subjetividade religiosa, a supra-função da concepção religiosa no conceito filosófico (PANNENBERG, 2008, p. 20- 29).

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religioso, passa obrigatoriamente pela filosofia e pela literatura. 3 Embora Kierkegaard tenha

se declarado um escritor religioso (KIERKEGAARD, 1986, p. 22), o fenômeno da religião e

da religiosidade em sua obra, só pode ser compreendido quando se reconhece que sua análise

do discurso e abordagem literária não se restringe puramente aos redutos de certa

canonicidade-confessante. Isto é, o estudo da religião em Kierkegaard não é dogmático-

exegético e muito menos ingênuo. Nesse sentido, os aportes teóricos por ele elencados foram

tecidos sobre o emblemático uso da ironia. A ironia em Kierkegaard é pressuposto básico

onde o indivíduo vê a possibilidade de consolidação de sua própria autonomia e liberdade,

sendo essa, detidamente de caráter existencial. Assim, para compreender a construção

filosófica da religiosidade na obra de Kierkegaard é preciso pensá-la como uma espécie de

“espiritualidade vivida”. Para o autor não basta simplesmente dizer que és religioso, é

necessário, sobretudo, vivenciar de fato, essa mesma religiosidade. Não basta simplesmente

nascer cristão é necessário Tornar-se-cristão afirmava Kierkegaard (KIERKEGAARD, 1986,

p. 98). O paradoxo que determina a originalidade da obra de Kierkegaard deve, sobretudo,

repousar em sua perspicácia de procurar demonstrar, que não só perdemos – existencialmente

– a nossa autonomia ou capacidade de se Tornar-se-cristão, como também a de se Tornar-se-

indivíduo.

Do ponto de vista estrutural, o primeiro capítulo terá as seguintes divisões: O desespero

humano como problema antropológico, o problema antropológico como um problema

teológico, pecado e desespero: edificação ou cura. No primeiro tópico, procuramos

demonstrar que para Kierkegaard a temática antropológica é fundamentalmente importante

para compreender sua filosofia. O problema do desespero humano é apresentado pelo autor

como elemento fundante que determina a constituição do Eu. Já no segundo tópico (o

problema antropológico como problema teológico) será abordada a difícil relação entre

filosofia e teologia. Embora Kierkegaard não se considere um “filósofo sistemático”, 4 as

diversas categorias da existência que aparecem em sua obra, dentre as quais se destaca o

3 Aqui tocamos o problema do método Kierkegaardiana. A guinada literária de Kierkegaard pode ser sintetizada nos seguintes termos: sua obra contém elementos de filosofia e religiosidade, cuja estrutura discursiva nos é apresentada por meio de uma comunicação indireta, a qual dever ser analisada mediante critérios de interpretação específicos (SILVA, 2012, p. 1). Assim, em Kierkegaard a relação entre teologia, filosofia e literatura, está posta como uma espécie de amálgama paradoxal. 4 Essa ausência de “titularidade filosófica sistêmica” é compreendida na medida em que o autor é abertamente um crítico da razão moderna que segundo ele é capaz de petrificar a vida em conceitos abstratos (MARTINS, 2010, p. 90), ou seja, ele procura demarcar a incomensurabilidade entre razão e existência. Para Kierkegaard, a razão é incapaz de dissertar sobre a existência humana, visto que a existência é algo individual e não mediatizado. Dessa forma, quando um pensador abstrato decide falar sobre a existência singular, ele comete uma petição de princípio. Inserir a existência no processo de desenvolvimento do espírito, como pretende Hegel é dissipar o caráter individual para atingir um plano coletivo e geral (MARTINS, 2010, p. 90).

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desespero humano, ao mesmo tempo em que representa uma construção filosófica, ela toca o

problema religioso, nesse caso o problema do pecado. O último tópico ou seção se

entrelaçam. É necessário primeiro compreender – ainda que de forma panorâmica – o

problema teológico do pecado hereditário, sobretudo procurando fazer sempre referência à

originalidade de Kierkegaard na abordagem do tema. Só depois é possível pensar e fazer

referência a uma suposta edificação ou cura.

1. 1 O desespero humano como problema antropológico

O problema do desespero em Kierkegaard faz parte de sua antropologia. Não se trata

de uma opção. No entanto, o nosso objetivo principal não é o tratar por completo –

sistematicamente – a antropologia Kierkegaardiana, tendo em vista que para isso seria

necessária uma pesquisa a parte. Por essa razão, objetivamos uma delimitação temática, para

que possamos estabelecer uma análise criteriosa, de sua obra O Desespero Humano: doença

até a Morte. Nesta obra, escrita em 1849, Kierkegaard utiliza o pseudônimo Anti-Climacus

para sua publicação. No corpus kierkegaadiano, a utilização de cada pseudônimo, deve a

princípio, possuir funções especifícas. É necessário compreender a estrátegia literária de

Kierkegaard. Ou seja, se pensarmos em sua escrita pseudonímica como ressonância de ecos,

de vozes interdiscursivas, veremos que esta se constitui em discurso intricado (LEÃO, 2011,

p. 96). Para o autor, nós – os leitores – entrevemos os pseudônimos como máscaras sob as

quais não se divisam rostos reais, pois Kierkegaard, o escritor de carne e osso – a que se

convencionou chamar de autor empírico – é assim sujeito ficcionalizado e destituído de

qualquer unidade (LEÃO, 2011, p. 96).

A interpretação de Jaqueline Leão (2011) é pertinente, e pode também ser comparada

com as pesquisas realizadas por Guiomar de Grammont (2003), pois ambas chamam a nossa

atenção para marca característica da filosofia de Kierkegaard, a qual seja o seu esforço em

compor um teatro de subjetividades múltiplas, um jogo de máscaras cuja finalidade não é de

tentar ocultar um rosto verdadeiro, mas revelar o drama de uma existência (GRAMMONT,

2003, p. 13). A pseudônima kierkegaardiana demonstra-nos que a existência é fragmentada, a

realidade atormenta do sujeito lançado à sua própria contingência e que não resta senão como

ficção de si mesmo (GRAMMONT, 2003, p. 13). O desespero vem - como nos mostra

Kierkegaard em suas advertências - do fato de colocar a vida sobre o que é efêmero, sobre o

que não dura mais que um instante (GRAMMONT, 2003, p. 68). Na dialética da existência,

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nada de finito, nem mesmo o mundo inteiro, poderá satisfazer eu de um homem que sente a

grande necessidade do infinito (GRAMMONT, 2003, p. 68).

No que diz respeito a nossa pesquisa, a análise do discurso de Anti-Clímacus precisa

ser comparada com a discursividade de outro pseudônimo de Kierkegaard denominado de

Johannes Clímacus. 5 De fato, Clímacus é um pseudônimo que possui uma espécie de

“biografia” com psicologia e lógica própria (REICHMANN; VALLS, 2011, p. 10). Ele

inclusive é descrito com um autor jovem, de grande capacidade intelectual e especulativa,

sobretudo familiarizado com os gregos, além de leitor atento de Descartes, Leibniz e Espinosa

(REICHMANN; VALLS, 2011, p. 10). Ora, Clímacus se declara ser o único dinamarquês que

não consegue ser cristão, seja pela institucionalidade de uma religião confinada a um simples

fenômeno geográfico, como também pela tentativa hegeliana de síntese entre cristianismo e

filosofia; Anti-Clímacus é diametralmente o oposto deste, sendo considerado e apresentado

por Kierkegaard um autor cristão em grau eminente, por definição (REICHMANN; VALLS,

2011, p. 11).

Em se tratando da obra do pseudônimo Anti-Clímacus O Desespero Humano, a

mesma foi dividida em duas partes principais: (1) A Doença Mortal é o Desespero; (2)

Desespero e Pecado. Estas duas partes por sua vez, estão subdivididas em cinco livros. Cada

livro, dividido em diferentes números de capítulos. Na primeira parte, temos diversos

apontamentos de caráter filosófico-antropológicos, na segunda, diversos aportes de caráter

teológico-religiosos. Na primeira parte, o nosso autor dialoga com a tradição metafísica, por

isso, é comum à utilização de termos como: finito e infinito, necessário e possível, liberdade e

determinação, o eu e o nada (KIERKEGAARD, 2010, p. 25-97). Na segundo parte,

Kierkegaard utiliza-se de alguns termos teológicos como: Deus e a ideia de Deus, pecado e

tentação, o demoníaco, a salvação, a cura, a edificação e a remissão de pecados entre outros

(KIERKEGAARD, 2010, p. 101-166).

Grosso modo, a antropologia kierkegaardiana tem como mola propulsora a ideia

fundamental de que a constituição do eu é determinada por um processo dialético interno de

relação do eu consigo mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p. 25). Trata-se da relação ou inter-

relação entre o finito e o infinito. Para Kierkegaard, o primeiro é identificado como homem, e

5 O respectivo pseudônimo que inspirou Kierkegaard teve uma existência real. Ele teria vivido no ano 600 da Era Cristã, como monge no Mosteiro do Monto Sinai sendo um inclusive autor místico. Sua principal obra intitula-se Scala Paradisi. Trata-se de um texto de ascetismo místico, ou como diz o próprio nome, de subida ao paraíso. Ainda sobre a tensão entre os dois pseudônimos, o próprio Kierkegaard julgava ser ele próprio como alguém que estaria filosoficamente situado acima de Clímacus, mas abaixo de Anti-Clímacus (PAULA, 2009, p. 37-38).

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o segundo ora como Deus, ora como a ideia de Deus. Esse processo relacional é marcado e

caracterizado por uma mescla sintetizante. Ele diz:

O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. É, o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa alheia a si, mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para própria interioridade. O eu não é, a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida. O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos. Sob este ponto de vista, o eu não existe ainda (KIERKEGAARD, 2010, p. 25).

Nesse sentido, ao afirmar que: [...] o eu não existe ainda (KIERKEGAARD, 2010, p.

25) Kierkegaard supostamente teria construído sua antropologia de maneira diferenciada da

tradição filosófica cuja mediação está sempre posta sobre a base do gênero. Isto é, a natureza

ou essência do homem é caracterizada não por uma determinação a priori, mas sim por uma

construção existencialmente autônoma a posteriori. De fato, aparentemente, não é tão simples

de ser percebido aqui o nascimento de um “novo paradigma”. Na tese kierkegaardiana, o eu

possui uma estrutura determinada originalmente – que é a de ser uma síntese, ainda que

complexa – e essa estrutura original é, no sentido próprio do termo, uma natureza ou uma

essência (FERRO, 2011, p. 141). Aparentemente na filosofia de Kierkegaard, portanto, a

essência precederia a existência e Anti-Climacus faria parte de uma tradição antiga, daquela

que parte da Grécia (FERRO, 2011, p. 141). Na tradição filosófica - na qual Aristóteles vai

aparecer como uma espécie de “figura principal” - tornou-se convencional achar que o

conceito de natureza humana é detidamente determinado a partir da ideia de um conjunto de

elementos estruturais fixos na existência humana, elementos que ela não pode dispor, que,

portanto, limitam-se e constrangem, e que constituem o âmbito a partir do qual a vida humana

deve obrigatoriamente se desenrolar (FERRO, 2011, p. 141). Ora, se por natureza se entende

qualquer coisa deste gênero, é certamente claro que Anti-Climacus admite a existência de

uma natureza humana, e que ela possui, como se afirmou, a estrutura de uma síntese (FERRO,

2011, p. 141).

É justamente esse tipo de leitura que precisa ser criticamente refeita ou reelaborada.

Segundo Nuno Ferro (2011), existe uma imprecisão tanto na leitura que fazemos de

Aristóteles, como também – dentro desse contexto – consequentemente de Kierkegaard. É

necessário, sobretudo, fazer uma diferenciação ou comparação entre os diversos sentidos de

natureza dados por Aristóteles no livro no livro Δ da Metafísica, (FERRO, 2011, p. 142)

como os apontamentos que se encontra no livro Θ (FERRO, 2011, p. 143). No livro Δ

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(quinto), Aristóteles criou diversos sentidos de natureza que acabou de certa forma,

determinando o rumo da metafísica essencialista (ARISTÓTELES, 2002, p.199). Em geral,

todos eles estão relacionados com o princípio interno de movimento ou crescimento num ente

(FERRO, 2011, p. 142). Assim, são naturais, neste sentido do termo, aqueles entes que

possuem uma unidade real dinâmica, que são unos e passam a ser o que são a partir de si, de

tal modo que contêm os princípios do seu desenvolvimento que crescem, portanto, a partir de

dentro, passe a redundância (FERRO, 2011, p. 142). Aristóteles, na passagem indicada,

apenas indica que tal princípio é imanente, mas não específica – ou pelo menos não é claro

que o faça – a relação entre o princípio dos atos e os atos condicionados por tal princípio, quer

dizer, que determinação está em causa nesse princípio de unidade e de desenvolvimento

(FERRO, 2011, p. 142-143). Por outro lado, citando também o exemplo apresentado por

Aristóteles no livro Θ (nono), o autor procura mostrar que o quadro muda completamente

(FERRO, 2011, p. 143). Ou seja, nesse livro, Aristóteles expõe a diferença entre potências

racionais e potências não racionais, a saber: potências naturais ou naturezas

(ARISTÓTELES, 2002, p. 399, 401).6 Proporcionalmente, a diferença consiste no fato das

potências não racionais – as naturezas, como se disse – não admitirem efeitos contrários, e

estarem, portanto, determinadas a um único efeito, a um único ato (FERRO, 2011, p. 143). Já

as chamadas potências racionais são capazes, por si mesmas e não por acidente, de efeitos ou

atos contrários, e não estão, assim, determinadas ontologicamente (FERRO, 2011, p. 143).

Esta diferença entre tipos ou gêneros de potências ocasionará fortes polêmicas, sobretudo a

partir do sec. XIII, que serão decisivas para a compreensão moderna e contemporânea que

temos de nós próprios. Não é obviamente possível seguir a pista destas polêmicas, apesar de

haver nelas traços claros na obra de Kierkegaard (FERRO, 2011, p. 143).

Jean Paul Sartre (2011) entende que o procedimento aqui adotado, permite

compreender que o problema antropológico em Kierkegaard deve remeter a uma mudança de

paradigma no campo filosófico, sobretudo, metafísico. É justamente essa mudança que o

filósofo francês vai valorizar. Sartre reconhece que esse é um dos grandes fatores que ainda

faz Kierkegaard – mesmo depois de sua morte em 1855 – continuar um “ser vivente”,

6 Nas palavras de Aristóteles temos: enquanto as potências racionais são as mesmas para ambos os contrários, cada uma das irracionais é potências de um único contrário: o quente, por exemplo, só é potência de aquecer, enquanto a arte média é potência de enfermidade e da saúde. Isso é assim porque a ciência funda-se sobre noções e a mesma noção manifesta tanto a essência da coisa como a sua privação, embora não do mesmo modo: de fato, a ciência é ciência de ambos os contrários, mas prioritariamente do positivo. Portanto, é necessário que também essas potências racionais sejam de ambos os contrários, e que de um dos contrários o sejam por sua própria natureza, enquanto do outro não o sejam por sua própria natureza [...] Por isso as potências racionais agem de maneira contrária as potências irracionais, porque com único princípio, isto é, com a razão, envolvem ambos os contrários (ARTISTÓTELES, 2002, p. 399, 401).

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atualizado e dialogando com a geração contemporânea (SARTRE, 2011, p. 168). Ele diz: [...]

não se trata de se concentrar no problema religioso da encarnação do Cristo, nem nos

problemas metafísicos (SARTRE, 2011, p. 168). O que Sartre busca é se concentrar e

valorizar a questão do [...] paradoxo da existência histórica (SARTRE, 2011, p. 169). A

questão chave, ou seja, o grande diferencial da filosofia kierkegaardiana foi procurar [...]

estabelecer um conhecimento histórico de uma verdade eterna (SARTRE, 2011, p. 169). Essa

noção é chamada por F. Farago (2006) como sendo um processo de criação humana onde o

movimento de transcendência repousa no coração da imanência (FARAGO, 2006, p. 91).

Trata-se de um paradoxo. Perceba, Anti-Clímacus parece ter em mente uma das perguntas

fundamentais levantadas por Kant: o que é o homem? Ele responde: o ser humano é espírito

(ROOS, 2009, p. 69). Mas se ficasse apenas confinado nessa afirmação, aparentemente,

estaríamos de novo naquelas típicas e conhecidas definições confessionais. Mas Anti-

Clímacus não para ai. Ele diz: [...] Mas o que é espírito? Espírito é o eu (self)

(KIERKEGAARD, 2011, p. 25). Em outro lugar: [...] eu não possui existência real, e não é

senão o que será (KIERKEGAARD, 2011, p. 46). A capacidade de valorizar a concretude da

existência humana, eis a grande originalidade de Kierkegaard (SARTRE, 2011, p. 170). Uma

nova antropologia que visa e se preocupa, sobretudo em entender, de maneira diferente a ideia

de ação, reformulando a concepção do sujeito em suas dimensões jurídica, política e

religiosas, bem como as correlatas estratégias ou formas de legitimação do sujeito. Em Rubem

Alves (2012), a legitimação do sujeito é caracterizada pela sua capacidade de não, mas reagir,

mas principalmente responder (ALVES, 2012, p. 57). O reagir é um ato que se localiza na

esfera do biológico. O responder, contudo, pertence à esfera da liberdade (ALVES, 2012, p.

57). No que diz respeito à História da Filosofia Contemporânea focaliza-se o processo de

desconstrução e reconstrução do sujeito, desde a redução do cogito a uma ilusão gramatical

até a uma perspectiva existencialista, fenomenológica ou hermenêutica.

Ora, agora é possível falar sobre o problema do desespero humano. Isto é, a partir do

momento em que se compreende que para Kierkegaard a natureza humana não pode ser

medida de maneira autêntica (Heidegger) sem que o indivíduo seja ao menos capaz de forjar

sua própria existência, é que se pode de fato entender a originalidade do nosso autor em

identificar o drama da existência humana, cujo conceito de desespero é fundamental. No

entanto, o processo de Tornar-se a si mesmo, ou seja, a superação da essência pela existência

só é permitida na liberdade. E liberdade em Kierkegaard é sinônimo de contingência e

possibilidade, e ao mesmo tempo, de desespero e angústia.

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Todavia, é necessário responder o questionamento: Como se forma ou se desenvolve o

fenômeno do desespero na antropologia de Kierkegaard? Para responder esse questionamento

é preciso que fique bem claro que a antropologia kierkegaardiana é forjada através de um

processo relacional, composto por uma tríade dialética (BERARDINI, 2011, p. 24). Na

antropologia de Kierkegaard, o homem, o espírito e o eu possui características correlatas.

Portanto, esse vínculo levanta uma identificação entre os termos (BERARDINI, 2011, p. 24).

Estes três termos - o homem, o espírito, e o eu - são os mesmos? Confiantemente responder a

esta questão não é de imediato possível. Deve se prestar atenção às palavras que se seguem, a

fim de encontrar uma brecha frutífera dentro do problema (BERARDINI, 2011, p. 24).

O problema do desespero acontece no interior da antropologia kierkegaardiana,

sobretudo porque em geral, sua filosofia busca valorizar – tanto nos textos pseudônimos como

na comunicação direta – o conceito de possibilidade (FERREIRA, 2006, p. 19). Isto é, dentro

do ponto de vista das prioridades, nos meandros das categorias do necessário e do

contingente, Kierkegaard vai concentrar seus eforços reflexivos na segunda, ou seja, na

possibilidade (FERREIRA, 2006, p. 19). Portanto, se os objetos e o mundo da natureza

(pontências não racionais) pertencem ao mundo do necessário, o homem (pontência racional),

existente concreto em relação consigo mesmo, e com os outros, pertencem ao mundo do

possível (FERREIRA, 2006, p. 19). A existência do homem – do nascimento a morte – é

marcada pelo fenômeno do contingente. [... ]A existência é contigência (FERREIRA, 2006, p.

19). Nesse sentido, [...] o eu não existe ainda (KIERKEGAARD, 2010, p. 25), porque a

concretude de sua existência depende da coragem do próprio eu, ou seja, de querer ser ele

próprio, no processo de relação consigo mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p. 101).

Ora, é justamente neste ponto que o desespero é forjado. O terreno das possibilidades é

amplo. Proporcionalmente, devido essa mesma amplitude, tende a ser escorregadio, nebuloso

e incerto. Assim, existir para Kierkegaard, sempre será um risco. A dificuldade de entender a

nebulosidade e a incerteza de sua própria existência faz com que eu se desespere. Trata-se de

uma discordância interna, ou seja, uma espécie de má relação consigo mesmo

(KIERKEGAARD, 2010, p. 28-29).

Kierkegaard (2010) afirma:

Desespero é a discordância interna de uma síntese que diz respeito a si própria. Mas a síntese não é a discordância interna, ela é apenas a possibilidade, ou então implica. Do contrário, não haveria sombra de desespero, e desesperar não seria mais do que uma característica humana, inerente a nossa natureza, ou seja, o desespero não existiria, sendo apenas um acidente para o homem, um sofrimento como uma doença em que se soçobrasse, ou como a morte, nosso comum destino. O desespero está,

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portanto, em nós; mas se não fôssemos uma síntese, não poderíamos desesperar, e tampouco o poderíamos se esta síntese não tivesse recebido de Deus, ao nascer, a sua firmeza. De onde vem então o desespero? Da relação que a síntese estabelece consigo própria [...] (KIERKEGAARD, 2010, p. 28-29).

Mas é possível escaparmos do desespero? É possível ficarmos existencialmente

imunizados contra ele? Contudo ainda, insiste Kierkegaad afirmando que não. 7 Pois, para o

autor, desespero é universal (KIERKEGAARD, 2010, p. 37). Nesse sentido, a totalidade de

tudo que temos percebido até agora, é que não podemos nos imunizar totalmente dele. Assim,

ao mesmo tempo em que Kierkegaard afirma que desespero é discordância interna da relação

do eu consigo mesmo, por outro também, paradoxalmente, o autor defende a impossibilidade

de furgirmos dele. Fazendo uma alusão às ciências médicas, o autor tenta nos convencer de

sua teoria, que o fenômeno do desespero humano é uma espécie de “enfermidade” ou doença

inerente e latente dentro de nós, ou seja, [...] Não é ser desesperado que é raro, o raro, o

raríssimo, é realmente não ser (KIERKEGAARD, 2010, p. 38). A universalidade do

desespero é descrita por Kierkegaard da seguinte forma:

Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecimento ou que ele nem ousa conhecer, receio de uma eventualidade exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos dizem de um doença, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, por lampejos, raramente, um medo inexplicável lhe revela a presença interna [...] Não é ser desesperado que é raro, o raro, o raríssimo, é realmente não ser [...] Geralmente, quem se não confessa doente passa por são, e mais ainda se é ele quem se considera saudável. Os médicos, pelo contrário, olham de outro modo as doenças. Porque têm uma ideia precisa e desenvolvida do que seja a saúde, e por ela se regulam para julgar nosso estado. Não ignoram que, assim como há doenças imaginárias, há saúdes imaginárias; por isso receitam remédios para tornar o mal patente (KIERKEGAARD, 2010, p. 37-38).

Vejo ainda em Kierkegaard basicamente duas linhas (fora a problemática do pecado)

que estruturam as personificações do desespero humano que determinam o fio condutor de

sua antropologia:

(i). A do desespero considerado apenas quanto aos fatores dialéticos da síntese do eu

(KIERKEGAARD, 2010, p. 46-59). Nesse tipo de personificação do desespero, Kierkegaard

vai apresentar quatro aspectos diferenciados, que são: (a) O desespero da infinitude, ou a

carência do finito; (b) O desespero do finito, ou a carência do infinito; (c) O desespero do 7 Nessa mesma obra, Kierkegaard sinaliza em uma nota de roda pé, que talvez somente as crianças estivessem isentas ou imunes ao problema do desespero, sobretudo levando em consideração que nelas a eternidade só existiria em potência (KIEREKGAARD, 2010, p. 69).

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possível, ou a carência da necessidade; (d) O desespero da necessidade, ou a carência do

possível. Em todos esses aspectos, Kierkegaard está pensando sobre âmbito dialético

(KIERKEGAARD, 2010, p. 46). Ora, para nosso autor, isso deve ocorrer porque nenhuma

forma de desespero pode ser pensada ou descrita adequadamente de forma direta. Toda

apropriação conceitual das diversas variantes que determinam o desespero humano, só podem

ser de fato compreendidas, a partir de seu contrário, ou seja, dialeticamente

(KIERKEGAARD, 2010, p. 47). A dialética da existência humana, afirma Kierkegaard,

possui semelhanças como as formulações da filosofia Fichte 8 (KIERKEGAARD, 2010, p.

47). [...] Assim como o eu, também a imaginação é reflexão; reproduz o eu e, reproduzindo-o,

cria o possível do eu (KIERKEGAARD, 2010, p. 47). Portanto, sua intensidade é o possível

da intensidade do eu. A força contrária entre as categorias do finito e infinito, do possível e do

necessário, é essencial para transformação do eu (KIERKEGAARD, 2010, p. 52). Com efeito,

o eu só pode se transformar sendo livre. A rigor, é justamente essa suposta ausência de síntese

na filosofia kierkegaardiana que determinariam o convite à liberdade;

(ii). A do desespero visto sob a categoria da consciência (KIERKEGAARD, 2010, p.

60- 97). Nessa sessão, as personificações apontadas por Kierkegaard foram duas: (a) O

desespero que se ignora ou a ignorância desesperada por ter um eu, um eu eterno; (b) O

desespero consciente de sua existência; seja por fraqueza (quando o eu não deseja ser a si

próprio); seja por desafio (quando o eu deseja ser a si próprio). Do ponto de vista da

filosofia Kierkegaardiana, quando o desespero é pensando sob a categoria da consciência o

mesmo pode ser visto ou configurado a partir de dois aspectos principais. Isto é, o “desespero-

fraqueza” e o “desespero-desafio”. 9 No primeiro aspecto, o mesmo pode ser identificado

8 Ao ter feito alusão à filosofia de Fiche, Kierkegaard possibilitou o desencadeamento de diversas pesquisas. Vários estudiosos, tanto de Kierkegaard como de Fiche, tem procurado estabelecer certa aproximação entre os dois. As pesquisas têm avançado desde sua dissertação sobre Ironia, como também a doença para morte. As faixas de espectro temático têm variado entre a teoria da autoconsciência e a base das reflexões ética a partir de uma antropologia religiosa. Um bom comentário sobre a relação dos dois autores pode ser encontrado no trabalho dos alemães J. Stolzenberg e S. Rapic – Kierkegaard und Fichte: praktische und religiöse Subjektivität (2010) lançado pela editora De Gruyter. 9 É interessante observar que o próprio Kierkegaard foi quem classificou o primeiro como sendo uma versão feminina do desespero e o segundo uma versão masculina. Ainda sobre as duas versões de desespero, o autor também procurou deixar claro duas coisas: (1) De que as respectivas versões correm o risco de existirem somente do ponto de vista ideal; (2) Do pensamento ou erro de se achar que na mulher não se possam encontrar formas masculinas de desespero, e inversamente formas de desespero feminino no homem, todavia, ele insiste em dizer que se trata de exceções, visto que comumente às versões tendem a seguir a potencialidade dos gêneros (KIERKEGAARD, 2010, p. 69). Essa suposta “rigidez” de Kierkegaard para com o gênero feminino, tem levantado diversos debates e questionamento na comunidade acadêmica e inclusive gerado algumas pesquisa. Para um estudo mais sistemático sobre o tema, recomendo dois livros de Kierkegaard: Diário de um Sedutor (1843); O Banquete (In vino veritas) (1845). Ambos fazem parte de obras maiores do autor. O primeiro está Either/or (Ou isso, ou aquilo: um fragmento de vida), e o segundo em Esdádios no Caminho da Vida. Sobre os desdobramentos do Diário de Sedutor, tem o trabalho dissertativo realizado pela filósofa minéria Guiomar de Grammont, publicado em 2003 pela editora Catedral das Letras como o título: Don Juan, Fauto e o Judeu

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como fraqueza (KIERKEGAARD, 2010, p. 68). Para Kierkegaard é fundamental

compreendermos essa designação. O desespero-fraqueza é o desespero do imediato

(KIERKEGAARD, 2010, p. 73). Nesse contexto, o homem do imediato, ao desesperar-se,

nem sequer tem um eu suficiente para ao menos desejar ou sonhar ter sido aquilo que não foi.

Assim, procurar defender-se de outra maneira desejando ser outro (KIERKEGAARD, 2010,

p. 73). A imediaticidade na filosofia de Kierkegaard deve remeter ao seu modo estético de

existência, cujo apego está em confundir interioridade do eu com exterioridade do mundo

(KIERKEGAARD, 2010, p. 73). A segunda versão do desespero visto sob a categoria da

consciência é chamado pelo autor de desespero-desafio. Em geral, nessa versão, o eu busca

ser ele mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p. 90). O desespero-desafio também é caracterizado

como uma espécie de eu que é senhor de sua própria casa. Porém, paradoxalmente o drama da

existência, convence-nos sem muita dificuldade que esse príncipe absoluto é um rei sem

reino, que, no fundo, sobre o nada governa. Ele diz: O homem desesperado não faz, portanto,

mais que construir castelo no ar, e bater-se sempre sobre moinhos de vento

(KIERKEGAARD, 2010, p. 92).

Hannah Arendt (2002) afirma que através do conceito de desespero humano

Kierkegaard promove-se de forma magnífica o nascimento de uma nova antropologia

(ARENDT, 2002, p. 24). Partindo de uma crítica consciente de Hegel, ele constrói seus

argumentos. Ela diz: [...] Ao sistema hegeliano que pretendida apreender e explicar o

“todo”, ele expôs a “pessoa única”, o homem individual, para qual não foi deixado nenhuma

lugar no Todo (ARENDT, 2002, p. 24). Para Arendt, a impessoalidade do sistema hegeliano

gerou o desespero do homem. Em outras palavras, Kierkegaard parte do desespero do

indivíduo em mundo completamente explicado (ARENTD, 2002, p. 24). Assim, o elemento

universal, como o qual a filosofia até então estivera ocupada na tarefa do conhecimento puro,

deve ser trazido para uma relação real com o homem (ARENDT, 2002, p. 25).

Da mesma forma, W. Pannenberg (2008) entende que essas personificações do

desespero humano apresentados por Kierkegaard, é fruto de uma espécie de “guinada

antropológica” que ressoa como uma senha, sobretudo no entendimento da esquerda

hegeliana (PANNENBERG, 2008, p. 269). 10 Em sua obra Filosofia e Teologia: tensões e

Errante em Kierkegaard. Sobre a figura feminina em o Banquete, a um ensaio publicado por Ana C. C. Barbosa – In Vino Veritas: o amor em o Banquete kierkegaardiano pela Revista Cadernos UFS – Filosofia (2010). 10 A expressão é cunhada da chamada “esquerda hegeliana”. Trata-se de um grupo de estudantes jovens professores na Universidade Humboldt de Berlim após a morte de Georg Hegel, ocorrida em 1831. Os jovens hegelianos foram opositores ao popular grupo “hegelianos de direita” os quais detinham as cátedras do departamento e outras posições de prestígio na universidade e no governo. Habermas (2000) afirma que o maior representa desse otimismo em relação à racionalidade moderna é Hegel. De modo geral, Hegel vê os tempos

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convergências de uma busca comum, Pannenberg chama nossa atenção defendendo que

Kierkegaard faz parte de um gama de autores cujo pensamento justifica-se sobre a base e

normatividade do princípio antropológico (PANNENBERG, 2008, p. 269). Ora, nesse

sentido, se fizermos uma comparação das reflexões de Kierkegaard como outros autores

também considerados hegelianos de esquerda, vamos nos deparar facilmente com elementos

de caráter correlatos (HABERMAS, 2007, p. 264).

Por exemplo, de maneira análoga, Kierkegaard compartilha com a filosofia de L.

Feuerbach na medida em que também considera a religião sistematicamente construída ou

institucionalizada como sendo nada mais que expressões humanas (PAULA, 2009, p. 21).

Nesse sentido, tanto Kierkegaard como Feuerbach admitem a ineficácia das produções

teológicas. Isto é, a teologia deve ser considerada uma produção distante da realidade em que

afirmapesquisar, estando no âmbito de mera produção humana (PAULA, 2009, p. 22). Porém,

o filósofo dinamarquês, ao contrário da concepção feuerbachiana, não acreditava na ciência

como fator do progresso humano (PAULA, 2009, p. 22). Assim, também, é possível

aproximar suas reflexões como filosofia de K. Marx, sobretudo ao denunciar a consciência de

crise que acompanha uma modernidade inquieta de uma sociedade burguesa (HABERMAS,

2007, p. 264). Não obstante isso, distanciando-se dele, Kierkegaard busca o caminho que

permite sair do pensamento especulativo e da sociedade burguesa corrompida, apegando-se a

subjetividade com verdade, pois para o mesmo, esta não significaria a simples inversão da

relação entre teoria e práxis, mas a confecção autônoma de uma resposta existencial à questão

luterana dirigida a um Deus misericordioso, que frequentemente o atormenta (HABERMAS,

2007, p. 264).11

Ainda comparando Kierkegaard a Marx, Hannah Arendt continua afirmando que de

modo similar, embora no polo diametralmente oposto, tanto Kierkegaard como Marx,

defendem que o homem poderia “mudar o mundo” ao invés de tentar explicá-lo (ARENDT,

2002, p. 26). Comum a ambos havia o fato de que eles queriam chegar de imediato na modernos caracterizados por uma estrutura de auto-relação que ele denomina de subjetividade: “o princípio do mundo moderno é em geral a liberdade da subjetividade, princípio segundo o qual todos os aspectos essências presentes na totalidade espiritual se desenvolvem para alcançar o seu direito” (HABERMAS, 2000, p. 25). No entanto, é justamente sobre essa razão objetiva hegeliana que Kierkegaard vai se posicionar contra. O que também não invalida a teoria que defende que de fato seja impossível uma “compreensão adequada” do pensamento de Kierkegaard a não ser a partir do pensamento de Hegel. Dentre os que defendem esse impasse é possível citar T. Adorno. Para o filósofo alemão, Kierkegaard não só depende do pensamento de Hegel com também desenvolveu seu próprio fazendo uma leitura supostamente “equivocada” de diversos pressupostos hegelianos (ADORNO, 2011, p. 162). 11 É por isso que Habermas afirma que Kierkegaard deve ser considerado um filósofo pós-moderno, ou seja, capaz de pensar de maneira pós-metafísica, mas nunca um filósofo pós-cristão (HABERMAS, 2007, p. 161). Assim, não caberia à razão traçar limites à religião, já que a experiência religiosa indica a razão e o espaço que ela não pode ultrapassar (HABERMAS, 2007, p. 265).

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atividade humana, sobretudo por que não aderiram à ideia de começar a filosofia sobre uma

nova base ou sistema, uma vez que passaram a desconfiar e duvidar das respectivas

prerrogativas e da possibilidade de um conhecimento puro e contemplativo (ARENDT, 2002,

p. 26). Porém, a grande diferença – segundo Hannah Arendt – é que Marx supostamente teria

voltado a aceitar a certeza da filosofia hegeliana, filosofia que o seu “por de cabeça para

baixo” mudou menos que o filósofo alemão supôs (ARENDT, 2002, p. 26). Diferente de

Kierkegaard que procurou manter-se ligado ao seu desespero em relação à filosofia, por essa

razão suas reflexões tornaram-se mais importante para o desenvolvimento posterior da própria

filosofia (ARENDT, 2002, p. 27).

Na argumentação que se segue, (próxima sessão) logo perceberemos que as

perspectivas antropológicas de Kierkegaard não se restringem a simples rejeição do conceito

de razão formulado pelo mundo moderno, mas dialoga com outro elemento que também nasce

na modernidade: a crítica da religião (FARAGO, 2006, p. 173-174). Em Kierkegaard, os

elementos antropológicos tipicamente personificados em versões diferentes de desespero

devem de forma geral remeter-nos a elementos teológicos (PANNENBERG, 2008, p. 277).

Isto é, em todas as formulações de sua liberdade, o ser humano individual, segundo

Kierkegaard, tem como referência o eterno. A exposição mais impactante desses fatos feita

por Kierkegaard encontra-se nos seus dois escritos de maior relevância teológica, a saber: O

conceito de Angústia (1844) e, especialmente, a sua obra-prima O desespero Humano – a

doença para a morte (1848). Os dois escritos tratam, no horizonte da doutrina do pecado ou

auto-equivocação quanto à liberdade (PANNENBERG, 2008, p. 279).

1. 2 O problema antropológico como um problema teológico ou a doutrina do pecado

Nessa segunda seção, tocaremos no ponto culminante do nosso trabalho dissertativo, a

saber, a doutrina do pecado. Em outras palavras, após ter explicado a complexidade do

processo dialético que determina a constituição do eu – cujo conceito de desespero é um

elemento fundante – pretendemos demonstrar agora, como Kierkegaard estabeleceu a

transição de um problema filosófico-antropológico para um problema teológico. Objetivamos

deixar claro, que Kierkegaard não está interessado em discutir questões transcendentais

referentes ao campo teológico-confessional ou teológico-acadêmico sobre o problema do

pecado, mais sim em questões práticas relativas ao próprio drama da existência humana.

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Ora, como pode ser observado até agora, para Kierkegaard o problema do desespero é

um problema antropológico, mas, que, por sua vez, deve também remeter a um problema de

caráter teológico, ou seja, o problema do pecado. Ele afirma: Pecamos quando, perante Deus ou com a ideia de Deus, desesperados, não queremos, ou queremos ser nós próprios. O pecado é deste modo fraqueza ou desafio elevando à suprema potência; é, portanto, condenação do desespero. O acento recai aqui sobre estar perante Deus ou ter a ideia de Deus; o que faz do pecado aquilo que os juristas chamam “desespero qualificado” a sua natureza dialética, ética, religiosa, é a ideia de Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 101).

No entanto, os conceitos teológicos que aparecem (inclusive a doutrina do pecado) em

toda filosofia Kierkegaardiana não são de imediato, fáceis de serem pontualmente

identificados e compreendidos, visto que Kierkegaard não faz exegese de textos bíblicos. Na

verdade trata-se de estratégia literária do próprio Kierkegaard. Isto é, antes do homem passar

pelo processo de se “tornar um cristão” é necessário apreender ou reaprender a “tornar-se um

indivíduo” (KIERKEGAARD, 1986, p. 98). Nesse sentido, os textos de Kierkegaard

remetem-nos à ideia de um paradoxo. Esse paradoxo no modo de escrita Kierkegaardiano só

pode ser compreendido, sobretudo, na medida em que lembramos que o mesmo não é um

filósofo de sistema. Ou seja: [...] Kierkegaard não é um filósofo de sistema: nunca aspirou a

reduzir o Universo a uma harmoniosa concatenação de conceitos – nunca procurou reduzi-lo

a um esquema abstrato (MONTEIRO, 2010, p. 10).

Monteiro (2010) defende que esse caráter “não sistêmico” da filosofia

Kierkegaardiana tem gerado uma espécie de problema na comunidade acadêmica. Exatamente

por não ser filósofo de sistema, a análise de seu pensamento torna-se presa fácil a escolha

absolutizante do fio condutor (MONTEIRO, 2010, p. 10). Afirma: [...] Uma alma religiosa

verá nele, de preferência, o prospecto dos caminhos que levam a Deus pelo desnudamento da

alma individual [...] Os “metafísicos” por paixão irão sem dúvida ao encontro de

Kierkegaard contra Hegel (MONTEIRO, 2010, p. 10). Isso tudo tente a ser agravado,

sobretudo porque muitos acabam concluindo que dominam o pensamento do autor. Sobre

esses aspectos, há dois diferentes enfoques em relação ao problema do método em

Kierkegaard, que consequentemente podem determinar ou não a maneira como iremos tratar

os seus pressupostos teológicos, sobretudo o dogma do pecado, elencados por ele. Que são:

(1) A inexistência metodológica; e (2) A metodologia ou idealismo camuflado. Observe:

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No primeiro aspecto, costuma-se afirmar que Kierkegaard não poderia ser considerado de

maneira imediata um “kierkegaardiano” 12 (HOCHMULLE, 2005, p. 342). Para esses, é

preciso dar a devida atenção ao estudo da obra de Kierkegaard, sobretudo em decorrência de

seu recurso à comunicação indireta, valendo-se de forma simultânea da ironia e da maiêutica

socráticas (HOCHMULLE, 2005, p. 343). Nesse sentido, a própria divisão de suas obras em

veronímicas e heteronímicas, bem como em escritos estéticos e escritos ético-religiosos ou

escritos éticos e escritos religiosos (para além dos estéticos), acentua ainda mais essa

dificuldade (HOCHMULLE, 2005, p. 344). Diante desses pressupostos, a melhor forma de

tentar compreender a obra de Kierkegaard seria estabelecendo uma leitura à moda do próprio

Kierkegaard, ou seja, procurando deixar o leitor o mais próximo de sua própria autonomia

(HOCHMULLE, 2005, p. 345).

Já no segundo aspecto, temos uma crítica mais elaborada produzida pelo filósofo alemão

Theodor Adorno. Ele defende a impossibilidade de tentar confundir a filosofia de

Kierkegaard como poesia, literatura ou teologia (ADORNO, 2010, p. 11). Para esses, ao

lermos a obra de Kierkegaard, a primeira coisa de que precisamos para compreendê-la é

distingui-la da poesia propriamente dita, visto que os fundamentos que norteiam a filosofia de

Kierkegaard, não podem ser necessariamente de imediato, os fundamentos poéticos

(ADORNO, 2010, p. 12). Assim, embora a obra do nórdico esteja carregada de elementos

poéticos, os mesmos devem ser entendidos como metáforas, estratégia e alegorias, que visam

a atingir uma espécie de telos superior (ADORNO, 2010, p. 41). Portanto, não poderíamos

desconsiderar que [...] a seriedade estratégica de Kierkegaard se pretendesse anular a

dignidade da palavra pelo recurso psicológico aos pseudônimos (ADORNO, 2010, p. 40).

Haja vista, a exposição do estético em Kierkegaard possui relevâncias filosóficas

significativas, cujas figuras estéticas devem ser pensadas apenas como metáforas, estratégicas

e alegorias objetivando um telos superior, que não se limita a simples narrativas poéticas ou

literárias (SILVA, 2012, p. 2). O problema é que o leitor pode sentir dificuldades de assimilar

essas afirmações por dois motivos: (1) Embora Kierkegaard tenha buscado estabelecer uma

construção teórica não tão “abstrata”, ou seja, em oposição ao sistema hegeliano que por sua

vez colocava o homem como um simples “predicado” de suas reflexões, ao ter priorizado a

sua atenção na existência humana, Kierkegaard acabou sendo responsável mesmo sem

“pretensão” a uma nova forma de se fazer filosofia. Diante disso, mesmo sendo consideradas 12 Sobre esse ponto, geralmente argumento de refutação é tentativa de afirmar que obra de Kierkegaard embora não possua a pretensão imediata de criar um sistema filosófico o ato de ter estabelecido a critica filosofia hegeliana, considerando-a inumana e abstrata por demais, por si mesmo já detonaria elementos embrionários para uma nova forma de se fazer filosofia, portanto um “novo método”.

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como “não convencionais”, as análises de Adorno não estariam tão distantes da realidade,

sobretudo, na medida em que, para o autor alemão, embora Kierkegaard tenha escarnecido

incansavelmente de Hegel, o mesmo seria muito mais parecido com ele do que gostaria de

pensar (ADORNO, 2010 p. 234). Por exemplo: os elementos da “resignação infinita” que

compõem a filosofia de Kierkegaard, ainda que hipoteticamente tente excluir essa suposta

totalidade, o mesmo acaba sem perceber remetendo-se à totalidade, comparado inclusive com

os ideais de homem dos projetos de Feuerbach (ADORNO, 2010, p. 235); (2) o fato de

Kierkegaard ter desenvolvido seu pensamento filosófico através de uma construção e

estratégica literária perpassada por diversos elementos como; ambiguidades, ironias,

imaginação, pseudônimos, poética, duplicidades, subjetividade auto-reflexiva, jogos

discursivos e paradoxos, proporcionaram que sua obra fosse sempre lida a partir de uma

perspectiva dialógica e polifônica (SILVA, 2012, p. 3).

Ora, se de fato forem verídicas ou tomadas de maneira unilateral, às conclusões de

Adorno devemos então alterar o modus operandi de nossa pesquisa, sobretudo, na medida em

que o autor não vê como legítima a apropriação da filosofia de Kierkegaard, como novo

método teológico (SILVA, 2011, p. 294). A concepção de existir, na filosofia

kierkegaardiana, se estabelece a partir de sua polêmica com o “cristianismo oficial”, o que

para Adorno faz com que a mesma perca a sua atualidade radical, transformando-se numa

espécie de “situação mental” para a qual a instituição religiosa e a vida do indivíduo há

tempos já saíram da dialética por meio da qual Kierkegaard as encontrou ligadas, embora

ainda permanecendo como potências inimigas (ADORNO, 2010, p. 157). Assim, a

pertinência e a atualidade radical do conceito só podem ser de fato preservadas, quando

desvinculadas majoritariamente da dogmática positiva e das controvérsias com o

protestantismo (SILVA, 2011, p. 295). A pergunta de Kierkegaard sobre a verdade parece ser

mais atual e urgente, quando se remete à realidade da existência [Dasein] sem interferência da

tese dogmática (ADORNO, 2010 p. 157). O grande legado do conceito de existir encontra-se

na questão ontológica. Para Adorno, a questão pelo sentido do ser-aí [Dasein] é o que hoje

mais se busca extrair da leitura de Kierkegaard (SILVA, 2011, p. 295). Nesse sentido, Adorno

continua a sair em defesa de Kierkegaard, principalmente contra alguns pastores e filósofos

que, naquela ocasião na Alemanha, haviam se apropriado da filosofia de Kierkegaard com o

pressuposto de um padroeiro ou de uma espécie de mestre-fundador (ADORNO, 2010, p.

