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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Programa de Pós-graduação em Filosofia A EPISTEMOLOGIA DA CIÊNCIA DE HENRI POINCARÉ: PARA ALÉM DO CONVENCIONALISMO E DO REALISMO ESTRUTURAL Onofre Crossi Filho São Paulo, 2012

A EPISTEMOLOGIA DA CIÊNCIA DE HENRI … de elogio e, em especial, ao nosso diretor adjunto Prof. José Ribeiro Filho, sempre presente com suas palavras amigas de estímulo e incentivo

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Programa de Pós-graduação em Filosofia

A EPISTEMOLOGIA DA CIÊNCIA DE HENRI POINCARÉ: PARA ALÉM DO CONVENCIONALISMO E DO

REALISMO ESTRUTURAL

Onofre Crossi Filho

São Paulo, 2012

UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Programa de Pós-graduação em Filosofia

A EPISTEMOLOGIA DA CIÊNCIA DE HENRI POINCARÉ: PARA ALÉM DO CONVENCIONALISMO E DO

REALISMO ESTRUTURAL

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia, da Universidade São Judas Tadeu, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia por Onofre Crossi Filho.

Orientadora: Profª. Drª. Sonia Maria Dion.

São Paulo, 2012

Crossi Filho, Onofre C951e A epistemologia da ciência de Henri Poincaré : para além do

convencionalismo e do realismo estrutural / Onofre Crossi Filho. - São Paulo, 2012.

115 f. ; 30 cm.

Orientador: Sonia Maria Dion. Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo,

2012. 1. Poincaré, Henri, 1854-1912. 2. Epistemologia. 3. Realismo. I. Dion, Sonia Maria. II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título

CDD 22 – 121

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Universidade São Judas Tadeu

Bibliotecário: Ricardo de Lima - CRB 8/7464

“O pensamento não é mais que um

clarão em meio a uma longa noite.

Mas esse clarão é tudo.”

(Henri Poincaré, O valor da ciência)

À minha esposa Elaine, a mulher de minha vida e maior incentivadora.

Aos meus pais, Onofre e Josefa, as bases de quem sou.

Ao meu filho Ivan, uma alma que tranquiliza.

À minha filha Amanda, uma esperança.

Agradecimentos

Minha admiração e sinceros agradecimentos à Prof.ª Dr.ª Sonia Maria Dion,

professora em minha Graduação, orientadora em meu PVIC, co-autora em meu primeiro

artigo, orientadora em meu TCC, nossa coordenadora do Grupo de Pesquisa em História a

Filosofia da Ciência e orientadora dessa pesquisa de Mestrado, por sua participação em minha

formação docente ao longo dos últimos cinco anos, nos quais me ensinou com sua

objetividade, carisma, rigor, dedicação e, principalmente, paciência, como é possível

compreender e construir a ciência sobre fundamentos filosóficos.

Agradeço à Prof.ª Dr.ª Monique Hulshof por seu apoio e suas sugestões nos intervalos

de suas aulas e por sua participação e comentários na banca de Qualificação do Mestrado que

muito me ajudaram a alcançar o resultado final dessa pesquisa.

Agradeço ao Prof. Dr. Nílson José Machado pela honra de suas participações nas

bancas de Qualificação e de Avaliação do presente Mestrado e, principalmente, pelas

sugestões e comentários que muito contribuíram para definir os rumos finais de minha

pesquisa.

Agradeço à Prof.ª Dr.ª Luciana Zaterka, pelo privilégio de aprender com suas aulas na

Graduação e de poder submeter essa dissertação de Mestrado à sua avaliação.

Agradeço à Prof.ª Dr.ª Regina André Rebollo e ao coordenador de nosso Mestrado

Prof. Dr. Floriano Jonas César, queridos Mestres que nos presentearam com aulas

memoráveis ao longo desse Mestrado.

Agradeço à Prof.ª Ms.ª Dinéia Hypolitto, por me ensinar a lecionar e pelo seu apoio e

incentivo desde minha Licenciatura.

Agradeço a todos os meus colegas professores do Colégio São Judas Tadeu pelas

palavras de elogio e, em especial, ao nosso diretor adjunto Prof. José Ribeiro Filho, sempre

presente com suas palavras amigas de estímulo e incentivo.

Agradeço pela torcida do querido amigo Prof. André Assi Barreto, cuja juventude e

capacidade transparecem um futuro brilhante.

E, principalmente, agradeço à Universidade São Judas Tadeu, ao corpo docente de sua

Faculdade de Filosofia, meus queridos professores da Graduação e do Mestrado, e à

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES; o meu muito

obrigado por confiarem a mim a oportunidade de usufruir dessa bolsa de mestrado.

Resumo

Henri Poincaré viveu entre a segunda metade do século XIX e a segunda década do

século XX, o período mais efervescente que a ciência já presenciou; repleto de novos

resultados experimentais, novas descobertas, novas possibilidades matemáticas e novas

teorias científicas. Sua obra filosófico-científica demonstra a clara preocupação em organizar

essa profusão de novas informações científicas por um viés notavelmente epistemológico,

delineando todas as etapas necessárias à construção e criação da matemática, em função da

elaboração das teorias científicas das ciências físicas.

Poincaré preocupou-se em definir como é possível a criação do conhecimento

científico a partir de sua origem – o princípio de recorrência – com o qual a faculdade humana

da intuição cria, destaca e multiplica propriedades matemáticas, rigorosamente verificadas

pela análise lógica, por meio do princípio de contradição. A única verdade para o espírito

deriva desse movimento de criação e dedução, necessariamente matemático. Por analogia, as

induções matemática e física usarão o raciocínio por recorrência; a verdade das teorias físicas

terá de ser obtida, unicamente, da possível analogia entre as propriedades empíricas incertas e

a certeza das propriedades matemáticas.

A demonstração de cada uma das fases contidas nessa detalhada epistemologia passa

por níveis distintos de recursos às propriedades físicas e matemáticas, pela busca de um

equilíbrio entre exatidão e objetividade, pela estrutura única das leis matemáticas e físicas,

pela lei da homogeneidade, pela construção das verdades geométricas convencionais e pela

elaboração dos princípios físicos também convencionais. Nessa epistemologia as relações

matemáticas são o próprio elemento de continuidade que permanece presente na interminável

sucessão de teorias físicas, cujas mudanças dependem do constante desenvolvimento dos

métodos experimentais e de novos resultados empíricos.

Segundo minha visão, quaisquer classificações sobre a filosofia da ciência de Poincaré

que se apeguem somente às consequências dessa epistemologia, como é o caso do

convencionalismo e do realismo estrutural de Worrall, acabam por restringir a amplitude, a

continuidade e a riqueza do seu detalhamento epistemológico. Pretendo, assim, tornar claro

que, a partir das bases da epistemologia de Poincaré, tanto as convenções, quanto as estruturas

matemáticas são consequências harmônicas com o conjunto de sua epistemologia e, portanto,

não devemos entendê-las como destaques centrais ou fundamentos de sua epistemologia.

PALAVRAS CHAVE: Poincaré; epistemologia da ciência; princípio de recorrência;

convencionalismo; realismo estrutural.

Abstract

Henri Poincaré lived between the second half of the nineteenth century and the second

decade of the twentieth century, the most effervescent period that science has ever seen, full

of new experimental results, new discoveries, new mathematical possibilities, new and

scientific theories. His philosophical and scientific work demonstrates a clear preoccupation

in organizing this wealth of new scientific information by a notably epistemological bias,

delineating all the steps necessary for the construction and creation of the mathematical, in

function of elaboration of scientific theories of the physical sciences.

Poincaré was concerned to define how it is possible the creation of the scientific

knowledge from its source - the principle of recurrence - with which the human faculty of

intuition creates, highlights and multiplies mathematical properties, rigorously verified by the

logical analysis, through the principle of contradiction. The only true to the spirit derives of

this movement of creation and deduction necessarily mathematical. By analogy, the

inductions mathematical and physical will use the reasoning by recurrence; the truth of

physical theories must be obtained solely from the possible analogy between the uncertain

empirical properties and the certainty of mathematical properties.

The demonstration of each of the phases contained in this detailed epistemology goes

through the different levels of recurrent physical and mathematical properties, by the search

of a balance between accuracy and objectivity, by the unique structure of mathematical and

physical laws, by the law of homogeneity, by the construction of conventional geometrical

truths and by the elaboration of the physical principles also conventional. In this epistemology

the mathematical relations are the own element of continuity that remains present in endless

succession of physical theories, whose changes depend on the constant development of

experimental methods and new empirical results.

According to my view, any classification on the Poincaré’s philosophy of science that

is limited only to the consequences of this epistemology, is like the case of conventionalism

and Worrall’s structural realism, ends restricting the range, continuity and richness of its

epistemological detailing. Therefore, I intend to make clear that, from the foundations of

Poincaré’s epistemology, both conventions, as the mathematical structures are consequences

harmonics with the set of his epistemology and therefore we should not understand them like

central highlights or foundations of his epistemology.

KEYWORDS: Poincaré; epistemology of science; principle of recurrence; conventionalism;

structural realism.

Sumário

Introdução................................................................................................................................... 01

Capítulo 1 A filosofia da ciência de Poincaré: fundamentos epistemológicos 08

1.1 Introdução.................................................................................................... 09

1.2 A intuição e a origem da indução........................................................... 11

1.3 A gênese da criação científica................................................................. 21

1.4 Lei e analogia.............................................................................................. 30

1.4.1 A Lei...................................................................................................... 30

1.4.2 As analogias.......................................................................................... 36

1.5 Ajustando a matemática à física............................................................. 41

1.5.1 O contínuo matemático e o contínuo físico........................................... 41

1.5.2 A percepção, a geometria e a matemática............................................. 45

1.6 O papel das hipóteses................................................................................ 53

1.6.1 Classificação das hipóteses................................................................... 53

Capítulo 2 O convencionalismo de Poincaré................................................................ 62

2.1 Introdução.................................................................................................... 63

2.2 Os convencionalismos: geométrico e físico........................................ 64

2.2.1 O convencionalismo geométrico........................................................... 64

2.2.2 O convencionalismo físico................................................................... 74

Capítulo 3 O realismo estrutural epistemológico....................................................... 83

3.1 Introdução..................................................................................................... 84

3.2 O problema de Worrall: realismo X antirrealismo............................. 86

3.2.1 O argumento sem milagres.................................................................... 87

3.2.2 O argumento da meta-indução pessimista............................................. 89

3.3 A solução de Worrall em Poincaré........................................................ 91

3.3.1 A conciliação dos opostos aparentes..................................................... 91

3.3.2 As estruturas matemáticas e a realidade................................................ 95

Conclusões................................................................................................................................... 100

Bibliografia.................................................................................................................................. 104

1

Introdução

Sem dúvida posso afirmar que o século XIX foi o mais rico em termos de descobertas

e de questionamentos em torno do conhecimento científico. Todos os ramos do conhecimento

humano sofreram uma intensa e contínua modificação ao longo desse século. Newton perde

sua hegemonia diante da descoberta do eletromagnetismo, a repercussão do pensamento

kantiano adentra o século XIX revelando uma nova maneira de interpretar os ‘fenômenos’

naturais, as geometrias não-euclidianas surgem para se contrapor à milenar geometria de

Euclides, Darwin aponta para uma lenta e contínua evolução das espécies. Tantos outros

exemplos poderiam ser citados sobre essa ‘época de ouro’ da nossa ciência. Entretanto, uma

constatação torna-se evidente: as novas teorias científicas trazem consigo um ganho

epistemológico para a ciência, mas, de um modo geral, não resistem ao tempo e dão lugar a

novas teorias, também efêmeras, porém, sempre úteis.

Henri Poincaré vive exatamente a passagem entre os séculos XIX e XX (1854 a 1912),

um período histórico que percebe todo o impacto dessa revolução no modo de fazer ciência e

tenta ordenar e organizar essa profusão de novas informações no âmbito de um conhecimento

científico fundamentado. Sua epistemologia irá se preocupar, exatamente, com os elementos

fundamentais que mantém a continuidade da possível verdade científica.

Talentoso matemático, Poincaré publicou trabalhos em todas as áreas da matemática

pura e aplicada. Foi também físico, filósofo, astrônomo e engenheiro, considerado por muitos

como o último universalista da história da ciência. A totalidade de sua obra soma mais de

quinhentos trabalhos publicados.

Nos primeiros anos do século XX alguns de seus artigos que tratam sobre filosofia da

ciência foram reunidos em quatro livros e tornaram-se, desde então, referências filosóficas

clássicas. O primeiro deles foi La science et l’hypothèse (A ciência e a hipótese); publicado

em 1902 é considerado sua principal obra de referência no domínio da filosofia e nele

Poincaré demonstra seu claro interesse no campo epistemológico da ciência. Em seus livros

subseqüentes: La valeur de la sciece (O valor da ciência) publicado em 1904 e Science et

méthode (Ciência e método) publicado em 1908, Poincaré revê, amplia e consolida suas

considerações epistemológicas sobre o conhecimento científico. O livro Dernières pensées

(Últimos pensamentos) de 1913, é uma coletânea de seus últimos trabalhos filosóficos

organizada após sua morte em julho de 1912, e também mantém a ênfase na epistemologia.

As muitas interpretações de sua obra lhe renderam várias classificações filosóficas

distintas como, por exemplo: convencionalista (no campo epistemológico da ciência),

2

intuicionista (cuja interpretação normalmente se restringe ao campo da epistemologia da

matemática), além de empirista, instrumentalista e realista estrutural epistemológico (três

modos distintos, e até mesmo contraditórios, de classificar e interpretar seus escritos no

contexto da discussão contemporânea entre realistas e anti-realistas); isso somente para citar

algumas. Essas muitas interpretações e classificações sobre a obra de Poincaré podem se

dever à riqueza de sua escrita que Bertrand Russel assim descreveu:

A escrita de Poincaré [...] resulta certa riqueza e ressonância nas suas palavras: o som emitido não é oco, mas vem de uma grande massa da qual somente a superfície polida aparece. Sua sagacidade, seu domínio fácil, e seu amor artístico de ocultar o trabalho do pensamento, pode esconder do leitor não-matemático o pano de fundo de conhecimento sólido do qual seus aparentes paradoxos emergem. (RUSSEL, prefácio a POINCARÉ, 1908, p. 5).

Por vezes, na tentativa de alcançar essa grande massa de conhecimento que se esconde

por detrás da superfície polida de sua escrita, o leitor acaba por encontrar apenas os paradoxos

aparentes a que Russel se referiu. Confesso que algumas de minhas primeiras leituras da obra

de Poincaré se encaixam nessa descrição.

Entretanto, a leitura acurada de suas obras filosóficas, principalmente os três primeiros

livros que citei acima, revelam elementos de continuidade que, no início, nos mostram o

estatuto da matemática para o espírito; este, em seguida, tentará preservar a verdade

matemática nas teorias das ciências físicas. Em alguns capítulos é possível perceber essa

intenção de Poincaré com certa clareza, como nas duas partes iniciais de “A ciência e a

hipótese”. Entretanto, o detalhamento dos procedimentos de analogia, intrínsecos a esse

movimento, tem de ser retirado de abordagens distintas distribuídas ao longo do conjunto de

suas obras.

No capítulo 1 dessa dissertação – A filosofia da ciência de Poincaré: fundamentos

epistemológicos – apresento minha interpretação desse percurso epistemológico poincareano.

Diante da riqueza de detalhes inerentes aos argumentos apresentados por Poincaré, em cada

nova etapa da ascensão da certeza matemática, gradativamente, o quadro epistemológico da

construção das ciências recebe novos elementos, revelando um conjunto harmônico e

detalhado. Diante dele, por exemplo, o papel que desempenham as convenções poincareanas

não é algo a ser destacado, mas simplesmente a função de um elemento harmônico com todos

os elementos restantes. O mesmo pode ser dito a respeito da continuidade matemática no

interior das teorias físicas, interpretada por Worrall como a estrutura matemática da realidade.

É justamente por isso que, a meu ver, classificar Poincaré como convencionalista ou realista

estrutural, só faz limitar o vislumbre de todo um contexto epistemológico a apenas partes

restritas desse quadro.

3

Assim, pretendo tratar nessa dissertação apenas de duas classificações ou

interpretações da obra filosófico-científica de Poincaré que derivam diretamente das

conseqüências epistemológicas presentes em sua obra, mas que, a meu ver, não consideram

sua base fundamental: (1) a filosofia da ciência poincareana interpretada como um tipo de

convencionalismo e (2) a filosofia da ciência poincareana interpretada como um tipo de

realismo estrutural. Como o título dessa dissertação indica, estas são classificações que, sem o

devido fundamento epistemológico, restringem a amplitude da obra de Poincaré, ou seja,

como diria Russel, mostram a superfície polida, mas não atingem a massa de conhecimento

por detrás dela.

Antes de examinar essas classificações e interpretações, examinarei os fundamentos

epistemológicos da ciência segundo Poincaré, por meio de um viés intuicionista – outra

classificação que, sem o devido aprofundamento, impõe restrições a uma ampla interpretação

de sua obra. Entretanto, a meu ver, se as visões convencionalista e realista estrutural sobre a

obra de Poincaré, não raramente, desconsideram as bases inerentes à sua epistemologia, por

outro lado, uma leitura intuicionista incompleta de sua obra pode dificultar a compreensão das

importantes consequências inerentes a essa epistemologia.

Creio que devido aos debates que Poincaré travou com Russel no campo da

epistemologia da matemática – Poincaré classificado como intuicionista e Russel classificado

como logicista – talvez por isso a intuição poincareana figure como uma faculdade do espírito

responsável apenas pela criação matemática (p.ex.: CASTRO, 2001; DEL VECCHIO Jr.

2005) ou simplesmente o exame de sua função epistemológica se interrompe nesse ponto.

Pretendo demonstrar que a intuição poincareana participa ativamente e criativamente de todo

o processo de construção do conhecimento científico fazendo uso do raciocínio por

recorrência.

Assim como no caso da intuição, o raciocínio por recorrência (chamado ainda de

princípio de recorrência, princípio de indução completa ou princípio de indução matemática)

também parece permanecer restrito ao campo do intuicionismo matemático (p.ex.: CASTRO,

2001, p. 2; DEL VECCHIO Jr., 2005, p. 56-63); ou é citado simplesmente como uma verdade

sintética a priori nos moldes kantianos (p.ex.: GIEDYMIN, 1991, p. 2-3); ou ainda é

reconhecido como instrumento que estrutura diferentes domínios, mas sua interpretação não

vai além disso (p.ex.: VUILLEMIN prefácio a POINCARÉ, 1902, p. 11; HEINZMANN,

2009, p. 75-76). Pretendo demonstrar ao longo dessa dissertação que segundo a visão de

Poincaré, o raciocínio por recorrência é o responsável pela criação do conhecimento científico

4

e participa necessariamente de todas as suas fases de construção, sendo que a verificação

dessa criação se deve ao princípio de contradição usado pela análise lógica. Além disso, se na

criação matemática o raciocínio por recorrência é anterior ao raciocínio por indução, na

construção do conhecimento nas ciências físicas, a ordem se inverte e o raciocínio por

indução é anterior ao raciocínio por recorrência, motivo pelo qual a verificação empírica das

teorias físicas é uma tarefa ad eternum.

Veremos que a transposição do raciocínio por recorrência, desde sua origem nas

operações básicas da aritmética até seu uso nas ciências físicas, depende de uma sucessão de

analogias que deve perpassar as propriedades matemáticas, as propriedades geométricas e as

propriedades físicas, carregando consigo a verdade das leis matemáticas, a única verdade que

o espírito reconhece, pois somente dele depende. Sob esse aspecto defenderei que a mesma

estrutura de lei participa tanto da construção das leis matemáticas quanto da construção das

leis físicas, e torna possível a analogia necessária entre elas para que o conhecimento nas

ciências físicas possa ser edificado.

Destacarei, ainda, que em sua epistemologia da ciência, Poincaré sugeriu como a

verdade matemática se projeta numa possível verdade da teoria física, mediante o equilíbrio

constante entre a exatidão e a objetividade. Pretendo tornar claro que essa projeção da verdade

matemática é o próprio elemento de continuidade epistemológica, também presente nas

teorias físicas.

Assim, acabo de descrever, resumidamente os principais pontos a serem tratados no

capítulo 1 dessa dissertação, que será dedicado à exposição dos fundamentos epistemológicos

da filosofia da ciência poincareana.

Segundo o que reuni ao longo dessa pesquisa percebo que autores como Stump (1989),

Steinle (2006), Giedymin (1977; 1991; 1992), Gillies (1993), Del Vecchio Jr. (2005) e Paty

(2010), dentre outros, trabalham o convencionalismo poincareano a partir de suas

consequências epistemológicas e, como já destaquei, a meu ver isso representa uma restrição

à epistemologia contida na obra de Poincaré. Defendo que caso fossem trabalhadas as bases

que na epistemologia poincareana definem o estatuto das convenções (geometrias e princípios

da física), sua função seria uma consequência natural e não um elemento de destaque. Quando

enfatizamos o papel das convenções como destaques notáveis no contexto da filosofia da

ciência de Poincaré, segundo minha visão, estamos simplesmente valorizando uma

consequência que deriva da continuidade necessária presente na epistemologia da ciência

poincareana. As convenções nada mais são do que pontes formais que estabelecem um

5

vínculo convencional necessário entre as leis matemáticas formais e as leis físicas materiais;

vínculo esse construído ‘sob medida’ para essa função e que mantém rigorosamente o

equilíbrio necessário entre exatidão e objetividade, como veremos oportunamente. Portanto,

no capítulo 2 – O convencionalismo de Poincaré – meu objetivo será analisar o

convencionalismo poincareano sob a ótica de sua epistemologia da ciência, cuja análise

empreendemos ao longo do capítulo 1. No final desse trajeto pretendo abordar uma

perspectiva que Giedymin (1991, 1992) desenvolve sobre o convencionalismo poincareano

por um viés de epistemologia evolucionária e que, a meu ver, se adapta muito bem à

interpretação da epistemologia de Poincaré que desenvolvemos no capítulo 1.

