A encenaçao performativa antonio araujo

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/28/2019 A encenaao performativa antonio araujo

    1/6

    A

    Antnio Arajo encenador e professor do Departamento de Artes Cnicas da USP.

    encenao contempornea vem estabele-cendo uma forte relao com aperfor-mance, sendo contaminada e reconfigu-rada por ela. Relao de desconfiana,muitas vezes, at mesmo antpoda, em al-

    guns casos, mas tambm legtima e complemen-tar. Utilizamos aqui o conceito mais restrito deperformance, associado performance art, aoinvs da noo ampliada com que RichardSchechner vem abordando este termo, no cam-po dosperfomance studies incorporando a ele

    os rituais, as cerimnias cvicas, a poltica, asapresentaes esportivas, entre outros aspectosda vida social.

    Nesse sentido, o carter autobiogrfico,no-representacional e no-narrativo, de contra-ponto iluso, e baseado na intensificao dapresena e do momento da ao, num aconte-cimento compartilhado entre artistas e especta-dores traos caractersticos da arte perform-tica vo orientar as sugeridas aproximaescom o campo teatral. Segundo Lehmann, evidente que deve surgir um campo de frontei-ra entre performance e teatro medida que oteatro se aproxima cada vez de um acontecimen-

    to e dos gestos de auto-representao do artistaperformtico (Lehmann, 2007, p. 223).

    O carter multidisciplinar de cruzamen-to de diferentes linguagens artsticas, to axialna performance, tambm prtica recorrente naencenao atual, que se alia, cada vez mais, sartes plsticas, dana, msica e ao cinema.Porm, diferentemente do projeto wagnerianode sntese das artes em suaGesamtkunstwerk, oencenador contemporneo coloca lado a ladoessas diferentes linguagens artsticas, presenti-ficando-as autonomamente.

    O corpo em risco, colocado em situao-

    limite, que no representa mais personagens,mas utiliza sua autobiografia como material c-nico, outro ponto em comum desse dilogo.Como analisa Josette Fral, o performerrecusatotalmente a personagem e [...] [pe] em cenao artista ele mesmo, artista que se coloca comoum sujeito desejante e performante, mas sujei-to annimo interpretando a ele mesmo emcena (Fral, 1985, p. 135). Ou ainda, na visode Jorge Glusberg, o performer no atua se-gundo o uso comum do termo; [...] ele no fazalgo que foi construdo por outro algum semsua ativa participao (Glusberg, 1987, p. 73).Ou seja, essa instaurao da presena do corpo

    e da pessoa do prprioperformer, no mediadapor instncias ficcionais, que marcou a ciso

    253

    AAAAA encenao pe r fo rmat i vaencenao pe r fo rmat i vaencenao pe r fo rmat i vaencenao pe r fo rmat i vaencenao pe r fo rmat i va

    AAAAA ntonio Arajo

    R4-A6-AntonioAraujo.PMD 15/04/2009, 08:26253

  • 7/28/2019 A encenaao performativa antonio araujo

    2/6

    sssss a l a ppppp r e t a

    254

    entre representao associada ao teatro e apresentao elemento-base da perfor-mance ser revista e rearticulada pela encena-o contempornea.

    Entre outros elementos, ela vai lanarmo da exposio nua e crua do corpo do ator-performere de sua ampliao imagtica ou departes dele por meio de recursos tecnolgicos,acentuando o elemento presencial ou pondoem xeque a sua ausncia ou virtualidade , almde colocar em risco ou em perigo a integridadefsica dos prprios atuadores. inegvel a ma-triz artaudiana e de experimentos como os doLiving Theater nessa busca de um teatro vivoe no-representado.

    A questo do olhar de fora, da observa-o externa, funo precpua do diretor, tam-bm dialoga com a atitude doperformer. Fral,por exemplo, reitera esse carter de no-imbri-cao na obra, pois operformermantm sem-pre um direito do olhar. o olho, substituto dacmera que filma, [...] operando deslizamentos,superposies, ampliaes em um espao e so-bre um corpo tornados os instrumentos de suaprpria explorao (Fral, 1985, p. 131). Ou

    ainda, na formulao de Glusberg, operformeratua como um observador. Na realidade, eleobserva sua prpria produo, ocupando o du-plo papel de protagonista e receptor do enunci-ado (aperformance) (Glusberg, 1987, p. 76).Essa observao, no raro, marcada pela auto-ironia e pela autocrtica. Nesse sentido, o atorse transforma, ele tambm, no encenador daobra, ou seja, umperformer-encenador. RenatoCohen sintetiza bem tal perspectiva:

    Apesar da nfase para a atuao aperforman-ceno um teatro de ator, pois, [...] o discur-so daperformance o discurso damise en scne,tornando o performeruma parte e nunca otodo do espetculo (mesmo que ele esteja so-zinho em cena, a iluminao, o som etc. se-ro to importantes quanto ele ele poderser todo enquanto criador mas no enquantoatuante) [...] O performer, medida queverticaliza todo o processo de criao teatral,

    concebendo e atuando, se aproxima da pes-soa descrita por Appia emA Obra de Arte Viva,que acumularia as funes de autor e ence-nador (Cohen, 1989, p. 102).