343). Através dos trabalhos de tradução de Christoph Schrempf, Theodor Haecker, a obra de

Kierkegaard se tornou uma espécie de estandarte do protestantismo, sobretudo nos trabalhos

do teólogo Karl Barth (SILVA, 2011, p. 296). Por outro lado, tendo em vista as duas camadas

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(teológico filosófica) que compõem a obra de Kierkegaard, pode-se observar que em meados

dos 1920 suas reflexões foram destacadas por Heidegger e Jaspers, sendo direcionadas para

uma ontologia antropológica (ADORNO, 2010, p. 344), legando com isso a Kierkegaard os

atributos de um filosófico clássico. Para Adorno, essa trajetória de “vitória” constitui-se uma

espécie de inverdade, sobretudo em relação às máximas e aos conteúdos doutrinários do

próprio Kierkegaard (ADORNO, 2010, p. 347).

No entanto, esses dois posicionamentos, precisam ser comparados como o posicionamento

do próprio Kierkegaard. Não podemos nos esquecer de que estamos lindando com uma

espécie de “pensador existencial” (PONTES, 2011, p. 174). Nesse sentido, ao refletir sobre o

seu método, o autor procurou afirmar que sua principal intenção não poderia ser mais clara:

pregar o cristianismo em meio à cristandade (PONTES, 2011, p. 176). Ora, de maneira

estratégica inspirado em Sócrates: de modo indireto, fazendo-se mais ou menos ignorante, ou,

quando muito, apenas “bem informado” (PONTES, 2011, p. 176), ou seja, constrói-se uma

ilusão para lidar com outra ilusão, sendo a primeira a serviço da verdade ou de Deus

(PONTES, 2011, p. 177). Assim, Kierkegaard, reconhece estar sozinho nesta empreitada, pois

não buscava o reconhecimento de ninguém, embora o futuro pudesse ser-lhe mais clemente

(KIERKEGARD, 1986, p. 22). Do ponto de vista da análise do discurso, é como Kierkegaard

supostamente procurasse “desaparecer” até para si mesmo como escritor (FOUCALT, 1992,

p. 23). Nota-se que, em seus textos “estéticos” (aqueles assinados por pseudônimos) deixam

um espaço, em si mesmo, para outro que não existe de fato, sendo, talvez, a ilusão de um ideal

pessoal não realizado ou de como se processaria as “etapas no caminho de tornar-se

indivíduo”, quem sabe (PONTES, 2011, p. 176). Ora, por exemplo: voltemos para o objeto de

nossa pesquisa. Vejamos o conceito de pecado, isto é, a doutrina do pecado original. 13 Como

ela aparece nos escritos Anti-Climacus (O Desespero Humano)? Ela foi sistematicamente

elaborada por meio de um discurso de uma teologia acadêmica ou de uma exegese bíblica? Os

pressupostos apresentados pelo autor dinamarquês são confessionalmente claros? Obviamente

que não. É, por isso, que a postura literária de Kierkegaard nem sempre agrada os teólogos

tradicionais. Como veremos a seguir, essa suposta não convencionalidade do discurso

13 Não podemos deixar de afirma que a temática do pecado, não se restringe ao livro de Anti-Clímacus (Desespero Humano), mas deve perpassar a maior parte da obras Kierkegaard. Sobre isso, W. G. Kirkconnell (2011) realizou um estudo preciso onde o mesmo pode demonstrar a presença temática do pecado em diversas partes do corpus kierkegaardiano. Em seu Kierkegaard on Sin and Salvation o problema do pecado está presente em diversas obras. Seguindo a mesma sequência apresentada pelo autor, as principais são: Migalhas Filosóficas, O Conceito de Angústia, Discursos Edificante, Pós-Escrito não Cientifico as Milhas filosóficas entre outras. A originalidade de Kirkconnell reside em estabelecer sua pesquisa observando todas elas concomitantemente como a questão soterológica.

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filosófico-teológico de Kierkegaardiano, sobretudo, em relação à doutrina do pecado, tornou-

se a sua originalidade.

1.2.1 O Pecado como consequência de um eu Teológico

Do eu humano ao um eu teológico (KIERKEGAARD, 2010, p. 104). É justamente

essa a expressão que Kierkegaard vai utilizar para caracterizar o processo de transição de um

“problema de caráter antropológico” para um “problema caráter teológico”. Isto posto, na

primeira parte de seu livro, Anti-Climacus procurou demonstrar que a gradação da

consciência do eu, foi tratada a partir de um eu humano, cuja medida é o próprio homem

(KIERKEGAARD, 2010, p. 104). Seja de forma inconsciente, cujo processo dialético

acontece somente por oposição binária – sendo inclusive latente a ausência da eternidade –

seja de forma consciente, através de um desespero de fraqueza ou de desafio

(KIERKEGAARD, 2010, p. 68).

Em linhas gerais, ao pensar o conceito de um eu teológico, o autor supõe que o mesmo

deixaria de estar simplesmente sobre si mesmo, passando a estar de ante a face de Deus ou da

ideia de Deus. Kierkegaard explica que esse processo é verdadeiramente de fato dialético,

sobretudo, na medida em proporciona uma espécie de entrelaçamento de contraponto entre:

finitude e infinidade, entre a concretude do homem e a transcendência divina

(KIERKEGAARD, 2010, p. 105). Kierkegaard também nos alerta, que ao mesmo tempo, em

Deus ou a ideia de Deus serve com antítese do processo dialético que determina a constituição

do eu, o mesmo também constitui uma espécie de critério de “medida e regra” para ética, que

pode ou não determinar uma suposta “autonomia” da síntese do eu. 14

Nas palavras do autor temos: [...] designarei como eu teológico, eu em face de Deus. E que a realidade infinita ele toma então, pela consciência de estar perante Deus, o eu humano agora a medida de Deus. [...] A medida do eu é sempre o que este tem diante de si, e assim se define o que seja “a medida”. Como só se adicionam grandezas da mesma ordem, todas as coisas são assim qualitativamente idênticas à sua medida; medida que é ao mesmo tempo as suas regras éticas; media e regra exprimem, portanto a qualidade das coisas. Não sucede conduto o mesmo no mundo da liberdade: aqui, se não for de qualidade idêntica à medida e à regra e medida, quando cega o juízo final, permanecem, contudo invariáveis, manifestam o que não somo: nossa regra e nossa medida [...] O desespero condensa-se à proporção da consciência do eu, mas o eu condensa-se à proporção da sua medida, e, quanto esta medida é Deus,

14 A Expressão deve sempre pairar sob o âmbito hipotético tendo em vista que Kierkegaard não teria proposto – pelo menos não de formar direta – uma síntese em sua dialética. É justamente essa “ausência de síntese” que renderia ao autor o seu distanciamento de Hegel. Por outro, o mudos operandi de seus discursos filosóficos permite-nos pensar no convite de uma síntese forja pelo próprio leitor.

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infinitamente. O eu aumenta com a ideia de Deus, e reciprocamente a ideia de Deus aumenta como o eu. Só consciência de estar perante Deus faz o nosso eu concreto, individual, um eu infinito, e é esse eu infinito que então peca perante Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 104-105).

É nítido aqui o convite que Kierkegaard nos faz aos seus modos de existência.15 Na

primeira parte do livro, temos a presença dos elementos estéticos e éticos, já na segundo parte,

os elementos religiosos. Na primeira parte, o eu que ainda não tem consciência de si, procura

se apagar na aparência da imediaticidade (KIERKEGAARD, 2010, p. 46). Seja por se

mergulhar na infinitude da imaginação (KIERKEGAARD, 2010, p. 47). Seja por estar

fechado ou preso nas armadilhas da finitude (KIERKEGAARD, 2010, p. 50). Quando não,

pode também optar entre a necessidade ou possibilidade, nunca sendo capaz de possuí-las de

forma simultânea. É nesse sentido, que eu possui características estéticas. Ainda na primeira

parte, (Capítulo II) Anti-Clímacus afirma que eu passa a ter consciência de si, podendo

inclusive perfeitamente optar entre querer ser ou não a si mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p.

60). A capacidade de optar por isso ou aquilo determinam a existência ética do eu. Por fim, a

criação e a nomenclatura de um eu teológico deve apontar para aquilo que o dinamarquês

chamava de existência religiosa, ou como bem costumava falar outro pseudônimo de

Kierkegaard (Johannes de Silentio) a suspensão teológica da moralidade (KIERKEGAARD,

2012, p. 61).

Roos (2009) aponta também para outro fator determinante na filosofia de Kierkegaard,

sobretudo em relação ao eu teológico e o dogma do pecado. Trata-se do entrelaçamento que o

mesmo faz entre conceito de desespero e conceito de angústia. Embora reconhecessem que

nossa pesquisa está sobreposta ao primeiro conceito e a obra de Anti-Clímacus, de fato, não

podemos ignorar a maneira como eles se complementam (ROOS, 2009, p. 1). Isto é, assim,

como pseudônimo Anti-Clímacus chama o processo de má relação consigo mesmo de

desespero – na primeira parte do seu livro – e de pecado na segunda (KIEKREGAARD, 2010,

p. 28-29), em O Conceito de Angústia, o autor pseudônimo Vigilius Haufniensis procura

enfatizar que o indivíduo é responsável pela própria desestabilização da síntese, o que de

15 Kierkegaard afirma haver três estágios nos quais o eu é inserido de acordo com sua visão e experiências individuais. Isto é, estético, ético e religioso (GARDINER, 2001, p. 50). Segundo Gardiner (2001) os dois primeiro estágios (estético e ético) foram interpretados por alguns estudiosos através de termos de contrates teóricos mais familiares como hedonismo e moralismo convencional. Outros a partir da típica distinção kantiana da inclinação sensual e exigência imperativa da razão (GARDINER, 2001, p. 51). Do ponto de vista de uma suposta predileção em seu livro Temor e Tremor de 1843, o pseudônimo Johannes de Silentio embora permaneça no âmbito do ético, demonstra-se plenamente consciente das visíveis limitações da esfera à qual pertence, sobretudo, mais especificamente, ele está preocupado com a inabilidade dele em procurar abranger os fenômenos da fé (GARDINER, 2001, p. 63). O objetivo de Kierkegaard era estabelecer, vividamente, o caráter desconcertante dessas exigências do estádio religioso, onde somente os escândalo e paradoxo da existência são possível (GARDINER, 2001, p. 64).

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acordo com a terminologia teológica usada na obra será chamado de pecado – e que Anti-

Climacus descreverá como desespero em toda a primeira parte de A Doença para a Morte

chamando-o de pecado somente na segunda parte (ROOS, 2009, p. 2).

Proporcionalmente, se a angústia é o desencadeamento da relação do homem como

mundo de possibilidade, o desespero é resultado do homem em sua relação consigo mesmo.

Para Kierkegaard, o desespero é culpa do homem que não sabe aceitar a si mesmo em sua

profundidade. Trata-se de uma doença morta: [...] eterno morrer sem, no entanto morrer

(KIERKEGAARD, 2010, p. 20) visto que, do ponto de vista cristão, nem mesmo a morte

deve ser de fato considerada uma doença mortal, muito menos qualquer outro tipo de

sofrimento terreno temporal (KIERKEGAARD, 2010, p. 20). Ora, se quisermos falar de uma

doença mortal no sentido estrito, dever-se-ia tratar de uma doença mortal, cujo fim fosse à

morte em que a morte fosse o fim, pois paradoxalmente o desespero é viver a morte do eu

(KIEREKGAARD, 2010, p. 21).

Portanto, no texto de Vigilius Haufniensis, Kierkegaard procura dar ênfase no conceito

de liberdade atrelado ao conceito responsabilidade, sobretudo, no que diz respeito à

desestabilização da síntese (ROOS, 2009, p. 2). É justamente esta questão que deve ser

retomada nos escritos de Anti-Climacus, ganhando forma também no que diz respeito a

realizar a síntese corretamente (ROOS, 2009, p. 3). Há que se perceber que a responsabilidade

(ante a face de Deus ou da ideia de Deus) implicada no processo de desestabilização da

síntese corresponderá à responsabilidade implicada justamente no processo de tornar-se

um indivíduo procurando restabelecer a síntese que constitui o ser humano em sua devida

relação consigo mesmo e com Deus (ROOS, 2009, p. 3).

1.2.2 O Pecado como consequência de um eu desesperadamente Escandalizado

O problema do pecado na filosofia kierkegaardiana deve tocar também na questão da

fé (KIERKEGAARD, 2010, p. 108). Em Kierkegaard, a ausência ou a deformação da fé

remete-nos a problema do escândalo. Isto é, a definição do pecado implica a possibilidade do

escândalo – afirma o autor – e a definição de escândalo implica a possibilidade da

incredulidade (KIERKEGAARD, 2010, p. 108). Ora, sobre a questão da fé, Anti-Clímacus

procurou justificar sua presença no fenômeno do desespero, a partir de um texto da epístola

aos Romanos (14: 23) que diz: “Tudo que não provém da fé é pecado”.

Ele afirma:

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Esta oposição do pecado e da fé domina o cristianismo e transforma, cristianizando-os todos, os conceitos éticos, que dele recebe assim o mais profundo relevo. É sobre o critério soberano do cristão que ela repousa: se está ou não perante Deus, critério que implica outro, por sua vez decisivo no cristianismo: o absurdo, o paradoxo, a possibilidade do escândalo. A presença deste critério é de extrema importância todas as vezes que se quer definir o cristianismo, pois é o escândalo que defende o cristianismo contra qualquer especulação (KIERKEGAARD, 2010, p. 108).

[...] é o escândalo que defende o cristianismo (KIERKEGAARD, 2010, p. 108).

Como essa afirmação, mais uma vez podemos entender porque Kierkegaard não se propõe a

fazer teologia confessional ou acadêmica. Nesse sentido, seu discurso supostamente não

estaria de acordo nem como os padres apologistas dos primeiros séculos, nem tão pouco com

as propostas modernas ou contemporâneas de teólogos acadêmicos, visto que o escândalo é

quem determina a defesa do cristianismo diante de qualquer tipo de especulação existencial,

racional ou científica.

Os desdobramentos desses enunciados são caracterizados por Kierkegaard como sendo

fruto de um eu que ao estar diante de Deus ou da ideia de Deus recusa-se a crer, portanto, se

escandaliza (KIERKEGAARD, 2010, p. 109). Kierkegaard também defende que o escândalo

do cristianismo deve repousar sobre a pena que: estar diante Deus ou a ideia de Deus não

pode ser pensado sobre a perspectiva universal ou de gênero, como antes achavam os

metafísicos, visto que o eu deve sempre se encontrar isoladamente diante de Deus ou da ideia

de Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 109).

Anti-Clímacus afirma: [...] Onde se encontra então, aqui, a possibilidade do escândalo? Senão nesse ponto inicial, que a realidade do homem devia consistir em existir Isolado perante Deus; e neste segundo ponto, consequência do primeiro, de que seu pecado deveria ocupar a Deus. Este tête-à-tête do Isolado e de Deus jamais entrará na cabeça dos filósofos; eles não fazem outra coisa senão universalizar imaginariamente os indivíduos na espécie. Foi isso que levou um cristianismo incrédulo a inventar que o pecado não é senão o pecado, sem que estar ou não perante Deus acrescente ou diminua alguma coisa. Em suma, queria eliminar o critério: perante Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 108-109).

Partindo da perspectiva de autores como Massimo Iiritano (1999) e Sergio Berardini

(2010), podemos então pensar na influência do desenvolvimento dos conceitos de Angústia e

Desespero elaborados por Kierkegaard, pela instrumentalidade dos pseudônimos: Virgilius

Haufniensis e Anti-Clímacus. A tarefa de Tornar-se Indivíduo, ou como Kierkegaard também

expressa, na primeira parte do livro de Anti-Clímacus, a constituição do “eu humano”, que é

transposto na segunda parte do mesmo livro, como sendo o “eu teológico”, possui elementos

de correlação como o conceito de angústia, sobretudo, daquela típica angústia diante do bem.

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Ainda que Kierkegaard não se ocupe ainda primordialmente na sua concepção de angústia

com a nomenclatura, “desespero humano”, que deu nome ao livro Anti-Clímacus, é bem

apropriado o estabelecer dessa relação, pois se trata para Kierkegaard de elementos

primordiais e fundantes da sua antropologia.

Massimo Iiritano (1999) nos lembra que o conceito de desespero em Kierkegaard

sempre vai desencadear a falta de Fé (IIRITANO, 1999, p. 26-27). Essa ausência de fé reside

no fato do eu se escandalizar de ter que estar diante de Deus (IIRITANO, 1999, p. 27). Outro

lembrete feito pelo autor italiano, é que essa ausência de fé capaz de gerar o escândalo, tem

profunda semelhança como aquilo que Kierkegaard chamou de demoníaco (IIRITANO, 1999,

p. 101). 16 Assim, o escândalo passa adquirir categoria cristã, pois a ausência de fé determina

a possibilidade do escândalo, ao mesmo tempo, em que a presença do escândalo no eu

determina a possibilidade do paradoxo soterológico do cristo (IIRITANO, 1999, p. 155). O

nascimento do eu, a possibilidade do pecado, a presença do escândalo e convite para fé, são

entendidos como elementos interligados (IIRITANO, 1999, p. 156). O indivíduo e o

indivíduo, o indivíduo e Deus ou a relação do indivíduo consigo mesmo, e como Deus, eis os

temas da antropologia kierkegaardiana (IIRITANO, 1999, p. 155).

Depois desses argumentos de Iiritano, S. F. Berardini (2010) também advoga a ideia

de estabelecermos uma espécie de relação entre o conceito de desespero de Anti-Clímacus, o

problema do demoníaco de Virgilius Haufniensis (BERARDINI, 2010, p. 114). Trata-se de

assumir diversas formas correlatas de uma mesma problemática. A estratégia de procurar

associar a concepção de desespero ao problema do demoníaco acabou por potencializar a

própria noção de desespero como sendo de fato pecado (BERARDINI, 2010, p. 114). Nesse

estado de existência, o eu, pela instrumentalidade do pecado, passa a possuir traços de

hipocrisia ou de rebelião contra o bem, ou seja, contra Deus ou a ideia de Deus

(BERARDINI, 2010, p. 115). Mergulha-se numa espécie de “abismo de si mesmo”, resistindo

ao bem ardentemente. Ora, esse desespero caracterizado como sendo a resistência ao bem,

que está sendo relacionado ao demoníaco, pode também ser comparada a incapacidade ou

ausência do arrependimento no eu (BERARDINI, p. 116). Após ou diante do desafio de –

estar isoladamente de ante a face de Deus ou a ideia de Deus – ao invés de se humilhar e 16 As considerações feitas na pesquisa de M. Iiritano devem ser a sério. A associação entre o demoníaco, a descrença e o escândalo são válidas. Sobre esse aspecto, Kierkegaard demonstra-nos uma espécie de movimento dialético que determina o interior dessa “angústia diante do bem”. Para o autor, a mesma é caracterizada por uma ausência da interioridade do eu (KIERKEGAARD, 2011, p. 156). Os principais esquemas desse fenômeno têm como ingredientes elementos como: descrença/crendice; hipocrisia/escândalo; orgulho/covardia (KIERKEGAARD, 2011, p, 157-158). Assim, o demoníaco nega o eterno no homem. Para Kierkegaard o homem pode negar o eterno tanto quanto quiser, o que ele não consegue, é separar-se totalmente a sua existência do eterno (KIERKEGAARD, 2011, p. 164).

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reconhecer sua própria finitude, o eu se interioriza de forma negativa ou inautêntica,

apegando-se a sua sentença: o pecado (BERARDINI, 2010, p. 116).

Haja vista, – sobre o problema do demoníaco – Kierkegaard já havia demonstrado

anteriormente, as suas principais características no O Conceito de Angústia

(KIEREKGAARD, 2011, p. 128). Ora, nesse sentido, é perceptível a relação com o problema

do escândalo tratado aqui. Isto é, assim como o escândalo é caracterizado pela recusa de eu,

que se posicionada contrariamente o imperativo existencial: estar Isoladamente diante de

Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 109). Assim também o conceito de demoníaco é entendido

por Kierkegaard como sendo uma espécie de “Angústia diante do Bem” (KIERKEGAARD,

2011, p. 142). Embora no texto em questão, Kierkegaard procura definir o bem como sendo

continuidade, pois segundo o mesmo, a primeira expressão da salvação é continuidade, é

possível também estabelecer uma espécie de “comparação análoga” com o conceito de bem

de Agostino, onde é nítida a ideia de Deus (AGOSTINHO, 1995, p. 191).

É possível também encontrar outra incursão relacionada – talvez a última – feita por

Anti-Clímacus sobre o tema, que também aponta para o demoníaco. Trata-se daquilo que o

autor chamou de [...] O pecado de desesperar do seu pecado (KIERKEGAARD, 2010, p.

141). Ele diz: [...] O pecado por si só é a luta do desespero; mas, esgotadas as forças é preciso uma nova elevação de potência uma nova compreensão demoníaca sobre si própria; é o desespero do pecado. É um progresso, um crescimento, um crescimento do demoníaco que, evidentemente, nos mergulha, nos afunda no pecado. É uma tentativa para dar ao pecado um interesse, para torná-lo uma potência, dizendo que se as sortes estão lançadas para sempre, e que se permanecerá surdo a qualquer ideia de arrependimento (KIERKEGAARD, 2010, p. 141-142).

Por outro lado, paradoxalmente – como um pouco de ironia – sobre a pena de Anti-

Clímacus se defende também, que é possível que exista uma espécie de “função pedagógica”

no escândalo (KIERKEGAARD, 2010, p. 111). No primeiro caso, como já apontamos acima,

para Kierkegaard, o escândalo seria uma espécie de critério de validade ou validação do

próprio cristianismo (KIERKEGAARD, 2010, p. 108). O segundo aspecto repousa sobre essa

função pedagógica do escândalo, ou seja, o não “escandalizar-se do eu”, diante do Cristo.

Trata-se de uma decisão, sobretudo na medida em que o pecado não é uma simples negação,

mas sim uma posição (KIERKEGAARD, 2010, p. 124). Isto é, a verdadeira ciência do

escândalo é caracterizada quando se apreende estudando a inveja humana. Para o autor, a

inveja é uma admiração que dissimula (KIERKEGARD, 2010, p. 112). Sobre essa suposta

pedagogia do escândalo que, quando não entendida corretamente, nos reprova, Kierkegaard

afirma:

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O escândalo varia segunda a paixão que o homem põe na admiração. Mais prosaicas, as naturezas sem imaginação nem paixão, portanto sem grande aptidão para admirar, é certo que se escandalizam, mas limitando-se a dizer: “São coisas que não me entram na cabeça, deixo-as passar”. Assim falam os céticos [...] Assim, o escândalo: pois o que de homem para homem é admiração-inveja, torna-se, do homem para Deus, adoração-escândalo [...] Assim se passa as coisas com o cristianismo e o escândalo. Por isso a possibilidade do escândalo está bem presente na definição cristã do pecado. O estar perante Deus. O pagão e o homem natural reconheceriam sem dificuldade a existência do pecado, mas este: perante Deus, sem a qual no fundo o pecado não existe, para eles é ainda demasiado. Aos seus olhos, é dar excessiva importância a existência humana; um pouco menos de importância, ainda admitiriam... – mas a demasia é sempre demasia (KIERKEGAARD, 2010, p. 112-113).

Em termos de importância teológica, as conclusões de Kierkegaard nessa citação,

devem remeter-nos a temas de maior abrangência tais como a problemática entre o filosófico

e teológico ou entre o ético e o religioso. Kierkegaard procura medir essas consequências, a

partir de termos como: o homem natural ou espiritual, o herói trágico ou cavaleiro da fé,

Agamenon ou Abrão 17 (KIERKEGAARD, 2012, p. 62). Em suma, o paradoxo de Abraão é

revelado em toda sua clareza possível a partir da comparação do universo religioso com o

universo do trágico (KIEKEGAARD, 2012, p. 63). O gesto do herói trágico, levado às

últimas consequências, é ético (CRUZ, 2010, p. 77). O gesto de Abraão, nas mesmas

condições, é um ato de fé (CRUZ, 2010, p. 77). O herói da tragédia grega se tem de sacrificar

sua filha, é coagido a essa atitude pelas leis divinas e pelas leis humanas (CRUZ, 2010, p. 78).

A satisfação dessa lei, no caso, coincide com o interesse geral, que é o da coletividade

humana (CRUZ, 2010, p. 78). Como indivíduo, ele deve ceder ao interesse geral. E por isso

sua conduta será pautada pela ética. As propostas de Kierkegaard vão além dos meandros do

ético, visto que nos permite pensar em uma “suspensão” teleológica da moralidade

(KIERKEGAARD, 2012, p. 61). Relacionado às reflexos de Anti-Clímacus com as de

17 Essas ideias foram expostas por Kierkegaard na sua obra Temor e Tremor (1843). Nesta obra, nosso autor procurou fazer uma relação entre o Herói Trágico e o Cavaleiro da Fé (KIERKEGAARD, 2012, p. 62). A ideia de Kierkegaard foi utilizar o exemplo de Agamêmnon, personagem descrito por Eurípedes na obra, Ifigênia em Áulide, comparando-o com Abrão, personagem descrito no livro Gêneses. O enredo desta obra diz respeito ao sacrifício de Ifigênia, cuja causa imediata se encontra no enamoramento avassalador mutuamente correspondido entre Helena e Paris. Tal enamoramento, como é sabido, culminou no sequestro imediato de Helena. O agravante desta história consiste no seguinte: Agamêmnon, pai de Ifigênia, teria que aceitar que ela fosse sacrificada, uma vez que a previsão do oráculo tinha tornado-se pública (PEREIRA, 2011, p. 85). Ao fim e ao cabo do sacrifício, não obstante, ele seria aclamado e louvado como herói acrescido do adjetivo trágico, segundo Kierkegaard, pois, além deste modelo, Kierkegaard apresenta, nesta mesma obra, o cavalheiro da Fé, cuja representação é a figura de Abrão (KIERKEGAARD, 1974, 287). Através do sacrifício Abraão está intimamente ligado a Deus; a atitude de executar Isaac é uma vontade do ser absoluto. Com efeito, a moralidade é suspensa e Abraão não pode se tornar assassino (BARROS, 2007, p. 4). Sobre o ponto de vista ético, a atitude do sacerdote é imoral. Sobre o ponto de vista religioso, Abraão deve fazer aquilo que Deus lhe ordena. Neste contexto, encontramos ainda o paradoxo da ética. Abraão deve agir de acordo com as leis morais ou de acordo com a vontade de Deus? Como agir? Desta forma, podemos encontrar um conflito ético no momento em que Deus pede para que se cometa um ato julgado imoral (BARROS, 2007, p. 5).

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Johannes de Silentio, temos: a fuga de um eu desesperadamente escandalizado, permite-nos

uma resignação infinita do ético, rumo ao paradoxo da fé.

1.2.3 O Pecado como consequência de um eu desesperadamente ignorante

O desesperadamente ignorante de Kierkegaard é diferente do estado de ignorância

socrática. O segundo diz respeito ao ético, o primeiro ao “fenomenológico” (DIP, 2011, p.

61). Ora, para Sócrates o pecado é ignorância (PLATÃO, 2005, p. 23). Ao fazer tal afirmação

o filósofo grego buscava determinar a categoria do pecado a partir do âmbito ético-

epistemológico. É compreensivo, tendo em vista que aquilo que hoje denominamos de

“virtude” os gregos chamava de Areté (REALE; ANTISERI, 2009, p. 95). Para tanto, o que

de fato tornava uma coisa boa e perfeita naquilo que é a sua atividade (Areté) ou modo de ser

que aperfeiçoa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve ser (REALE; ANTISERI, 2009, p.

95). Consequentemente, a “virtude” do homem não poderia ser outra coisa senão aquilo que

faz com que sua alma seja tal como sua natureza determina que seja, ou seja, boa e perfeita.

Para Sócrates, esse elemento é a “ciência” ou o “conhecimento”, ao passo que o “vício” seria

a privação de ciência e conhecimento, ou seja, a “ignorância”, portanto pecado (REALE;

ANTISERI, 2009, p. 95).

Evidentemente, para o filósofo grego, só o ignorante peca, pois é vicioso, sobretudo,

com a utilidade do bem (CHAUI, 1994, p. 183). Do ponto de vista da antropologia socrática,

o bem deve ser caracterizado como sendo a justiça e o domínio de si (CHAUI, 1994, p. 183).

Nesse sentido, a tese socrática, opera uma revolução no tradicional quadro axiológico. Os

verdadeiros valores não devem estar ligados às coisas exteriores tais como: riquezas, poder e

fama (REALE; ANTISERI, 2009, p. 95). Ao mesmo tempo os ligados ao corpo, ao vigor, a

saúde física ou a beleza, mas somente os valores da alma, que resumem todo o conhecimento

(REALE; ANTISERI, 2009, p. 95).

Porém, Kierkegaard pensava diferente. Para ele, embora Sócrates seja detentor de um

legado intelectual indelével, ou seja, embora consciente de que tudo que provém de Sócrates é

sempre uma instância digna de atenção (KIERKEGAARD, 2010, p. 114), nosso autor

procurou demonstrar os principais defeitos que contém a definição socrática de pecado. Nesse

quesito, o primeiro defeito apontado por Kierkegaard no conceito de pecado de Sócrates,

repousa sobre a sua ausência na definição de uma espécie de raiz originária da ignorância.

Assim: Por sua vez, o defeito da definição socrática está em deixar vago o sentido mais preciso dessa ignorância, a sua origem etc. Por outras palavras, mesmo

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se o pecado é ignorância (ou aquilo a que o cristianismo de preferência chamaria necessidade), o que certo sentido é inegável, poder-se-a ver nele uma ignorância original? Isto é, o estado de alguém que nada soube, e até aqui nada pôde saber acerca da verdade? Caso o seja, é porque o pecado mergulha nas suas raízes, não na ignorância, ma nessa atividade que há no nosso fundo, pela qual, por meio da qual trabalhamos no obscurecimento do nosso conhecimento (KIERKEGAARD, 2010, p. 114).

O segundo defeito que Kierkegaard apresenta na definição socrática de pecado seria

aquilo que o nosso autor chamou de inexistência do pecado (KIERKEGAARD, 2010, p. 115).

Isto é, o ato de Sócrates ter condicionado a existência do pecado ao fenômeno da ignorância,

fez com que o mesmo perdesse sua existência concreta, permanecendo somente no âmbito da

hipótese. Segundo Kierkegaard, tal definição não atingiria a categoria do pecado. Ele diz: Sócrates não vai, portanto, até a categoria do pecado, o que sem dúvida é defeito, para uma definição do pecado. Mas como? Se o pecado é, com efeito, ignorância, no fundo a sua existência desaparece. Porque admiti-lo é crer, como Sócrates, que nunca sucede praticar-se uma injustiça sabendo-se o que é justo, ou cometê-lo sabendo que é injusto. Portanto, se Sócrates o definiu bem, o pecado não tem existência (KIERKEGAARD, 2010, p. 115).

A hipótese kierkegaardiana da “não existência” do pecado, a partir da definição

Socrática, fez com que mesmo de forma paradoxal, alcançasse mais um diagnóstico negativo

sobre o mesmo. Para Kierkegaard, o terceiro defeito da afirmação socrática de que o pecado é

ignorância reside no fato, de que é impossível para o homem natural, definir sozinho –

consistentemente – a concepção de pecado, sem o auxílio de uma revelação divina.

Precisamente, [...] o conceito que estabelece uma radical diferença de natureza entre cristianismo e o paganismo, é o pecado, a doutrina do pecado; assim o cristianismo crê, muito logicamente, que nem o pagão nem o homem natural sabem o que seja o pecado, e até que a Revelação se torna necessária para ilustrar o que ele é. Pois que, ao contrário de uma visão superficial, a diferença de natureza entre o paganismo e cristianismo não provém da doutrina da Redenção. Não, é preciso estabelecer a diferença muito mais em profundidade, partir do pecado, da doutrina do pecado, como faz o cristianismo. Que perigosa objeção contra este último seria então, se o paganismo desse uma definição do pecado cuja exatidão um cristão tivesse de reconhecer! (KIEREKGAARD, 2010, p. 116).

À diferença da explicação socrática e da proposta feito pelo cristianismo sobre o

problema do pecado, não se trata aqui, portanto, de ligar conceitos confusos e desorganizados

e um ponto de vista sobre outro. Kierkegaard tem consciência disso. A contradição é aqui

entre duas posturas ou cosmovisão diferente. É entre duas épocas distintas, sem nenhuma

coincidência profunda. Entre o pensamento helênico (demasiadamente feliz/demasiadamente

ingênuo) e o pensamento cristão (demasiadamente escandaloso/demasiadamente paradoxal).

Enquanto o helenismo dita uma espécie de ditadura da inteligência, o cristianismo busca o

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paradoxo da fé. O grande erro de Sócrates em relação à doutrina cristã de pecado foi ter se

apegado por demais intelectualidade, quando o problema está na vontade (desejo) 18 do

homem. Nas palavras de Kierkegaard temos: Que faltou então a Sócrates na sua determinação de pecado? À vontade, o desejo! A intelectualidade grega era demasiando feliz; demasiado ingênua, demasiado estética, demasiado irônica, demasiado maliciosa [...] demasiado pecadora para chegar a compreender que alguém tendo o seu saber, conhecendo o justo, pudesse cometer o injusto. O helenismo dita um imperativo categórico da inteligência. Eis uma verdade a não desdenhar, e que é mesmo bom acentuar em tempo como o nosso, extraviado em muita e vã ciência empolada e estéril, se é verdade que no de Sócrates e mais ainda em nossos dias a humanidade precisa de ligeira dieta de socratismo (KIERKEGAARD, 2010, p. 116).

Patrícia Dip (2011) defende que não é possível compreender o diálogo de Anti-

Clímacus com Sócrates, sem que antes se reconheça que o conceito de pecado

kierkegaardiano deve ser de fato entendido, a partir de uma perspectiva dialética entre o

paganismo e o cristianismo, entre o ético e o religioso (DIP, 2011, p. 63). Por outro lado, Dip

trabalha com hipótese de que Kierkegaard desenvolveu uma espécie de “visão

fenomenológica do pecado” (DIP, 2011, p. 62). [...] o fenomenológico apresentado na

Doença Mortal é o desespero do eu diante do eterno transformado em pecado (DIP, 2011, p.

62). Fazendo comparação com fenomenologia de Hegel, a autora afirma que enquanto Hegel

18 Ao ter tocado na questão do desejo em sua concepção antropológica de pecado, Kierkegaard passaria a dialogar com a tradição agostiniana. Tal diálogo não é fácil, visto que o pecado em Agostinho está no âmbito de gênero humano, enquanto que na filosofia de Kierkegaard o mesmo perpassa categoria do indivíduo. Para Kierkegaard o pecado ocorrido não se trata de um fenômeno na essência e sim da existência. Segundo Ricardo Quatros Gouveia (1999) embora a relação entre o bispo de Hipona e o vigia de Copenhague (Valls) tem sido abordada de forma esporádica por alguns pesquisadores, não há dúvida da influência de Agostinho sobre Kierkegaard, ainda que esta muitas vezes tenha surgido a partir da crítica (GOUVEIA, 1999, p. 2). Para Gouveia, existem pelo menos dois grandes movimentos de Kierkegaard em direção à filosofia de Agostinho. No primeiro movimento – de caráter mais positivo – o autor reconhece a existência de uma espécie de similaridade em ambos, sobretudo, na chamada metafísica do individuo, nesse aporte, Gouveia contou como referencial os trabalhos de Peter Wust (discípulo de Max Scheler), onde o mesmo faz uma comparação entre as Confissões de Agostinho e o Desespero Humano de Kierkegaard (GOUVEIA, 1999, p. 2). O segundo movimento – talvez menos amistoso – o autor procurou demonstrar algumas críticas feitas pelo próprio dinamarquês a Agostinho. As principais são: (1) A versão luterana agostiniana: onde Agostinho nos é apresentado preferencialmente, a partir de uma visão anti-pelagiana, oponente da justificação pelas obras e proclamadora da corrupção humana pelo pecado original e a salvação mediante a graça e o decreto divino (predestinação); (2) A problemática entre a predestinação e o livre-arbítrio via calvinismo: nesse ponto, apesar de sua insistência no governo divino e na providência (Temor e Tremor) Kierkegaard teria afirmado que o grande erro de Agostinho via calvinismo, foi ter elaborado predestinacionismo mecanicista e fatalista onde a autonomia do indivíduo não seria tanto valorizada (GOVEIA, 1999, p. 3); (3) A objeção da fé por conta de uma dogmática: Kierkegaard afirma que a concepção de fé de Agostinho é extremamente platônica- aristotélica, portanto, pagã e desprovida da categoria cristã. Do ponto de vista grego o conceito de fé está no âmbito intelectual, ou seja, estamos diante de uma fé que procura probabilidades. Trata-se de uma espécie de fé-ciência ou fé-conhecimento. Já do ponto de vista cristã, o definição de fé esta posta sobre o existente. Para Kierkegaard Deus não nos aparece como um professor assistente recheado de vários axiomas, onde primeiro ele nos leva a crer para só depois entendermos (GOVEIA, 1999, p. 7). Todavia, seja como for, é impossível de fazer aqui uma comparação profunda e sistematizada entre os autores, o que de certa forma renderia sem dúvida, uma dissertação a parte.

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propõe uma fenomenologia do espírito caracterizada através de um eu que já possui uma

consciência de si, e a demonstra pela instrumentalidade de um sistema filosófico “bem

orquestrado”, na fenomenologia de Kierkegaard, o eu ainda não possui consciência de si

mesmo, passando a possuí-la somente na dialética do desespero, de estar diante da infinitude

(Deus) ou da ideia de Deus, pelo escândalo da fé (DIP, 2011, p. 63).

Em linhas gerais, ao fazer esse percurso, estamos de fato procurando compreender a

maneira como Kierkegaard demonstrou a questão da “consciência de eu” a luz do cristianismo

(DIP, 2011, p. 63). Isto é, não se trata de uma preocupação histórica, mas sim

fenomenológica. As diversas figuras ou categorias da existência humana que aparecem na

filosofia de Kierkegaard tais como: desespero, angústia, imaginação, fé, pecado ou amor,

devem estar sempre abordados no âmbito do fenomenológico, ou seja, na ambiguidade do

existir (DIP, 2011, p. 63). É nesse sentido, que o desesperadamente ignorante de Kierkegaard

é diferente da ignorância socrática, visto que enquanto Sócrates procurou demonstrar o

pecado sobre o ponto de pagão- histórico-ético, e Kierkegaard estabeleceu no âmbito cristão-

fenomenológico-religioso. A abordagem de Kierkegaard remete-nos a um tipo de desespero

ignorante do eu, cuja fundamentação primordial ocorre no espírito (KIERKEGAARD, 2010,

p. 25). Obviamente, a tentativa de Anti-Clímacus, foi fazer um contraponto entre Sócrates –

principal expoente da filosofia clássica – e o cristianismo, cuja compreensão antropológica

não é de um “eu racional”, mais sim “eu prático-existencial” (DIP, 2011, p. 64). Sócrates

possui as artimanhas da ironia, o que poderia perfeitamente habilitá-lo a compreender o

conhecimento existencial, no entanto, faltou-lhe a categoria introduzida pelo cristianismo que:

à vontade, e isso o impede de distinguir entre o “querer e compreender” (DIP, 2011, p. 65).

1. 3 Desespero e Salvação

Existe ou não uma apropriação do conceito de pecado relacionado com a temática da

salvação na filosofia de Kierkegaard? Casa haja, é possível utilizá-la como “chave

hermenêutica” para entender o seu pensamento? Essa é a hipótese de trabalho defendida pelo

filósofo americano W. Glenn Kirkconnel. Em seu livro: Kierkegaard on Sin and Salvation

(2012) o autor procurou sistematicamente demonstrar, a importância de utilizar a temática da

soterologia na produção literária kierkegaardiana, a partir de sua harmatiologia

(KIRKCONNEL, 2012, p. 4). Na verdade, na historiografia teológica, pecado e salvação são

de fato, conteúdos correlatos, no entanto, não podemos deixar de lembrar, que Kierkegaard

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não se propôs a fazer “teologia tradicional”, o que faz como que toda inferência ao tema seja

pensada de forma análoga.

Sobre esse aspecto, o texto de Kirkconnel (2012) procurou fazer diversos aportes.

Apenas como elemento de ilustração no quadro abaixo, apontaremos de maneira bem

compacta, as obras de Kierkegaard, que o autor americano procurou apresentar:

Tabela 1 – Principais características da soterologia de kierkegaardiana Obra Tema Hipótese

Três Discursos Edificantes (1843)

A Salvação pela Instrumentalidade

da Prática Cristã do Amor

Se o mundo está em um estado de

estagnação pecaminosa, a ação

cristã no amor serve como

instrumento de Deus para salvar o

mundo, visto que o amor é capaz de

encobrir uma multidão de

pecados.19

Ou- Ou – Um Fragmento de vida

(1843)

A Salvação pela Instrumentalidade

do “Conhecer a si mesmo” ou

“Escolher-ser”

Para que haja uma atitude

coerentemente ética é necessário

que o indivíduo se considere de

fato, um pecador. O

reconhecimento de que é incapaz

de agir corretamente é o primeiro

passo para salvação, tanto

individual como também coletiva.

Todavia, o texto Ou- Ou, deve nos

convidar a buscar uma categoria

superior à ética, isto é, a religiosa.

Deus é o salvador que salva o

homem de si mesmo. 20

A Repetição (1843)

A Salvação pele Instrumentalidade

do retorno eterno do homem

A repetição é vista como uma

espécie de aprofundamento do

sentido ou da categoria cristã da

eternidade, apontando para um

porvir ou um futuro. Nesse sentido,

a salvação está em saber retornar-se

ao momento (instante) eterno do

homem. 21

19 KIRCONNELL, 2012, p. 4-5 20 KIRCONNELL, 2012, p. 6 21 KIRCONNELL, 2012, p. 6-7

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Temor e Tremor (1843)

A salvação pela instrumentalidade

da superação do pecado coletivo no

ético

Do ponto de vista ético, o sacrifício

de Abrão deve sempre ser

considerado pecaminoso, portanto,

longe de salvação. No entanto, a

superação do pecado coletivo no

ético, é garantida na medida em que

o Abrão decide obedecer a Deus. É

nesse sentido, que o mesmo é

contemplado com a salvação. 22

Migalhas Filosóficas (1844)

A salvação pela instrumentalidade

do paradoxo da fé

Tendo em vista que a verdade não

pode ser apreendida de forma

epistemológica, o homem natural

encontrar-se-ia em um estado de

pecado. A salvação só pode ser

consolidada, através da fé, na

encarnação e na ação de um

“mestre salvador” é capaz de levar

esse mesmo homem a verdade. 23

O Conceito de Angústia (1844)

A salvação pela instrumentalidade

da consciência de culpa e a

liberdade

A angústia faz parte da constituição

do eu, portanto, não podemos viver

sem ela. Por outro lado, essa

mesma categoria é capaz de lançar

o homem em um precipício de

possibilidades. Assim, a salvação

deve acontecer quando o homem

aprende a conviver com a angústia,

através do exercício da

responsabilidade na liberdade. 24

Estádios no Caminho da Vida

(1845)

A salvação pela instrumentalidade

da apropriação de um Amor que

transcende o Amor Platônico

Nem no banquete nem no

matrimônio. O “verdadeiro” amor,

aquele que “salva” precisa ser

caracterizado pela capacidade em

poder não se reduzir na liberdade

daquele que ama. O amor existe em

Deus, independente da estabilidade

ou instabilidade das relações. 25

22 KIRCONNELL, 2012, p. 8-9 23 KIRCONNELL, 2012, p. 12-15 24 KIRCONNELL, 2012, p. 41-43 25 KIRCONNELL, 2012, p. 65-67

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46

Pós- escrito conclusivo não-

cientifico as Migalhas Filosóficas

(1846)

A salvação pela instrumentalidade

de uma verdade subjetivada

É necessário estabelecer a presença

de uma verdade eterna na

temporalidade. A salvação é

possível, na medida em que essa

mesma verdade é apropriada no

íntimo de nossa própria

interioridade. 26

1.3.1 A “Cura” do Desespero

O desespero é fenômeno universal, isto é, ninguém consegue escapar de dele. Os que

tentarem ignorá-lo estariam num estado de desespero mais desesperante ainda

(KIERKEGAARD, 2010, p. 38). Todavia, existe “cura” para o desespero? Esse é um daqueles

questionamentos, difíceis de ser de respondido de pronto. Primeiro porque o próprio

Kierkegaard não deixou isso bem claro. Isto é, assim com em outras obras, no Desespero

Humano, o problema da soterologia não está posto de forma teologicamente tradicional. Em

segundo lugar, como já elencamos diversas vezes nesse capítulo, não foi objetivo de

Kierkegaard fazer teologia de sistemas. No entanto, é possível fazer pelo menos três

inferências básicas que – talvez por analogia – possam tocar em questões de “caráter

soterológico” nas reflexões kierkegaardiana. Nossa hipótese de trabalho aqui está posta sobre

uma perspectiva dialética, onde pressupostos se relacionam da antítese à tese ou vice e versa.