Quanto ao realismo estrutural, este é uma vertente filosófico-científica que defende

uma perspectiva realista no domínio da filosofia da ciência. Essa designação não advém

unicamente das idéias de John Worrall1, embora a proposta desse autor, nas últimas décadas,

tenha obtido considerável repercussão; talvez em função disso, questões envolvendo o

realismo estrutural permaneçam sendo consistentemente debatidas. Worrall (1989) no artigo

Structural Realism: The Best of Both Worlds? propõe seu realismo estrutural retomando,

segundo ele, uma “tese esquecida de Poincaré”. Nele o autor afirma que “Poincaré usou o

exemplo da mudança de Fresnel para Maxwell para argumentar por um tipo geral de sintática

ou realismo estrutural” (1989, p. 117, grifos do autor). O objetivo de Worrall é responder às

objeções dos principais argumentos usados no debate contemporâneo entre realistas e

antirrealistas. Nas palavras de Worrall, “ao que me parece os dois argumentos mais

convincentes são muito antigos – ambos são, certamente, encontrados em Poincaré e

Duhem2” (1989, p. 101); o autor se refere ao “argumento do milagre” 3 (colocado a favor do

realismo científico) e ao “argumento da meta-indução pessimista” 4 (também chamado de

argumento da indução pessimista ou ainda, argumento da indução meta-pessimista, é um

conhecido argumento em favor da perspectiva antirrealista da ciência). Defende ainda que sua

solução resolve a controvérsia e, além disso, já havia sido dada por Poincaré em seu livro “A

ciência e a hipótese” (1902). Esse artigo de Worrall, longe de resolver a questão, gerou várias

1 Segundo Worral, “o termo ‘realismo estrutural’ foi usado também por Grover Maxwell para uma posição a qual ele derivou da filosofia tardia de Russel” (1989, p. 117). 2 Poincaré e Duhem são, habitualmente, considerados convencionalistas, embora divirjam em alguns pontos específicos dos quais não tratarei, pois estão além do escopo do presente trabalho. 3 A proposta formal do ‘argumento do milagre’, também chamado de ‘argumento sem milagres’ ou ‘argumento do não-milagre’, é atribuída a Putnam (1975, p. 73), embora Worrall discorde disso. 4 Segundo Worral, “a chamada indução pessimista – usualmente considerada como uma descoberta metodológica recente, mas que na verdade já foi afirmada claramente por Poincaré” (1989, p. 109, grifos do autor) no início do século XX.

6

respostas, tornando-se, desde então, uma importante referência para o debate contemporâneo

entre realistas científicos e antirrealistas. Veremos como o realismo estrutural de Worrall,

hoje reclassificado de realismo estrutural epistemológico5, se relaciona com a epistemologia

da ciência de Poincaré.

O debate entre realistas científicos e anti-realistas científicos, muito pouco, ou quase

nada, trata a respeito dos fundamentos epistemológicos que norteiam a filosofia da ciência de

Poincaré. O próprio Worrall passa ao largo desses fundamentos poincareanos. Isso, entretanto,

não representa um demérito para Worrall, já que, sua proposta sugere uma série de questões

cujo debate tem enriquecido nossa epistemologia contemporânea. Worrall sequer seria

obrigado a fazer uso dos escritos de Poincaré em sua empreitada, uma vez que Duhem

também oferece em seus escritos conclusões compatíveis com a defesa de um realismo

estrutural; Worrall cita essa possibilidade em seu artigo.

Tendo em mente que Worrall preferiu as ideias de Poincaré para ilustrar sua tese, direi

que o elemento de continuidade entre uma teoria obsoleta e uma nova teoria bem aceita, que

na visão de Worrall é a estrutura matemática da realidade, não somente já havia sido sugerido

por Putnam na formalização de seu conhecido argumento realista do milagre, mas que as leis

matemáticas são as bases da continuidade na epistemologia poincareana da ciência.

Além disso, os fundamentos epistemológicos em Poincaré permitem responder duas

das principais questões que envolvem a construção do conhecimento científico: (1) Porque a

física tem de se expressar necessariamente em linguagem matemática? ; (2) Porque em ramos

distintos da física encontramos, por vezes, o uso das mesmas equações matemáticas? Teremos

a resposta à primeira questão ainda no capítulo 1, enquanto que a resposta de Worrall à

segunda questão, ilustrada pelas ideias de Poincaré, veremos no capítulo 3.

Assim, ao longo do capítulo 3 – O realismo estrutural epistemológico – tratarei dessa

relação estabelecida por Worrall entre os escritos de Poincaré e uma interpretação realista

estrutural da ciência. Defenderei que os argumentos que embasam o realismo estrutural

epistemológico de Worrall são consequências naturais da fundamentação epistemológica da

ciência empreendida por Poincaré. Em outras palavras, Worrall trabalhou as consequências

epistemológicas poincareanas; observadas suas bases, tais consequências tornam-se visíveis.

Não entrarei no mérito da discussão que a proposta de Worrall causou entre realistas e

5 Uma outra vertente do realismo estrutural, proposta por Ladyman (1998), recebe atualmente a designação de realismo estrutural ontológico. A contraposição desses dois tipos de realismos estruturais (o epistemológico de Worral e o ontológico de Ladyman) tem ocupado considerável destaque nas discussões empreendidas no âmbito da filosofia da ciência na última década.

7

antirrealistas, visto que o foco de minha pesquisa não contempla esse debate. Entretanto,

apontarei algumas objeções feitas ao realismo estrutural que envolvem uma interpretação da

questionada posição realista assumida por Poincaré em sua obra.

Nas conclusões dessa dissertação pretendo tornar claro, por meio de uma síntese do

que foi desenvolvido ao longo de cada capítulo, que observadas as bases da epistemologia

poincareana e percorridas suas etapas do desenvolvimento e construção do conhecimento

científico:

- as convenções, ou seja, o objeto central do convencionalismo poincareano, são

elementos importantes para a aproximação necessária que deve haver entre as múltiplas

verdades das leis matemáticas e as leis físicas sempre sujeitas à revisão. Entretanto, veremos

que diante do contexto epistemológico poincareano as convenções não constituem o seu

fundamento principal, mas que são apenas elementos secundários, embora, como enfatizei,

sejam importantes e necessários. O convencionalismo poincareano está restrito a apenas uma

parte da epistemologia poincareana.

- as estruturas matemáticas do realismo estrutural de Worrall são as bases de sua tese e

se apóiam somente num dos argumentos finais que a epistemologia de Poincaré aponta para

enfatizar a conexão entre leis matemáticas e leis físicas. Worrall não teve a necessidade de se

apoiar em toda a extensão epistemológica das ideias de Poincaré, razão pela qual veremos que

o realismo estrutural de Worrall, a exemplo do convencionalismo poincareano, também está

restrito a apenas uma parte da epistemologia poincareana.

Assim, a origem das convenções e das estruturas matemáticas do realismo estrutural,

bem como o desenvolvimento do papel que ocupam ao longo da construção do conhecimento

científico, estão descritos, em detalhes, no contexto da epistemologia da ciência de Poincaré.

Capítulo 1

A filosofia da ciência de Poincaré - fundamentos epistemológicos

9

1.1 Introdução

O presente capítulo pretende tratar das bases epistemológicas da filosofia da ciência de

Poincaré, começando pelo seu intuicionismo, chegando à zona de confluência entre as leis

físicas e as leis matemáticas e finalizando com o papel que desempenham os tipos de

hipóteses na filosofia da ciência poincareana.

Nas próximas duas seções examinaremos um pouco do intuicionismo de Poincaré e

como, segundo o autor, a criação por meio da faculdade da intuição permite a ampliação do

conhecimento científico, partindo da criação matemática e chegando à interpretação das

relações físicas, ambas sob a mesma estrutura de lei. Seguiremos, assim, o mesmo percurso

que Poincaré segue em “A ciência e a hipótese” para dar início ao desenvolvimento de sua

filosofia da ciência sobre bases epistemológicas.

Na primeira dessas seções sobre o intuicionismo 1.2 – ‘A intuição e a origem da

indução’ – iniciarei a análise de sua filosofia da ciência pelo caminho proposto pelo próprio

Poincaré na introdução de “A ciência e a hipótese”, quando indaga: “Qual é a natureza do

raciocínio matemático? É, realmente, dedutivo, como comumente se acredita?” (1902, p. 16).

Acredito que ele escolhe esse ponto de partida com o objetivo de fixar a origem de sua

epistemologia naquilo que o autor entende como uma “propriedade do espírito”: o princípio

de recorrência. Veremos nessa seção como esse princípio absoluto da criação aritmética se

torna ferramenta da intuição, com o qual o espírito pode conceber, por analogias, a indução

completa e a indução física. Além disso, veremos o que diferencia, segundo o autor, a

indução completa da indução presente nas ciências físicas.

Na seção 1.3 – ‘A gênese da criação científica’ veremos como os princípios de

indução – matemática e física – por meio de analogias mútuas e também de analogias internas

a cada uma delas, são usados para criar as relações matemáticas e elaborar o conhecimento

físico. Aqui encontraremos uma variação no uso do princípio de recorrência: podemos

recorrer a uma propriedade tanto por repetição sucessiva, quanto por repetição por

comparação aleatória. Veremos também que a intuição, segundo Poincaré, é a responsável

pela criação científica e, ainda, que o conhecimento científico depende do equilíbrio entre a

exatidão e a objetividade para que se mantenha sua ampliação.

Na seção seguinte, 1.4 – ‘Lei e analogia’, tratarei sobre as relações entre os

fundamentos conceituais que considero mais importantes na epistemologia poincareana, por

abordarem o mecanismo mais básico para a construção e a descoberta científica. Na subseção

10

1.4.1 – ‘A Lei’ veremos seu caráter aproximativo, suas características comuns à matemática e

à física e como a linguagem participa de sua formulação. Veremos também que, se

consideramos alguns aspectos apontados por Poincaré sobre a lei física, podemos encontrar

uma analogia com aspectos da lei matemática; isso me permite afirmar que, por analogia,

ambas obedecem à mesma estrutura de lei. Na subseção 1.4.2 – ‘As analogias’ examinarei

suas características em duas frentes distintas, em primeiro lugar no interior das leis físicas e

no interior das leis matemáticas, por meio das semelhanças entre as relações presentes em

cada uma delas separadamente e, em seguida, na fronteira entre as leis físicas e leis

matemáticas, buscando semelhanças entre ambas. Esse exame nos permitirá concluir que as

leis matemáticas podem ser entendidas, em última instância, como modelos para uma

analogia prática e objetiva com as leis físicas.

Na sequência, a seção 1.5 – ‘Ajustando a matemática à física’, trabalha a necessidade

prática no sentido de um equilíbrio entre objetividade e exatidão para manter uma correlação

entre leis físicas e leis matemáticas. Nesse sentido, veremos na subseção 1.5.1 – ‘O contínuo

físico e o contínuo matemático’, que segundo Poincaré, a criação do contínuo matemático se

deu em função da noção de contínuo físico. A subseção 1.5.2 – ‘A percepção, a geometria e a

matemática’, tratará da percepção do espaço representativo e da criação do espaço geométrico

por meio da lei da homogeneidade, permitindo a Poincaré afirmar que as diferentes

geometrias são grupos matemáticos particulares e elos de analogia entre o contínuo físico e o

contínuo matemático.

Finalmente, na última seção desse capítulo, 1.6 – ‘O papel das hipóteses’, tratarei das

funções que desempenham os diferentes tipos de hipóteses na filosofia da ciência de Poincaré

expostas em seu livro “A ciência e a hipótese” (1902), classificando-as segundo as definições

fornecidas pelo próprio autor.

Ao final desse capítulo pretendo que a base epistemológica fornecida pela pesquisa

empreendida ao longo de suas seções nos auxilie na análise do convencionalismo e do

realismo estrutural poincareanos, os temas dos dois próximos capítulos dessa dissertação.

11

1.2 A intuição e a origem da indução

Poincaré inicia o capítulo I de “A ciência e a hipótese” questionando sobre “a própria

possibilidade da ciência matemática”. Segundo o autor, se a matemática fosse uma ciência

puramente dedutiva ela deveria se reduzir a uma “imensa tautologia”, uma vez que as regras

da lógica formal são analíticas e “o silogismo não pode nos ensinar nada de essencialmente

novo”. Por outro lado, se fosse uma ciência indutiva não deveria manter “esse perfeito rigor”,

a exemplo da indução aplicada às teorias físicas (1902, p. 21). A questão colocada por

Poincaré diz respeito ao estatuto epistemológico da matemática, ou seja: O conhecimento que

se pode obter da matemática deriva de um raciocínio dedutivo ou de um raciocínio indutivo?

Segundo Castro, “a tese central de Poincaré é que existe um nível de raciocínio

matemático que é irredutível à lógica e que se atinge pela intuição” (2001, p. 5, grifo meu).

Essa posição que Poincaré irá assumir é tipicamente intuicionista e se coloca contrária ao

pensamento logicista6, como o de Bertrand Russell, com quem Poincaré manteve importantes

debates nesse campo epistemológico7.

Castro (2001, p. 4) afirma ainda que “a lógica intuicionista em oposição à lógica

clássica rejeita o princípio do terceiro excluído”, ou seja, nega que “uma frase só tem dois

valores possíveis: ou é verdadeira ou é falsa”. Essa informação será importante para

compreendermos que, de acordo com Poincaré, não precisamos refutar ou aceitar uma teoria

integralmente, podemos aceitá-la ou refutá-la apenas parcialmente.

Poincaré inicia sua tese intuicionista afirmando que o raciocínio matemático

“puramente analítico” não é uma demonstração “é uma verificação”:

A verificação difere da verdadeira demonstração precisamente porque é puramente analítica e porque é estéril. E é estéril porque a conclusão não é senão a tradução das premissas em uma outra linguagem. A verdadeira demonstração é, ao contrário, fecunda porque sua conclusão é, de certo modo, mais geral que as premissas. (1902, p. 23, grifo do autor).

Segundo Poincaré (1902, p. 23), o princípio que torna possível a verdadeira

demonstração matemática, pode ser encontrado nos “inícios da aritmética”, nas suas

6 Segundo Castro o logicismo se inspira no “racionalismo platônico [e] assume implicitamente um realismo das verdades matemáticas considerando-as eternas e independentes da mente do matemático” e se opõe à “escola intuicionista [que] inspira-se na filosofia do conhecimento kantiana” (2001, p. 4). 7 O presente trabalho abordará somente a versão epistemológica intuicionista de Poincaré. Não entrarei no mérito da distinção entre intuicionismo e formalismo, mesmo usando elementos conceituais que participam dessas duas vertentes e também não discutirei sobre o debate entre logicistas, intuicionistas e formalistas, uma vez que, tanto a distinção quanto a discussão, ultrapassam os objetivos de minha pesquisa. Em CASTRO (2001) e DEL VECCHIO (2005, p. 64-101) podem-se encontrar detalhes sobre o debate logicismo/intuicionismo matemático.

12

propriedades básicas da adição e da multiplicação – a associatividade, a comutatividade e a

distributividade – como procedimentos da “demonstração por recorrência”:

Estabelece-se, inicialmente, um teorema para n = 1; demonstra-se em seguida, que se ele é verdadeiro para n – 1 é verdadeiro para n e se conclui daí, que é verdadeiro para todos os números inteiros. [...] podemos nos servir desse procedimento para demonstrar as regras da adição e da multiplicação, isto é, as regras do cálculo algébrico; esse cálculo é um instrumento de transformação que se presta, mais do que o simples silogismo, a muitas combinações diversas; mas é, ainda, um instrumento puramente analítico e incapaz de nos fazer conhecer algo de novo. Se a matemática não dispusesse de nenhum outro, teria, então, seu desenvolvimento imediatamente sustado; mas ela recorre, novamente, ao mesmo procedimento, quer dizer, ao raciocínio por recorrência e pode, assim, continuar sua marcha para diante. A cada passo, se examinarmos bem, reencontramos esse modo de raciocínio, seja sob a forma simples que acabamos de lhe dar, seja sob uma forma mais ou menos modificada. (POINCARÉ, 1902, p. 26).

A “demonstração por recorrência”, segundo Poincaré, permite ampliar a conclusão

para além de suas premissas iniciais possibilitando a passagem da aritmética ao cálculo

algébrico, e assim sucessivamente, a cada novo passo do desenvolvimento matemático, por

intermédio do raciocínio por recorrência. Entretanto, a verificação analítica permanece

presente a cada passo desse desenvolvimento. Desse modo, se pode inferir que se a

verificação analítica confere rigor a cada etapa particular, a demonstração por recorrência

permite passar do particular a uma generalização pela afirmação de uma infinita

sucessividade, tornando possível o desenvolvimento matemático. “O caráter essencial do

raciocínio por recorrência é que ele contém, condensados, por assim dizer, numa única

fórmula, uma infinidade de silogismos” (POINCARÉ, 1902, p. 26). Nesse sentido, o

silogismo é o instrumento da verificação analítica particular e a fórmula é o instrumento da

generalização pela sucessividade através da demonstração por recorrência; ou seja, a

“verdadeira demonstração” generaliza e amplia a conclusão, enquanto a verificação atribui

rigor a cada uma das etapas particulares unidas pela generalização. Consequentemente,

Poincaré (1902, p. 27-28) pode afirmar, ainda, que o “raciocínio por recorrência [...] é o

instrumento que permite passar do finito ao infinito. [...] a idéia do infinito matemático já tem

um papel preponderante, e sem ela não haveria ciência, porque só há ciência do geral”.

De acordo com essa perspectiva de Poincaré, ao se estabelecer e demonstrar um

teorema inicial para a aritmética, se está intuitivamente criando uma propriedade e, além

disso, aplicando-a por recorrência. Nesse sentido, as ideias de infinitude e de generalização,

tão caras à ciência, se devem à criação e transmissão sucessiva de propriedades, já que, “se

certa propriedade pertence a determinado número, pertencerá também aos seus sucessores e

aos sucessores de seus sucessores. Logo, se atribuirmos essa propriedade a 0, ela deverá ser

atribuída a todos os números naturais” (DEL VECCHIO Jr., 2005, p. 58). Por exemplo, se

indagarmos sobre um número natural que possa ser maior que todos os demais números

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naturais, nos é suficiente recorrer a uma propriedade do tipo f(x) = x + 1 para que, qualquer

que seja o número x em questão, ele seja menor que seu sucessor, o qual também estará

sujeito a aplicação da mesma propriedade. Assim, a propriedade se generaliza e a infinitude se

estabelece, ambas por recorrência.

Por meio do raciocínio por recorrência Poincaré irá propor uma solução para a questão

se a matemática é dedutiva ou indutiva. Assim, buscando delimitar a procedência dessa

recorrência sistemática, Poincaré afirma que “a regra do raciocínio por recorrência é

irredutível ao princípio de contradição”, ou seja, o princípio básico do silogismo, pois,

“quando se trata de abarcar uma infinidade de silogismos numa única fórmula [...] esse

princípio fracassa” (1902, p. 28). Isso se deve ao fato de que o princípio de contradição requer

a verificação individual de cada silogismo, tornando infinita essa tarefa em se tratando de uma

infinidade de silogismos.

Seguindo essa linha argumentativa, a regra do raciocínio por recorrência não pode

decorrer da experiência, uma vez que, cada nova experiência responde por seu próprio

resultado e não por uma infinidade de resultados, “por exemplo, ela não pode atingir a série

indefinida dos números, mas, unicamente, uma porção mais ou menos longa, porém sempre

limitada, dessa série” (POINCARÉ, 1902, p. 28).

Segundo Castro essa é uma característica do intuicionismo: a “passagem do finito ao

infinito dá-se, não por argumentos lógicos, mas sim por um mecanismo intuitivo” (2001, p. 5)

que também independe da experiência, tendo em vista que segundo Poincaré:

Essa regra [do raciocínio por recorrência] inacessível à demonstração analítica e à experiência, é exatamente o tipo de juízo sintético a priori [que] [...] se nos impõe com uma evidência irresistível [...] porque não passa da afirmação do poder do espírito que se sabe capaz de conceber a repetição indefinida de um mesmo ato, desde que esse ato tenha sido possível uma vez. O espírito tem uma intuição direta dessa sua capacidade e, para ele, a experiência não pode ser senão uma ocasião para se utilizar dela e, desse modo, de conscientizar-se da sua existência. (1902, p. 28, grifos meus).

É possível observar no pensamento de Poincaré a presença marcante de conceitos

kantianos8, embora, não raramente, interpretações de Poincaré sobre conceitos kantianos

apresentem peculiaridades e diferenças de sua fonte kantiana. Por exemplo, segundo Poincaré,

a intuição é ativa e inventiva, o que a diferencia da intuição kantiana tida como passiva. Nesse

excerto, Poincaré se refere a uma “afirmação do poder do espírito” humano que, por meio de

8 Castro destaca que isso não chega a ser um consenso, visto que, “segundo Goldfarb a natureza da intuição é tida por Poincaré como meramente psicológica: uma ‘sagacidade matemática’ que nada tem a ver com a intuição kantiana”; Folina, no entanto, defende uma posição totalmente contrária: a “teoria da intuição [de Poincaré] é uma forte expressão da influência de Kant” (2001, p. 5).

14

sua faculdade da intuição, se dá conta de sua capacidade de repetir indefinidamente um

mesmo ato. O raciocínio por recorrência é, então, um juízo sintético a priori, um ato

espontâneo, uma evidência anterior a qualquer experiência, visto que é o espírito que

encontra, em cada experiência pura, a oportunidade de conscientizar-se da existência dessa

sua capacidade de repetí-las infinitamente. É desse modo que o espírito coloca em prática a

generalização do silogismo particular, por meio da recorrência, inicialmente na demonstração

das propriedades básicas da aritmética.

Poincaré acrescenta, ainda, que assim como “a experiência pura não pode legitimar o

raciocínio por recorrência” (1902, p. 28), também a indução não pode fazê-lo, visto que um

teorema não verifica uma infinita sucessão numérica, mas, mesmo assim, “a lei é manifesta,

[...] e ela o é do mesmo modo que toda lei física apoiada sobre observações cujo número é

muito grande, porém limitado” (1902, p. 28-29, grifos do autor).

Portanto, de um modo geral, a indução, seja ela matemática ou física, não pode

legitimar o raciocínio por recorrência que, segundo Poincaré, é um juízo sintético a priori e

independe de toda e qualquer experiência. Porém, Poincaré identifica, por analogia, o uso

dessa capacidade do espírito com os “procedimentos habituais da indução”:

Não poderíamos ignorar que há, aí, uma analogia evidente [do raciocínio por recorrência] com os procedimentos habituais da indução. Mas, subsiste uma diferença essencial. A indução aplicada às ciências físicas é sempre incerta porque se baseia na crença de uma ordem geral do Universo, ordem que está fora de nós. A indução matemática, isto é, a demonstração por recorrência, se impõe, ao contrário, necessariamente, porque é, unicamente, a afirmação de uma propriedade do próprio espírito. (1902, p. 29, grifos meus).

