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A ÊMOçno E n SUGESTÃO

nn GÉNESE Dns MANIFESTAÇÕES HISTÉRICAS

J & ^ / r tuf

Tip, a vapor da "Enciclopédia Portuguesa, Rua Cândido doa Reis, 47 a 49 —Porto

A EMOÇÃO E

A S u o ESTÃO na génese das manifestações histéricas

Dissertação inaugural apresentada à Faculdade de Medicina do Porto

P O R

H E R N Â N I BARROSA

Porto Outubro —1916

Faculdade de Medicina do Porto D I R E C T O R

Cândido Augusto Correia de Pinho SECRETÁRIO

ÁLVARO TEIXEIRA BASTOS

CORPO DOCENTE

Professores Ordinários e Extraordinários

, í Luís de Freitas Viegas I.» classe — Anatomia t _ . _ _ , , T .

I Joaquim Alberto Pires de Lima 2.» classe — Fisiologia e Histologia . .< , , , _ . . . _ .

I José de Oliveira Lima

3­a classe — Farmacologia Vaga

4.a classe — Medicina legal e Anatomia í Augusto Henrique de Almeida Brandão Patológica | Vaga

1 Joào Lopes da Silva Martins Júnior S­a classe—Higiene e Bacteriologia . .< , , , ^ . _, . . , D & 1 A l b e r t o Pereira Pinto de Aguiar

Í Cândido Augusto Correia de Pinho Álvaro leixeira Bastos

j Roberto Belarmino do Rosário Frias 7­a classe — Cirurgia . . . . . . , \ Carlos Alberto de Lima

^ António Joaquim de Sousa Júnior

í José Dias de Almeida Júnior 8.* classe—Medicina ■ José Alfredo Mendes de Magalhães

^ Tiago Augusto de Almeida

Psiquiatria António de Sousa Magalhães e Lemos.

Professores jubilados

José de Andrade Gramaxo Pedro Augusto Dias Maximiano Augusto de Oliveira Lemos.

Rrt. 155.° R Escola não responôe pelas doutrinas expendidas na

dissertação e enunciadas nas proposições.

{Regulamento da Escola de 23 de Abril de 1840).

jt memorie de meu ot>ô

J memória doS meuS amigos mortos

jYíanuel T$ezerra e

2)/*. João Saavedra,

camaradas de luta, irmãos de aspirações

A todos quantos teem um lugar no meu coração

Aquela que um dia fôr Santa do meu lar, Mãe dos meus filhos—Alma da minha Alma, pela vida fora, eternamente.

PfiEFÁ e/o

A Psiquiatria tem sido, adentro da Medicina, em Portugal, o que há alguns anos foi a poesia nefelibata do sr. Eugénio de Castro e quejandos — Silva esotérica para os Raros apenas.

Decerto que ao médico psiquiatra que propria­mente assim seja chamado—para o ser—se exi­gem qualidades invulgares de Inteligência, de Cul­tura e de Sentimento que lhe marcam um lugar seguro entre os Superiores na selecção social e que, por isso, tornam o estudo especializado deste ramo das Sciências Médicas tarefa grande demais para o fôlego de qualquer um. E não passe esta propo­sição com intuitos reservados de encarecer a nossa obra _ elaborada, de resto, nos breves lazeres de outros trabalhos por quem, como nós, se sente ainda na mais tenra infância do saber e sem, já se vê, curtir megalómanas pretensões de que ela nos guinde à excelsa galeria dos Imortais. Não— demais será repeti-lo.

Mas já que nas Escolas de Medicina o estudo

da Psiquiatria passa por ser um luxo dispensável e supérfluo, que só aos intelectuais serve de passa­tempo ao espírito,—e se não veja-se que num país como o nosso em que os loucos e os anormais abundam consideravelmente, só a reforma do En­sino Médico de 1911 obriga aos futuros médicos a uma frequência de três meses de tal especiali­dade—nestas linhas, que aqui deixo, seja-me per­mitido lembrar àqueles que me lerem (se é que a mais dos que por dever de oficio tiverem de o fazer, alguém possa passar por estas laudas os seus misericordiosos olhos) de lhes lembrar, dizia eu, que a Psiquiatria existe e que o conhecimento das questões gerais é sempre de grande utilidade, como de resto todo o saber que se adquire, e mui­tas vezes de tam grande necessidade na prática clí­nica mais terra a terra, que a sua falta só não será sentida por aqueles que votam à sua Arte o mais indecoroso dos despresos e não sentem, como eu sinto, o santo, intimo e grande orgulho de ser médico.

Aí fica uma afirmação que não se regista vul­garmente. É banal, que os que por aqui passam, manchem as primeiras páginas do seu trabalho inaugural com platónicos protestos contra a dis­posição legal que os obriga a escrever um livro, — horror à letra de forma que me parece mais uma manifestação dessa terrível epidemia que grassa em Portugal, de lés a lés, com um activo de 70 °l0 de casos fatais e que se chama o anal­fabetismo— de mistura com remoques azedos à arte que professam, donde às vezes nos fica a impressão de que perfilham o que por aí os igno­rantes ousam dizer dos médicos, que são, ainda hoje, com as sogras, quasi que os personagens obrigados de todas as anedotas de qualquer Al­manaque de Lembranças, que são o passatempo dos serões das meninas provincianas.

Mas o pior é que alguns dos velhos, prenhes daquela sabedoria salomónica que só a experiên­cia dá, confirmam os seus descabidos juízos. Efo-

ram principalmente estes, que por lá andavam há muito na vida, que turvaram os primeiros anos do meu aprendizado, que fizeram nascer na minha alma mais que juvenil o negrume do primeiro des­gosto, de quem sente e vê contrariadas as suas tendências.

Os meus primeiros passos da minha carreira foram dados, com aquela má vontade de um no­viço, mais propenso a correr aventuras do que ao sacrifício e à clausura abstinente, a quem obrigam a fazer votos...

Lembro-me ainda — e sinto-me bem recordan­do, agora que cheguei ao termo da jornada — dos meus primeiros anos de liceu, que ficava numa velha casa de fidalgos, sombria, húmida, chei­rando a bolor. Era numa ruela estreita, onde mal entrava o sol, mas onde algumas vezes a Dona Peste, cosida com as sombras, andava ceifando vidas, à ilharga de um tribunal e fronteira a outro, na má vizinhança de duas cadeias e de tabernas

de ruim fama, junto de duas igrejas, cujos sinos pela hora do meio dia repicavam forte, obri­gando algumas aulas a suspender—o que na­quela vida triste alguma alegria nos trazia, que nós fazíamos às vezes multiplicar à custa de uns vinténs com que presenteávamos o sineiro, o Júlio corcunda.

Foi nesse ambiente lôbrego, curtindo a minha nostalgia do Sol e do Ar livre, sugeita a uma disci­plina de pavor, que a minha alma de criança sofreu as suas primeiras amarguras, contrariada por me quererem fazer médico, eu que queria estudar as altas Matemáticas, eu que já revelara adentro do liceu uma queda para os números, que me rendeu umas classificações e fama corrida de precoce in­teligência, pois era então, como hoje continuará decerto a ser, a Matemática pedra de toque por onde se infere do valor de cada um.

Assim eu comecei querendo mal à Medicina. Mas nada mais verdade do que esta que eu li não

sei aonde: "ninguém jamais poude amar o que não conhece,,.

Por isso hoje, na hora suprema desta iniciação, eu quero mais uma vez abençoar a memória de quem me guiou pelo direito caminho, e tantos ser­viços me prestou que toda a minha gratidão fará míngua para os reconhecer.

E a esses, vazios de fé, que maldizem a Arte que professam, que os meus ouvidos os não ouçam mais.

Só com fé se triunfa na vida. Jesus dizia aos seus discípulos quando à volta da Transfiguração eles lhe preguntaram porque não puderam tirar do corpo do rapaz lunático o demo de que era pos­sesso:

" Por causa da vossa pouca fé. Porque na verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele há de passar e nada vos será impossível. „

E vá que dentro de mim há um mar inexaurí­vel de fé—como só devem sentir os que, como eu, não teem neste mundo categoria nem feitio para vencidos.

E para rematar as linhas que aí ficam à guisa de proémio, eu deixo exarada a expressão sincera do meu reconhecimento a todos quantos me pres­taram o seu valioso auxílio, especializando os exmos srs ^rs j o s e - fa Magalhães e gaía Júnior e o ilustre prof Magalhães Lemos, a quem devo a subida honra da presidência do meu acto grande.

Porto, Outubro, 1916.

C A P I T U L O I

As manifestações histéricas

*

AS CRISES

Dizia Sydenham que a histeria era um ver­dadeiro Proteu que se representava sob tantas cores como o camaleão.

Na verdade, são várias e múltiplas as mani­festações da histeria revestindo todos os aspe­ctos e incidindo sobre todos os aparelhos, que vamos passar em revista neste primeiro capí­tulo, e que servirão de base para nos capítulos seguintes estudarmos a natureza da histeria e a génese das suas manifestações.

Uma das manifestações histéricas que todos os tratados registam quando da descrição clás­sica da histeria, é o grande ataque — a Hysteria Major, a Histeria da Salpêtrière, — tal como Char­cot o descrevia, e a que os autores modernos já não ligam a importância que então lhe ligavam, a ponto de Grasset o considerar como o fenómeno capital da histeria como sintoma e como valor diagnós­tico. Hoje, com efeito, concordam os neurologis­tas e psiquiatras que tais manifestações histé­ricas são excepcionais na clíriica e que as que então se observaram, nada mais eram do que produtos artificiais, que só a sugestão produzia.

Mesmo no período em que a histeria assim se manifestava frequentemente, nem em todas as histéricas se verificava o ataque.

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O ataque pode surgir sem causa aparente­mente apreciável. Na maioria dos casos, uma excitação sensível, particularmente dos órgãos genitais, uma impressão psíquica qualquer como uma emoção viva, uma alegria intensa, um pe­sar profundo, a vista de um outro ataque, o de­sejo de se fazer notar, etc., seriam as causas mais vulgares do ataque.

Pode provocar-se por uma pressão leve so­bre as regiões chamadas histerogéneas : o ová­rio; a linha média da cabeça do bregma ao vertex ; o esterno ; os espaços intercostais na vi­zinhança do bordo do esterno ou da espádua abaixo do bordo externo da clavícula; abaixo dos seios ; sobre a linha axilar média abaixo e para fora dos seios ; apófises espinosas de algu­mas vértebras cervicais ou dorsais ou nas res­pectivas goteiras vertebrais; a parte central dos flancos; a prega da virilha, a alguns centí­metros abaixo da crista ilíaca.

Tal como o descrevem a maioria dos auto­res e entre os quais Grasset, que no seu Traité pratique des Maladies du Système nerveux nos dá dele uma maravilhosa descrição, podia-se con­siderar como acusando um período prodrómico, a que se seguiriam quatro períodos perfeita­mente distintos: o período epileptoide, o período das contorsões ou de acrobatismo, o período das ati­tudes passionais e o período terminal, de delírio.

No período prodrómico aparecem, em geral, perturbações consistindo num mal-estar indefi­nido e vago, inquietação, impaciência, impossi-

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bilidade que a doente sente de executar qual­quer serviço e de se conservar sossegada. Muitas vezes a mulher histérica neste período prodró-mico do ataque ri ou chora sem motivos. A es­tas perturbações de ordem geral associam-se outras, incidindo sobre os aparelhos da econo­mia como: perturbações do apetite, da diges­tão, náuseas, dôr e constrição epigástrica, solu­ços, sensação de opressão torácica, suspiros, palpitações, palidez ou rubor excessivo das ex­tremidades, poliûria, espasmos e abalos muscu­lares, trémulos, alucinações, etc.

Estas perturbações, que podem durar alguns dias, colocam a doente num mal-estar de tal ordem que ela chega a desejar a aparição do ataque que a restituirá à sua saúde normal.

O final deste período é constituído pela aura histérica que nada mais é na realidade do que o início do ataque. A aura inicia-se, em geral, por uma dôr surda ou lancinante, partindo de uma das regiões ováricas, mais frequentemente da esquerda, atingindo depois o cavado epigástrico dando uma sensação de constrição dolorosa, o que constitui para Piorry o primeiro nó da aura; depois é uma espécie de globo (bola his­térica) que sobe desde o cavado epigástrico até ao bordo superior do esterno ou até à laringe, produzindo uma sensação de estrangulamento e de sufocação que persiste durante algum tempo, esforçando-se muitas vezes a doente por se libertar de tam grande incómodo.

Segundo Charcot a aura pode dar ainda fe-

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nómenos mais elevados : silvos comparáveis aos de uma locomotiva que a doente sente no ou­vido, sensação de martelada na região tempo­ral e obnubilação visual, tudo do mesmo lado do ovário onde a aura se iniciou.

O ponto de partida da aura mais frequente é como atraz ficou dito o ovário esquerdo. Al­guns autores, porém, referem outros pontos de partida como sejam os membros, de onde a aura atinge o tronco e depois o cavado epi-gástrico; noutros casos a aura pode dar de princípio a sensação da bola histérica ou mesmo ser inicialmente cefálica. Para os antigos au­tores o único ponto de partida conhecido era o útero.

A aura pode ser completa compreendendo : o ovário, o epigastro, a garganta e a cabeça; ou incompleta quando se suprime algum ou algum destes estados: epigástrica, cefálica (Bernutz).

A aura segue-se —nem sempre imediata­mente — o primeiro período do ataque.

Período epileptoide. — Neste período o ataque semelha um ataque epiléptico com as suas três fases: tónica, clónica e de resolução. No mo­mento da sensação do estrangulamento a doente dá um ou vários gritos agudos, anun­ciando a perda da consciência, gritos que em nada se assemelham ao dos epilépticos que, como diz Bernutz, é rouco e sinistro, e que an­tes se parecem com os gritos de sofrimento de um operado e que podem fazer-se ouvir durante todo o ataque.

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É nesta altura que a doente cai. Mas em consequência do seu estado consciente durante o primeiro período do ataque ou do pressenti­mento que teem as histéricas do seu início, a doente escolhe o lugar em que poderá cair sem se ferir ou sem se queimar, como é vul­gar suceder com os epilépticos. A perda de con­sciência é então aparentemente absoluta; mas, a não ser em casos muito graves em que a in­consciência é tam absoluta como na epilepsia, a doente embora sem reagir, não deixa de vêr e ouvir tudo quanto se faz junto de si e pode, findo o ataque, recordar tudo quanto se pas­sou. Muitas vezes uma violenta emoção, um abalo moral poderoso ou a simples vista de um balde com a agua que lhe é destinado podem ser suficientes para terminar o ataque.

Nesta altura a sufocação está no seu auge apresentando a doente o aspecto de quem está em perigo de morte por asfixia.

O pescoço está tumefacto, as carótidas ba­tem violentamente, as veias cervicais ingurgi­tadas de sangue, a fisionomia cianosada, in­jectada, mas de uma expressão perfeitamente normal e assim permanece durante o ataque, o que a diferencia do fácies epiléptico, que apre­senta uum aspecto particularmente repelente,,.

Este estado de aparente asfixia apresenta por vezes uma intensidade tal, que se chegou a emitir a hipótese que as convulsões que se lhe seguem fossem originadas no espasmo laríngeo, tendo-se chegado a fazer traqueotomias com o

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fira de impedir a aparição das convulsões, que, aliás, nenhum resultado deram.