    Contudo, esse paroxismo da presena e dabiografia pessoal no ocorrer apenas por meiodos atores. Na medida em que a funo precpuado diretor no mais a passagem do texto cena, o campo de experincia do prprioencenador se abre tambm como material cni-co. Suas memrias, histrias pregressas e buscade autodesenvolvimento so convocadas para aconstruo do espetculo. Na verdade, a vidapessoal do encenador j se encontra, desde omomento da escolha dos projetos, determinan-do os critrios de seleo. Portanto, a encenaopassa a ser, em certa medida, a encarnao, amise en chair do diretor. E ele, por sua vez,torna-se, ento, um encenador-performer quetrabalhar na elaborao do acontecimento c-nico com um grupo de performers-encenadores.

    A questo da especific idade do espaopara a performance outro ponto de contatocom a encenao site specificcontempornea, na

    medida em que toda performance s feita (es pode ser feita) em e para um dado espao aoqual ela est indissoluvelmente ligada (Fral,1985, p. 129). Esse local especfico e nico,muitas vezes aberto prpria cidade, e s even-tuais interferncias dos espectadores-atuadores,vai trazer ainda a questo do inesperado, do di-logo e da incorporao do acaso dentro daobra. Como Glusberg aponta, deve-se ter emmente que o elemento inesperado naperforman-ce inesperado no s para o espectador, [...]mas tambm e primeiramente ao artista deper-formance, cujo trabalho sempre tem um aspec-to de inesperado (Glusberg, 1987, p. 83).

    Outro dado de aproximao importanterefere-se minimizao ou ausncia de hierar-quia entre os elementos constitutivos da cena,no mbito da performance. Tal perspectiva dia-loga diretamente com as hierarquias mveis doprocesso colaborativo. Pois, como vimos, talmobilidade ou flutuao entre as funes acaba

    R4-A6-AntonioAraujo.PMD 15/04/2009, 08:26254

  • 7/28/2019 A encenaao performativa antonio araujo

    3/6

    AAAAA encenao performativa

    255

    gerando uma obra em que nem o texto, nemo ator ou a encenao tm carter epicntrico.Ou seja, a resultante do espetculo como nocaso da performance reflete uma alternnciade dominncias textuais, cnicas, interpretati-vas, etc. ao longo de sua apresentao.

    Contudo, uma diferena pode ser encon-trada na anlise distintiva que Renato Cohenfaz entre happening de carter mais grupal eperformance de natureza preponderantemen-te pessoal. Nesta ltima,

    [...] o trabalho passa a ser muito mais indi-vidual. a expresso de um artista queverticaliza todo seu processo, dando sua lei-tura de mundo, e a partir da criando seu tex-to (no sentido sgnico), seu roteiro e sua for-ma de atuao. Operformervai se assemelharao artista plstico, que cria sozinho sua obrade arte; [...] Por esse motivo vai ser muitomais reduzido o trabalho de criao coletiva.Mesmo quando o artista (no caso, umencenador) trabalha em grupo [...] esse pro-cesso se d por colaborao ou por direo.Essa relao [...] vai ser uma relao horizon-

    tal, de colaborao (Fral, 1985, p. 100-1).

    curioso que Cohen j utilize aqui a pa-lavra colaborao para descrever um modo decriao horizontal que seria distinto daquele dacriao coletiva. claro que o que ele tem emmente no ainda a dinmica ocorrida no pro-cesso colaborativo, o que se evidencia no exem-plo por ele apresentado: a parceria entre RobertWilson e Philip Glass, na qual este ltimo com-pe, separada e independentemente, a msicapara suas peras. A colaborao, nesse caso,se d pela equivalncia das diferentes criaes,isto , pela no-subjugao da produo musi-cal vontade e ao discurso do encenador. na

    afirmao territorial de suas autonomias, e najustaposio no-dialogada de suas criaes, queeles colaboram.

    O teatro contemporneo, ao deixar apa-rente e evidenciado o seu processo de fabrica-o, tambm estabelece conexo com os aspec-tos de revelao de procedimentos construtivos,presente na performance. Esta, segundo Fral,se interessa por uma ao em curso de produ-o mais do que em um produto acabado(Fral, 1985, p. 137). O posicionamento per-formativo do encenador, nessa medida, o con-diciona menos para a realizao da obra per-feita, deixando que o espetculo apresente emcena e em ato o seu prprio processo de feitura.Tal perspectiva se materializa tanto pela expli-citao de rastros do processo, pela no-ma-quiagem dos seus buracos, fissuras e fracassos,quanto pela apresentao da obra como umconstante e contnuo work in progress.