O raciocínio que Poincaré descreveu até aqui diz respeito somente à sua epistemologia

da matemática, entretanto, a partir da analogia que se estabelece com a indução física, o autor

fará uma ampliação desse domínio estendendo-o à sua epistemologia da ciência de um modo

geral e não somente restrito a matemática.

Farei, a seguir, uma demarcação conceitual que entendo será útil para destacar os

passos definidos por Poincaré até aqui e a importância dessa passagem no âmbito de sua

epistemologia.

O princípio de recorrência é a propriedade do espírito a que Poincaré se referiu e,

embora o autor não faça uso desse termo, creio que sua adoção se justifique considerando que

tal propriedade é a origem do raciocínio por recorrência, uma vez que este não pode ser

reduzido ao princípio de contradição e a experiência não pode legitimá-lo.

O raciocínio por recorrência pode ser observado, originalmente, nas operações básicas

da aritmética, as quais se repetem, sucessivamente, em cada número na infinita sucessão dos

15

números inteiros, culminando na caracterização da demonstração por recorrência à repetição

infinita de uma propriedade.

Há uma analogia entre uma propriedade do espírito, ou seja, o princípio de

recorrência, e a indução, considerando que esta última remete a uma generalização pela

observação da mesma propriedade se repetindo em cada uma das sucessivas experiências

particulares. O espírito sabe-se capaz de repetir indefinidamente uma propriedade (raciocínio

por recorrência) e, além disso, sabe-se capaz de generalizar uma propriedade que se repete em

cada evento de uma série de eventos particulares (indução). Entretanto, a generalização por

indução se dá sobre um número finito de eventos, já que dependemos de uma amostragem

definida deles antes da generalização da propriedade, ao contrário da recorrência à repetição

infinita da propriedade que a afirmação do espírito torna possível.

Entendo que Poincaré se refere à indução matemática como sendo a própria

demonstração por recorrência, pois, a indução matemática somente se torna possível quando o

espírito afirma e se reconhece capaz de repetir infinitamente uma propriedade (raciocínio por

recorrência) e, posteriormente, verifica a presença e a consistência dessa mesma propriedade

em cada evento particular de uma sucessão limitada de eventos (indução), tal qual ocorre na

verificação analítica a que Poincaré se referiu anteriormente. Portanto, a indução matemática

não somente sucede o raciocínio por recorrência, como se origina a partir dele, motivo pelo

qual não o pode legitimar, embora proceda a sua verificação analítica. Desse modo, a criação

sintética e a verificação analítica se complementam na demonstração por recorrência.

Assim, o espírito encontra uma sucessão de oportunidades de se impor, afirmar e

reconhecer, espontaneamente e por necessidade, sua propriedade de pensar por recorrência. A

indução matemática tem origem e fim na “afirmação de uma propriedade do próprio espírito”,

ou seja, o princípio de recorrência é o caminho único e fechado para a certeza da

generalização.

O espírito encontra na indução matemática, também chamada de indução completa,

por meio do raciocínio por recorrência, a possibilidade de generalizar novas propriedades

matemáticas, conduzindo a própria matemática aos passos subsequentes do seu

desenvolvimento, o que permite a Vuillemin afirmar:

Ora, esse poder vai, segundo ele [Poincaré], bem além desse princípio próprio à aritmética [o princípio de indução completa]. É reencontrado na álgebra, na teoria dos grupos, exprimindo-se sob a forma da lei da homogeneidade [POINCARÉ, 1902, p. 62] e é essa homogeneidade que faz com que ‘o conceito geral de grupo preexista no nosso espírito, pelo menos, potencialmente’ [POINCARÉ, 1902, p. 67]” (POINCARÉ, 1902, p. 11, prefácio de “A ciência e a hipótese”, 1984).

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Vuillemin chama o princípio de recorrência de princípio de indução completa e,

reencontrá-lo nos desdobramentos a que o autor se refere, significa constatar os vários modos

análogos de aplicá-lo. É sempre por analogia que o princípio de recorrência é resgatado pela

indução completa para que possa conferir certeza à generalização das inúmeras propriedades

matemáticas possíveis de serem encontradas através do uso da intuição.

No entanto, com respeito à indução física, o espírito já não pode se impor, pois, se

uma ordem natural parece-lhe possível, esta ordem está fora e independe dele. Resta-lhe,

então, acreditar na existência de uma ordem geral do universo e procurá-la por meio de

analogias com sua propriedade de recorrência, seu único instrumento para a generalização

rigorosa. Desse modo, o espírito procura numa amostragem limitada de eventos empíricos

particulares uma propriedade comum a todos eles e que possa ser generalizada por indução;

somente depois disso poderá supor que, por recorrência, a propriedade se aplica a toda uma

sucessão de eventos análogos. Por essa razão a indução física deve ser verificada a cada nova

experiência, a fim de que o espírito possa constatar se sua generalização inicial ainda procede

e se a analogia com seu princípio de recorrência permanece verdadeira.

Portanto, na indução matemática o raciocínio por recorrência antecede o raciocínio

indutivo e, por outro lado, no caso das ciências físicas o raciocínio por indução antecede a

aplicação do raciocínio por recorrência. Como vimos anteriormente, segundo Poincaré o

raciocínio indutivo não pode legitimar o raciocínio por recorrência, o que torna a indução

física incerta e inexata.

O salto epistemológico do nível matemático ao nível físico somente pode ocorrer,

então, por analogia, uma vez que a generalização, segundo Poincaré, depende da

demonstração por recorrência, presente unicamente na matemática. Como vimos acima,

embora a indução completa seja uma certeza do espírito e a indução física não possa

ultrapassar sua condição de incerteza, quanto maior for a semelhança que se possa encontrar e

estabelecer entre propriedades físicas e propriedades matemáticas, maior a possibilidade da

indução física incerta reivindicar por analogia a certeza da indução matemática.

Uma conclusão similar à que foi apontada acima pode ser encontrada em Heinzmann,

quando este afirma: “A ‘analogia evidente’ da indução completa com os ‘procedimentos

habituais da indução’ reside na função de serem instrumentos com a finalidade de estruturar

diferentes domínios” (2009, p. 176), ou seja, os domínios da matemática e da física.

Não devemos nos esquecer, porém, que outra certeza do espírito repousa sobre a

verificação analítica que assegura o rigor silogístico a cada experimento particular.

17

Resumidamente, a verificação analítica, através do princípio de contradição, assegura

o rigor, enquanto que, a demonstração por recorrência, por meio do princípio de recorrência,

assegura a generalização pela sucessividade. Ambos são elementos fundamentais, segundo

Poincaré, para a possibilidade do conhecimento científico.

Segundo Poincaré, em se tratando da intuição e da lógica na matemática, “A intuição

não pode nos dar o rigor, nem mesmo a certeza” (1904, p. 16), pois o rigor e a certeza provêm

dos princípios de contradição e de recorrência. “A análise pura põe à nossa disposição uma

quantidade de procedimentos cuja infalibilidade ela nos garante” (1904, p. 21, grifos meus) e

esse é o papel da lógica e de seus procedimentos de verificação analítica: garantir o rigor, ou

seja, a infalibilidade.

A respeito da elaboração do conhecimento científico, Poincaré afirma: “Assim, a

lógica e a intuição têm cada uma seu papel necessário. Ambas são indispensáveis. A lógica, a

única que pode dar a certeza, é o instrumento da demonstração: a intuição é o instrumento da

invenção” (1904, p. 23, grifos meus).

A intuição aplica a indução completa na tentativa de ampliar os limites da matemática,

mas sua verificação é atributo da lógica, sendo que, se usarmos termos kantianos, a

verificação é analítica, enquanto que a atividade da intuição ou como se referiu Poincaré, a

“verdadeira demonstração” é sintética.

Segundo Poincaré:

Os matemáticos procedem, então, “por construção”, eles “constroem” combinações cada vez mais complicadas. Voltando em seguida pela análise dessas combinações, desses conjuntos, por assim dizer, e seus elementos primitivos, apreendem as relações desses elementos e daí deduzem as relações dos próprios conjuntos. (1902, p. 30)

A intuição dos matemáticos é uma faculdade do espírito ativa e criativa que se vale do

raciocínio por recorrência, cuja origem surge do princípio sintético a priori da recorrência. A

intuição responde pela “construção” das combinações matemáticas, fazendo uso da indução

completa e propondo alternativas de ampliação matemática. A lógica faz o caminho inverso

verificando analiticamente “seus elementos primitivos”, apreendendo “as relações desses

elementos” e demonstrando, ou deduzindo “as relações dos próprios conjuntos”.

Como é possível observar, esse movimento lógico acabou por se mostrar uma

generalização, usada por Poincaré para afirmar que “esse é um procedimento puramente

analítico, mas não é um procedimento do geral para o particular, pois os conjuntos não

poderiam, evidentemente, ser vistos como mais particulares do que seus elementos” (1902, p.

30). O autor remete a uma característica típica do raciocínio indutivo, que vai do particular

para o geral. No entanto, a dedução não ultrapassa os limites da “construção” inicial, ou seja,

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“O procedimento analítico “por construção” não nos obriga a descer, mas nos deixa no

mesmo nível” (POINCARÉ, 1902, p. 31) da generalização que a intuição construiu

inicialmente.

Poincaré conclui que:

Não podemos ascender a não ser pela indução matemática, a única que nos pode ensinar algo novo. Sem a ajuda dessa indução, diferente sob certos aspectos da indução física, mas tão fecunda quanto ela, a construção seria incapaz de criar a ciência. (1902, p. 31).

A indução matemática, relembrando, diz respeito à demonstração por recorrência,

“construída” pela intuição, mas verificada pela lógica. Essa “construção” presente na citação

de Poincaré, que “seria incapaz de criar a ciência”, não é a construção inicial empreendida

pela demonstração por recorrência, mas a construção puramente lógica, pois, essa não passa

de uma verificação analítica e silogística. A demonstração por recorrência depende do

princípio de recorrência e a verificação analítica depende do princípio de contradição; esses

princípios são propriedades do espírito. Veremos na próxima seção que quando Poincaré cita

a expressão “criar a ciência” ele está se referindo também à ciência da física, que tem,

necessariamente, de ser expressa numa linguagem matemática.

Depois dessa exposição, pode-se inferir que quando Poincaré propõe haver “uma

analogia evidente [do raciocínio por recorrência] com os procedimentos habituais da

indução”, e isso inclui a indução física, ele está transpondo à física a característica intuitiva da

construção sintética pelo uso do raciocínio por recorrência. Porém, no caso da física a intuição

deve encontrar alguma propriedade física que seja comum a sucessivas experiências

particulares e não simplesmente criá-la ou construí-la, como ocorre na indução matemática, já

que a indução física depende dos experimentos empíricos, externos ao espírito e

independentes dele. Desse modo, a intuição deve observar nas relações físicas alguma

propriedade que, aparentemente, por analogia, obedece ao princípio de recorrência aplicado

sob a forma de indução. Partindo desse pressuposto, será possível prever resultados empíricos

em futuros experimentos com base na propriedade observada, caso a analogia, de fato,

proceda. Entretanto, uma relação de analogia não é uma relação de igualdade, como veremos

nas próximas seções.

A analogia entre as induções, física e matemática, será fundamental para a criação da

ciência, uma vez que, caso possam ser encontradas nas relações físicas semelhanças com as

relações matemáticas, talvez suas propriedades também sejam semelhantes, conferindo

alguma certeza à indução física incerta. Assim, resumidamente, os sucessivos experimentos

físicos precisam ser quantificados, de modo a serem analisados por uma perspectiva

19

matemática. A comparação dos experimentos físicos pela mensuração de seus resultados

matemáticos permitirá que se possa obter, pela via intuitiva, alguma propriedade física que

seja expressa sob a forma matemática. Assim, quanto maior a semelhança formal entre uma

propriedade física expressa matematicamente e uma propriedade matemática propriamente

dita, tanto mais ela poderá representar uma relação objetiva, exata e verdadeira, embora essa

relação de semelhança nunca se torne uma igualdade.

O espírito precisa transpor à física aquilo que tem por certo na matemática. Essa

transposição depende da analogia, ou seja, da relação de semelhança que se pode estabelecer

entre ambas. Esse elo fundamental se consolida por meio da analogia entre a indução

completa e a indução física, como veremos na próxima seção.

Por ora, vejamos um exemplo simples de como o espírito busca a transposição das

relações exatas para as relações físicas: Se colocarmos um espelho diante de outro espelho,

um voltado para o outro, e observarmos as imagens que se formam entre eles, teremos a

impressão inicial de estar vendo a sucessão de um número infinito de imagens. Entretanto,

devido às imperfeições dos espelhos, à dificuldade de um alinhamento perfeito entre eles e,

até mesmo, ao nosso limitado alcance visual, enxergamos somente uma quantidade de

imagens limitada a essas condições materiais. Logo, a nossa impressão inicial precisou ser

reavaliada em função das condições empíricas de que depende o experimento.

O que nos sugeriu inicialmente que poderíamos prolongar ao infinito essa quantidade

finita de imagens que se sucedem foi o raciocínio por recorrência, uma vez que, segundo

Poincaré, a intuição permite ao espírito usar essa propriedade da mente para ultrapassar a

condição material da experiência física, conferindo a ela, por meio da indução, uma

característica puramente formal e, em última instância, de uma previsão através do raciocínio

matemático.

O que ocorre, segundo a perspectiva poincareana, é que o espírito reconhece uma

analogia entre a propriedade matemática e a propriedade física. Assim, criamos leis

matemáticas aplicando o princípio de recorrência pelo uso de sua analogia na forma da

indução completa e, analogamente, estabelecemos leis naturais quando é possível observar

propriedades pelo uso da indução física. Se num segundo momento encontramos uma

paridade entre ambas, como no caso do exemplo dos espelhos, estamos pressupondo uma lei

natural da reflexão sucessiva e infinita de imagens entre espelhos planos, lei essa que se

assemelha a uma lei matemática puramente formal que, no caso, poderia ser expressa por uma

relação do tipo f(x) = x + 1; ou seja, a mesma propriedade matemática que usei anteriormente

para exemplificar a infinitude numérica, pode ser usada, por analogia, nesse exemplo da

20

sucessão infinita de imagens. Entretanto, se formalmente podemos inferir a infinitude,

empiricamente o infinito atual não é possível.

• • •

Se num primeiro momento Poincaré atribui à indução matemática uma função

fundamental para a prova de proposições gerais formais, em seguida, ele confere à indução

física, por analogia, a função de ferramenta de generalização fundamental para a construção

da ciência empírica.

Poincaré resolve a questão posta inicialmente argumentando em favor de uma

matemática indutiva. Entretanto, a indução completa não é o fundamento original da

matemática; esse fundamento é o princípio de recorrência. Por meio do uso de analogias esse

princípio irá legitimar toda certeza que advém da criação de propriedades matemáticas e se

tornará referência para as ciências físicas, por meio da analogia entre propriedades

matemáticas e propriedades físicas. A certeza das verdades matemáticas indutivas será usada,

por semelhança, para justificar as possíveis verdades físicas também obtidas por meio do

raciocínio indutivo.

Em última instância, o espírito tenta projetar nas relações encontradas na natureza a

certeza, exatidão e rigor obtidos a partir da criação e construção de relações que ele reconhece

internamente como verdadeiras, restando-lhe acreditar que seja possível uma ordem geral do

universo externa ao espírito. Portanto, para Poincaré, a verdade das leis físicas depende

inicialmente da construção de uma verdade interna ao próprio espírito ou, em outras palavras,

não pode haver uma relação material verdadeira que não se corresponda com uma relação

formal reconhecida como verdadeira pelo espírito. Este será o argumento fundamental e

necessário para a construção de todo o conhecimento científico segundo Poincaré.

Veremos nas próximas seções o papel das analogias e o que Poincaré entende por lei,

seja natural, seja matemática. Entretanto, antes de detalhar esses conceitos, resgataremos a

concepção de Poincaré sobre criação matemática e criação científica no domínio da física, e

ampliaremos o entendimento do papel da intuição, conceitos fundamentais para a

compreensão do papel das analogias e da lei.

21

1.3 A gênese da criação científica

Vimos na seção anterior que, para Poincaré, a indução completa é o fundamento

formal das propriedades matemáticas, deriva exclusivamente da aplicação de uma propriedade

do espírito, ou seja, o princípio de recorrência e, sendo assim, não depende do mundo físico.

A indução física deriva da tentativa de aplicação do raciocínio por recorrência nas relações

físicas, mas essas relações são incertas, pois se apóiam na crença de uma ordem geral do

universo. As propriedades físicas, apoiadas na indução física, devem manter uma relação de

analogia com as propriedades matemáticas, apoiadas na indução completa; a analogia entre

propriedades físicas e propriedades matemáticas visa, pela aproximação com a certeza da

indução completa, minimizar a incerteza inerente à indução física.

Serão abordados agora os critérios usados na construção das relações matemáticas,

bem como na investigação das relações físicas, visando as propriedades que se possam extrair

dessas. Veremos nessa seção como se dá a relação necessária entre a criação matemática e o

desenvolvimento da física.

Veremos inicialmente que o raciocínio por recorrência não se limita à aplicação de

uma propriedade em eventos sucessivos, mas que a recorrência a uma propriedade pode

derivar da comparação de relações entre eventos particulares, numa série aleatória de eventos.

• • •

Antes de comparar as relações físicas com as relações matemáticas cabe destacar que,

além daquela condição análoga entre matemática e física pela recorrência à sucessividade, há

uma condição análoga interna a cada uma delas que permite a criação do conhecimento, tanto

no âmbito da matemática, quanto no âmbito da física, pela analogia comparativa e não apenas

pela sucessividade:

Fatos matemáticos dignos de serem estudados são aqueles que, pela sua analogia com outros fatos, são capazes de nos conduzir ao conhecimento de uma lei matemática, da mesma forma que os fatos experimentais nos conduzem ao conhecimento de uma lei física. Eles revelam relações insuspeitadas entre outros fatos, há muito conhecidos, mas se acreditava erradamente não haver relação um com o outro. (POINCARÉ, 1908, p. 51).

Tanto os físicos quanto os matemáticos se utilizam do mesmo critério de escolha para

destacar essas relações que lhes interessam. Como vimos na seção anterior, por meio do uso

da intuição é possível destacar uma propriedade comum a fatos matemáticos que mantém

alguma semelhança entre si. Assim, por exemplo, “graças à fórmula, um único cálculo

algébrico nos salva do problema de uma repetição constante de cálculos numéricos”

(POINCARÉ, 1908, p. 30). Nesse exemplo, a fórmula algébrica representa uma relação

22

constante que evidencia uma lei matemática. O mesmo ocorre com a escolha dentre os fatos

experimentais da física que evidenciam uma lei natural.

O que se pode observar nessa citação é que Poincaré não destaca a sucessividade entre

elementos matemáticos, talvez porque o domínio a que se refira esteja para além das relações

puramente aritméticas. Quando o matemático trabalha relações mais complexas que as

propriedades básicas da aritmética, a analogia não pode se restringir à sucessividade, pois ele

não está simplesmente criando uma nova propriedade. A “analogia com outros fatos”

estabelece uma comparação mais ampla entre fatos, aparentemente não-relacionáveis. Mas,

por que esses fatos se destacam dos demais? O que os torna preferíveis dentre os demais?

Isso se deve à possibilidade de demarcarem alguma relação comum a uma grande

quantidade de fatos, alguns que, talvez, sequer tivessem sido notados. Isso favorece uma

condição de previsão sobre toda uma classe de fatos por compartilharem a mesma relação.

Novamente notamos uma analogia, porém, desta vez, entre fatos aleatórios:

Na física, os fatos que dão um grande retorno são aqueles que tomam o seu lugar em uma lei muito geral, porque eles nos permitem prever um número muito grande de outros, e é exatamente o mesmo em matemática. Suponha que eu me dedico a um cálculo complicado e com muita dificuldade chego a um resultado, nada terei ganho pelo meu problema, se ele não me permitir prever os resultados de outros cálculos análogos, e dirigí-los com segurança, evitando o tatear cego com o qual eu tive de me contentar da primeira vez. (POINCARÉ, 1908, p. 29, grifo meu).

Nas operações básicas da aritmética a intuição criou uma propriedade e a aplicou,

sucessivamente, por recorrência. A intuição agora está identificando uma relação comum

entre vários fatos aleatórios e demarcando uma propriedade que se aplique a todos esses fatos.

A partir das semelhanças entre as relações e suas consequências, ou seja, na lei física e

também na lei matemática, é possível notar uma variação na aplicação do raciocínio por

recorrência. A analogia estabelece a possibilidade de utilizar uma propriedade conhecida para

“prever o resultado de outros cálculos análogos”.

Entendo que, dessa vez, a recorrência se dá sobre uma propriedade obtida por meio da

analogia comparativa e não pela simples criação de uma propriedade. Nesse caso, a

recorrência à propriedade comum a todos os elementos não se estende somente ao sucessor de

cada elemento, como ocorre nas operações aritméticas básicas, mas a todo cálculo análogo,

desde que esse possa ser colocado numa mesma classe a que uma dada lei se aplique.

Temos, então, o uso do raciocínio por recorrência aplicado numa sucessão direta de

elementos quando a intuição cria uma propriedade; e temos, também, o uso do raciocínio por

recorrência quando a intuição identifica, por analogia comparativa aleatória, uma propriedade

extensível a toda uma classe de elementos, ou seja, que não obedece, necessariamente, a uma

23

sucessão. De todo modo, é a faculdade da intuição que irá através da demonstração por

recorrência criar ou destacar essas propriedades ou leis.

Assim, o raciocínio por recorrência permanece e a escolha se volta à formação de

classes que permitam generalizações em função de propriedades comuns:

Os fatos que lhes interessam [aos físicos] são aqueles que podem levar à descoberta de uma lei, aqueles que mantêm uma analogia com muitos outros fatos e não aparecem para nós como isolados, mas como intimamente agrupados com outros. [...] o que somente o verdadeiro cientista pode ver é a ligação que une vários fatos os quais têm uma profunda, mas oculta analogia. [...] Na matemática fazemos exatamente a mesma coisa. Dos vários elementos à nossa disposição, podemos formar milhões de combinações diferentes, mas qualquer uma destas combinações, desde que esteja isolada, é absolutamente sem valor; [...] logo que esta combinação toma o seu lugar em uma classe de combinações análogas, cuja analogia reconhecemos, devemos estar, então, não mais na presença de um fato, mas de uma lei. (POINCARÉ, 1908, p. 27-28).