Esses são: (1) O desespero como “cura”; (2) A “cura” do desespero como a ausência da

continuação do pecado; (3) A “cura” do desespero quando não nos desesperamos quanto à

remissão do pecado. Vejamos:

O desespero como “cura”. Kierkegaard procurou deixar claro na sua antropologia,

que nada poderia ser tão terrível no processo que determina a constituição do eu, do que

aquela suposta “ausência do total” do desespero (KIERKEGAARD, 2010, p. 28). É como se a

consciência da presença do desespero no homem fosse o primeiro passo para a reaproximação

do eu consigo mesmo e com Deus. Nesse sentido, deixar de selo em consciência seria o

mesmo que não receber a “cura” uma desvantagem. Kierkegaard diz: O desespero será uma vantagem ou uma imperfeição? Uma coisa e outra em pura dialética. Se considerarmos sua ideia abstrata, sem pensar num caso determinado, deveríamos julgá-lo uma enorme vantagem. Sofrer um mal destes coloca-nos acima do animal, progresso que nos distingue muito mais do que o caminhar em pé, sinal da nossa verticalidade infinita ou da nossa

26 KIRCONNELL, 2012, p. 95-97

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espiritualidade sublime. A superioridade do homem sobre o animal, está pois em ser suscetível de desesperar; a do cristão sobre o homem natural, em sê-lo com consciência, assim como a sua bestialidade está em poder curar-se (KIERKEGAARD, 2010, p. 27).

Sobre este aspecto, é possível identificar no próprio desespero uma espécie de

instrumento de “cura”. Isto é, para Kierkegaard a presença consciente do desespero pode ser

considerada o passaporte que nos garante a viagem de encontro com o nosso eu eterno

(KIERKEGAARD, 2010, p. 27). Trata-se da nossa herança divina de nos ter feito homos

sabes. A rigor, o animal não possui consciência de si, ele apenas responderia a estímulos

biológicos, somente ao homem é dada à capacidade de poder se relacionar conscientemente

com o seu criador. Assim, em certo sentido, é possível afirmar que uma experiência dialética

do desesperar-se, o eu acaba por desencadear o encontrar o seu próprio eu, com o seu ator, ou

seja, Deus. É nesse sentido, que a discordância do desespero não pode ser caracterizada como

uma simples discordância, visto que a mesma pode fomentar a própria “cura”, levando o

homem a desenvolver um relacionamento consigo mesmo e com o seu criador. Anti-

Clímacus: [...] No desespero, a discordância não é uma simples discordância, mas a de uma relação que, embora orientada sobre si própria, é estabelecida por outrem; de tal modo que a discordância, existindo em si, se reflete além disso até ao infinito na sua relação com o seu autor. Eis a fórmula que descreve o estado do eu, quando deste se extirpa completamente o desespero: orientando-se para si próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até ao poder que o criou (KIEREKGAARD, 2010, p. 27).

A “cura” do desespero como a ausência da continuação do pecado. Nossa hipótese de

trabalho aqui vai procurar destacar que segundo Kierkegaard, existe um agravante no

problema do desespero chamado pelo autor de estado contínuo ou continuação do pecado

(KIERKEGAARD, 2010, p. 135). O estado contínuo de pecado seria uma espécie de “pecado

a mais”. Na verdade, isso deve acontecer ao homem, devido à presença de seu eu eterno. Isto

é, a continuidade é, contudo, a própria essência da eternidade (KIERKEGAARD, 2010, p.

136). A descrição feita pelo autor é precisa:

O estado contínuo de pecado é um pecado a mais; ou, para usar uma expressão mais precisa e tal como adiante se desenvolverá, permanecer no pecado, é renová-lo, é pecar. Ao pecador talvez isto pareça exagerado, pois lhe custa reconhecer em qualquer outro pecado atual um novo pecado. Mas a eternidade, seu guarda-livros, é obrigada a inscrever o estado de pecado em que se está no passivo dos novos pecados. O seu livro tem apenas duas colunas e “tudo o que não vem da fé é pecado”; a falta de arrependimento após cada pecado é um novo pecado (KIERKEGAARD, 2010, p. 135).

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Nesse pormenor, Kierkegaard está interessado em tocar na concepção de que o pecado

é contínuo ou descontínuo. Grosso modo, e superficialmente, talvez o pecado fosse mesmo

uma ação descontinua. Isto é, cada pecado deveria ser considerado um ato isolado em relação

aos outros pecados a serem cometidos. Um pecado cometido hoje, não poderia ser

considerado entrelaçado ao pecado de ontem, a não ser semelhança de vício. Todavia, para

Kierkegaard o fenômeno do pecado deve de fato pressupor a sua continuidade

(KIERKEGAARD, 2010, p. 137). Para Anti-Clímacus, essa continuidade do pecado é

marcado por duas atitudes básicas: (a) ausência de arrependimento; (b) desespera-se do

próprio pecado. Na primeira atitude, o indivíduo encontrar-se-ia em um estado de

entorpecimento tão profundo em relação ao seu pecado, que nem ao menos é capaz de se

arrepender do que fez ou está fazendo. Ora, aqui a ausência de arrependimento é permanência

do pecado. Proporcionalmente, a atitude de permanecer no pecado é pior do que cada pecado

isolado, visto que se trata de uma espécie de pecado por excelência. E é neste sentido, com

efeito, que o ato de permanecer no pecado, é continuar o pecando, portanto, é um novo

pecado (KIEREKGAARD, 2010, p. 137). Já a segunda atitude (desesperar-se do seu próprio

pecado) o autor procura demonstrar que, desesperar do pecado significa que o eu se encerrou

na sua própria consequência e não quer sair dela. Isto é, de forma demoníaca recusa-se a

qualquer contato com bem, receia a fraqueza de escutar outra voz, que não seja a de si mesmo

(KIERKEGAARD, 2010, p. 140). Nesse estado de espírito, o homem não quer ser

incomodado por Deus ou a ideia de Deus. Ora, toda atitude pecaminosa é de fato, afastar-se

do bem; mas a atitude de desesperar-se do seu próprio pecado, é um segundo abandono

(KIERKEGAARD, 2010, p. 141).

Dificilmente seria possível medir com precisão até que ponto Kierkegaard sustentaria

que esta suposta ausência dessas atitudes e comportamentos possa, de fato, estabelecer a

garantia da “cura” do desespero. No entanto, não se pode ignorar que o autor procurou

valorizar que justamente, que estas ausências de atitude e comportamento, presente no homem

natural, estariam inversamente presente de maneira fecunda, na vida de qualquer cristão

autêntico. Ele diz:

O crente, cuja vida inteira repousa sobre o encadeamento do bem, tem um receio infinito mesmo de menor pecado, visto que arriscar a perder infinitamente, ao passo que os homens do espontâneo, que não saem do pueril, não têm totalidade a perder, as perdas e ganhos nunca são para eles mais do que parcialidade, particularidade [...] o homem de bem, se o fossem tentar pintando-lhe o pecado sob uma forma atraente; a sua resposta suplicante seria: “Não me tenteis!” (KIERKEGAARD, 2010, p. 139).

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A “cura” do desespero quando não nos desesperamos quanto à remissão do pecado.

Esse é o terceiro aspecto hipotético que apontamos como elemento de “cura” ou salvação para

o problema do desespero. Kierkegaard afirma que existe um estado de desespero em que o

desesperado desespera-se quanto à remissão do pecado (KIERKEGAARD, 2010, p. 145).

Nesse sentido, o indivíduo não quer buscar e nem receber redenção. No decorrer das hipóteses

anteriores, Kierkegaard advogou a ideia de que o desespero do eu estava caracterizado, ora

diante de si mesmo, ora diante a face de Deus. Porém, agora, nesse estado desespero, o autor

tece seus argumentos a partir de uma perspectiva cristã. Logo, eu estaria perante Cristo

(KIERKEGAARD, 2010, p. 145).

A distinção entre estar perante a face de Deus ou a de Cristo é crucial, sobretudo

porque diz respeito à remissão do pecado. No primeiro caso, temos a possibilidade de

definição do pecado, no segundo momento, a possibilidade da remissão. Kierkegaard defende

que, quanto maior for a ideia de Deus, maior se torna o próprio eu (KIERKEGAARD, 2010,

p. 146). Portanto, o aparecimento do Cristo pelo processo de encarnação (João 1: 14)

potencializou a identidade de Deus, e ao mesmo tempo a identidade do eu. Paradoxalmente,

na medida em que se aumenta a intensidade do eu, aumentou também o seu pecado. Ciente da

dureza existencial dessa realidade, o próprio Deus providenciou a remissão dos pecados pela

instrumentalidade e esperança que há no seu Cristo. Veja: Um eu em face de Cristo é um eu elevado a uma altitude, a uma potência superior, pela imensa concessão de Deus, a imensa acepção de que Deus o investiu, tendo querido, para ele também, nascer e ser homem, sofrer e morrer. A nossa fórmula precedente, sobre o crescimento do eu, quando cresce a ideia de Deus, vale igualmente aqui: quanto mais aumente a ideia de Cristo, mais o eu é aumentado. A sua qualidade depende da sua medida. Dando-nos Cristo como medida, Deus mostrou-nos à evidência até onde vai à imensa realidade de eu; porque só Cristo é verdade que Deus é a medida do homem, a sua medida e o seu fim. Mas com a intensidade do eu aumenta a do pecado. Também se pode demonstrar do outro modo a elevação de intensidade do pecado. Viu-se em primeiro lugar que o pecado era desespero; e que a sua intensidade se elevava pelo desespero do pecado. Mas Deus oferece-nos então a reconciliação remindo nossas culpas (KIERKEGAARD, 2010, p. 146).

A problemática aqui é caracterizada pela insistência do eu que não quer receber oferta

divina: a remissão do nosso pecado através de seu Cristo (KIERKEGARD, 2010, p. 147).

Essa insistência em não aceitar a remissão do pecado é chamada por Kierkegaard com sendo

um Escândalo. Esta terminologia é empregada amplamente na segunda parte do livro de Anti-

Clímacus. Metodologicamente ela se processa sempre em conexão com a fé no tratamento

que o eu dá em relação às propostas do cristianismo. Ora, de acordo com o que se viu até

aqui, o problema do desespero está posto sobre aquele indivíduo isolado que se encontrou

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perplexo frente à face de Deus ou da ideia de Deus, tendo ainda, sua perplexidade dobrada

quando esta frente à face de Cristo (KIERKEGAARD, 2010, p. 146). Nesse estado de

desespero, o homem se desespera escandalizado em ter que crer no Cristo.

Concentrando-se em um pequeno círculo de argumentos, Anti-Clímacus termina o seu

livro apresentado dois tipos de atitudes em relação ao escândalo do cristianismo. O primeiro

aspecto deles, é caracterizado pelo seu caráter institucional (KIERKEGARD, 2010, p. 149).

Trata-se daquela atitude forjada pela própria teologia tradicional. Kierkegaard chama-o de

dogma do homem-deus. Sua crítica à cristandade é severa, sobretudo para com o modelo de

igreja triunfante, que segundo ele parece ocultar o genuíno testemunho do cristianismo, ou

seja, aquele cristianismo cuja cruz é um escândalo ao que não crê, transformando-o em

assunto de mera análise especulativa e filosófica (KIERKEGAARD, 2010, p. 150). Para

Kierkegaard o grande erro da cristandade de sua época, foi o de tentar anular a seriedade do

conceito de pecado, isto é, de maneira abstrata, anula-se a necessidade de se crer ou de se

entender a seriedade do pecado no indivíduo, limitando-se ao gênero. Ainda, sobre o

problema essa cristologia meramente abstrata, Kierkegaard teceu diversos pormenores

dizendo que: Contudo, o cristianismo, desde o seu começo, tomou as precauções. Parte da doutrina do pecado, cuja categoria é precisamente a do indivíduo. O pecado não é objeto de pensamento especulativo. Com efeito, o indivíduo, mas sim apenas o seu conceito. Logo nos teólogos se precipitaram sobre a doutrina da preponderância da geração sobre o indivíduo: porque fazer-lhe confessar a impotência do conceito em face do real, isso seria perdi-lhes demasiado. Como não se pensa um indivíduo, tampouco se pode pensar um pecado individual; pode-se pensar o pecado (que se torna então uma negão), mas não um pecador isoladamente. Mas, é isso mesmo que tira ao pecado toda seriedade, se nos limitarmos a pensá-lo. Porque o que é sério, é sermos, vós e eu, pecadores; não é o pecado geral que é sério, mas o acento recaindo sobre o pecador, isto é, sobre o indivíduo (KIERKEGAARD, 2010, p. 151-152).

Dessa forma, a categoria do indivíduo não é ajudada pela especulação teológica. Isto é,

o eu não consegue desenvolver a sua verdadeira interioridade. Portanto, nesse contexto, não

há lugar, nem ao mesmo motivo para se crer quanto a essa necessidade de remissão dos

pecados. Todavia, Kierkegaard insiste em dizer que:

[...] é pelo escândalo que principalmente se manifesta a subjetividade, o indivíduo. Sem dúvida que o escândalo sem escandalizado é um pouco menos impossível de conceber que um concerto de flauta sem flautista; mas até um filósofo me confessaria à irrealidade, mais ainda do que do amor, do conceito de escândalo e que ele não se torna real senão quando há alguém, quando há um indivíduo que se possa escandalizar. O escândalo está, portanto, ligada ao indivíduo. É daí que parte o cristianismo; ele faz de cada homem um indivíduo, um pecador particular, e depois junta tudo aquilo que, entre o céu e a terra, se encontra de possibilidade de escândalo: eis o cristianismo (KIERKEGAARD, 2010, p. 155)

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O segundo tipo de escândalo apresentado por Kierkegaard quanto a remissão do

pecado é o que autor chamou de blasfêmia contra o Espírito Santo ou de Abandono positivo

do cristianismo (KIERKEGAARD, 2010, p. 158). O eu eleva-se, aqui ao seu supremo grau de

desespero. Nesse sentido, ele não faz senão lançar longe de si o cristianismo, considerando-o

mentira e fábula. Proporcionalmente, nesse estado de espírito, a elevação da potência do

pecado revela-se quando o interpretamos como sendo uma espécie de guerra do homem

contra Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 158). Conclui-se, portanto, que a elevação para esse

tipo de desespero, não só faz com que o homem deixe de buscar a remissão do pecado, como

também procura patrocinar a hostilidade, ou seja, consiste em passar da defensiva à ofensiva.

Portanto, o pecado contra o Espírito Santo é o pecado que ataca (KIERKEGAARD,

2010, p. 159). A tarefa aqui, não consiste simplesmente em demonstrar mais uma vez a

diferenciação infinita entre Deus e o homem, mas sim a tentativa humana de se revoltar contra

ela. Para Kierkegaard, o dogma do cristianismo é o dogma do homem-deus, ou seja, o

parentesco entre Deus e o homem, todavia, sempre reservando a possibilidade do escândalo.

Na possibilidade do escândalo está a força dialética do cristianismo (KIERKEGAARD, 2010,

p. 159). Isto é, quando o cristianismo afirma que Deus se encarnou e se faz homem, não é de

uma fantasia que se trata ou de uma mera invenção para se evadir, talvez, do tédio de ter que

conviver com a hipótese da existência de Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 165). No entanto,

para eu, cuja principio ativo é medido com blasfêmia contra o Espírito Santo, tal empreitada

divina deve ser sempre considerada de fato, um absurdo, devendo ser veementemente

combatida. Para Anti-Clímacus, àqueles que estão postos nessa versão de desespero, a

salvação está longe.

1.3.2 O Caminho da Edificação

Como pode ser observada na sessão anterior, a hipótese de que existe uma espécie de

“cura” ou salvação para o desespero é paradoxal. Nesse sentido, ela só pode ser entendida se

for absorvida da maneira dialética. Talvez ela só seja de fato possível, quando pensada a partir

da ideia da Edificação. Por exemplo, no decorre do prefácio do livro, Anti-Clímacus procurou

deixar ao seu leitor a existência de um telos superior em sua obra, que seria caracterizado

como sendo uma Edificação. Inclusive, o autor chegou até mesmo a dizer que, caso haja uma

ausência do elemento de edificação em seu livro, tal ausência deveria ser considerada por todo

o leitor uma espécie de “defeito” constitutivo. Assim, Anti-Clímacus/Kierkegaard afirma:

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É possível que esta forma de “exposição” se afigure, a muita gente, singular; que pareça demasiado severa para ser edificante demasiado edificante para ter rigor especulativo. Se for demasiadamente edificante, não sei bem; demasiado severa, suponho que não; e se fosse, seria, a meu ver, um defeito. O problema não está em saber se pode ser edificante para toda a gente, visto que nem toda a gente será capaz de, a seguir; mas, neste caso, que seja edificante, por sua natureza. A regra cristã quer, com efeito, que tudo, tudo possa ser pretexto para edificar (KIERKEGAARD, 2010, p. 17).

A categoria da edificação em Kierkegaard possui dimensões plurais, todas elas sempre

embasadas na prática cristã do amor (KIERKEGAARD, 2005, p. 240). Contextualizando, a

palavra dinamarquesa para edificação é bygge, que significa também construir (PAULA,

2009, p. 95). A respectiva palavra é sempre usada juntamente com prefixo op, que traduzido

significa para cima. Assim, a conjunção da palavra opbygee, edificante ou construtivo, deve

denotar a ideia de “construir para cima”, ou seja, edificação a partir da fundação (PAULA,

2009, p. 95). É justamente isso que Kierkegaard está pensando quando fala em edificante, isto

é, construir a partir dos fundamentos. Ora, para o nosso autor, edificante é tudo aquilo que

pode ajudar um indivíduo, dentro da sua interioridade (KIERKEGAARD, 2005, p. 242).

M. G. Paula (2009) aposta na contraposição dialética entre o edificante de Kierkegaard

e o não edificante de Hegel. Para o primeiro, o edificante não retira o rigor de uma análise

especulativa ou filosófica, antes, o aumenta potencializando-o e conferindo-lhe outra

dimensão. Diferentemente de Hegel,27 que costumava alertar seus leitores contra o suposto

perigo de se buscar uma edificação na filosofia (PAULA, 2009, p. 96). Por outro lado,

Kierkegaard sempre via como extremamente favorável o fenômeno da edificação, sobretudo

na construção existencial do homem. Isto é, mesmo no interior do processo que determina a

constituição do eu – chamado por Kierkegaard de desespero – , o valor da edificação contínua

sendo de fato fundamental, visto que disponibiliza para o eu, a possibilidade de existir na

excelência da seriedade de estar diante a face de Deus ou da ideia de Deus. Ele diz: A inquietação e o verdadeiro comportamento para com a vida, para como a nossa realidade pessoal e, consequentemente, ela representa, para o cristão, a seriedade por Excelência; a elevação da ciência imparcial, muito longe de representar uma seriedade superior ainda, não é, para ele, senão farsa e vaidade. Mas sério ainda, eu vou afirmar – aquilo que edifica (KIEREKGAARD, 2010, p. 18).

27 Hegel diz: “Quem só busca a edificação, que pretende envolver na névoa a variedade terrena de ser-ai e de seus pensamentos, e espera o prazer indeterminado daquela divindade indeterminada, veja bem onde é que se podem encontrar tudo isso; vai achar facilmente o meio de fantasiar algo e fica assim bem pago. Mas a filosofia deve guardar-se de querer se edificante” (HEGEL, 19992, p.25). Contudo, Kierkegaard nunca conseguiu compreender a recusa hegeliana ao edificante, como se pode atestar nos Diários: “Estranho esse ódio de Hegel pelo edificante, que transparece em pouco em todos os lugares: no entanto, bem longe de ser um narcótico que acalma, o edificante é o amém do espírito acabado e é, portanto, um aspecto do conhecimento que não deveríamos negligenciar (KIERKEGAARD, 1997, p. 183).

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Digo que, se a razão iluminista pela instrumentalidade dos trabalhos de Kant e Hegel

procura objetivar absurdamente a subjetividade humana, transformando-a numa espécie de

arcabouço teórico desconectado da existência concreta, não há dúvida que através das

propostas de Kierkegaard temos um contra ponto (OLIVEIRA, 2009, p. 16). Isto é,

Kierkegaard procurou tecer suas críticas a essa empreitada iluminista, chamando-nos de novo

a atenção para o fato de que existe uma diferença abismal entre as verdades abstratas da razão,

e a paradoxal realidade concreta do indivíduo (OLIVEIRA, 2009, p. 17). Ora, à reflexão

moderna de que a subjetividade é a verdade, segue-se uma segunda reflexão, para o pensador

subjetivo, paradoxalmente, ela também é a não-verdade, e , portanto, essa negatividade

subjetiva é o reflexo do abismo entre o pensamento e a realidade, tão absurdamente largo e

cartesianamente interiorizado no plano do pensamento que a consciência tende a se iludir

como se fosse ele mesmo uma ponte (OLIVEIRA, 2009, p. 17).

Oliveira (2009) defende que, proporcionalmente, ao mesmo tempo é possível que as

propostas de Kierkegaard, de tentar forjar uma verdade a partir da subjetividade, sofram

algum tipo de oposição ou questionamento, seja por acharem que se trata de uma espécie de

versão “falsificada da verdade” baseada numa “racionalidade infundada”, ou quem sabe por

acharem que a mesma encontra-se “desconectada” da concretude histórica (OLIVEIRA, 2009,

p. 18). Ora, as propostas do nosso pensador subjetivo, não podem ser consideradas

racionalmente infundadas, visto que a mesma se impõe sobre a racionalidade moderna pela

instrumentalidade da própria razão, cujas lacunas são latentes. Isto é, as críticas de

Kierkegaard ao método da racionalidade moderna, utilizam-se de um expediente

argumentativo de pura dialética (OLIVEIRA, 2009, p. 18). Tampouco deve ser considerada

uma espécie de verdade transcendente à história, pois pressupõe uma infinitude atrás de si a

cada instante em que busca propriamente por as condições de um salto com infinito devir

interior em direção a um inteiramente outro (OLIVEIRA, 2009, p. 18). Assim, o autor

situando-se melancolicamente diante dessa histórica inversão real, transformou-se em um

humorista, ou seja, fazendo-se repetidas vezes, faz passar dialeticamente uma verdadeira

seriedade ética com a qual a subjetividade se efetiva a si mesma, pela efetiva resistência a essa

racionalidade atual em cada instante que lhe é mais próximo (OLIVEIRA, 2009, p. 18).

É justamente esse tipo de pensamento subjetivo que é capaz de gerar aquilo que

Kierkegaard chama de edificação. Haja vista que o mesmo, busca atingir não só os elementos

periféricos da existência humana, mas, sobretudo, os fundamentos, ou seja, as matrizes

constitutivas do eu, cujas instâncias devem estar postas sobre as bases do amor, visto que o

amor tudo edifica (KIERKEGAARD, 2009, p. 243). Ele diz:

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Onde quer que esteja o edificante está o amor; e onde quer que esteja o amor, está o edificante. É por isso que o apóstolo Paul diz que um homem sem amor, mesmo que falasse a língua dos homens e dos anjos, é contundo como o bronze que ressoa e o címbalo que retine O que haveria de menos edificante que um címbalo que retine? As coisas do mundo, por mais magnífica ou barulhenta que sejam, são sem amor e, por mais conseguinte, elas não são edificante; a mínima palavra pronunciada com amor, a mínima ação realizada com amor ou no amor são edificantes. É por isso que o conhecimento só faz inflar. E, no entanto, o conhecimento e a comunicação do conhecimento também podem se edificantes; mas é que então amor os acompanha. [...] A cada instante vive uma multidão inumerável de seres humanos; é possível que tudo o que cada um se propõe a fazer, tudo o que cada homem diz possa ser edificante: no entanto, ai! é tão raro ver ou ouvir algo edificante (KIERKEGAARD, 2009, p. 246).

Kierkegaard está absolutamente convencido de que a sociedade moderno-

contemporânea está órfã de Discursos Edificantes. Tal fato deve ocorrer, sobretudo, pela

ausência do amor. Kierkegaard está absolutamente convencido de que a produção filosófico-

científica ou qualquer obra de produção humana, por mais magnífica e esplêndida que seja, se

não estiver sendo feita pela instrumentalidade do amor, não passa de címbalo que retine, isto

é, não passa de barulho sem vida. A rigor, Kierkegaard está absolutamente convencido das

reais necessidades da existência humana, em se construir sempre que possível, uma

construção filosófica que seja ao menos capaz de edificar.

Portanto, apenas em nível ilustrativo, é importante observar nesse contexto, que se no

século XX, ocorreram um profundo retorno das discussões ao redor da temática do indivíduo

e a ênfase numa religiosidade comprometida, Kierkegaard torna-se uma espécie de pré-

requisito básico e fundante para muitos filósofos e teólogos. Dentre eles, podemos destacar:28

Edmund Husserl, George Lukács, Karl Krauss, Ludwig Wittgenstein, Jean Paul Sartre, Martin

Heidegger, Theodor W. Adorno, Karl Barth, Martin Buber e, no nosso caso, sobretudo, os

trabalho de Paul Tillich. 29

28 PAULA, 2009, p. 152 29 PAULA, 2009, p. 153

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2. O CONCEITO DE ALIENAÇÃO EM TILLICH E SUA RELACÃO COM A

DOUTRINA DO PECADO

Nesse segundo capítulo, pretendemos debruçar nossa atenção, ao conceito de

alienação de Paul Tillich, relacionando-a a sua concepção de pecado original, vislumbrando

uma suposta possibilidade soterológica. É nítido, ao que nos parece, que estamos novamente

diante de uma problemática de caráter interdisciplinar. Isto é, um problema de caráter

filosófico-antropológico que nos remete a um problema de caráter teológico-religioso. Sobre

esse aspecto, Tillich é extremamente consciente. A rigor, ele não faz nenhum tipo de objeção

quanto ao uso desse método, sobretudo quando aplicado ao estudo dos fenômenos religiosos.

Ao ter afirmado que ser um teólogo ou um pensador de na fronteira, 30 (TILLICH, 1992, p.

112) ou pela sua proposta de estabelecer uma teologia da cultura, 31 (TILLICH, 2009, p. 82)

o autor alemão tinha justamente isso em mente, ou seja, propor uma reflexão teológica que

seja ao mesmo capaz de tocar, com propriedade, as diversas áreas do conhecimento humano

de maneira correlata. Nesse sentido, buscando trabalhar as realidades do mundo de sua época,

utilizou ferramentas conceituais apropriadas da filosofia, em especial do socialismo alemão e

do existencialismo para dialogar assim com a cultura de sua época (PINHEIRO, 2009, p. 22).

Obviamente, pressupor em Tillich que o ato de pensar ou de procurar estabelecer a

interdisciplinaridade como instrumental para uma construção de um método teológico é

reconhecer que não há conflito inerente entre filosofia e teologia, entre a racionalidade e a fé

ou entre expressões culturais e a religiosidade. Trata-se de ser capaz de reconhecer elementos

que determinam as instâncias correlatas. Ao falar sobre o seu próprio método, Tillich afirma

que o mesmo deve ser denominado como sendo uma espécie de “teologia da correlação”

(PINHEIRO, 2009, p. 22). O método da correlação propriamente dita tem como espinha

dorsal a tentativa de repensar os conteúdos da tradição cristã e teológica, adequando-os para

serem entendidos pelos homens e mulheres de nossa época (PINHEIRO, 2009, p. 22). O

cientista da religião precisa estrategicamente correlacionar os enunciados da revelação

30 Ser “pensador de fronteira” é o reconhecimento que a produção teológica, não deve ser encarada de maneira restritiva e sim ampla e dialogal. No entanto, as fronteiras significam não somente o espaço-limite entre as diversas disciplinas e saberes, mas também a interface fecunda entre os mesmos. As propostas de Tillich buscavam estabelecer um pensamento rico e complexo, multi e interdisciplinar, que antecipa de forma surpreendente muito da atual discussão sobre inter e transdisciplinaridade (MUELLER; BEIMS, 2005, p. 24). 31 Tillich procura em sua Teologia da Cultura, diminuir a distância existente entre a fé e a cultura, mostrando que, diferente do que muitos possam pensar, o físico e o material são profundamente afetados pela espiritualidade humana. Isto é, para se entender a cultura é necessário perceber a teologia que percorre por debaixo da superfície das expressões humanas e vice versa (ARAÚJO, 2010, p. 179).

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sagrada com a situação cultural vigente. Isto é, repensá-los através de eventos culturais

fundamentais que agitam o espírito humano tais como: arte, economia, filosofia, política,

religião entre outros (PINHEIRO, 2009, p. 22).

A grande contribuição de Tillich quanto à consolidação de um método teológico de

caráter interdisciplinar, pode ser de fato medida, a partir de dois aspectos principais: (1) Pela

proposta de uma teologia culturalmente dialogal; (2) Pela proposta de uma teologia sensível

a linguagem simbólica. Sobre o primeiro aspecto, predomina-se de maneira latente, a tentativa

tillichiana de procurar sempre dialogar com a cultura de sua época. A capacidade de diálogo

com o mundo vigente consolida a sua proposta de uma teologia da cultura. Nesse sentido,

costuma-se atribuir esse tão desejoso comportamento, sobretudo, ao ambiente acadêmico em

que o próprio Tillich teria sido forjado (MUELLER, 2006, p. 75). Isto é, segundo alguns

pesquisadores – dentre os quais se destaca os trabalhos do teólogo brasileiro Enio Mueller – o

período em que Tillich trabalhou como professor na cátedra de filosofia na Universidade de

Frankfurt deve ser considerado o mais rico da vida de autor (MUELLER, 2006, p. 76). Ali

Tillich teria encontrado uma espécie de “caldo ideal” que serve como elemento embrionário

para a fermentação de sua ideia e suas amplas perspectivas, ou seja, teria sido justamente em

Frankfurt, que o autor pode ver de perto uma vivência cultural intensa e um ambiente

interdisciplinar fecundo, como inclusive raramente se viu em toda a história da cultura

acadêmica alemã 32 (MUELLER, 2006, p. 77). Proporcionalmente, a proposta de uma

teologia da cultura, está em defender que não podemos ignorar ou esquecer a importância da

religião, na construção e na manutenção do mundo da cultura. A religião é estímulo primário

da cultura, ao mesmo tempo em que a cultura passa ser forma integral da religião. Isto é, não

existe religião em si mesmo, só existe religião a partir de suas formas culturais. As categorias

religiosas na espera prática se desenvolvem a partir da cultura (TILLICH, 1973, p. 103).

Portanto, o teólogo da cultura não poderia ignorar os acontecimentos significativos de época –

32 Trata-se de atmosfera vital, progressista e liberal na universidade. Não havia divisões artificiais entre as faculdades de medicina, filosofia e ciências sociais: cada instituto relacionava-se com facilidade com os outros. Professores visitavam os seminários uns dos outros de maneira informal, ou os dirigiam em conjunto (MUELLER, 2006, p. 76). A universidade também contava com uma forte presença de intelectuais judeus, e quase todos de esquerda. Frankfurt era um dos grandes centros do judaísmo da Alemanha, ao que concorria o fato de começar a se tornar a capital financeira do país. A universidade era financiada, mormente por instituições privadas, nas quais a presença judaica era forte. Para E. Mueller, a forte presença judaica, seria o elemento detonador - responsável pelo clima interdisciplinar que reinava na universidade e nos intelectuais e institutos que gravitavam ao seu redor. Assim, além das atividades curriculares normais, impressiona, desde o ponto de vista de nossas conjunturas acadêmica atuais, a intensa vida intelectual que se nutria e cristalizava em relacionamentos pessoais e em círculos informais de discussão. No caso de Frankfurt, isso significava ainda um amplo espectro interdisciplinar, que regularmente debatia ideias em perspectiva multidisplinares e mesmo transdisciplinares (MUELLER, 2006, p. 78-79).

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mas ser capaz de dialogar com eles – tais como: o racionalismo, o iluminismo e os avanços

tecnológicos entre outros.

Ao mesmo tempo Tillich descobre haver muito mais realismo significativo na

linguagem simbólica das expressões religiosas do que na linguagem do liberalismo teológico

do século XIX. O segundo aspecto do seu método (a proposta de uma teologia sensível à

linguagem simbólica) permitiu, por exemplo, que Tillich se diferenciasse das propostas de R.

Bultmann, de tentar estabelecer uma espécie de adequação absolutizante da teologia cristã a

cosmovisão moderna, denominada por ele de demitologização (BULTMANN, 1999, p. 63). 33

Grosso modo, temos que considerar outras hipóteses: [...] a de que substituição da religião

pela ciência tenha sido algo semelhante à troca de uma mágica fraca por uma mágica forte,

de uma mágica destituída de status e progressivamente marginalizada, por outra que do

status e atualmente ocupa lugar central (ALVES, 2008, p. 86-87). Para Tillich é preciso

redescobrir a importância da linguagem simbólica da religião (TILLICH, 1996, p. 32). Ora,

não podemos nos esquecer de que o fenômeno religioso sempre será ambíguo e ambivalente.

A própria religião reconhece este fato. Ela se refere a deuses e demônio, à fé e à idolatria – o

que de fato indica que ela se dá conta das dinâmicas contraditórias e paradoxais que se

movem no seu próprio meio (ALVES, 2008, p. 84). É justamente nesse sentido que Tillich

defende a importância da linguagem simbólica na compreensão do fenômeno. O símbolo por

sua vez, além de indicar, participa daquilo que indica (PIRES, 2006, p. 31). Por esse motivo,

convenções não podem promover alterações significativas no símbolo. A função da teologia é

reinterpretar os símbolos e não abandoná-los ou trocá-los (PIRES, 2006, p. 31). O símbolo,

afirma Tillich, nos proporciona níveis de realidade, que de outra forma, nos seriam

inacessíveis. Nesse sentido, “a preocupação última ou suprema do ser humano deve ser

expressa simbolicamente” (TILLICH, 1996, p. 33).

Sobre a questão da distribuição da sessão, o respectivo capítulo será dividido em três

partes principais. Na primeira sessão, faremos uma análise apurada do segundo conceito-

chave da nossa pesquisa: alienação, e como o mesmo foi abordado por Tillich. Avançaremos

nessa direção, acompanhando a linha de raciocínio tillichiano em sua Teologia Sistemática

onde o mesmo conceito é estrategicamente comparado à constituição existencial e da finitude

humana, bem como as ambiguidades da vida. Já na segunda sessão, o problema antropológico

da alienação é comparado à doutrina do pecado. Isto é, com intensa dialética, o autor utiliza-

33 Paul Tillich também trata desta questão em sua Teologia Sistemática, sobretudo quando afirma o fracasso desta investigação tendo em vista que não é possível a completa desmitologização quando se fala a respeito do divino (TILLICH, 2005, p. 392-393).

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se de dispositivos e parâmetros filosóficos, comparando-os a dispositivos e parâmetros

teológicos. Por fim, na última sessão, o conceito de alienação é pensado sobre uma base

soterológica. A problematização da unidade passa pela consciência existencial de que estamos

diante de um problema em aberto, cuja instância de ambiguidade e contraditoriedade são

determinadas de modo que a própria consciência é o outro lado do mesmo problema.

2.1 A alienação como um problema antropológico

A utilização da palavra alienação para fins antropológicos foi cunhada e aplicada pela

primeira vez no inicio do século XIX através do pensamento do filósofo alemão G. W. F.

Hegel (1770-1831).34 Segundo o próprio Tillich, o modo como Hegel vai tratar o respectivo

conceito possui duas variantes principais (TIILICH, 2005, p. 339). Em se tratando do

primeiro aspecto, o termo está presente principalmente nos seus fragmentos de juventude,35

onde Hegel procurava estabelecer os processos vitais antropológicos dotados de certa unidade

original que seria supostamente destruída pela divisão entre subjetividade e objetividade ou

pela substituição do amor pela lei (TILLICH, 2005, p. 339). Já no segundo aspecto, o mesmo

conceito encontra-se especialmente em sua filosofia da natureza como espírito (Geist)

alienado e é caracterizado como sendo uma espécie de consciência infeliz (TILLICH, 2005, p.

339). Grosso modo, para Hegel o conceito de alienação é caracterizado como uma espécie de

processo essencial pelo qual a consciência ainda ingênua, convencida de que a realidade do

mundo é independente dela mesma, chega a tornar-se consciência de si (HEGEL, 2002, p.

44). Para Hegel, o concreto reside na unidade dos termos contraditórios que entram em

confronto. Cada termo é a negação de seu próprio oposto, sendo o movimento interno do

34 Segundo Abbagnano (2007) na linguagem comum, esse termo significa perda de posse, de um afeto ou dos poderes mentais e foi empregado pelos filósofos com certos significados específicos. O autor também procurou deixar claro, que antes das especificações feitas por Hegel e Marx, o conceito foi também empregado na Idade Média, sobretudo usado para indicar um grau de ascensão mística em direção a Deus. Ainda é possível encontrar no Contrato Social, de J. J. Rousseau, o uso da palavra para indicar a cessão dos direitos naturais à comunidade, efetuada com o contrato social. "As cláusulas deste contrato reduzem-se a uma só: a Alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade" (ABBAGNANO, 2007, p. 26). 35 Sobretudo em seu livro O Espírito do Cristianismo e o seu Destino [Der Geist des Christentums und sein Schicksal] que ora segue constitui, no dizer de Dilthey, uma das mais belas passagens escritas por Hegel. No entanto, é questionável se a obra constitui um todo acabado, já que Hegel interrompeu várias vezes sua redação, deixando linhas em branco e reiniciando o parágrafo com uma nova linha de pensamento. Nohl juntou em um texto homogêneo um composto de cinco fragmentos separados (N, 243-60, 261-75, 276-301, 302-24, 325-42). Pelas pesquisas de G. Schüler e Ch Jamme a obra se desenvolve em duas fases distintas, tendo como ponto de partida o outono/inverno de 1798 para 1799, período de Frankfurt. É neste período que Hegel procura desvendar a origem da positividade das leis morais religiosas judaicas que o cristianismo procura superar pelo amor. Pelo espírito do cristianismo, Hegel ensaia uma resposta à questão da unidade, que passa a ser veiculada pelos impulsos naturais da vontade (FEILER, 2011, p. 238).

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sujeito a "negação da negação" (HEGEL, 2002, p. 44). A luta desses opostos é mortal, pois o

ser de cada um deles está no outro, que o desafia e nega (SCHIO, 2008, p. 60). A posse de si

mesmo fica assim condicionada à destruição do outro, que detém a verdade e o absoluto

(SCHIO, 2008, p. 60). Concebida nesses termos, a alienação é, portanto, além de profunda,

necessariamente intrínseca e primordial: o ser de cada indivíduo não reside em si próprio e

sim em seu oposto, no qual corre o risco de se diluir (SCHIO, 2008, p. 61).

É nesse sentido, que se predomina o legado de Hegel, ou seja, embora o conceito de

fato tenha ganhado visibilidade emblemática a partir da filosofia marxista esta, por sua vez, só

pode ser compreendida quando dialogada com as propostas de Hegel, sobretudo do jovem

Hegel. Isto é, Karl Marx – e a maior parte dos pensadores da chamada esquerda hegeliana –

constroem seus pressupostos na tentativa de rejeitar a posição hegeliana de que a alienação é

supostamente superada na história pela reconciliação (TILLICH, 2005, p. 339). Isto é, dentro

da perspectiva marxista o indivíduo está alienado e não reconciliado; a sociedade está

alienada e não reconciliada; a existência é alienada (TILLICH, 2005, p. 339).

Proporcionalmente munidos desta percepção a esquerda hegeliana passou a adotar uma

atitude revolucionária contra o mundo tal como ele existia, podendo inclusive ser

considerados “existencialistas” muito antes de começar o século XX (TILLICH, 2005, p.

339).

Segundo a interpretação tillichiana, não é possível compreender de fato os

pressupostos defendidos por Marx sem estabelecermos o diálogo com Hegel. 36 Sobre a

apropriação do conceito de alienação feita por Marx, Tillich, afirma: A alienação, no sentido em que o termo foi usado pelos anti-hegelianos, indica a característica fundamental da condição humana. O ser humano, tal como existe, não é aquilo que é em sua essência e o que deveria ser. Ele está alienado de seu verdadeiro ser. A profundidade do termo “alienação” reside na implicação de pertencermos essencialmente àquilo de estamos separados. O ser humano não é estranho o seu verdadeiro ser, pois pertence a ele. Ele é julgado por seu ser, mas não pode se separar completamente dele, mesmo que lhe seja hostil (TILLICH, 2005, p. 340).

Ora, à esquerda hegeliana, sobretudo pelos pressupostos construídos por Marx deve

preferencialmente não considerar tanto a questão do indivíduo, mas sim a questão da

sociedade (TILLICH, 2010, p. 193). Marx procura falar da situação alienada do homem na

estrutura social da sociedade burguesa. Ele não emprega a palavra “alienação” do ponto de

vista individual (Kierkegaard), mas sim do ponto de vista social (TILLICH, 2010, p. 193).

36 Sobre esse ponto Tillich é ainda mais emblemático. Em seu curso de História de Pensamento Cristão (1955), ministrado no Union Theological Seminary em Nova York, ele defende que: nem Marx, nem Kierkegaard, nem Nietzsche, nem o existencialismo, nem os movimentos revolucionários seriam entendidos se não fosse visto direta ou indiretamente em relação a Hegel (TILLICH, 2010, p. 134).

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Segundo Tillich, sobre esse aspecto não há dúvida da importância teológica do conceito

marxista de alienação. Isto é, ao falamos das consequências do pecado original, nos

esquecemos de nos dirigirmos ao povo e sua realidade concreta. Como uma espécie de

prelúdio da chamada Teologia da Libertação, a salvação se encontra no nível histórico, e o

problema do pecado está posto no âmbito do social. 37 Assim, ao denunciar o estado alienante

do homem Marx buscava o restabelecimento da verdadeira humanidade capaz de substituir a

desumanização da sociedade alienada (TIILICH, 2010, p. 194). Tillich ainda aponta que no

entendimento de Marx a ideia de desumanização é que o homem se transformou em apenas

mais num dente da engrenagem no processo da produção e do consumo. Haja vista que, no

processo da produção, o trabalhador individual é considerado simplesmente uma coisa, ou

seja, mero instrumento e mercadoria comprada e vendida no mercado. O indivíduo tem que se

vender para sobreviver (TILLICH, 2010, p. 194). Como bem resume Tillich: A descrição de Marx da desumanização ou da forma particular de alienação existente na sociedade capitalista contradiz complemente sua herança clássica humanista. Não podia haver reconciliação. Na realidade social existe apenas desumanização e alienação [...] Consequentemente, perdia-se o caráter essencial do homem nesse tipo de sociedade. O homem deforma-se nos dois lados do conflito pelas condições da existência. Só voltaremos a saber o que o homem realmente é quando essas condições forem superadas [...] A alienação não se refere apenas às relações humanas, caracterizadas pela separação entre as classes, mas também à relação do homem com natureza. Retira-se do homem o eros. 38 A natureza passa a ser apenas matéria do onde se fazem instrumentos, para a manufatura dos bens de consumo. A natureza deixa de ser um sujeito como o qual nós, também sujeitos, podemos nos unir em termos de eros, daquele amor que vê na natureza o poder interior do ser, o fundamento do ser criativamente ativo por meio da natureza. Na sociedade industrial transformamos a natureza na matéria do onde fazemos as coisas para comprar e vender (TILLICH, 2010, p. 194).

Tillich vai veementemente chamar o próprio Marx de “teólogo”, inclusive de maneira

irônica. Ele diz: [...] vou lhe descrever a teologia do teólogo de maior sucesso desde a

Reforma, Karl Marx (TILLICH, 2010, p. 190). Ele defende que os pressupostos marxistas

devem ser considerados como positivo pela teologia cristã, sobretudo por ser capazes de 37 Em sua tese de doutoramento Rubem Alves nos apontava sobre essa dimensão social de pecado. Para o teólogo brasileiro, o conceito bíblico de salvação é equiparado a uma espécie de “processo de libertação” da opressão e da injustiça. Pecado é definido em termos de desumanidade do homem para homem (ALVES, 2012, p. 171). Libertação da teologia para todos os efeitos práticos equivale a amar Deus como o seu vizinho. Deus é encontrado em nosso vizinho, e a salvação é identificada com a história de "tornar-se homem." A história da salvação passa a ser a salvação da história abrangendo todo o processo de humanização. História bíblica é importante na medida em que os modelos ilustram esta busca da justiça e da dignidade humana. Retirada de Israel da libertação do Egito, no Êxodo e Jesus, vida e morte se destacam como os protótipos para a luta pela libertação humana contemporânea. Estes eventos significam os bíblicos significados espirituais da secular luta de libertação (ALVES, 2012, p. 192). 38 O problema do amor deve remeter a questão da justiça e do poder. Para Tillich, os conceitos de amor, poder e justiça deveriam ter lugar preponderante na reconstrução da essência humana, pois só assim a alienação existencial poderia ser de fato superada (SANT’ANNA, 2004, p. 10) Ver também (TILLICH, 2004, p. 29-30).

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portar elementos de caráter profético (TILLICH, 2010, p. 198). Para Tillich, não podemos

ignorar o tom messiânico dos escritos de Marx. Trata-se de uma espécie de “profeta secular”

cuja voz pode ser comparada como os antigos profetas de Israel. Ora, sendo judeu, Marx

estava pautado na tradição judaica que costumava criticar o comportamento dos reis e

sacerdotes (lideres políticos) caracterizados pela injustiça social. O verdadeiro profeta deve

preferencialmente estar nas ruas 39, ou seja, em profunda conexão e enraizado com o seu

contexto histórico (FÁBIO, 1990, p. 24).