Na primeira fase deste período—correspon­dente à fase tónica de um ataque epiléptico — o corpo da doente está rígido como uma barra de ferro, os membros superiores em adução e rotação externa e os inferiores em extensão, com os joelhos fortemente colados um ao ou­tro, os pés em pé boto equino voltados para fora ou para dentro. Muitas vezes, a princípio, notam-se alguns movimentos lentos e extensos.

Numa segunda fase — a fase clónica—apa­recem abalos convulsivos ligeiros, repetidos, afectando todo o corpo. A respiração torna-se irregular; mauifestam-se soluços e da boca da doente surde uma espuma esbranquiçada.

Entra-se então na terceira fase deste perío­do — a fase de resolução após a qual a doente entra no

Período das grandes contracções ou de acroba-tismo. — Primeiro aparecem as contorsões ou atitudes ilógicas de Charcot, atitudes que não correspondem a nenhuma ideia, como as que a doente toma no último período do ataque.

A maior parte das vezes a doente coloca-se em opistotonos, apoiando o corpo simplesmente pela nuca e pelos calcanhares. Outras vezes é em emprostotonos ou pleurostotonos.

Vem depois uma segunda fase caracteri­zada pelas convulsões com a grande extensão dos seus movimentos e a desordem da sua sucessão.

A doente executa, com efeito, movimentos

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muito extensos com os membros e a totalidade do corpo, sucedendo-se desordenadamente, mas que se assemelham, individualmente considera­dos, a movimentos fisiológicos, ao contrário das contracções epilépticas. Por vezes, estes movi­mentos podem já representar uma ideia: é uma atitude de luta, de furor, de raiva, com gritos roucos ou agudos ; a doente arranca os cabelos, como que procura arrancar da garganta al­guma coisa que a asfixia.

Depois, dentro em pouco tempo, todos estes movimentos vão diminuindo de extensão, tor-nam-se menos desordenados ; a fisionomia com-põe-se, a doente parece voltar ao seu estado de saúde normal. Assim poderá suceder, mas o que acontece, quando não sobrevem nesta al­tura uma nova crise, é a doente entrar no pe­ríodo seguinte do ataque, o chamado

Período das atitudes passionals em posições plás­ticas, durante o qual o semblante da doente se anima, reflectindo as impressões mais diversas: umas vezes o seu jogo fisionómico exprime um terror intenso, outras uma alegria desmedida; por vezes é uma atitude de ardente voluptuosi-dade que a doente assume, os olhos em alvo, um espasmo cínico da fase, a bacia projectada para d e a n t e . . .

Aparecem neste período alucinações visuais e a doente é por assim dizer uma das persona­gens do drama que à sua roda os seus olhos lhe figuram.

Vem depois o

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Período de delírio, em que ao delírio de acção do período anterior se vem juntar um delírio de palavras, muitas vezes indiscreto e comprome­tedor-—pois durante êle as doentes contam fa­ctos da sua vida que lhes interessa esconder, cantam coplas obscenas, etc.

Alucinações auditivas e visuais acompa­nham este quadro.

Por fim uma crise de riso ou de choro con­vulso põe termo ao ataque e a doente volta a si, como quem desperta extremamente fatigado.

E eis, em resumo, o grande ataque histérico da Salpêtrière.

A crise histérica, tal como ficou descrita, está hoje, já nós o dissemos, relegada para o rol das curiosidades de museu, permita-se-me a expressão. O que vulgarmente se observa na clínica é o pequeno ataque de histeria — a Hys­teria minor — cuja evolução, segundo Pitres, se pode dividir em três períodos.

1.° — Período preconvulsivo — correspondente ao período prodrómico do grande ataque, apre­senta as mesmas perturbações, porém, atenua­das de intensidade. A aura só difere da do grande ataque porque, em vez de ter o seu iní­cio na região óvárica começa geralmente no epigastro, seguindo o mesmo curso, até à queda da doente O num estado de inconsciência mais

(') Para que o leitor não faça algum reparo em que só fa­çamos referências a doentes histéricos do sexo feminino, aqui afir-

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ou menos completo, segundo a intensidade da crise.

2.0 — Período convulsivo. Na primeira fase deste período — a fase tónica — a respiração é como que suspensa, a face congestionada, o pescoço entumescido, apresentando a doente o aspecto de uma asfixiada.

Depois vem a fase clónica com os seus movimentos ilógicos, extensos, desordenados, o corpo curvando-se levemente em epistótonos, apenas esboçando o arco de círculo. A doente solta gritos, aperta fortemente uma contra a outra as maxilas e da sua boca surde uma es­puma esbranquiçada.

A doente cai depois em resolução. O período das atitudes passionais mal se

manifesta; uma ligeira mímica, um leve gesto expressivo traindo um sentimento interior e nada mais.

3.°—Período post-convulsivo. A doente está em resolução muscular. O delírio de palavras apa­rece, sem gestos, sem mímica, mas quási sem­pre com intonações, inflexões de voz subli­nhando as frases e perfeitamente acordes com a ideia manifestada. Muitas vezes um ataque de riso ou de choro vem, como na grande his­teria, pôr um ponto final à scena desenrolada. A doente volta a si como quem desperta de

mamos não desconhecer a existência da histeria masculina. Somente assim fazemos por ser a histeria muitíssimo mais frequente na mulher.

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um sonho, esfregando os olhos, lançando em roda um olhar de espanto.

E assim termina o ataque histérico vulgar.

Claro que nem sempre as crises histéricas se manifestam com a regularidade matemática com que acima as deixamos descritas, antes se conhecem variedades clínicas que interessante será referir.

A vertigem histérica, que não é mais que um ataque frustre e que se reduz a um ligeiro mal--estar, uma obnubilação visual, zumbidos nos ouvidos, uma vertigem que breve passa sem produzir a queda da doente. Esta vertigem ó de difícil diagnóstico como manifestação histó­rica, em doentes ainda não como tal conside­radas, e que não apresentaram ainda outros sinais de tal doença.

0 chamado ataque de espasmos constitui tam­bém uma forma abortada da crise histérica, que neste caso se reduz simplesmente à aura.

Uma outra forma clínica da crise histérica particularmente interessante ó o chamado ata­que epileptoide e por outros ataque de histero-epile-psia, que o consideram como uma espécie de hibrido da histeria e da epilepsia—o que ó negado pela grande maioria dos autores e en­tre eles Charcot, que diz que as duas afecções podem coexistir no mesmo indivíduo, com as suas crises distintas.

Landouzy refere um caso de uma histérica,

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que sofria também de ataques epilépticos e que casou, tendo conseguido ocultar ao marido a existência da sua epilepsia. Uma gravidez que sobreveio pôs termo à sua histeria, persistindo, porém, as crises epilépticas.

"As duas névroses podem coexistir, diz Grasset, ficando distintas, como pode uma pneumonia atacar um epiléptico ou uma fra­ctura um tuberculoso „.

O ataque epileptoide é hoje considerado como o ataque histérico reduzido ao seu primeiro período — período epileptoide — com as suas três fases, tónica, clónica e de resolução.

O diagnóstico com o verdadeiro ataque epiléptico é que nem sempre, e até frequente­mente, é empresa de fácil realização. Algumas diferenças se apontam, que vamos enumerar, mas que não são muito absolutas.

O ataque epiléptico aparece, em geral, na segunda metade da noite ou então de manhã; frequentemente são acompanhados de inconti­nência urinária e mordeduras da língua, e se­guidos de um longo período do estertor. Nada disso sucede vulgarmente na histeria, mas não se desconhecem casos, raros é certo, em que assim acontece.

A não verificação dos chamados estigmas histéricos também não pode ser concludente porque podem faltar no primeiro período da doença e por outro lado, já acima o dissemos, as duas afecções podem coexistir no mesmo indivíduo.

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Outra diferença seria, para alguns autores, que a primeira crise histérica tem uma causa provocadora qualquer (uma emoção, por exem­plo) ao passo que assim não sucedia com a crise M epiléptica, que, na verdade, pode aparecer sub­sequentemente a um movimento de cólera, a uma impressão de profundo terror, etc.

Babinski aponta dois sinais muito vulgares na epilepsia (mas não constantes) e que faltam por completo na histeria, não podendo ser simu­lados: o fenómeno dos dedos dos pós (o cha­mado sinal de Babinski) e a lividez do rosto e dos lábios.

Como diferenças mencionam-se ainda, a in­tegridade dos reflexos tendinosos, cutâneos e oculares na histeria, a terminação da crise his­térica por uma forte compressão ovárica, o aspecto normal da fisionomia e a frequente sucessão em série dos ataques histéricos epi-leptoides, enquanto as verdadeiras crises epilé­pticas são isoladas. Com efeito, muitas vezes quando o ataque parece já próximo do seu termo, um outro sobrevêm, e logo outro, su-cedendo-se em série, às vezes bastante dura­doira. Charcot cita um caso em que os ataques desta ordem se sucederam consecutivamente durante dois meses. Só num dia contaram-se 150 a 200 ataques desde as 9 horas da manhã às 8 horas da noite.

O ataque demoníaco caracterizado pela predo­minância dos fenómenos próprios do segundo

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período. Contorsões, movimentos estranhos e desordenados, gritos de furor, de raiva, às ve­zes, contracteras e alucinações.

O ataque de acrobatismo também com predomi­nância dos fenómenos do segundo período, mais frequente na infância. O doente executa gran­des movimentos desordenados ou ritmados, salta obstáculos, dà cambalhotas, etc., sem perda, pelo menos absoluta, de consciência, reconhecendo as pessoas — tudo como se esti­vesse desempenhando o seu papel numa pan­tomina de circo.

O ataque de êxtases ou de atitudes passionals em que a doente, com ou sem prévia aparição da aura, toma uma atitude passional, como que mergulhada num sonho interior, indiferente a tudo que a cerca, insensível a qualquer picada ou contusão cutânea. Muitas vezes um gesto, algumas palavras explicam o que se passa den­tro de si.

O despertar desta crise pode ser brusco ou pelo contrário muito longo. As crises desta or­dem podem intervalar com outras de natureza convulsiva.

O ataque sincopai, em que a doente após uma aura de curta duração se sente desfalecer e cai, com perda de consciência, abolição das sensa­ções e dos movimentos, resolução muscular, suspensão ou, pelo menos, enfraquecimento no-

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tável das pulsações cardíacas e dos movimen­tos respiratórios. Algumas vezes esboçam-se pequenos movimentos e a doente solta alguns soluços ou chora.

O ataque de sono em que a doente após a aura se sente progressivamente invadida por uma so­nolência, ou então cai bruscamente num sono profundo.

A sua aparência é a de quem dorme natu­ralmente ; o rosto ligeiramente corado, as pál­pebras animadas de pequenas vibrações, re­sistindo fortemente à abertura. As maxilas cerradas, as pupilas sensíveis, os membros li­geiramente contracturados conservam as ati­tudes que se lhes imprime ; a respiração muitas vezes é normal, mas superficial. O pulso con­serva o ritmo normal; as sensibilidades geral e especiais parecem absolutamente abolidas ; mas, de facto, as sensações são percebidas e conser­vadas, recordando-se a doente, após a crise, de tudo quanto se passou. As doentes podem mes­mo receber sugestões durante o ataque.

A duração destas crises é muito vai-iável: de algumas horas, alguns dias, alguns meses e até, raramente, alguns anos.

Pode a doente despertar com uma hemiple­gia motora e sensitivo-sensorial ; mas, ordina­riamente, é uma crise convulsiva, de riso ou de choro, ou um delírio de palavras que põe termo ao ataque.

É importante reconhecer bem a natureza do

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ictus histérico, que pode às vezes simular apo-plexias orgânicas determinadas por lesões em foco do encéfalo ou por uma intoxicação, parti­cularmente o coma urémico.

Os antecedentes, o frémito das pálpebras, os movimentos de saudação que as doentes executam, as atitudes passionais esboçadas, a falta de elevação ou de abaixamento de tempe­ratura, a ausência do sinal de Babinski, permi­tem a maioria das vezes pôr o diagnóstico de ictus histérico.

Muitas vezes as histéricas apresentam fenó­menos de automatismo ambulatório, muito semi-lhantes ao automatismo epiléptico. A doente abandona a sua casa, deixa as suas ocupações e empreende verdadeiras viagens, ficando de­pois muito surpreendida, ao terminar a crise, de se achar em tal ponto. Não ó sempre incon­scientemente, mas às vezes determinada por uma ideia, que a doente toma o seu caminho.

AS MANIFESTAÇÕES FUNCIONAIS NOS DIVERSOS APARELHOS DA ECONOMIA

Não são menos interessantes de conhecer as manifestações histéricas nos diversos aparelhos da economia do que propriamente as crises; já porque estas não aparecem em todos os casos de histeria averiguada, dando as estatísticas, aliás pouco concordes, uma média de 50 (Bri-

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quet) a 63 (Pitres) por cento, revelando-se nos restantes casos a doença por perturbações fun­cionais de qualquer ordem ; já porque as mani­festações funcionais da histeria simulam as afe­cções orgânicas localizadas nesses aparelhos e o seu perfeito diagnóstico importa um método de tratamento próprio e um prognóstico bem di­verso do que haveria a formular no caso de le­são orgânica existente.

Começaremos o nosso estudo pelas

Perturbações digestivas

Vários autores e entre eles Lasègue e Char­cot assinalam a existência de uma anorexia his­térica, mais vulgar nas raparigas, que pode re­vestir todos os graus desde o mais benigno ao mais grave.

Quando a anorexia apresenta uma certa in­tensidade, o emmagrecimento e o enfraqueci­mento consecutivos poderão ser de tal ordem que a doente fica impossibilitada de executar qualquer movimento, mesmo o voltar-se no leito. Uma anorexia corn tal carácter, não tra­tada convenientemente, comporta um prognós­tico dos mais sombrios, podendo mesmo chegar a doente a um tal estado de decadência orgâ­nica em que já não é possível regeneração al­guma, e só é de esperar uma terminação fatal. Charcot assinala 4 casos desta ordem, que ter­minaram pela morte das doentes.

Alguns autores, sem negar de modo algum

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a existência desta perturbação funcional em indivíduos psiconevrosados, não anuem a filia­da na histeria (Dutil e Laubry), preferindo des­crevê-la sob a denominação de anorexia mental (primitiva ou secundária). Mais tarde nos refe­riremos a este assunto.

A disfagia e o esofagismo histéricos consistindo na contracção espasmódica faringo-esofágica, que sobrevem na ocasião da passagem dos ali­mentos e que pode ser absoluta e portanto grave pela inanição que acarreta, ou eletiva, de carácter muito mais benigno.

Os vómitos, acompanhando muitas vezes a disfagia ou a anorexia histéricas, outras vezes aparecendo isoladamente, podem ser passagei­ros ou persistentes e incoercíveis ; sobrevir ime­diatamente ou muito depois da ingestão dos alimentos, acompanhados ou não de dores na região epigástrica e até acompanhar-se de um cortejo sintomático — e os casos são frequentes — que fazem pensar, a uma primeira impres­são, numa lesão orgânica do estômago, como a úlcera redonda. (9

Estes casos são, como dissemos, vulgares na clínica de todos os dias. Observamos já uma

(') É um princípio adoptado na clínica de doenças de estô­mago, no caso de lesões orgânicas, que o que regula a intensidade dos sintomas gástricos e mede a gravidade do prognóstico é a maior ou menor permeabilidade do piloro. 6Não se poderá explicar, portanto, a sintomatologia apresentada pelas histéricas por uma contractura do músculo gástrico na região pilórica, limitando a sua abertura? Parece-nos que assim possa ou deva ser; por isso aqui deixamos a nossa opinião, que nunca vimos emitida por autor algum.