Poincaré desenvolve a base das leis físicas e a base das leis matemáticas seguindo o

mesmo critério de escolha: estabelecer propriedades entre fatos ou entre combinações de

elementos que possam reunir um grande número de combinações ou de fatos análogos.

Embora, no caso da matemática, a criação de propriedades seja possível, como vimos nas

operações básicas da aritmética; na física, entretanto, isso nunca ocorre, visto que as

propriedades são descobertas ou destacadas dentre as relações empíricas disponíveis.

Estabelecida uma analogia comum, os fatos ou combinações deixam de estar

aparentemente isolados, pois agora denotam uma propriedade ou lei comum a todos. Cada

fato ou combinação, anteriormente isolado, passa a participar de uma classe que mantém

relações análogas e conhecidas, mediante o uso do raciocínio por recorrência a uma

propriedade ou lei, comum a todos e, que torna ainda possível, a previsão de resultados a todo

novo fato ou combinação que seja reconhecida como participante da analogia.

Porém, se os procedimentos de matemáticos e físicos para desenvolver a base de suas

leis seguem o mesmo critério de escolha por analogia, entretanto, os domínios da física e da

matemática permanecem independentes. O problema principal para a construção do

conhecimento científico empírico, segundo Poincaré, reside na aproximação necessária, por

analogia, entre as leis físicas e as leis matemáticas já que somente essa analogia reduz a

incerteza das leis físicas obtidas por meio da indução.

Nada impede que a matemática se desenvolva a revelia dos interesses da física. A

indução matemática depende unicamente da afirmação da propriedade do próprio espírito, ou

seja, da afirmação do princípio de recorrência, não precisa se restringir às relações impostas

pelos resultados empíricos, como no caso da física. O desenvolvimento matemático não é

obrigado, necessariamente, a construir leis matemáticas que, por analogia, se assemelhem às

leis físicas. Segundo Poincaré:

24

Sabemos muito bem que a matemática continuará a se desenvolver, mas nós temos que descobrir em que direção. Vou dizer "em todas as direções", o que é parcialmente verdadeiro, mas se fosse totalmente verdadeiro, se tornaria um tanto alarmante. Nossas riquezas logo se tornariam constrangedoras, e sua acumulação em breve produziria uma massa tão impenetrável quanto a verdade seria desconhecida para o ignorante. (1908, p. 26).

A matemática, unicamente voltada a si, produziria “riquezas constrangedoras” caso

suas leis formais não pudessem ser utilizadas para estabelecer vínculos de analogia com as

leis materiais das ciências físicas. Da perspectiva de Poincaré, o conhecimento matemático

deve privilegiar uma proximidade com as necessidades da física, sem abandonar sua própria

origem:

Nossa ciência [a matemática] faz fronteira com a filosofia e a física, e é para esses dois vizinhos que devemos trabalhar. [...] De um lado a ciência matemática deve refletir sobre si mesma, e isso é útil porque refletir sobre si mesma é refletir sobre a mente humana que a criou; [...] Mas é para o lado oposto, o lado da natureza, que devemos dirigir nossas principais forças. [...] Aí encontramos o físico ou o engenheiro (1908, p. 36).

Não resta dúvida de que a correspondência entre a física e a matemática é necessária

para que se desenvolva o conhecimento científico, é por isso que o autor privilegia esse

caminho, contudo, sem descartar o desenvolvimento matemático puro. Veremos que na

filosofia de Poincaré o aspecto prático é decisivo nas escolhas do matemático, pois a

matemática se torna objetiva na medida em que também atende as necessidades objetivas do

físico.

Stump (1989, p. 341) afirma que para Poincaré “O duplo objetivo da ciência é,

segundo ele, representar o maior número de fatos possível e encontrar a maior unidade

possível. A unidade da teoria é encontrada na expressão matemática das relações dos muitos

fenômenos possíveis”. Concordo com Stump, entretanto, creio que seja necessário acrescentar

que essa unidade teórica entre “fenômenos físicos” e a “expressão matemática” é flexível e

sujeita à constante revisão. Entendo que é esse o critério colocado por Heinzmann: “O

problema de Poincaré diz respeito ao equilíbrio entre exatidão e objetividade” (2009, p. 172).

Segundo Poincaré, “a harmonia interna do mundo [...] é [...] a única verdadeira

realidade objetiva” (1904, p. 8, grifos meus). A meu ver, segundo Poincaré, a “verdadeira

realidade objetiva”, ou “a harmonia interna do mundo” diz respeito ao equilíbrio que deve

haver entre a “expressão matemática” e os “fenômenos físicos”, ou ainda, ao equilíbrio entre a

exatidão matemática que será útil à lei física e a própria projeção objetiva da lei matemática

nos fenômenos empíricos. Esse equilíbrio deve ser observado de dois modos distintos:

(1) As leis matemáticas são objetivas e exatas em si mesmas se considerarmos que

todo espírito humano, assim como o meu, poderá obter das relações matemáticas os mesmos

resultados que meu espírito obteve. Nas palavras de Poincaré: “o que chamo de realidade

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objetiva é, em última análise, o que é comum a muitos seres pensantes, e poderia ser comum a

todos; essa parte comum [...] só pode ser a harmonia expressa por leis matemáticas” (1904, p.

9). As leis matemáticas permanecem as mesmas, tanto subjetivamente quanto objetivamente,

para todo espírito humano que se predisponha a percorrer sua construção fazendo uso dos

mesmos pressupostos iniciais, tais como princípios, axiomas e postulados, verificando

analiticamente, ou silogisticamente, cada etapa dessa construção;

(2) Quanto maior for a aproximação, por analogia, entre uma lei matemática e uma lei

física, tanto mais a lei física tomará para si a certeza e exatidão da lei matemática; por outro

lado, a lei matemática se projeta objetivamente na lei física, na medida em que as relações

formais internas ao espírito participam das relações entre objetos materiais externos ao

espírito.

“É portanto essa harmonia [expressa por leis matemáticas] a única realidade objetiva, a

única verdade que podemos atingir” (POINCARÉ, 1904, p. 9) e aqui encontramos a nossa

verdade objetiva interna (1) projetada numa possível verdade objetiva externa (2) o que nos

revela um realismo no pensamento poincareano, embora esse realismo esteja circunscrito à

certeza da verdade no conhecimento matemático9, pois o conhecimento empírico está sempre

sujeito a revisão. Entendo, portanto, que o realismo sugerido pelas afirmações de Poincaré

seja um realismo matemático epistemológico10.

Ainda segundo Poincaré: “[...] se acrescento que a harmonia universal do mundo é a

fonte de toda beleza, será possível compreender que valor devemos atribuir aos lentos e

penosos progressos que nos fazem, pouco a pouco, conhecê-la melhor” (1904, p. 9). Creio que

essa “harmonia”, que causa admiração em Poincaré, trata-se do equilíbrio que deve haver e

que, por vezes encontramos entre a matemática e a física – pois as ciências empíricas

necessitam da exatidão das leis matemáticas – assim como, as leis matemáticas tornam-se

empiricamente práticas e objetivas, quando são usadas na construção do conhecimento

científico e ultrapassam o seu aspecto puramente matemático, participando efetivamente da

realidade das relações empíricas.

Portanto, o argumento (1) garante que o equilíbrio entre exatidão e objetividade já está

presente na matemática e isso pode ser reconhecido por qualquer espírito humano. O

argumento (2) destaca o problema que surge ao tentarmos projetar esse equilíbrio formal,

9 Veremos no capítulo 3 que Worrall fará uma conexão explícita entre esses elementos atribuindo à realidade uma estrutura matemática. 10 Retomarei a questão sobre o realismo matemático epistemológico poincareano na seção 3.3.2 – ‘As estruturas matemáticas e a realidade’.

26

presente na matemática, num pretenso equilíbrio material, dependente da “crença de uma

ordem geral do universo”, que possa estar presente nas ciências físicas. Novamente

dependemos da condição de analogia; desta vez para que a exatidão da lei matemática seja

transposta objetivamente para a lei física. Eis, portanto, o equilíbrio entre exatidão e

objetividade a que me refiro.

Entretanto, dizer que se deve manter uma correspondência entre a física e a

matemática não significa dizer que a matemática deve buscar suas relações na natureza, pois,

como já vimos, a matemática não é uma ciência empírica. As escolhas dentre as combinações

matemáticas possíveis é que não devem se distanciar da objetividade:

O cérebro do cientista, que é apenas um canto do universo, nunca será capaz de conter todo o universo, de onde segue-se que, dos fatos inumeráveis oferecidos pela natureza, vamos deixar alguns de lado e manter outros. O mesmo é verdadeiro, a fortiori, em matemática. O matemático também não pode reter desordenadamente todos os fatos que são apresentados a ele, tanto mais que é ele próprio - eu já ia dizendo a seu próprio capricho - quem cria esses fatos. É ele que reúne os elementos e constrói uma nova combinação de cima para baixo, mas geralmente não é levado a ela por uma leitura da natureza. (POINCARÉ, 1908, p. 26, grifos meus).

O matemático, ao contrário do físico, “constrói” as relações matemáticas sem manter

qualquer vínculo de dependência com as relações empíricas, já que depende somente de si, ou

de seu “capricho”, segundo Poincaré. Mas, o físico depende das relações formais que o

raciocínio matemático cria, na medida em que necessita de analogias que possam manter a

correspondência entre o elemento físico material e o elemento matemático formal. Nesse

sentido, a exatidão e a objetividade matemática – em seus dois aspectos apontados acima –

devem suprir as necessidades da física para que a matemática seja útil e prática.

Paty examina esse mesmo excerto de Poincaré, destacando que “o pensamento é

devotado, por seu próprio pertencimento à natureza e sua inserção nela, a construir [...] uma

representação da realidade do mundo que não pode [...] coincidir com esse mundo”, embora

as relações entre os elementos da matemática e do mundo físico devam propor “uma imagem

fiel [...] no sentido de analogia estrutural ‘matemática’” (2010, p. 190). Essa leitura de Paty

parece se voltar às escolhas que são necessárias para a elaboração de uma representação da

realidade, com base na referência mútua constante que a física e a matemática necessitam

manter. O autor parece sugerir que o pensamento, devido à sua inserção na natureza, se

encaminha espontaneamente à busca por analogias entre leis matemáticas e leis físicas,

criando uma “imagem fiel” do mundo por meio de uma “analogia estrutural matemática”.

Essa relação intrínseca à “imagem fiel”, sugerida por Paty, a meu ver, favorece a perspectiva

de um equilíbrio prático entre exatidão e objetividade, pela própria tentativa de acomodar a

27

“realidade do mundo” numa “analogia estrutural matemática”. Veremos em detalhes essa

perspectiva quando examinarmos o realismo estrutural proposto por Worrall (1989).

Visando, talvez, a manutenção das analogias necessárias ao desenvolvimento

científico e o equilíbrio entre relações formais e materiais, Poincaré afirma que “o matemático

não deve ser para o físico um simples fornecedor de fórmulas; é preciso que haja entre eles

uma colaboração mais íntima” (1904, p. 90). O autor destaca, em cada uma dessas ciências,

suas divisões mais próximas e, até mesmo, coincidentes: “A física matemática e a análise pura

[lógica matemática] não são apenas potências limítrofes, que mantêm relações de boa

vizinhança, penetram-se mutuamente, e seu espírito é o mesmo” (1904, p. 90). Essa

proximidade tende a estabelecer um vínculo de correspondência, uma analogia entre elas,

sempre que se observarem nas analogias internas da física, semelhanças com as analogias

internas da matemática e, consequentemente, a correspondência, por analogia, entre leis

físicas e leis matemáticas.

Segundo Poincaré, “Os matemáticos não estudam os objetos, mas a relação entre os

objetos; [...] a matéria não lhes importa, mas, unicamente a forma” (1902, p. 34), eles

“admiram a delicada harmonia dos números e das formas” (1904, p. 90) e “a harmonia interna

do mundo” cuja “melhor expressão é a lei” (1904, p. 8). A “harmonia dos números e das

formas” se refere à objetividade interna à matemática, como vimos anteriormente; enquanto

que a “harmonia interna do mundo” se refere à possível projeção das leis matemáticas nas

propriedades empíricas. Novamente observamos a necessidade de encontrar uma correlação

entre leis físicas e leis matemáticas o que, em última instância, torna admissível preservar a

certeza, o rigor e a exatidão das relações formais matemáticas no contexto de uma ordem

geral física. A definição da lei física tentará tomar emprestada da matemática a harmonia e o

rigor de sua forma em nome da “crença de uma ordem geral do universo”. O equilíbrio prático

entre exatidão e objetividade somente será mantido quando a definição da lei física puder se

corresponder com a harmonia das leis matemáticas, ou seja, aquilo que Poincaré chama de “a

única realidade objetiva”.

Finalmente, segundo Poincaré, “este sentimento, esta intuição de ordem matemática,

que nos permite encontrar harmonias e relações escondidas” não é encontrada em todo

indivíduo, mas, aqueles que a possuem “podem se tornar criadores e procurar fazer

descobertas com maior ou menor chance de sucesso, de acordo com a sua intuição mais ou

menos desenvolvida” (1908, p. 50). Quando Poincaré se refere a “encontrar harmonias e

relações escondidas” está tratando da capacidade intuitiva de destacar analogias dentre

relações aleatórias. Além disso, Poincaré atribui à faculdade humana da intuição a capacidade

28

de criação por meio do uso do raciocínio por recorrência. Entendo que essa capacidade não se

restringe à criação matemática, já que o desenvolvimento do conhecimento na física depende

do mesmo critério intuitivo usado na “construção” das relações matemáticas; ou seja, a

“construção”, descoberta e escolha de propriedades por meio de analogias e, em seguida, a

aplicação dessas propriedades por meio do raciocino por recorrência, cuja origem se encontra

no princípio de recorrência. Com impressões próximas às que acabo de citar, Paty conclui

que:

Nesse trabalho de criação de uma representação, o papel mais fundamental é o da intuição, pela qual Poincaré reconheceu um caminho sintético global e imediato, que precedeu todo um trabalho de análise efetuado em seguida para assegurar a certeza. [...] Para Poincaré, no que diz respeito às matemáticas, a intuição que inventa [...] é uma intuição racional, capaz de inventar racionalmente formas racionais, correspondentes de uma maneira particularmente adequada às formas do mundo real e que constituem o conhecimento científico. Essa consideração é plena de implicações para a natureza da invenção científica e para a natureza do racional que torna essa invenção possível (2010, p. 191, grifos do autor).

As formas racionais adequadas às formas do mundo real, a que Paty se refere,

dependem, segundo Poincaré, da faculdade da intuição, cuja função criativa, conforme vimos,

participa tanto das analogias internas da física e da matemática, quanto das analogias entre

ambas. Entendo que nessa linha argumentativa poincareana, o critério intuitivo de encontrar,

“construir” ou comparar relações não se restringe ao domínio da matemática, uma vez que as

analogias devem se manter sob o mesmo critério, estendendo-se às combinações,

propriedades e leis, sejam elas matemáticas ou físicas. Esse parecer acentua a participação da

intuição na “natureza da invenção científica”. Como destaca Paty, e conforme vimos

anteriormente, a intuição desempenha um papel essencialmente sintético e seu trabalho

antecede a tarefa essencialmente analítica da lógica.

• • •

O intuicionismo de Poincaré não é o objeto central de nosso trabalho e, certamente,

possui características que requerem um detalhamento mais profundo do que as impressões

que pude tecer nesse pequeno ensaio sobre o papel da intuição, inicialmente na epistemologia

matemática e, em seguida, na epistemologia da ciência.

Entretanto, entendo que não seja possível compreender como a construção do

conhecimento pode ocorrer na visão de Poincaré, sem que se compreenda esse movimento das

certezas internas do espírito transpostas às possíveis certezas externas a ele.

Na visão intuicionista de Poincaré o estatuto da verdade científica não procede das

relações materiais, mas do próprio espírito. As certezas matemáticas conferem exatidão, por

29

analogia, às possíveis certezas das ciências físicas. O que dizer, então, a respeito da conhecida

questão: Por que a física se expressa, necessariamente, em linguagem matemática?

Como vimos até aqui, segundo Poincaré é somente por meio das relações matemáticas

que se pode chegar à única verdade que o espírito concebe e reconhece nas relações entre as

coisas, sejam formais, sejam materiais; ou seja, as leis matemáticas obtidas por meio do

raciocínio por recorrência e da indução completa. A certeza da verdade nas leis matemáticas

advém e retorna ao próprio espírito pelo trabalho criativo de sua faculdade humana da

intuição e seu rigor procede da análise lógica, que verifica cada etapa particular da criação das

leis matemáticas que são gerais; um movimento essencialmente indutivo. As leis físicas

descobertas por comparação aleatória entre os resultados de eventos empíricos devem,

necessariamente, manter uma relação de semelhança com as leis matemáticas, com a

finalidade de estabelecer um vínculo entre elas que permita projetar a certeza, o rigor, a

exatidão e a objetividade das leis matemáticas numa objetividade das leis físicas. Eis porque,

segundo Poincaré, a física tem de se expressar, necessariamente, em linguagem matemática: a

“realidade objetiva [...] só pode ser a harmonia expressa por leis matemáticas” (1904, p. 9).

Entretanto, uma nova questão surge: Como essa verdade pode ser transposta à física,

ou seja, como leis matemáticas podem, por analogia, representar verdades propostas pelas leis

físicas?

Na próxima seção começaremos a responder a essa questão ao delimitar o que se pode

entender por lei, segundo Poincaré, e por analogia, de um modo geral.

30

1.4 Lei e analogia

Vimos na seção anterior que uma propriedade comum a uma classe de fatos, sejam

matemáticos ou físicos, e aplicável, por analogia, a outros fatos semelhantes, denota uma lei.

A lei permite a previsão de resultados, com base na propriedade comum observada em uma

classe de fatos conhecida, e aplicável a um fato análogo novo. As analogias entre leis

matemáticas e leis físicas tornam possível a construção do conhecimento físico. A intuição

responde pela criação científica; ela proporciona ao espírito encontrar e escolher, dentre as

relações possíveis, a que pode destacar ao menos uma propriedade que possa ser expressa na

forma de lei. Há um interesse prático e objetivo em manter uma correspondência, por

analogia, entre as leis “construídas” na matemática e as leis encontradas ou descobertas nas

relações físicas.

Por vezes me referi nas seções anteriores aos termos lei e analogia; no meu entender

esses conceitos ocupam importância central na epistemologia poincareana, motivo pelo qual

tratarei de explicitá-los na presente seção.

Começarei pelo conceito de lei em Poincaré, sobre o qual mantenho uma posição

particular; defenderei que tanto as leis matemáticas quanto as leis físicas obedecem a uma

mesma estrutura comum, o que permite um vínculo de aproximação muito útil entre as

relações matemáticas e as relações físicas.

Em seguida, examinaremos como podem ser entendidas as importantes relações de

analogia e como essas relações possibilitam que o raciocínio por recorrência esteja presente

em todas as fases da construção do conhecimento cientifico, segundo a visão de Poincaré.

1.4.1 A Lei

Poincaré assegura que:

Se uma lei simples for observada em diversos casos particulares, poderemos legitimamente supor que continuará a ser verdadeira nos casos análogos. Rejeitar isso seria atribuir ao acaso um papel inadmissível. (2008, p. 230)

Essa afirmação de Poincaré parece trazer consigo uma convicção indutivista de uma

ordem implícita, tanto nos fenômenos naturais, quanto nas relações formais e inteligíveis.

Afinal, qual a origem dessa ordem implícita que a lei demarca? Ou ainda, de onde provém a

lei?

31

A lei provém da experiência, mas não imediatamente. A experiência é individual, e a lei que dela se tira é geral; a experiência é apenas aproximada e a lei é precisa, ou ao menos pretende sê-lo. A experiência se realiza em condições sempre complexas, e o enunciado da lei elimina essas complicações. É o que chamamos de “corrigir erros sistemáticos”. Em uma palavra, para extrair da experiência a lei é preciso generalizar. (POINCARÉ, 1904, p. 91, grifo meu).

Poincaré está propondo a passagem do pensamento no nível da experiência individual,

no seu sentido de particular, ao nível geral, no seu sentido de universal, ou seja, um raciocínio

indutivo. A partir da generalização por indução pode-se prever que uma mesma propriedade

deve se repetir em todas as experiências particulares que possamos definir como análogas às

que permitiram a generalização na forma de lei.

Como já vimos na seção 1.2 – ‘A intuição e a origem da indução’, segundo Poincaré,

isso se deve à analogia que o raciocínio por indução mantém com o raciocínio por recorrência

e ocorre tanto na indução completa quanto na indução física. O que muda é a ordem de

aplicação desses raciocínios, ou seja, na indução matemática o raciocínio por recorrência é

anterior ao raciocínio por indução e na indução física essa ordem se inverte. Portanto, a ordem

implícita que a lei demarca se origina na aplicação, por analogia, do princípio de recorrência

em ambos os casos.

Nessa passagem Poincaré está se referindo diretamente à lei física, pois se a

“experiência se realiza em condições sempre complexas” isso se deve à limitação da atuação

do espírito em sua relação com o empírico e, além disso, a tentativa de impor precisão à lei

enfatiza a imprecisão das relações empíricas.

Entretanto, encontro certa semelhança entre as leis físicas e as leis matemáticas, pois,

embora a generalização obtida do enunciado da lei matemática seja sempre precisa, por outro

lado é sempre aproximativa no seu sentido restritivo, como explicarei adiante. Além disso,

direi que o enunciado da lei matemática também “corrige erros sistemáticos”. Para

desenvolver essa minha posição, pretendo, a seguir, analisar a lei matemática sob a

perspectiva necessária ao seu uso prático: exato e objetivo na medida do equilíbrio possível

entre lei física e lei matemática, conforme vimos na seção 1.3 – ‘A gênese da criação

científica’.

Partindo desse pressuposto, direi que as tentativas de estabelecer relações, sejam

matemáticas, sejam físicas, são sempre testadas uma a uma. Após uma série de experiências

individuais é que se podem obter informações tais que alguma propriedade comum possa ser

elaborada. Como vimos, a intuição permite ao espírito encontrar, ou “construir” no caso da

matemática, uma propriedade comum a uma classe de experiências singulares, para que se

possa propor uma generalização em forma de lei.