Fazendo um paralelo ou comparação entre Marx e os profetas bíblicos, Tillich que diz

que a diferença entre o profetismo secularizado de Marx e o dos profetas do Velho

Testamento é que estes últimos sempre tiveram em mente a linha vertical, não confiando nos

grupos humanos nem nas necessidades lógicas ou econômicas de desenvolvimento, como

Marx. Fora isso, Tillich valida de forma absoluta o movimento marxista como sendo quase-

religioso (TILLICH, 2010, p. 199). Todavia, Tillich defende seus argumentos em favor de

Marx, afirmando que o mesmo não deve ser considerado um pensamento pseudo-religioso,

visto que, segundo o autor, pseudo-religioso, poderia caracterizá-lo como sendo algo

“enganoso” ou “mentiroso”. Para Tillich, o ideal é considerar o momento marxista como

quase-religioso porque conserva em seu interior a estrutura do profetismo, embora com a

perda da linha vertical e transcendente (TILLICH, 2010, p. 1999). Noutros termos, a ausência

da linha transcendente explica a trágica situação em que se encontram os momentos

revolucionários criados a base do pensamento de Marx para libertar toda uma classe social:

[...] em vez dessa liberdade, chega-se a uma nova escravidão totalitária como encontramos

hoje nos sistemas comunistas (TILLICH, 2010, p. 200).

Em sua Era protestante de 1948, Tillich apontou para o entrelaçamento entre o

socialismo religioso e a análise marxista (TILLICH, 1992, P. 271). Isto é, os socialistas

religiosos aceitam inúmeros resultados científicos da análise marxista da sociedade,

especialmente da economia, simplesmente porque parecem verdadeiros. Assim, a ideia de

verdade no cristianismo e no marxismo vai além da separação entre teoria e prática

(TILLICH, 1992, p. 269). Ora, nesse contexto, a verdade para ser de fato reconhecida, precisa

ser “feita” ou realizada. Sem a transformação da realidade não se reconhece a realidade.

39 Talvez apenas a título de uma perspectiva confessional é possível destacar aqui o livro do Reverendo Caio Fábio: Elias está nas Ruas (1990), onde ele defende a pertinência política do mistério profético de Elias, onde o mesmo estava profundamente enraizado numa dimensão histórico-político de sua época. Entre os pontos de convergência ao abuso do capitalismo, a sociedade brasileira. Fábio destaca os seguintes pressupostos: (1) dependência externa fomentada pela corrupção política; (2) concentração de recursos, caracterizadas pela injustiça social; (3) uso indevido de recursos naturais, demonstrando pouca importância à saúde ecológica do planeta (FÁBIO, 1990, p. 23-25).

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Portanto, a verdade aparece e pode ser praticada quando todos os véus ideológicos são

rasgados e o engano próprio já não é mais possível (TILLICH, 1992, p. 269). Trata-se de uma

espécie de verdade que só será plenamente revelada quando de fato for praticada.

Comparando-as: o protesto dos reformadores contra os deuses “feitos-por-mãos-humanas” ou

ídolos, e o protesto de Marx contra as ideias ou ideologias que nós fabricamos são correlatas.

Ele diz: [...] a verdade pode se transformar num instrumento de orgulho religioso ou de

vontade política (TILLICH, 1992, p. 269).

Gross (2006) – problematizando – defende que o diálogo entre Tillich e Marx é

complexo, e relativamente pouco explorado pelos pesquisadores (GROSS, 2006, p. 55). No

entanto, antes de prosseguirmos, para as outras sessões, é preciso apontar para os elementos

de convergência e divergência ente eles. Nesse sentido, é extremamente importante

compreendermos os desdobramentos da antropologia tillichiana, assim, objetivamos

estabelecer , às principais diferenciações entre o método da correlação (Tillich) e o

materialismo histórico (Marx) (GROSS, 2006, p, 64-65). Vejamos:

Primeiro no que diz respeito à questão do profetismo marxista. O mesmo só pode ser

tillichianamente ensinado quando reconhecemos que o significado do conceito de profetismo

na obra de Tillich é abrangente e não se encontra sobre a tutela do senso comum (GROSS,

2006, p. 60). Quando fazemos uma varredura nos seus escritos mais antigos, percebemos que

a noção do principio profético em Tillich está posta sobre outro conceito, a saber: princípio

protestante (ADAMS, 1992, p. 287). Fazendo uma comparação entre princípio e essência, o

autor defende que enquanto o segundo só poderia ser compreendido ou tratado com uma

realidade alheia à história e ao tempo, o conceito de principio é utilizado para marcar com

força o caráter sempre histórico e dinâmico, no entanto, não reducionista (GROSS, 2004, p.

60). Assim, ao falar de principio profético e mais tarde de principio protestante Tillich tem

em mente a preocupação em procurar demonstrar que, esse deve ser entendido como: [...] a

dinâmica crítica que se rebela contra a dotação de um caráter absoluto a uma realidade

finita (GROSS, 2004, p. 60). Ele estava presente na atuação dos antigos profetas de Israel que

criticava as injustiças sociais e a idolatria. Ele é o princípio que atuou no início do

cristianismo frente à sociedade judaica e mesmo ao culto ao imperador no Império Romano.

Como também, na reforma protestante como princípio que reagiu contra a erosão da

fundamentação divina na institucionalização eclesiástica (GROSS, 2004, p. 60). Somente

assim, é possível chegar às manifestações filosóficas do principio profético, ou seja, é fácil

perceber as implicações da caracterização de Marx como profeta (GROSS, 2004, p. 61).

Mormente, nossa análise precisa em absoluto, ir além da atribuição de uma “aura religiosa”

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marxista, que o próprio Marx rejeitaria. Trata-se apenas de uma postura tillichiana de destacar

o elemento (princípio) crítico de fato, perceptivo no pensamento marxista. Portanto, o

princípio profético de Marx, só pode ser efetivado na medida em que a finitude passa a ser

considerada infinitude, o que de fato constitui um fenômeno teologicamente arriscado

(GROSS, 2004, p. 61).

Proporcionalmente, o mesmo teve que ser dito sobre o segundo aspecto, a saber: a

utopia da nova sociedade. Isto é, a defesa marxista caracterizada com a busca ou o

surgimento de uma nova sociedade é considerado por Tillich como sendo uma opção ingênua

(GROSS, 2004, p. 64). Nesse sentido, o marxismo é só imanente. Para Tillich, falta explicar,

de onde vem o poder para o milagre da transformação a ser operada pelo processo

revolucionário (GROSS, 2004, p. 65). Tal utopia é justificada pela tentativa de convencermos

de que essas novas estruturas econômicas engendram tais transformações de forma

automática, o que de fato não convence Tillich. Para o teólogo alemão, esses tipos de utopias

têm um efeito psicológico poderoso, sobretudo por causa do poder inerente de anseio humano

(preocupação última) pelo eterno, ou seja, mesmo inconscientemente esse movimento possui

um fundamento religioso (GROSS, 2004, p. 65). Nesse sentido, a limitação absoluta à finitude

sempre foi tão criticável e perigosa quanto o escapismo para utopias fundamentalistas

negadoras do mundo (GROSS, 2004, p. 66).

2.1.1 A alienação como reflexo dialético da finitude humana

O problema da alienação também está posto sobre a questão da finitude humana. Na

verdade, trata-se de uma espécie de reflexo dialético da mesma (TILLICH, 2005, p. 300). Até

este ponto, embora a mesma seja entendida a partir da concretude da vida, a finitude enquanto

fenômeno antropológico possui também qualidades ontológicas (TILLICH, 2005, p. 200). As

qualidades ontológicas da finitude é quem vai dimensionar o movimento inerente e paradoxal

de todo ente, sobretudo o homem devido à sua capacidade de autoconsciência. 40 Isto é, o

reflexo do ser-limitado caracterizado pela finitude pelo impacto ontológico do não-ser. Assim,

existe um desdobramento ou reflexo da oposição dualística entre a finitude e infinitude, entre

o subjetivo e o objetivo, entre o ser e o não ser, entre a liberdade e o destino (TILLICH, 2005,

40 Para um estudo detalhado sobre o conceito de autoconsciência temos o capítulo 9 do livro Era Protestante, onde Tillich apresentou um panorama histórico do tema, tais como: o surgimento da consciência (TILLICH, 1992, p. 160); a consciência na literatura Bíblica (TILLICH, 1992, p. 161); a interpretação da consciência na teologia medieval e na teologia sectária (TILLICH, p. 163); doutrinas filosóficas modernas da consciência (TILLICH, 1992, p. 165); a ideia da consciência transmoral (TILLICH, 1992, p. 167).

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p. 198). Segundo Tillich, ela não pode ser derivada, mas apenas descrita. Proporcionalmente,

pensar o conceito de alienação a partir da noção de finitude é reconhecê-lo como sendo

participante do não-ser. 41 Ora todo o homem ontologicamente é participante do ser. Nesse

sentido, ele possui o poder de ser. De maneira paradoxal tudo que participa do poder ser deve

também estar mesclado como o não-ser (TILLICH, 2005, p. 198). A alienação então deve ser

entendida como resultado latente da própria finitude humana. Isto é, como homem (ser finito)

eu posso compreender (autoconsciência) mentalmente os meandros que norteiam a infinitude

do ser, mas ao mesmo tempo eu não pode se concretizar fora da minha mente (TILLICH,

2005, p. 199). Trata-se de uma antinomia da razão (Kant).

Diferentemente dos animais que não possuem consciência de si, o homem é

autoconsciente (TILLICH, 2005, p. 198). Paradoxalmente, é justamente esta capacidade de

autoconsciência que vai determinar a sua capacidade de poder medir a dimensão e a

proporção de seu próprio estado de alienação. A alienação seria então uma espécie de

“substrato indireto” da racionalidade humana, ou seja, de sua capacidade de

autotranscendência (TILLICH, 2005, p. 198). Grosso modo, o processo de autotranscendência

comporta um duplo sentido: prazeroso e doloroso ao mesmo tempo. Para Tillich, trata-se

simultaneamente de um aumento e um decréscimo no poder de ser. Ele diz: Para experimentar sua finitude, o ser humano deve olhar para si mesmo do ponto de vista de infinitude potencial. Para ser consciente de que caminha para a morte, o ser humano deve olhar por cima de seu ser finito como um todo; de certa forma, ele deve estar para além dele. Ele também deve ser capaz de imaginar infinitude. E é capaz de fazê-lo, embora não em termos concretos, mas tão-somente como uma possibilidade abstrata. O eu finito se defronta com um mundo; o indivíduo finito possui o poder de participação universal; a vitalidade do ser humano está unida a uma intencionalidade essencialmente ilimitada; como liberdade finita, o ser humano está envolvido em um destino englobante. Todas as estruturas da finitude obrigam o ser finito a transcender-se a si mesmo e, exatamente por essa razão, a tomar consciência de si mesmo como finito (TILLICH, 2005, p. 199).

Uma vez compreendido isso, Tillich faz ainda, mais duas outras afirmações sobre a

correlação entre finitude humana e Alienação do ser que são: (1) A interdependência da

alienação do ser, como um reflexo do desdobramento do confronto da finitude humana como 41 Dentro da historiografia filosófica, a problemática do não-ser é um dos maiores entraves. Em geral, nossa linguagem costuma estar voltada ou associada para a questão do ser (Parmênides); e por isso existe certa confusão quando tentamos compreender ou falar sobre o não-ser (TIILICH, 2001, p. 26). Ora, o que é o não-ser? Parece não haver uma resposta objetiva a essa pergunta, pois a mesma parece não ter sentido. É como se o "Não-ser" fosse de fato sinônimo do "que não é", assim como ser, no sentido de ente, é sinônimo de "o que é". Nesse sentido, a respectiva pergunta pode ser entendida como "O que é o que não é?" Parece que não podemos tratar diretamente do não-ser, pois não podemos dizer que ele é coisa alguma, nem que ele é o não-ser. Para Tillich, a maneira mais coerente para entender o problema é pensar o não-ser como sendo metaforicamente interligado ao ser. Ele diz: O ser tem o não-ser “dentro” de si mesmo, de modo que essa problemática é eternamente presente e eternamente superada no processo [...] (TILLICH, 2001, p. 27).

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as categorias ontológicas; (2) A interdependência da alienação do ser, como um reflexo do

aparecimento da angústia existencial. Vejamos:

No primeiro caso, Tillich acredita que a alienação do ser, ocorre através do

“confronto” ou da relação binária e natural entre a finitude humana e as categorias

ontológicas. 42 Do ponto de vista filosófico a questão das categorias é vital. É justamente

através desta que é possível racionalmente apreender e configurar a realidade (TILLICH,

2005, p. 201). Isto é, a mente não é capaz de experimentar a realidade se não através das

formas categóricas. Segundo Tillich, em geral as principais categorias ontológicas que servem

para uma suposta construção teologicamente sistemática da fé são: tempo, espaço,

causalidade e substância. Todas elas devem obrigatoriamente revelar seu caráter ontológico

através de sua dupla relação simultânea entre o ser e o não-ser, ou seja, elas expressam o ser,

mas ao mesmo tempo o não-ser ao qual está sujeito tudo o que é. (TILLICH, 2005, p. 201).

Por exemplo: o tempo. Nota-se que sobre o mesmo, Tillich afirma ser a categoria central da

finitude, sobretudo, pela sua capacidade em conter elementos de positividade e negatividade

ao mesmo. Aqueles que enfatizam o elemento positivo do tempo devem de maneira prioritária

destacar o seu caráter criativo do processo temporal (TIILICH, 2005, p. 202). Aqueles que

enfatizam o elemento negativo da categoria temporal, procuram apontar para o problema

inerente dele que é o fim desse mesmo processo. Assim, ao mesmo tempo em que a categoria

temporal possibilita à criatividade da temporalidade, a mesma acaba por denunciar a sua

própria morte. Tillich afirma: [...] é impossível passar por cima do fato de que o tempo

“engole” aquilo que ele criou que o novo se torna velho e o criativo é acompanhado por uma

desintegração destrutiva (TILLICH, 2005, p. 202). Já sobre a categoria espacial, percebe-se

que o homem em sua finitude, luta para conseguir e preservar um espaço próprio. Em suma,

significa ter ou conquistar um lugar físico. Isto é, um corpo, um terreno, um casa, um cidade,

um país etc. (TILLICH, 2005, p. 203). Todavia, a nossa espacialidade está sempre condicional

ao não-ser. Nenhum ser finito possui um espaço que seja, de fato, seu de forma definitiva. O

homem é Peregrino nesta terra, portanto, não pode depositar sua confiança no espaço

(TILLICH, 2005, p. 203). A mesma coisa deve acontecer com a categoria da causalidade.

Sobre ela também se afirma o elemento positivo e negativo. Ora as coisas finitas não são 42 Segundo Aristóteles – o criador da teoria – as respectivas categorias ontológicas são os modos em que o ser se predica das coisas nas proposições, portanto os predicados fundamentais das coisas. O mesmo enumerou dez categorias que são: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, situação, ter, agir e paixão (ARISTÓTELES, 1982, p. 47-48). Nesse sentido, os universais encontram-se nos próprios seres, isto é, em seus acidentes e contingências, proporcionando assim que os nossos sentidos os captem. Ora, através destes, é possível agrupar os seres em diversas classes e categorias, permitindo criar bases e premissas, utilizando da lógica, do silogismo, para construir uma via que preconiza o equilíbrio entre o conhecimento racional e o empírico.

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autocausadas; elas foram “lançadas” no ser (Heidegger). 43 A atitude técnica de se perguntar

sobre a origem das coisas é universal, ao mesmo tempo o substrato desta resposta (TILLICH,

2005, p. 204). Esse substrato é expresso por sua implicação: tudo é conduzido para além de si

mesmo até sua causa, e as causas, por sua vez, para além de si mesma, para sua própria causa.

Não existe a menor possibilidade de se chegar a uma conclusão plausível a não ser a uma

regressão indefinida onde a única expressão é o poderoso abismo do não-ser em todas as

coisas (TILLICH, 2005, p. 204). Sobre a categoria da substância, o problema do não-ser

aparece ainda de forma mais latente. Ora o conceito de substância busca aquilo que não

possui fluxo das aparências, ou seja, algo que seja relativamente estático e completo em si

mesmo (TILLICH, 2005, p, 205). Porém, como pensar o absolutamente estático em se

tratando da finitude humana? Tillich diz: [...] Não existe substância sem acidente (TILLICH,

2005, p. 205).

E, assim nasce o estado de alienação existencial. Tillich defende que a presença desse

dualismo entre o ser e o não-ser é responsável por esse sintoma. Ora todas as vezes que a

finitude humana expõe a inerência do não-ser em si mesma, através do elemento negativo das

categorias ontológicas, ela demonstra a sua alienação de si mesmo (TILLICH, 2005, p. 365).

Portanto, a alienação em Tillich é uma alienação no ser, ou seja, no estado de alienação, a

dimensão da última é excluída, fazendo a situação mudar (TILLICH, 2005, p. 366). Estamos

alienados de si mesmo, pois não somos o que essencialmente deveríamos ser (MARTIN,

1963, p. 112). Ou seja, alienação é caracterizada como sendo o distanciamento existencial do

homem de sua estrutura ontológica (MARTIN, 1963, p. 112). Trata-se da perda do eu, um

estado existencial que possui caráter destrutivo de insegurança e dúvida. É nesse sentido, que

para muitos autores do mundo contemporâneo a existência é trágica.

Tillich demonstra: A natureza categorial da finitude – tempo, espaço, causalidade e substância – é validade como estrutura da totalidade da criação. Mas a função das categorias da finitude muda sob as condições da existência. Nas categorias, manifesta-se a unidade do ser e do não-ser em todos os seres finitos [...] No estado de alienação, perde-se a relação como o poder último do ser. Nesse estado, as categorias controlam a existência e produzem uma dupla relação em relação a elas – resistência e desespero [...] Os conflitos nas polaridades

43 Segundo Martin Heidegger, o homem deve ser compreendido como um projeto, ou seja, com um ente que se encontra lançado no mundo. Ele diz: [...] Para se ver o mundo é, pois necessário visualizar o ser-no-mundo cotidiano em sua sustentação fenomenal (HEIDEGGER, 2006, p.113). Para o filósofo brasileiro Guilherme P. Ferreira (2007), é necessário compreender que a indagação pelo sentido do ser, proposta por Martin Heidegger, assumirá a forma de uma analítica existencial do ente humano concebido como presença. Assim, compreende-se tal analítica como o estudo dos momentos estruturais da presença. Dentro desta analítica o fenômeno do mundo quase impõe como fundamental isto porque o principal modo da presença se projetar na existência é como ser-no-mundo – é no fenômeno do mundo que a presença ganha seu ser através de um fazer. In. (FERREIRA, 2007, p. 1).

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ontológicas e a transformação das categorias da finitude sob as condições da alienação acarretam consequências em todas as direções para a condição humana (TILLICH, 2005, p. 361-363).

Continuando: o segundo aspecto apontado nessa seção por Tillich é Angústia. 44 Essa

angústia existencial também denominada por Tillich como Ansiedade (TILLICH, 2001, p. 25-

59) deve permear todas as categorias ontológicas aqui apresentadas. Em relação ao tempo,

existencialmente nos angustiamos diante da possibilidade da transitoriedade, sobretudo

quando a mesma desemboca no conceito da morte. Isto é, a consciência melancólica do

movimento do ser em direção ao não ser, deve alcançar sua concretude máxima na

antecipação da própria morte do sujeito finito (TILLICH, 2005, p. 202). Em relação ao

espaço, existencialmente nos angustiamos diante do fato de que nenhum ser finito pode

depositar sua confiança no espaço, pois ele é “peregrino sobre a terra”, ou seja, a angústia

nasce, pois temos que vivenciar a realidade de que finitude significa não ter lugar definitivo,

pois ser finito é viver na insegurança espacial (TILLICH, 2005, p. 203). O ser humano vive

44 Segundo Abbagnano (2006), no seu significado filosófico, isto é, como atitude do homem em face de sua situação no mundo, esse termo foi introduzido por Kierkegaard em Conceito de angústia (1844). A raiz desse conceito é a existência como possibilidade. Ao contrário do temor e de outros estados análogos, que se refere a algo determinado, a angústia não se refere a nada preciso: é o sentimento puro da possibilidade (ABBAGNANO, 2007, p. 60). O homem como ser livre vive de possibilidade, já que a possibilidade é a dimensão do futuro e o homem vive continuamente debruçado sobre o futuro. Mas as possibilidades que se apresentam ao homem não têm nenhuma garantia de realização. Só por piedosa ilusão elas se lhe apresentam como possibilidades agradáveis, felizes ou vitoriosas: na realidade, como possibilidades humanas, não oferecem garantia alguma e ocultam sempre a alternativa imanente do insucesso, do fracasso e da morte. Ele diz: "No possível tudo é possível" (KIERKEGAARD, 2007, p. 60), pois uma possibilidade favorável não tem maior segurança do que a possibilidade mais desastrosa e horrível. Na filosofia contemporânea, Heidegger centrou na angústia a sua análise existencial. Para o respectivo autor a angústia deve ser pensada como uma espécie de situação afetiva fundamental, "que pode manter aberta a contínua e radical ameaça que vem do ser mais próprio e isolado do homem": isto é, a ameaça da morte (HEIDEGGER, 2007, p. 60). Isto é, na angústia, o homem "sente-se em presença do nada, da impossibilidade possível da sua existência" (HEIDEGGER, 2007, p. 61). O alemão costumava chamá-la de "o ser para a morte", isto é, a aceitação da morte como "a possibilidade absolutamente própria, incondicional e insuperável do homem" (HEIDEGGER, 2006, p. 61). Mas nem por isso a angústia é o medo da morte ou dos perigos que podem provocá-la. "O medo tem assento no ente de que se cuida dentro do mundo, já a angústia brota do próprio Ser-aí (HEIDEGEER, 2007, p. 61). Todavia, não foi só a filosofia existencialista que considerou a angústia como revelação emocional da situação humana no mundo. Por exemplo: para psicanálise o caráter onipresente da angústia, que é diferente do medo, do temor e de outros estados emocionais de caráter episódico que se referem a situações particulares (ABBGNANO, 2007, p. 61). Ora a angústia parece, ao contrário, um ingrediente constante da situação humana do mundo, seja qual for à explicação dada à sua origem. Freud inicialmente foi remontar ao ato do nascimento, isto é, ao ato "em que se acham reunidas todas as sensações penosas, todas as tendências e as sensações corpóreas, cujo conjunto se tornou o protótipo do efeito produzido por um perigo grave" (FREUD, 2007, 61). Em seguida, mais genericamente, considerou a Angústia como a "reação do Ego ao perigo", ou melhor, "à própria essência do perigo"; essa situação é também definida por Freud como "uma situação de impotência". Diz Freud: "Estou na expectativa de que se verifique uma situação de impotência; ou então a situação presente me lembra um acontecimento traumático já vivido. Assim, antecipo esse trauma, comporto-me como se já estivesse aqui, enquanto houver tempo para afastá-lo. Portanto, para Freud “a angústia é, de um lado, expectativa do trauma e, de outro, uma repetição atenuada deste" (FREUD, 2007, p. 61). Em seu seminário 10 Jacques Lacan também trabalho exaustivamente o tema. Tal abordagem possui características dialogais e profundas correlações com: Kierkegaard, Heidegger e Freud (LACAN, 2005, p. 11-24). O conceito de angústia em Tillich também aparece em A Coragem de Ser de 1952 com Ansiedade (TILLICH, 2001, p. 25-59).

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angustiado diante da inevitável perda de seu espaço (TILLICH, 2005, p. 204). Em relação à

causalidade, existencialmente nos angustiamos em reconhecer que o ser humano é criatura,

portanto, ontologicamente contingente e, não necessário por si só, e nisso o ser humano

percebe que é presa do não- ser (TILLICH, 2005, p. 205). Tillich diz: [...] A angústia em que

ele está consciente dessa situação é a angústia da falta de necessidade do seu ser (TILLICH,

2005, p. 205). Assim, em tese, facilmente poderíamos não ser. Então, por que somos? E por

que devemos continua ser? Ora o fato de não haver resposta razoável a esses questionamentos

fazem com que a angústia implica na consciência da causalidade com uma categoria da

finitude (TILLICH, 2005, p. 205). Em relação à categoria ontológica de substância,

existencialmente nos angustiamos, por termos que conviver com a mudança contínua quanto à

perda final de nossa substância (TILLICH, 2005, p. 206). Ora, toda mudança revela o não-ser

relativo aquilo que muda (TILLICH, 2005, p. 206). A possibilidade da perca de nossa

substancialidade individual constitui o combustível desse tipo de angústia.

2.1.2 A alienação como reflexo direto da transição da essência à existência

A problemática entre a essência e a existência é complexa. O próprio Tillich defende a

ideia básica de que toda doutrina teológica do ser humano deveria possuir duas partes

principais: a doutrina da liberdade humana e a doutrina da servidão humana (TILLICH, 2010,

p. 230). Isto é, as doutrinas da natureza essencial e da natureza existencial do ser humano.

Segundo Tillich, as principais razões pelas quais se defende uma dualidade da doutrina do ser

humano estão fundadas na possibilidade de que a liberdade humana possa negar ela mesma a

sua própria natureza essencial (TILLICH, 2010, p. 230). E esta possibilidade é real. Nesse

sentido, sua saga deve percorrer a história da filosofia de Platão a Sartre. Tanto na filosofia

como também na teologia sempre se estabeleceu uma distinção entre o ser essencial e o ser

existencial. Sobre a essência, Tillich demonstra que a palavra deve pelo menos possuir seis

grandes significados que são: (1) a natureza de uma coisa sem qualquer valoração da mesma;

(2) os universais que versão e caracterizam as coisas; (3) as ideias de que participam as

coisas existentes; (4) norma pela qual uma coisa deve ser julgada; (5) a bondade original de

tudo aquilo que é criado; (6) os modelos de todas as coisas na mente divina (TILLICH, 2005,

p. 211). Todas essas definições estão envoltas por uma ambiguidade básica. A mesma reside

na oscilação entre o sentido empírico e o valorativo (TILLICH, 2006, 2011). Portanto, na

perspectiva tillichiana, o respectivo conceito deve ser pensando da seguinte forma:

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[...] Essência como natureza de uma coisa, ou como qualidade da qual participa uma coisa, ou como universal, significa uma coisa. Essência como aquilo da qual o ser “caiu”, como a natureza verdadeira e não distorcida das coisas, significa outra coisa. No segundo caso, a essência é à base dos juízos de valor, enquanto, no primeiro caso, a essência é o ideal lógico a ser alcançado mediante abstração ou intuição sem interferência de valorações (TILLICH, 2005, p. 2011).

Já sobre o conceito de existência, Tillich procurou deixar claro, que o mesmo também

é usado de várias maneiras tais como: (1) a possibilidade de encontrar uma coisa dentro da

totalidade do ser; (2) a efetivação daquilo que é potencial no domínio das essências; (3) o

“mundo caído”; (4) um tipo de pensamento que está consciente de suas condições

existenciais (5) um tipo de pensamento que rejeita inteiramente sua essência (TILLICH,

2005, p. 2011). Sobre esses aspectos, Tillich demonstra ambiguidade e contradição da

seguinte forma: [...] A essência dá poder e julga aquilo que existe. Ela lhe dá seu poder de ser e, ao mesmo tempo, se opõe a ele como lei imperativa. Onde essência e existência estão unidas, não existe nem lei nem juízo. Mas a existência não está unida à essência; por isso, há lei em tudo, e o juízo se expressa em autodestruição. Também a palavra “existência” é usada em vários sentidos [...] De novo, uma ambiguidade inevitável justifica o uso desta palavra em diferentes sentidos. Tudo que existe, isto é, tudo quanto “está fora” da mera potencialidade, é mais do que é no estado de pura potencialidade e menos do que poderia ser no poder de sua natureza essencial (TILLICH, 2005, p. 2011).

Todavia, em que sentido é possível afirmar a defesa que Tillich faz de que o processo

de transição da essência à existência possui pressupostos para o estabelecimento relacional

como o seu conceito de alienação? A resposta a esses e a outros questionamentos correlatos,

vai ser apresentada por Tillich primeiro por uma perspectiva filosófica e posteriormente de

maneira teológica. O epicentro desse diálogo é o símbolo da queda. 45 Do ponto de vista

filosófico, Tillich utiliza inicialmente as propostas de Platão (TILLICH, 2005, p. 325). Para o

filósofo grego, o respectivo problema é pensado dentro de sua doutrina da imortalidade da

alma. Em Platão, a descrição da transição da essência para a existência está posta a partir de

uma perspectiva mitológica onde a ideia é falar sobre a “queda da alma”. Isto é, para ele, a

existência não é uma questão de necessidade essencial, mas um fato e, por isso, a “queda da

alma” é um relato a ser expresso em símbolo mítico (TILLICH, 2005, 325). Portanto, Platão

não entende a existência como uma implicação lógica da essência. Para Tillich, é justamente 45 Em diversos de seus trabalhos Tillich estabeleceu uma profunda convicção sobre a importância da hermenêutica dos símbolos para melhor compreender os conceitos teológicos. Em se tratando do respectivo símbolo da queda, Tillich procede à recepção parcial do mesmo através da chamada “semidesmitologização” (CARVALHO, 2007, p. 167). Sobre pesquisas nessa temática temos: O conflito das Interpretações (P. Ricoeur); A concepção de símbolo e religião em Freud, Cassirer e Tillich (R. Josgrilberg); A dança dos símbolos no cenário da hermenêutica (F. P. Pires); entre outros.

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por ser um fenômeno criado, e não uma consequência necessária da natureza essencial do ser

humano que faz como que o processo de transição seja comparado ao problema teológico. Do

ponto de vista teológico, a transição da essência para existência serve para representar o

símbolo da “queda (TILLICH, 2005, p. 325). Nesse sentido, quando a teologia diz que a

existência está separada da essência, ela simplesmente está tomando emprestado conceitos

ontológicos, convertendo-os em conteúdos teológicos (TILLICH, 2006, p. 326). Assim, o

estado de inocência sonhadora conduz para além de si mesmo. A possibilidade da transição da

essência para existência é experimentada como tentação (TILLICH, 2005, p. 329). No

entanto, para que a liberdade se efetue de fato, tal evento é ontologicamente inevitável.

Contrariando a perspectiva dos teólogos ortodoxos, Tillich descreve esse fenômeno da

queda ou da alienação existencial da seguinte forma: A tentação é inevitável, porque o estado de inocência sonhadora não é provado nem decidido. Não é perfeição. Os teólogos ortodoxos acumularam perfeição sobre perfeição no Adão anterior à queda, equiparando-o à figura do Cristo. Esse procedimento não só é absurdo, mas também torna completamente incompreensível a queda. Mera potencialidade ou inocência sonhadora não é perfeição. Só a união consciente de existência e essência é perfeição: Deus é perfeito, porque transcende essência e existência. O símbolo “Adão antes da queda” deve ser entendido, pois, como a inocência sonhadora de potencialidades indecididas. Se perguntarmos o que é que conduz à inocência sonhadora para além de si mesma, devemos continuar nossa análise do conceito de liberdade finita [...] A proibição divina pressupõe uma espécie de ruptura entre o criador e a criatura, uma ruptura que torna necessário o mandamento, mesmo que seja dado apenas para pôr à a obediência da criatura. Essa ruptura é o ponto mais importante na interpretação da queda, pois pressupõe um pecado que ainda não é pecado, mas que também já não é mais inocência. É o desejo de pecar. No estado de inocência sonhadora, a liberdade e o destino estão em harmonia, mas nenhum deles se encontra efetivado [...] A tensão ocorre no momento em que a liberdade finita se torna consciente de si mesmo e tende a se tornar efetiva. A isso poderíamos chamar de momento da liberdade despertada (TILLICH, 2005, p. 329-330).

Bernard Martin (1963) em seu livro The Existentialist Theology of Paul Tillich afirma

que é justamente por isso a questão da transição da essência à existência deve ser

fundamentalmente pensada, com tema central da antropologia tillichiana (MARTIN, 1963, p.

112). Para esse autor, a problemática da transição é entendida como uma espécie de

distanciamento existencial do homem de sua essência ontológica, consequentemente um

processo de alienação (MARTIN, 1963, p. 121). Isto é, a realidade básica do estado

existencial do homem é a sua alienação, tanto de si mesmo, como também do ser de Deus

(MARTIN, 1963, p. 121). Por outro lado, paradoxalmente Tillich continua defendendo que a

essência e existência se encontram interligadas, ou seja, mesmo estando em conflito, destino e

liberdade não pode ser totalmente separados (MARTIN, 1963, p. 127).

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Grosso modo, para Tillich, esse processo de transição da essência a existência

determinado de alienação, deixa de fato exposto que existência humana marcada pela

presença da finitude é composta por diversos traumas tais como: a angústia e desespero

(TILLICH, 2005, p. 331); a existência como trágica (TILLICH, 2005, p. 338); morte e culpa

(TILLICH, 2005, p. 360); sofrimento e solidão (TILLICH, 2005, p. 363); dúvida e falta de

sentido (TILLICH, 2005, p. 365).

2.2 O problema antropológico como um problema teológico ou como doutrina do pecado

Até agora ficou mais uma vez claro a maneira como Tillich desenvolveu seu método

teológico, isto é, a tentativa de procurar sempre dialogar com disciplinas correlatas, sobretudo

com a filosofia. Só assim, é possível entender porque o autor alemão defendia que, as marcas

da alienação do ser humano podem ser de fato, comparadas com a sua doutrina do pecado.

Resumindo: Tillich defende que, sendo o estado de existência humana um estado de

alienação, o homem se encontra “distanciado” do fundamento do seu ser, dos outros seres e de

si mesmo (TILLICH, 2005, p. 339). Portanto, para o nosso autor, a transição da essência à

existência resultou na culpa da pessoa e consequentemente em uma tragédia universal

(TILLICH, 2005, p. 339). Nesse sentido, Tillich de maneira sistemática, procurou estabelecer

uma descrição detalhada desse estado destrutivo da alienação existencial comparado ao

pecado. Vejamos:

2. 2. 1 Alienação como pecado

Não se trata de uma substituição absoluta. Inclusive sobre esse aspecto, Tillich é

enfático ao afirmar que não podemos de imediato substituir o conceito de pecado pelo de

alienação. Primeiro porque alienação não é necessariamente um termo bíblico. A unidade

ontológica dos termos reside de maneira dialética (TILLICH, 2009, p. 59). Isto é, a filosofia

apresenta-se sempre como paradigma para teologia. Para ele a relação entre filosofia e

teologia nunca pode ser de maneira absolutizante (TILLICH, 2009, p. 60). Ora a questão dos

absolutos só pode ser respondida identificando de maneira paradoxal o absoluto filosófico

como elemento determinante do absoluto religioso ou teológico (TILLICH, 2009, 60). Tillich

sempre vai defender que o risco da fé baseia-se no fato de que o elemento incondicional ou

absoluto só pode ser compreendido quando aparecem de forma concreta (TILLICH, 2009, p.

66).

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Proporcionalmente, embora o termo alienação não seja de fato, uma palavra bíblica,

não há dúvida de que a mesma encontra-se de maneira implícita em numerosas descrições

bíblicas que relatam a condição humana (TILLICH, 2005, p. 340). Por exemplo, no Antigo

Testamento, no símbolo da expulsão de Adão e Eva do paraíso, na hostilidade ecológica entre

ser humano e natureza, na hostilidade mortal de irmão contra irmão – Caim e Abel – na

hostilidade de uma nação contra outra através da confusão das línguas no mito de babel, na

hostilidade constante dos profetas contra os reis e sacerdotes e contra o povo que

constantemente se voltavam para outros deuses (TILLICH, 2005, p. 340). O mesmo exemplo

pode ser também aplicado ao Novo Testamento, quando a afirmação paulina de que o ser

humano perverteu a imagem de Deus convertendo-a em ídolos. Também cabe a mesma

aplicação ao que Paulo chamou de “ser humano contra si mesmo”, ou seja, aquela hostilidade

latente que o ser humano sente contra ser humano em combinação com seus desejos

distorcidos (TILLICH, 2005, p. 340). Assim, de maneira paradoxal em todas essas

interpretações da condição humana, deve afirmar-se implicitamente o estado inerente de

alienação. Todavia, a apropriação do conceito de alienação deve provocar uma espécie de

virada hermenêutica e uma reinterpretação do próprio conceito de pecado.

Sobre a complexa relação dos termos ele diz: Contudo, “alienação” não pode substituir “pecado”, embora sejam óbvias as razões para tentar substituir o vocábulo “pecado” por alguma outra palavra. O termo foi empregado de uma forma que pouco tem a ver com o sentido bíblico genuíno. Paulo frequentemente fala de “pecado” no singular e sem artigo. Ele o concebe como poder quase-pessoal que rege este mundo. Mas nas igrejas cristãs, tanto na católica como nas protestantes, o termo “pecado” tem sido usado principalmente no plural, e “pecados” são desvios das leis morais. Isso praticamente nada tem a ver com “pecado” como estado de alienação com relação àquilo a que pertencemos – Deus, o nosso eu, o nosso mundo. Por isso, consideramos aqui o pecado desde a perspectiva da “alienação”. E a própria palavra “alienação” implica uma reinterpretação do pecado a partir de um ponto de vista religioso. Mas não é possível prescindir da palavra “pecado”, pois ela expressa aquilo que a palavra “alienação” não conota, a saber, ato pessoal de se afastar daquilo a que pertencemos. Pecado expressa com muita ênfase o caráter pessoal da alienação frente a seu aspecto trágico. Expressa a liberdade e a culpa pessoal em contraste com a culpa trágica e com o destino universal da alienação [...] A condição humana é de alienação, mas essa alienação é pecado (TILLICH, 2005, p. 340-341).

Baleeiro (2008) afirma que a utilização do conceito filosófico “alienação” feita por

Tillich não pode ser compreendida como sendo um sinônimo, uma superação, ou quem sabe

uma espécie de “substituição” dos conceitos. Trata-se de procurar pensá-lo a partir do seu

método de correlação (BALEEIRO, 2008, p. 145). Ele diz: [...] a ideia de alienação ajuda a

interpretar a mal interpretada ideia de pecado (BALEEIRO, 2008, p. 145). Por esse motivo –

afirma Tillich – o termo “pecado” só deve ser usado depois que tivermos reinterpretado

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religiosamente. Para o autor alemão, um importante meio para efetuar essa reinterpretação, é

sem dúvida o uso do termo “alienação” (TILLICH, 2005, p. 341).

Portanto, o que Tillich pretende nessa reflexão é continuar afirmando que não é

antibíblico empregar o termo alienação para melhor entender o conceito de pecado, assim

como também não é antifilosófico empregar o termo pecado para melhor entender o conceito

de alienação, visto que ambos possuem muita semelhança, sobretudo quando os mesmos são

utilizados de maneira instrumental para descrever a trágica e precária situação existencial do

ser humano.

2. 2. 2 Alienação como descrença

O primeiro problema teológico desencadeado pela alienação existencial é a descrença.

A questão da descrença foi analisada por Tillich tendo como pano de fundo a Confissão de

Augsburgo. 46 Nesse sentido, a mesma é pensada como sendo aquele estado de pecado em que

o ser humano está “sem fé em Deus” (TILLICH, 2005, p. 341). Segundo Tillich, para os

reformadores, a descrença não pode ser simplesmente pensada como aquela indisposição ou

incapacidade de acreditar nas doutrinas da igreja. A doutrina da fé tem que ser encarada com

um ato da personalidade toda, incluindo elementos práticos, teóricos e emocionais (TILLICH,

2005, p. 341). Inclusive em sua obra Dinâmica da Fé, de 1970, Tillich já afirma que a Fé e a

dúvida sempre andam juntas (TILLICH, 1996, p. 15). Para o nosso autor, o ato de fé é

realizado por um ser finito, que está tomado pelo infinito e para ele se volta. Ele diz: [...] Fé é

certeza na medida em que se baseia na experiência do sagrado (TILLICH, 1996, p. 15). No

entanto, por ser fruto de uma experiência humana, a fé é cheia de incerteza, uma vez que o

infinito, para o qual ela está orientada, é experimentado por ser finito. Portanto, o elemento de

dúvida e incerteza não pode ser anulado na experiência de fé; nós precisamos aceitá-lo

(TILLICH, 1996, p. 15). Essa dúvida que faz parte inseparável da fé não é uma dúvida em

torno de fatos ou certas consequências lógicas. Não é a dúvida metódica (Descartes) que dá

impulso a toda pesquisa científica, visto que segundo Tillich, nenhum teólogo que se preze,

haveria de negar o direito da dúvida na pesquisa empírica ou na aplicação do método dedutivo

(TILLICH, 1996, p. 17). A dúvida que está contida em todo ato de fé não é a dúvida

metódica. Ela é dúvida que está contida no risco fé. A dúvida inerente à fé sabe dessa 46 Trata-se de um documento central da reforma de Lutero, que foi uma reação à Igreja Católica. Foi apresentado na Dieta de Augsburgo de 1530. A confissão de Augsburgo compõe-se de 28 artigos. Os mesmo têm como principal característica enfatizar a doutrina da salvação pela graça, mediante a fé em Jesus Cristo, com o centro da fé cristã.

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incerteza natural sempre toma a sua decisão como um ato de coragem sobre si mesmo

(TILLICH, 1996, p. 18).

Assim, tentando estabelecer uma análise mais precisa possível do respectivo conceito,

Tillich afirma que, ao invés da palavra descrença, deveríamos utilizar a palavra “não-fé”

(TILLICH, 2005, p. 341). Isto é, a palavra “descrença” inevitavelmente possui uma conotação

que a associa ao termo “crença”, que acaba significando a afirmações que não são evidentes

(TILLICH, 2005, p. 342). Diferente de sua própria etimologia, para o cristianismo protestante,

“descrença” significa o ato ou estado em que o ser humano – na totalidade do seu ser – se

encontra afastado de Deus, ou seja, alienado (TILLICH, 2005, p. 342). A descrença é uma

espécie de ruptura do ser humano de si mesmo e de Deus (TILLICH, 2005, p. 342).

Nas palavras de Tillich temos: [...] O ser humano, em seu auto-realizar-se existencial, volta-se para si mesmo e para seu mundo, perdendo sua unidade essencial como o fundamento de seu ser e de seu mundo. Isso acontece tanto através da responsabilidade individual quanto da universalidade trágica. É liberdade e destino em um único e mesmo ato. O ser humano, ao se auto-efetivar, volta da para si mesmo e se afasta de Deus no âmbito do conhecimento, da vontade e da emoção. A descrença é a ruptura da participação cognitiva do ser humano em Deus. Não se deveria chamá-la de “negação” de Deus, pois perguntas e respostas, sejam positivas ou negativas, já pressupõem a perda da união cognitiva como Deus. Aquele que pergunta por Deus já está alienado de Deus, embora não cortado dele. Descrença é separação da vontade do ser humano com relação à vontade de Deus (TILLICH, 2005, p. 342).

Estamos diante de uma espécie de reflexo direto da própria constituição da liberdade

finita do homem, pois o processo de “auto-realização-existencial” deve gerar esta alienação e,

de imediato a descrença. Ora, se a descrença é entendida como estado de alienação do ser

humano com relação a Deus no centro do seu eu, Agostinha tinha razão. Assim, afirmar

Tillich: [...] a teologia protestante pode aceitar a interpretação agostiniana de pecado como

amor que se volta de Deus para si mesmo (TILLICH, 2005, p. 342). 47 Portanto, a sugestão

tillichiana de propor a substituição da palavra “descrença” por “não-fé” é, de fato mais

pertinente, visto que em última análise, não-fé é o mesmo que não-amor; pois ambas devem

apontar para a alienação do ser humano em relação a Deus (TILLICH, 2005, 342). Assim, a

descrença deve ser entendida como alienação do ser humano em relação a Deus no centro do

seu ser. É alienação tanto em termos de fé como em termos de amor (TILLICH, 2005, p. 343).

Essa é a verdadeira compreensão de fé que foi redescoberta pelos teólogos reformadores. Isto

é, em Agostinho, a alienação é supostamente vencida pelo amor infundido por Deus e pela fé,

tendo como parâmetro ou subordinação os elementos litúrgicos da doutrina oficial da Igreja

47 AGOSTINHO, 1995, p. 45

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Católica Romana, para os reformadores essa mesma alienação é vencida simplesmente pela

relação pessoal com Deus e pelo amor que se segue dessa relação (TILLICH, 2005, p. 343).

2. 2. 3 Alienação como hybris

Na construção de sua doutrina sobre o pecado, Tillich considerou um segundo aspecto

desencadeante da alienação existencial, a saber, o conceito de Hybris. Etimologicamente

hybris é um conceito grego, que pode ser traduzido como uma espécie de

“confiança excessiva”, um “orgulho exagerado”, presunção, arrogância ou insolência –

originalmente contra os deuses – que com frequência termina sendo punida. Como a hybris, a

alienação significa estar [...] fora do centro divino ao qual o seu próprio centro pertence

essencialmente (TILLICH, 2005, p. 343). Ora, a tentação de procurar se transformar em

centro de si mesmo e de seu mundo existe devido à infinitude potencial do homem

(CARAVALHO, 2007, p. 176). Nesse sentido, o homem – ser finito – busca de forma

errônea, se elevar acima dos seus próprios limites, buscando se igualar a Deus

(CARAVALHO, 2007, p. 176). Trata-se de uma espécie de tentação. Isto é, o fato do homem

ser o único ser finito capaz de inferir racionalmente sua própria centralidade, fez com que essa

dádiva se transformasse em uma maldição. Assim, embora estivéssemos diante de nossa

grande perfeição, ou seja, o que de fato, nos diferencia dos animais, ao mesmo tempo, essa se

transformou em nossa grande tentação (TILLICH, 2005, p. 344). O homem passou então a

confundir sua auto-afirmação natural com a auto-elevação destrutiva (TILLICH, 2005, p.