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mulher que apresentava toda a sintomatologia da úlcera do estômago: dores muito intensas após as refeições, localizadas no epigastro, que se calmavam quando um vómito lhe permitia fazer a evacuação do conteúdo estomacal, e até acusava hematemeses. Estas hemateme­ses, nunca ninguém as viu e só por a doente as referir se soube da sua existência; demais, estava sendo cuidada há uns dois meses, se a memória me não falha, por quem tinha mais que sobeja competência profissional, sujeita a um regime dietético rigoroso e que era rigoro­samente cumprido (tratava­se de uma doente internada no Hospital Geral de Santo Antó­nio). Não acusava melhoras apreciáveis, tendo­■me declarado por esse tempo que tivera de noite duas pequenas hematemeses, a que o pes­soal da enfermaria não assistiu e de que eu não vi sequer vestígios.

A doente acusava a existência de crises his­téricas e o seu aspecto era de quem gosa uma saúde muito regular e de modo algum o de quem vinha fazendo uma úlcera gástrica há mais de dois meses com perdas contínuas de sangue, embora pouco abundantes, e uma gas­trite ha uns dois anos.

Pus o meu diagnóstico de manifestações histé­ricas gástricas simulando a úlcera redonda. Ainda me passou pela mente, a mim que já andava projectando a confecção deste trabalho, obser­var mais profundamente o caso, tanto mais que consegui averiguar que uma companheira da

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doente, cozinheira da casa em que ela servira, padecia do estômago, apresentando uma sinto­matologia que me pareceu ser de uma úlcera gástrica. Pensei mesmo em fazer um pouco de psicoterapia à mulher, mas bem pronto desisti, bem depressa me capacitando de que estava a sonhar com o impossível tam falho de recursos e meios me topei — eu que me não tinha recor­dado que a prática hospitalar da nossa Facul­dade era mais uma das obras de Misericórdia da Santa Casa do Porto.

Não foi este o único caso hospitalar de que tive notícia, nem sequer o único que passou pelas enfermarias do serviço da 2.a clínica mé­dica, o que até certo ponto mostra a sua fre­quência, que nunca será demais fazer notar; pois, muitas vezes um tratamento instituído no sentido de combater a afecção orgânica, que a falsa gastropatia simula, é de resultados inver­sos, fazendo persistir e até agravar o mal em vez de o curar. O que nestes casos sucede, su­cede também com todos os falsos gastrópatas de origem nervosa, que durante anos e anos vão arrastando a sua vida pelos consultórios de especialistas tratando uma doença que não teem e do tratamento colhendo resultados contrapro­ducentes. 0 facto de se julgar muito ingrata a clínica das doenças do estômago deve ser ori­ginado na reconhecida ineficácia do tratamento em muitas gastropatias, cuja origem psíquica o especialista não descobriu, porque o seu espí­rito, orientado no sentido da sua especialidade,

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não lhe consente olhar livremente em volta de si, e reconhecer, depois de uma cuidada análise, sem ideias preconcebidas, como deverá sempre proceder quem merece o nome de bom clínico, de onde vem o mal.

A timpanite é outra manifestação histérica, generalizada a todo o abdomen ou localizada, aparecendo concomitantemente com as crises ou nos seus intervalos, aparecendo umas vezes bruscamente, outras lenta e progressivamente, de evolução passageira ou de longa duração.

_ A timpanite pode simular tumores abdomi­nais e até uma gravidez —de que trataremos noutra parte deste capítulo.

A péritonite histérica, que apresenta todo o quadro sintomático de uma verdadeira périto­nite, com vómitos, constipação intestinal, hipe-restesia abdominal, mas a que falta a febre. Outras vezes é o quadro de uma oclusão intes­tinal, que se instala, aparecendo a doente com meteorismo, constipação absoluta e vómitos ali­mentares; muitas vezes também os vómitos fe-caloides aparecem, mas a sua existência afigu-ra-se duvidosa, antes parecendo que as doentes voluntariamente deglutem as fezes, apresen­tando depois esses vómitos que elas próprias fizeram.

Pode muitas vezes simular a apendicite com todo o seu quadro clínico. Berthier e Milian re­latam um caso de apendicite récidivante, apre­sentando duas crises, em que a doente foi ope­rada e que após a intervenção apresentou uma

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nova crise apendicular, que curou pelo simples tratamento psíquico.

Observa-se também o espasmo ano-rectal, produzindo uma constipação absoluta, acom-panhando-se de vivas dores e opondo-se ao to­que rectal, que simula um aperto orgânico do recto.

São estas as manifestações funcionais, mais importantes, interessando o aparelho digestivo.

Estudaremos agora as

Perturbações respiratórias

Entre as perturbações respiratórias produzi­das pela histeria, as que ocupam um lugar mais importante são as manifestações laríngeás.

São, por exemplo, as manifestações larín­geás, aparecendo segundo um ritmo regular, que se acompanham de certos ruídos, soluços, bocejos e sons que imitam a voz dos animais, coexistindo com hiperestesias, sensação de cor­po estranho, ou pontos dolorosos nas vias res­piratórias superiores.

O soluço, que constitui uma manifestação histérica vulgar e que é produzido por uma con­tracção brusca do diafragma, de origem reflexa peritonial, gástrica, esfógica ou laríngea, não é propriamente um fenómeno de ordem respira­tória mas costuma ser descrito neste lugar.

A tosse histérica é outra manifestação muitas vezes observada. Aparece, em geral, nas rapa­rigas na ocasião da puberdade e produz-se, por

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paroxismos perfeitamente regulares, de três em três ou de quatro em quatro expirações que a doente executa.

Não se manifesta durante a noite, não pro­duzindo por isso a insónia, tam vulgar nas tos­ses de origem orgânica; surge em consequência de uma emoção, de uma inflamação passageira das vias respiratórias superiores ou por imita­ção de um ataque de tosse observada noutra pessoa. A leitura em voz alta, a distracção, cer­tas atitudes que se mandam tomar à doente fa-zem-na desaparecer.

Algumas vezes a tosse histérica apresenta um carácter mais grave, manifestando-se por ver­dadeiros ataques coqueluchoides, acompanhan-do-se de espasmos do diafragma e da glote e de sufocação. Nestes casos, estas crises de tosse são precedidas de uma aura (bola histérica) e são motivadas por qualquer emoção moral. Não se observam durante a noite e não se acompa­nham de expectoração, nem de opressão, ou fa­diga consecutivas. De resto, pode desaparecer bruscamente e é curável pelos meios psicote-rápicos.

Os espasmos laringeos notam-se também nas histéricas. Traduzem-se por uma sufocação que a doente sente, acompanhando-se de pieira e tiragem supra-external. Podem aparecer a se­guir a uma emoção e tomar um carácter paro-xístico ou permanente. O exame laringoscópico mostra a glote e as cordas vocais perfeitamente abertas. Não se acompanham de cianose, des-

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aparecem durante o sono, diminuem de inten­sidade durante a insónia e quando a doente se não julga observada; o estado geral é bom e são susceptíveis de curar pelo tratamento moral.

Outra perturbação de localização laríngea é a afonia histérica — que não deve confundir-se com o mutismo histérico, que será estudado mais adeante. A afonia, muitas vezes acompanhada por uma anestesia da mucosa laríngea e da pele das regiões supra- e infra-hioideas, manifesta-se pela impossibilidade que a doente sente de se poder exprimir em voz alta, vendo-se obrigada a falar como que em segredo; no entanto, esta impossibilidade de emitir a voz com a sua in­tensidade e timbre normais não existe já para o canto ou para as palavras proferidas durante o sonho. A tosse é igualmente sonora. O exame laringoscópico não acusa paralisia alguma das cordas vocais.

Os tratadistas que versam a histeria assina­lam a existência de hemoptises de origem histéri­ca, considerando-as como hemorragias suprindo a ausência de menstruação O. E, se todos eles estão de acordo em que as doentes as acusam, já o mesmo não sucede quanto à sua importân­cia e significação que para alguns — como De-jerine — não passam, como as hematemeses, de factos que só devem ser atribuídos à simulação.

(') Não se pode aceitar essa interpretação porque estas he­moptises se observam também nos homens atacados de histeria.

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Perturbações circulatórias

São perturbações de ordem vaso-motora e motivadas por um agio-espasmo ou por uma angio-paralisia, produzindo equimoses subcutâ­neas, edemas e hemorragias.

É em consequência de um espasmo localiza­do que uma picada numa histérica pode não san­grar, como qualquer outro traumatismo ligeiro.

É uma angio-paralisia que dá lugar a equi­moses subcutâneas, que tomam, às vezes, aforma de letras, corações, cruzes, etc., que se aplicam sobre a pele (dermografismo), como a certas he­morragias (epistáxis, hematúrias, suores de san­gue, lágrimas de sangue), às hematemeses e he­moptises, cuja existência real é hoje duvidosa, e aos edemas (azul, branco e vermelho).

Todas estas manifestações gosam do cará­cter comum das manifestações histéricas, que é poderem ser reproduzidas ou suprimidas por sugestão. Luys curou por este processo uma larga mancha facial de côr vinosa existente no rosto de uma doente e o prof. Júlio de Matos relata um caso por êle observado de edema do seio, doloroso e unilateral.

São ainda fenómenos devidos a angio-es-pasmos e a angio-paralisias a pseudo-angina pec­toris e a pseudo-vertigem de Mérnière. Alguns au­tores também explicam a poliúria e a anuria histéricas e a perda de consciência por angio--espasmos ou angio-paralisias viscerais.

Perturbações cardíacas atribuidas à histeria

não as registam os autores. Talvez porque, como diz Dejerine, "de todas as funções da economia, a circulação é talvez a que, em menor grau, pode ser modificada pela vontade. Enquanto, numa certa medida, se pode deter a respiração, enquanto uma simples representação mental sem o concurso de manifestações emotivas, é susceptível de entravar os fenómenos da diges­tão, no que respeita à circulação tal não existe. As acções voluntárias, as representações men­tais de toda a ordem, são por si mesmas incapa­zes de modificar a contracção cardíaca, de lhe alterar o ritmo ou de lhe modificar a potência. „

Perturbações urinárias

Principalmente nos homens sofrendo de his­teria, assinala-se algumas vezes uma poliúria intensa que pode atingir 10, lõ, 20 e até 25 li­tros de urina diariamente emitida. Esta poliúria vem acompanhada de polidipsia intensa.

Para alguns autores nas desmesuradas po-liúrias não deixaria de entrar a simulação.

Outra manifestação urinária é a anuria histé­rica, ou simplesmente iscúria, negadas por alguns autores como manifestação histérica, porque não dependendo da vontade a secreção urinária não poderia ser perturbada por uma representação mental e para os quais os casos conhecidos e descritos como tais, seriam de pura simulação, que uma apertada vigilância dos doentes per­mitiria descobrir ou então evitar.

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No entanto, a anuria histérica foi admitida e descrita por vários autores e entre eles Char­cot, Fernet, Regnard, etc., que relatam vários casos dessa ordem. A anuria vem muitas vezes acompanhada de vómitos contendo ureia em proporção notável; outros consideram a anuria secundária aos vómitos.

A retenção urinária acompanhando-se de anes­tesia da mucosa vesical seria para aqueles auto­res uma outra manifestação histérica, já admis­sível, visto estar sob a influência da vontade. Seria curável pela psicoterapia.

Perturbações genitais

Na esfera genital assinalam-se o vaginismo e as contracturas dos adutores, o apetite gené­sico exagerado de muito vulgar observação, e pelo contrário a frigidez sexual.

Mas as perturbações genitais mais curiosas e que mais importa conhecer são as que consti­tuem a pseudo-gravidez histérica.

Devido a uma auto-sugestão, as doentes muito desejosas de ser mães ou muito receosas de conceber, podem apresentar todos os sinto­mas de uma gravidez: desde a supressão das regras, abaulamento progressivo do hipogastro (devido a modificações da consistência da pa­rede muscular), modificações dos seios próprios de uma gravidez fisiológica, calores, vómitos, coloasma uterino, etc.

Muitas vezes tudo isto evolui até que, na

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época própria, a doente entra num falso traba­lho de parto. E o diagnóstico da falsa gravidez só então, às vezes, se pode fazjer, tam perfeita­mente ela é simulada.

Perturbações neuro-musculares: as paralisias e as con-tracturas. Perturbações da sensibilidade geral e especial

Entre os acidentes histéricos teem a maior importância as manifestações que incidem so­bre o sistema neuro-muscular, algumas das quais lhe são características.

Todos os músculos, quer lisos, quer estria­dos, podem ser atingidos de contracturas e pa­ralisias histéricas.

Dejerine define assim a contractura e para­lisia :

" Contractura é uma contracção tónica persis­tente e involuntária de um ou mais músculos da vida de relação.,,

"A paralisia é constituída pela abolição mais ou menos completa da motricidade voluntária (músculos estriados) ou da motricidade reflexa (músculos lisos).,,

A contractura pode ser monomuscular, ou atacar um grupo de músculos, um segmento de um membro, um ou mais membros comple­tos. O músculo ou grupos musculares contractu-rados apresentam uma rigidez extrema.

As paralisias podem apresentar o tipo mo-noplégico, hemiplégico ou paraplégico.

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Tanto as contracturas como as paralisias aparecem a maior parte das vezes bruscamen­te, a seguir a uma violenta emoção, mas podem também aparecer lentamente atingindo o seu máximo só ao cabo de alguns dias.

Podem durar de alguns minutos a alguns anos.

O que caracteriza tanto as paralisias como as contracturas histéricas é que estas não apre­sentam como as orgânicas nem abolição (para­lisias nevríticas) ou exagero (paralisias e con­tracturas ligadas a alterações dos feixes pirami­dais) dos reflexos tendinosos, nem atrofia mus­cular com reacções de degenerescência (*).

(L) Não estão lodos os autores de acordo quanto à anormali­dade dos reflexos nas paralisias histéricas.

No livro Les Manifestations fonctioner-elles des Psychonévroses — Leur traitement par la Psychothérapie de Dejerine e Gauckler encontra-se o seguinte que para aqui traduzimos fielmente :

«Nas histéricas, fora dos acidentes, podem observar-se estados diferentes dos reflexos. Mas o problema interessante é levantado pe­las modificaçõea que podem sofrer os reflexos no decurso dos aci­dentes histéricos e em particular das paralisias. Pode, nas para­lisias histéricas, observar-se um exagero mais ou menos considerável dos reflexos tendinosos. iÊste exagero da reflectividade pode ir até à produção do clonus do pé? De facto, um de nós poude observar, pondo de parte toda a associação orgânica, pondo-se ao abrigo de toda a simulação possível, factos positivos da produção deste fenó­meno nas histéricas; mas trata-se de um fenómeno muito raro: A histeria, directamente ou indirectamente, seria pois capaz duma verdadeira libertação do automatismo medular.