32

Em primeiro lugar, não devemos nos esquecer de que a experiência pura, por meio da

intuição, não é empírica, mas sim, experiência racional que torna possível a criação

matemática por meio da indução completa.

Em segundo lugar, direi que tanto a experiência física empírica quanto a experiência

matemática pura são aproximadas, no sentido de experiências restritas; cada qual restrita à sua

condição singular. Cada uma das experiências, puras ou empíricas, relaciona diferentes

elementos com diferentes abrangências em diferentes condições; é particular e permanece

restrita à sua singularidade enquanto objeto de análise, ou seja, enquanto a verificação

analítica se limita a uma única experiência de cada vez, tanto no aspecto físico quanto no

aspecto matemático.

No caso da experiência pura matemática seria inadmissível interpretar o termo

“experiência aproximada” como experiência imprecisa ou inexata, haja vista que “em

matemática, a exatidão não é tudo, mas sem ela não há nada: uma demonstração que carece de

exatidão é absolutamente nada” (POINCARÉ, 1908, p. 32). Já no caso da experiência física,

portanto empírica, a interpretação poderá ser considerada como aproximada nos sentidos

restritivo, impreciso ou inexato, sem que haja a perda de rigor no nosso raciocínio, uma vez

que sua condição material impede que possamos extrair dela um rigor formal.

O mesmo raciocínio que desenvolvi para o que pode ser entendido por “experiência

aproximada” cabe na análise da lei aproximada, uma vez que seu enunciado, tanto na

matemática quanto na física, deve “corrigir erros sistemáticos”, pois ele delimita uma

propriedade, sua abrangência e qual condição de semelhança no interior das experiências

particulares estão caracterizando a lei. Ao mesmo tempo, essa delimitação prática está

excluindo as experiências que não se enquadram na propriedade que deve estar bem

estabelecida pela lei, ou seja, está eliminando as exceções à regra.

A lei é o “resultado” prático dessa eliminação necessária que visa estabelecer uma ou

mais propriedades comuns entre os fatos que, anteriormente, aparentavam estar isolados ou

sem conexão entre si.

O enunciado da lei pode “corrigir erros sistemáticos” e “eliminar complicações”, mas,

mesmo assim, a lei deve abarcar uma grande quantidade das experiências já conhecidas e

eliminar apenas poucas exceções que não puderem ser generalizadas, caso contrário, a

generalização perde o efeito desejado. Percebemos então, que por mais geral que seja a lei, ela

deve definir o seu próprio domínio de atuação.

33

Como é possível que o enunciado da lei generalize uma propriedade e, ao mesmo

tempo, imponha um domínio que limite seu alcance? Esse êxito prático da generalização

depende de uma linguagem bem escolhida:

Quando a linguagem foi bem escolhida, fica-se surpreso ao descobrir que todas as demonstrações feitas para um objeto conhecido imediatamente aplicam-se a muitos novos objetos: nada precisa ser mudado, nem mesmo os termos, uma vez que os nomes se tornaram o mesmo. Um termo bem escolhido é muitas vezes suficiente para remover as exceções permitidas pelas regras indicadas na terminologia anterior. (POINCARÉ, 1908, p. 34, grifos meus).

A linguagem usada no enunciado da lei, por meio de um ou mais termos bem

escolhidos, pode eliminar as exceções que fogem à regra que se quer estabelecer como lei. No

caso da matemática “Isso explica a invenção de quantidades negativas, quantidades

imaginárias, decimais ao infinito, e não sei mais o quê” (POINCARÉ, 1908, p. 34). O uso dos

termos de linguagem indica o domínio e a abrangência da lei; no exemplo de Poincaré, se

pode entendê-los como números negativos, números complexos e números incomensuráveis,

ou seja, os sub-conjuntos matemáticos que limitarão a aplicabilidade da lei. Já, no caso da

física, por exemplo,

os físicos [...] inventaram o termo "energia", e o termo foi enormemente proveitoso, porque ele também cria uma lei por eliminação de exceções; pois dá o mesmo nome às coisas que diferem na matéria, mas são semelhantes na forma. (PONCARÉ, 1908, p. 34-35).

De um modo geral, o pesquisador “intui” a possibilidade de generalizar por meio da

linguagem, escolhendo termos adequados de modo a “decretar” uma lei, uma propriedade

comum a um grande número de fatos, inicialmente isolados, mas, a partir de então, vinculados

a uma regra prática aplicável a novos fatos similares que venham a surgir no contexto e dentro

do domínio da lei.

Esta é uma das características pelas quais reconhecemos os fatos que dão um grande retorno: são os fatos que permitem essas inovações felizes da linguagem. O fato nu, então, às vezes não é de grande interesse: ele pode ter sido observado várias vezes, sem prestar qualquer grande serviço à ciência; ele só adquire valor quando alguns pensadores mais meticulosos percebem a conexão que ele traz à tona, e o simboliza por um termo. (POINCARÉ, 1908, p. 34, grifos meus).

O papel da linguagem, sob esse contexto, é de fornecer a correspondência entre os

elementos e a propriedade comum a eles, deixando excluídos aqueles que não participam

dessa relação. Os termos da linguagem denotam a abrangência da lei e permitem que a

propriedade em destaque seja verificada dentre os elementos por ela abarcados.

A linguagem ainda pode resumir em palavras simples uma ideia complexa, ao mesmo

tempo eliminando as exceções que não interessam à formulação da lei.

Graças aos termos "grupo" e "isomorfismo", que resumem esta regra sutil em algumas sílabas [cuja matéria é de pouco interesse, e somente a forma importa], e a tornam assimilável por todas as

34

mentes, a passagem é imediata, e pode ser feita sem gastar nenhum esforço de pensamento. (PONCARÉ, 1908, p. 35).

O conceito de grupos matemáticos segundo Poincaré, permitiu “perceber a essência de

muitos raciocínios matemáticos” e participou efetivamente da compreensão de generalidades

matemáticas em muitos “casos [em que] os matemáticos antigos estavam lidando com grupos

sem o saber” (1908, p. 35) 11.

Entretanto, Poincaré alerta: “nunca devemos esquecer que as exceções são perniciosas,

porque elas escondem leis” (1908, p. 34). Ou seja, as exceções escondem outras relações que

eliminamos por ocasião da escolha de um termo adequado a tornar evidente a lei de nosso

interesse imediato. Essas relações não nos são interessantes por ora, mas, certamente, elas

podem ser abarcadas por outros termos, ou seja, outras linguagens. Diferentes linguagens, por

meio do uso de outros termos, podem propor generalizações distintas da nossa lei inicial, e

que sejam ainda mais abrangentes que nosso termo atual. Para tanto, principalmente no caso

da física, basta que novas relações surjam, no mesmo contexto das experiências que se

tornaram exceções à nossa lei atual, para que se torne evidente a necessidade de uma nova lei

mais abrangente; lei esta que poderá exigir a criação de um novo “termo bem escolhido” que

a destaque.

Em outras palavras, quando Poincaré se refere a “corrigir erros sistemáticos” por meio

de “um termo bem escolhido” está enfatizando o uso da linguagem como solução prática que

permite a criação de uma referência legítima comum a um grande número de fatos

semelhantes. Porém, adverte que esse recurso torna a lei aproximativa, já que permite

generalizar apenas dentro de certos limites estabelecidos pela linguagem – o próprio

enunciado da lei, tanto matemática quanto física. O recurso de linguagem, ou seja, o “termo

bem escolhido”, por um lado permite a generalização, por outro lado restringe a amplitude das

relações possíveis entre as experiências e, no caso da física, exclui algumas delas da lei em

nome de sua praticidade.

Ao perguntar “como pode uma lei se tornar um princípio?” Poincaré afirma que a

definição da lei, desde seu início, já tem um caráter aproximativo:

A lei exprimia uma relação entre dois termos reais A e B. Mas ela não era rigorosamente verdadeira; tinha um caráter apenas aproximativo. Introduzimos, arbitrariamente, um termo intermediário C, mais ou menos fictício, e C é, por definição, o termo que tem com A exatamente a relação expressa pela lei. A nossa lei, então, foi decomposta em um princípio absoluto e rigoroso que exprime a relação entre A e C e uma lei aproximativa e sujeita à revisão que exprime a relação

11 Voltaremos a esse conceito na seção 1.5.2 – ‘A percepção, a geometria e a matemática’. O intuito aqui é apenas destacar que um termo, carregado do significado teórico adequado, pode sintetizar um conjunto de relações que, inicialmente, se mostravam isoladas e independentes, mas que mantém uma propriedade comum.

35

entre C e B. É evidente que, por mais longe que levemos essa decomposição, sempre existirão leis” (1902, p.112) 12.

Embora possa parecer estranho que Poincaré se refira a “termos reais” de uma relação,

devemos lembrar-nos que, para ele, “a única realidade objetiva são as relações entre as coisas,

de onde resulta a harmonia universal” (POINCARÉ, 1904, p. 170) e, como vimos na seção

1.3 – ‘A gênese da criação científica’, denota uma visão realista típica de Poincaré.

O sentido aproximativo da lei deriva do fato que, mesmo uma propriedade sendo

comum a um grande número de relações particulares, as condições que definem sua

ocorrência já impõem limites à sua generalização. Por isso, desde seu princípio o objetivo de

tornar a propriedade uma lei já impõe uma condição restritiva e, nesse sentido, ela é

aproximativa por se restringir a um grupo de relações particulares em detrimento do todo; e

isso vale tanto no domínio da matemática quanto da física.

Entendo que o termo C – definição mais ou menos fictícia, interposta na relação que A

mantém com B e que a lei deveria exprimir – é justamente o “termo bem escolhido”,

adequado a definir as condições que tornam a lei aplicável e específica, corrigindo seus erros

sistemáticos. Ele é “mais ou menos fictício” porque não passa de um recurso de linguagem

que efetiva a divisão entre as relações que participam das condições de aplicação da lei e

aquelas que estarão excluídas dela.

O princípio absoluto e rigoroso a que Poincaré se refere nesse excerto pode ser

entendido de três maneiras: (1) no caso da lei matemática é o princípio de recorrência por sua

analogia com indução completa; (2) no caso da lei física, também é o princípio de recorrência,

porém, sujeito a dois níveis sucessivos de analogias; (3) pode ser um postulado, um axioma

(exceto os axiomas da aritmética que são juízos sintéticos a priori) ou princípios

convencionais (como os princípios da mecânica), ou seja, convenções.

No caso (2), se considerarmos que a lei física sempre deverá se apoiar numa relação de

analogia com alguma lei matemática, a indução matemática estará presente, por analogia,

nessa relação proposta pela lei física; a própria indução matemática, mantém preservado, por

analogia, o princípio de recorrência.

A condição descrita no caso (3), em que o princípio absoluto e rigoroso se refere a

convenções, será vista em detalhes na seção 1.6.1.5 – ‘As hipóteses aparentes ou convenções’.

12 Nesse excerto Poincaré está se referindo à definição de lei física e ao processo pelo qual se pode extrair dela um princípio físico. Defendo que a interpretação de lei que esse excerto fornece pode ser estendida, por analogia, à lei matemática, permitindo a generalização do conceito de lei em Poincaré. Proponho tornar sua generalização mais ampla, ampliando também sua praticidade, seguindo os caminhos propostos pelo próprio Poincaré quando se refere ao uso das analogias, como veremos na seção 1.4.2 – As analogias.

36

A relação entre C e B detém as exceções que foram deixadas de lado pelo uso do

“termo bem escolhido”. Conforme advertiu Poincaré, essas exceções “escondem leis” que

sempre sujeitarão a lei física a uma revisão ou a uma ampliação, ora mais ora menos. No caso

da lei matemática é um simples fator limitador da abrangência e do domínio que a lei abarca.

De um modo geral, o “termo bem escolhido” torna prático o uso da lei, delimitando sua

abrangência e mantendo fora dela suas exceções, ao mesmo tempo conservando a exatidão

dentro dos limites da generalização da lei.

Defendendo por meio dessa generalização que, em última instância, o que Poincaré

descreve como lei parece ser compatível com uma mesma estrutura, tanto para a definição de

uma lei física quanto para a definição de uma lei matemática. Deixo claro que essa não é uma

afirmação literal de Poincaré, mas interpreto que essa generalização a que me refiro é

compatível com a aproximação necessária que deve haver entre as leis físicas e as leis

matemáticas, em prol da construção do conhecimento no âmbito da ciência. A meu ver, a

própria estrutura que define essas leis já as aproxima por analogia.

1.4.2 As analogias

Vimos na seção 1.3, que segundo Poincaré, a intuição ocorre em diferentes graus de

desenvolvimento para cada espírito humano; ela responde pela “construção”, identificação e

escolha dentre as relações que podem destacar alguma propriedade útil para o

desenvolvimento do conhecimento científico. A faculdade da intuição, nessa sua tarefa

criadora, faz uso da analogia, ou da condição de semelhança, entre relações, combinações,

propriedades e leis. A analogia, nesse sentido, representa um papel fundamental, transferindo

de uma a outra instância da criação científica a única certeza que o espírito carrega com

respeito às relações entre as coisas, ou seja, transpõe a certeza da demonstração por

recorrência, desde a instância matemática até a instância física.

Ao propor a questão: “como generalizar?”, Poincaré admite que “toda verdade

particular pode ser estendida de uma infinidade de maneiras”, mas, somente a “analogia” pode

nos guiar por entre as melhores escolhas (1904, p. 91-92).

Então, quais as condições de uma boa analogia? Como encontrá-la? Afinal, como

podemos identificar as relações de semelhança que permitam extrair delas propriedades

comuns e leis que interessam à ciência?

37

É bem provável que não exista tal receita e, caso ela exista, só possa ser acessada pela

via intuitiva. Entretanto, se Poincaré não a pode fornecer, ao menos começa a nos indicar um

caminho. Ele questiona sobre “Quem nos ensinou a conhecer as analogias verdadeiras e

profundas, aquelas que os olhos não vêem, e que a razão adivinha?” (1904, p. 92, grifos

meus) e sua resposta nos remete à natureza do raciocínio matemático: “O espírito matemático,

que desdenha a matéria para só se ater à forma pura. Foi ele que nos ensinou a chamar pelo

mesmo nome seres que só diferem pela matéria” (1904, p. 92) ou, dito de outra maneira, “a

matemática é a arte de dar o mesmo nome para coisas diferentes” (1908, p. 34). Se

encontrarmos dentre essas “coisas diferentes”, algo que as assemelhe sob uma única

designação, aí estará a analogia. Entretanto, como vimos na seção anterior, uma boa

designação ou, segundo Poincaré, um “termo bem escolhido” faz mais do que simplesmente

dar o mesmo nome a coisas aparentemente diferentes; ele delimita a abrangência de uma

propriedade comum a essas coisas, tornando-as semelhantes, circunscrevendo uma regra de

semelhança aos seus elementos aparentemente diferentes.

Ainda como vimos anteriormente, a princípio podemos dispor de um grande número

de experiências para, na sequência, encontrar alguma propriedade que seja comum, senão a

todas, ao menos a boa parte dessas experiências.

Se para encontrar uma propriedade dependemos de várias experiências, será que

alguma em especial pode se destacar das demais? Afinal, “O que é, então, uma boa

experiência? É a que nos desvenda algo além de um fato isolado; é a que nos permite prever,

isto é, a que nos permite generalizar, pois, sem generalização, a previsão é impossível”

(POINCARÉ, 1902, p. 116). O princípio puro de recorrência e a generalização estão

intimamente ligados nessa tarefa. A intuição, nesse sentido, constrói, encontra e escolhe, por

meio de boas experiências que representem toda uma classe de eventos, quais participam e

como se dá essa generalização.

No caso da física experimental

O fato observado jamais se repetirá; a única coisa que podemos afirmar é que, em circunstâncias análogas, um fato análogo acontecerá. Portanto, para prever, é preciso, pelo menos, invocar a analogia; o que quer dizer que, já aqui, temos que generalizar. (POINCARÉ, 1902, p. 116)

Podemos dizer então, que a “boa experiência” torna possível que a intuição perceba

uma propriedade e, por meio de circunstâncias análogas, permite prever a ocorrência de um

resultado análogo, ou seja, generaliza e torna previsível.

Selecionar a “boa experiência” dentro do universo de experiências disponíveis para

análise é tarefa da faculdade da intuição, mas Poincaré não nos indica como selecioná-la.

38

Entretanto, se o “espírito matemático” nos ensina a conhecer as “analogias verdadeiras e

profundas” e, além disso, privilegia a forma pura em detrimento da matéria,

consequentemente, no âmbito da experiência física, a “boa experiência” nos mostrará uma

propriedade formal que participa do universo de experiências de nosso interesse. Assim,

diante da seleção de experimentos físicos, “invocar a analogia” representa, na medida do

possível, enfatizar a propriedade formal e descartar os elementos materiais que não a

influenciam e dela não participam. A “boa experiência” seria, então, aquela que evidencia a

forma geral da propriedade comum ao universo de experimentos em detrimento das condições

materiais específicas de cada experimento.

O enunciado da lei, “decreta”, por meio de “termos bem escolhidos”, propriedades que

favorecem o raciocínio por recorrência, haja vista que cada um dos experimentos, por

recorrência à propriedade geral, evidencia o que foi contextualizado pela lei.

Esse proceder com vistas à construção de leis físicas é muito semelhante ao que foi

descrito na construção de leis matemáticas na seção 1.2 – ‘A intuição e a origem da indução’,

com a qual a intuição elabora sinteticamente a demonstração por recorrência para que a

lógica, em seguida, verifique analiticamente cada etapa particular e a própria fórmula geral.

Segundo Hesse (1966, p. 74), a indução estabelece um vínculo direto com a analogia,

uma vez que há sempre “leis conhecidas ligando as propriedades de cada análogo”. A lei é a

própria síntese da repetição da propriedade em cada experimento e ela vai do particular para o

geral caracterizando um raciocínio indutivo.

A analogia, assim, permite a generalização por indução, tanto quando se estabelece

uma lei física, quanto no caso de uma lei matemática. Há aqui, então, uma confluência de

conceitos em torno do raciocínio por recorrência: as analogias usadas no processo de

elaboração das leis físicas e das leis matemáticas mantêm vínculo com o próprio raciocínio

indutivo. Recaímos, portanto, na condição inicial da criação intuitiva sintética seguida da

verificação analítica lógica, sendo que, agora podemos afirmar que a própria analogia opera

por esses meios. O princípio de recorrência passa a ser referência para todos os níveis da

construção do conhecimento científico, incluídos os processos analógicos, pois, o princípio de

recorrência se assemelha, por analogia, com o raciocínio indutivo, mas o próprio ato de

elaborar analogias faz uso do raciocínio por recorrência. Todas as fases da criação do

conhecimento científico encontram-se permeadas do raciocínio por recorrência.

Finalizando essa explanação sobre as analogias quero destacar, com a ajuda dos

escritos de Hesse, métodos usuais na ciência que estabelecem analogias diretas e indiretas

entre leis matemáticas e leis físicas. Eis um exemplo prático citado por Hesse:

39

vejamos o que exatamente queremos dizer ao falar sobre ondas sonoras. Não tem o mesmo significado que quando falamos de ondas de água, porque [...] as ondas sonoras são longitudinais e não transversais. A palavra persiste porque ambas as teorias usam o mesmo formalismo matemático, o qual nós chamamos equação de onda, diferentemente aplicada nos dois casos. O que as ondulações da água e as ondas sonoras têm em comum está completamente contido no formalismo matemático, e é este nosso objetivo ao continuar a usando a palavra "onda". (1966, p. 20, grifos meus).

O termo “onda”, por analogia, generaliza uma propriedade comum a diversas

experiências físicas. A “equação de onda” generaliza uma propriedade matemática comum a

diversas relações matemáticas singulares que, provavelmente, foram notadas na aferição das

relações físicas por ocasião dos experimentos empíricos. A analogia entre a propriedade

matemática e a propriedade física presente em seus ramos distintos, estabeleceu a

possibilidade da correspondência entre leis físicas e uma lei matemática, ou formalismo

matemático, como se queira. Desse modo, o processo incerto de indução física encontrou,

nesse caso, por analogia, certo respaldo na exatidão da lei obtida por meio da indução

matemática, possibilitando um ganho de conhecimento científico. A previsão de resultados se

torna extensível a todo experimento análogo posterior.

Nesse exemplo, como em outros exemplos citados por Hesse, ocorre também uma

analogia interna à própria física; podemos identificar que:

[...] há uma analogia entre dois ramos da física em virtude do fato do mesmo formalismo matemático aparecer em ambas as teorias. [...] Em outras palavras, a estrutura matemática das duas teorias é a mesma, e, consequentemente, uma teoria pode ser utilizada como modelo para a outra. (HESSE, 1953, p. 201).

Segundo observa Hesse, essa analogia encontrada entre ramos distintos da física, se

justifica a partir da lei matemática comum a ambas; assim, uma teoria física pode se tornar

modelo para a outra teoria física e a lei física pode ser compartilhada por elas, desde que a

relação de analogia se mantenha. Será possível, então, considerando o exemplo anterior,

estudar o comportamento de ondas sonoras com base no comportamento das ondas de água, já

que, mantêm semelhanças formais entre si. Entretanto, numa relação de modelagem como a

do exemplo, somente os aspectos formais e matematizáveis devem ser considerados, tendo em

vista que os aspectos físicos específicos do som e relativos à hidrodinâmica, podem não

determinar analogias úteis13.

Segundo Hesse, de um modo geral:

13 Em HESSE, M. B. (1966, p. 7-14, 57-64) a autora classifica as analogias relativas à analise de modelos para estudos da física como analogias positivas, negativas e neutras.

40

Uma analogia na física é uma relação, seja entre duas hipóteses, ou entre uma hipótese e alguns resultados experimentais, em que certos aspectos de ambos os relacionados podem ser descritos pelo mesmo formalismo matemático. (1953 p. 202)

A analogia entre duas hipóteses 14 ocorre quando o mesmo formalismo matemático, ou

seja, a mesma propriedade matemática, se aplica igualmente a duas hipóteses físicas distintas,

permitindo que uma hipótese física sirva de modelo para o estudo da outra. A analogia entre

uma hipótese física e alguns resultados experimentais ocorre quando uma propriedade física

presente na hipótese se corresponde, por analogia, com alguma propriedade matemática

encontrada na aferição dos resultados experimentais.

A analogia entre relações físicas e matemáticas representa a própria correspondência

que a lei física necessita manter com alguma lei matemática, leis essas que abarcam

propriedades.