345).

Sobre a complexidade da palavra hybris, bem como a associação da mesma à doutrina

do pecado, Tillich a descreve da seguinte forma: Não podemos traduzir adequadamente a palavra hybris, embora a realidade que designa seja descrita não só na tragédia grega, mas também no AT. Ela é expressa, mas claramente na promessa da serpente a Eva de que, comendo da árvore do conhecimento, o ser humano seria igual a Deus. Hybris é auto-elevação do ser humano à esfera do divino. O ser humano por causa da sua grandeza é capaz dessa elevação [...] A grandeza do ser humano reside na sua infinitude potencial, e é exatamente nessa tentação de hybris que o ser humano universalmente incorre através da liberdade e do destino (TILLICH, 2005, p. 344).

Outra associação importante feito por Tillich para compreender a palavra hybris, foi

de tentar pensá-la a partir da noção de “pecado espiritual” (TILLICH, 2005, p. 345). Isto é, a

realidade de que o pecado é um fenômeno universal. Pois, todos os seres humanos alimentam

o secreto desejo de serem como Deus e todos agem de acordo com isso em sua autoafirmação

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(TILLICH, 2005, p. 345). É tão complexa essa realidade, que segundo Tillich, esse desejo

secreto não poderia ser considerado simplesmente um orgulho (TILLICH, 2005, p. 344). Do

ponto de vista etimológico, o orgulho é uma qualidade moral, oposta à humanidade. Diferente

da hybris que pode se manifestar tanto no orgulho como também na humildade. Por exemplo:

ninguém está disposto a reconhecer, em termos concretos, sua finitude, sua fraqueza e seus

erros, sua ignorância e nem tão pouco sua insegurança. E, se alguém esta disposto a isso,

transforma sua disposição novamente em um instrumento da hybris (TILLICH, 2005, p. 345).

Assim, a Hybris: [...] foi chamada de “pecado espiritual”, e todas as outras formas de pecado foram derivada dela, até mesmo os pecados sensuais. Hybris não é uma forma de pecado ao lado de outras. É o pecado em sua forma total, a saber, o outro lado da descrença, do afastar-se do centro divino ao qual o ser humano pertence. É o voltar-se para si mesmo como centro de seu eu e de seu mundo. Mas esse recurvar-se em si mesmo não é efetuado por uma parte especial do ser humano, como por exemplo, o seu espírito. Toda vida do ser humano, inclusive sua vida sensual, é espiritual. E é na totalidade de seu ser pessoal que o ser humano se torna centro do seu mundo. Isso é sua hybris; isso se chamou de “pecado espiritual”, cujo principal sintoma é o fato do ser humano não reconhecer sua finitude (TILLICH, 2005, p. 345).

Finalizando a seção, podemos afirmar que, para nosso autor, o conceito de hybris

também possui como exemplo realizações no mundo pagão da tragédia grega. Na tragédia

grega, Tillich afirma que hybris humana pode ser representada não pelo pequeno feito e

medíocre, mas, sobretudo, nas atividades dos heróis grandiosos (TILLICH, 2005, p. 344). A

imagem mítica da hybris do herói grego constela simultaneamente símbolos de transgressão e

de criação (LEITE, 2012, p. 92). A tradição homérica chama os heróis de “semideuses”,

contribuindo para fixar a ideia da hybris que homem pode ser Deus (LEITE, 2012, p. 93).

Proporcionalmente, ao chamar os heróis de “semideuses”, os poemas de Homero entendem

que o homem poderia possuir características semelhantes aos deuses tais como: poder,

coragem e virtudes (LEITE, 2012, p. 93). Assim, é possível defender que a hybris vem a ser

este processo de transgressão dos limites do homem, todavia, – na tradição grega – o métron,

de que resulta uma perigosa proximidade entre o deus e o homem, e que muitas vezes - nem

sempre - atrai a cólera divina, pode literalmente significar injúria, insulto, blasfêmia, ofensa

(LEITE, 2012, p. 93).

2. 2. 4 Alienação como “concupiscência”

O terceiro fator desencadeado na alienação existencial apresentado por Tillich é a

“concupiscência”. Buscando estabelecer uma conceituação adequada do respectivo termo,

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Tillich explica que a mesma é compreendida como resultado direto da descrença e da hybris.

Por exemplo, do ponto de vista qualitativo, todos os atos em que o ser humano se afirma

existencialmente apresenta dois polos. Quando o ser humano procura separar o seu centro do

centro da vida divina, ocorre a descrença. Quando o ser humano procura converter em centro

de si mesmo e de seu mundo temos a hybris (TILLICH, 2005, p. 346). A conjunção de ambos

os polos, possibilita o aparecimento da “concupiscência”.

A concupiscência é definida como sendo aquele estado ilimitado de desejo onde

homem é tentado a atrair a realidade toda para o próprio eu (TILLICH, 2005, p. 346).

Segundo Tillich, trata-se daquele desejo referido a todos os aspectos da relação que o ser

humano estabelece consigo mesmo e com o mundo (TILLICH, 2005, p. 346). Inclusive é

possível que ela esteja presente tanto na fome física como o sexo, tanto na busca do

conhecimento como também no desejo de poder (TILLICH, 2005, p. 346). Portanto,

originalmente o conceito de concupiscência deve ser medido de maneira ampla e não-

restritiva. Todavia, erroneamente esse mesmo conceito tem sido restrito, o chamado “desejo

sexual”. Essa abordagem está presente na reflexão teológica de Agostinho a Lutero

(TILLICH, 2005, p. 346). Tal restrição conceitual é incapaz de estabelecer conexão com o

conceito de alienação existencial.

Assim, segundo Tillich, para compreender o conceito de concupiscência é necessário

reinterpretar o conceito de condição humana, voltando-o a sua original perspectiva

abrangente. Essa tarefa teria sido feita por diversos, dentre os quais o teólogo alemão destacou

os trabalhos de F. Nietzsche e S. Freud (TILLICH, 2005, p. 347). 48 Sobre o primeiro, Tillich

destacou a sua noção de “vontade de poder”. Sobre o segundo, sua doutrina da libido. Visto

que ambos ignoraram profundamente o contraste entre “ser essencial” e “ser existencial”.

Tanto Nietzsche como Freud, interpreta o ser humano como sendo exclusivamente em termos

de concupiscência existencial, omitindo assim qualquer referência ao Eros essencial do ser

humano (TILLICH, 2005, p. 347). Ora, a “vontade de poder” nitzscheana é encarada por

Tillich como uma palavra semelhante à palavra amor e justiça (TILLICH, 2004, p. 24).

48 A opção de se propor a ser um teólogo na fronteira fez com que Tillich estabelecesse um diálogo fecundo com diversas áreas do conhecimento humano. No entanto, sua abordagem só seria de fato pertinente, se o mesmo fosse capaz de se impor com elementos de originalidade. Nesse sentido, é preciso que fique claro, que o fato de Tillich utilizar as reflexões de autores considerados não “convencionais” pela teologia tradicional, não fizeram que ele concordasse em absoluto com todas suas teorias. Por exemplo: Tillich não deixou de apresentar suas críticas a Nietzsche e a Freud. Para ele ambos tiveram os seus méritos na compreensão plana da existencial humana, no entanto, ambos também tiveram erros. O primeiro, por não estabelecer normas e princípios pelos quais devemos julgar a vontade de poder (TILLICH, 2005, p. 349). O segundo, por não ter percebido que sua descrição da natureza humana só é adequada ao ser humano em sua condução existencial, mas não em sua natureza essencial (TILLICH, 2005, p. 348).

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Segundo o nosso autor, a atitude de alguns teólogos de rejeitarem a filosofia de Nietzsche em

nome de uma ideia cristã de amor é errônea. O grande equívoco está em não fazer uma análise

ontológica dos conceitos (TILLICH, 2004, p. 43). Grosso modo, “vontade de poder” são em

parte, um conceito e, em parte, um símbolo. Portanto, não devemos entendê-la literalmente

(TILLICH, 2005, p. 349). Portanto, afirma Tillich: Na expressão “vontade de poder”, vontade não significa um ato psicológico consciente e poder não significa o controle que exerce o ser humano sobre o ser humano. A vontade consciente de obter sobre os seres humanos está enraizada no desejo inconsciente de afirmar o próprio poder de ser. “Vontade de pode” é um símbolo ontológico para auto-afirmação natural do ser humano na medida em que o ser humano tem o poder de ser. Nietzsche segue a doutrina de Schopenhauer, 49 que considera a vontade com força motriz ilimitada em todo ser vivo, produzindo no ser humano o desejo de alcançar a quietude mediante a autonegação da vontade [...] Nietzsche tenta superar essa tendência proclamando enfaticamente uma coragem que assume as negatividades do ser [...] a vontade permanece ilimitada e apresenta traços demoníaco-destrutivos. Trata-se, pois, de um novo conceito de um novo símbolo da concupiscência (TILLICH, 2005, p. 349).

Tillich também vai defender que o pai da psicanálise em sua doutrina da libido,

mesmo – de maneira intencional – teria tocado no sentido original e abrangente do conceito

de concupiscência. Segundo ele, assim como a palavra poder, o conceito de libido é mal

compreendido (TILLICH, 2004, p. 38). Para muitos, trata-se de uma espécie de “desejo por

prazer”. Todavia, esta definição hedonista, está de fato baseada sobre uma psicologia errada

que em si mesma é a consequência de uma ontologia errada (TILLICH, 2004, p. 38). Só é

possível uma ontologia correta do conceito de libido quando o mesmo é pensado a partir do

conceito de amor. Portanto, nem a libido nem a vontade de poder são em si características da

concupiscência. Para Tillich, ambas se tornam expressões da concupiscência e da alienação

quando não estão unidas ao amor, ou seja, quando carecem de todo objeto definido

(TILLICH, 2005, p. 349).

2. 2. 5 Alienação como fato e como ato

Quando comparamos a problemática entre alienação individual e coletiva,

automaticamente devemos tocar – ainda que de maneira hipotética – na questão do chamado 49 Para A. Schopenhauer a essência de nosso ser é caracterizada como: vontade. Isto é, somente a imersão na profundidade de nós mesmos nos faz descobrir que somos vontade (REALE; ANTISERI, 2009, p. 207). Ora a vontade – afirmava ele: [...] é a força que faz crescer a planta, que dá forma ao cristal, que dirige a agulha imantada para o norte e assim por diante (SCHOPENHAUER, 2009, p. 208). Portanto, para ele a essência do mundo é vontade insaciável, é um eterno tender. E a vida do homem é necessidade e dor, oscila entre crueldade, dor e tédio. Todavia, quando o homem chega a compreender que a realidade é vontade e que inclusive ele próprio é vontade, então ele está pronto para sua redenção (REALE; ANTISERI, 2009, p. 208).

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“pecado original ou hereditário”. Embora, em mais de uma ocasião, Tillich demonstrou certa

antipatia em relação ao uso do termo, sobretudo devido à sua forte conotação intratemporal,

bem como sua suposta sugestão a uma espécie de transmissão de culpa ou hereditariedade do

pecado, ele claramente, percebe-se o valor de correlacionar a ideia de solidariedade de todos

os homens (CARAVALHO, 2007, p. 201). Portanto, a noção de “pecado original” só pode ser

utilizado em Tillich, como exemplo pedagógico da universalidade trágica do pecado humano

(CARAVALHO, 2007, p. 202).

É necessário pensar o problema de maneira detalhada. Do ponto de vista histórico, a

teologia clássica estabeleceu uma distinção entre o “pecado original” e o “pecado concreto”.

Quando ela afirmava que o pecado é original, simplesmente pensava que o ato de

desobediência de Adão e a sua predisposição pecaminosa, produziu uma espécie de efeito

colateral capaz de atingir toda a humanidade (TILLICH, 2005, p. 349). Proporcionalmente, o

pecado original seria o mesmo que pecado hereditário. Assim, ser humano estaria alienado de

Deus, visto que a queda de Adão teria corrompido a totalidade da raça humana (TILLICH,

2005, p. 350). Ora, segundo esse ponto de vista ninguém poderia evitar o pecado, sobretudo

na medida em que a alienação teria o caráter de destino universal da humanidade (TILLICH,

2005, p. 350). Todavia, Tillich considera inconsistente e, de fato, absurda a ideia de

estabelecer derivação à condição humana de ato completamente livre de Adão. Tal atitude

teológica teria capacidade de estabelecer a desumanização de Adão e, consequentemente

liberdade sem destino (TILLICH, 2005, p. 350). Para Tillich, a figura de Adão deve sempre

ser pensada como ser humano essencial e como símbolo da transição da essência à existência

(TILLICH, 2005, p. 350). Portanto, o chamado “pecado original” ou “hereditário” não seria

nem original e nem hereditário; trata-se do destino universal de alienação próprio de todo ser

finito.

Trata-se de pensar o pecado a partir dos conceitos de liberdade e destino. Assim,

Tillich argumenta sobre a diferenciação entre o pecado como um fato e como um ato. Isto é, o

pecado é um fato universal antes de se tornar um ato individual, ou seja, o pecado como ato

individual efetiva o fato universal da alienação (TILLICH, 2005, p. 350). Nesse sentido, do

ponto de vista da liberdade, o pecado é um ato individual, devendo inclusive gerar

responsabilidade e culpa pessoal. Porém, esta mesma liberdade deve estar inserida no destino

universal de qualquer ser finito, a saber, o seu estado de alienação (TILLICH, 2005, p. 350).

Paradoxalmente, em todo ato livre está implícito o destino de alienação e, vice-versa, pois o

destino de alienação é efetivado por todos os atos livres. Ele diz: [...] Portanto, é impossível

separar o pecado como fato do pecado como ato (TILLICH, 2005, p. 350). Haja vista que

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ambos estão entrelaçados, e sua unidade é existencialmente experimentada por todo aquele

que se sente culpado. Resumindo: caso cada pecador tente assumir plena responsabilidade por

um ato de alienação – como sempre deveríamos fazer – também ele estaria consciente de que

este ato dependente de todo o nosso ser, incluído os atos livres do passado e o destino

universal da humanidade (TILLICH, 2005, p. 350).

Em geral temos: A alienação como fato foi explicada em termos determinista: fisicamente, por determinismo mecanicista; biologicamente, por teorias da decadência do poder biológico da vida; psicologicamente, como a força compulsiva do inconsciente; sociologicamente, como o resultado do domínio de classes; culturalmente, como falta da adaptação educacional. Nenhuma dessas razões explica a consciência de responsabilidade pessoal que o ser humano sente por seus atos no estado de alienação. Mas todas essas teorias contribuem para compreensão do elemento “destino” na condição humana. Nesse sentido, a teologia cristã deve aceitar todas elas; deve acrescentar, porém, que nenhuma descrição do elemento “destino” no estado de alienação pode eliminar a experiência da liberdade finita e, consequentemente, a responsabilidade por cada ato em que se efetiva a alienação (TILLICH, 2005, p. 350-351).

O problema entre a liberdade e o destino já foi tratado por Tillich em sua Era

Protestante. Naquela ocasião, o ator defendeu que o destino é a necessidade transcendente na

qual a liberdade se amarra (TILLICH, 1992, p. 34). Ora, onde não há liberdade, não há

destino; há apenas necessidades. Os objetos físicos (potências não-racionais) são inteiramente

condicionados as suas necessidades, não possuindo nem liberdade nem destino. Já os seres

humanos (potências racionais) por serem dotados de autodeterminação, estão suscetíveis aos

destinos (TILLICH, 1992, p. 34). Nesse sentido, quando tomamos uma decisão, é a totalidade

concreta de tudo o que constitui, eu que decide, e não um sujeito epistemológico. Isto se

refere à estrutura corporal, aos impulsos psíquicos e ao caráter espiritual (TILLICH, 2005, p.

194). Por outro lado, o destino não é um poder estranho que determina arbitrariamente o que

deve ou não acontecer. Todavia, não há dúvida de que a relação é complexa.

Talvez o maior exemplo disso está presente no “Mito do Éden”. No ser essencial, isto

é, no estado de inocência sonhadora, liberdade e destino se encontram mutuamente

imbricados. Pois, naquele ambiente eles [...] são distintos, mas não separados, vivem em

tensão, mas não em conflito. Ambos estão enraizados no fundamento do ser, na fonte de

ambos e no fundamento da sua unidade (TILLICH, 2005, p. 356). A grande tarefa do ser

humano é compreendê-las de formar harmônica. Pois, toda distorção desta harmonia tende a

causar desespero e angústia. Para Tillich, o estado de alienação do homem tende a deformar

essa harmonia. Na media em que a liberdade se deforma, ela se converte em arbitrariedade. O

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mesmo deve ser dito do destino, qualquer topo de distorção transforma-o em necessidade

mecânica (TILLICH, 2005, p. 356).

2. 2. 6 Alienação individual e coletiva

Do ponto de vista prático, deve existir uma diferença entre a pessoa e o grupo social.

Esse último ponto deve tocar nessa típica diferença. Isto é, diferente do indivíduo, que possui

um eu capaz de equacionar suas decisões, os grupos sociais supostamente não possuiriam um

centro natural de decisão (TILLICH, 2005, p. 352). Nesse sentido, para Tillich, embora o

judaísmo e o cristianismo procurassem enfatizar a culpa pessoa do individuo, os mesmos não

puderam ignorar a problemática teológica diante de questões relacionadas como o sofrimento

de filhos por causa do pecado dos pais (TILLICH, 2005, p. 352). Ora – como é sabido de

todos – por diversas vezes na história humana, tentaram arbitrariamente efetivar essa

complicada relação. Sobre esse aspecto, Tillich aponta exemplo como: a condenação social de

descendentes inocentes de pais moralmente condenados, como também os diversos

fenômenos ocorridos nos últimos anos em que supostamente nações inteiras foram

socialmente condenadas pelas atrocidades perpetradas por seus governantes (TILLICH, 2005,

p. 352).

Todavia, é necessário pensarmos de maneira dialética. Pois, mesmo diante dessa

complicada relação, não podemos esquecer que Tillich sempre vai defender a unidade

ontológica entre o individual e o coletivo (TILLICH, 2005, p. 352). Todavia, tal unidade é

pensada a partir da noção de liberdade e destino. Para ele o destino sempre será

inseparavelmente unido à liberdade. Pois, paradoxalmente, a culpa pessoal participa na

criação do destino universal da humanidade, sobretudo, na criação do destino especial do

grupo social a que pertence essa pessoa. Dentro dessa perspectiva dialética, os meandros que

norteiam a relação entre liberdade e destino são complexos (TILLICH, 2005, p. 353). Ao

mesmo tempo em que os cidadãos não devem ser considerados culpados pelos crimes

cometidos em sua cidade, por sua vez, são considerados culpados como participantes do

destino do ser humano como um todo. Pois, na perspectiva tillichiana, todo o ato na qual a

liberdade está unida ao destino deve contribuir para formar o destino do qual participam

(TILLICH, 2005, p. 353).

Buscando uma espécie de “solução” plausível para o problema, Tillich apresenta duas

importantes reflexões que podem perfeitamente nos ajudar a melhor entender o problema da

dicotomia entre alienação individual e coletiva. Que são: (1) O conceito de personalidade; (2)

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A relação entre marxismo e o socialismo cristão. Na primeira reflexão, nosso autor procura

reafirmar que todo ser humano é detentor de sua capacidade inerente de autodeterminação.

Assim, personalidade segundo ele, é identificada como o ser que tem o poder de

autodeterminação (TILLICH, 1992, p. 141). Ou seja, o ser humano é um ser livre e, portanto,

ser livre, significa ter o poder sobre si mesmo sem se escravizar à natureza que foi dada

(TILLICH, 1992, p. 141). Proporcionalmente, no próprio conceito de personalidade devem

estar inseridos dois outros: liberdade e responsabilidade. Ora, a liberdade não pode ser

explicada por meio de conceitos capazes de indicar a experiência da efetiva autodeterminação

(TILLICH, 1992, p. 142). O ser individual capaz de alcançar a universalidade, pois no

exercício de sua função, a liberdade é poder de transcender a própria natureza dada; porém

não será verdadeira se o indivíduo apenas trocar a própria natureza por outra qualquer

(TILLICH, 1992, p. 142). Portanto, a personalidade é o ser no qual o indivíduo se deixa

transformar pela estrutura universal do ser e a ela se une. Haja vista que: [...] Somente o

homem possui um mundo enquanto todos os seres vivos, incluindo o homem, vivem num

ambiente (TILLICH, 1992, p. 143).

É nesse sentido que, para Tillich, o indivíduo é responsável pelos seus atos. Segundo o

mesmo, a personalidade possui em seu núcleo fundamental incondicional capaz de estabelecer

no homem uma espécie de “exigência ética ontológica” (TILLICH, 1992, p. 144). Assim,

existe uma base vital na personalidade humana que regula seu próprio senso de

responsabilidade que dignifica sua liberdade. O estado de alienação individual ocorre quando

estamos dispostos a rejeitar a santidade religiosa da personalidade, ou seja, a sua dignidade

ética e sua profundidade ontológica (TILLICH, 1992, p. 144).

Tillich nos alerta sobre esse perigo da seguinte forma: A negação religiosa desta ideia, o mau uso ético do poder pessoal em nós e nos outros, e a dissolução ontológica da integridade da exigência pessoal têm caráter demoníaco e consequentemente destrutivas [...] Podemos, é certo, esquecer o caráter simbólico do símbolo pessoal e transformar o julgamento sobre a profundidade e o significado da realidade num mero juízo sobre algum ser especial ao nosso lado ou acima de nós, cuja existência e natureza possam ser ou não provada. Se nos submetermos a esse perigo, o fundamento das coisas se transforma numa coisa, parte do mundo, e, se tal coisa for considerada absoluta, essa se transformar num ídolo. Ao enfrentá-lo, podemos nos revoltar contra ele e tomar o seu lugar, ou sacrificar a nossa liberdade e nossa dignidade pessoal (TILLICH, 1992, p. 144).

Ainda dentro de sua noção de personalidade, Tillich apresenta a problemática da

coletividade. Isto é, qual a relação entre indivíduo e comunidade no seu conceito de

personalidade? Tillich responde esta pergunta advogando a ideia de que em algumas

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circunstâncias e, em determinadas sociedades os indivíduos podem sim ser despersonalizados,

sobretudo, pela força coerciva da coletividade (TILLICH, 1992, p. 151). Ele diz: A massa excluída naturalmente (embora não legalmente) das competições sérias torna-se mero objeto de dominação. A ser submetida a esse poder, não reconhece voluntariamente. Esse tipo de poder social tem caráter privado, profano e naturalista, e se apresenta coercivo em face dos dominados e dos que dominam ao se sujeitarem às regras dos jogos do poder. Esta forma de dominação privada, objetivamente irresponsável (embora exercida muitas vezes por pessoas responsáveis) tem prevalecido nestes últimos temos da civilização ocidental, principalmente no campo econômico. Daí passou para esfera política visível na imprensa, no rádio, no cinema etc. [...] Para os dominados esta situação significa a perda toda da autodeterminação, a sujeição as leis inescapáveis do ciclo comercial, o horror, da insegurança permanente – o lado oposto da liberdade de contrato, o vazio espiritual produzido pela concentração nas necessidades da vida diária e pelo sempre presente demônio da angústia (TILLICH, 1992, p. 152). 50

Sobre a segunda reflexão (a relação entre marxismo e cristianismo), é possível

também encontrar elementos que melhor nos ajudam a entender a relação entre alienação

individual e coletiva. Assim, mais uma fez de maneira dialética, voltamos a pensar na

influência da coletividade sobre a individualidade. Tanto o marxismo como também o

cristianismo concordam na afirmação de que a natureza do ser humano não pode ser

determinada pelas características dos indivíduos (TILLICH, 1992, p. 269). Ele diz: [...] o

homem é um ser social; o mal e bem que prática depende de sua existência social. O

individuo não escapa dessa situação (TILLICH, 1992, p. 269). Nesse sentido, é possível

equiparar que o protesto dos reformadores contra os deuses “feitos-por-mãos-humanas” ou

ídolos, e o protesto de Marx contra as ideias ou ideologias que nós fabricamos. O cristianismo

e marxismo estão de acordo em oposição ao otimismo antropológico. Portanto, embora haja

um grande abismo entre eles, sobretudo na questão da transcendência, não dúvida também da

importância de se manter o diálogo, principalmente no problema da alienação.

2. 3 Alienação e Salvação

Assim, como fizemos no primeiro capitulo sobre Kierkegaard, gostaríamos de

terminar esse, refletindo o respectivo conceito de alienação do ser, com a pergunta sobre a

possibilidade ou não da salvação, isto é a “cura” da alienação. Proporcionalmente, se a

doutrina do pecado em Tillich é pensada sobre a emblemática da alienação, até que ponto é

50 Nessa citação é extremante perceptível a influência da escola de Frankfurt. Diversas expressões e conceitos utilizados por Tillich, tais como: massa excluída, impressa, rádio e cinema como instrumento de poder coercivo, ausência de autonomia do indivíduo, ciclo comercial, concentração nas necessidades da vida diária, entre outras, servem para comprovar essa realidade. Inclusive um dos grandes teóricos da respectiva escola Frankfurt é Theodor Adorno, ex-orientando de Tillich (ADORNO, 2009, p. 33).

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possível relacioná-la com uma suposta proposta soterológica? Aparentemente, estaríamos em

ligeira “vantagem”, tendo em vista que diferente de Kierkegaard, que não fez uma teologia

sistemática abertamente, Tillich desenvolveu uma doutrina soterológica de forma coerente

com a sua estrutura argumentativa. Grosso modo, pensar conceito de pecado em Tillich,

objetivando encontrar nele a possibilidade de uma doutrina soterológica, é possível, tanto em

sua monumental teologia sistemática, como também em suas outras obras. No entanto, a

maneira como ele deve fazer isso, não vai ser sobre os moldes da teologia tradicional.

O primeiro grande movimento tillichiano em relação a uma soterologia foi, sem

dúvida, pensá-la a partir de seu próprio termo. Para isso, ele afirmava a necessidade do

teólogo de reinterpretar o “verdadeiro sentido” da palavra salvação (TILLICH, 2005, p. 450).

Tillich advoga que, durante muito tempo, a historiografia teológica sempre pensou o conceito

de salvação a partir na “não-salvação” ou como ele costumava chamar, a partir de sua

“negatividade última” 51 (TILLICH, 2005, p. 450). Trata-se da chamada condenação ou morte

eterna, ou seja, a perda do telos interior do próprio ser. A condenação (negatividade última)

seria a exclusão da unidade universal do Reino de Deus e sua exclusão da vida eterna

(TILLICH, 2005, 450). Por exemplo:

[...] para a primitiva Igreja Grega, necessitávamos e queríamos ser salvação da morte e do erro. Na Igreja Romana, a salvação é da culpa e de suas consequências nesta e na outra vida (purgatório e inferno). No protestantismo clássico, salvação é salvação da lei, da ansiedade que suscita em nós e do seu poder de condenação. No pietismo e no reavivamento, salvação reside no triunfo sobre o estado de impiedade através da conversão e transformação daqueles que se convertem. No protestantismo ascético e liberal, a salvação consiste na vitória sobre pecados especiais e no progresso em direção à perfeição moral (TILLICH, 2005, p. 451).

Assim, segundo a mesma linha de raciocínio e, sobretudo, respeitando o sentido

original da palavra (de salvus, “curado”) Tillich vai pensar o conceito de salvação

interpretando-o como “cura”. Dentro do seu contexto argumentativo, isso corresponde à cura

daquilo que está alienado, isto é, o homem e o mundo (TILLICH, 2005, p. 451). Nesse

sentido, salvação significaria o mesmo que dar um centro àquilo que está disperso, superando

a ruptura entre Deus e o ser humano, entre o ser humano e seu mundo interior e exterior

(TILLICH, 2005, p. 451). Ele diz:

51 Uma das espinhas dorsais do pensamento de Tillich foi à doutrina da "preocupação última". O ser humano possui preocupações materiais e espirituais, como: alimentação, moradia, profissão, relacionamentos, dinheiro, literatura, música etc. (TILLICH, 1996, p. 5). No entanto, algumas dessas preocupações podem reivindicar atenção imprescindível e incondicional para si. Quando o homem aceita essa reivindicação de dedicação incondicional, ele passa a ser movido incondicionalmente, assim, acontece ou surge a fé (TILLICH, 1996, p. 6). Assim, a “negatividade última”, deve ser pensada como aquele estado de alienação absoluto do incondicional.

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A partir dessa interpretação de salvação é que se desenvolve o conceito de Novo Ser. Salvação é a saída de o antigo ser e a transferência para o Novo Ser. Esta compreensão inclui os elementos de salvação que foram enfatizados em outros períodos. Ela inclui, sobretudo, a realização do sentido último da própria existência, mas vê isso desde uma perspectiva especial, a de tornar salvus, a de “curar” (TILLICH, 2005, p. 451).

Ora, se do ponto de vista histórico como também na própria sistemática tillichiana a

soterologia é interpretada a partir da noção de cura, resta-nos saber agora sobre quais

pressupostos a mesma cura acontece. Isto é, como é possível que ela seja de fato efetivada?

Para responder esse questionamento, Tillich procurou estabelecer sua soterologia enraizada

através de uma perspectiva ontológica, estabelecendo assim a questão entre o “ser não ser”.

Proporcionalmente, esta concepção da salvação exclui uma ideia de salvação exclusivista e

eclesiástica (TILLICH, 2005, p. 454). Segundo Tillich a salvação tem que ser total ou

inexistente (TILLICH, 2005, p. 454). É necessário pensar o simbolismo escatológico e sua

interpretação. Isto é, à questão da relação entre o eterno e o temporal no que se refere ao

futuro. Em suma, todos os seres humanos participam, em certa medida, deste poder curativo

do “Novo Ser”, pois, caso contrário, eles não teriam ser (TILLICH, 2005, p. 454). 52

2. 3. 1 A Cura do ser Alienado

Para a teologia cristã, o problema da salvação é primordial. Não é possível pensar o

conceito de salvação em Paul Tillich desassociado de uma perspectiva ontológica. O que

significa dizer que, ser salvo para o nosso autor, é o mesmo que ter recebido uma espécie de

“cura” na constituição do ser – que anteriormente encontrava-se alienado. Portanto, a cura do

ser alienado é o grande substrato da soterologia tillichiana. Nesse sentido, sua proposta

teológica deve estar posta sobre a problemática luta de vencermos o contraditório dualismo

dos elementos polares. Isto é, o confronto entre: finitude e infinitude, subjetivo e objetivo,

condicional e incondicional, temporal e eterno, liberdade e destino, ser e não ser. Para ser

curado o seu estado inerente de alienação e, sobretudo, vencer essas contradições dos

52 A partir dessa afirmação é possível fazer inferência que Tillich não comunga com algumas “teologias conservadoras” que em tese defende que: a vida eterna depende do encontro de Jesus como o Cristo, e da aceitação de seu poder salvador. Segundo o nosso autor, tal ideia reduziria e muito, o número de seres humanos salvos. Nesse sentido, os que não tivessem estabelecido um encontro com Jesus, estariam arbitrariamente condenados à exclusão da vida eterna, seja por um decreto divino ou por um destino que lhes sobreveio por meio da queda de Adão ou de sua própria culpa (TILLICH, 2005, 452). Para sairmos desse dilema, é necessário entender a salvação sob o âmbito ontológico e universalizante, ou seja, como uma espécie de poder curativo através do Novo Ser ao longo da história toda. Portanto, Jesus deve ser considerado nosso salvador através do significado universal de seu ser como o Novo Ser (TILLICH, 2005, p. 453).

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elementos polares ontológicos, o ser humano precisa estar de posse dessa nova realidade

marcada pelo relacionamento com o Novo Ser.

No entanto, é necessário não confundirmos a cura da alienação com aquelas antigas e

famigeradas perspectivas de humanas de “auto-salvação”. Inclusive sobre isso, o próprio

Tillich foi implacável em denunciar o fracasso efetivo de todas elas (TILLICH, 2005, p. 372).

Segundo o nosso autor, todas as tentativas religiosas denominadas de “auto-salvação”, são ou

deveriam ser consideradas existencialmente inviáveis. As principais são: legalistas, ascéticas,

místicas, sacramentais, doutrinais e emocionais.

A auto-salvação legalista é caracterizada pela tentativa de traduzir o estado existencial

de alienação simplesmente em uma mera quebra de mandamentos de lei. Ela faz, porém, em

forma de mandamentos exatamente porque o ser humano está alienado daquilo que deve ser

(TILLICH, 2005, p. 373). Porém, isso não funciona, pois onde há mandamentos surge a

tentação do legalismo, uma tentação que se mostra quase irresistível, transformando o

procedimento em um resultado catastrófico (TILLICH, 2005, p. 373). Para Tillich, a grandeza

dos legalistas reside em sua seriedade incondicional. Todavia, sua pretensão de superar o

estado de alienação mediante sua obediência estrita à lei, não pode ser efetivada, gerando com

isso o desespero (TILLICH, 2005, p.374).

Por sua vez, a auto-salvação ascética procura negar a realidade finita. Isto é, segundo

essa linha de pensamento queda da existência e finitude são a mesma coisa. Portanto, a

finitude não deveria existir, porque ela contradiz o ser em si, assim, a única forma de salvação

possível reside na negação completa dessa realidade, esvaziando-se o eu dos múltiplos

conteúdos do mundo que o rodeia (TILLICH, 2005, p. 375). O grande fracasso desse tipo de

auto-salvação acontece na medida em que ela tenta forçar a reunião com o infinito mediante

atos conscientes de autonegação (TILLICH, 2005, p. 375). A auto-salvação mística também

possui característica de tentar superar a realidade finita. Todavia, através da tentativa de

transcender todos os âmbitos do ser finito para reunir o ser finito como o infinito (TILLICH,

2005, p. 375). O que deve resultar em outro fracasso, sobretudo porque ninguém consegue

transcender o suficiente ao ponto de estabelecer sua união mística com Deus. Haja vista que,

mesmo se ele pudesse de fato estabelecer tal unidade com a infinitude, o seu estado de

alienação existencial nunca poderia ser superado na sua vida cotidiana (TILLICH, 2005, p.

375).

Já os três últimos modelos de auto-salvação: sacramentais e doutrinais Tillich

procuram-a apresentá-las de maneira conjugadas. Isto é, demonstrando a correlata relação

entre ambas, sobretudo através de movimentos católicos e protestantes. Ele diz:

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Embora a forma sacramental seja mais característica da Igreja Católica Romana e forma doutrinal mais característica da igreja protestante, especialmente das igrejas luteranas, é possível examiná-las em conjunto. Existe tanta auto-salvação doutrinal no catolicismo romano e tanta auto-salvação sacramental no protestantismo luterano, que seria inadequado tratá-las separadamente [...] A auto-salvação sacramental é a distorção da autêntica experiência sacramental [...] O fato de se perguntar ansiosamente se o rito foi minuciosamente cumprido ou se o procedimento seguiu a forma ou atitude prescrita mostra que não se alcançou a reunião como a fonte divina do ato sacramental [...] O mesmo pode dizer da auto-salvação doutrinal. No protestantismo luterano, a expressão “justificação pela fé” foi responsável em parte pela distorção da doutrina em um instrumento de auto-salvação. A fé como um estado em que o ser se sente possuído por algo último foi distorcida e se converteu na crença em uma doutrina (TILLICH, 2005, p. 377).

Por fim, Tillich ainda teria apresentado uma sexta e última categoria de auto-salvação,

a saber, a emocional. Do ponto de vista histórico, ele se fixa no movimento chamado de

pietismo (TILLICH, 2005, p. 377). A tentação de auto-salvação no movimento pode ser

percebida em todas as formas de reavivamento, e nas experiências de conversões e

santificações, geralmente canalizadas de maneira artificial, ela também fracassa e distorce o

caminho da salvação, não conseguindo assim destruir a alienação (TILLICH, 2005, p. 378).

Portanto, sob alguns desses aspectos negativos, percebemos que só é possível pensar a

soterologia tillichiana, através da cura do ser alienado, a partir da instrumentalidade e do

aparecimento do Messias (cristo) e da expectativa do nascimento de uma nova realidade

caracterizada pela presença de um Novo Ser no homem.

2. 3. 2 O Messias e a Vitória sobre a Alienação

Como já observamos Tillich procura pensar o conceito de salvação a partir da noção

de “cura”. Essa cura em Tillich é de caráter essencial, portanto, trata-se de uma cura no ser.

Isto é, o ser humano encontra-se em um estado de pecado caracterizado como o estado de

alienação. Para que o mesmo possa ser salvo, ele precisa receber a cura do seu ser através da

incursão do Novo Ser. Ora, a teologia cristã afirma que podemos conhecer a essência do

homem, sobretudo porque o homem essencial já apareceu nas condições da existência

humana, prioritariamente na figura de Jesus Cristo (TILLICH, 2010, p. 194). Nesse sentido, o

Cristo passa a ser a única possibilidade da salvação, ou seja, também a cura ou “solução

ontológica” para o problema da alienação. Assim, não há dúvidas, de que as reflexões de

Tillich quanto à apresentação do Cristo como elemento soterológico para a alienação

existencial estejam de fato pautadas ou influenciadas a partir das propostas feitas,

anteriormente, pelo também teólogo alemão Friedrich D. Schleiermacher. Inclusive, sobre

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esse aspecto comparativo – salva as ressalvas – o próprio Tillich chegou a fazer afirmações

reconhecendo essa realidade dizendo: Alguns traços de nossa concepção cristológica são semelhantes à cristologia de Schleiermacher, como ele a desenvolve em sua Glaubenslehre. Schleiermacher substitui a doutrina das duas naturezas pela doutrina de uma relação divino-humana. Ele fala de uma consciência de Deus em Jesus cuja força ultrapassa a consciência de Deus que têm todos os outros seres humanos. Ele descreveu Jesus como o Urbild (“imagem original”) daquilo que o ser humano é essencialmente antes da queda (TILLICH, 2005, p. 436).

Do ponto de vista da “teologia tradicional”, a soterologia de Schleiermacher é

chamada de teoria mística. 53 No entanto, ao citá-lo, como ponto de referência, Tillich não

estabeleceu nenhuma analogia pejorativa capaz de desqualificar as propostas elaboradas por

Schleiermacher. Muito pelo contrário, como visto na citação acima, para o nosso autor, o

grande mérito do mesmo foi o de ter proporcionado uma espécie de “nascimento” da teologia

moderna (TILLICH, 2010, p. 113). Para Tillich, Schleiermacher deve sempre ser lembrado

como o teólogo da síntese. Isto é, sua ideia foi reforçar a antiga afirmação de que um

verdadeiro filósofo pode muito bem ser também um verdadeiro crente (TILLICH, 2010, p.

114). Nesse sentido, para Tillich, Schleiermacher procurou não negar a filosofia iluminista e,

ao mesmo tempo, superá-la num outro nível. Ele diz: [...] Conseguia combinar a piedade com

a coragem de cavar nas profundezas do pensamento filosófico (TILLICH, 2010, p. 114). Pois,

para Schleiermacher, de fato, os pensamentos mais profundamente filosóficos, devem

perfeitamente identificar-se com o sentimento religioso (SHLEIERMACHER, 2009, p. 35).

No entanto, Tillich não deixou de estabelecer suas ressalvas. A grande diferença entre a sua

cristologia e a de Schleiermacher, seria o problema da Urbild comparada ao seu conceito de

Novo Ser (TILLICH, 2005, 436). Trata-se da diferença entre o Cristo antropológico e o

ontológico. Segundo Tillich, os conceitos podem ser considerados semelhantes, porém não

idênticos. Pois o: [...] conceito de “Deus-Humanidade Essencial” aponta para ambos os lados da relação, e o faz em termos de eternidade. É uma estrutura objetiva e não um estado do ser humano. A expressão “unidade essencial entre Deus e ser humano” é de caráter ontológico, enquanto a “consciência de Deus” de Schleiermacher tem caráter antropológico. O termo Urbild, aplicado a Jesus como o Cristo, não tem implicação decisiva do termo “Novo Ser”. Urbild expressa claramente à transcendência idealista da verdadeira humanidade em relação à existência humana, enquanto em “Novo Ser” é decisiva a participação daquele que também é Urbild, (ser humano essencial). O Novo

53 Trata-se daquela proposta cuja salvação é alcançada por intermédio de uma união mística com Cristo – nele, o ideal da humanidade é plenamente realizado (GEISLER, 2010, p. 188). Os teólogos conservadores afirmam que, de acordo com a teoria mística, como Cristo era a união absoluta da divindade e da humanidade, Deus se tornou homem para que muitos pudessem se tornar Deus. Isto é, os remidos tomariam parte da natureza divina do redentor, passando assim, a ser unido a Deus misticamente (SCHLEIERMACHER, 2010, p. 189).

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Ser não só é novo em relação à existência, mas também em relação à essência, na medida em que a essência permanece mera possibilidade. O Urbild permanece imutável para além da existência; o Novo Ser participa na existência e a vence. Aqui novamente a diferença reside no elemento ontológico (TILLICH, 2005, p. 436).

Assim, a diferença entre o Cristo antropológico e o ontológico é fundamental. O Cristo

de Schleiermacher está mais preocupado com a questão de explicar como se estabelece a

chamada transformação de uma consciência limitada de Deus (presente em todos os seres

humanos) para uma consciência ilimitada de Deus (presente somente em Cristo) (TILLICH,

2010, p. 130). Nesse sentido, o salvador receberia os crentes, fazendo-os participarem dessa

sua consciência ilimitada de Deus, transformando a igreja numa comunidade onde esta

consciência é o poder determinante (TILLICH, 2010, p. 133). Diferente do Cristo de Tillich,

cujo principal aspecto deve possuir dimensões de caráter ontológico. Para ele, o “Novo Ser” é

caracterizado como uma espécie de princípio de inerência mútua do finito e do infinito na

pessoa de Cristo. Isto é, o infinito se realiza plenamente no finito, nesse homem, Jesus, o

Cristo. Portanto, o centro desse infinito se mostra no centro desse homem finito. Assim, o

Novo Ser em Cristo, expressa o universal e o essencialmente verdadeiro para todos os seres

humanos.

Higuet (2005) afirma que a imagem do Novo Ser foi criada no seio de uma

experiência religiosa fundante (HIGUET, 2005, p. 36). Por exemplo, nos anos posteriores à

morte e à vivência da ressurreição de Jesus, a imagem foi produzida de modo múltiplo e

foram modificadas várias vezes (HIGUET, 2005, p. 36). Proporcionalmente, o que de fato

conhecemos hoje, muitas imagens concretas de Jesus enquanto Cristo e, além disso, muitas

outras expressões do poder do Novo Ser, que não precisam identificar-se com a imagem de

Jesus de Nazaré (HIGUET, 2005, p. 37). Portanto, para Tillich, salvação é a saída do antigo

ser alienado e a transferência para o Novo Ser (TILLICH, 2005, p. 451). Assim, esta

compreensão deve incluir os elementos de salvação que foram enfatizados em outros períodos

também. Ainda que o cristianismo derive a salvação do aparecimento de Jesus como o Cristo,

não estabelece uma separação entre a salvação através do Cristo e os processos de salvação,

isto é, de cura, que ocorrem ao longo de toda história (TILLICH, 2005, p. 451).

Ora, o ato de aceitarmos a doutrina teológica de que Jesus é o salvador, não pode

limitar-se a dizer que não existe salvação fora dele, pois, para Tillich, onde quer que exista um

poder salvador na humanidade, o mesmo deve ser julgado pelo poder salvador em Jesus como

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Cristo, como se limita ao Jesus histórico. 54 Portanto, o cristo de Tillich deve ser entendido em

termos simbólicos. O símbolo não é a opção pela não existência concreta. Ele diz: [...]

Símbolos religiosos são elementos da realidade finita, que apontam para o Infinito

(TILLICH, 2005, p. 139). Tudo que diz respeito incondicionalmente ao ser humano,

geralmente é expresso de maneira simbólica, pois só a linguagem simbólica consegue

exprimir o Incondicionado (TIILCIH, 2005, p.139). Nesse sentido, é compreensivo porque em

Tillich, a maior parte dos conceitos fundamentais de toda soterologia esteja posta sobre o

problema do ser. Por exemplo, nos princípios da Expiação: na regeneração, a salvação está

posta como a participação no Novo Ser (TILLICH, 2005, p. 460); na justificação, a salvação

está posta como a aceitação do Novo Ser (TILLICH, 2005, p. 461); na Santificação, a

salvação está posta como a transformação pelo Novo Ser (TILLICH, 2005, p. 563).

2. 3. 3 A coragem de ser

O conceito de Novo Ser deve também aparecer – de maneira análoga – no seu livro A

coragem de Ser. Nessa obra, a proposta inicial de Paul Tillich, foi a elaboração de uma

perspectiva antropológica pautada a partir de uma análise constitutiva do homem, tendo como

elemento fundante o problema ontológico. Para Tillich, ser homem implica uma coragem

básica de ser (SANTOS, 2003, p. 54). É necessário mais uma vez afirmar que, a noção de

coragem, neste sentido, é um conceito ontológico, pois Tillich defende que a coragem de ser é

o ato ético no qual o homem afirma seu próprio ser a respeito daqueles elementos de sua

existência que entram em conflito com sua auto-afirmação essencial (SANTOS, 2003, p. 54).