Na histeria, no decurso das paralisias ou das hemianestesias pudemos verificar num certo número de casos e de uma forma abso­lutamente positiva a desaparição do reflexo cremasteriano. No que respeita ao reflexo cutâneo plantar, nunca encontramos nas hisléri-

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Uma das manifestações mais frequentes de paralisia histérica é a hemiplegia histérica, à pri­meira vista de aspecto muito similhante a he­miplegia orgânica. Dela se diferencia por vários caracteres a saber: é, em geral, uma hemiplegia incompleta, tendo a sua sede de preferência do lado esquerdo do corpo; mas enquanto na he­miplegia orgânica o doente tem uma marcha helicópoda, o hemiplégico histérico anda arras­tando o seu membro paralizado, como, diz Todd, "se se tratasse de um objecto de matéria inanimada,,. E esta marcha, arrastando o mem­bro paralizado atraz de si, um dos melhores ca­racterísticos da hemiplegia histérica, que, aliás, ao contrário da hemiplegia orgânica respeita quási sempre a face ; e, se alguma perturbação a face apresenta é um hemiespasmo glosso-la-

cas u. flexão dorsal do dedo grande (sinal de Babinski). Pelo contrá­rio, julgamos que o reflexo cutâneo plantar assim como o do tensor do faseia lata, podem estar abolidos nestes doentes, do lado he-mianestesiado. Um de nós observou três exemplos no seu serviço no decurso do último ano. Nestes três doentes, duas mulheres e um homem, atingidos de hemianestesia absoluta, a planta do pé não correspondia a qualquer excitação e o reflexo do tensor do fas­eia lata estava igualmente ausente. Do lado são a reacção dos dedos e do tensor do faseia lata efectuavam-se como no estado normal. Dois destes doentes curaram-se da sua hemianestesia e recupera­ram então o reflexo cutâneo plantar e o do faseia lata.

Não insistiremos mais sobre esta questão dos reflexos. 0 único ponto doutrinário que nos importa verdadeiramente é saber que, numa larga medida, influências puramente psíquicas são capazes de arrastar modificações nos fenómenos, habitualmente considerados como puramente automáticos.

Não há, de resto, nada a admirar, se se pensar na existência evidente, como manifestações funecionais das psiconevroses, per­turbações que, como os espasmos e as contracturas não são em

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bial. Além disso, a histérica apresentará outros sinais que ajudam a confirmar o diagnóstico.

Babinski estabeleceu um quadro dos sinais que permitiam distinguir uma hemiplegia or­gânica de uma hemiplegia histérica e que, re­sumidamente, aqui apresentamos :

" 1 .o Nesta, a paralisia não é, como naquela, "limitada a um só lado do corpo, particular­m e n t e na face em que as perturbações são ge­ra lmente bilaterais.

"2.° A paralisia orgânica não ó sistemá­t i c a . Se, por exemplo, na face os movimentos "unilaterais são muito enfraquecidos, a impo­nência aparece também com nitidez do lado "da hemiplegia durante a execução dos movi­men tos bilaterais sinérgicos. O contrário se "observa nas hemiplegias histéricas.

suma mais do que reflexos permanentes, persistentes, estereotipa­dos de alguma maneira».

No mesmo livro, quando discute o facto das contracturas his­téricas desaparecerem ou não durante o sono dizem os autores :

«Se a contractura histérica se desfizesse durante o sono, 6como se poderia explicar, em algumas destas doentes de retracções fibro­sas, que, às vezes, somos obrigados a vencer sob a acção do cloro­fórmio ? Já vimos uma doente contracturada de três membros há anos e na qual existiam com toda a evidência retracções fibrosas periarticulares, que persistem ainda hoje se bem que a contractura tenha desaparecido completamente há muito tempo Se nesta mu­lher a contractura tivesse desaparecido durante o sono, ou seja du­rante oito a dez horas por dia, em 24 horas, não é verosímil que estas modificações anatómicas se tivessem produzido. Vimos igual­mente uma contractura dupla dos adutores datando de quatro anos consecutiva a uma tentativa de violação e na qual existiam retra­cções fibro-musculares que foram muito duras de romper sob o sono cloro fórmico».

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"3.° A paralisia orgânica atinge alem dos "movimentos voluntários conscientes, os movi­men tos voluntários inconscientes ou subcon­scientes, o que não sucede na histeria em que "estas duas últimas categorias de movimentos "persistem.

"Portanto, não se notará nas histéricas o "sinal do cuticular nem & flexão combinada da coxa ue do tronco.

"4.° Nas paralisias orgânicas a língua é, "em geral, ligeiramente desviada para o lado "da paralisia. Nas paralisias histéricas a lín-"gua pode ser desviada também ligeiramente "para o lado da paralisia; mas aqui o desvio "pode ser muito acentuado ou então operar-se "do lado paralizado.

"5.0 Na paralisia orgânica, há principal-"mente no início, hipotonicidade muscular, que "pode traduzir-se na face pelo abaixamento da "comissura, o abaixamento da sobrancelha, etc., "e no membro superior pelo que o autor chama "a flexão exagerada do ante-brago. Nenhum destes "fenómenos se observam nas hemiplegias histé­r i c a s ; quando alguma assimetria facial existe "ela é devida a um espasmo.

"6.° Os reflexos tendinosos e ósseos são "inicialmente perturbados (abolidos, enfraque­c idos ou exagerados) e numa fase mais adean-"tada sempre exagerados nas hemiplegias or­g â n i c a s — podendo notar-se a trepidação epi-"leptoide do pé. Nenhum destes fenómenos "acusam as hemiplégicas histéricas.

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"7.° Os reflexos cutâneos estão perturba­d o s na hemiplegia orgânica.. Entre eles os "reflexos abdominal e cremasteriano, são no "princípio abolidos ou enfraquecidos. Alem "disso apresentam o chamado sinal de Babinski. "Nas hemiplegias histéricas todos estes refle­x o s estão normais.

"8.° A forma de contractura na hemiple-"gia orgânica tem um aspecto particular que "não pode ser, como a histérica, reproduzida "por uma contracção voluntária dos músculos.

"9.° A evolução da hemiplegia orgânica é "regular; a contractura sucede à flacidez; as "melhores são progressivas, a paralisia não ó "sujeita a remissões transitórias. Pelo contrário "a hemiplegia histérica é de uma evolução ca­prichosa, podendo ficar indefinidamente flá-"cida, ou ser inicialmente espasmódica. Os "fenómenos espasmódicos podem associar-se, "principalmente na face aos fenómenos para­lí t icos. As perturbações podem variar, apre­sen tando crises de exacerbação ou de atenua­r ã o , alternando,,.

A paraplegia histérica pode ser completa ou incompleta e acompanhar-se de perturbações amiotróficas, podendo simular perfeitamente uma paraplegia orgânica, sintomática de uma mielite transversa, de um tumor medular, de um mal de Pott, etc. A integridade dos refle­xos, a ausência de perturbações esfincterianas, a ausência do sinal de Babinski permitem pôr o diagnóstico de paraplegia histérica.

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As histéricas podem apresentar alem das perturbações referidas, todo o cortejo sintomá­tico de uma coxalgia, e cujo diagnóstico com a verdadeira coxalgia é de extrema dificuldade. A sua evolução é rápida e o seu início, a dôr superficial (pode-se, ás vezes, percutir o grande trocanter sem que a doente acuse dôr alguma), a ausência de tumefacção e de calor, a integri­dade dos reflexos do lado doente e a desapari­ção dos sintomas quando se submete a doeute à narcose clorofórmica — são circunstâncias que farão pender o nosso diagnóstico para o lado de uma pseudo-coxalgia histérica.

Além das contracturas e paralisias dos mús­culos dos membros podem ainda as histéricas apresentar contracturas e paralisias doutros músculos, como sejam dos músculos da face, dos olhos e do pescoço.

Na face, muitas vezes se assinala, coexistin­do ou não com contracturas dos membros, a contractura do orbicular das pálpebras. Este blefaroespasmo, que é na maioria dos casos unilateral, pode apresentar duas formas: uma forma tónica, acompanhando-se de dores peri--orbitárias, de fotofobia e em que a pálpebra se apresenta pregueada, resistindo à abertura e sob a qual se consegue descobrir o globo ocu­lar desviado para cima e para dentro; e uma forma pseudo-paralítica em que a doente apre­senta uma ptosis palpebral, que semelha a ptosis observada nos casos de paralisia do le-

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vantador da pálpebra, de que se distingue pelo sinal da sobrancelha de Charcot.

As histéricas podem apresentar contractu-ras dos músculos dos olhos (muito mais rara­mente paralisias, negadas aliás pela grande maioria dos autores). Essas paralisias incidem sobre todos os músculos do olho, que fica pa­rado, impossibilitado de se dirigir para qual­quer lado, quando voluntariamente solicitado. No entanto, os movimentos automáticos efe-ctuam-se quando a doente não é observada. Contractures isoladas não existem; somente os autores apontam raríssimos casos de estrabis­mo convergente.

O hemiespasmo facial histérico descrito por Charcot, e depois por Brissaud e Pierre Marie, é uma contracture dos músculos da face, que pode semelhar o espasmo facial periférico que ó produzido por uma excitação do nervo facial e cujos caracteres distintivos, descritos uns por Brissaud e Pierre Marie e outros por Babinski, são os seguintes :

"O hemiespasmo facial periférico é rigoro­samente unilateral.

. " ^ s ^ b ^ 0 9 musculares no hemiespasmo fa­scial periférico são parcelares ou fasciculares.

"As contracções do hemiespasmo periférico São déformantes, dando lugar a uma incurva-"ção do nervo e a uma foceta mentoneira.

"As contracções no hemiespasmo periférico "associam-se de uma maneira paradoxal (por "exemplo, a contracção do orbicular das páipe-

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"bras associando-se a uma elevação da sobran­ce lha) .

"As contracções do hemiespasmo facial pe­riférico persistem durante o sono.„

São estes os sinais de diagnóstico das duas manifestações.

A paralisia facial histérica, existe ou isolada­mente ou concomitantemente com paralisias dos membros ou com hemiespasmo glosso-la-bial, que tem geralmente a sua sede do lado oposto ao da paralisia. A paralisia facial pode ser unilateral ou bilateral, incidindo sobre todo o território do facial inferior ou de alguns músculos somente, tornando-se mais manifesta quando se provocam movimentos voluntários. Não se conhecem casos em que a paralisia possa invadir toda a face.

Babinski enumera um certo número de si­nais que permitem diferençar a paralisia facial histérica de uma paralisia orgânica, e que re­sumidamente vamos apresentar:

"O abaixamento da comissura labial na pa­ra l i s ia histérica, não é consequência de um "relaxamento muscular, mas de um espasmo "da comissura oposta ou de uma contracção "dos músculos que fazem baixar o lábio.

"Na paralisia histérica não se nota nem o "abaixamento da sobrancelha nem a desapari­ç ã o das pregas frontais.

"O desvio da língua para o mesmo lado da "paralisia, nas histéricas, pode ser muito pro-" nunciado e devido a espasmo da língua. Pode

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"a língua também aparecer desviada para o "lado oposto.

"Na paralisia histérica as perturbações são "raramente unilaterais.

"A paralisia histérica é geralmente uma "paralisia sistemática.

"A paralisia histérica tem uma evolução "muito caprichosa, que se não cumpre com "aquela regularidade peculiar às paralisias or­gânicas. , ,

Registam-se também casos de torticolis histé­rico, produzidos ou por contractura dos múscu­los do pescoço ou por paralisia. Esta forma é muito rara; a cabeça inclina-se para o lado oposto dos músculos em que a paralisia se ma­nifesta, posição de que é muito fácil desviá-la quando se toma a cabeça entre as mãos e se a desloca. Quanto ao torticolis por contractura, mais vulgar na histeria infantil, a atitude varia com o grupo de músculos atingido. A sua mar­cha apresenta remissões, intervalando com no­vas manifestações. Pode acompanhar-se de pon­tos dolorosos, e simular então um torticolis sintomático de um mal de Pott.

Entre as manifestações histéricas interes­sando o sistema neuro-muscular, figura a asta-sia-abasia, já observada por Jaccoud e estudada por Charcot e Richer em 1883 e por Blocq em 1888.

Consiste, como se infere da denominação que lhe foi posta, na impossibilidade que a

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doente sente de se conservar de pé e de execu­tar os movimentos necessários para a marcha. Esta impotência é puramente funcional, pois a doente quando sentada ou deitada pode execu­tar todos os movimentos como qualquer indiví­duo normal, apresentando as pernas o vigor e a força mais que necessários para poder desem­penhar as suas funções.

Muitas vezes, esta astasia-abasia e sistemáti­ca, isto é, a impotência funcional existe só para a marcha e para a estação de pé, podendo a doente executar todos os outros movimentos. Numa das lições do curso de Psiquiatria e Neu­rologia, foi-nos apresentado pelo prol Maga­lhães Lemos um caso, em que a doente não podia andar mas conservava-se de pé; no en­tanto essa doente subia e descia escadas per­feitamente e chegava mesmo a andar, quando no sobrado se desenhavam uns riscos a giz dis­tanciados uns dos outros do comprimento de um passo.

Deserevem-se várias formas clínicas da asta­sia-abasia: & forma paralítica, em que os membros se flectem e ficam inertes, quando a doente quere andar ou manter-se de pé ; a, forma ataxica, coreiíorme ou trepidante, conforme a incoorde-nação é produzida por grandes movimentos de flexão das pernas e do corpo ou por uma espé­cie de trepidação dos membros inferiores; a forma saltitante e a forma rígida.

Outra manifestação histérica desta ordem é

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o espasmo saltatório, estudado por Brissaud em 1890 e já anteriormente conhecido.

Consiste numa série de contracções sucessi­vas e alternantes dos flexores e extensores da perna e algumas vezes da coxa, o que faz com que o doente, quando está de pé, e surge o ata­que, por efeito de uma emoção ou de um abalo qualquer, começa bruscamente saltando como se executasse uma dansa incoordenada e gro­tesca, tornando-se a marcha impossível. Quando em decúbito horizontal, a menor excitação da planta do pó, a flexão brusca do pó sobre a perna e a percussão dos tendões de Aquiles e da tibia bastam para provocar o espasmo. É de uma evolução muito pouco regular.

Descrevem-se também, como manifestações histéricas, duas formas de coreia: uma coreia rí­tmica e uma arritmica.

A primeira é a mais frequente e pode atin­gir os membros, a face, o pescoço ; limita-se ge­ralmente aos membros do mesmo lado do corpo, constituindo uma hemicoreia, ou só a um mem­bro. Os acessos sobreveem de uma maneira in­termitente; os movimentos não são ilógicos, desordenados, mas teem uma orientação como se se tratasse de desempenhar uma determi­nada função ; assim haverá uma coreia sanato­ria, uma coreia natatória, uma coreia maleató-ria, etc. As vezes, no indivíduo portador desta coreia existem zonas frenadoras cuja pressão faz desaparecer o acesso.

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A coreia arrítmica é caracterizada por movi­mentos involuntáiios irregulares e contraditó­rios análogos aos da coreia de Sydenham, e tanto que este assunto foi muito discutido na Sociedade médica dos hospitais, onde alguns autores afirmaram que se tratava na realidade de uma coreia histérica visto as doentes apre­sentarem os chamados estigmas histéricos ; ou­tros quizeram classificar como coreia histérica a própria coreia de Sydenham; outros, como Charcot, diziam que se tratava de uma asso­ciação da histeria com a coreia vulgar.

Na realidade em muitos casos, esta última opinião se poderá fazer valer; mas outros em que a coreia arritmica se desenvolve por imita­ção, ou por sugestão, não se poderá deixar de a considerar como uma manifestação histérica.

Babinski apresentou mesmo um sinal — a flexão combinada da coxa e da bacia — que existiria na coreia de Sydenham do lado em que os movimentos são mais pronunciados e não nas coreias histéricas.

Estudaremos agora os trémulos histéricos. Po­dem ser generalizados ou parciais — limitados a um lado do corpo, aos membros inferiores ou a um só membro — e caracterizam-se por se­rem essencialmente polimorfos, lentos ou rápi­dos, leves ou tam intensos que chegam a per­turbar a marcha e os movimentos naturais. Podem simular os trémulos do alcoolismo, do hidraginismo, da paralisia agitante, da escle-

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rose em placas e os pré- ou post-hemiplégicos. Muitos trémulos, cuja causa era ignorada, al­gumas vezes atribuidos a intoxicações, que desaparecem sem tratamento medicamentoso apropriado, são hoje considerados como trému­los históricos.