Em última instância, o que os modelos15 podem trazer de útil para a física é alguma

analogia com leis matemáticas ou leis matematizáveis, ou seja, recaímos sobre a busca de

exatidão e objetividade com vistas à possível certeza da lei física. É em função disso que os

modelos da física privilegiam o formalismo e descartam aspectos materiais, como bem

destaca Hesse:

Em mecânica clássica, as entidades discutidas, tais como planos, esferas lisas perfeitamente rígidas, e similares, não são descrições literais de nada que seja encontrado na natureza, mas são simplificações de objetos naturais que chegaram a tudo negligenciar, menos algumas propriedades dos objetos – propriedades as quais são selecionadas por que são passíveis de tratamento matemático. (1953, p. 202).

Essa perspectiva destacada por Hesse torna possível afirmar que, mesmo no auge do

uso dos modelos pela mecânica clássica, as propriedades matematizáveis desses modelos é

que poderiam conferir alguma certeza, por analogia, às relações físicas que deles se pudesse

intuir.

Novamente, torna-se evidente que a física se aproxima do formalismo matemático em

busca da certeza, exatidão e rigor de que carecem as propriedades físicas. Entretanto, as

analogias são o único meio pelo qual o raciocínio por recorrência, derivado do princípio de

recorrência, consegue transpor todas as etapas da criação das leis matemáticas e alcançar as

leis físicas no âmbito da construção do conhecimento cientifico. 14 Veremos na seção 1.6 – ‘O papel das hipóteses’ – detalhes sobre as hipóteses segundo Poincaré. Provisoriamente podemos entender as hipóteses a que Hesse se refere como possíveis propriedades sugeridas pelas teorias físicas. 15 Nesse texto não entrarei no mérito da definição dos tipos de modelos e suas possíveis classificações, pois, para meu intuito considero suficiente entendê-los como recursos úteis à possibilidade de estabelecer analogias. Em BEZERRA, V. A. (2011, p. 587-595) encontra-se uma sugestão de classificação sobre os tipos de modelos na física e suas características.

41

1.5 Ajustando a matemática à física

Observamos ao longo das seções anteriores aspectos fundamentais da epistemologia

da ciência de Poincaré; sua origem na verdade aritmética calcada no princípio de recorrência;

a necessidade das analogias e do raciocínio indutivo no interior da matemática, da física e na

correspondência entre ambas; e a condição de verdade possível na lei física que,

necessariamente, mantém como referência a lei matemática.

Como vimos anteriormente na seção 1.3 – A gênese da criação científica – a

matemática independe das relações empíricas para construir suas relações. A física, ao

contrário, depende das relações matemáticas que se correspondam, por analogia, com relações

físicas. Somente a objetividade matemática pode fornecer instrumentos rigorosos, exatos e

infalíveis à física.

A presente seção, conforme seu título sugere, irá abordar a etapa da elaboração do

conhecimento científico no limite da referência mútua entre a matemática e a física. Pretendo

também aprofundar a importância e a necessidade do equilíbrio entre exatidão e objetividade,

de que tratamos na seção 1.3, e que tem de estar presente nessa interface matemática/física,

garantindo uma finalidade prática para as leis matemáticas.

1.5.1 O contínuo matemático e o contínuo físico

Nessa seção tratarei sobre o contínuo matemático que, segundo Poincaré, teve sua

criação elaborada e motivada pela “noção do contínuo físico, derivada dos dados brutos dos

sentidos” (1902, p. 38). Assim, o meu intuito é ilustrar, ao modo de Poincaré, como um

contínuo matemático pode ser criado e construído de tal forma a se assemelhar, por

aproximação, à noção de contínuo físico e, mesmo assim, conservar a exatidão e o rigor

típicos da matemática.

Partamos da escala dos números inteiros; entre dois níveis [échelons] consecutivos intercalaremos um ou vários níveis intermediários, depois, entre esses novos níveis, outros ainda e, assim, indefinidamente. Teremos, desse modo, um número ilimitado de termos, que são os números que são chamados fracionários, racionais ou comensuráveis. Mas não é tudo; entre esses termos que já são em número infinito, é preciso intercalar ainda outros, que são chamados irracionais ou incomensuráveis. [...] O contínuo assim concebido não passa de uma coleção de indivíduos colocados em uma certa ordem, em número infinito, é verdade, mas exteriores uns aos outros. [...] Só a multiplicidade subsiste, a unidade desapareceu; o contínuo é a unidade da multiplicidade. (POINCARÉ, 1902, p. 33, grifo do autor).

42

Poincaré destaca o fato de que na construção matemática podemos arbitrariamente

introduzir elementos, o que não nos deve parecer estranho, uma vez que a criação matemática

não vê limites, depende apenas do próprio espírito. A introdução de infinitos termos entre dois

termos consecutivos da escala de números inteiros é um exemplo disso. O que Poincaré

chama de infinitos indivíduos ordenados e exteriores uns aos outros, diz respeito ao fato de

que, a unidade não pode ser vista como um todo ininterrupto, como ocorre na noção comum

do que seja algo contínuo, mas como uma composição de infinitas partes ordenadas, mas sem

lacunas. Daí procede a característica do contínuo matemático tido como “a unidade da

multiplicidade”. Por essa perspectiva, se o contínuo físico visa a unidade (o todo contínuo), o

contínuo matemático visa a multiplicidade (as infinitas divisões do todo, mas sem lacunas).

Segundo Poincaré isso já “é o bastante para nos advertir de que o verdadeiro contínuo

matemático não é, de modo algum, o mesmo que o dos físicos [...]” (1902, p. 33-34), embora

haja um objetivo prático implícito na criação do contínuo matemático, como veremos adiante.

Para enfatizar que essa ideia de dividir algo infinitamente não pode ter origem na

experiência da divisão sucessiva, mas finita, típica da indução física, Poincaré cita a lei de

Fechner – “a sensação seria proporcional ao logaritmo da excitação” – e propõe um

experimento:

Observou-se, por exemplo, que um peso A de 10 gramas e um peso B de 11 gramas produziram sensações idênticas, e, também, que o peso B não podia ser distinguido de um peso C de 12 gramas, mas que se distinguia facilmente o peso A do peso C. Os resultados brutos da experiência podem, pois, ser expressos pelas seguintes relações: A = B, B = C, A < C, que podem ser vistas como a fórmula do contínuo físico. Existe aí uma intolerável discordância com o princípio de contradição e foi a necessidade de eliminá-la que nos forçou a inventar o contínuo matemático. Somos, portanto, obrigados a concluir que essa noção foi inteiramente criada pelo espírito, mas que foi a experiência que nos deu esse ensejo. (1902, p. 36, grifos meus).

O mundo se nos apresenta através de nossos sentidos e, no exemplo, Poincaré enfatiza

que eles são inexatos, conduzindo-nos, muitas vezes, a conclusões lógicas falsas. A

possibilidade de criar relações matemáticas é ilimitada e, podemos concluir pelo que vimos

anteriormente, que o contínuo matemático, segundo Poincaré, foi inventado para eliminar a

discordância com o princípio de contradição que o conjunto de sensações obtido da noção de

contínuo físico apresenta, dando certeza e rigor à solução de problemas físicos, por analogia

com relações matemáticas. Eis, portanto, o objetivo prático implícito na invenção do contínuo

matemático: “essa noção foi inteiramente criada pelo espírito, mas [...] foi a experiência que

nos deu esse ensejo”.

Pode-se argumentar que o uso de instrumentos melhora a acuidade de nossos sentidos,

mas ainda assim, está subordinado às nossas mesmas percepções falhas, embora, nesse caso,

43

numa escala diferente e que remete o erro a uma escala imediatamente posterior, perpetuando

o problema da limitação dos sentidos mesmo com o uso de instrumentos.

A criação do contínuo matemático obedece ao mesmo raciocínio por recorrência usado

nas propriedades básicas da aritmética. Se, por exemplo, na adição podemos somar unidades

indefinidamente, no contínuo matemático a ideia é dividir a unidade indefinidamente.

Segundo Poincaré, “desde que fomos levados a intercalar termos médios entre dois termos

consecutivos de uma série, sentimos que essa operação pode ser continuada indefinidamente e

que não há nenhuma razão intrínseca para que paremos” (1902, p. 37). Novamente, é a

faculdade da intuição que procede a essa demonstração por recorrência. Somente depois disso

a lógica procederá à verificação pela não-contradição.

O contínuo criado a partir da divisão ao infinito de números inteiros por números

inteiros é o contínuo matemático de primeira ordem. “Se, em seguida, intercalarmos novos

níveis [échelons], de acordo com a lei de formação dos números incomensuráveis, obteremos

o que chamaremos de contínuo de segunda ordem” (POINCARÉ, 1902, p. 37). Os números

incomensuráveis a que Poincaré se refere dizem respeito aos números irracionais, ou seja,

números que não podem ser representados pela divisão de números inteiros por números

inteiros, como por exemplo e π. Segundo Wrede e Spiegel “Esses números irracionais

podem ser definidos de várias maneiras, uma das quais usando a ideia de cortes de

Dedekind16” (2004, p. 16), justamente a lei de formação dos números incomensuráveis a que

Poincaré se refere. Poincaré cita um exemplo da aplicação dos cortes de Dedekind:

Suponhamos [...] que coloquemos na primeira classe [D] todos os números comensuráveis cujo quadrado seja maior do que 2, e, na segunda [E], todos aqueles cujo quadrado seja menor do que 2. Sabemos que não existe nenhum número [racional] cujo quadrado seja precisamente igual a 2. [...] Sob o ponto de vista de Dedekind, o número incomensurável , é exatamente o símbolo dessa maneira particular de divisão dos números comensuráveis (1902, p. 35).

Desse modo, termos incomensuráveis da divisão do contínuo matemático delimitam

sequências de números comensuráveis desse contínuo, sem que intervalos ocorram, uma vez

que o termo incomensurável se encontra infinitamente próximo do termo comensurável da

sequência imediatamente posterior de números comensuráveis. O contínuo físico não pode

prescindir dos números incomensuráveis, ou seja, dos números que não podem ser expressos

16 Segundo Wrede R. C. e Spiegel M. R. “Dedekind definiu um corte, seção ou partição no sistema dos números racionais como uma separação de todos os números racionais em duas classes ou conjuntos chamados de E (a classe do lado esquerdo) e D (a classe do lado direito) tendo as seguintes propriedades: I. As classes são não-vazias (isto é, pelo menos um número pertence a cada classe); II. Todo número racional está em uma classe ou outra; III. Todo o número em E é menor do que todo o número em D” (2004, p. 27, grifos meus).

44

pela divisão de dois números inteiros; uma vez que os números incomensuráveis serão

especialmente úteis quando o contínuo físico os transpuser à geometria:

Se queremos imaginar uma linha, só o podemos fazer com as características do contínuo físico, isto é, só a podemos imaginar com uma certa largura. Mas o geômetra puro faz um esforço a mais: sem renunciar inteiramente à ajuda dos sentidos, ele quer chegar ao conceito da linha sem largura, do ponto sem extensão. Só pode chegar a isso se considerar a linha como o limite para a qual tende uma faixa cada vez mais estreita, e o ponto como o limite para o qual tende uma área cada vez menor. [...] se só os pontos cujas coordenadas são comensuráveis fossem vistos como reais, o círculo inscrito num quadrado e a diagonal desse quadrado não se cruzariam, já que as coordenadas do ponto de intersecção são incomensuráveis. (POINCARÉ, 1902, p. 37-38)

O ponto geométrico encontra no número incomensurável a solução que o torna

compatível com o raciocínio intuitivo e permite a confluência de três domínios distintos:

matemático, geométrico e físico. O que vemos, portanto, é um ajuste interminável entre

domínios. Temos as concepções de contínuo físico, de contínuo matemático e, entre elas, as

concepções geométricas; todas convergindo para um equilíbrio prático entre exatidão e

objetividade, ou seja, três domínios que devem estabelecer correspondências entre si e

resolver os problemas internos de contradição que interferem nesse equilíbrio. Criar soluções

para esses problemas é tarefa da intuição que as remete ao domínio matemático, uma vez que

nesse campo a intuição não abre mão da exatidão, mas pode dar rumos práticos e objetivos às

relações que inventa.

Resumindo, o espírito tem a faculdade de criar símbolos, e foi assim que construiu o contínuo matemático, que é um sistema particular de símbolos. O único limite para o seu poder é a necessidade de evitar toda contradição; mas o espírito só se utiliza dele se a experiência lhe fornece uma boa razão para isso. No caso que tratamos essa razão era a noção do contínuo físico, derivada dos dados brutos dos sentidos. Mas essa noção conduz a uma série de contradições das quais temos que nos livrar, sucessivamente. É assim que somos forçados a imaginar um sistema de símbolos cada vez mais complicado. (POINCARÉ, 1902, p. 38-39).

O resumo de Poincaré faz alusão a todas as fases da criação científica. A criação

sintética dos símbolos matemáticos cabe à faculdade da intuição, limitada pela verificação

analítica lógica das relações que foram construídas. O poder criativo do espírito somente

segue esse caminho objetivo e prático devido à boa razão fornecida pela experiência; a

princípio para suprir a necessidade de analogia com as relações dadas pela experiência

empírica e, mais tarde, devido à oportunidade da afirmação desse poder criativo em efetivar-

se através da experiência pura. É desse modo que a aproximação entre esses domínios se

estabelece gradativamente à medida que novos “dados brutos dos sentidos” surgem com a

possibilidade de novos resultados e novas relações dadas empiricamente. Novamente, mesmo

não participando efetivamente da criação matemática, a experiência empírica a guia.

Segundo Poincaré, o contínuo se torna mensurável quando se estabelece a condição de

poder “comparar o intervalo que separa dois termos quaisquer. É somente com essa condição

45

que o contínuo se torna uma grandeza mensurável e que se lhe podem aplicar as operações da

aritmética”; para tanto, Poincaré sugere que “níveis [échelons] intermediários entre dois

níveis consecutivos” do contínuo “serão considerados, por convenção, equidistantes”,

permitindo, assim, obter medidas mensuráveis das relações entre intervalos. Com isso, as

relações no interior do contínuo passam a estar sujeitas, “por exemplo, às regas de

comutatividade e de associatividade da adição” (1902, p. 39). O fato de poder aplicar as

operações básicas da aritmética ao contínuo matemático e, consequentemente, poder, por

analogia, transpô-los à geometria e à física, permite que se possam cambiar as mensurações

realizadas nos experimentos físicos e, por analogia, obter delas relações matemáticas exatas e

rigorosas. Assim, com a criação do contínuo matemático ocorre uma aproximação, por

analogia, entre a indução física e a indução matemática, embora estejam mediadas pelas

relações geométricas. É isso o que Poincaré propõe na próxima etapa de ajuste entre a

exatidão e a objetividade.

De modo análogo ao processo que descreveu para a caracterização do contínuo físico e

o consequente ajuste das relações matemáticas através da sua criação do contínuo matemático,

Poincaré descreve a noção de contínuo físico de várias dimensões e a criação do contínuo

matemático de várias dimensões. Entretanto, se as grandezas que participam desses contínuos

forem mensuráveis, a noção de espaço torna-se possível. “Foi quando se quis introduzir a

medida do contínuo que acabamos de definir que esse contínuo se tornou o espaço, e que

nasceu a geometria” (1902, p. 42, grifos meus).

Vimos nessa seção como, gradativamente, Poincaré adiciona à sua epistemologia da

ciência os elementos que participam e interagem em todo seu processo construtivo. A noção

de espaço e a geometria métrica são, assim, incluídas nesse rol e serão o objeto de nosso

estudo na próxima seção.

1.5.2 A percepção, a geometria e a matemática

Tendo na seção anterior sugerido o ajuste, necessário e conveniente, da noção

matemática de contínuo com a noção de contínuo físico, Poincaré irá trabalhar as noções

geométricas e de espaço que, segundo o autor, derivam das relações estabelecidas entre os

contínuos matemático e físico.

Sobre a confluência entre essas noções, Poincaré indaga:

46

Em primeiro lugar, quais são as propriedades do espaço propriamente dito? Quero dizer, do espaço que é o objeto da geometria e que chamarei de espaço geométrico. A seguir algumas das mais importantes: 1º - é contínuo; 2º - é infinito; 3º - tem três dimensões; 4º - é homogêneo, quer dizer, todos os seus pontos são idênticos entre si; 5º - é isótropo, isto é, todas as retas que passam por um mesmo ponto são idênticas umas às outras. (1902, p. 55-56, grifos do autor).

As características que Poincaré destaca como sendo do “espaço propriamente dito”

são, na verdade, características impostas por definições próprias da geometria e não pela

nossa percepção do espaço físico. Representamos o espaço desse modo porque tal

representação torna possível matematizar as relações que encontramos no contínuo físico,

como vimos na seção anterior.

Por isso, em seguida, Poincaré irá propor: “Comparemos o espaço geométrico com o

quadro de nossas representações e sensações, que chamarei espaço representativo” (1902, p.

56, grifos do autor).

O movimento argumentativo que se segue fará um apanhado das sensações que são

próprias dos nossos sentidos da visão, do tato e de como percebemos nosso próprio

deslocamento e o deslocamento dos corpos nesse “espaço representativo”.

Segundo Poincaré (1902, p. 56-57), o “puro espaço visual”, depende da imagem

formada no fundo de nossas retinas que, embora seja contínua, forma-se em “duas dimensões

somente”. Além disso, “essa imagem está contida num quadro limitado” e não infinito. Uma

terceira diferença apontada pelo autor remete ao fato de que “esse puro espaço visual não é

homogêneo. Todos os pontos da retina, abstração feita das imagens que aí se podem formar,

não tem um mesmo papel”, uma vez que a área central desse quadro “limitado” produz

“impressões muito mais vivas” do que “um ponto vizinho a uma das extremidades”, ou seja, a

imagem periférica é menos detalhada que a imagem central de nosso campo visual e,

consequentemente, não é uma imagem homogênea.

A terceira dimensão visual só é possível, segundo Poincaré, devido ao “esforço de

convergência que temos que fazer no sentido da convergência dos dois olhos, necessária à

percepção nítida dos objetos”. Portanto, é um esforço por meio de “sensações musculares,

bem diferentes das sensações visuais”, o que permite afirmar: “o espaço visual completo não

é, portanto, um espaço isótropo” (1902, p. 56, grifos do autor).

Segundo Poincaré, as sensações musculares e visuais que, “pelo esforço de

acomodação e pela convergência dos olhos” nos propiciam a sensação de três dimensões, se

forem transpostas, por analogia, a uma linguagem matemática, “são funções de três variáveis

independentes” (1902, p. 57) Porém, de modo algum o “espaço geométrico” e o “espaço

visual completo” são iguais; são sim uma acomodação necessária entre elementos e relações

47

matemáticas com elementos e relações físicas, embora tenhamos a noção de que ambos

representem o “espaço propriamente dito”.

Quanto à percepção tátil e a percepção e execução de movimentos musculares,

Poincaré considera que “Cada músculo dá origem a uma sensação especial” (1902, p. 57) e,

sendo assim, “o espaço motor teria tantas dimensões quantos são os músculos que temos”

(1902, p. 58, grifos do autor), mas “as sensações que correspondem a movimentos com

mesma direção estão ligados em meu espírito por uma simples associação de ideias [,] que se

reduz ao que chamamos ‘a percepção de direção’” (1902, p. 58, grifos do autor), ou seja, um

conjunto de percepções entendidas pelo espírito como única.

Portanto, o espaço tátil e o espaço motor se distanciam ainda mais daquilo que

entendemos como “espaço geométrico”, o que permite a Poincaré concluir: “o espaço

representativo, sob sua tripla forma, visual, tátil e motora é essencialmente diferente do

espaço geométrico” (1902, p. 58).

Ocorre que criamos uma representação racional que nos permite pensar sobre os

corpos exteriores “como se estivessem situados no espaço geométrico” (POINCARÉ, 1902, p.

59). Sob uma perspectiva epistemológica, há uma constante recorrência do espírito às

analogias que possam traduzir sua verdade pela indução completa a uma verdade pela indução

física; ocorre uma correlação ininterrupta entre elementos matemáticos, agora transpostos à

geometria e, novamente, transpostos à física. Essa necessidade é tão familiar e natural ao

espírito que, segundo Poincaré, chega a nos representar uma única noção que nos parece

verdadeira, mas que não passa de um ajuste de noções independentes, mas sempre

recorrentes. Por isso não devemos nos esquecer que a criação pela indução completa só é

limitada pela não-contradição, o que permite ao espírito criar infinitas possibilidades de

representação sem que, no entanto, venha a abrir mão do rigor e da exatidão.

Logo, se o “espaço geométrico” é unicamente uma criação do espírito, nada nos

impede de criar mais de uma forma de representar esse “espaço geométrico”, já que pode

haver mais de uma forma de equipará-lo às condições empíricas, embora, na prática,

possamos escolher aquela forma que nos pareça mais conveniente à sua representação. É

justamente por isso que podem ocorrer racionalmente geometrias distintas da geometria

euclidiana, mas ajustadas também aos fenômenos empíricos, embora a nossa condição

imediata de interação com os objetos externos ao nosso espírito, nos faça preferir uma

representação euclidiana do “espaço geométrico”. “A experiência nos guia nessa escolha e

não nos a impõe, nos faz reconhecer qual é a geometria mais cômoda e não qual é a mais

verdadeira” (POINCARÉ, 1902, p. 67, grifo do autor). A verdade do espírito, para Poincaré,

48

permanece na origem comum dessas representações do “espaço geométrico”, ou seja, na

indução completa intuitiva verificada pela não-contradição lógica.

O modo como o espírito pode criar formas distintas de conceber o “espaço

geométrico” se deve, segundo Poincaré, a uma reciprocidade entre duas categorias de

percepções do nosso corpo, dentro do nosso espaço representativo visual, tátil e motor: na

primeira, de fenômenos “involuntários, não-acompanhados por sensações musculares, que

atribuímos aos objetos externos”, ou seja, como entendemos os movimentos dos corpos

externos; a segunda, “que atribuímos aos movimentos de nosso próprio corpo, são as

mudanças internas” (1902, p. 62). Essa correlação permite, segundo Poincaré, definir “uma

classe particular de fenômenos denominados deslocamentos. As leis desses fenômenos

constituem o objeto da geometria” (1902, p. 62, grifos do autor).