Grosso modo, o ser, a cultura e a fé, fazem parte da estrutura humana e se manifestam

na religiosidade (SCUSSEL, 2007, p. 257). Portanto, as “auto-afirmações ônticas” e

espirituais do homem precisam ser distinguidas, mas não podem ser separadas das

ambiguidades da vida (SCUSSEL, 2007, p. 257). Ora, o ser do homem inclui sua relação com

as significações, ou seja, seu ser é espiritual, mesmo nas expressões mais primitivas dos mais

primitivos seres humanos (TILLICH, 2009, p. 39). Na “teologia da cultura”, o homem precisa

ser compreendido como um ser espiritual e seu mundo é aquilo que ele é, suas significações e

seus valores (TILLICH, 2009, p. 42). A religiosidade acontece na experiência cotidiana da 54 Para o cientista da religião F. O. Guimarães (2013) percebe-se que, em Tillich, não é dado muita importância a uma construção do Jesus histórico segundo os moldes da historiografia (por mais que valorizasse a historiografia). Ele considerou as apresentações historiográficas de Jesus como um fracasso, passando em seguida a propor um novo olhar para se entender o Jesus na história (GUIMARÃES, 2013, p. 71). Por esse motivo, Tillich vai de fato, valorizar o desenvolvimento dos símbolos cristológicos, muito mais do que os achados historiográficos, sobretudo o seu símbolo conceitual, a saber: o logos (TILLICH, 2005, p. 401).

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vida, na relação com o mundo, com o transcendente, com a sociedade, com a natureza e

consigo mesmo (SCUSSEL, 2007, p. 258). Esta mesma religiosidade que é capaz de

perpassar a vida concreta das pessoas e das culturas, influenciando assim, as demais relações,

concepções, valores, conceitos, atitudes, pensamentos e emoções (SCUSSEL, 2007, p. 258).

Josgrilberg (2012) afirma que nessa esteira argumentativa, a questão de Deus passa a

ser deslocada sob novas bases. Isto é, para quem não pode pensar Deus no esquema da

tradição teista, obrigatoriamente Tillich necessita de outras perspectivas hermenêuticas, de

Deus além de Deus, mas que signifique também Deus além do ser (JOSGRILBERG, 2012, p.

73). Mais claro se torna que, em suas propostas, Tillich vai além dos tipos tradicionais do

teísmo e, ao mesmo tempo, retorna a ele por uma ontologia mística e uma gramática

ontológico-existencial, ou seja, estabelece esquemas e quadros para pensar Deus, Cristo, e a

vida (JOSGRILBERG, 2012, p. 73). Tillich afirma: O Deus do teísmo é um Deus limitado pelas concepções finitas do homem [...] Deus acima de Deus do teísmo está presente, embora oculto, em todo encontro divino-humano [...] podemos tornar-nos conscientes do Deus acima do Deus do teísmo na ansiedade da culpa e condenação, quando os símbolos tradicionais que incapacitam os homens a resistir à ansiedade da culpa e condenação perde seu poder. Quando “julgamento divino” é interpretado como um complexo psicológico e perdão, como um remanescente da imagem paterna, o que uma vez foi o poder naqueles símbolos pode ainda estar presente e criar coragem de ser a despeito da experiência de um vão infinito entre o que nós somos e o que deveríamos ser [...] A coragem de incorporar em si a ansiedade de insignificação é a linha limite até onde pode chegar à coragem de ser. Além dela é mero não-ser. Dentro dela todas as formas de coragem estão reafirmadas nas potências de Deus acima de Deus no teísmo. A coragem de ser está enraizada no Deus que aparece quando Deus desapareceu na ansiedade da dúvida (TILLICH, 1996, p. 144-146).

Identificando o epicentro de sua teologia, percebe-se que o fio condutor continua

sendo a questão de Deus. Assim, para além do nominalismo, Tillich tenta formular sua

doutrina de Deus a partir da correlação da ideia do ser de Deus como as estruturas do ser

humano, ou seja, suas ambiguidades (CARVALHÃES, 2003, p. 88). É nesse sentido, que é

possível entender a questão da coragem de ser. Ou seja, o ser humano está sempre ameaçado

pelo não-ser, no entanto, ele precisa ter coragem para vencê-lo (CARVALHÃES, 2003, p.

89). Isto é, quando o ser humano vê os perigos do não-ser apontando para os limites e até

mesmo para o desaparecimento do ser, este busca a totalidade do ser, do ser-em-si, Deus. Pois

mesmo ele sendo finito em sua finitude, ele busca o infinito.

A Coragem de ser tillichiana busca estabelecer a solução para as ambiguidades da

existência caracterizadas pelo estado de alienação. Ora, desespero, ansiedade, medo, morte e o

nada, são algumas das “percepções existenciais” do não-ser descritas por Tillich

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(CARVALHÃES, 2003, p. 90). Trata-se das ameaças existenciais do não-ser, fazendo com

que o ser humano levante a pergunta para o problema do ser-em-si que é Deus. Assim, a

coragem de ser é busca humana de superar as contradições do não-ser, tendo como ponto de

referência o que Tillich chama de “preocupação ultima”. 55 Portanto, Deus passa a ser

também o nome que designa aquilo que preocupa o ser humano de maneira última por ser a

resposta às ambiguidades da finitude.

Todavia, vivenciar uma existência pautada a base de uma coragem de ser não é de fato

fácil. Para que possamos andar nessa coragem de ser, é preciso vencer os conflitos polares

inerentes contidos no interior das categorias ontológicas (TILLICH, 2005, p. 201).

Precisamos vencer a angústia existencial gerada por esse conflito. É preciso ter coragem de

ser diante da angústia forjada pelas ambiguidades do Tempo. O homem precisa ser corajoso

para defender seu presente contra a visão de um passado infinito e de um futuro igualmente

infinito, onde ele em hipótese está excluído de ambos (TILLICH, 2003, p. 203). É preciso ter

a coragem de ser diante da angústia forjada pelas ambiguidades do Espaço. O homem precisa

ser corajoso para enfrentar aquelas ocasiões em que o não-ter-um-lugar se torna uma ameaça

real (TILLICH, 2005, p. 204). É preciso ter a coragem de ser diante da angústia forjada pelas

ambiguidades da Causalidade. O homem precisa ser corajoso para se submeter à derivação e

contingência, quem possui essa coragem não olha para além de si mesmo, para aquilo de onde

ele procede, mas repousa em si mesmo, ou seja, a coragem é capaz de ignorar a dependência

causal de tudo o que é finito (TILLICH, 2005, p. 205). É preciso ter a coragem de ser diante

da angústia forjada pelas ambiguidades da Substância. O homem precisa ser corajoso para

aceitar a ameaça de perder a substância individual e a substância do ser em geral (TILLICH,

2005, p. 206).

A esta altura do desenvolvimento argumentativo, percebe-se que Tillich entende a

coragem como uma espécie de vitalidade essencial do homem. 56 Fazendo uma comparação

entre a coragem e o medo (Angústia), Tillich constrói sua reflexão. Isto é, se angústia produz 55 Em A Dinâmica da Fé, Tillich afirma que Deus é o símbolo fundamental da nossa preocupação última, ou seja, Deus é um símbolo de Deus, pois símbolos e mitos são a linguagem da fé e podem expressar nossa preocupação suprema. Esta fé é estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente (TILLICH, 1996, p. 5-6). Trata-se de um ato que envolve a pessoa inteira. Uma vez que a fé é um ato da pessoa toda, ela participa da dinâmica da vida pessoal. Existe uma profunda relação entre essa dinâmica da vida pessoal com a coragem de ser, sobretudo, porque a mesma tem em comum o pensamento em polaridade e a observação das tensões e conflitos daí resultantes (TILLICH, 1996, p. 8). 56 A questão da vitalidade deve aparecer de forma emblemática na filosofia da vida de Friedrich Nietzsche, sobretudo na sua “vontade de poder”, inclusive, o próprio Tillich vai reconhecer essa aproximação (TILLICH, 2010, p. 211-212). É possível também aproximar esse vitalismo em alguns dos escritos do teólogo Dietrich Bonhoeffer. Em sua Ética o autor procurou estabelecer a reabilitação do vitalismo na categoria do natural. Ele diz: A vida natural é vida formada. O natural é forma inerente à própria vida e está a seu serviço (BONHOEFFER, 2002, p.86).

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medo, a coragem deve produzir a vitalidade (JUNIOR, 2003, p. 138). Para o nosso autor, a

vida inclui medo e coragem como elementos de um processo vital num equilíbrio cambiante,

mas essencialmente estável (JUNIOR, 2003, p. 138). O desequilíbrio de ambos os elementos

significa que a vida está condenada a ser destruída. Portanto, a vitalidade é o resultado de tal

processo de vida que contém esse equilíbrio e potência de ser. Assim, a coragem é “a

expressão da vitalidade perfeita” (JUNIOR, 2003, p. 138). Tal fenômeno teve sua expressão

última através do Novo Ser em Cristo Jesus.

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3. ENTRE KIERKEGAARD E TILLICH

Chegamos ao último capítulo da dissertação. Como informado na introdução,

pretendemos agora dedicar nossa atenção a descrever e analisar o estabelecimento relacional

entre da teologia a Paul Tillich com a filosofia de Søren Kierkegaard. Objetivamos com isso,

demonstrar nossa hipótese argumentativa, de que de fato existe, uma forte influência do

filósofo nas reflexões do teólogo, sobretudo, em relação ao problema da alienação e do

pecado, tendo como principal pano de fundo o conceito kierkegaardiano de desespero

humano, ou seja, sua antropologia. No decorrer desse trabalho, adotamos como metodologia

procurar estabelecer certa “autonomia” na descrição dos respectivos capítulos, permitindo ao

leitor a possibilidade de compreender mais detalhadamente cada autor de maneira mais

individual possível, ou seja, a partir de seus próprios textos, procurando não fazer nenhuma

relação precipitada e imediata. Toda tentativa hipotética de se traçar um caminho ou de

estabelecer uma análise comparativa entre dois grandes autores, só pode ser de fato efetuado

de maneira análoga. É preciso valorizar sempre a originalidade de cada autor, tendo o devido

cuidado para não estabelecermos uma fundição. Com base nisso, tal perigo é marcado pela

preocupação e cautela de não transformar Kierkegaard em Tillich e, nem tão pouco Tillich em

Kierkegaard. Em outras palavras, a estratégia metodológica serviu – pelo menos essa foi

nossa intenção – de tentar não executar uma espécie de amálgama superficial de conceitos.

Portanto, nos dois primeiro capítulos, nos propomos a citar expressamente de maneira

sistemática cada autor, a partir de suas obras, buscando ao máximo uma apresentação concisa

dos mesmos, pelos mesmos. O que também não garante em absoluto a imunidade acadêmica

das típicas famigeradas comparações. No entanto, essa parte, aliás, continua a ser

indispensável para a pesquisa, sobretudo, porque permite ao pesquisador bem como também

ao leitor, chegar o mais perto possível de seu objeto de estudo.

Essa situação, ao mesmo tempo de afinidade e diferença que caracteriza a relação

entre Kierkegaard e Tillich, pode favorecer o equívoco no uso de conceitos nominalmente

comuns, mas que adquirem sentidos diversos na medida em que funcionam em diferentes

registros discursivos. Como vimos, tanto a Kierkegaard quanto Tillich está de fato, fora de

uma perspectiva filosófica ou teológica apegada a certo objetivismo científico positivista.

Ambos procuraram se relacionar com a cultura vigente – seja como crítica ou como uso

metodológico – buscando no acontecimento o ponto de fuga para o peso de uma estrutura

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teológico-filosófica paralisante. Contudo, e com o risco de fazer equivalências apressadas, o

lugar do acontecimento vai estar situado diferentemente em cada uma de nossas formações

discursivas. Não se trata aqui de concluir ou estabelecer um juízo sobre a Kierkegaard e

Tillich. A perspectiva comparativa que adotamos não tem como finalidade a escolha ou

indicação de uma ou outra abordagem. O que se buscou neste trabalho foi apenas um

mapeamento das afinidades e diferenças entre estes dois autores, buscando uma interpretação

capaz de estabelecer uma melhor compreensão e precisão conceitual.

Assim, defendemos que toda e qualquer tentativa de buscar uma afinidade acadêmica

entre um filósofo sobre um teólogo, ou vice e versa, precisa sempre passar pelo

reconhecimento de que de fato existe algo de relevante neles, que possa perfeitamente ser

importado para o nosso atual debate, sobre a problemática da interdisciplinaridade entre

filosofia e teologia ou razão e fé. Inclusive, Kierkegaard e Tillich se apresentam como

verdadeiros representantes do dilema da interdisciplinaridade. Ora como críticos, ora

absorvendo conceitos, mas nunca ignorando o debate. Dito de outra forma, a pesquisa deve

apontar que os autores estão nos convidando a mais uma vez redescobrir a importância da

experiência de fé vivida (Kierkegaard) em um ambiente cuja correlata relação com a cultura

(Tillich) pode também nos tocar de maneira incondicional.

Objetivando o que fora dito, a divisão desse último capítulo será feita da seguinte

forma: Primeiro, faremos uma pequena incursão historiográfica de caráter panorâmico,

sobretudo do ambiente contextual de Kierkegaard e Tillich. Isto é, vamos defender a hipótese

de que tanto o filósofo dinamarquês, como o teólogo alemão, foram formados em um mesmo

ambiente teológico-filosófico, fazendo com que ambos estivessem inseridos em um mesmo

ambiente. Essa suposta influência mútua entre eles, é de fundamental importância para nossa

pesquisa, pois possibilita-nos uma análise comparativa mais detalhada, abrindo-nos uma via

ou um fio condutor mais concreto. Veremos que as discussões desencadeadas pela

instrumentalidade do iluminismo, do romantismo e do idealismo, refletem diretamente nos

trabalhos de Kierkegaard e Tillich.

Logo em seguida, na segunda seção, vamos estabelecer uma análise de como o próprio

Tillich entende a influência de Kierkegaard sobre o seu sistema teológico. Ironicamente, ela

foi denominada de A influência de Kierkegaard sobre Tillich segundo Tillich. Ou seja, como

o teólogo alemão absorveu as propostas de Kierkegaard e de que maneira esta foi importante

na construção de seu pensamento. Nesta seção, vamos contar muito com algumas citações das

aulas de Tillich ministradas no período em que esteve na Escola de Teologia da Universidade

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de Chicago durante a primavera do ano acadêmico de 1962-1963, publicadas posteriormente

com nome de perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX.

E, por fim, vamos comparar a evolução das concepções antropológicas de Kierkegaard

sobre os trabalhos de Tillich. Proporcionalmente, os conceitos de alienação, pecado e

salvação serão comparados em busca de uma compreensão a fim de esclarecer essa

problemática em maiores detalhes. Deve-se apresentar aqui, ao menos sumariamente, a

suposta influência de Kierkegaard na antropologia de Tillich, embora estejamos concisos de

que esta rápida apresentação não lhe possa fazer plena justiça, considerando que estamos

diante de uma temática bem mais ampla e profunda. Com efeito, Kierkegaard e Tillich,

erguem-se no limiar de uma nova idade de pensamento como portadores de enigmas que irão

desafiar-nos sem cessar. No epicentro dessa constelação de enigmas está o enigma do homem,

pois, para ambos os autores, na antropologia está a chave de compreensão de outros enigmas.

3. 1 O Panorama Contextual e a Influência Mútua

Para se compreender o grau de importância da temática estudada e, sobretudo, como a

mesma assume suas proporções em Kierkegaard e Tillich, é necessário melhor entendermos o

contexto filosófico- teológico em que ambos os autores estavam inseridos. Isto é, o mundo da

reforma protestante, em primeiro lugar na Alemanha e, simultaneamente, na Dinamarca.

Refiro-me ao chamado “liberalismo teológico”. Compreende-se por liberalismo teológico

(teologia liberal) a tentativa complexa de procurar estabelecer a “reconciliação” entre cultura

e fé (FARAGO, 2006, p. 159). Digo reconciliação, levando em consideração que em meados

dos séculos XVIII e XIX, seguida pelo século XX, a Europa passou por uma profunda

mudança de direção no modo de se fazer teologia, tendo como elemento central o fenômeno

do iluminismo. 57 A geração que pertence a Hegel estava ao mesmo tempo sobre a influência

de Kant, Fichte e Schelling (BECKENKAMP, 2009, p. 32). Assim, tendo como pano de

fundo a Revolução Francesa, ela está tomada pela ideia de uma potenciação da humanidade

57 Trata-se daquela filosofia hegemônica da Europa no século XVIII cuja principal característica está fundamentada em uma dedicada confiança na razão humana. Grosso modo, o iluminismo defende: a libertação em relação aos dogmas metafísicos, aos preconceitos morais, as superstições religiosas, às relações desumanas entre homens, às tiranias políticas, à defesa do conhecimento científico e técnico e dos inalienáveis direitos naturas do homem e do cidadão (REALE; ANTISERI, 2009b, p. 229). Do ponto de vista teológico, o iluminismo – sobretudo em sua versão inglesa – foi responsável pelo Deísmo. Como parte integrante do iluminismo: o deísmo é a religião racional e natural, é tudo aquilo, e só aquilo que a razão humana pode admitir (REALE; ANTISERI, 2009b, p. 224). Os principais representantes do movimento deísta são: J. Toland (1670-1722); M. Tindal (1657-1733); A. Collins (1676-1729); e L. Shaftesbury (1671-1713) (REALE; ANTISERI, 2009b, p. 225).

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capaz de mudar o rumo das futuras ordenações superiores da sociedade, cuja religiosidade é

principal (BECKENKAMP, 2009, p. 32). O ponto no qual toda filosofia sempre se encontrará

é em concordância ou em conflito com a consciência humana universal, sobretudo, o modo

como ela se relaciona com o supremo, ou seja, Deus – afirmava F. Schelling (SCHELLING,

1989, p. 157). Do ponto de vista filosófico, a caracterização do iluminismo assume dimensão

epistemológica, referente à constituição do conhecimento científico e, consequentemente, do

conhecimento teológico. Em se tratando da Alemanha, tal fenômeno foi agregado ou

responsável por desencadear outros tais como: o Romantismo e o Idealismo. 58

Contextualmente, tudo isso deve acontecer na chamada Escola de Tübingen (FARAGO, 2006,

p. 159). O respectivo instituto de Tübingen é considerado por muitos pesquisadores como

principal e mais expressivo centro de formação teológico-filosófica inclusive responsável pela

formação da força de trabalho de quase todo o serviço estatal e eclesiástico da região chamada

Suábia 59 na Alemanha (VACCARI, 2011, p. 167). Em sua matriz embrionária, o seminário

de teológico de Tübingen era considerado uma instituição relativamente conservadora,

sobretudo, por parte de seus dirigentes, que prezavam pela conservação do “bom e antigo

espírito” (VACCARI, 2011, p. 169). Nessa sua disposição, fechava-se a toda e qualquer

influência externa e procurava, por meio de estatutos sempre muito rígidos, contraporem-se às

inovações que começavam a afluir de toda parte, principalmente da França recém-tomada

pelos ares da Revolução (VACCARI, 2011, p. 169). O principal inimigo desse suposto

estandarte conservador do instituto era sem dúvida a filosofia kantiana.

Vaccari (2011) nos afirma que o impacto da filosofia de Kant na produção teológica

de Tübingen foi configurado a partir de três momentos importantes. (1) A negação da

filosofia kantiana, por conta de uma suposta afinidade com os ideais da revolução francesa e,

por ser contrária ao dogma da revelação divina; (2) A apropriação da moral kantiana,

58 Também conhecido como Sturm und Drang (tempestade e ímpeto), o romantismo é caracterizada por sua reação contrária ao iluminismo. Diferente do iluminismo que procurava forjar seus sistemas filosóficos unicamente sobre a fria razão, pois via ela como único órgão da verdade, o romantismo prezava em salientar a intuição e fantasia. Isto é, sua característica essencial foi à revalorização do conteúdo sobre a forma (REALE; ANTISERI, 2009, p. 8). Do ponto de vista teológico, o romantismo é panteísta, no sentido de valorizar a relação do homem com a natureza, com o infinito e como o eterno (REALE; ANISERI, 2009, p. 10). Os fundadores da escola romântica são: os irmãos A. e F. Schlegel, Novalis, F. Schleiermacher, F. Hölderlin, F. Schiller, J. Goethe (REALE; ANISERI, 2009, p. 15). Sobre o idealismo: é correto afirmar que se trata de um movimento ou escola filosofia cuja função ou disposição repousa sobre a problemática desencadeada da filosofia iluminista kantiana (HARTMANN, 1983, p. 9). Com efeito, seguindo a mesma linha de raciocínio – do ponto de vista teológico – o epicentro das controversas em Tübingen está posto e concentrado na recepção de Kant, seja negando a autonomia absoluta da razão na incognoscibilidade de Deus ou supostamente aderindo a sua moral (VACCARI, 2011, p. 168). 59 Região administrativa do Estado Alemão da Baviera, cuja capital é cidade de Augsburgo.

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sobretudo no aspecto dos postulados, como estandarte racional para “demonstrar” a

imortalidade da alma e a prova da existência de Deus (VACCARI, 2011, p. 169-170).

Sobre o primeiro momento, a atitude do instituto de Tübingen foi de negar a filosofia

de Kant, sob o pretexto de “resguardar” alguns dos princípios básicos da cultura Alemã pós-

reforma. Primeiro, trata-se da defesa daquela perspectiva teológico-luterana do

reconhecimento universal do sacerdócio de todo crente (LUTERO, 2009, p. 234). Tal crença

favoreceu e muito a doutrina cristã de que existe uma revelação ou iluminação divina no

indivíduo. O instituto de Tübingen vai procurar defender também a noção luterana da suposta

submissão às autoridades seculares (LUTERO, 2009, p. 79-80). Nesse sentido, na medida em

que as propostas de Kant afirmam a não existência de uma cognoscibilidade de Deus pela

instrumentalidade da razão pura (KANT, 1999, p. 34) 60 como também a afinidade de seu

pensamento com a revolução francesa, fizeram com que sua filosofia fosse primeiramente

negada pelos teólogos de Tübingen. Assim, para Kant Deus não deveria ser compreendido

pela razão, nem tão pouco abarcado pelos sistemas teológicos, mas deveria ser considerado

pura e simplesmente um objeto de fé (VACCARI, 2011, p. 169). O mesmo deve ocorrer com

a suposta afinidade do pensamento kantiano com o espírito de liberdade dos novos tempos

advindos da França. Inflamados por esses rumores revolucionários, os estudantes formaram

uma forte oposição ao Duque e ao Consistório, sobretudo através de constantes boicotes às

aulas e em pequenas insurreições internas (VACCARI, 2011, p. 169).

Em suma, é sobre esta plataforma que a filosofia de Kant vai aparecer no Instituto

teológico de Tübingen em torno de 1790. Isto é, vendo que não havia outro meio de combatê-

la, os teólogos daquela instituição passaram a utilizá-la. O modus operandi como isso deve

acontecer foi à “utilização instrumental” da mesma para fins teológico-confessionais.

Doravante, ao perceberem que seria impossível ignorar essa filosofia, dado o seu forte apelo

após 1790 em todos os círculos intelectuais da Alemanha, os teólogos de Tübingen passam

também a estudá-la e a ensiná-la em suas aulas (VACCARI, 2011, p. 171). Essa recepção não

acontece de maneira espontânea, mas, sobretudo por meio da disputa teológico-filosófica,

tendo como lema: A interpretação teológica da moral kantiana (VACCARI, 2011, p. 172).

Ora, se, por um lado, a teoria da revelação ensinada no Instituto era contrária à filosofia de

Kant, na medida em que esta defende a autonomia da razão em relação à fé, por outro, a

própria filosofia kantiana supostamente forneceria em sua Crítica da razão prática, elementos

capazes de readmitir a ideia de Deus, como uma ideia de sumo bem, reconhecida através de

60 Em sua Crítica da Razão Pura, Kant nega ao entendimento a possibilidade do conhecimento dos objetos do mundo supra-sensível e também à razão a possibilidade de uma demonstração da existência de Deus.

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moral (VACCARI, 2011, p. 172). O propósito deles está em demonstrar, que Deus enquanto

instância teórica sobrevive no interior da própria Crítica kantiana (KANT, 1999, p. 247). 61

Diante desses acontecimentos em Tübingen, três grandes filósofos alemães (Fichte, Schelling

e Hegel), vão imediatamente procurar tecer suas conclusões. Todos os três – cada um ao seu

modo – vão influenciar decididamente o pensamento de Kierkegaard e Tillich. O primeiro

deles foi Fichte. Em seu Ensaio de uma crítica a toda revelação de 1792, o autor combate

esse tipo de equívoco em torno da filosofia kantiana. Nesta obra – que inclusive foi atribuída a

Kant – 62 Fichte tenta desabilitar em absoluto toda e qualquer tentativa humana de continuar

defendendo a crença dogmática de uma suposta revelação divina fora dos limites da razão.

Trata-se de “fenômeno estranho”, afirma Fichte à defesa teológica de que haja uma revelação

exterior ao homem (FICHTE, 1998, p. 7). Ele diz: A razão dá a si mesma, independente de

qualquer coisa fora dela, por meio de uma própria espontaneidade absoluta, uma lei

(FICHTE, 1998, p. 8). É justamente isso que os teólogos de Tübingen não entendiam. A

crítica Kant deve obrigatoriamente incluir tanto à teologia como também doutrina da

revelação, pois ambas só podem ser efetivadas a partir de ideia de Deus que se revela

extraordinariamente de maneira sobrenatural. É preciso reconhecer as dificuldades de se

implantar automaticamente o argumento Teísmo do ponto de vista transcendental

(ROSALES, 2012, p. 38). Proporcionalmente, para Fichte, a religião consiste numa vida

moralmente boa, sem deixar para Deus o que outro deve fazer em prol da realização da razão

no mundo, ou seja, deve se trabalhar, não orar; fazer o que é devido e não esperar de Deus

algo que só homens podem fazer (ROSALES, 2012, p. 57). Esse Deus é, na realidade, a raiz

intersubjetiva da mesma moralidade, a que abre o reino dos seres racionais; o divino é

propriamente a comunidade dos espíritos livres, o Espírito Santo como comunidade ético-

espiritual dos justos (ROSALES, 2012, p. 60). Para Fichte, como exercício de sua liberdade, o

Eu que põe a sim mesmo (FICHTE, 1992, p. 46). Tais princípios são incompatíveis com a

então “teologia tradicionalista” de Tübingen. Portanto, para Fichte a religião não pode em 61 O Deus dogmático escreve G. Lebrun – ressurge sempre da exigência que o põe apenas na Ideia. Isto é, tudo seria simples se houvesse de um lado uma teologia condenada, do outro uma ciência positiva a ser constituída, mas não se trata ainda de positividade, mas apenas de saber racional e, é por isso que a linguagem teológica permanece inevitável, fazendo com que Deus continuasse sendo uma ideia necessária (LEBRUN, 2002, p. 211). Em função dos limites impostos ao entendimento e àquilo que podemos conhecer, Kant confere à razão prática uma relação necessária com os objetos do mundo supra-sensível (BUENO, 2005, p. 63). É nessa perspectiva que é possível falar em uma fé racional em Kant (BUENO, 2005, p. 69). Portanto, a proposta de Kant na Crítica da Razão Prática funda-se, na possibilidade e mesmo na necessidade de admitirmos a existência de Deus em função das exigências de nossa razão, especialmente as da razão prática (KANT, 1999, p. 248). 62 Seu ensaio obteve a aprovação de Kant, que pediu a seu próprio editor para publicar o manuscrito. O livro surgiu em 1792, sem o nome nem o prefácio do autor, e foi saudada amplamente como uma nova obra de Kant. Quando Kant esclareceu o equívoco, Fichte tornou-se famoso da noite para o dia e foi convidado a lecionar na Universidade de Jena.

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geral fortalecer nosso respeito pela lei moral, porque todo respeito por Deus se fundamenta

meramente em sua reconhecida concordância com essa lei e, portanto, no próprio respeito à

lei (BECKENKAMP, 2009, p. 60).

Na mesma direção deve caminhar Schelling. Isto é, a postura de criticar o uso

teológico da filosofia moral de Kant para fins conservadores. Em uma correspondência entre

ele e Hegel, Schelling descreve os acontecimentos de Tübingen desastrosos. Schelling

descreve em Hegel o ambiente da seguinte forma: [...] todos os dogmas possíveis são agora

carimbados como o postulado a razão prática e onde nunca são suficientes provas teórico-

históricas, ali a razão prática resolve os problemas (SCHELLING, 2011, p. 177).

Evidentemente, Schelling visa demonstrar que os postulados da filosofia kantiana estavam se

voltando contra o próprio Kant, visto que os teólogos de Tübingen, por não entenderem Kant

acabavam erigindo um verdadeiro sistema dogmático ainda mais perigoso (VACCARI, 2011,

p. 182). 63

Em se tratando de Hegel, temos um comportamento peculiar. Hegel desenvolve um

sistema filosófico em uma perspectiva basicamente histórica (BECKENKAMP, 2009, p. 19).

O fenômeno de Tübingen, ou seja, à questão geral, por que os homens procuram por uma

verdade que lhe é revelada pela razão prática, através de uma fonte de autoridade

supostamente externa? Essa questão sobre a origem da positividade de religião, que poderia

inclusive ser pensada a partir de uma filosofia transcendental, Hegel dará uma resposta

eminentemente histórica (BECKENKAMP, 2009, p. 19). Para Hegel o problema dos teólogos

de Tübingen não era uma mera guerra doutrinária, de argumentos contra argumentos, mas um

comprometimento bem concreto da teologia com os mecanismos do poder despótico

(BECKENKAMP, 2009, p. 83). Por trás do combate de ideias, Hegel vê como sustentáculo

real da ortodoxia, estruturas ideológicas bem concretas de poder, cuja história é longa e

remonta aos primeiros séculos do cristianismo (BECKENKAMP, 2009, p. 84). Nessa esteira

argumentativa – ao longo de sua produção filosófica – Hegel assumiu três grandes

63 A maneira como Schelling lida com a postura dos teólogos de Tübingen em meados de 1790 não deve ser encarada de forma definitiva. Isto é, ela precisa ser pensada a partir de um contexto maior. Ela precisa ser pensada, sobretudo, em relação às três etapas do seu pensamento. Nos seus primeiros escritos, Schelling estabeleceu uma espécie de oscilação entre o caráter “transcendental” e a afirmação “ontológica” do mundo. Tal atitude acontece na aproximação das posições críticas (Kant e Fichte) e do dogmatismo (Espinosa). O respectivo período abrange o início de sua produção até o texto Sobre a Essência da Liberdade de 1809 sendo dominando pelo conceito de “intuição intelectual (PUENTE, 1997, p. 15). O período seguinte – intermediário – que se estende desde o texto Sobre a Essência da Liberdade Humana até as Preleções de Erlangen de 1821, é o mais nebuloso, mas ao mesmo tempo mais fecundo, pois nele se esmorece a confiança de Schelling na força da razão (PUENTE, 1997, p. 16). A última fase que, de certo modo, já se encontra implícita nos escritos da fase intermediária situa-se exemplarmente nas Preleções de Erlangen de 1820/21, nas quais Schelling consuma a suprafunção da “intuição intelectual” no “êxtase do eu” (PUENTE, 1997, p. 16).

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procedimentos: (1) Criticou a positividade da religião, pois a mesma tornou-se a principal

responsável pela implantação e sobrevivência de governos despóticos, tendo como base a

filosofia kantiana; 64 (2) Criticou a moral kantiana, sobretudo o postulado do sumo bem, por

entender que o mesmo não só promove a dicotomia sujeito-objeto, como também continuava

fornecendo combustível o retorno ou a manutenção de uma suposta positividade da

religião; 65 (3) Estabeleceu uma filosofia da “síntese universal”, cujo fim último repousa

sobre a tentativa de unidade entre sujeito e objeto, finito e infinito, humano e divino, religião

e cultura, estado e Igreja.66

O resultado ou desdobramentos dessas discussões vão desencadear em Tübingen uma

única reação, a saber: a apropriação do sistema hegeliano como principal marco para o

desenvolvimento teológico. Isto é, se anteriormente o grande desafio estava na inclusão da

filosofia kantiana, como principal instrumento de trabalho teológico, a tarefa agora dos

teólogos do instituto, era a inclusão absoluta do sistema pós-kantiano mais influente da

Alemanha daquele momento, a saber, a filosofia de Hegel. Grosso modo, a teologia liberal da

Escola de Tübingen passou a utilizar o método histórico-crítico ao estudo do cristianismo,

principalmente do Novo Testamente em particular à história da Igreja em geral (FARAGO,

2006, p. 159-160). Tal fenômeno teve como principal protagonista os trabalhos dos teólogos

alemães: Ferdinand C. Baur (1792-1869) e David Strauss (1808-1874). Strauss por exemplo,

procurou defender a tese hegeliana segundo a qual a religião havia expressado, sob forma de

representação, aquilo que a filosofia deveria elevar ao grau de conceito (FARAGO, 2006, p.

64 Joãosinho Beckenkamp (2009), p. 84, citando Hegel, afirma, que o mesmo defendeu que a religião positiva e política formaram uma parceria perigosa e duradoura. Tal formato de religiosidade ensina o que o despotismo queria, isto é, o desprezo do gênero humano, sua incapacidade para qualquer bem, de ser algo por si mesmo (HEGEL, 2009, p. 84). 65 Kant deixa uma lição importante: o objeto permanece sempre distinto do sujeito. Sempre inacessível sempre fugidio. Ora, nesse sentido, a captura do objeto não precisa tornar-se uma obsessão, já que no entender de Kant, o conhecimento, o esforço de redução do objeto ao sujeito permite que o conhecimento do objeto seja tanto quanto o sujeito consegue aproximar-se do objeto (NOVELLI, 2008, p. 102). Proporcionalmente, a dicotomia sujeito-objeto fica assim cimentada. Por conseguinte, não há reconciliação viável entre sujeito e objeto. No máximo pode-se pretender um convívio pacificado e convencionado (NOVELLI, 2008, p. 102). É precisamente aqui que Hegel se opõe a Kant. Para Hegel, o sujeito não pode ser delimitado pelo objeto, por ser ele quem efetiva o objeto. Hegel não nega a exterioridade do objeto nem as suas especificidades, mas não aceita que o sujeito não possa ter em si o objeto (NOVELLI, 2008, p. 102). Nesse sentido, Hegel indica que o sujeito não se põe por si só, mas através da relação com o seu outro, isto é, o objeto. Dessa forma, não somente o sujeito atribui ser ao objeto. Se, de fato, é a relação que funda o sujeito e objeto, então um sem o outro não pode se sustentar. Por conseguinte, sujeito e objeto podem se reconhecer um no outro (NOVELLI, 2008, p. 102). 66 O dualismo epistemológico do sistema kantiano é rejeitado ao extremo nas propostas finais de Hegel. O dualismo Deus-homem é superado pelo monismo deus humanizado ou homem divinizado (NOVELLI, 2008, p. 103). Ao se tornar homem na pessoa de Jesus, o infinito e o absoluto (Deus) aproximou-se do finito (homem), posteriormente ao ressuscitar, ele elevou-se ao finito no âmbito do infinito. Portanto, em sua síntese universal, Hegel propõe o reconhecimento de que a totalidade se torne efetiva, posto que somente por ela pode-se obter a realidade do ser (NOVELLI, 2008, p. 117). A lei não reduz tudo a si, mas é por tudo reduzida ao que é, isto é, expressão do todo e do empenho histórico na direção da unidade (NOVELLI, 2008, p. 116).

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161). Proporcionalmente, para ele o dogma cristão possuía a verdade, todavia, de maneira

inadequada. Assim, embora Strauss utilizasse como exemplo a filosofia hegeliana, ele

também passou a desenvolver uma metodologia peculiar. Enquanto Hegel havia elevado a

“representação religiosa” em nível de linguagem racional, a partir de uma hermenêutica

filosófica, Strauss a reduzia a um mito livremente inventado (FARAGO, 2006, p. 161). Nesse

sentido, Strauss não estava muito preocupado em pensar os pressupostos do Jesus Histórico,

mas sim o Cristo da Fé. O resultado final de sua desmitologização foi: “o Deus-homem era a

humanidade”. Sua “nova fé” consistia em uma doutrina ética, religiosamente inspirada e

apropriada ao homem moderno (FARAGO, 2006, p. 161).

Agora, sim, podemos tocar a temática da nossa sessão. Isto é, como é possível falar de

uma influência mútua entre Kierkegaard e Tillich? Ora, a partir do contexto apresentado,

veremos como isso de fato é possível. Começamos com Kierkegaard. Ele não duvida de que a

Dinamarca (terra natal de Kierkegaard) enquanto “província denominacional” da Igreja

Lutera Alemã tenha recebido de fato, real influência dos desdobramentos teológicos

promovidos pela Escola de Tübingen. Inclusive, com ironia e amargura Kierkegaard

costumava chamar a Dinamarca de “o pais encantado da mediocridade”, sobretudo numa

época em que a vida cultural estava dominada quase que por completo pela vida intelectual

alemã (HARBSMEIER, 1993, p. 194). Nesse sentido, enquanto muitos viam nesta ligação

somente um lado positivo, tendo em vista que para alguns, o dinamarquês não seja

considerada uma língua filosófica, Kierkegaard esboçava um movimento cultural de

identidade existencial (HARBSMEIER, 1993, p. 194). Para Kierkegaard, o movimento

teológico racionalista liberal não podia explicar a sério a singularidade do evento de Cristo,

que revela de modo único e perfeito a profundidade da vocação divino-humana à qual cada

homem é chamado. Ele diz: Quando se examina o cristianismo como um documento histórico, o importante é obter informações inteiramente confiáveis sobre o que a doutrina cristã propriamente é. Se o sujeito investigador estivesse infinitamente interessando em sua relação para com esta verdade, iria nesse ponto logo desesperar, porque nada é mais fácil de perceber do que em relação ao histórico a maior de todas as certezas ainda é apenas uma aproximação, e uma aproximação é algo pequeno demais para que se construa sobre ela alguma felicidade, e é tão diferente da felicidade eterna que nenhum resultado pode surgir dela (KIERKEGAARD, 2013, p. 29).

O próprio Kierkegaard – de maneira provocante – utilizou o termo “teologia crítica

erudita” para identificar a utilização do método histórico-crítico na produção teológica de sua

época (KIERKEGAARD, 2013, p. 31). Uma das frases emblemáticas e também mal

interpretada de Kierkegaard é “a verdade é subjetividade” (KIERKEGAARD, 1971, p. 236).

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A mesma não deve ser considerada como uma espécie de sinônimo de subjetivismo, em que

supostamente cada qual escolhe a verdade que melhor lhe convier (REBLIN, 2006, p. 71).

Ora, a especificidade da verdade subjetiva kierkegaardiana , é contrária daquela suposta

“verdade objetiva” do pensamento de Hegel, cuja finalidade reside em se propor um sujeito

abstrato, absoluto, que engolia completamente a individualidade (REBLIN, 2006, p. 71). Na

perspectiva de Kierkegaard, este sistema teológico é uma ilusão, pois só poderia gerar no

pesquisar o desespero, cuja saída foi “resolvida” ou pseudominimizada pela defesa de que os

relatos dos evangelhos fossem de fato, narrativas míticas. 67 A resposta de Kierkegaard a esse

embate teológico estava em procurar demonstrar que a verdade do cristianismo, ou seja, a sua

capacidade de proporcionar uma felicidade eterna, não poderia ser apreendida na

“objetividade sistêmica” do atacado, mas sim, na “subjetividade existencial” do varejo.

Prossegue Kierkegaard: Assim, não há aqui uma questão a respeito da verdade do cristianismo, no sentido de que, se fosse resolvida, a subjetividade haveria de aceitá-la com desembaraço e boa disposição. Não, a questão diz respeito à aceitação dessa verdade por parte do sujeito, e aqui deve ser considerado como ilusão da perdição (que permaneceu ignorante do fato de que a decisão reside na subjetividade), ou como pretexto da enganação (que empurro a para longe a decisão, como um tratamento objetivo, no qual não há qualquer decisão em toda eternidade) [...] O Cristianismo quer, de fato, dar de presente ao indivíduo uma felicidade eterna, um bem que não é distribuído no atacado, mas é só para um, um único de cada vez [...] Assim o cristianismo protesta contra toda objetividade; quer que o sujeito se preocupe infinitamente consigo mesmo. Aquilo pelo que ele pergunta é a subjetividade; só nela se encontrará a verdade do cristianismo, se é que ela aí estará; objetivamente, ela simplesmente não existe. Se ela estiver só num único sujeito, então estará apenas nele, e haverá mais alegria cristã no céu por este único do que por toda a história do mundo pelo sistema (KIERKEGAARD, 2013, p. 133-134).

Ainda sobre o mesmo tema, em se tratando de Tillich, temos uma resposta

supostamente mais articulada. Tillich está situado entre a positividade e negatividade. Não

podemos nos esquecer de que sua teologia é uma teologia forjada na fronteira e, estar na

fronteira, não se restringe a interdisciplinaridade, mas também na capacidade de equacionar

conflitos entre o tradicional e o novo. Isto é, ele reconhece os esforços teológicos das

pesquisas sobre o Jesus histórico ao mesmo tempo em que denuncia o fracasso desta mesma

investigação (TILLICH, 2005, p. 392). Do ponto de vista da positividade, o protestantismo

deveria se sentir orgulhoso por ter a coragem de submeter os escritos sagrados de sua própria

identidade a uma análise crítica através do método histórico (TILLICH, 2005, p. 398). 67 Segundo Kierkegaard, as propostas da teologia acadêmica são de fato tão angustiantes que o simples fato histórico de Martinho Lutero ter rejeitado a Epístola de Tiago, considerando-a inclusive como “palha”, já é o suficiente para deixar qualquer pesquisador honesto em profundo desespero (KIERKEGAARD, 2013, p. 32). Nesse sentido, os desdobramentos da teologia liberal na consideração de que as narrativas dos evangelhos de Jesus devem ser consideradas como mito, nada mais é do que se não, o reflexo direto da inapropriada e frustrante metodologia hegeliana.

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Tal método foi o principal responsável por permitir que a teologia gozasse do rigor acadêmico

com que se emprega todo e qualquer bom trabalho historiográfico, sobretudo na medida em

que também permitiu com que a mesma aprendesse a discernir os elementos empiricamente

históricos, dos elementos lendários e mitológicos que integram os relatos bíblicos de ambos

os testamentos (TILLICH, 2005, p. 398). 68 Ele também nos alertou que quando o teólogo

toma uma decisão no âmbito da história, o mesmo pode fazê-lo somente como historiador, e

não como interprete da fé, ou seja, ele não pode atribuir validez dogmática aquilo que, do

ponto de vista histórico, apenas são prováveis (TILLICH, 2005, p. 398). Por outro lado, a

consequência dessa mesma atitude corajosa, acabou sendo considerada negativa, sobretudo

por desencadear a percepção de antigas problemáticas não resolvidas. Nas palavras de Tillich

temos: Desde quando se aplicou à literatura bíblica o método científico de pesquisa histórica, certos problemas teológicos que jamais haviam sido completamente esquecidos ganharam uma intensidade desconhecida nos períodos anteriores da história da igreja [...] Em muitos aspectos, essa tentativa era corajosa, nobre e extremamente significativa. Suas conseqüências teológicas foram inúmeras e bastantes importantes. Mas, se pensarmos em sua intenção básica, a tentativa da crítica histórica de encontrar a verdade empírica sobre Jesus de Nazaré foi um fracasso. O Jesus histórico, e o Jesus que está por trás dos símbolos de sua recepção como Cristo, não só não apareceu, ma também se distanciou cada vez mais à medida que avançava a crítica histórica [...] o resultado desta nova (e muito antiga) problemática não é uma imagem do chamado Jesus histórico, e sim a percepção de que, por trás da imagem bíblia, não existe uma imagem que pudéssemos considerar cientificamente provável (TILLICH, 2005, p. 392-393).

Essa situação não se deve às deficiências passageiras da pesquisa histórica que um dia

talvez possam ser superadas, afirmava Tillich (TILLICH, 2005, p. 393). Trata-se da

incongruência da natureza das próprias fontes. Isto é, nem as tentativas de desmitologização

absoluta das narrativas bíblicas e nem tampouco a elaboração de uma espécie de “Gestalt de

Jesus”, serão suficientes para resolver o problema. Para Tillich desmitologização total é

impossível (TILLICH, 2005, p. 324). Sempre haverá a necessidade de uma associação

68 Um fator importante a ser lembrado é que Tillich não deixa de ser um teólogo bíblico. No entanto, tal afirmação precisa ser entendida de maneira articular. Ele diz: A Bíblia é o documento original sobre os eventos em que está baseado o cristianismo (TILLICH, 2005, p. 50). Em contra partida, pela instrumentalidade de seu método de correlação, o teólogo nos convida a rejeitar as propostas do biblicismo neo-ortodoxo, de que a Bíblia é a única fonte da teologia. Isto é, a mensagem bíblica não pode ser entendida e não poderia ter sido recebida sem uma preparação da religião e da cultura da humanidade. Por conseguinte, esta mesma mensagem não teria sido mensagem para ninguém, incluindo o próprio teólogo, sem a efetiva participação experiencial da igreja e de cada cristão. Logo, afirma ele: [...] se a “Palavra de Deus” ou o “ato da revelação” é considerado a fonte da teologia sistemática deve enfatizar que a “Palavra de Deus” não está limitada às palavras de um livro e que o ato da revelação não se identifica como a “inspiração” de um “livro de revelações”, mesmo que seja o documento da “Palavra de Deus” final, plenitude e critério de todas as revelações. A mensagem bíblica abrange mais (e menos) do que os livros bíblicos (TILLICH, 2005, p. 50). Nesse sentido, Tillich advoga a importância de reconhecermos que a teologia possui fontes adicionais, além da Bíblia.