Entraremos agora no estudo das perturba­ções de sensibilidade nas histéricas. Como as perturbações de motilidade, especialmente as paralisias e contracteras, e ainda mais do que elas, as perturbações de sensibilidade são ca­racterísticas da histeria. Tam características que enfileiravam entre os antigos estigmas his­téricos e hoje ainda quási todos os médicos, para fazerem um diagnóstico de histeria não se dispensam de fazer a exploração da sensibili­dade da doente. Á sugestão, produzida nestes exames, atribuem as perturbações aqueles que só fenómenos de sugestão vêem na histeria. Assim Babinski diz que "uma histérica virgem de todo o exame médico não apresenta, para um observador prevenido, que se cerca de to­das as precauções e usando de certos artifícios, nenhuma perturbação sensitiva ou sensorial„.

Sem tentar por agora o estudo destas per­turbações sob o ponto de vista da sua génese, que será feito noutro capítulo deste livro, va­mos descrever as diferentes pertobações de sensibilidade que se observam nas histéricas. Entre elas, avultam, como de maior impor­tância :

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As anestesias. São, em geral, incompletas ou pelo menos nunca tão profundas como as anes­tesias orgânicas. É certo que muitas vezes se poderá produzir a uma histérica picadas, quei­maduras, contusões, sem que ela acuse a mí­nima sensação. Na histérica de que já atrás falei e que era portadora de uma falsa úlcera de estômago, quando fiz a exploração da sua sensibilidade, acusava uma tam profunda anes­tesia que, de uma vez, a pressão exercida so­bre a agulha fê-la enterrar na pele até sair sangue pelo orifício da picada, sem que a doente acusasse a mínima dôr. Há casos que se citam em que histéricas permitem que se façam intervenções cirúrgicas mutiladoras sem narcose clorofórmica ou etérea ou outra qual­quer forma de anestesia artificial.

Casos desta última ordem são considerados como excepcionais. Nos casos vulgares, a sensi­bilidade pode ser despertada por uma excitação forte, por exemplo, uma corrente farádica in­tensa aplicada numa região sensível (Babinski).

Um outro carácter curioso das anestesias histéricas é a pouca ou nenhuma perturbação que trazem às doentes. Assim as histéricas es­crevem, cosem, bordam, entregam-se a certos lavores feminis que, bom ó dizê-lo, exigem cer­tos requintes de sensibilidade, e todos esses tra­balhos são de uma execução impecável. Nada disto sucede com as anestesias de origem orgâ­nica em que os movimentos são desordenados, atáxicos, impossibilitando as doentes de execu-

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tarem trabalhos muito mais grosseiros do que aqueles de que atrás falamos.

A anestesia histérica apresenta ainda uma outra qualidade que lhe é peculiar: a sua ex­trema variabilidade de situação e de intensi­dade— carácter bem distintivo das anestesias orgânicas constantes na sua localização, corres­pondente a, um território nervoso bem determi­nado O, e cuja intensidade varia de um modo gradual, quando a lesão originária evolui para a normalidade. Nas anestesias cutâneas nota-se muitas vezes uma dissociação: a sensibilidade à dôr, a sensibilidade tactil e a sensibilidade térmica, não desaparecem ao mesmo tempo, persistindo qualquer delas, enquanto a outra ou as outras fazem falta.

Quanto à sensibilidade gustativa pode no-tar-se a agueusia total ou parcial (mais geral­mente com a forma unilateral). Pode também observar-se uma agueusia dissociada sendo per­cebidos só certos sabores, ou uma perversão da sensação gustativa.

O olfacto pode também estar abolido; esta anosmia é também ou parcial — geralmente unilateral — ou total.

A audição pode também estar perturbada.

(') Tem-se pretendido assinalar uma topografia às anestesias histéricas; assim descreve-se uma hemi-anestesia completa ou in­completa, muito vulgar; anestesias segmentares descritas por Char­cot; e as manchas, ilhotas ou zonas anestésicas—que não corres­pondem a território algum nervoso e que nenhum carácter teem de fixidez.

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A surdez histérica que então se nota pode ser unilateral ou bilateral. Neste último caso o dia­gnóstico com a surdez orgânica ligada a uma lesão do labirinto é por vezes difícil. Como ele­mento de diagnóstico podemos utilizar a verti­gem voltaica que fica normal na surdez histé­rica e que é perturbada ou mesmo abolida na surdez labiríntica (Babinski).

Quanto à surdez histérica unilateral, temos como elementos de diagnóstico com a surdez orgânica, a mesma prova da vertigem voltaica e a prova de Rinne que consiste em observar se as vibrações de um diapasão são percebidas durante mais tempo por via aérea, colocando-o deante do orifício do conduto auditivo externo ou por via craniana, colocando o diapasão em contacto com a parede do crânio.

Nos casos de surdez incompleta de origem central ou de surdez histérica ou ainda no es­tado normal, as vibrações serão percebidas du­rante mais tempo no primeiro caso; o contrário sucede nos casos de surdez devida a lesões do ouvido médio, do tímpano ou do conduto au­ditivo.

As perturbações da visão são também muito vulgares nas histéricas, a ponto de algumas delas, como a redução do campo visual e a dis-cromatopsia, constituírem para alguns autores um sinal característico da névrose.

As perturbações visuais mais frequentes são: a redução do campo visual, a astenopia de acomodação e a discromatopsia.

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Quando com efeito numa histérica se faz a exploração da sua sensibilidade, reconhece-se que o seu campo de visão está reduzido con-cêntricamente. Esta redução é frequentemente bilateral, simétrica ou desigual dum lado e doutro; outras vezes é unilateral e tem a sua sede do lado da hemianestesia coexistente.

A redução, umas vezes pequena, pode atin­gir um tal grau que o campo visual da doente se encontre reduzido a um ponto. Pode mesmo notar-se uma amaurose unilateral ou tota], esta consecutiva a uma crise ou a uma emoção forte, aliás muito rara.

Babinski, para quem os fenómenos histéri-ricos são fenómenos de sugestão, como veremos, atribui esta redução do campo visual a suges­tões médicas produzidas durante o exame.

Como perturbações de acomodação notam-se a astenopia acomodadora e a diplopia ou poliopia mo­nocular, que se observam quando colocando perto do olho de uma histérica um objecto e se vai afastando lentamente, a uma certa distância, a doente vê uma nova imagem, em geral do lado temporal; continuando o objecto a afas-tar-se uma terceira imagem surge, do lado in­terno, porém menos intensa. Ao mesmo tempo, conforme o objecto se aproxima ou se afasta, nota-se a micropsia e macropsia.

A discromatopsia é também muito vulgar nas histéricas, acompanhando as anestesias e va­riando, como elas, de intensidade, de sede, de natureza. Na realidade a doente nunca chega a

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perder por completo a noção da côr. Pelo me­nos, embora todos os objectos corados lhe pa­reçam cinzentos, são capazes de reconhecer as tonalidades mais fortes e mais fracas de uma determinada côr.

0 estudo da discromatopsia histérica é de­veras interessante. Várias experiências cujos resultados vamos resumir foram feitos neste sentido; algumas pertencem a Parinaud, que lhes dedicou um artigo nos Annales d'oculistique.

Uma histérica, com acromatopsia para o vermelho, não é menos capaz do que qualquer outra pessoa de recoustituir a côr branca de um disco de Newton pintado de vermelho e verde.

Uma histérica, com acromatopsia monocu­lar para uma côr, verde por exemplo, vê essa côr distintamente mesmo com o olho amblíope na visão binocular. Se, com efeito, deante do olho são se coloca um prisma, que faça vêr duas imagens de um papel verde (que seria visto em cinzento pelo olho doente) essas duas imagens são ambas verdes.

Experiência análoga se pode fazer com a caixa de Flees, em que uma combinação de es­pelhos faz com que um objecto que está colo­cado à esquerda só é visto com o olho direito e vice-versa, permitindo assim descobrir os simu­ladores que se queixam de cegueira unilateral. Ora uma histérica que se submeta a esta prova declarará vêr perfeitamente os dois objectos.

Parinaud acentua ainda que observou doen-

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tes dotados de acromatopsia unilateral para uma determinada côr, quando a doente se ser­via de cada um dos olhos em separado, mas que desaparecia na visão binocular. Mesmo a redução do campo visual só existiria na visão monocular. Daqui concluiram Pitres e Parinaud que as perturbações visuais nas histéricas só existem na visão monocular.

Outras perturbações, como a hemiopia late­ral (Dejerine, Janet) e o escotoma central, foram notadas por alguns autores, sendo todavia ne­gadas, em absoluto, por outros.

Estudadas assim as perturbações de sensi­bilidade por defeito, vamos estudar as por ex­cesso— as hiperestesias. Os seus caracteres clíni­cos são os mesmos que os das anestesias: va­riabilidade extrema de sede, de natureza, de intensidade.

Como às anestesias, também às hipereste-sias quizeram determinar zonas especiais — entre as quais vale a pena referir a zona ová-rica, tam conhecida ela é.

Por vezes nas histéricas aparecem certas manifestações hiperestésicas, associando-se, for­mando certos sindromas que vamos descrever.

A cefalalgia histérica, sob a dependência de uma zona hiperestésica do couro cabeludo (clavo histérico), aparecendo periodicamente por acessos, algumas vezes à tarde ou às primei­ras horas da noite, como a cefaleia dos sifi-líticos. Quando a sua intensidade é maior,

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acompanhando-se de vómitos, pode simular a cefalalgia sintomática dos tumores cerebrais; pode simular a enxaqueca vulgar quando se localiza numa das regiões laterais da cabeça. Mas de todas as formas clínicas que a cefaleia pode revestir, a mais interessante é a que si­mula uma meningite, com o seu período pro-drómico, com mal-estar, insónia e cefaleia progressivamente aumentando de intensidade. Depois aparecem os vómitos, a rigidez da nuca, as contracturas espasmódicas dos membros, o opistotonos, etc.

Babinski indica como elementos de diagnós­tico diferencial com a verdadeira meningite, os antecedentes, a causa produtora, a ausência de perturbações pupilares, a normalidade do pulso, a ausência de modificações no líquido céfalo--raquidiano e a ausência de febre que poderá aparecer, por efeito de qualquer infecção infla­matória concomitante. Este diagnóstico é difí­cil em extremo quando a histérica é vítima de uma infecção qualquer, podendo atacar as me­ninges.

A enxaqueca oftálmica histérica que se não acom­panha de hemiopia como a enxaqueca vulgar.

A raquialgia histérica surgindo bruscamente a seguir a um traumatismo, podendo exacer-bar-se ao menor contacto e acompanhar-se de paralisia e anestesia dos membros, simulando uma fractura da coluna — ou então instalan-do-se lentamente fazendo pensar num mal de Pott, a que muitas vezes nem a deformação da

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espinha falta. A integridade dos reflexos per­mitirá fazer o diagnóstico.

As gastralgias que fazem pensar na íílcera redonda, já por nós referidas, ou simulando as crises gastrálgioas dos tábidos.

Além das perturbações por excesso a sensi­bilidade das histéricas pode apresentar pares-tesias, como perversões, as tam vulgares sensa­ções de calor e formigueiros, diestesias e halfalge-sias consistindo numa intensa sensação dolorosa quando se aplica sobre a pele uma substância não irritante como ouro, prata, etc.

Perturbações intelectuais

A afasia histérica, que não deve confundir-se com a afonia histérica já estudada, caracte­rizasse pela impossibilidade absoluta que o doente tem de falar, com a integridade com­pleta de todos os movimentos da língua e dos lábios. Charcot diz mesmo que, enquanto o mudo poderia emitir gritos, a doente atingida de mutismo histórico nem isso poderia fazer.

A sua evolução ó como a de todos os aci­dentes históricos sem nenhuma regularidade.

A afasia histérica é uma afasia motora, independentemente da afasia sensorial e da agrafia.

Registam-se tembêm casos de agrafia, sur­dez verbal e cegueira verbal. Todas estas for-

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mas são puras, ao contrário do que sucede nas correspondentes formas orgânicas.

Ballet estudou uma forma de gaguez, com perturbações de linguagem, e um ritmo de pro­núncia em relação com as perturbações moto­ras histéricas.

As histéricas apresentam muitas vezes um grande enfraquecimento da memória ou mesmo uma amnésia completa, umas vezes sistemati­zada, atingindo um grupo de recordações refe­rentes a um determiuado facto ou a uma deter­minada pessoa, ou a uma categoria de imagens dos movimentos (astasia-abasia) ; outras vezes a amnésia atinge as recordações de um certo pe­ríodo ; outras finalmente, infinitamente raras, a amnésia é absoluta.

É a esta amnésia que se atribuem a versa­tilidade de carácter, as contradições e as men­tiras que são peculiares às histéricas.

Esta amnésia, como as anestesias, reveste também uma forma e uma evolução muito irre­gulares. Uma emoção forte pode dar-lhe origem ou fazê-las desaparecer como às anestesias. A distracção, o sono natural e a hipnose provo­cada O fazem-nas desaparecer. Enfim, teem to­dos os característicos das manifestações his­téricas.

(') Sonhos falados que acompanham o sono natural ou em sono hipnótico provocado, as doentes referem factos, falam de acontecimentos ou de pessoas de que pareciam já não se recordar no estado de vigília.

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Descreve-se também um delírio histérico. En­tre outros, Pitres, que o estudou, aponta três formas: ataques de mania histérica, ataques de delírio alucinatório e ataques de ecrrmésia.

Os ataques de mania histérica são negados por alguns autores, como Colin, Féré e Dejerine, que só vêem neles uma associação mórbida e não manifestações de histeria pura. Outros au­tores, como Pitres, Gilles de la Tourete, Janet, Ballet e Charcot, com toda a escola da Salpê-trière, são da mesma opinião. No entanto, a admiti-los, estes ataques manifestar-se hiam de preferência nas crianças.

Quanto à segunda forma, delírio alucinató­rio, ela não é mais do que uma fase do ataque histérico que atrás já descrevemos. No final do terceiro período aparece como dissemos um de­lírio de acção ; no quarto período é um delírio de palavras, alegre ou triste, furioso, místico ou obsceno, a que se vem juntar muitas vezes alu­cinações visuais e auditivas. São visões maca­bras, visões de animais da Fabula que avançam para a doente, scenas aterrorisantes a que a histérica assiste — alucinações perfeitamente comparáveis às dos alcoólicos.

A ecmnésia é, segundo Pitres, "uma forma de amnésia parcial na qual a recordação dos acontecimentos anteriores a um certo período da vida é integralmente conservada, enquanto a recordação dos acontecimentos posteriores a este período é totalmente abolida„.

Desta maneira, na vida do indivíduo ata-

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cado de ecmnésia produz-se uma lacuna e êle actuará como se esse período lacunar não exis­tisse— daí o seu delírio.

Como manifestação de histeria pura, des-creve-se também o sonambulismo histérico, vulgar, principalmente nas crianças, podendo desapa­recer após a adolescência.

Os sonâmbulos levantam-se de noite e exe­cutam as funções da sua vida cotidiana. Con­servam os olhos abertos, mas fixos e sem ex­pressão, com a pupila imóvel. Caminham, des-viando-se dos obstáculos ou das pessoas que se lhes podem deparar na sua rota e executam os seus trabalhos profissionais, lêem, escrevem e falam, — vivem o seu sonho. Como diz Grilles de la Tourete, "o sonambulismo não é mais do que a expressão objectiva do sonho,,.