    Por todas as aproximaes acima levanta-das e, ainda, tomando como base a abordagemde Fral,1 segundo a qual ela prefere o uso dotermo teatro performativo ao invs de teatrops-dramtico, para se referir cena contem-

    pornea, resolvemos tambm nomear esta dire-o estreitamente vinculada performancecomo encenao performativa.

    Tal tipo de encenao, inclusive, na suabusca de negao da representao, chega a seapresentar como uma no-encenao. Eviden-temente, no no sentido pr-meiningeriano, demera organizao material dos elementos, mascolocando em crise a capacidade todo-podero-sa que ela teria de unificar, simbolizar ou in-terpretar um texto ou a prpria realidade. Ex-perincias de no-encenaes ou de mise enscnesprecrias podem ser encontradas nas lei-turas encenadas, nas encenaes improvisadasou construdas a partir de dispositivos impro-

    1 Tal abordagem foi apresentada em recente palestra no Encontro Mundial das Artes Cnicas (ECUM) 6 Edio 2008, realizada nas cidades de Belo Horizonte e de So Paulo, em 20 e 27 de maro de2008, respectivamente.

    R4-A6-AntonioAraujo.PMD 15/04/2009, 08:26255

  • 7/28/2019 A encenaao performativa antonio araujo

    4/6

    sssss a l a ppppp r e t a

    256

    visacionais, e ainda, nos exerccios cnicos in-conclusos, nos quais o aspecto processual deapresentao do processo, de revelao domovimento-do-fazer, do showing doing(mostrar o prprio fazer, no momento em quese faz) schechneriano espelha, sem dvida,procedimentos performativos.

    Tanto como na performance, a encena-o performativa pretende provocar a instaura-o de um acontecimento. Segundo Fral, nocontando nada nem imitando ningum, a per-formance [...] sem passado, nem futuro, aconte-ce, transforma a cena em acontecimento, acon-tecimento do qual o sujeito sair transformado,esperando uma outra performance para seguiro seu percurso (Fral, 1985, p. 135).

    Portanto, o objetivo principal deste tipode encenao menos a amarrao esttica dotodo, mas, sobretudo, a produo de experin-cia. Busca-se uma interferncia no espectador afim de que ele seja capaz de mobilizar sua pr-pria capacidade de reao e vivncia a fim derealizar a participao no processo que lhe oferecida (Lehmann, 2007, p. 224). Esse po-sicionamento performativo do teatro, segundo

    Lehmann, abre-lhe, justamente, possibilidadesde novos estilos de encenao. Contudo, aindade acordo com Fral,

    [...] contrariamente performance, o teatroest impossibilitado de no colocar, dizer,construir, fornecer pontos de vista: pontos devista do encenador sobre a representao, doautor sobre a ao, do ator sobre a cena, doespectador sobre o ator. H toda umamultiplicidade de pontos de vista e de olha-res [...]. A performance no tem nada a dizer,nada a dizer a si mesmo, a capturar, a proje-tar, a introjetar a no ser os fluxos, as redes,os sistemas. Tudo nela aparece e desaparececomo uma galxia de objetos transicionais(Winnicott), que s representam as falhas dacaptura da representao. (...) Ela no procu-ra dizer (como o teatro), mas provocar rela-es sinestsicas de sujeito a sujeito (Fral,1985, p. 136-8).

    Tal discusso leva, necessariamente, aoproblema da unidade, que atravessa, por maisde um sculo, a funo do encenador. Ao con-trrio da perfomance, que no visa ao estabele-cimento de um sentido geral ao discurso cnicoou materializao de um ponto de vista sobreum determinado assunto ou texto, a encenaoparece, por natureza, convocada a essa compo-sio ou articulao do sentido. Pavis busca emCopeau a formulao clssica da noo de miseen scne: ela a totalidade do espetculo cni-co que emana de um pensamento nico, que oconcebe, o regula e, no fundo, o harmoniza(Pavis, 2008, p. 45). Ainda que o espetculopossa colocar em xeque um posicionamento oudeixar em aberto a amarrao de um significa-do ltimo, o imperativo da constituio de uni-dade parece ser sempre uma espcie de teleolo-gia da encenao.