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elementar como símbolo, pois o retorno do simbólico não só ajuda o trabalho da apologética,

como também aproxima a labor teológico para mais perto da experiência de fé. Assim, como

não é possível o estabelecimento de uma “Gestalt de Jesus” totalmente desassociado do

conteúdo histórico, ou seja, a pesquisa histórica não pode traçar uma imagem essencial,

sobretudo depois de eliminar todos os possíveis traços particulares, considerando-os

questionáveis (TILLICH, 2005, p. 393).

Antes de finalizar essa sessão, outro fator importante, que é extremante necessário

acrescentar, é que tanto Kierkegaard como Tillich, devem utilizar – cada uma ao seu modo –

alguns elementos da filosofia F. W. J. Schelling (1775-1854). Diversos pesquisadores de

ambos os autores, confirmam essa realidade. Assim, não visando ao estudo exaustivo sobre o

tema, mas apenas uma abordagem introdutória, contaremos com os trabalhos de Jon Stewart

(2011) e Eduardo Gross (2004).

Em se tratando de Søren Kierkegaard, é possível perceber traços concretos dessa

influência, sobretudo quanto às criticas de Schelling ao pensamento Hegel (STEWART, 2011,

p. 238). Esta interpretação sobre Kierkegaard não é muito comum. Inclusive, parece que

estaríamos diante de um tremendo equívoco. Isto é, a ênfase que Kierkegaard costuma atribuir

à vivência imediata do indivíduo (a existência) parece ser o extremo oposto do espectro que

pairava sobre qualquer forma de idealismo (STEWART, 2011, p. 237). No entanto, utilizando

como fio condutor o conceito kierkegaardiano de Realidade, J. Stewart (2011) faz alguns

apontamentos importantes, sobre a possível relação entre Kierkegaard e Schelling, que são:

(1) O encontro do Jovem Kierkegaard com Schelling em Berlim como elemento detonador

para o desenvolvimento de uma filosofia da realidade; (2) A presença da noção de realidade

de Schelling no conceito de Angústia; (3) A continuação do conceito de realidade

schellinguiano no pós-escrito às migalhas filosóficas. Seguindo essa linha de raciocínio,

Stewart inicia seus argumentos, afirmando que o encontro do jovem Kierkegaard com

Schelling 69 foi extremamente proveitoso para o futuro das reflexões do filósofo dinamarquês

(STEWART, 2011, p. 243). Nesse sentido, o ponto cardeal dessa possível associação,

repousaria sobre a questão ou a noção de realidade. Utilizando-se do testemunho ocular do

filósofo Frederik Christian Sibbern (1185-1872), professor de Kierkegaard na Universidade

de Copenhague, Stewart defende seu posicionamento. Segundo o mesmo professor, quando

era estudante, Kierkegaard o teria interrompido com o seguinte questionamento: qual a

69 Kierkegaard foi para Berlim depois de defender sua dissertação de Mestrado no Outono de 1841 para participar de curso oferecido por F. W. J. Schelling. Ele inclusive permaneceu em Berlim no período de 25 de Outubro de 1841, a 06 de Março de 1842 (STEWART, 2011, 243).

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verdadeira relação entre a filosofia e a realidade? (STEWART, 2011, p. 240). Tal

testemunho demonstra-nos que, desde muito cedo, Kierkegaard apresentava uma espécie de

inquietação entre o mundo abstrato da filosofia sistêmica, e a realidade concreta da existência

humana. É justamente essa a principal razão que fez com que ele fosse a Berlim para assistir

as palestras de Schelling. Naquela ocasião, Schelling é quem melhor representava uma

possível opção contra Hegel, cuja possibilidade se encontrava a partir de seu conceito de

realidade. Em suas palestras, Schelling teria tratado a noção de realidade de uma forma tão

expressiva, que imediatamente chamou a atenção de Kierkegaard como sendo uma

abordagem potencialmente proveitosa (STEWART, 2011, p. 243). 70 Grosso modo, em suas

críticas ao sistema hegeliano, Schelling o acusaria de reflexão extremamente abstrata, por

construir seus argumentos supostamente desconectados da realidade concreta (STEWART,

2011, p. 244). Segundo a interpretação de Stewart – em Schelling –, "conhecimento" equivale

a conhecimento empírico. Proporcionalmente, a consciência empírica é a capacidade de

comprovação da existência das coisas no mundo, ou seja, todo conhecimento é conhecimento

de algo que existe (STEWART, 2011, p. 245). Por contraste, o pensamento conceitual ou

abstrato por si mesmo não equivale ao conhecimento. Trata-se de uma familiaridade com o

próprio conceito, mas o conhecimento só vem quando se encontra um exemplar desse mesmo

conceito no mundo real. Assim, quando se vê ou se percebe algo, se reconhece como parte de

um conceito especificamente verdadeiro (STEWART, 2011, p. 245). Futuramente, essa

mesma abordagem vai aparecer em duas obras importantes de Kierkegaard. No seu Conceito

de Angústia de 1834; e no seu Pós- Escrito às Migalhas Filosóficas de 1846. Em ambas as

obras existem semelhança entre Schelling e Kierkegaard, vão aparecendo ora de forma direta

– tendo inclusive citações de referência – e, ora de forma indireta, onde embora o autor não

atribua ao mesmo, é perceptível a comparação. Por exemplo, no Conceito de Angústia, a

discussão começa na introdução ao trabalho, quando Virgílio Haufniensis, (pseudônimo de

Kierkegaard) utilizando-se de muita ironia, apresenta-nos um relato supostamente positivo da

importância do sistemático, e do pensamento científico, o que ele acredita que é necessário,

70 A relação entre Kierkegaard e Schelling é considerada polêmica. Em alguns momentos, Kierkegaard tornou-se impaciente com Schelling, cuja proposta inicial parecia ser tão promissora. Por exemplo, em uma carta escrita ao seu irmão P. C. Kierkegaard, afirma que a partir de fevereiro de 1842, ele diz: "Schelling jorra o absurdo mais insuportável." Nesse mesmo período, Kierkegaard declara que literalmente parou de ir às aulas, e uma vez que não há mais nada para ele fazer em Berlim e, que ele iria voltar para Copenhague (STEWART, 2011, p. 244). Por outro lado, concomitantemente, deve-se notar que, enquanto ele estava participando de palestras de Schelling, ele também estava indo regularmente às palestras do hegeliano Karl F. Werder (1808-1888), que estava dando um curso de Ciência da Lógica de Hegel. Isto é, Kierkegaard poderia perfeitamente testemunhar em primeira mão, aquela típica análise abstrata das categorias da metafísica. Naquele contexto, assistir a palestras do Werder foi certamente um novo lembrete das reais limitações da filosofia sistêmicas. Isso tornou ainda mais forte o contraste que a filosofia de Schelling poderia lhe oferecer (STEWART, 2011, p. 244).

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sobretudo para evitar confusões no reino acadêmico das bolsas de estudos (STEWART, 2011,

p. 249). 71 Todavia, ele assegura que esse mesmo pensamento científico e sistêmico, é incapaz

de abarcar a realidade existencial, sobretudo por que esta mesma realidade não pertenceria às

categorias da lógica (STEWART, 2011, p. 249). 72 Haufniensis considera ser uma confusão

entre as diferentes esferas: a lógica e a existência. Os hegelianos fazem uso das categorias de

“realidade” e "existência" em suas obras sobre metafísica (lógica). Mas, de acordo com

Haufniensis, isto equivale a uma grave distorção desses conceitos e confunde a relação entre

as duas esferas separadas. A lógica é necessária, mas a existência e a atualidade são

contingentes (STEWART, 2011, p. 249). 73 Ainda no Pós-Escrito, é possível perceber

abordagens de semelhante envergadura, sobretudo quando neste texto Kierkegaard repete em

um tom mais polêmico as críticas de que ele emitiu em seu Conceito de angústia, sobre a

confusão das esferas envolvidas quando se tenta incorporar realidade concreta da existência

humana em um sistema de ciência ou conceitos (STEWART, 2011, p. 250). 74 Ora, para

Kierkegaard, o sistema e a existência não se deixam pensar conjuntamente, visto que, para

pensar a existência, o pensamento sistêmico precisa pensá-la como “suspensa”, e, portanto,

não como existente. Trata-se de um paradoxo, pois a realidade da existência é o que abre

espaço, enquanto que o sistêmico é a tentativa de totalidade e completude, que supostamente

reúne (STEWART, 2011, p. 251). 75

Em se tratando de Paul Tillich, os números não são menores. Segundo Eduardo Gross,

não era para ser menos, levando em consideração que Tillich defendeu duas teses acadêmicas

sobre a filosofia de Schelling (GROSS, 2004, p. 80). Nesse sentido, o autor deve apontar pelo

menos três grandes aspectos que demonstra a influência de Schelling no pensamento de

Tillich. O primeiro aspecto repousa sobre a questão da Ontologia Voluntarista (GROSS,

2004, p. 81). Em geral, as formulações da dialética entre as potências apresentadas por

Schelling servem de base tanto para a interpretação que Tillich faz de Schelling em

Misticismo e Consciência de culpa, quanto para sua própria elaboração das concepções de

razão, abismo do ser, demoníaco e trindade. Ora, enquanto o elemento racional é chamado de

“formal”, a profundidade simbolizada com o termo “abismo” aponta para o caráter inefável e

infinito que precede a razão (GROSS, 2004, p. 85). Ao tratar de exemplos tirados do

misticismo, ele aponta para o mistério que está além ou aquém da razão, como sendo o seu

71 KIERKEGAARD, 2011, p. 11-12 72 KIERKEGAARD, 2011, p. 12 73 KIERKEGAARD, 2011, p. 12 74 KIERKEGAARD, 2013, p. 124 75 KIERKEGAARD, 2013, p. 124

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fundamento e abismo (GROSS, 2004, p. 86). Um segundo aspecto da ontologia de Schelling

utilizada por Tillich é o emprego da dinâmica das “potências” para análise de situações

históricas. Aquelas “potências” recebem outros nomes, são chamadas de “polaridades” ou de

“princípios”, mas também ao mesmo tempo de tensão em busca da síntese. Trata-se das

ambiguidades da vida (GROSS, 2004, p. 90). Este exemplo é perceptível na estrutura

elaborada por Tillich que são: a) a interação ou identidade das polaridades são essenciais, no

entanto, a própria existência nunca pode experimentar essa identidade de forma completa,

somente de forma ambígua ou fragmentada (GROSS, 2004, p. 91-92); b) a absolutização de

uma das polaridades significa algo análogo ou “demoníaco”, representando uma ruptura da

identidade original que quer se passar pela totalidade essencial. Com isso – afirma Gross, é

fácil perceber, novamente, o esquema básico herdado de Schelling (GROSS, 2004, p. 92). Por

fim, utilizando do trabalho de J. A. Stone, 76 Gross descreve as possíveis diferenças entre eles

que são: Primeiro Tillich se utilizaria de uma linguagem menos “fantástica” que Schelling.

Segundo, Tillich se restringiria mais à linguagem tradicional do cristianismo. Terceiro Tillich

abandonaria a linguagem especulativa em favor de uma linguagem simbólica (GROSS, 2004,

p. 82).

3. 2 A Influência de Kierkegaard sobre Tillich segundo Tillich

Retomando agora à obra de Tillich, salta-nos aos olhos o quanto o próprio Tillich

considerava de grande importância a influência de Kierkegaard sobre a construção teológica

contemporânea, na qual ele mesmo é um dos principais representantes. Por questões didáticas,

tentaremos estabelecer relações, começando com sua Perspectiva da Teologia Protestante nos

Séculos XIX e XX – onde o relato da influência de Kierkegaard é mais objetivo – e

posteriormente como sua Teologia da Cultura. Nesta consideração ressalta mais uma vez o

lado fronteirista do método de correlação da teologia de Tillich. Isto é, sua capacidade de

repensar os conteúdos da tradição cristã utilizando-se de uma linguagem capaz de ser

entendida pelos homens e mulheres de nossa época, cuja apropriação dos conteúdos

filosóficos relevantes para esse mesmo fim é imprescindível.

Em sua Perspectiva da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX (texto baseado em

suas aulas no período que era professor na Universidade de Chicago) Tillich nos apresenta um

76 STONE, J. A. Tillich and Schelling’s Later Philosophy. CAREY, J. (Ed). Kairos and Logos. Cambridge, MA: The North American Paul Tillich Society, 1978, p. 11-44.

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relato impressionante sobre o primeiro contato que teve com a filosofia de Kierkegaard

quando ainda era estudante de Teologia em Halle. Ele diz: Lembro-me com orgulho como os estudantes de teologia em Halle tomaram conhecimento do pensamento de Kierkegaard por meio de traduções feitas por indivíduo isolado Württemberg. Nos anos de 1905 a 1907 fomos todos fascinados por Kierkegaard. Foi, na verdade, uma grande experiência. Não podíamos aceitar a ortodoxia teológica da recuperação. Não podíamos, em particular, aceitar os teólogos “positivos” – no sentido de “conservadores” – que não prestavam atenção à escola histórico-crítica. Pois o trabalho daquela escola era válido e cientifico. Não podia ser negado quando buscávamos realizar uma pesquisa honesta a respeito das bases históricas do Novo Testamente. Mas, por outro lado, sentíamos certa distorção moralista e falta de misticismo. Nesse vazio faltava o calor da presença mística do divino, como na escola de Ritschl. Não fomos cativados por esse moralismo. Não achamos nele a profundidade da consciência de culpa que a teologia clássica sempre tivera. Assim, ficamos extremamente felizes ao descobrir Kierkegaard (TILLICH, 2010, p. 175).

Como podemos perceber, a influência de Kierkegaard sobre Tillich foi, de fato, quase

imediata. Grosso modo, podemos destacar dois grandes fatores que favorecem esse fenômeno.

Primeiro porque Kierkegaard supostamente representava uma abordagem teológico-filosófica

mais “espiritualizante” em um tempo de profunda aridez moralista e falta de misticismo

(TILLICH, 2010, p. 175). Isto é, se por um lado Tillich entendia que os avanços da escola

histórico-crítica eram positivos - tendo em vista a sua capacidade de dar ao labor e a sua

pesquisa teológica respaldo mais honesto e rigoroso -, por outro lado, o autor denuncia a sua

distorção moralista e a falta de misticismo. É justamente esse calor e piedade que vai

encontrar em Kierkegaard (TILLICH, 2010, p. 175). Em segundo lugar, Kierkegaard também

dispunha de uma construção teológica inteligente, sobretudo relevante para estabelecermos o

diálogo como o mundo contemporâneo. Tal combinação transformou Kierkegaard – ainda que

tardiamente – em um dos mais importantes pensadores do século XX. 77 Nas palavras de

Tillich temos: Sua combinação da intensa piedade que alcançava as profundezas da existência humana com a grandeza filosófica recebida de Hegel tornou-o importante para nós. É certo que Kierkegaard tornou-se um pensador da moda em três aspectos: (a) Religiosamente, porque seus escritos religiosos são tão importantes hoje como nos dias em foram escritos. (b) Enquanto inspiração da teologia dialética, chamada de neo-ortodoxa nos Estados Unidos. Na Europa, em geral, chamou-se de dialética por causa de sua relação como Hegel, posto que este termo represente São principio básico do pensamento de Hegel. (c) Enquanto inspiração de Heidegger, o filósofo que deu o nome de existencialismo ao movimento derivado de Kierkegaard (TILLICH, 2010, p. 175-176).

77 Para Tillich a influência de Kierkegaard só se deu no século XX e não propriamente na sua época. Por outro lado, a descoberta de seu pensamento é extremamente importante, pois nos permite melhor compreender as proposta de M. Heidegger, J. P. Sartre, K. Jaspers (TILLICH, 2009, p. 152).

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Ainda sobre Kierkegaard no mesmo livro, o pensamento do mesmo, nos é apresentado

por Tillich de forma mais pontual e sistematizada (TILLICH, 2010, p. 174). Embora suas

ideias estejam inseridas em um ciclo temático maior e mais amplo, Tillich procurava valorizar

a originalidade de Kierkegaard. Para Tillich, o autor dinamarquês representaria junto como F.

W. J. Schelling, K. Marx, F. Engels, L. Feuerbach, F. Nietzsche. Todos eles supostamente

teriam uma espécie de único fim; estabelecer a ruptura daquela antiga tentativa filosófica de

Síntese Universal. Em se tratando de Kierkegaard, sua crítica se baseava no conceito de

reconciliação (TILLICH, 2010, p. 176). Segundo Hegel, o mundo é reconciliado na mente do

filósofo da religião que atravessou as diferentes formas da vida espiritual humana, ou seja,

espírito subjetivo (que é o lado psicológico), o espírito objetivo (o social, ético e político), e o

espírito absoluto (arte, religião e filosofia) (TILLICH, 2010, p. 176). Proporcionalmente, para

Hegel, a mente divina ou absoluta descansa sobre o fundamento da religião dentro da mente

do filósofo que vai alcançar seu mais alto poder ao se tornar filósofo da religião. Nesse

sentido, Hegel procura descrever essa vida interior de Deus inclusive em sua grande lógica.

Esse sistema hegeliano que tudo abarca e tudo compreende é chamado de síntese universal

(TILLICH, 2010, p. 177). Essa suposta síntese universal desenvolvida de maneira pródiga por

Hegel vai ser atacada por todos os lados. Nomes como: F. Schelling, L. Feuerbach,

Trendelenburg, os pietistas e os cientistas naturais, representam algumas tentativas desses

ataques a Hegel. No entanto, segundo Tillich, é Kierkegaard que melhor fez isso. Retornando

a Kant, ele continuava reafirmando a prisão da finitude, onde é impossível a reconciliação

entre o finito e o infinito (TILLICH, 2010, p. 177). Os principais ataques de Kierkegaard a

Hegel, foram apresentados por Tillich de maneira maestral. Isto é, a defesa de uma existência

irreconciliada caracterizada por uma situação humana trágica, onde geralmente predomina o

estado de angústia e de desespero (TILLICH, 2010, p. 177). Na angústia e no desespero,

existe a necessidade de se vencer a dúvida através de sua doutrina do “salto” a uma verdade

de caráter existencial, cuja pujança deve acontecer pela decisão a favor ou contra a sua

realização (TILLICH, 2010, p. 179). Esse salto também é marcado pela instrumentalidade da

dialética das três esferas ou estádios da existência: estético, ético e religioso. O processo de

transição de uma esfera para outra só pode ocorrer por meio do “salto”. Segundo Tillich, as

esferas da existência se estruturam da seguinte forma: (a) Na Estética, predomina-se não uma

teoria da arte ou da literatura (TILLICH, 2010, p. 180). Ao ser formulada, a estética de

Kierkegaard é descrita como sendo aquele estado de “falta de envolvimento” revelada num

descompromisso total com existência. Tillich tem a impressão de que Kierkegaard pretendia

atingir o ambiente acadêmico e os processos científicos onde, certamente, se exige elementos

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desinteresse ou descompromisso é muito bem vindo em toda pesquisa séria, sobretudo com o

tratamento com datas, lugares, conexões etc., no entanto, quando se trata do terreno da

interpretação, essa atitude será reduzida por causa da participação existencial (TILLICH,

2010, p. 180). (b) Na Ética, a atitude de distanciamento é impossível. Kierkegaard aceita a

ética objetiva de Hegel, ética da família, da vocação, do Estado etc. No nível estético, o

descompromisso sexual apenas produz o isolamento. No ético, o amor supera o isolamento e

gera a responsabilidade cujo simbolismo é expresso pelo matrimônio ou casamento

(TILLICH, 2010, p. 181); (c) Na Religiosa, Tillich afirma que temos uma espécie de

superação das duas esferas anteriores, onde é possível expressar a relação como que nos

interessa infinitamente ou produz em nós paixão infinita. Esse “interesse apaixonadamente

infinito” Kierkegaard teria pegado do próprio Hegel, e estrategicamente utilizado contra ele

mesmo. Ou seja, Hegel dizia que, sem interesse e paixão, não acontece nenhuma coisa

grandiosa na história (HEGEL, 2002, p. 34). Essa noção foi retomada por Kierkegaard e

utilizada para descrever a situação religiosa (TILLICH, 2010, p. 181).

Na Teologia da Cultura, Tillich aborda a filosofia de Kierkegaard dentro de uma

estrutura maior catalogada por ele como “Existencialismo” ou “Filosofia Existencial”. 78

Nesse sentido, o pensamento de Kierkegaard vai ser abordado a partir da segunda parte de seu

livro, naquilo que o ator denominou de Aplicações Concretas (TILLICH, 2009, p. 97). Assim,

se a teologia da cultura foi à tentativa tillichiana de encontrar elementos de religiosidade nas

expressões culturais, a concretude dessa possibilidade deve aparecer em diversos modos do

conhecimento humano, cujo existencialismo é um parceiro fundamental. Tillich defende que o

fenômeno do existencialismo possui proporções históricas e culturais cujo alcance possui

significado teológico (TILLICH, 2009, p. 161). Grosso modo, Tillich aponta Kierkegaard

(junto como outros autores) como protagonista de um tipo de filosofia cuja principal

característica se mostrou pela decepção do pensamento racional e sistêmico, que procurava

abarcar não apenas o real, a coisa, mas também a realidade concreta e existencial das pessoas,

num processo meramente lógico (TILLICH, 2009, p. 131). A partir deste contexto,

78 É comum a associação entre o pensamento de Kierkegaard e o existencialismo. O que não é comum é sua aceitação, sobretudo na comunidade kierkegaardiana. Para a maior parte dos especialistas, a utilização de termos como “patrono” ou “fundador” do existencialismo deve ser considerada um equivoco, levando em consideração que Kierkegaard não se propôs a estabelecer um novo método ou sistema filosófico, pelo contrário, sua maior e mais original expressão, foi sem dúvida a crítica a esse tipo de comportamento acadêmico. Ironicamente, o pensador existencial não oferece “sistemas prontos”, mas apenas migalhas filosóficas e um bocadinho de filosofia (KIEKEGAARD, 2011, p. 13). Por outro lado, os apontamentos de Tillich, são considerados relevantes, tendo em vista que Kierkegaard não aparece sozinho como sendo o principal responsável por esse tipo de filosofia existencial, mas apenas mais um nome, no emaranhado de outros nomes, tais como: F. Engels, K. Marx.

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Kierkegaard defende a necessidade de uma rejeição do “pensador objetivo” pela busca do

“pensador existencial” – cujo exemplo ele encontrou na pessoa de Sócrates.

Tillich descreve: A maneira de encarar a existência ou a realidade por meio da experiência pessoal imediata, nos leva à ideia do “pensador existencial”, termo cunhado por Kierkegaard, mas aplicáveis a todos esses filósofos. A maneira como as reflexões objetivas são feitas torna o sujeito acidental e transforma sua existência em algo impessoal – a verdade também se torna impessoal, e esse caráter impessoal é precisamente sua validade objetiva; mas todos os interesses, como todas as decisões, baseiam-se na experiência pessoal [...] Eis aí a famosa definição de verdade de Kierkegaard: “Verdade é a incerteza objetiva que aparece na experiência pessoal apaixonada – é a mais alta verdade capaz de ser alcançada pelos indivíduos existentes. É também a definição de fé. Tal ponto de vista exclui qualquer validade objetiva, e dificilmente poderia fundamentar. Mas Kierkegaard tenta mostrar pelo exemplo de Sócrates que o pensador existencial pode ser filósofo. “A ignorância que Sócrates assumia com a inteira paixão de sua experiência pessoal expressava o principio de que a verdade eterna relaciona-se com o indivíduo existente”. A validade desse tipo de verdade baseia-se na relação do eterno como indivíduo existente. O pensador existencial não pode ter alunos no sentido comum do termo. Não pode comunicar ideias, porque elas não são verdades que ele gostaria de ensinar. Mas pode criar no discípulo, por meio de comunicação indireta, o “estado existencial” ou a experiência pessoal que o leva a pensar e agir. Kierkegaard interpreta Sócrates desse modo. Mas todos os filósofos existenciais falam do mesmo Jeito – naturalmente, pois se a abertura para a existência se faz pela experiência pessoal, a única maneira de educar é facilitar ao aluno essa experiência por método indireto, que será sempre e sua própria existência (TILLICH, 2009, p. 136-139).

Os desdobramentos da filosofia existencial são complexos. Os principais temas por ela

desencadeados são: (1) A experiência existencial imediata e distinção entre o sujeito e

objeto; 79 (2) A construção de conceitos psicológicos e ontológicos; 80 (3) O princípio da

finitude; 81 (4) O tempo experimentado “existencial” ou imediato e o tempo mensurável; 82

(5) Finitude e separação; 83 (6) Finitude e solidão. 84 Todos eles devem remeter a um

comportamento hermenêutico por parte do teólogo. Isto é, qual o significado teológico da

filosofia existencial? Sobre esse aspecto, Tillich procura apontar alguns caminhos relevantes.

No primeiro tema, o autor defende a importância que a filosofia existencial deu a questão de

se procurar valorizar a experiência imediata tendo como referência aquela antiga distinção

entre o sujeito e objeto (TILLICH, 2009, p. 139). Enquanto o sistema hegeliano propunha a

síntese universal cuja realidade existencial concreta era ignorada dentro de uma amálgama

79 TILLICH, 2009, p. 139 80 TILLICH, 2009, p. 142 81 TILLICH, 2009, p. 144 82 TILLICH, 2009, p. 147 83 TILLICH, 2009, p. 150 84 TILLICH, 2009, p. 152

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reconciliadora protagonizada pela presença de um espírito absoluto, a filosofia existencial

continua afirmando a necessidade de se estabelecer a irreconciliável relação entre o sujeito e o

objeto (TILLICH, 2009, p. 140). O segundo aspecto apresentado por Tillich, conceitos

psicológicos e ontológicos, estão entre os temas mais relevantes, sobretudo na medida em que

tem contribuído na construção de pressupostos tanto para psicologia profunda (psicanálise)

com também para própria teologia (TILLICH, 2009, p. 143). O problema do princípio da

finitude representa a maior crítica feita pela filosofia existencial ao sistema hegeliano. Trata-

se da reabertura da consciência da separação entre o finito e o infinito. Todos os filósofos

existenciais ressaltam esse fato. Para Tillich, Kierkegaard segue Schelling: “A ideia

racionalista é identidade entre o sujeito e objeto, a unidade de pensamento e Ser. A existência,

por outro lado, é a separação” (TILLICH, 2009, p. 145). De maneira concomitante, a análise

da finitude desenvolvida pela filosofia existencial desemboca na análise do tempo. Isto é, a

ideia de que a existência distingue-se da essência por seu caráter temporal é antiga na história

da filosofia. A tendência geral consiste em distinguir o tempo “existencial” ou imediatamente

experimentado da ausência do tempo dialético, de um lado, e do tempo infinito, qualitativo e

mensurável, de outro (TILLICH, 2009, p. 147).

Esse fenômeno chamado de “filosofia existencial” ou existencialismo, tributado a

Kierkegaard – feito por Tillich, é de fato expressivo: “Kierkegaard, explica Tillich, representou a ala religiosa da filosofia existencial. Ele nunca se considerou filósofo, e os que acham nele um tipo clássico de pensador existencial, muitas vezes se mostram reticentes. Mas sua obra revela conexões mais íntimas. Como pensador religioso, entretanto, produziu uma psicologia dialética que contribuiu para a interpretação anti-racionalista e antimecanicista da natureza humana (TILLICH, 2010, p. 156-157).

Pinheiro (2009) completa dizendo que a filosofia existencial, conforme exposta por

Tillich, oferece um quadro dramático, já que expressa a polaridade entre atitude existencial e

expressão filosófica (PINHERIO, 2009, p. 125). Assim, todos os que se colocam ao lado da

vida como Kierkegaard estão dispostos a vivenciar e a enfrentar a incondicionalidade de tal

paradoxo, ou seja, equilibrar o elemento existencial por um lado e o pensar filosófico por

outro (PINHERO, 2009, p. 125). Diante da vida, não se é apenas filósofo, mas antes uma

pessoa-que-vive. Ora, todos os filósofos e apaixonados pela existência vivida procuram

reagir, na teoria e na prática, ao destino histórico cuja realização acabou por promover quando

o atacamos (PINHERO, 2009, p. 125). Mas foi assim que a filosofia existencial traduziu sua

revolta contra a alienação da sociedade industrial (PINHERO, 2009, p. 125).

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3.3 A Influência de Kierkegaard sobre Tillich no conceito de Alienação

O estabelecimento dessa suposta relação de influência de Kierkegaard sobre conceito

de Alienação em Tillich deve passar obrigatoriamente pela questão da antropologia. Nesse

sentido, o questionamento correto seria: em que sentido é possível perceber alguns traços da

antropologia kierkegaardiana na construção antropológica de Paul Tillich? Como resposta a

este questionamento é possível apresentarmos elementos de semelhanças. No primeiro

capítulo dessa dissertação, já havíamos informado que a antropologia de Kierkegaard tem

como mola propulsora a questão da incompletude. A antropologia kierkegaardiana persegue o

ideal de que a constituição do eu é determinada por um processo dialético interno de relação

do eu consigo mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p. 25). Trata-se da relação ou inter-relação

entre o finito e o infinito. Como já afirmamos, para Kierkegaard o primeiro é identificado

como homem, e o segundo ora como Deus ora como a ideia de Deus. Esse processo relacional

é marcado e caracterizado por uma mescla sintetizante. Nesse sentido, ao afirmar que: [...] o

eu não existe ainda (KIERKEGAARD, 2010, p. 25) Kierkegaard supostamente estaria

construindo sua antropologia de maneira diferenciada da tradição filosófica cuja mediação

está sempre posta sobre a base do gênero. Isto é, a natureza ou essência do homem é

caracterizada não por uma determinação a priori, mas sim por uma construção

existencialmente autônoma a posteriori. De fato, aparentemente, não é tão simples de ser

percebido aqui o nascimento de um “novo paradigma”. Na tese kierkegaardiana, o eu possui

uma estrutura determinada originalmente – que é a de ser uma síntese, ainda que complexa – e

essa estrutura original é, no sentido próprio do termo, uma natureza ou uma essência, pois na

filosofia de Kierkegaard, portanto, a essência precede a existência (FERRO, 2011, p. 141). A

ideia é que a existência precede a essência, ou seja, tudo o que constitui nossa vida em termos

de significado (a essência) é precedido pelo fato que existimos sem nenhum sentido a priori

(PONDÉ, 2011, p. 1).

Proporcionalmente, se fizermos mais uma vez uma comparação com Hegel,

perceberemos o contraste de Kierkegaard. Em sua Fenomenologia do Espírito (1807) o autor

alemão havia determinando o conceito de Alienação como sendo um estado de Consciência

Infeliz (HEGEL, 2002, p. 123). Para Hegel, a consciência infeliz é a "alma alienada" ou "a

consciência de si como natureza dividida" ou "cindida". Isto é, a consciência pode

experimentar-se como separada da realidade à qual pertence de alguma maneira (HEGEL,

2002, p. 124). Surge então um sentimento de separação e de desunião, um sentimento de

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afastamento, alienação e desapossamento. A partir das considerações de Hegel, pode usar-se o

termo "alienação", num sentido muito geral, como qualquer estado no qual uma realidade está

fora de si em contraposição com o ser em si (HYPPOLITE, 1999, p. 215). Nesse sentido,

Hegel capta uma cisão no mundo moderno, qual seja a cisão entre sujeito e objeto, isto é, a

cisão do sujeito em relação a si mesmo, que se expressa na consciência infeliz, pois a

consciência conscientiza-se de si mesma enquanto cindida do que lhe configura enquanto tal,

o seu outro (FRANÇA, 2009, p. 118). A filosofia hegeliana ao captar essa cisão na história da

filosofia que se revela de forma culminante nas filosofias de Fichte (sujeito-objeto subjetivo)

e Schelling (sujeito-objeto objetivo) se imporá uma tarefa, qual seja a união do que foi

separado, isto é, o sujeito e o objeto, da figura do espírito (santo) dialeticamente (FRANÇA,

2009, p. 118).

Dadas essas informações preliminares, já é possível afirmar que o problema da

Alienação em Kierkegaard repousa sobre a questão de recusa absoluta da proposta hegeliana

de reconciliação. Isto é, se em Hegel o sujeito alienado é salvo pela instrumentalidade de um

processo racionalizante de reconciliação absoluta, em Kierkegaard isso é impossível. Para o

filósofo dinamarquês, a existência concreta sempre estará em uma espécie de “constante

conflito”, pois somente assim é possível vivenciá-la de maneira autêntica. Sempre estaremos

em um estado constante de Alienação. É nesse sentido que, para Kierkegaard, a existência é

trágica (FARAGO, 2006, p. 90). Tudo começa para o homem, como já vimos, com a perda de

sua unidade imediata não refletida, simbolizada na Bíblia pela queda e pela perda do Paraíso

(FARAGO, 2006, p. 91). Diferente de uma perspectiva tradicional onde o mesmo

supostamente representa a beatitude, o paraíso de Kierkegaard significa isenção do esforço

existencial (FARAGO, 2006, p. 91). Trata-se então de um estado puramente imaginário cuja

função hermenêutica é compreender a entrada de cada um na história, no tempo da existência,

ou seja, na relação que se deve estabelecer entre a alma e o corpo através do espírito que

permite o acesso à interioridade (FARAGO, 2006, p. 91).

Farago (2006) afirma que é preciso perceber que Kierkegaard está propondo uma

antropologia cuja liberdade de criação é um movimento de transcendência no coração da

imanência (FARAGO, 2006, p. 91). Ora, seguindo essa linha de raciocínio, a autora descreve

que, para Kierkegaard, ao nascer, o homem está nu, mas não sabe, porque ainda não se

produziu a cisão e ao mesmo tempo a unificação paradoxal que o possibilita a realizar

(FARAGO, 2006, p. 91). Portanto, em Kierkegaard o homem participa de sua própria história.

Ele existe ou, noutras palavras, vem a ser (FARAGO, 2006, p. 92). Assim, o seu nascimento o

convoca à existência no mundo, sua vocação o chama a existir na presença de si mesmo e

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consequentemente na presença de Deus ou da ideia de Deus para o qual deve caminhar com o

qual deve entrar em relação (FARAGO, 2006, p. 92). Não podemos nos esquecer de que a

mola propulsora ou a espinha dorsal da antropologia kierkegaardiana está posta sobre a

questão da relação, pois para ele o ser humano “ainda não existe” a não ser pela

instrumentalidade de uma síntese entre o finito e o infinito (KIERKEGAARD, 2010, p. 19).

Dizendo de outra forma ele afirma: Tornar-se uma existência significa, em primeiro lugar, perder sua unidade imediata pondo seu ser como uma relação sem substrato ou como uma relação sem suporte, mas em cujo núcleo se inscreve a desproporção [...] Nestas condições, a condição não tem mais de se libertar de sua estrutura nem tampouco de se evadir da sua condição. Só pode trabalhar em sua salvação sem ter a possibilidade de transcender a relação consigo na divisão que é (KIERKEGAARD, 2006, p. 92).

Assim, quando voltamos nossa atenção novamente a Tillich é possível também

perceber essa mesma influência. Isto é, Tillich caracterizou o seu conceito de alienação de

maneira ontológica, pois nele, Alienação é Alienação no Ser (TILLICH, 2005, p. 324). Nesse

contexto, Tillich concorda em absoluto com Kierkegaard no âmbito de entender o símbolo da

queda, no sentido de transição da essência à existência (TILLICH, 2005, p. 325).

Proporcionalmente, o reconhecimento dessa verdade – segundo Tillich – de confrontar tanto o

idealismo hegeliano como também o próprio naturalismo. O segundo toma a existência como

algo dado, sem se perguntar pela origem de sua negatividade. Isto é, ele não tenta responder,

pois o ser humano percebe a negatividade trágica, como algo que deveria existir e pela qual

ele é responsável (TILLICH, 2005, p. 325). No caso do idealismo, a problemática encontra-se

na tentativa de procurar arbitrariamente tudo, reconciliar rejeitando o conceito de “alienação”

como sendo parte inerente da própria condição humana contra si mesmo (TILLICH, 2005, p.

325). Na extrema profundidade da dialética existencial, Tillich reconhece que embora o

existencialismo tenha sido inicialmente criticado por seu excessivo “pessimismo

antropológico”, ao introduzir termos como: não-ser, finitude, angústia, culpa, falta de sentido

e desespero, não duvida que modus operandi do mesmo coincide e muito, com as muitas

passagens bíblicas como, por exemplo, a descrição paulina da condição humana na sua

epístola aos Romanos capítulos 1 e 7 (TILLICH, 2005, p. 324). Sobre esse aspecto, a imagem

que Tillich tem de Kierkegaard é positiva: Graças a Søren Kierkegaard, a palavra Angst se tornou um conceito central do existencialismo. Ela expressa a consciência de ser finito, de ser uma mescla de ser e não-ser ou de ser ameaçado pelo não-ser. Todas as criaturas são compelidas por essa angústia, pois finitude e angústia são as mesmas coisas. Mas, no ser humano, a liberdade está unida à angústia. Poderse-ia chamar a liberdade do ser humano de “liberdade na angústia” ou “liberdade angustiada”. Essa angústia é uma das forças motrizes da transição da essência

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à existência. Kierkegaard, sobretudo, uso este conceito da angústia para descrever (não para explicar) a transição da essência à existência (TILLICH, 2005, p. 330).

Conclui-se que tanto para Kierkegaard como para Tillich o estado da existência é um

estado de alienação. O traço característico da filosofia de Kierkegaard de sublinhar a falta de

resolução do ser humano no mundo, priorizando sua ênfase na pessoa solitária que necessita

lidar com a finitude, com a culpa, com a angústia e com o desespero humano, exerceu forte

influência na descrição que Tillich faz da vida humana (CASTRO, 2002, p. 39). Ambos

reconhecem que o indivíduo não pode ser considerado uma simples ideia, pois ao falar sobre

o homem estamos lidando com um ser único, irrepetível e insubstituível (CASTRO, 2002, p.

39). Ambos estão pensado no estado de existência alienada, cuja emblemática é caracterizada

pelo conceito de concupiscência. Em concordância com esta realidade, Tillich descreve da

seguinte forma: A doutrina da concupiscência – considerando-se o termo em seu sentido todo-abrangente – pode ser confirmada por muito material e percepções profundas da literatura existencialista, da arte, da filosofia e da psicologia. Basta mencionar primeiro alguns exemplos, alguns dos quais expressam o sentido de concupiscência em figuras simbólicas, outras em forma de análise. Quando Kierkegaard descreve a figura do imperador Nero, ele recorre a um tema do cristianismo primitivo para elaborar uma psicologia da concupiscência. Nero corporifica as implicações demoníacas do poder ilimitado; ele representa o indivíduo que conseguiu vincular à sua pessoa o universo mediante o exercício de um poder que utiliza em proveito próprio tudo aquilo que lhe aprouver. Kierkegaard descreve o completo vazio interior desta situação que conduz à determinação de causar a morte a tudo o que encontra inclusive a si próprio (TILLICH, 2005, p. 346-347).

Esses apontamentos vêm de fato mais uma vez demonstrar que estamos lidando com

reflexões que possui dimensões de caráter correlato. As definições de homem como ser

alienado em Tillich correspondem respectivamente às etapas principais do pensamento

antropológico de Kierkegaard. Em suma, por meio do significado crescente de um homem

existencialmente não-reconciliado, Kierkegaard pode influenciar o posicionamento tillichiano

de compreender o homem a partir da tensão estabelecida entre o ser e o não-ser, procurando

encontrar respostas, sobretudo pelo sentido da vida dentro do processo histórico concreto

(CASTRO, 2002, p. 10).

3. 4 A Influência de Kierkegaard sobre Tillich na Doutrina do Pecado

Nos anos pré-guerra, o poder argumentativo composto na filosofia de Kierkegaard não

tinha ainda assumido proporções de caráter mundial. No entanto, no final da guerra, e no

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período pós-guerra, de imediato Kierkegaard se tornou uma espécie de “santo dos filósofos”,

bem como dos teólogos da Alemanha. Nesse sentido, sua influência sobre o pensamento de

Tillich, foi imensa (MARTIN, 1962, P. 18). Assim, como já afirmamos acima, o próprio

Tillich definiu esta suposta influência perpassada por aquela tradicional consciência de culpa

(TILLICH, 2010, p. 175). Essa mesma consciência de culpa é caracterizada como a Doutrina

do Pecado, tanto em Kierkegaard como Tillich. Assim, ficou provavelmente mais evidente, o

quanto ambos são devedores dos pressupostos antropológicos elaborados por Schelling.

Grosso modo, na antropologia schellinguiana o homem é pensado a partir do conceito

de Queda – primeiro platônica e concomitantemente cristã. Quando nos debruçamos em

compreender a antropologia de Schelling, percebemos que estamos lidando com três fases

distintas do seu pensamento, a saber: a inicial e a intermediária e conclusiva (PUENTE,

1997, p. 95). Na primeira fase de seu pensamento, a estrutura de sua antropologia é construída

a partir daquela antiga noção platônica cujo conceito de Queda possui dimensão e caráter

gnosiológico (PUENTE, 1997, p. 37). Assim, o processo de conhecimento é caracterizado

pela busca pelo sentido absoluto das coisas. Obviamente, a noção de queda não poderia ser

explicada, pois tal fenômeno procede da própria absolutuidade do absoluto (PUENTE, 1997,

p. 37). Para Schelling, esse mesmo absoluto, deve obrigatoriamente possui dimensões divinas.

Nessa fase, o autor também defende que o processo de compreensão do mundo só é possível

porque o homem possui na sua estrutura constitutiva, elementos de identidade com a própria

dimensão absoluta, isto é, Deus. [...] Só o idêntico é capaz de compreender o idêntico

(PUENTE, 1997, p. 36). Tudo é compreendido através da “intuição intelectual”. Geralmente,

este tipo de antropologia não chamou muito atenção de Kierkegaard nem de Tillich, sobretudo

porque costuma desvalorizar em absoluto, realidade concreta e empírica do homem

(PUENTE, 1997, p. 37).

Já na chamada fase intermediária, a noção de Queda é substituída. Schelling abandona

a característica gnosiológica, passando a adotar um pressuposto cujo ditame repousa sobre a

ideia de liberdade (PUENTE, 1997, p. 68). Portanto, se na fase inicial, Schelling havia

apresentada a impossibilidade de se estabelecer uma explicação plausível sobre a noção de

Queda, nessa nova fase isso não acontece. O autor sugere que a explicação mais satisfatória

sobre o tema é relacionar o conceito de Queda ao problema da liberdade. Trata-se de uma

mudança brusca, sobretudo se levarmos em consideração que na fase inicial de seu

pensamento Schelling não só ignorava a liberdade com também a própria finitude, pois o

absoluto tudo suprimia (PUENTE, 1997, p. 68). Nesse sentido, não havia espaço para

incertezas, devido ao fato do processo cognitivo não ser medido por nenhuma outra faculdade,

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mas ser imediato, ou seja, a “intuição intelectual” era um tipo de conhecimento absolutamente

seguro, pois ela nada mais era do que o próprio Absoluto, consequentemente dando-nos a

terrível sensação de não-liberdade (PUENTE, 1997, p. 68). Diferente dessa nova fase

(intermediária) aonde Schelling vai procurar valorizar mais o lado participativo entre o

homem e o Absoluto, entre a finitude e o infinito. Aqui, então, o elemento central dessa

participação é apontado por Schelling como sendo a liberdade (PUENTE, 1997, p. 70). O

fundamento desse argumento repousa na analogia entre Deus e o homem. Segundo Schelling,

o homem possui como Deus duas vontades contraditórias: “vontade própria” (o egoísmo) e a

“vontade universal” (o amor); a grande diferença é que em Deus, a chamada “vontade

própria” só está presente como fundamento, ou seja, em potência, enquanto que no homem, a

mesma abandonou o antigo estado de inércia e foi atualizada (PUENTE, 1997, p. 69). Esse

processo de atualização ou efetivação da “vontade própria” e egoísta no homem que constitui

a essência do mal e também a causa da Queda. Aqui os paralelos com a doutrina do Pecado

Original é latente (PUENTE, 1997, p. 69). O resultado de tudo isso é encontrado na última

fase do pensamento de Schelling (PUENTE, 1997, p. 92).

No período conclusivo de sua filosofia, o autor vai fazer afirmações “pouco

convencionais” para o círculo cristão, sobretudo quando ele diz que era impossível a

permanência no “estado de inocência” originária (PUENTE, 1997, p. 92). No mundo da

liberdade, é impossível a permanência absoluta no paraíso. Paradoxalmente, a Queda é um

fenômeno existencialmente inevitável. O exemplo utilizado por Schelling é o mito de

Pandora. A caixa de Pandora era uma espécie de tesouro apenas e tão somente enquanto ela

permaneceu inviolada, ou seja, enquanto permaneceu em potência (PUENTE, 1997, p. 92). O

homem (Adão) moveu sua potencialidade egoísta achando que poderia igualar-se com Deus,

isto é, como criatura criada à imagem e semelhança de Deus, ele achou que possuía também o

poder de domínio sobre os dois tipos de vontades. Ora, que o homem tenha sido criado como

um ser livre é fato, no entanto, esta suposta liberdade, é caracterizada como consequência de

sua livre escolha, em libertar-se de seu estado original. Naturalmente o homem enganou-se,

porque não soube diferenciar entre a liberdade eterna – a de Deus – e uma liberdade criada –

sua própria (PUENTE, 1997, p. 74). Portanto, a maior ilusão do homem foi pensar que ele,

assim como Deus, poderia dominar a primeira potência, ou seja, o poder de ser (PUNETE,

1997, p. 93). O ponto final dessa antropologia schellinguiana aponta para uma espécie de

soterologia, cuja base está posta sobre o Cristo Mediador. Apenas o próprio Absoluto (Deus)

pode inverter essa situação trágica (PUENTE, 1997, p. 72). Pois somente um Deus efetivo e

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eficaz pode novamente restaurar a unidade originária. É necessário que Deus se transforme

em homem, para que o homem possa se elevar a Deus (PUENTE, 1997, p. 73).