Uma vez desperta a histérica perde a recor­dação do que se passou durante o estado de so­nâmbula ; mas num acesso subsequente pode re­cordar o que se passou durante o acesso anterior.

J á atrás nos referimos ao automatismo am­bulatório das histéricas — as chamadas fugas histéricas — quando tratamos das crises e nada mais sobre o assunto temos a acrescentar.

A histérica pode apresentar perturbações do sono, como a insónia, não comparável à dos neurasténicos, mas parecendo que não dorme porque perdeu a noção do sono.

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Ao lado da insónia podíamos descrever os ataques de sono, que já mais acima ficaram des­critos.

O estado mental das histéricas merecer--nos ha especial menção nos capítulos seguin­tes quando analisarmos as diversas teorias pa-togenicas das manifestações histéricas e quando fizermos a sua crítica.

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* *

Muitos autores assinalam uma perturbação histérica de ordem geral, manifestando-se por cefalalgia, um estado saburral das vias digesti­vas acompanhando-se de elevação de tempera­tura que pode atingir 41 ou 42 graus designada sob o nome de febre histérica.

Esta febre histérica, quando se faz acom­panhar de outras manifestações simulando al­gumas afecções orgânicas poderá ser tomada como sintomática de qualquer doença somática.

Outros autores, entre eles Babinski, negam em absoluto a existência da febre histórica, que na maioria dos casos julgam poder atribuir-se a uma burla cometida pela doente. Demais, se­gundo o mesmo autor, seria necessário, para admitir a existência da febre histérica, que ela fosse curável pela psicoterapia e se pudesse re­produzir pela sugestão, o que até hoje não foi

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ainda possível. Nos casos, que se não poderiam explicar por uma burla da doente, julga Ba-binski que se deve admitir a existência de qual­quer afecção febril — de que uma histérica, como qualquer indivíduo normal, não está in­cólume.

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* *

Ficam assim descritas, num ligeiro resumo, as manifestações histéricas. Muito mais haveria a dizer, se a nossa intenção fosse, que não é não podia mesmo ser — fazer o seu estudo ana­lítico, profundo, completo.

Como dissemos nas palavras com que abri­mos o presente capítulo, só quisemos registar aqui as perturbações assinaladas pelos autores de maior autoridade — e que nos servirão de base ao estudo subsequente.

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C A P Í T U L O I I

A natureza da histeria

Sua concepção através dos tempos e modernamente

A histeria é tam velha como a humanidade, pois, como diz Bernheim, "as crises histéricas são inerentes à natureza humana e sobretudo à natureza feminina,,.

Uma tal doença apresentando tam bizarras manifestações, que, no dizer do prof. Dubois, "há qualquer coisa de demoníaco no quadro clínico desta psiconevrose; em que o funciona­mento orgânico parece por vezes tam pertur­bado que se chamou à histeria, ainda que im­propriamente, a loucura do corpo,,, por certo que em todos os tempos deveria interessar todos aqueles que se sentiam inclinados a interpretar os fenómenos da vida.

No tempo de Hipócrates e de Galeno e mes­mo anteriormente, as mulheres que cuidavam de outras conheciam já a névrose.

Para Hipócrates e para Platão, Demócrito e Celso, o útero era um animal vivo alojado na mulher e cuja função era gerar filhos. Quando se lhe não satisfaziam os naturais desejos, êle revoltava-se, abandonava o seu lugar próprio e percorria o corpo em todos os sentidos dando lugar a toda a casta de perturbações.

"Era por isso principalmente nas mulheres "que não tinham relações sexuais e antes a par-"tir de uma certa idade, que estes movimentos

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"eram fáceis, porque os vasos são mais vazios ue o útero seco é também vazio e leve. Deslo-"ca-se, lança-se sobre o fígado, órgão cheio de "fluído, para lá encontrar humidade, adere a ||êle, dirige-se aos hipocôndrios, interceptando ||a via respiratória que está no ventre, causando "uma sufocação súbita.

"Ao mesmo tempo da cabeça desce flegma ||aos hipocôndrios humedecendo o útero que se "torna mais pesado, volta ao seu lugar e a su­focação uterina cessa.

"Pode ficar pelos hipocôndrios, produzir vó-|| mitos, dores gravativas da cabeça, cardialgia, "ortopneia, trismus com a face lívida, e estes "sintomas não cessam se se não destaca do fi­ll gado o útero que lhe aderiu, empurrando-o para baixo com a mão. „

Estas palavras sintetizam o modo de pensar sobre a histeria dos scientistas desses remotos tempos, em que a histeria era considerada como uma doença vergonhosa que se escondia.

A terapêutica então aconselhada estava de acordo com o conceito formado da doença. Hi­pócrates aconselhava o casamento — Nubat Ma et morbum efugiet — como medida profilática, às raparigas em que havia suspeitas de histeria e para as histéricas averiguadas. Alem disso em-pregavam-se os antiespasmódicos, substâncias fétidas cujo cheiro se fazia absorver à doente com o fim de afugentar o útero que era atraído para o seu lugar normal, praticando fumigações aromáticas sobre as partes genitais.

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Esta teoria uterina, que nos legou o nome da doença, foi também admitida, sob um outro aspecto, por Galeno, Aétius e Paul. Para estes não era um deslocamento do útero que se ope­rava, mas produzia-se uma excitação deste ór­gão por esperma ou sangue nele retido ou então formavam-se vapores subtis que dele partiam para o cérebro.

Paré admite que a madre se desloque, não como um animal vivo, mas porque é levantada por um movimento forçado produzindo a sufo­cação. Os sintomas da sufocação poderiam pro­vir de vapores malignos produzidos na madre.

Fermel (século xvi) admite também a teo­ria uterina, conforme a propôs Hipócrates, che­gando a afirmar que sentira o útero subir, sob a sua mão, até ao estômago.

Para Sennert tudo vem de vapores subtis emanados do útero, mas não provenientes de substâncias corruptas, putrefactas.

Pinei, Lieutaud, Louyer-Willermay, Grisol­le e Landouzy, colocam ainda a histeria sob a dependência do útero — não da mesma forma como os antigos, mas julgando-a como uma ex­citação nervosa reflexa partindo do útero (e seus anexos W—Landouzy) ou como Broussais que a faz derivar das afecções uterinas.

(L) Esta intervenção dos anexos foi confirmada por Schutzen-berger e perfilhada por Négrier — que se fundavam na possibilidade de provocar uma crise por compressão ovárica e tinham notado a frequência da ovarialgia nas histéricas.

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Esta teoria uterina ainda admitida em 1816 por Louyer-Willermay e em 1845 por Landouzy, que nessa época apresentava à Academia de Medicina uma memória em que se filiava a his­teria em excitações provenientes do útero e dos anexos, está hoje posta de parte em absoluto.

Entre o vulgo ignaro subsiste ainda tal con­cepção da histeria; e, embora desgostante seja referi-lo, há médicos possuidores de um diploma autêntico que arrancham também na caravana e vá tantas vezes de fazer terapêutica hipocrá-tico no caso — nubat illa et morbum effugiet — pres­crevendo o casamento às histéricas, com a mes­ma facilidade com que se indicam as papas de linhaça, sem a menor noção dos prejuizos so­ciais que de tais ligações de nevrópatas pode­rão advir.

As teorias nervosas e cerebrais da histeria aparecem com Charles Lepois em 1618, que pela primeira vez descreveu a histeria mascu­lina, já suspeitada por Gfaleno, com Sydenham (1681) que a comparava à hipocondria e a jul­gava devida a uma desordem ou a movimentos irregulares dos espíritos animais e também por Willis.

As teorias nervosas e cerebrais da histeria não triunfaram logo; muito tempo subsistiram ainda as teorias uterinas. Georget (1821), Bra-chet (1832) e Briquet que em 1859 publicou o seu Traité Clinique e Thérapeutique de l'hystérie orien­tam o seu estudo, dando à histeria uma natu­reza nervosa, que Briquet classificava como

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"uma névrose do encéfalo caracterizada sobretudo pela perturbação dos actos vitais que servem para a manifestação das sensações activas e das paixões. „

Foi Charcot e os da escola da Salpêtrière que no meio deste caos formado por todas as teorias que se tinham emitido sobre a natureza da histeria vieram lançar alguma luz e fixar a natureza psíquica da doença, cuja definição clí­nica é assim apresentada por Pitres (de Bordéus):

"Os acidentes histéricos são a consequência "de perturbações puramente funcionais do sis-"tema nervoso.

"Podem ser bruscamente provocados, modi-" ficados ou suprimidos por influências psíquicas "ou por causas físicas que não teem nenhuma "acção sobre os acidentes similares dependentes "de lesões orgânicas.

"Mostram-se muito raramente isolados; na "imensa maioria dos casos, certos estigmas la­mentes coexistem com as manifestações tumul­tuosas da névrose.

"Não teem evolução regular; sobreveem sem "ordem pre-estabelecida e sucedem-se sob dife­r e n t e s formas e em diferentes épocas nos mes-"mos indivíduos.

"Não teem habitualmente sobre a saúde ge-"ral e sobre o estado mental dos indivíduos que " atinge a repercussão profunda que teriam aci-" dentes similares, dependentes de uma outra "causa.,,

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É ama definição clínica rigorosa, que peca somente por não explicar a patogenia dos aci­dentes histéricos.

Os da escola da Salpêtrière, Charcot à fren­te, definiram a névrose como uma entidade mór­bida perfeitamente determinada, que a despeito de se apresentar sob formas e variedades múl­tiplas conserva caracteres especiais que a dis­tinguem nitidamente da epilepsia — sendo por­tanto muito impróprio o termo histero-epile-psia— apresentando estigmas físicos e psíquicos constantes que permitem fazer o seu diagnós­tico. A historia pode coexistir no mesmo indi­víduo com outras formas neuropatológicas, mas evoluindo independentemente delas.

Para Charcot a "histeria é uma doença psí­quica por excelência,,. Partindo dos antigos trabalhos de Brodie e de Russel Reynolds con­segue mostrar que certas perturbações do mo­vimento não teem por base nenhuma de lesão orgânica do sistema nervoso, quer do sistema nervoso periférico, quer do eixo mielencefálico, mas que somente podem ser atribuídas a fenó­menos de ordem moral, psico-fisiológicos.

Uma ideia uma vez fixada no espírito, do­minando sem a crítica da razão, é capaz de ganhar força suficiente para produzir fenóme­nos objectivos, traduzindo-se por contracturas, paralisias, hiperestesias, anorexia, mutismo, etc. — fenómenos estes que é possível fazer repro­duzir por sugestão nos doentes histéricos.

Charcot é assim o iniciador da concepção

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psíquica dos acidentes histéricos, que foram depois seguidos de outros estudos de psicologia médica feitos por Pierre Janet em França e por Mœbius e Strùmpell na Alemanha. Para estes últimos a histeria seria uma doença de repre­sentação.

Hoje a concepção psicológica da histeria é quasi que universalmente admitida; poucos adversários conta. Entre os que querem dar à histeria uma natureza não psíquica, pelo menos em absoluto, conta-se o dr. Paul Sollier, médi­co do Sanatório de Bologne-sur-Seine, que emi­tiu uma teoria fisiológica da histeria, ou, me­lhor dizendo, psico-fisiológica.

A concepção que o dr. Sollier forma da his­teria é que se pode resumir na seguinte defini­ção: "A histeria não é uma doença física ou "uma doença psíquica: é uma perturbação fí­s i ca , funcional do cortex cerebral, consistindo "num torpor ou num sono localizado ou gene­ral izado, passageiro ou permanente dos cen-"tros cerebrais e traduzindo-se, por isso, se-"gundo os centros atingidos, por manifestações "vaso-motoras e tróficas, viscerais, sensoriais e "sensitivas, motoras e, enfim, psíquicas e, se-"gundo as suas variações, o seu grau e a sua "duração por crises transitórias, estigmas per-"manentes ou acidentes paroxisticos. As histé­r i c a s confirmadas não são mais do que vigi-"lâmbulas, cujo estado de sono é mais ou menos "profundo, mais ou menos extenso.„

Assim, para Sollier, todas as perturbações

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histéricas provêem de um adormecimento do centro superior respectivo. E o seu tratamento, firmado nesta concepção patogénica e cujos re­sultados por sua vez servem para a basear e para a confirmar, consiste em fazer despertar do seu letargo os centros atingidos. Claro que uma excitação forte operaria esse despertar, como faz acordar um indivíduo normal que dorme. Para o conseguir utiliza Sollier vários meios : ou provocando uma reacção geral pela mudança de meio, o isolamento, uma disciplina nova da vida, o repouso e a superalimentação, ou fazendo a reeducação da sensibilidade que respeita à função doente, por meio de exci­tações localmente aplicadas mas que na reali­dade, por via centrípeta, vão actuar sobre os centros cerebrais.

Quando tais processos são improfícuos o autor recorre então à hipnose, fácil de obter num histérico, que está já num estado de vigi-lambulismo, e então se procede à reeducação da sensibilidade — que no estado de hipnose tem, por assim dizer, um maior campo de acção, pois então os doentes teem a consciência de modificações e de formações do seu organismo (fenómenos de autoscopia interna) e até podem submeter à acção da vontade os seus músculos lisos, o que qualquer indivíduo no estado nor­mal não tem possibilidade de fazer.

Para Sollier, nestes casos nenhuma suges­tão se faz: o doente é despertado do seu tor­por mental por uma excitação, como um in-

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divíduo normal desperta do sono que está dormindo quando se chama por êle.

Apresentemos agora as diferentes teorias psicológicas :

A teoria de Pierre Janet pode ser assim re­sumida: "A histeria é uma forma de depressão "mental caracterizada pela redução do campo "da consciência pessoal e pela tendência à "dissociação e à emancipação dos sistemas "de ideias e das funções que, pela sua síntese, "constituem a personalidade„.

Esta teoria, fundamenta-a o autor no estudo analítico das manifestações histéricas, como tal consideradas e que clinicamente se podem con­siderar como características da névrose.

Assim, o autor estuda em primeiro lugar o delírio de ideias fixas de forma sonambulica co­nhecido já nos tempos antigos — o delírio de Lady Macbeth—que considera extremamente original e inconfundível com qualquer outra manifestação delirante. É um delírio extremo, acompanhando-se de uma convicção intensa, determinando acções variadas e de um desen­volvimento tam regular que "a scena da cruci-fixação e da violação se podem repetir centos de vezes com os mesmos gestos e as mesmas palavras no mesmo doente „. O delírio dá lugar a uma multidão de alucinações de vária ordem.

Outro carácter notável do delírio vem a ser que durante o seu desenvolvimento o doente

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nada aceita, nada ouve, nada vê fora do sis­tema de imagens da sua ideia. No final da crise delirante o doente não se recorda do que se passou, podendo a amnésia atingir alem dos factos do período delirante, a própria ideia do­minante e até acontecimentos precedentes em relação com ela.

Janet resume os caracteres do delírio, di­zendo que "é uma ideia, um sistema de ima­gens e de movimento que escapa ao exame e mesmo ao conhecimento do conjunto dos ou­tros sistemas que constituem a personalidade».

Depois faz o estudo das perturbações da linguagem : notam-se às vezes crises de logor-reia em que o doente fala continuamente, a propósito e a despropósito de tudo, sem conse­guir deter o discurso nem produzir a palavra voluntariamente. Estas crises de logorreia ma-nifestam-se também pela palavra escrita.