    Bernard Dort sustenta, porm, que essavontade de unificao (...) somente um fe-nmeno histrico (Dort, 1988, p. 178). Emoutras palavras, preciso se interrogar sobre essaviso do teatro e da encenao como arteunificada. A unidade artstica da representao

    surge com o teatro realista, no final do sculoXIX. Tratava-se, ali, de uma unidade no ape-nas visual ou cenogrfica, mas tambm do re-gistro de interpretao dos atores. Essa busca daunidade estilstica e rtmica do espetculo noseu conjunto, de um eixo esttico no discursoda encenao, da conformao de um todo or-gnico e harmnico, o que veio a configurar anoo de ensemble, que atravessar todo o scu-lo XX.

    Contudo, em sua anlise, Dort apontapara uma nova configurao relativa encenao:

    Constatamos hoje uma emancipao pro-gressiva dos elementos da representao e ve-mos a uma mudana de estrutura desta lti-ma: a renncia a uma unidade orgnica pres-critaa priorie o reconhecimento do feito te-atral como uma polifonia significante, aber-ta sobre o espectador (Dort, 1988, p. 178).

    R4-A6-AntonioAraujo.PMD 15/04/2009, 08:26256

  • 7/28/2019 A encenaao performativa antonio araujo

    5/6

    AAAAA encenao performativa

    257

    O terico francs ope, ento, a visounitria de Wagner ou de Craig a uma visoagonstica, que pressupe um combate entre osdiversos elementos cnicos para a construo dosentido, do qual o juiz ser o espectador.

    A encenao performativa, nesse sentido,vai buscar justamente se libertar da construoda unidade, do discurso homogneo e do sen-tido articulador. Ela procurar se deixar atra-vessar por sentidos, por linhas de fora, porheterogeneidades materiais, discursivas e delinguagens. Ao invs da produo de senti-do, busca-se, como na performance, a produ-o de presena, ao invs da organizao sim-blica, da homogeneizao dos materiais ouda amarrao de um sentido, emergem peda-os de sentido, possibilidades tateantes de sig-nificao, postas em movimento e em contato,por ao do diretor. Ele, ento, funcionaria maiscomo um operador de fluxos errticos, umpresentificador de pedaos de representa-

    o, um produtor de uma rede de motivos c-nicos diversos.

    Inspirada pela performance e por suaestrutura de collagee de leitmotiveencadeandoas aes a encenao performativa vai colocaros diferentes fluxos de desejo e de sentido emconexo, deixando emergir as diversidades,habitando em heterotopias e, por fim, desestabi-lizar as cristalizaes de unidade. Como susten-ta Pavis, no seu recente estudo sobre a ence-nao contempornea, a encenao tornou-seperformance, no sentido ingls da palavra: elaparticipa de uma ao, ela se encontra em umdevir permanente (Dort, 1988, p. 37). E, nes-se sentido, a associao ainda que instvel entre performance e encenao um dadoao qual a cena contempornea no conseguemais escapar, pois uma no vai sem a outra, somente a dosagem que varia. necessrio in-ventar umaperformise[juno das palavras per-formance e mise en scne] (idem, p. 40).

    Referncias bibliogrf icasReferncias bibliogrf icasReferncias bibliogrf icasReferncias bibliogrf icasReferncias bibliogrf icas

    COHEN, R. Performance como Linguagem. So Paulo: Editora Perspectiva, 1989.

    DORT, B. La Reprsentation mancipe. Arles: Actes Sud, 1988.

    FRAL, J. Performance et thtralit: le sujet dmystifi. In: FRAL, J.; SAVONA, J. L.;WALKER, E. A. (Dir.). Thtralit, criture et mise en scne. Quebc: ditions Hurtubise HMH,

    1985.GLUSBERG, J.A Arte da Performance. So Paulo: Editora Perspectiva, 1987.

    LEHMANN, H.-T. Teatro ps-dramtico. So Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 224

    PAVIS, P. La Mise en Scne Contemporaine: origines, tendances, perspectives. Paris, Armand Colin,Coll. U, 2008.

    R4-A6-AntonioAraujo.PMD 15/04/2009, 08:26257

  • 7/28/2019 A encenaao performativa antonio araujo

    6/6

    sssss a l a ppppp r e t a

    258

    RESUMO: O texto discute, na perspectiva da performance art, a tendncia contempornea daencenao no mais como totalidade acabada e enfeixando um nico sentido, mas como obra emprogresso compatibilizando diversos planos de criao e deixando ao espectador a possibilidade detambm colaborar. Percebe-se, assim, uma aproximao entre o sentido da performance como ex-presso auto-biogrfica e a encenao, com a dimenso autoral do encenador muito mais identificadacom a do performer do que com a do diretor de teatro da tradio moderna.PALAVRAS CHAVE: performance, encenao, auto-biografia, processo colaborativo.

    R4-A6-AntonioAraujo.PMD 15/04/2009, 08:26258