Proporcionalmente, é possível defender que a doutrina do pecado em Kierkegaard

possui algumas características dessa antropologia de Schelling, que, consequentemente vai –

de maneira direta ou indiretamente – também influenciar as construções feitas por Tillich.

Grosso modo, como já afirmamos no primeiro capítulo dessa dissertação, o conceito de

pecado em Kierkegaard possui dimensões não moralistas ou moralizantes (BITTENCOURT,

2013, p. 15). Isto é, o problema do pecado em Kierkegaard precisa ser pensado como um

pressuposto mais amplo, sobretudo, totalmente desassociado do fundamentalismo e do senso

comum. Sua doutrina do pecado é considerada como um paradoxo da finitude existencial cuja

culpabilidade é forjada nos entraves complexos e trágicos da própria liberdade humana

(BITTENCOURT, 2013, p. 12). Em Kierkegaard o pecado nada mais é se não o fruto da

liberdade, e, paradoxalmente constitui a expressão por excelência da condição humana em sua

vida finita cerceada de percalços e fracasso mediante a participação em uma existência

fragmentada, impotente e incapaz de realizar plenamente os anseios humanos

(BITTENCOURT, 2013, p. 12). Nesse sentido, de maneira nem pouco convencional e

utilizando-se de muita ironia, Kierkegaard tem uma espécie de compreensão de pecado sobre

uma perspectiva “afirmativa”. Isto é, o ato de se praticar o pecado é uma escola ética, pois

corresponde ao âmbito da deliberação individual daquilo que é conveniente ao juízo subjetivo

do agente (BITTENCOURT, 2013, p. 13).

Argumenta Kierkegaard: A rigor, o pecado não tem seu lugar em nenhuma ciência, ele é objeto daquela pregação em que fala o indivíduo, como o indivíduo que se dirige ao indivíduo [...] Ao conceito de pecado corresponde à seriedade. A ciência em que o pecado estaria mais perto de encontrar lugar seria decerto a ética [...] O pecado então só pertence à ética na medida em que é nesse conceito que ela encalha, mediante o arrependimento. Se a ética acolher o pecado, acabou-se a idealidade dela (KIERKEGAARD, 2011b, p. 18; p. 19-20).

Bittencourt (2013) continua energicamente afirmando que em Kierkegaard é possível

que, ao mesmo tempo em que o pecado representa o “afastamento” do homem em relação a

Deus, sobretudo, pelo uso de seu livre-arbítrio, ou seja, pela escolha do bem temporal ao invés

do bem eterno, o mesmo também pode significar a própria “salvação” (BITTENCOURT,

2013, p. 14). Não se pode esquecer que para Kierkegaard, [...] Não é ser desesperado que é

raro, o raro, o raríssimo, é realmente não ser (KIERKEGAARD, 2010, p. 38). Assim, nada é

tão desesperante do que o não estar desesperado. É disso que estamos falando quando

dizemos que a liberdade em Kierkegaard é sinônimo de contingência e de possibilidade e, ao

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mesmo tempo, de desespero e angústia, isto é do pecado. Desse modo, o pecado apresenta

uma relação ambivalente na vida humana, pois ao nascer da violação transcendental do

interdito divino, ocorre ao mesmo tempo a afirmação plena da dignidade humana expressada

em sua imanência (BITTENCOURT, 2013, p. 12). Obviamente, irônica e paradoxalmente,

diante desses pressupostos, é possível fazer algumas perguntas: Se quando pecamos somos

livres, o pecado não representaria então nossa singularidade? Será que o fenômeno do pecado

não acabou supostamente aproximando a condição humana do ser de Deus?

(BITTENCOURT, 2013, p. 15). Essas perguntas não são para serem objetivamente

respondidas, mas sim para serem vivenciadas em nossa existência concreta. O pecado

caminha paralelamente ao “puro”, e talvez a melhor forma de se “purificar” seja através da

paradoxal kierkegaardiana “prática” do pecado. Ora, toda experiência extra-moral exige que

se estabeleça uma valoração existencial para além do Bem e do Mal e, para tanto, requer a

“prática” daquilo que é interdito (BITTENCOURT, 2013, p. 16). Segundo Kierkegaard, ainda

que o homem consiga viver em profundo estado de pecado, ele não pode negar a presença do

Eterno em si mesmo. Isto é, sendo nossa existência constituída de ambiguidades da finitude,

por maior que seja nosso estado de “impureza” ou pecado, caracterizando pela presença de

desespero e angústia, nunca poderíamos em absoluto, chegar ao um estado absoluto de

afastamento de Deus.

Ele diz: Quando falta interioridade, o espírito é reduzido à finitude. Por isso, a interioridade é a eternidade, ou a determinação do eterno num ser humano [...] Fala-se bastante do eterno em nosso tempo, ele é rejeitado, ele é aceito, e tanto o primeiro modo quanto o último (levando em consideração o modo como isso ocorre) indicam carência de interioridade [...] Ora, um homem pode negar o eterno tanto quanto quiser, ele não consegue com isso separar totalmente sua vida do eterno. E, ainda que até certo ponto e num certo sentido se queira admitir o eterno, este ainda é temido no outro sentido e para além daquele ponto; mas, por mais que se o negue não se consegue jamais eliminá-lo de todo (KIERKEGAARD, 2011b, p. 164).

Aprofundando, se ao pecar – pela instrumentalidade da liberdade – o homem se afasta

da essência de Deus, concretizando assim sua própria existência, paradoxalmente este mesmo

afastamento deve gerar a aproximação também, pois é o vazio da existência da vida

desprovida de Deus que conduz o homem a descobrir a falta de comunhão com o ser divino

em sua própria interioridade passando a iniciar sua trajetória rumo ao que é sagrado

(BITTENCOURT, 2013, p. 17). Em suma, esse processo não se realiza medido pela

institucionalização eclesiástica, o cristianismo não é um bem que pode ser distribuído no

Atacado, mas só para um único de cada vez (KIERKEGAARD, 2013, p. 134). Trata-se de

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uma relação imediata do indivíduo diante de Deus em sua própria interioridade

(BITTENCOURT, 2013, p. 17). Utilizando de uma linguagem paradoxal, Kierkegaard afirma

que o homem nunca é familiarizado como Deus quando está muito próximo dele, mas pode

ter sua familiaridade potencializada com o Eterno, quando o mesmo encontra-se

desesperadamente afastado dele. Ele diz: É desde a maior distância de Deus que o homem lhe pode fazer ouvir! O homem nunca é tão familiar com Deus como quando está longe dele, familiaridade que só pode nascer do próprio afastamento! Na vizinhança de Deus, não se pode ser familiar, e a sê-lo é sinal de está longe. Tal é a impotência do homem em face de Deus! A familiaridade dos grandes da terra faz correr o risco de ser atirado longe deles, mas não pode ser familiar com Deus senão afastando-se dele (KIERKEGAARD, 2010, p. 147).

A partir desses pressupostos apresentados, é possível estabelecer relações com Tillich.

A harmatiologia tillichiana está edificada sobre as bases de uma antropologia, cuja principal

característica é encontrada nas tensões inevitáveis provocadas pela composição das

ambiguidades da própria finitude (TILLICH, 2005, p. 356). Nesse sentido, seguindo a mesma

trilha de Schelling e Kierkegaard, o teólogo alemão vai de fato defender, que não é possível

existencialmente viver por um tempo permanente totalmente fora da presença do pecado, pois

o mesmo representa a máxima expressão da liberdade finita do homem (TILLICH, 2005, p.

328). Trabalho como o texto bíblico, Tillich defende declara que é indissociável a chamada

“inocência sonhadora” e tentação. Isto é, o pecado nada mais é se não o resultado do processo

de transição da essência à existência. Portanto, o mito do paraíso não poderia ser perpétuo, ou

seja, em Tillich a realidade da Queda (o pecado) é ontologicamente “inevitável”. Por isso, ele

afirma: Esse dom somente é compreensível do ponto de vista da glória divina, do fato que Deus decidiu revelar sua majestade não só através da Salvação dos seres humanos, mas também através de sua condenação. Mas a liberdade para se afastar de Deus é uma qualidade de estrutura da liberdade como tal. A possibilidade da queda depende de todas as qualidades da liberdade humana consideradas em sua unidade. Simbolicamente falando, é a imagem de Deus no ser humano que possibilita a queda. Só aquele que é imagem de Deus tem o poder de separar-se de Deus. Sua grandeza é, ao mesmo tempo, sua fraqueza. Nem mesmo Deus poderia eliminar uma sem eliminar a outra. E se o ser humano não tivesse recebido essa possibilidade, ele teria sido uma coisa entre outras coisas, incapaz de servir a glória divina, seja na salvação ou na condenação. Por isso, a doutrina da queda sempre foi tratada como a doutrina da queda do ser humano, embora também tenha sido considerada como um evento cósmico (TILLICH, 2005, p. 328).

Ora, Tillich propõe que a palavra “inocência” – quando aplicada ao mito de Adão –

aponta para a potencialidade não efetivada (TILLICH, 2005, p. 329). Isto é, somos inocentes

apenas com relação a algo que, se efetivado, acabaria com o próprio estado de inocência.

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Nesse sentido, a dificuldade de compreender este estado denominado teologicamente como

sendo “inocente”, reside no fato que o mesmo se trata de um estado essencial, que não é real

no estágio do desenvolvimento histórico do homem (TILLICH, 2005, p. 328). No mito e no

dogma, a natureza essencial do ser humano foi projetada no passado como uma história

anterior à história, simbolizada como uma idade de ouro ou o “paraíso”. Trata-se de um tempo

primordial 85 (ELIADE, 2009, p. 11). O tempo primordial do paraíso, da qual o homem foi

simbolicamente expulso, não existe mais, e concomitantemente apareceu outro tempo

marcado pela presença da angústia cuja expressão máxima é marcada pela liberdade

despertada. Em geral todas as coisas finitas são marcadas por essa angústia patrocinada pela

tensão entre o ser e o não-ser. O principal motivo de não haver juízo de valor no conceito de

pecado em Tillich é de fato, percebido, sobretudo porque o autor defende uma concepção

antropológica onde não existe dualismo entre o corpo e o espírito, entre o sensitivo e o

intelectivo. Ele diz: A análise da tentação, tal como apresentamos aqui, não faz referência a um conflito entre o lado corporal e o lado espiritual do ser humano como uma possível causa. A doutrina do ser humano aqui esboçada implica uma compreensão “monista” da natureza do ser humano em contraste com uma compreensão dualista. O ser humano é um todo, cujo ser essencial é caracterizado pela inocência sonhadora, cuja liberdade possibilita a transição da essência à existência, cuja liberdade despertada o coloca entre duas angústias que o ameaça com a perda de si mesmo, cuja decisão vai contra a preservação da inocência sonhadora e a favor de sua própria efetivação. O ser humano experimenta a angústia de perder-se a si mesmo por não efetivar a si mesmo e suas potencialidades, e angústia de perder-se a si mesmo mediante a efetivação de si mesmo e suas potencialidades. Mitologicamente falando, o fruto da árvore da tentação pertence tanto ao âmbito dos sentidos como ao âmbito espiritual (TILLICH, 2005, p. 331).

Portando, tanto em Kierkegaard como em Tillich a existência está em raizada tanto na

liberdade ética quanto no destino trágico. Isto é, se negarmos um ou outro lado, a situação

humana seria incompreensível (TILLICH, 2005, p. 333). Como Kierkegaard, Tillich também

defende que a unidade do elemento moral e trágico na condição humana deve suscitar a

questão da relação, na existência, entre o ser humano e o universo e, consequentemente, a

questão da criação e da Queda (TILLICH, 2005, p. 334). Assim, o grande enigma do pecado

original reside no paradoxo, pois o homem é considerado responsável pela Queda, embora

esta – tanto nos mitos bíblicos como extrabíblicos – seja sempre concebida ou apresentada

85 Para o historiador romeno Mircea Eliade, a definição do mito que lhe parece menos imperfeita, por ser mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio” (ELIADE, 2009, p. 11). Isto é, o mito narra como, graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, do caos ao cosmo. (ELIADE, 2009, p. 11).

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como um evento cósmico inevitável, ou seja, como a transição universal da bondade essencial

para alienação existencial (TILLICH, 2005, p. 334).

3.5 A Influência de Kierkegaard sobre Tillich no Problema da Salvação

Já vimos como, tanto em Kierkegaard como em Tillich, o advento da Queda, isto é, a

introdução do pecado no mundo, acabou por liberar ou efetivar a própria existência humana,

que outrora permanecia apenas em potência na essência. Demonstrando também com clareza,

que essa mesma existência, tão logo se efetivou, desenvolveu uma relação hostil para com o

homem, uma relação de ilusão e mentira, sobretudo, caracterizada como: alienação, desespero

e angústia. Tanto em Kierkegaard como Tillich, essa situação trágica da existência humana,

deve ser considera efetivamente complexa. Grosso modo, o epicentro dessa complexidade

repousa sobre o paradoxal negativo/afirmativo. Por um lado, a existência é “opositora

constante”, a patrocinadora das contradições e ambiguidades, devendo assim ser considerada

como negativa. Por um lado, a existência pode também ser considera como um princípio

“tolerável” ou “desejável” na medida em que a mesma é quem garante a prática da liberdade.

Esse paradoxo só pode ser compreendido do ponto de vista da glória divina (TILLICH, 2005,

p. 328). Resta-nos agora procurar demonstrar como é possível sair dessa situação existencial.

Isto é, como é possível forjar uma soterologia capaz de destruir os entraves contidos na

relação entre a essência e a existência? Para responder essa pergunta, mais uma vez, devemos

demonstrar de que maneira é possível pensar uma doutrina da “salvação” nas reflexões de

Kierkegaard, sobretudo, procurando estabelecer o grau de influência da mesma, sob

formulações soterológicas propostas por Tillich.

Sobre Kierkegaard é correto afirmar que supostamente “não temos” de fato, uma

construção sistematizada sobre o tema (HOCHMULLER, 2005, p. 343). 86 Assim, se levar

isso a sério, até mesmo as teses apontadas por Kirkconnel (2012) precisariam ser pensadas

86 Há quem defenda – ironicamente ou estrategicamente – que Kierkegaard não era kierkegaardiano (HOCHMULLER, 2005, p. 343). Nunca um autor já é em si mesmo uma Escola, afirma a filósofa brasileira Camila Hochmüller. Segundo essa mesma autora, toda tentativa de encontrar as reflexões de Kierkegaard a determinada Escola ou corrente filosófica deve ser considerada arbitraria, sobretudo por Kierkegaard supostamente não teria criado nenhum sistema filosófico formal. Segundo ela , isso ainda deve ocorre por dois motivos básicos, que são: (1) Pela recusa do próprio Kierkegaard de aceitar a construção de sistemas filosóficos gigantescos e unificadores, que simplesmente ignoravam a existência concreta da pessoa humana, como aconteceu com o sistema hegeliano; (2) Pela própria dificuldade existente no estudo das obras de Kierkegaard em decorrência de seu recurso à comunicação indireta, valendo-se também da ironia e da maiêutica socrática (HOCHMULLER, 2005, p. 343-344). No entanto, esses argumentos são de fato, passíveis de serem refutados, sobretudo pelas propostas de Theodor Adorno (2010).

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como hipotéticas. 87 No entanto, por questões didáticas, não podemos deixar de fazer

inferências, levando em consideração que, do ponto de vista kierkegaardiano, a própria

ausência de sistematicidade, já se constitui no método (ADORNO, 2010, p. 27). Nesse

sentido, quando nos voltamos mais uma vez para os argumentos elaborados por Kierkegaard

em o Desespero Humano podemos fazer pelo menos três grandes inferências sobre o tema

que são: (1) O desespero como “cura”; 88 (2) A “cura” do desespero como a ausência da

continuação do pecado; 89 (3) A “cura” do desespero quando não nos desesperamos quanto

à remissão dos pecados.90 Todas essas versões, estão, ou deveriam estar condicionadas a dois

elementos básicos no pensamento kierkegaardiano, a saber, o paradoxo da Fé e o Escândalo

do Cristo.

No primeiro e no segundo caso, a “cura” pela instrumentalidade do próprio desespero,

e a “cura” como a ausência da continuação do pecado só é possível quando o homem

consegue vencer por meio da fé paradoxal a própria tragicidade da existência, contida no

interior do próprio desespero, sobretudo, quando esta é capaz de se constituir como o seu

oposto inerente. Segundo, Kierkegaard o maior erro do paganismo foi ter pensado que o

conceito oposto ao pecado seria de fato a virtude (KIERKEGAARD, 2010, p. 108). Assim,

ele afirma: Mas demasiadas vezes se esquece que o contrário do pecado de modo algum é a virtude. Esse á antes um ponto de vista pagão, que se contenta com uma medida puramente humana, ignorando o que é o pecado e que ele está sempre perante Deus. Não, o contrário do pecado é a fé; como diz a Epístola aos Romanos (14,23): “Tudo o que não provém da fé é pecado”. E uma das definições capitais do cristianismo é o contrário de pecado, não é a virtude, mas sim a fé (KIERKEGAARD, 2010, p. 108).

Através desta afirmação, Kierkegaard pretende inclusive também tocar criticamente a

tradição platônica via Sócrates, de pensar o pecado como ignorância. Isto é, para o

dinamarquês, o conceito de pecado não pode ser simplesmente considerado uma questão de

caráter epistemológico (KIERKEGAARD, 2010, p. 114). Para o cristão, o pecado está posto

sobre a questão da vontade e não no conhecimento; esta corrupção da vontade é ilustrada por

Kierkegaard como aquele estado em que o homem encontra-se sozinho diante de Deus ou da

ideia de Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 101). O pecado consiste, então, em estar perante

Deus em desespero por não querermos ser nós próprios, ou, no desespero, por querermos ser 87 Como já demonstramos no primeiro capítulo, através do quadro gráfico, o filósofo americano W. Glenn Kirkconnel em seu livro: Kierkegaard on Sin and Salvation (2012), procurou sistematicamente demonstrar, a importância de utilizar a temática da soterologia na produção literária de kierkegaardiana (KIRKCONNEL, 2012, p. 4). 88 KIERKEGAARD, 2010, p. 28 89 KIERKEGAARD, 2010, p. 136 90 KIERKEGAARD, 2010, p. 145

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(KIERKEGAARD, 2010, p. 124). Proporcionalmente, Kierkegaard se propõe a ser uma

espécie de “oposto” ao socrático (VALLS, 2011, p. 14). Isto é, se em Platão a apropriação da

“virtude” ou da “verdade” é caracterizada pela ideia de uma reminiscência, onde o homem

resolve a dificuldade do pecado, vencendo sua ignorância através do processo de recordação,

para Kierkegaard isso não deve ocorrer assim (VALLS, 2011, p. 15). Ora, em Kierkegaard, se

o homem está fora da verdade, precisa voltar a ela, ativamente. É necessário, pelo menos,

esperar que ela venha a ele, para então acolhê-la. Se o homem não vai à verdade, talvez a

verdade possa vir de novo ao homem (VALLS, 2011, p. 15). O mesmo deve também ser

aplicado à segunda inferência de caráter soterológico em Kierkegaard. Para o autor, dento em

vista a finitude humana, a maior parte das pessoas encontra-se no estado de desespero

profundo, ou seja, em um estado de pecado, tendo em vista que o desespero nada mais é do

que o pecado elevando a uma qualidade de potência ainda maior (KIERKEGAARD, 2010, p.

129). Assim, a vida da maior parte dos homens está a considerá-la como uma indiferença

dialética, tão afastada do bem (a fé), que é quase a-espiritual para poder chamar de pecado,

quase demasiado mesmo para se chamar de desespero (KIERKEGAARD, 2010, p. 129-130).

Porém, é certo que no momento em que esse mesmo homem se volta para Deus, por meio da

fé, ele passa a vivenciar dialética e paradoxalmente, o próprio efeito do desespero. No dizer

de Kierkegaard, essa é a causa da ignorância de Sócrates, eis porque o oráculo reconheceu

nele o mais alto saber (KIERKEGAARD, 2010, p. 127). No entanto, o cristianismo ensina-

nos que toda a sua existência não tem outro fim senão a fé; por isso, seria uma piedosa

ignorância socrática defender por ignorância a fé contra a especulação, velando por reforçar

como um profundo fosso entre o homem e a natureza de Deus (KIERKEGAARD, 2010, p.

127). A partir disso, é possível perceber o aparecimento do segundo aspecto da soterologia

apresentada por Anti-Climacus, caracterizado como sendo o Escândalo do Cristo.

A última inferência da soterologia de Kierkegaard a “cura” do desespero quando não

nos desesperamos quanto à remissão dos pecados, depende e muito da alusão feita ao Cristo.

A ausência do desespero quanto à remissão do pecado, só é de fato possível, quando o homem

se propõe a aceitar escandalosamente o Cristo da cruz. O autor defende: O dogma do cristianismo é o dogma do homem-deus, o parentesco entre Deus e o homem, mas reservando a possibilidade do escândalo, como a garantia da qual Deus se premune contra a familiaridade humana. Na possibilidade de escândalo está à força dialética de todo cristianismo. Sem ele o cristianismo cai abaixo do paganismo e perde-se em tais quimeras que um pagão o consideraria em pura fantasia. Estar tão perto de Deus que o homem tenha o poder de aproximar em Cristo, que cérebro humano jamais o teria sonhado? [...] Deus e o homem são duas naturezas separadas por infinita diferença de natureza. Toda a doutrina que o não quer ter isso em conta, é para o homem um loucura e para Deus uma blasfêmia. No paganismo é o

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homem que reduz Deus ao homem (deuses antropomórficos); no cristianismo é Deus quem se torna homem (homem-deus), mas a essa caridade infinita de sua graça, Deus põe, contudo uma condição, uma única, que não pode deixar de pôr [...] Porque o pior para o homem, pior ainda que o pecado esteja em escandalizar-se de Cristo, e obstinar-se no escândalo. E isso, Cristo é que “Amor”, não pode impedir. Vede como ele nos diz: “Bem-aventurados aqueles que não se escandalizam de mim” (KIERKEGAARD, 2010, p. 159-160).

Ainda sobre o mesmo debate, nas Migalhas Filosóficas, Kierkegaard continua

afirmando a latente diferença entre o pecado socrática e o pecado no cristianismo. Do ponto

de vista de Sócrates, a presença da ignorância (o pecado) é eliminada através de uma espécie

de experimento teórico, na medida em que o homem passa novamente a apreender a verdade

pela instrumentalidade de um processo de recordação (KIERKGAARD, 2011a, p. 27). Isto é,

o homem é salvo do pecado através da busca pelo conhecimento. Explicando que todo

apreender, todo procurar, não é senão um recordar, de sorte que o ignorante (o pecador)

apenas necessita lembrar (KIERKEGAARD, 2011a, p. 27). Assim, a verdade não é, pois

trazida para dentro dele, mas já estava nele. Nessa ideia, encontra-se o patos grego – que

supostamente provaria a imortalidade da alma. A apropriação dessa verdade eterna no interior

do homem só é possível pela participação de um mestre que, através de um processo de ironia

e maiêutica, consegue chegar ao “parto” dessa verdade eterna em seu discípulo

(KIERKEGAARD, 2011a, p. 28). Segue, então, que Kierkegaard se propõe a, de fato,

contrapor a ideia socrática de um mestre que nada pode ensinar, a não fomentar alguns

palpites. Nesse sentido, em defesa do cristianismo, o autor passa a pensar a ideia de um

mestre que seja ao menos capaz de passar a verdade ao seu discípulo (SOUZA, 2010, p. 28).

Trata-se da defesa de se pensar o Cristo mestre e salvador (KIERKEGAARD, 2011a, p. 43).

O “mestre salvador” apresentado por Kierkegaard não se trata só de uma suposta figura

histórica que viveu há vários séculos na Judéia, mas do Jesus tal qual visto na tradição cristã,

possuidor de natureza humana e divina, encarnação do verbo, e a própria verdade (SOUZA,

2010, p. 28). Proporcionalmente, se o pecado pode ser encarado como sinônimo de alienação

existencial, na medida em que o homem encontrava-se distante de seu fundamento último, ao

se encarnar, o Cristo – por intermédio do seu amor – permitiu novamente a aproximação do

homem a Deus. Isto fica expresso no próprio texto de Kierkegaard: [...] Entre o homem e homem não há relação mais alta que esta: o discípulo é a ocasião para que o mestre se compreenda a si mesmo. Em sua morte, o mestre não deixa para trás de si nenhuma reivindicação sobre alma do discípulo, tampouco o discípulo tem a pretensão que o mestre lhe desse algo. Mas o deus (o divino) não precisa de nenhum discípulo para compreender-se a si mesmo; e assim nenhuma ocasião. Que é que pode, então, movê-lo a apresentar-se? Ele tem de mover-se a si mesmo e continuar sendo o que

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Aristóteles diz dele: “Sem mover-se move tudo”. Porém, se ele se move, então não é uma necessidade que o faz mover-se, assim como se não pudesse suportar o silêncio, mas precisasse irromper na palavra. Mas se não é por necessidade que se move o que é que o move, o que será, senão o amor? (KIERKEGAARD, 2011a, p. 44-45).

Dito isso, podemos continuar nossa tentativa hipotética de aproximação com as

construções soterológicas estabelecidas por Paul Tillich. O problema do pecado no

pensamento do teólogo alemão também está posto sobre a questão da Fé e do Cristo. Essa

realidade pode ser perfeitamente comprovada, sobretudo porque, para o autor, o cristianismo é

o que é através da afirmação de que Jesus de Nazaré, denominado o “Cristo”, é de fato o

Cristo, ou seja, é aquele que existencialmente comporta o novo estado de coisas, a saber: o

Novo Ser, cuja negação desta asserção (a ausência da Fé), significaria a abolição do próprio

cristianismo (TILLICH, 2005, p. 388). Nessa linha de raciocínio, começado como a primeira

questão (a Fé) Tillich procura deixar claro o duplo aspecto que compõe a respectiva palavra.

Ele destacou o lado positivo e negativo do termo. Primeiramente, do ponto de vista positivo, a

Fé é uma daquelas palavras extremamente utilizadas em todas as religiões. Mormente isso,

pode supostamente potencializar o diálogo, sobretudo na medida em que existe um elemento

linguístico ou terminológico comum (TILLICH, 1996, p. 5). Ao mesmo tempo, por outro

lado, e, talvez, até mesmo de forma paradoxal, do ponto de vista negativo, essa mesma

palavra tem sido ao longo dos tempos extremamente mal interpretada, levando inclusive a

muitos erros e equívocos (TILLICH, 1996, p. 5). Por isso, em sua Dinâmica da Fé, Tillich

propunha uma espécie de “cura” da terminologia (a Fé), para que só depois a mesma pudesse,

de fato, ser capaz de curar as pessoas que nela se refugiam (TILLICH, 1996, p. 5). Assim,

tentando evitar essas possíveis “contradições” ao defini-la, Tillich evita estabelecer

correlações com o senso comum, utilizando-se de termo famigerados como: “crença”,

“ausência de dúvida”, “certeza” etc. O conceito de Fé tillichiano deve estar posto sob o

âmbito ontológico, pois, segundo o mesmo, trata-se daquele estado humano caracterizado por

uma espécie de preocupação última. Ele diz:

Fé é estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente [...] estar possuído por quilo que nos toca incondicionalmente é um ato da pessoa como um todo. Ele se realiza no centro da vida pessoal e todos os elementos desta dele participam. Fé é o ato mais íntimo e global do espírito humano. Ela não é um processo que se dá numa seção parcial da pessoa nem uma função especial da vivência humana. Todas as funções do homem estão conjugadas no ato de fé. A fé, no entanto, não é apenas a soma das funções individuais. Ela ultrapassa cada uma das áreas da vida humana ao mesmo tempo em que se faz sentir em cada uma delas (TILLICH, 1996, p. 7-8).

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A partir desta alusão, Tillich afirma que a Fé não pode ser subjugada ou restrita a

“nenhum critério” que não seja aquele que é forjado por ela mesma, isto é, o da preocupação

última, o de estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente (TILLICH, 1996, p.

63). Nesse sentido, a Fé não é sustentada ou julgada por critérios: racionais, científicos,

históricos ou filosóficos. Se tentar validar os símbolos e os conteúdos da fé pelos critérios

desses saberes, ficaremos frustrados, pois sempre haverá tensões e conflitos. Para Tillich, a fé

tem a “verdade” na medida em que ela exprime adequadamente uma preocupação

incondicional (TILLICH, 1996, p. 63). É necessário entender os componentes que compõe a

sua dinâmica. A dinâmica da fé não se mostra apenas nas tensões e nos conflitos dos

conteúdos da fé, mas também na própria vida da fé (TILLICH, 1996, p. 63). A fé não nos

livra das ambiguidades da finitude caracterizadas pelas tensões entre o ser e o não-ser. No

entanto, sua presença na existência humana é de fato, tão expressiva, que proporciona à

coragem de vencer as contingências da dúvida e do risco, isto é, possibilita-nos a “coragem de

ser”. Tillich entende também que:

O uso da palavra “coragem” nesse contexto necessita de uma explicação, especialmente no que tange a sua relação com fé. Em termos bem breves se poderia dizer: A coragem é o elemento da fé que incorre no risco da fé Não se pode substituir a fé pela coragem, mas também não pode separar a fé da coragem. Nas obras dos místicos a “visão do ser” é descrita como um ser em que é transcendido o estado de crer. Isso se dá ou após o decurso da vida terrena ou em raros momentos já aqui na terra, Na união perfeita com a base divina do ser é anulada a separação e, com essa, se elimina incerteza, dúvida, coragem e risco. O finito é englobado do infinito. Esse não é, porém, o estado cotidiano da pessoa, na qual antes prevalecem finitude e separação e, com essas a fé e coragem de se arriscar. O risco diz respeito ao conteúdo concreto de uma preocupação incondicional. Nisso pode acontecer que não é o verdadeiro incondicional que está contido na fé, e sim algo condicionado, do qual foi feito um ídolo [...] O cristão sabe da possibilidade e quase inevitabilidade da distorção idólatra. Mas ele também sabe que na imagem do próprio Cristo está dado o juízo sobre tudo que é idolatra – na cruz. Da cruz também provém a mensagem dirigida ao homem, a qual perfaz o âmago do cristianismo e, antes de tudo, possibilita a coragem de crê no Cristo: a mensagem de que a separação entre Deus e homem foi superada pelo próprio Deus (TILLICH, 1996, p. 67-68).

Em seu livro a Coragem de Ser, Tillich aborda esses elementos de maneira

contundente. Nessa obra, Tillich aborda a noção de coragem como sendo aquela atitude

humana capaz de vencer as negatividades da vida individual (TILLICH, 2001, p. 105). Se o

homem pós Queda perdeu o mundo significante do seu eu, passando a viver em significações

fora de um centro espiritual, caracterizado por um estado existencialmente alienado, mesmo

assim, ele ainda tem consciência do que perdeu, ou está continuamente perdendo (TILLICH,

2001, p. 108). Embora não conhecendo uma saída em si mesmo, tenta salvar sua humanidade

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expressando a situação com uma “saída”, ou seja, reagindo com a coragem (TILLICH, 2001,

p. 108). Através da coragem, ele escandalosamente toma o desespero sobre si, passando a

resistir à ameaça radical do não-ser, pela instrumental coragem de ser como si próprio

(TILLICH, 2001, p. 109). Ora, Tillich vai associar o conceito de coragem a sua noção de “fé

absoluta” ou incondicional. Certamente há fé na elevação da alma, a tentativa de sobrepor-se

a si mesmo, indo do finito ao infinito, tem a sua força pautada na base do ser (TILLICH,

2001, p. 133). Em suma, a coragem de ser é uma expressão de fé em que a “fé” significa, ou

deve ser entendida, através da coragem de ser (TILLICH, 2001, p. 134). É necessário

definirmos a coragem como aquela autoafirmação do ser a despeito da finitude do não-ser

(TILLICH, 2001, p. 134). Grosso modo, a ponta desse iceberg, põe seus fundamentos sobre a

presença marcante de “Novo Ser”, este, nada mais é senão o próprio Cristo. Todos os

símbolos que possibilitam a fé na coragem de ser devem estar condicionados ao Novo Ser em

Cristo. Pois: A doutrina da expiação é a descrição do efeito que o Novo Ser em Jesus como o Cristo produz naqueles que, em seu estado de alienação, são tomados por ele. Esta definição aponta para os dois aspectos do processo de expiação: aquilo que, na manifestação aponta para os dois aspectos dos processos de expiatório, e aquilo que acontece ao ser humano sob este efeito expiatório. No sentido desta definição, a expiação sempre é, ao mesmo tempo, um ato divino e uma reação humana. O ato divino supera a alienação entre Deus e o ser humano na medida em que ele é uma questão de culpa humana: na expiação, a culpa humana é eliminada como fator que separa o ser humano de Deus. Mas este ato divino só é efetivo se o ser humano reage e aceita a eliminação da culpa entre Deus e o ser humano, ou seja, se ele aceita a oferta divina de reconciliação apesar da culpa. Portanto, a expiação possui necessariamente um elemento objetivo e outro subjetivo (TILLICH, 2005, p. 455).

Dessa forma, o ato divino e a reação humana é o que determina a doutrina da expiação

em Tillich. A Fé no Cristo só pode ser caracterizada pela efetivação de uma coragem de ser

capaz de “salvar” o homem. Com isso, a soterologia tillichiana, isto é, sua doutrina da

expiação, deve ser de fato, interpretada, de maneira não tradicional. Portanto, os seus

principais termos teológicos nela contidos, devem ser entendidos a partir do conceito de Novo

Ser em Cristo. Por exemplo: a Regeneração – é entendida como a salvação, como

“participação” do Novo Ser em Cristo (TILLICH, 2005, p. 460). A Justificação – tornou-se a

salvação como “aceitação” do Novo Ser em Cristo (TILLICH, 2005, p. 461). A Santificação –

constitui a salvação como “transformação” pelo Novo Ser em Cristo (TILLICH, 2005, p.

463). Na participação, predomina-se a atitude do Novo Ser em apossar-se daquele que ainda

encontra-se alienado no velho cativeiro. Trata-se do poder divino que se apodera do ser

humano e o atrai para dentro de si mesmo, o que o apóstolo Paulo chamava de “estar em

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Cristo” (TILLICH, 2005, p. 461). Na aceitação, termo ora tillichiano para definir o processo

de justificação, pressupõe a utilização da fé, ou seja, estado de ser possuído pela presença

divina, pois, a fé que justifica, não é um ato humano, embora no ser humano, fé sempre será

obra do Espírito divino (TILLICH, 2005, p. 462). Na transformação, Tillich defende que a

teologia da santificação é aquele ato no qual o poder do Novo Ser transforma a personalidade

individual e a comunidade de fé, de dentro para fora, o círculo eclesiástico (TILLICH, 2005,

p. 463).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final dessa dissertação, esperamos ter podido demonstrar como é de fato possível,

estabelecer conceitualmente uma espécie de entrelaçamento dialogal entre as reflexões de

Kierkegaard e Tillich. Partindo de suas antropologias, foram apresentados elementos

análogos, que nos permitiu fomentar uma alusão acadêmica e satisfatória. As definições de

homem sob a ótica kierkegaardiana puderam de fato, serem comparadas com as concepções

antropológicas de Tillich. Aquela típica antropologia platônica/ schellinguiana de que o

homem “caiu” do seu estado essencial, para vivenciar uma realidade existencial, é perceptível

tanto em Kierkegaard como Tillich. A ideia de que o homem é constituído através de um

processo de relação entre o finito e o infinito proposto por Kierkegaard, está presente na

chamada ambiguidades da finitude humana defendidas por Tillich. O reconhecimento de que

a existência humana é trágica e que acolhe uma hermenêutica do pecado original traduzida

através de conceitos como: desespero, angústia e alienação, servem como testemunhos dessa

mesma relação. Até mesmo aquela proposta de uma espécie de “soterologia indireta” de

caráter não confessional, que se efetiva pela instrumentalidade do paradoxo da fé, e do

escândalo de Cristo, que se encontram sustentada por uma preocupação incondicional é

praticamente quase que concomitantes em ambos os autores.

No entanto, não podemos esquecer também, de procurar apresentar alguns

apontamentos relevantes e necessários, que nos permite ou que sejam capazes de estabelecer

distinção e distanciamento entre eles. Essa possível ou suposta diferença entre Kierkegaard e

Tillich pode ser demonstrada através de dois pontos principais: (1) A postura de diálogo com

a cultura vigente; (2) A questão ou problema da ontologia. Vejamos:

No que diz respeito à postura dialogal com a cultura de suas épocas, é possível

perceber aproximação e distanciamento. Do ponto de vista da similaridade, tanto Kierkegaard

como Tillich estão dispostos a responder as demandas propostas pela cosmovisão que

norteavam os períodos históricos em que eles estavam inseridos. Ambos têm ou possuem uma

consciência teológico-filosófica contemporaneizada. Tanto Kierkegaard como Tillich

constroem seus argumentos e conceitos a partir dessas demandas. Tanto Kierkegaard como

Tillich utilizam-se de conceitos vigentes para serem ouvidos por seus pares. Portanto,

Kierkegaard e Tillich trabalham de forma semelhante ao reelaborar e resignificar conceitos

tradicionais religiosos (ROOS, 2009, p. 18). Pois, ambos “são figuras inspiradoras para se

pensar uma religiosidade que dialogue com a cultura de seu tempo e com as suas perguntas”

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(ROOS, 2009, p. 18). Nesse diálogo, é fundamental que se limpe os conceitos e se traduza

fórmulas que já não comunicam mais muita coisa (ROOS, 2009, p. 18). Porém, com uma

pequena margem de diferenciação, Kierkegaard procura responder as demandas da cultura

vigente de maneira relativamente implícita. Concordo com Jonas Roos (2009) quando ele diz

que Kierkegaard é mais facilmente visto como crítico da cultura de seu tempo, principalmente

em função de sua polêmica com a igreja dinamarquesa do séc. XIX. Entretanto, não se pode

esquecer que a crítica já pressupõe uma relação (ROOS, 2009, p. 18). 91 Isto é, a sua principal

preocupação, estava de fato em poder demonstrar a ineficiência da cultura, sobretudo em

relação à legitimação da existência humana e da espiritualidade vivida. A especificidade do

objetivo religioso é assim desenhada no próprio seio de uma crítica kierkegaardiana aos

sistemas filósofos. Ao mesmo tempo, ele está ligado ao caráter mediato da dialética que ele

opera entre filosofia sistêmica e a concretude da vida. O próprio método de Kierkegaard, ou

seja, toda sua estratégia literária de estabelecer uma espécie de comunicação indireta possui

muitas vezes a linguagem viva de seu tempo para colocar as perguntas existenciais a partir de

situações concretas imaginadas em seu próprio contexto (ROOS, 2009, p. 19).

Diferentemente, temos as propostas elaboradas por Tillich. Ora, é notório em Tillich que esta

mesma relação está posta de maneira mais explícita. Isto é, um dos pontos fundamentais de

seu pensamento é o que chama de Teologia da Cultura. Assim, Tillich entende as relações

entre religião e cultura não como polos opostos, mas como se esclarecendo mutuamente

(ROOS, 2009, p. 19). A religião, em termos amplos, dá substância e sentido à cultura, e a

cultura, por sua vez, engloba a totalidade das formas pelas quais a preocupação fundamental

da religião pode se exprimir (ROOS, 2009, p. 19). Proporcionalmente, a religião, por um lado,

mesmo em suas formas mais secularizadas, e a cultura, por outro, estariam em uma relação de

interdependência (ROOS, 2009, p. 19).

Já sobre a questão da ontologia, a relação ainda é mais complexa. Por exemplo, se

começarmos por Tillich, facilmente veremos que a questão da ontologia em seu sistema

teológico é expressamente latente. Tillich não só defendeu a utilização de conceitos clássicos

91 Outro apontamento significativo apresentado por Roos (2009) foi à questão do manejo como a filosofia. Na mesma entrevista fornecida à Revista do Instituto Humanitas Unisinos, o autor afirma que, enquanto Tillich elabora filosoficamente suas perguntas, sobretudo na medida em que ele entende que qualquer texto religioso lida com conceitos filosóficos como espaço, tempo, história, dever, liberdade, necessidade, etc. e que trabalhar com tais conceitos é tarefa filosófica, ainda que dentro da teologia ou da ciência da religião. Kierkegaard é mais socrático. Nesse sentido, embora ele procura elaborar sua pergunta filosoficamente, só a faz, através de um processo de desconstrução das falsas respostas, colocando o ser humano diante de seu próprio vazio existencial (ROOS, 2009, p.18). Assim, Kierkegaard parece consumir o falso conteúdo a partir de dentro, deixando a pessoa só com a casca, como fazia Sócrates. Mas, para Kierkegaard, a ironia não é a última palavra, é método que deve ser compreendido dentro da moldura de sua obra como um todo, o que, aliás, já se percebe com uma leitura atenta de sua tese sobre a ironia socrática (ROOS, 2009, p. 19).

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da metafísica como também propôs a elaboração de novos paradigmas. Toda a sua teologia

sistemática – para ser de fato compreendida – depende e muito, de um conhecimento prévio

de ontologia. Nesse sentido, um dos caminhos mais fecundos e produtivos para compreender

de maneira eficaz o pensamento de Tillich, deve obrigatoriamente começar por sua ontologia.

Inclusive, diversos pesquisadores no mundo todo têm seguindo esse percurso, ou seja, o de

procurar inscrever no hiato e no choque entre filosofia e teologia, entre o sagrado e o secular,

o mundano e o divino (CARVALHAES, 2006, p. 187). Por outro lado, a filosofia de

Kierkegaard supostamente estaria na contramão de qualquer tipo de ontologia. O aparente

legado do dinamarquês ser uma espécie de “patrono embrionário” do existencialismo, (Sartre)

faz com que o mesmo, de antemão, tenha certa aversão à metafísica tradicional. O que não

justificaria a ausência de uma ontologia. Em Kierkegaard, o correto a afirmar é que estamos

diante de uma ontologia velada. Segundo Paul Lübcke (2013) os pressupostos ontológicos de

Kierkegaard constituem um conjunto de condições necessárias – e frequentemente não

percebidas – para seu pensamento existencial (LUBCKE, 2013, p. 1). Grosso modo, de

acordo com esse mesmo pesquisador, é possível fazer três perguntas básicas em relação à

temática ontologia em Kierkegaard: (1) Climacus afirma que não podemos ter um sistema

existencial, ao passo que um sistema lógico é possível. Qual é o conteúdo deste “sistema

lógico”; (2) Como esse “sistema lógico” pode influenciar a sua famosa definição do ser

humano de: [...] De que homem é uma síntese entre o finito e o infinito, feita por Anti-

Climacus no início de Doença para a morte; (3) Como o “sistema lógico” define o que é

possível entender a partir da perspectiva humana e o que deve ser descrito como “um

paradoxo”, e como esse “paradoxo” deve ser interpretado? (LUBCKE, 2013, p. 1). Ora, esses

seriam apenas os primeiros indícios de uma ontologia na filosofia de Kierkegaard. 92

Obviamente, ficamos então, entre a aproximação e o distanciamento. A aproximação é

latente, sobretudo na medida em que tanto Kierkegaard como Tillich representam uma virada

hermenêutica nos conceitos tradicionais. As reflexões por eles produzidas permitiram e

trabalharam de formas semelhantes na reelaboração e na ressignificação dos conteúdos

religiosos (ROOS, 2009, p. 1). No entanto, não podemos evitar e muitos menos nos esquecer

dos elementos de distanciamento. Essa ambiguidade já mais acabará, mas a defesa de uma

postura dialogal é imprescindível. Talvez aqui resida o grande desafio que esta pesquisa 92 Lübcke ainda afirma que é possível traçar sistematicamente as matrizes da ontologia de Kierkegaard e quais são os seus desdobramentos na filosofia posterior. Em geral, ele defende que são muitas as associações como: Platão, Aristóteles, Kant, Hegel e, mais tarde, Trendelenburg que certamente são fontes importantes da ontologia de Kierkegaard. A parte desses filósofos – conhecidos internacionalmente – é preciso mencionar o dinamarquês Poul Martin Møller, que desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento inicial de Kierkegaard e a quem ele também dedicou “O conceito de angústia” (LUBCKE, 2013, p. 1).

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procurou demonstrar, tendo em vista que o alcance de obras de grandes pensadores é sempre

amplo e difícil de estabelecer (ROOS, 2009, p. 19). Ora, é exatamente de novo que é preciso

retomar a obra, se é verdade que, por um lado, é possível perceber traços de Kierkegaard em

Tillich, por outro, a esta mesma conclusão pode ser inconclusa.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

I. Obras de Kierkegaard

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III. Outras obras consultadas

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