Os fenómenos de mutismo histérico são para o autor muito próximos destas crises de logor­reia, não constituindo mais do que o seu rever­so. Nelas também o doente não pode volunta­riamente dispor da função da linguagem, sem que, no entanto, esta função tenha sido abolida, pois, a palavra manifesta-se ainda durante os sonhos do sono normal e nas crises de sonam­bulismo. "A linguagem está fora da consciên­cia pessoal e já não existe ao mesmo tempo que esta consciência „.

Enfim, estudando as diferentes perturbações de motilidade, de sensibilidade e das funções vis-

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cerais — em todas como nas precedentes se no­tam os mesmos caracteres fundamentais: exa­geros ou abolições aparentes da função, desen-volvendo-se sem o exame dos outros sistemas que constituem a personalidade.

Da mesma maneira, o estudo dos estigmas mentais, que para Janet são a sugestionabili-dade, a distractividade e a alternância bizarra dos sintomas vem em apoio da sua teoria. Com efeito, a sugestionabilidade não é mais do que a falta de reacção mútua entre as diversas ideias que residem na consciência, de modo que uma ideia ou um sistema podem desenvol-ver-se desmesuradamente e tornar-se dominan­te. Daí a sugestão.

A distractividade é também uma consequên­cia da desagregação da consciência: o esqueci­mento fácil das percepções, das recordações que não estão em relação directa com o pensamento actual, explica-se pela predominância dessa ideia actual, como que isolada das outras ideias, que estão suprimidas na consciência. "Podia dizer-se um pensamento em que falta a penumbra e que fica reduzido à ideia clara, crutral, sem nenhum cortejo de imagens incompletas a cercá-la,,.

A alternância bizarra dos acidentes é tam­bém uma natural consequência do estado de desagregação da consciência; nela um facto, uma ideia, dão lugar a outras sem transição.

Todos estes factos mostram que na histérica existe uma redução do campo de consciência — definido por Janet como "o número maior de

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"fenómenos simples ou relativamente simples "que podem ser reunidos em cada momento, "que podem ser simultaneamente ligados à "nossa personalidade numa mesma percepção "pessoal,,.

Desta redução do campo da consciência, em que um sistema predomina sobre todos os ou­tros, a tal ponto que outros fenómenos, outras percepções não podem ser aceites pela consciên­cia, acarreta naturalmente uma dissociação das ideias, uma dissociação das funções.

Esta dissociação das funções é particular­mente nítida nas perturbações visuais, em que a histérica parece decompor a visão nas suas funções elementares.

Esta dissociação das funções não acarreta perturbação alguma à função; esta permanece incólume. Do que a histérica ó incapaz é de fa­zer a reunião, a síntese das funções de que re­sulta a constituição da personalidade.

Assim justifica o autor a sua maneira de vêr.

Grasset admite uma teoria muito próxima da de Janet. Grasset explica esta dissociação da consciência pela desagregação suprapoligonal, ou seja a separação dos dois psiquismos, o psiquis­mo superior e o psiquismo automático.

Este automatismo superior ou psiquismo in­ferior (correspondente ao automatismo psicoló­gico de Janet) é, segundo o autor, "uma função "automática que não é o arco reflexo ordinário "porque produz actos coordenados, inteligen-

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"tes, espontâneos dentro de um certo limite. É "uma função psíquica cujos centros estão na "substância cinzenta do cortex e que deve ser, "porém, cuidadosamente distinta da função "psíquica superior, sede da intelectualidade su­per ior , da personalidade plena e verdadeira, "da consciência inteira e moral, da liberdade e "da responsabilidade,,.

Nos actos psíquicos inferiores, automáticos, inconscientes só entrariam em acção os cen­tros psíquicos inferiores que formam o polígono AVTEMK, independentemente do centro O — centro psíquico superior, da personalidade consciente, da vontade livre, do eu responsável situado no lóbulo prefrontal.

Nos actos psíquicos superiores, conscientes todos os centros colaborariam, tanto os que for­mam o polígono, como o centro superior O.

As manifestações da histeria, seriam para o autor actos psíquicos inferiores, executando-se independentemente do centro O.

Para Beruheim a única manifestação histé­rica é a crise. Todas as outras manifestações ou sejam tomadas como estigmas da névrose ou como acidentes (anestesias sensitivas e sen­soriais, contracturas, perturbações da visão, etc.), são para o autor fenómenos da mesma ordem da crise histérica — são psiconevroses.

Bernheim define as psiconevroses assim: "perturbações nervosas de origem emotiva, susceptíveis de ser conservadas ou reproduzi-

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das por uma representação mental ou de ser cria­das d'emblée por representação mental emotiva,,.

A crise histérica seria assim uma psicone-vrose.

iComo se produz a crise histérica? Bernheim admite que a crise não é mais do que o exagero de um fenómeno habitual de ordem psico-fisio-lógica de origem emotiva.

Uma emoção qualquer pode provocar num indivíduo normal perturbações que recordam as crises histéricas, que não são mesmo outra coisa do que crises histéricas em miniatura.

Estas perturbações, este modo de reacção ao choque emotivo é variável com o indivíduo. Uma emoção da mesma ordem provocará em diferentes indivíduos perturbações diversas.

E o que o autor exprime assim: "cada orga­nismo reage com a sua diátese„.

As reacções emotivas são, portanto, nor­mais. Mas "quando elas se amplificam em in­tensidade e duração, quando o sindroma geral "nervoso provocado por uma emoção especial, "em lugar de se resolver espontaneamente, "como na maioria dos casos, degenera pelo "contrário em crise intensa ou prolongada, dis-"pneica, estrangulatória, convulsiva, delirante, "résolutiva, pseudo-sincopal, esta reacção cons­t i t u i o que se costuma chamar uma crise de "histeria,,.

Ora quando o indivíduo reage ao choque emotivo que sofreu por uma crise nervosa é porque é um histerizável, em suma, um histérico.

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"Um histérico, diz Bernheim, é um indivi­duo que exagera certas reacções psicodinâmi-cas e as traduz sob a forma de crises ; é um in­divíduo apto a fazer crises de histeria,,.

Como o próprio autor diz, o que aí fica não é uma definição, é uma constatação clínica, de observação e de experiência.

Não é qualquer emoção que provoca crises em todos os histéricos; alguns há em que tal sucede; mas noutros é como que necessário uma depressão orgânica prévia ou uma emo­ção especial, por assim dizer específica — como se o doente tivesse as suas idiosincrasias morais.

A crise provocada pelo choque emotivo é al­gumas vezes única.

É a histeria simples ou acidental. Outras vezes não é única, repete-se : ou uma

nova emoção análoga ou a recordação emotiva da primeira crise, isto é, uma auto-sugestão po­dem reproduzi-la. E reproduzir-se há tanto mais vezes quanto a doente fôr mais histerizável.

Esta aptidão do organismo para produzir crises histéricas vai-se educando com o hábito constituindo-se uma verdadeira diátese histé­rica que se poderá tornar numa verdadeira doença.

Em resumo, para Bernheim : A única manifestação histérica é a crise,

provocada por um choque emotivo (que pode ter mesmo como causa uma doença orgânica, nervosa, infecciosa, tóxica, constituindo a his­teria um epifenómeno da doença) ;

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A crise não é mais do que uma reacção psi-co-dinâmica normal exagerada nos histéricos;

O histérico é o indivíduo portador de um aparelho histerogénico, isto é, de um fundo ner­voso especial, que o torna capaz de fazer crises histéricas.

Vejamos agora a teoria de Babinski. Para êle, "a histeria é um estado patológico

"manifestando-se por perturbações que é possí­v e l reproduzir por sugestão, em certos indiví-"duos, com uma exactidão perfeita e que são "susceptíveis de desaparecer sob a influência "unicamente da persuasão (contra-sugestão),,.

Segundo a sua maneira de vêr, Babinski propõe que ao termo vulgarmente usado para designar esta névrose — a histeria — se substi­tua outro mais próprio que da sua natureza dê uma mais nítida ideia : pitiatismo, que quere di­zer, curável pela persuasão.

Assim, Babinski considerando como mani­festações da névrose unicamente os fenómenos pitiáticos, isto é, os que a sugestão produz e que são curáveis por persuasão, divide os anti­gos sintomas da histeria em dois grupos: o pri­meiro constituído pelas perturbações funcionais (paralisias, contracteras, trémulos, movimentos coreicos, perturbações da fonação, perturbações de sensibilidade) e as crises — fenómenos pitiá­ticos na verdadeira acepção do termo. No se­gundo grupo coloca fenómenos vaso-motores como o dermografismo e as reacções emotivas

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anormalmente intensas e prolongadas (taqui­cardia, eritemas, hipersecreção sudoral, etc.) que a sugestão não reproduz, nem produz, que não são susceptíveis de uma psicoterapia por persuasão — em suma fenómenos não pitiáticos, como os do primeiro grupo que nenhum laço de parentesco teem com eles — e que segundo o autor se observam com o mesmo aspecto clí­nico e com a mesma frequência em indivíduos normais. Aos fenómenos que constituem este segundo grupo, por isso, elimina-os o autor do quadro clínico da névrose.

As manifestações pitiáticas não só são sus­ceptíveis de se reproduzir pela sugestão, como também só de uma auto-sugestão derivam. E o que Babinski pretende provar, baseado nas suas observações, negando ao mesmo tempo da maneira mais formal e absoluta a intervenção da emoção na génese dos acidentes.

No capítulo subsequente, quando estudar­mos o papel que a emoção e a sugestão podem desempenhar na génese das manifestações his­téricas, teremos ocasião de fazer a crítica à teo­ria de Babinski, que ta m exclusivamente o quere entregar à sugestão.

Expostas assim as principais teorias que so­bre a histeria e as suas manifestações foram emitidas, não queremos deixar de registar em breves linhas algumas outras, entre as quais a de Breuer e Freud (de Viena), bastante conhe­cidas e aceites na Alemanha e Áustria e a cujo

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processo terapêutico de psicanálise mais além te­remos de fazer referência.

Para estes autores a histeria é devida a um choque moral ou traumatismo psíquico; o trau­matismo físico actua pelo choque moral que o acompanha. São as reminiscências emotivas do choque histerogéneo que provocam as crises ; é a emoção ligada à recordação e não a ideia que as provoca: a ideia só o poderá fazer quando é emotiva.

Toda a emoção se acompanha de reflexos reaccionais voluntários ou involuntários. A per­sistência e a conservação das reacções emoti­vas nestes indivíduos resulta de que a reacção foi insuficiente : a emotividade não foi suficien­temente descarregada por estes fenómenos de reacção, muito fracos no doente. Esta insufi­ciência de reacção eliminatória do elemento emotivo, pode resultar: ou de que a emoção não comportava reacção, como o pesar pela morte de uma pessoa querida; ou de que o doente, por um sentimento de falsa vergonha (são para os autores quási sempre emoções de ordem sexual) ou de vaidade, chega a esquecer voluntariamente ou a recalcar a sua emoção; ou de que o choque emotivo se produziu num estado de consciência especial, que pode mesmo ser determinado por êle (sideração pelo temor, obnubilação semi-hipnótica no estado de vigí­lia, auto-hipnose) que torna toda a reacção im­possível.

Por sua vez os fenómenos histéricos produ-

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zem-se sempre num estado anormal de cons­ciência hipnoide.

Estes estados hipnoides existem em todos os indivíduos num certo grau ; quando são muito desenvolvidos predispõem à histeria. Podem ser criados pelo próprio choque emotivo, consti­tuindo a histeria adquirida.

Esta concepção da histeria, é baseada no seguinte facto que Breuer e Freud observaram e de onde tiraram o seu método terapêutico da histeria: é que os sintomas histéricos desapare­cem, sem nunca mais voltar se se chega a des­pertar no indivíduo recordações muito nítidas dos factos que determinaram a primeira crise, com a emoção correlativa, e o doente conta estes factos da maneira mais explícita possível e deixa falar a sua emoção. Deste modo, o indi­víduo pode descarregar pela reacção de palavra a emotividade do choque histerogéneo, que pri­mitivamente o não tinha sido por uma reacção suficiente, permitindo a correcção da represen­tação mental histerogénea por influência de outras associações, evocando-a no estado de consciência normal em que estas associações podem produzir-se.

E este o método que Breuer e Freud cha­mam psicanálise.

E para fechar o capítulo resumiremos as teorias de Claparède (de Genebra) e Ziehen (de Berlim).

Claparède compara a histeria ao sono nor­mal, "cuja teoria biológica pode servir de in-

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trodução, senão de fundamento, à teoria bioló­gica da histeria „.

Para o autor o sono é uma função activa de defesa, um instinto que tem por fim, lan­çando o animal num estado de inércia, impe­di-lo de chegar ao estado de esgotamento. O sono está submetido, assim, à lei fundamental da actividade animal, a lei da supremacia do instinto momentaneamente mais importante ou a lei do interesse momentâneo.

O mecanismo íntimo do sono seria uma reacção de desinteresse pela situação presente. Na histeria esta reacção de desinteresse seria le­vada ao mais alto grau; por isso, a histérica escapa à lei do interesse momentâneo. Essa reacção seria como que uma reacção de inibi­ção mental defensiva, que inibindo tal ou qual ideia, tal ou qual conceito motor, o afastava da síntese pessoal.

Quanto à teoria de Ziehen que não é mais do que a concepção de Moebius correcta e au­mentada, pode resumir-se na seguinte defini­ção: "A histeria ó caracterizada por uma in­fluência anormalmente exagerada das represen­tações pondo em jogo a afectividade e a emo­tividade. „

A ideia, acompanhada de emoções, inter­rompe o jogo das deduções lógicas, que, per­turbadas, se descarregam sob a forma de acções impulsivas ou de gestos convulsivamente exa­gerados; transformam-se em alucinações ou fa­zem das recordações normais ilusões mnésicas.

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Por seu lado, as representações, independentes da emotividade ou da afectividade, teriam uma influência anormalmente diminuida — de onde as amnésias e outros sintomas histéricos.

No capítulo que se segue, fazendo o estudo do papel da emoção e da sugestão na génese das manifestações histéricas, faremos também uma ligeira crítica às diferentes teorias e con­cepções que os diferentes autores emitiram so­bre a névrose histérica.

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C A P Í T U L O I I I

A emoção e a sugestão na histe­ria— Ligeira nota crítica das teorias da histeria —

Conclusões

A teoria de Babinski, que atrás ficou esquis-sada, pode resmnir-se nestas breves palavras: "Todos os fenómenos histéricos resultam de uma auto- ou hetero-sugestão„.

Esta maneira de vêr do sábio professor, com o carácter de acirrado exclusivismo que o autor lhe deu, está muito longe de ser admitida por todos os que se teem dedicado ao estudo dos fenómenos histéricos e, a nosso vêr, pouco de acordo com os factos que se podem observar.

O papel da emoção—da emoção choque — na génese dos fenómenos histéricos que a observação clínica mostra ser incontestável, não o reconhece Babinski e antes a nega em absoluto como seu factor etiológico. Ainda admite que um abalo moral, um choque emo­tivo possa em certas circunstâncias, diminuir o senso crítico, produzir uma certa inibição da personalidade e favorecer assim o desenvolvi­mento da sugestão, que se estabeleceria durante o período que medeia entre a produção do cho­que emotivo e a aparição das manifestações que Charcot designava por período de meditação. E a não ser esse papel adjuvante indirecto no apa­recimento das manifestações histéricas, outro lhe não considera o autor na sua etiologia.