As sensações obtidas dos movimentos externos ao corpo são correlacionadas com as

sensações de movimento no próprio corpo. Os objetos externos são, então, idealizados, para

que se tornem matematizáveis, e passam a receber do espírito o tratamento de corpos sólidos

perfeitos, único modo de estabelecer, por analogia, uma correlação entre propriedades formais

e propriedades materiais.

Segundo Poincaré, a primeira das leis que “constituem o objeto da geometria” é a “lei

da homogeneidade” 17 (1902, p. 62). Essa lei torna possível que os objetos sólidos perfeitos

que foram idealizados pelo espírito passem a se deslocar num espaço geométrico homogêneo

e isótropo. Ou seja, mediante condições totalmente matematizáveis que o espírito concebeu,

pode-se, então, trabalhar por correlação ou por analogia, como se queira, com nossa própria

percepção de movimentos musculares e com a sensação que os objetos externos nos

oferecem. Desse modo, segundo Poincaré, o experimento racional obtido por meio da

aplicação da “lei da homogeneidade”, permite

[...] dizer que um movimento feito uma vez pode ser repetido uma segunda vez, uma terceira vez, e assim por diante, sem que suas propriedades variem. [...] A virtude do raciocínio matemático [por recorrência] advém dessa repetição; e, portanto, ela é devida à lei de homogeneidade que o raciocínio matemático tomou aos fatos geométricos. (1902, p. 63).

17 Poincaré não cita a origem da “lei da homogeneidade”, mas, provavelmente, está se referindo ao conceito de homogeneidade em Kant. Segundo MORA, J. F. (2001, p. 1386), “Kant usou o termo ‘homogêneo’ (gleichartig) ao tratar do problema da subsunção de um “objeto” por um conceito. A representação de um objeto deve ser, segundo Kant, homogênea em relação a um conceito, o que significa que o conceito deve conter algo que é representado no objeto subsumido pelo conceito. Assim, por exemplo, o conceito empírico de um prato é homogêneo em relação ao conceito geométrico de círculo. [...] Assim, a noção de homogeneidade é fundamental para a questão de aplicabilidade dos conceitos às aparências. Em geral, a noção de homogeneidade em Kant é uma noção ligada à possibilidade da síntese por meio da qual se obtém o conhecimento”.

49

Assim como o espírito se vê capaz de recorrer às propriedades matemáticas sempre

homogêneas, também se vê capaz de recorrer às propriedades matematizáveis e invariáveis

dos deslocamentos dos objetos sólidos perfeitos, idealizados pelo espírito, no interior de um

espaço geométrico homogêneo e isótropo. A “lei da homogeneidade” estabelece o vínculo

entre os experimentos, que são realizados em condições restritas e particulares, destacando

propriedades invariáveis e comuns a todos eles; há um movimento lógico que vai do

particular para o geral e guarda nítida semelhança com os procedimentos habituais da

indução. Isso me permite afirmar que, por meio da “lei da homogeneidade” torna-se possível

então, que o raciocínio por recorrência que já participava da indução física e da indução

matemática, como vimos na seção 1.2 – ‘A intuição e a origem da indução’ – participe

também dos “fatos geométricos”.

Portanto, posso agora enfatizar a ininterrupta sucessão de analogias entre domínios

distintos que deriva inicialmente do princípio de recorrência nas operações básicas da

aritmética e perpassa a criação do conhecimento matemático, a criação das geometrias e a

descoberta das leis físicas, sempre objetivando que a certeza obtida do princípio inicial possa

ser transmitida, por analogia e em última instância, ao conhecimento incerto das ciências

físicas.

Recordando Hesse na seção 1.4.2, o próprio raciocínio por analogia carrega um

vínculo, por repetição, com os procedimentos de indução. Assim, segundo Poincaré,

novamente podemos observar que todas as etapas da construção do conhecimento científico

mantêm, essencialmente, por sucessivas correlações ou relações de semelhança, a conexão

com o princípio de recorrência.

Poincaré afirma ainda: “deveríamos acrescentar à lei de homogeneidade, uma grande

quantidade de outras leis análogas, em cujos detalhes não entrarei, mas que os matemáticos

resumem em uma palavra quando dizem que os deslocamentos formam um “grupo”” (1902,

p. 63). Na seção 1.4.1 – ‘A Lei’ – vimos que Poincaré se referiu ao conceito de “grupo

matemático” como exemplo do uso de “termos bem escolhidos” que ajudam a estabelecer, por

meio da linguagem, a abrangência e a própria restrição da lei matemática, ou seja, o universo

de elementos que estarão ao alcance da aplicação da propriedade ou da lei matemática.

O conceito matemático de “grupo” prevê, grosso modo, que uma dada operação sobre

um conjunto qualquer de elementos define uma estrutura de grupo sobre esse conjunto se, e

somente se: (1) a propriedade associativa possa ser observada nessa dada operação sobre

quaisquer combinações de seus elementos; (2) exista um elemento neutro dentre todos os

elementos do conjunto, de tal modo que, se esse elemento participa da dada operação com

50

qualquer outro elemento do conjunto, esse último não se altera; (3) exista um oposto simétrico

para todos os elementos do conjunto e no interior desse mesmo conjunto. Pode ser que a

propriedade comutativa também se aplique, mas isso não é imprescindível à formação de um

grupo matemático.

Observadas as propriedades necessárias para caracterizar a formação de um “grupo”

matemático, Heinzmann afirma que:

Poincaré estudou as propriedades notáveis "puramente formais" do grupo, a fim de obter o espaço geométrico e os seus elementos (pontos, linhas retas, planos, etc.). Ele destaca que o grupo é contínuo e que se podem distinguir deslocamentos que conservam certas quantidades, tais como rotações em torno de um ponto fixo, rotações em torno de um eixo fixo, ou a combinação de rotações em torno de um eixo e as translações paralelas ao mesmo eixo. Grupos com essas propriedades (que formam sub-grupos) correspondem às geometrias de Euclides, Lobachevski e Riemann. (2009, p. 180).

Desse modo, quaisquer que sejam os sólidos cujas propriedades formais sejam

idealizadas pela física, é possível afirmar que seus deslocamentos no espaço geométrico

sempre obedecerão a uma estrutura de grupo matemático, até mesmo, por exemplo, “um

grupo que tenha a mesma estrutura que os movimentos de um sólido quadridimensional

invariável” (1902, p. 66). As geometrias de Euclides e não-euclidianas também obedecem a

essas propriedades de formação de grupos matemáticos.

Poincaré conclui:

A geometria seria, unicamente, o estudo dos movimentos dos sólidos; mas, na realidade, ela não se ocupa dos sólidos naturais; seu objeto são certos sólidos ideais, absolutamente invariáveis, que são uma imagem simplificada e bem distante dos nossos sólidos reais. O conceito desses corpos ideais é puro fruto de nosso espírito e a experiência funciona como uma mola que nos impele a elaborá-lo. O objeto da geometria é o estudo de um “grupo” particular, mas o conceito geral de grupo preexiste no nosso espírito, pelo menos potencialmente. [...] Somente, entre todos os grupos possíveis, é preciso escolher o que será, por assim dizer o padrão com o qual cotejaremos os fenômenos naturais. (1902, p. 67, grifo do autor).

Os “sólidos ideais” são as versões matematizáveis dos “sólidos reais”; são o resultado

da própria necessidade de manter um equilíbrio entre a objetividade e a exatidão, como vimos

na seção 1.3 – ‘A gênese da criação científica’. Neles o espírito estabeleceu, mediante a

criação matemática, o vínculo necessário entre propriedades físicas e propriedades

matemáticas; isso se dá em função da “lei de homogeneidade”, que torna o “conceito desses

corpos ideais” a representação homogênea dos “sólidos reais”, porém, “absolutamente

invariáveis”. Segundo Poincaré, seja qual for a geometria que venha a ser obtida dessa

matematização dos deslocamentos dos objetos no interior do espaço geométrico, sempre será

fruto do estudo de um “grupo” matemático particular, construído com base no raciocínio por

recorrência. A escolha de usar uma, dentre essas possíveis geometrias, fica por conta do

51

pesquisador e do que ele considere a mais cômoda ou conveniente ao nosso melhor

entendimento das relações e propriedades observadas nos experimentos físicos.

Todas as geometrias são reconhecidas pelo espírito como verdadeiras se nos

referirmos à verdade matemática, exata e rigorosa, vinculada à indução completa. Entretanto,

as geometrias são criações artificiais desse espírito; não advêm da experiência física, embora

tenham de manter com ela uma analogia necessária. A geometria não representa uma verdade

do espaço físico, mas sim a condição que torna prático seu estudo; embora o próprio conceito

de “espaço” possa não resistir a um exame rigoroso de sua existência além de sua condição de

“termo bem-escolhido” na linguagem usada para formalizar a lei.

• • •

Depois do que vimos ao longo de toda a seção 1.5, sou forçado a discordar da seguinte

afirmação de Del Vecchio Jr.:

A corroboração empírica está completamente fora de questão no âmbito da geometria. Se analisadas a Física, a Mecânica e a Geometria, observamos um gradual caminho de abandono do valor da experiência como base para a fundamentação, pois a Geometria não necessita, em absoluto, remeter à experiência sensível. Ela caminha por si só e a “aproximação” com as nossas experiências de espaço representativo são interessantes, mas não são necessárias. (2005, p. 55, grifos do autor).

A argumentação de Poincaré, que vimos ao longo dessa seção, demonstra segundo

meu entendimento, um claro movimento que tem por objetivo adequar a criação matemática

às necessidades da física. A geometria é formal, mas representa, justamente, o elo entre o

formal e o material, entre a ciência matemática pura e a ciência empírica física. A criação das

geometrias permite unir, por meio de analogias, o contínuo físico e o contínuo matemático. O

próprio contínuo matemático, segundo Poincaré, foi construído de tal modo a dar conta da

solução de problemas derivados da noção de contínuo físico. Desse modo, defendo que a

geometria mantém sim uma aproximação necessária com nossas experiências do espaço

representativo, pois, sua utilidade prática é permitir que os deslocamentos dos objetos físicos

possam ser matematizáveis.

A lei da homogeneidade, segundo Poincaré, é a ‘ferramenta’ que tornou possível, por

analogia, dar continuidade ao raciocínio por recorrência na interface entre a geometria e a

física, tornando homogêneos os deslocamentos dos objetos físicos e homogêneas as

propriedades da física. É desse modo que, segundo Poincaré, o raciocínio por recorrência

participa de todas as fases da construção do conhecimento científico.

52

As propriedades dos grupos matemáticos transferem certeza, rigor e exatidão aos

deslocamentos dos objetos sólidos no interior espaço geométrico. Esses objetos já haviam

sido obtidos da idealização dos objetos físicos e isso os tornou matematizáveis. Assim, tanto

os corpos quanto seus deslocamentos tornam-se matematizáveis.

Entretanto, como vimos, isso torna possível a criação de uma infinidade de

geometrias. Já nos é possível antever que, se podemos escolher dentre várias geometrias

verdadeiras e distintas para estabelecer o vínculo, por analogia, entre a física e a matemática,

então essa escolha se dará por melhor adequação ou, como veremos no próximo capítulo, a

escolha se dará por convenção.

De um modo geral, a geometria será, para Poincaré, um dos dois elementos

convencionais que farão a ‘ponte’, por analogia, entre a física e a matemática. Veremos o

outro elemento convencional oportunamente, no próximo capítulo.

Por ora, tendo alcançado o domínio da física nessa corrente de analogias estabelecida

por Poincaré, veremos a seguir, na última seção do presente capítulo, o papel e a importância

que Poincaré atribui às hipóteses, tão necessárias nas teorias físicas, mas que, segundo o

autor, por mais antagônico que possa parecer, o matemático também não dispensa seu uso.

53

1.6 O papel das hipóteses

O termo ‘hipótese’ é largamente utilizado, principalmente na construção das teorias

físicas. Na filosofia da ciência de Poincaré as hipóteses desempenham papéis específicos e,

por vezes, distintos do seu significado usual. Por esse motivo evitei até aqui, o quanto

possível, usar o termo ‘hipótese’. Tentei, assim, evitar que a nossa interpretação da filosofia

da ciência de Poincaré fosse impregnada de ideias pré-concebidas pelo uso comum do termo.

Procurei, também, estabelecer certa familiaridade com alguns fundamentos

epistemológicos poincareanos pelo uso, por exemplo, dos termos ‘relações matemáticas’,

‘relações físicas’, ‘lei matemática’, ‘lei física’, ‘analogia’, ‘princípio de recorrência’,

‘‘propriedade do espírito’, ‘intuição’, ‘indução completa’, ‘indução física’, ‘experiência

empírica’, ‘experiência pura’, etc. Creio que o uso dessa terminologia nas seções anteriores

irá facilitar o entendimento do papel dos diversos tipos de hipóteses no contexto da filosofia

da ciência poincareana.

O conceito poincareano de ‘hipótese’ demanda uma análise cuidadosa e, certamente, o

conhecimento dos fundamentos epistemológicos poincareanos, desenvolvidos nas seções

anteriores, nos serão muito úteis nessa análise.

Portanto, nessa seção farei uma análise dos diversos tipos de hipóteses que

encontramos na obra de Poincaré “A ciência e a hipótese” (1902) à luz da epistemologia

poincareana, que desenvolvemos nas seções anteriores do presente capítulo.

1.6.1 Classificação das hipóteses

Na primeira página da introdução de “A ciência e a hipótese”, Poincaré refere-se ao

“papel da hipótese; constatou-se que o matemático não a poderia dispensar e que tampouco o

experimentalista a dispensa” (1902, p. 15). Para melhor compreender essa afirmação,

precisamos examinar o papel dos vários tipos de hipóteses no âmbito do conhecimento

científico.

Em “A ciência e a hipótese” Poincaré não classifica de modo explícito os tipos de

hipóteses e o papel que desempenham, mas fornece alguns indícios de como proceder nesse

sentido.

54

Nessa seção usarei como referência e seguirei o mesmo caminho proposto por

Heinzmann (2009, p. 169-192) no sentido de classificar as hipóteses em Poincaré, embora não

pretenda me apoiar unicamente sobre a caracterização proposta por esse autor.

Somente em duas ocasiões distintas Poincaré trata das “diversas espécies de hipóteses”

ao longo de “A ciência e a hipótese”. A primeira aparece na página inicial da Introdução:

[...] existem diversas espécies de hipóteses: que umas são verificáveis e que, uma vez confirmadas pela experiência, se tornam verdades fecundas [1]; que as outras, sem poder nos induzir a erro, podem nos ser úteis tornando mais preciso nosso pensamento [2]; enfim, que outras são hipóteses na aparência e não passam de definições ou de convenções disfarçadas [3]. (POINCARÉ, 1902, p. 15-16, grifos meus)

A segunda aparece no Capítulo IX – “As hipóteses em física” 18:

[...] é preciso ter o cuidado de distinguir entre os diferentes tipos de hipóteses. Primeiro, existem as que são totalmente naturais e às quais mal nos podemos furtar. É difícil não supor que a influência dos corpos muito distantes é totalmente desprezível, que os pequenos movimentos obedecem a uma lei linear e que o efeito é uma função contínua de sua causa. Eu direi o mesmo sobre as condições impostas pela simetria. Todas essas hipóteses formam, por assim dizer, o fundo comum de todas as teorias da física matemática. E são as últimas que devemos abandonar [4]. Existe uma segunda categoria de hipóteses que qualificarei de indiferentes. Na maioria das questões, o analista presume, no início de seus cálculos, ou que a matéria é contínua, ou, ao contrário, que é formada por átomos. Se fizesse o contrário, seus resultados não se modificariam [...] Se a experiência viesse então confirmar suas conclusões, julgaria ele haver demonstrado, por exemplo, a existência real dos átomos? [...] Essas hipóteses indiferentes nunca são perigosas, desde que não se desconheça seu caráter. Podem ser úteis como artifícios de cálculo, ou para sustentar nosso entendimento com imagens concretas – para fixar as idéias, como se costuma dizer. Não há por que proscrevê-las, portanto [5]. As hipóteses da terceira categoria são as verdadeiras generalizações. São essas que a experiência deve confirmar ou refutar. Verificadas ou condenadas, elas são sempre fecundas. Mas, pelas razões que expus, só o serão se não as multiplicarmos [6]. (POINCARÉ, 2008, p. 232-233, grifos meus).

Heinzmann sugere a correspondência de significados entre: as hipóteses verificáveis

fecundas [1] e as hipóteses que são verdadeiras generalizações [6]; as hipóteses úteis que

tornam mais preciso nosso pensamento [2] e as hipóteses indiferentes que são úteis para fixar

as ideias [5]. Segundo Heinzmann, os significados das hipóteses na aparência (definições ou

convenções disfarçadas) [3] e das hipóteses naturais (últimas que devemos abandonar) [4],

não se correspondem com nenhum dos outros tipos de hipóteses. Assim, ele sugere que

persistem “quatro tipos de hipóteses: (1) hipóteses verificáveis; (2) hipóteses indiferentes; (3)

hipóteses naturais e (4) hipóteses aparentes” (HEINZMANN, 2009, p. 173).

Vamos, então, caracterizá-las, seguindo o critério epistemológico poincareano que

desenvolvemos até aqui. 18 Segundo Jules Vuillemin, no prefácio à edição brasileira de 1984 de “A ciência e a hipótese”, os capítulos IX e X originalmente fazem parte de POINCARÉ (1901) ‘Sur les rapports de la physique expérimentale et de la physique mathématique’. Usarei nessa citação a tradução para o português contida na nossa referência bibliográfica POINCARÉ (2008) por uma questão de preferência pessoal. Em POINCARÉ (1902) essa citação pode ser encontrada nas páginas 121-122.

55

1.6.1.1 Hipótese matemática a priori?!

Pode nos parecer estranho que, segundo Poincaré, nem o matemático nem o

experimentalista dispensem o uso da hipótese (1902, p. 15), já que seria um contra-senso

pensar em hipóteses matemáticas a priori, ou seja, anteriores a experiência, uma vez que a

matemática, segundo Poincaré, não deriva da experiência empírica. O uso do termo ‘hipótese’

está vinculado às ciências empíricas e, portanto, não deveria se referir à experiência pura da

intuição, como vimos na seção 1.2 – ‘A intuição e a origem da indução’. Tanto nas

propriedades da aritmética, quanto por analogia, na generalização por indução completa, a

aplicação do princípio de recorrência é uma certeza do espírito e não uma possibilidade

empírica, como denota o uso do termo ‘hipótese’.

Entretanto, como também já vimos na seção 1.3 – ‘A gênese da criação científica’, a

indução física e a indução completa têm estruturas análogas; a correspondência entre as leis

matemáticas e as leis físicas depende dessa condição de analogia. Conforme a interpretação

que defendi na seção 1.4.1 – ‘A Lei’, tanto o matemático quanto o físico experimentalista

usam a mesma estrutura na elaboração de suas leis e, por analogia, também as hipóteses são

construídas com base nessa mesma estrutura da lei.

Podemos entender que esse uso diferenciado do termo ‘hipótese’ por Poincaré está

enfatizando exatamente a analogia que, como vimos ao longo das seções anteriores, está

presente e permeia a aplicação do raciocínio por recorrência e o uso do “termo bem

escolhido” em todas as fases da construção do conhecimento científico.

Entendo que há, portanto, um aspecto prático que está sendo enfatizado por Poincaré,

ou seja, o uso da mesma estrutura e também do mesmo termo, tanto no âmbito matemático

quanto no âmbito físico, para se referir à analogia intrínseca que esses domínios distintos

mantêm. Esse também é um aspecto do intuicionismo que, por vezes, rejeita o princípio do

terceiro excluído. Em Poincaré isso se dá em nome da praticidade.

1.6.1.2 As hipóteses indiferentes

Poincaré observa:

Verificamos uma lei simples em um grande número de casos particulares; nós nos recusamos a admitir que essa descoberta, tão frequentemente repetida, seja o resultado de um mero acaso e concluímos, então, que a lei deve ser verdadeira no caso geral. [...] Toda generalização é uma hipótese; a hipótese tem, então, um papel necessário que nunca ninguém contestou. Mas ela deve ser, o mais cedo possível e o mais frequentemente possível, submetida à verificação. (1902, p. 121, grifos meus)

56

Temos aqui uma linha de raciocínio bem definida no que concerne às hipóteses físicas.

Por indução, generalizamos uma lei, mas, no caso da física, essa generalização se dá por

hipótese, obedecendo à estrutura da proposta de uma lei. Sabemos que generalizar por meio

da indução física é uma atitude incerta, motivo pelo qual o passo decisivo se dá na verificação

empírica da hipótese, “o mais cedo possível e o mais frequentemente possível”.

Mesmo sendo infinita essa tarefa de verificação empírica, ainda assim ela pode ser

empreendida mediante a frequente experimentação. Entretanto, um problema surge quando as

hipóteses não podem ser verificadas.

Um caso de inverificabilidade da hipótese ocorre quando esta defende afirmações de

ordem ontológica a respeito de entidades metafísicas atribuídas à física. Nesse caso a hipótese

pode, até mesmo, ser útil ao pensamento do pesquisador, facilitando uma melhor visualização

da questão abordada ou ajudando a organizá-la, mas é totalmente “inútil” se considerada a

impossibilidade de sua verificação. Esse é o caso das hipóteses indiferentes: elas não são

verificáveis.

Poincaré cita o exemplo da propagação do calor:

Se quiséssemos estudar, em toda sua complexidade, a distribuição da temperatura num corpo que esfria, nunca o conseguiríamos. Tudo se torna simples se pensarmos que um ponto do sólido não pode ceder calor, diretamente, a um ponto afastado, só aos pontos vizinhos. [...] O fenômeno elementar é a troca de calor entre dois pontos contíguos. [...] não será preciso que penetremos seu mecanismo; a lei dos grandes números19 bastará. [...] Cada molécula irradia calor para a molécula vizinha; não é necessário que saibamos que lei rege esse fenômeno. Se fizéssemos alguma suposição a esse respeito, seria uma hipótese indiferente e, em conseqüência, inútil e não-verificável. (1902, p. 123-124, grifos meus).

A verdade e a certeza do espírito, no que concerne à ciência, estão nas leis

matemáticas, como vimos. No exemplo dado por Poincaré, já que dispomos da lei dos grandes

números para dar conta do estudo do fenômeno da propagação do calor e não temos acesso ao

comportamento das partes mínimas da matéria, nada adianta especular sobre essas partes

mínimas. Isso não passaria de uma inserção de elementos ontológicos inverificáveis no

interior das hipóteses físicas.