A emoção, pois, qualquer que seja a sua in-

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tensidade não gera os fenómenos histéricos ; mas o autor vai ainda mais longe e diz que se al­guma acção o choque emotivo pode ter nos aci­dentes nevróticos é, quando atinge uma certa intensidade, produzir sobre o sentido crítico um tal enfraquecimento que os fenómenos pitiáti-cos sejam impedidos, em vez de se produzirem; é o que sucede na ocasião de um naufrágio ou de um incêndio em que as paralisias histéricas, por exemplo, desaparecem como que milagro­samente, por efeito da emoção.

" Quando uma emoção sincera, profunda, abala a alma humana já não há lugar para a histeria,,.

Esta maneira de vêr de Babinski é uma con­sequência das suas observações clínicas sobre os acidentes histéricos. Na descrição analítica que deles fizemos no capítulo primeiro deste trabalho várias vezes tivemos ocasião de nos referirmos aos seus trabalhos, particularmente àqueles que tendiam a estabelecer um diagnós­tico diferencial entre as perturbações sintomá­ticas de uma afecção orgânica e das perturba­ções ligadas à névrose histérica. O

Neles reconhece sempre Babinski o carácter comum de se poderem fazer reproduzir por su­gestão e de ser curáveis por persuasão.

( ) Já no capítulo primeiro, em nota, nos referimos à objeção feita por Dejerine, sobre a integridade dos reflexos assinalada por Babinski nas paralisias histéricas. Queremos agora somente acres­centar um caso de paralisia histérica, observado há poucos anos no serviço da 2.* Clinica Médica pelo sr. dr. Baía Júnior, em que se notava a ausência do reflexo patelar.

lOé

No final do ano de 1909 reuniram em Paris sob a presidência de Gilbert Ballet os membros das sociedades de Neurologia e Psiquiatria para discutir qual o papel da emoção na génese dos acidentes nevropáticos e psicopáticos. Pelo que respeita à histeria, a questão sofreu uma quente e larga discussão em que Babinski se mostrou, como sempre, acérrimo partidário da sugestão como seu único factor etiológico.

Negou-se a reconhecer como sendo da mesma ordem, se bem que de intensidade diferente, as perturbações devidas ao choque emotivo e à histeria. Os casos que, sendo nitidamente his­téricos pareciam unicamente devidos à emoção, atribui-os Babinski a uma provável simulação.

A estes argumentos juntou outros que va­mos enumerar. Os casos que foram relatados atribuidos unicamente à acção do choque emo­tivo, seriam casos isolados de onde se não po­deriam tirar conclusões precisas, por causa dos possíveis erros de interpretação. Era preciso re­correr aos factos colectivos, mais concludentes.

Assim, a seguir ao terramoto de Messina, o dr. Néri teve ocasião de examinar mais de dois mil sobreviventes sob o ponto de vista das cri­ses, contracturas, paralisias e anestesias, mediu cuidadosamente o campo visual de 600 desses sobreviventes e em nenhum reconheceu pertur­bação alguma.

Conseguiu saber que durante os onze anos que precederam o ano de 1909 se organizaram por iniciativa do Aero-Club de França nada

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menos do que 2.900 ascensões num total de 7.446 passageiros. Ora, as descidas, em ocasiões de ventos fortes eram acompanhadas de certas peripécias que poderiam ocasionar sérios riscos aos tripulantes e, portanto, provocar-lhes sérias emoções, sem que nunca se pudesse ter verifi­cado a eclosão de acidentes histéricos.

Percorrendo depois os necrotérios dos dife­rentes hospitais de Paris, para se informar da frequência da aparição de acidentes histéricos, quando da ocasião do reconhecimento dos ca­dáveres pela família e das despedidas sempre comoventes, chegou a estes resultados :

Hôpital de la Pitié—1.000 óbitos anuais. 700 reconhecimentos. Em média, cada morto recebia a visita de 4 pessoas. O empregado que lhe prestou estas informações ocupava o seu lugar há 15 anos. Sem dúvida, tinham-lhe passado deante dos olhos 40.000 visitantes. Somente tinha observado uma crise nervosa, provavelmente epiléptica. Nunca observara pa­ralisias histéricas.

Hôtel-Dieu — O empregado estava ao serviço do Hôtel-Dieu somente há um ano, para onde tinha vindo do hospital de Saint-Antoine. No entanto, poderia calcular-se que tivesse obser­vado 10.000 visitantes. Nalguns notou ataques de riso louco, algumas vezes perda de consciên­cia e duas crises, uma provavelmente de epile­psia, outra talvez de natureza histérica.

Salpêtrière — 700 óbitos anuais. 2.500 visi­tantes por ano. O empregado, que ocupa o seu

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cargo há 25 anos, observou uma média de 50 a 60.000 visitantes. Somente observou uma crise (que aliás eram muito do seu conheci­mento, por as ter observado no hospital) e a doente em que ela se manifestou era uma an­tiga internada da sala Pinei.

Anfiteatro de Ivry — Nenhuma crise ou outra qualquer manifestação histérica foi observada.

Hôpital des Enfants Malades—1.200 óbitos anuais. 80.000 visitantes durante os 18 anos que o empregado ocupa o seu cargo. Destes 80.000 visitantes pode contar-se um mínimo de 10.000 mães. Cinco ou seis crises nervosas, con­sistindo numa queda para trás com perda de consciência. Nenhuma crise convulsiva, nenhu­ma contractera, nenhuma paralisia.

Em nenhum dos casos apontados os empre­gados tiveram de reclamar os socorros dos in­ternos de serviço, pois as crises foram sempre passageiras.

Sem querer contestar o valor de tais argu­mentos de Babinski, já que nessa brilhante assembleia lho não fizeram, diga-se que no caso das ascensões aéreas e no caso do reconheci­mento dos cadáveres por pessoas de família dos mortos não se trata de choques emotivos, que são os que vulgarmente produzem fenóme­nos histéricos.

Quanto ao caso do terramoto de Messina^ ê certo que alem de Néri, outros, como Bianchi d'Abundo e Stierlin, fizeram observações, che­gando a resultados análogos. Porem, quando

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do terramoto de Valparaiso, em agosto de 1906, foram observados por Stierlin acidentes histé­ricos em pessoas, que anteriormente os não ti­nham acusado nunca.

De resto, as condições em que essa emoção se produz são diversas da emoção — choque vul­gar—pois nesses casos todos os indivíduos ficam colocados perante o perigo em condições iguais.

Que a sugestão entra como factor etiológico de certas manifestações histéricas, é para nós inegável. Entre outras, algumas perturbações sensitivas, como as hemianestesias O, as per­turbações da visão, que as experiências de Pa-rinaud atrás referidas permitem reconhecer como de ordem sugestiva; a falsa gravidez his­térica, nascida de um ardente desejo ou de um profundo receio de ser mãe que a doente expe­rimenta, bem como o facto incontestável de se poderem reproduzir por sugestão os fenómenos histéricos — mostram bem que não ó possível eliminar do quadro etiológico dos acidentes o factor sugestão.

( ) Esteve há anos internada no pavilhão de criminosos do Manicómio do Conde de Ferreira, uma louca moral, que apresen­tava uma hemianestesia completa —ela que era uma vagabunda, filha das tristes ervas, que nunca fora observada por médico algum.

Este facto mostra-nos como se não pode ser absoluto, delimi­tando o campo da sugestão e da emoção. A hemianestesia, quási que unanimemente admitida como gerada pela sugestão médica, aparece-nos aqui como produto possível unicamente de uma emoção.

O ecletismo é nestes casos o caminho mais prudente — não, já se vê, aquele ecletismo que é neste mundo uma comodidade para os que querem fugir à responsabilidade das suas opiniões, mas o que nasce de um raciocínio justo e acertado.

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Mas o que torna a teoria de Babinski inacei­tável, de um modo absoluto, é o carácter de exclusivismo com que o autor a propõe — com­parável ao sectarismo dos políticos e ao fana­tismo religioso. Várias vezes os sábios, homens superiores afinal, teem destas manifestações paradoxais em que se revela ainda a sua mes­quinha condição humana: são como o astró­nomo que montando a sua luneta na explanada vê nitidamente o astro para onde a focou, mas só esse, ao passo que eu à vista desarmada, mais longinquamente, abarco com o olhar toda a porção do ceu constelado que o meu hori­zonte limita.

Com efeito, não menos do que a sugestão, a emoção entra na etiologia dos acidentes histé­ricos. Alguns casos posso relatar em que o pa­pel da emoção é inegável.

Uma doente que foi da clínica do sr. prof. Júlio de Matos e hoje é tratada pelo sr. dr. Baía Júnior fazia sempre a sua crise, de forma sin­copai, na ocasião da visita médica, a ponto de não poder ser examinada. Nenhuma sugestão aqui se poderia encontrar ; simplesmente a che­gada do médico, que ela mesmo pressentia antes de qualquer pessoa da casa, lhe provocava a crise.

Um outro caso deste género me foi referido pelo sr. dr. José de Magalhães que viu manifes-tar-se uma crise de sonambulismo numa me­nina, portadora de uma tara nervosa pesada, num dia de trovoada, de que aliás não era me­drosa, só porque o pai andava fora de casa.

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Muitos outros casos se poderiam referir e muitos foram apresentados nessa memorável sessão das sociedades de Neurologia e de Psi­quiatria de Paris, por quem tinha como Ba-binski um nome ilustre na sciência e incontes­tável autoridade para que as suas observações fossem tidas em boa conta.

Mas há mais: nem só nos casos nítidos se pode levar em conta a emoção ; a alguns, que, à primeira vista, parecem unicamente devidos à sugestão, não é de todo estranho o factor emo­ção. Por exemplo, casos em que a crise histé­rica é provocada por um ataque epiléptico que é presenciado ; um caso destes foi apresentado numa das lições do curso de Psiquiatria de há dois anos : um rapaz dos seus 16 anos que fez uma crise histérica na volta de uma romaria, provocada por um ataque epiléptico que teve um companheiro de jornada.

Um outro caso concludente, a meu vêr, me foi referido pelo dr. José de Magalhães, poucos dias antes destas linhas serem escritas : Quando no Manicómio do Conde de Ferreira passava a sua visita, uma histérica contava-lhe que uma companheira de enfermaria tinha tido na vés­pera o seu ataque; e acrescentava: "Quando a vejo assim, fujo para outro lado; incomoda-me assistir a eles,,. Claro que se só a sugestão ge­rasse os ataques, êle surgiria apesar da doente se furtar ao espectáculo, porque a sugestão es­tava feita.

Seria este muitas vezes — ó de presumir —

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o mecanismo das crises que surgem por efeito de uma outra crise, por exemplo, na sala de espera de uma consulta.

São depois as crises motivadas pela recorda­ção, não de uma crise passada, mas da emoção que a produziu.

Vi relatado um caso em que a primeira crise surgiu numa rapariga por ocasião da morte do pai; pois a crise repetia-se todas as vezes que a rapariga sonhava revivendo a scena passada da morte do pai.

E são também aquelas emoções cuja recor­dação ficou como que submersa na memória e de que a consciência não chega a ter notícia, que os processos de psicanálise permitem re­velar.

Do que deixamos dito conclui-se que ao lado da sugestão, damos um lugar tanto ou mais im­portante à emoção na etiologia dos acidentes histéricos.

De certo que a emoção como a sugestão produzem acidentes históricos — nos histéricos.

Os histéricos, que são para Bernheim os que possuem um aparelho histerogéneo, capaz de exagerar as reacções psicodinâmicas emotivas e para Janet e Grasset indivíduos com tendên­cias ao desdobramento da personalidade, e para Sollier indivíduos cujos centros cerebrais po­dem adormecer e mergulhar-se num torpor, de que é necessário despertá-los.

Pensamos, com Henri Claude, que se a emo­ção não cria a histeria, gera acidentes histéri-

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cos no histérico—cujo sistema nervoso é cons­titucionalmente ou por aquisição portador de uma diátese, de um modo de ser especial— em suma é o sistema nervoso de um histérico.

iE o que é a histeria? Nenhuma das teorias que apresentamos, a

não ser a de Babinski, que o fez de um modo pouco aceitável, nenhuma define de uma ma­neira clara a natureza da névrose, somente emitindo hipóteses mais ou menos fundamen­tadas.

Não a define Bernheim. As teorias de Janet e de Grasset não explicam porque razão se pro­duz essa tendência ao desdobramento da perso­nalidade ou a separação dos dois psiquismos. Não nos diz Sollier o que faz adormecer certos centros superiores das funções somáticas.

Só Babinski explica as perturbações pelo poder da sugestão e nós já vimos quanto esse modo de vêr tem de pouco geral e absoluto.

Dizia Lasègue, que a histeria nunca tinha sido definida e jamais o seria.

Não seremos nós que tentemos desvendar o enigma dessa Esfinge.

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E m c o n c l u s ã o :

Na génese dos acidentes histéricos podem atribuir-se papeis equivalentes à emoção e à sugestão.

A emoção e a sugestão provocam acidentes histéricos nos indivíduos histéricos.

A histeria é um modo de ser especial, um modo de reagir particular do sistema nervoso constitucional ou adquirido, mal definido ainda, que se revela pelas chamadas manifestações histéricas.

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B I B L I O G R A F I A

Leçons sur les maladies du système nerveux — Charcot. Traité pratique des Maladies du système nerveux — Grasset. Introdution physiologique à l'étude de. la Philosophie — Grasset. Traité de Pathologie Mentale — Gilbert Ballet. Traité de Médecine — Bouchard e Brissaud. Les Névroses — Pierre Janet. L'Hystérie — Bernhoim. L'Hystérie et son traitement — Sollier. Les Phénomènes d'autoscopie — Sollier. Exposé des Travaux Scientifiques — Babinski. Elementos de psiquiatria — Júlio de Matos. Névroses et psychonévroses — Raymond. Les manifestations fonctionelles des Psychonévroses — Leur

traitement par la Psychotérapie — Dejerine et Gauckler. Les Psychonévroses et leur traitement moral — Dubois. Revue Neurologique. L'Encéphale.

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PROPOSIÇÕES

1." Classe — Anatomia — 0 teatro anatómico é uma escola insuficiente de anatomia médica.

2.a Classe — Fisiologia e Histologia — Nenhum fenó­meno se produz no nosso organismo por processos pura­mente mecânicos, físicos ou químicos.

— Uma histérica em hipnose pode ser um bom auxiliar no estudo experimental de fisiologia humana.

3." Classe — Farmacologia—Antes de se prescrever um antiséptico, em qualquer lesão cirúrgica, é bom pensar nas suas presumíveis propriedades citóliticas.

4." Classe — Bacteriologia, Parasitologia e Anatomia Patológica—0 único meio de cultura próprio do treponema pallidum é o soro do sangue do homem ou do macaco, In vivo.

— Nem sempre um sintoma corresponde a uma lesão.

5." Classe — Higiene e Medicina Legal — Todo o uso do álcool é um abuso.

—A casa barata, arranjada com um relativo conforto, é um bom factor de higiene social e individual.

— Para uma justa e recta aplicação da lei dos acidentes de trabalho, seria necessário distribuir a cada operário um livrete sanitário.

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6." Classe — Obstetrícia e Ginecologia — Num parto distócico —intervir, não intervir, eis a questão!

7." Classe—Cirurgia — Antes de praticar uma histere-ctomia, o cirurgião devia pensar tanto ou mais do que antes de operar a amputação de um membro.

8." Classe — Medicina—Os pequenos sinais de uma doença devem ser para o clínico os grandes sinais dessa doença.

Nevrologia e Psiquiatria — Todo o tratamento di­verso do tratamento moral nas manifestações histéricas é erróneo e contraproducente.

Visto. Imprima-se. O 'Presidente, O Bipector.

Magalhães Lemos. Pinho.

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