Veremos no tópico 2.2.2.1 – ‘O convencionalismo físico como epistemologia

evolutiva’ – que, devido ao uso de hipóteses indiferentes, por vezes, duas ou mais teorias

19 A lei dos grandes números diz respeito ao teorema de Bernoulli. Segundo Popper, “o teorema de Bernoulli assevera que os segmentos mais curtos de seqüências causalóides mostram, muitas vezes, grandes flutuações, enquanto que os segmentos longos sempre se comportam de modo que sugerem constância ou convergência; diz o teorema, em suma, que encontramos desordem e aleatoriedade no pequeno, ordem e constância no grande. É a esse comportamento que se refere a expressão “lei dos grandes números”” (1993, p. 195-198, grifos do autor).

57

físicas partilham da mesma estrutura matemática, mas defendem ideias sobre entidades físicas

totalmente distintas.

1.6.1.3 As hipóteses naturais

Resgatando do início dessa seção o único excerto de Poincaré em “A ciência e a

hipótese” que trata sobre as hipóteses naturais:

[...] existem as [hipóteses] que são totalmente naturais e às quais mal nos podemos furtar. É difícil não supor que a influência dos corpos muito distantes é totalmente desprezível, que os pequenos movimentos obedecem a uma lei linear e que o efeito é uma função contínua de sua causa. Eu direi o mesmo sobre as condições impostas pela simetria. Todas essas hipóteses formam, por assim dizer, o fundo comum de todas as teorias da física matemática. E são as últimas que devemos abandonar (grifos meus).

Quanto a ignorar “a influência dos corpos muito distantes”, presumo que Poincaré se

refere à lei newtoniana da gravitação universal, cuja interação se dá entre dois corpos de cada

vez. Porém, quando se estudam as relações entre um planeta e o Sol, como a lei decai com o

quadrado da distância, despreza-se a influência de corpos muito distantes. Entretanto, em

função da nossa percepção limitada pelos nossos sentidos, é natural acreditar que essa

“influência dos corpos muito distantes é totalmente desprezível”. Percebemos o quão familiar

se torna ao espírito essa convergência entre os domínios da física e da matemática, permitindo

que a percepção, mesmo sendo inexata, se corresponda naturalmente com a formalidade

matemática. Assim, se pôde estabelecer uma analogia necessária, prática e objetiva entre

nossas certezas da indução matemática e nossas incertezas da indução física. As hipóteses

naturais correspondem a essas junções criadas pelo espírito e, por isso, “são as últimas que

devem ser abandonadas”. Se nos fixarmos na física, segundo essa perspectiva, a hipótese

natural deriva, em última análise, da aplicação da “lei da homogeneidade” sobre os resultados

das experiências físicas, tornando-os homogêneos e matematizáveis, destacando, assim,

propriedades físicas. Caso isso não fosse possível, a analogia não se estabeleceria. A hipótese

da homogeneidade das propriedades físicas se deve, em grande parte, à escolha da linguagem

adequada ou ao “termo bem escolhido”, como vimos na seção 1.4.1, em que se define a lei

física, preservando-se a forma em detrimento da matéria.

A “lei da homogeneidade” é o instrumento que permite ao espírito retirar de resultados

empíricos particulares, princípios físicos gerais, além de permitir a criação das geometrias

como espaços geométricos análogos ao espaço representativo das percepções.

De todo modo, ainda sobre o excerto acima, quanto à lei linear dos pequenos

movimentos, a causalidade e a simetria, todas são hipóteses que se apóiam na homogeneidade

58

e na aplicação, por analogia, do raciocínio por recorrência sobre a indução física, uma vez que

tais hipóteses mantêm a lei física ligada apenas à forma e a desvinculam da matéria, aliás,

uma característica da física matemática, citada ao final do excerto. A causalidade, em

especial, é um exemplo típico de como a sucessão de eventos singulares e independentes

pode, assim, torná-los homogêneos e semelhantes, destacando um princípio físico imaterial.

Sob esse aspecto, as hipóteses naturais são inverificáveis, uma vez que não mantêm contato

com a materialidade e não podem ser testadas empiricamente.

Veremos na seção 2.2.2 – ‘O convencionalismo físico’ que, segundo Poincaré, os

princípios da mecânica, no sentido que apontamos acima, também são hipóteses naturais não-

verificáveis, além de serem também convenções, cuja forma se mantém pela linguagem, ou

seja, pelo uso dos “termos bem escolhidos”, mas não são verificáveis empiricamente.

1.6.1.4 As hipóteses verificáveis

Como vimos na seção 1.2, todas as leis matemáticas são “verificáveis”. Sua

verificação está ao encargo da lógica e de seu raciocínio tipicamente analítico, ao passo que a

criação das leis matemáticas depende da faculdade da intuição pelo uso do raciocínio por

recorrência e da indução completa. As leis físicas, por outro lado, dependem da indução física

incerta e imprecisa.

Verificar, portanto, para Poincaré, significa estabelecer um vínculo contínuo por meio

de analogias entre a indução matemática e a indução física, conferindo à hipótese física um

estatuto de verdade possível, embora sempre necessite da contínua verificação empírica. Em

outras palavras, sempre que se puder estabelecer um vínculo, por analogia, entre equações

matemáticas e propriedades físicas a hipótese será verificável. Essa verificação se dá através

de experimentos físicos cujos resultados, por indução, possam ser previstos mediante o uso

das mesmas equações matemáticas. As relações expressas pelas equações matemáticas podem

tornar possível a previsão de novos fenômenos físicos, desde que o resultado empírico

confirme o resultado previsto por meio de equações matemáticas e mantenha verdadeira sua

analogia com a hipótese física. De outro modo, as propriedades contidas na lei física, proposta

pela hipótese física, também podem proporcionar a previsão de novos fenômenos físicos por

meio do cruzamento das possibilidades de suas relações causais, ou seja, por indução física;

que posteriormente, por analogia, deverão ser transpostos à linguagem matemática.

As hipóteses verificáveis da física proporcionam, por meio da previsão, o ganho de

novos dados empíricos para que novas hipóteses verificáveis possam dar continuidade à

própria construção do conhecimento nas ciências físicas. Ao longo desse percurso, algumas

59

hipóteses não-verificáveis, como é o caso das hipóteses indiferentes, acabam por se tornar

matematicamente inúteis e as hipóteses que são negadas, nos mostram o caminho que não

deve ser seguido.

O problema reside no fato de que a verificação de uma hipótese não é tão simples.

Ora, devemos nos lembrar que a lei física demarca, por meio de uma linguagem conveniente,

uma determinada propriedade, ou propriedades, que se pretende destacar dentre as relações

experimentais singulares disponíveis, mas “nossa linguagem é toda modelada por ideias pré-

concebidas e não poderia ser diferente” (POINCARÉ, 1902, p. 117). Então, diferentes

generalizações com base em diferentes termos descritivos, provêm de diferentes “idéias pré-

concebidas”. Não há uma orientação comum a todos os pesquisadores da física, justamente

porque, de acordo com Poincaré, a intuição criativa presente em cada um deles pode conduzí-

los a caminhos distintos.

Em última instância, a única linguagem exata e rigorosa para a física é a linguagem

matemática.

Então, como é possível a verificação da hipótese física?

Em primeiro lugar, “graças à generalização, cada fato observado nos faz prever um

grande número deles; só não devemos esquecer que apenas o primeiro é certo e que todos os

demais serão somente prováveis” (POINCARÉ, 2008, p. 225-226) e isso se deve à incerteza

da indução física. Se, porém, se puder estabelecer uma analogia entre a indução física,

proposta por uma dada generalização de fenômenos empíricos, e a indução completa,

afirmada por uma equação matemática, então teremos de propor, novamente, a

homogeneidade de todo esse “grande número” de fatos estabelecendo um conceito comum e

invariável em todos eles, como vimos na seção 1.5.2. Assim, podemos entender esse conceito

de fato homogêneo como o deslocamento dos objetos ideais no interior do espaço geométrico,

e todos esses deslocamentos são analisáveis como grupos matemáticos. Como, segundo

Poincaré, a verdade das relações entre as coisas é expressa matematicamente, a analogia e a

homogeneidade entre leis físicas e matemáticas é o primeiro passo para a verificação da

hipótese física. Segundo Poincaré:

Podemos indagar-nos por que, nas ciências físicas, a generalização tende a assumir a forma matemática. A razão, já agora, é fácil de perceber: não é apenas que tenhamos que exprimir leis numéricas; é que o fenômeno observável se deve à superposição de um grande número de fenômenos elementares, todos iguais entre si. [...] Não basta que cada fenômeno elementar obedeça a leis simples; é preciso que todos os que temos de combinar obedeçam a mesma lei. Só então, a intervenção da matemática pode ser útil (2008, p. 237, grifos do autor).

60

Para combinar os fenômenos de modo a que “obedeçam a mesma lei”, é necessário

que os tornemos “todos iguais entre si”, estabelecendo uma propriedade comum a todos e que

os torne, assim, homogêneos.

Em segundo lugar e, mais importante: “De acordo com Poincaré, a atividade científica

é uma capacidade e não o resultado de uma teoria sobre dados factuais. Padrões de verdade

dependem do contexto científico e permanecem abertos à revisão” (HEINZMANN, 2009, p.

183). Não somente permanecem sujeitos à revisão como podemos comparar diferentes teorias

que surgiram de diferentes hipóteses buscando alguma analogia entre elas, de modo

semelhante ao que fizemos buscando elaborar cada hipótese isoladamente. A diferença, aqui,

é que estamos procurando analogias entre equações matemáticas e, por vezes, é possível

encontrar estruturas matemáticas equivalentes ou, até mesmo, a mesma estrutura matemática

em várias teorias físicas distintas20, encontrando também um padrão de verdade, formal ou

estrutural, comum a todas elas.

1.6.1.5 As hipóteses aparentes ou convenções

Como vimos na seção 1.5.2, já nos é possível perceber que não existe uma verdadeira

geometria do espaço físico, simplesmente porque a escolha dentre as geometrias, segundo

Poincaré, se dá por conveniência, ou seja, dentre essas verdades matemáticas, escolhemos a

que seja mais conveniente à nossa leitura dos fenômenos físicos, uma vez que os

deslocamentos dos corpos no espaço geométrico são entendidos pelo autor como grupos

matemáticos particulares. Assim, as geometrias são ou não convenientes ao propósito a que se

destinam, não são nem verdadeiras nem falsas se as analisarmos pela perspectiva da realidade

física. A verdade na geometria é uma verdade por convenção, ou seja, é por convenção que se

pode escolher qual geometria é mais adequada a estudar o contínuo físico por analogia a um

contínuo matemático, representado por uma das geometrias. Cada estudo dos fenômenos

físicos determinará, por conveniência e por convenção, a escolha de uma dada geometria.

Devido a isso, Poincaré afirma que os axiomas geométricos “São convenções. Nossa

escolha entre todas as convenções possíveis é guiada pelos fatos experimentais” (1902, p. 54,

grifos do autor). Esses axiomas “não passam de definições disfarçadas” e, por isso, são apenas

hipóteses aparentes, uma vez que foram definidas no âmbito matemático e não estão sujeitos à

20 Worral (1989) irá desenvolver esse argumento em favor do realismo estrutural, como veremos na seção 3.3.1 – ‘A conciliação dos opostos aparentes’.

61

verificação empírica; se parecem com hipóteses físicas, mas não passam de definições

formais.

Nossa experiência cotidiana nos faz crer que a geometria mais adequada à nossa

percepção do mundo é a euclidiana. Entretanto, se estivermos pensando em viajar para uma

estrela fora do nosso sistema solar, e se a velocidade com que pretendemos realizar essa

viagem se aproximar da velocidade da luz, então, certamente nossos sentidos não serão bons

guias. Assim, provavelmente teremos de recorrer a alguma das geometrias não-euclidianas

que, certamente, serão ferramentas mais adequadas aos cálculos matemáticos, necessários

para programar nossa viagem. “A experiência nos guia nessa escolha e não a impõe; nos faz

reconhecer qual é a geometria mais cômoda [conveniente] e não qual é a mais verdadeira”

(POINCARÉ, 1902, p. 67, grifo do autor).

Os princípios da mecânica, segundo Poincaré, também são hipóteses aparentes, ou

seja, convenções, justamente por terem perdido totalmente sua materialidade e passado a

compor a base dos experimentos ideais, irrealizáveis empiricamente, mas de grande utilidade

como analogias de ligação entre a física experimental e a matemática.

Nesse caso, entretanto, as convenções obtidas dos princípios da mecânica são únicas e

não podem ser trocadas por outras convenções, pois seu vínculo com a física é permanente; o

uso de uma linguagem adequada reduziu as relações entre os objetos da mecânica e o espaço,

aos próprios princípios dessa mecânica.

De acordo com Poincaré, “as convenções fundamentais da mecânica e as experiências

que nos demonstram que elas são convenientes são feitas sobre os próprios objetos ou sobre

objetos análogos” (1902, p. 111). Os objetos em questão são objetos geométricos ideais e as

experiências não são empíricas, também são idealizadas pelo espírito. Entretanto, não é

apenas a materialidade a questão, mas as relações entre os “objetos mecânicos” (POINCARÉ,

1902, p. 111) que serviram de base para a formalidade dos princípios da mecânica. Se por um

lado, os princípios da mecânica são convenções no sentido de ferramentas formais que

permitem, por convenção, manter a aplicabilidade da indução completa, por meio da analogia

entre as relações físicas experimentais e leis matemáticas, por outro lado, esses princípios

representam as próprias relações físicas experimentais. “Os princípios convencionais e gerais

são a generalização natural e direta dos princípios experimentais e particulares” (POINCARÉ,

1902, p. 111). Os princípios físicos e as geometrias são hipóteses aparentes ou convenções, ou

ainda definições disfarçadas, que desempenham o papel de elo analógico entre as leis físicas e

as leis matemáticas. Em função disso, não mantêm quaisquer características materiais,

embora, segundo Poincaré, sua criação tenha sido guiada pelos fatos experimentais.

Capítulo 2

O convencionalismo de Poincaré

63

2.1 Introdução

Vimos no primeiro capítulo a construção da epistemologia da ciência de Poincaré, sua

metodologia epistemológica e por fim, o múltiplo significado que o conceito de hipótese

ganha sob o olhar intuicionista poincareano. Veremos no presente capítulo como o

convencionalismo atribuído a Poincaré pode ser caracterizado e entendido à luz de sua

epistemologia da ciência.

Examinaremos na seção 2.2.1.1 – ‘As bases para o convencionalismo geométrico’, um

pouco do contexto histórico em que as ideias de Poincaré se desenvolveram, passando por

alguns aspectos filosófico-científicos que ganharam atenção à sua época, como, por exemplo,

o surgimento e a ascensão das geometrias não-euclidianas e o impacto que causaram, assim

como o impulso que produziram no chamado empirismo geométrico.

Veremos também a construção e a definição do convencionalismo de Poincaré sob

dois aspectos: o convencionalismo geométrico e o convencionalismo físico. Em ambos

notaremos que o vínculo analógico decisivo entre as leis matemáticas formais e as leis físicas

materiais terá de se dar, necessariamente, por convenção, seja nas geometrias, seja nos

princípios que embasam as leis da física.

Ao final, veremos alguns aspectos das consequências que a perspectiva epistemológica

poincareana da ciência sugere sobre a construção do conhecimento científico, na visão da

epistemologia evolucionária de Giedymin, que culmina na conciliação de teorias científicas,

por vezes consideradas como antagônicas, no interior de uma mesma verdade formal, sempre

privilegiando o aspecto prático.

64

2.2 Os convencionalismos: geométrico e físico

Como vimos nas últimas seções do capítulo anterior, as convenções (hipóteses

aparentes), as hipóteses naturais, e as hipóteses verificáveis, representam para Poincaré

importantes elos da analogia entre as verdades formais e indubitáveis do espírito e as

propriedades e leis obtidas da interpretação das relações empíricas.

Veremos agora que as convenções poincareanas são sempre formais e representam o

elo analógico decisivo entre o elemento formal matemático e o elemento material físico.

O chamado convencionalismo poincareano pode ser subdividido em dois

convencionalismos distintos e complementares: o convencionalismo geométrico e o

convencionalismo físico.

Veremos o papel que as geometrias (euclidiana e não-euclidianas) ocupam nas teorias

científicas e o porquê de seu estatuto de convenções poincareanas.

As convenções poincareanas na física são inicialmente os princípios da mecânica, mas,

posteriormente, Poincaré atribui a designação de convenções também aos princípios físicos

em geral. Veremos, ao final, como Poincaré chega a essa conclusão e qual o papel que essas

convenções físicas ocupam nas teorias científicas.

2.2.1 O convencionalismo geométrico

2.2.1.1 As bases para o convencionalismo geométrico

Antes de desenvolver a caracterização conceitual do convencionalismo geométrico

poincareano é necessário destacar os elementos da base argumentativa sobre a qual ele foi

construído, além disso, estabelecer as condições históricas no contexto de sua elaboração.

Gillies enfatiza a importância que as geometrias não-euclidianas tiveram no trabalho

de Poincaré; sugere que “é provável que ele tenha primeiro criado o convencionalismo para

dar conta da geometria, e somente mais tarde o estendeu a outras partes da ciência” (1993,

p.75). Não entrarei na discussão do mérito dessa possibilidade apontada por Gillies,

entretanto, ao longo de todo o primeiro capítulo da presente pesquisa, acredito ter deixado

clara minha posição de que as convenções poincareanas são consequências de uma

epistemologia elaborada e consistente, cujo fundamento primeiro é o princípio de recorrência.

65

Não restam dúvidas, porém, sobre o fato de que as geometrias não-euclidianas tiveram

impacto filosófico significativo sobre a posição, até então intocável da geometria euclidiana,

considerada à época como a verdadeira geometria do espaço físico. Consequentemente, a

própria fundamentação das teorias do conhecimento científico sofreriam o impacto dessas

novas geometrias.

Giedymin (1991, p. 1) afirma que “Isso parece ter provocado o seu interesse [de

Poincaré] nos fundamentos da geometria e nas duas principais tradições - racionalismo e

empirismo - que dominavam a filosofia da geometria”. Giedymin se refere ao racionalismo

kantiano e ao empirismo geométrico.

A divergência epistemológica principal entre essas duas tradições conduz à questão: A

origem do conhecimento geométrico é anterior à experiência e independe dela ou é posterior e

derivada dela?

De acordo com Gillies (1993, p.76-77) “Os teoremas da geometria euclidiana [...] ele

[Kant] considerou como necessariamente verdadeiros, e portanto como a priori”. Giedymin,

por sua vez, concorda com Gillies quando assim se refere ao estatuto epistemológico da

geometria euclidiana para Kant: “O espaço e o tempo são formas de nossa sensibilidade, são

condições prévias para qualquer experiência sensível; as verdades da geometria são sintéticas

a priori, ou seja, são baseadas na nossa intuição a priori do espaço” (1991, p. 3).

Assim, a proposta do apriorismo kantiano defende que a base do conhecimento

geométrico é anterior e independente da experiência, deriva somente das “formas de nossa

sensibilidade”.

Passando agora a um panorama histórico, de acordo com Gillies (1993, p. 77)

“Ironicamente a descoberta da geometria não-euclidiana surgiu das tentativas de fazer a

geometria euclidiana ainda mais segura e bem fundamentada”, já que “os antigos geômetras

gregos já haviam levantado questões sobre [...] o quinto postulado” de Euclides, “o postulado

das paralelas”. Assim, de acordo com Gillies (1993, p. 79) “Gerolamo Saccheri (1667-1733)”

tentou desenvolver uma prova por reductio ad absurdum de “que Euclides estava [...] correto.

Mas os resultados de Saccheri, embora estranhos, não eram contraditórios, e eram de fato

teoremas de uma geometria não-euclidiana”. Consequentemente, além de não ter conseguido

confirmar o quinto postulado de Euclides, Saccheri ainda manteve aberta a possibilidade de

novas interpretações sobre o postulado das paralelas, uma vez que a tentativa de prová-lo por

absurdo não foi conclusiva e nada provou.

Segundo Poincaré:

66

Durante muito tempo se procurou, em vão, demonstrar, igualmente, o [...] postulado de Euclides (postulado das paralelas) [por um ponto, só podemos fazer passar uma paralela a uma reta dada]. [...] Enfim, no começo do século (XIX) e quase ao mesmo tempo, dois sábios, um russo e um húngaro, Lobatchevsky e Riemann estabeleceram, de maneira irrefutável, que essa demonstração é impossível. (1902, p. 45).

Ora, se é impossível demonstrar o postulado das paralelas de Euclides, então,

percorrendo caminhos distintos Lobatchevsky e Riemann o negaram, construindo geometrias

distintas da geometria de Euclides, distintas entre si, mas ainda consistentes. Segundo

Poincaré:

Lobatchevsky [...] supõe, no início, que: Pode-se fazer passar por um ponto várias paralelas a uma reta dada; No mais ele conserva todos os axiomas de Euclides. Dessas hipóteses, deduz uma série de teoremas entre os quais é impossível assinalar qualquer contradição e constrói uma geometria cuja lógica impecável não fica nada a dever à geometria de Euclides (1902, p. 46, grifos do autor).

Poincaré admite, entretanto, que os teoremas dessa nova geometria de Lobatchevsky

não nos parecem nem um pouco familiares e as proposições que deles podemos obter “não

tem mais nenhuma relação com as de Euclides” (1902, p. 46). Sobre a geometria de Riemann

Poincaré assim se pronuncia:

Pois bem, a geometria de Riemann é a geometria esférica estendida a três dimensões. Para construí-la o matemático alemão teve de abandonar não só o postulado de Euclides (postulado das paralelas), mas também o primeiro axioma: Só se pode fazer passar uma reta por dois pontos. [...] na geometria de Riemann (pelo menos em uma de suas formas) só passará, em geral, uma reta por dois pontos, mas há casos excepcionais [se os dois pontos dados são diametralmente opostos] em que, por dois pontos, poderão passar uma infinidade de retas. (1902, p. 47, grifos do autor).

O objeto central da questão em torno das novas geometrias diz respeito aos axiomas

indemonstráveis que definem as geometrias. A consistência lógica dessas novas geometrias

foi um fator decisivo no contexto dessa questão. Gillies destaca que, “Finalmente, entre os

anos de 1868 e 1872, o matemático italiano Beltrami e o matemático alemão Klein

publicaram provas da consistência de várias formas de geometrias não-euclidianas com

relação à geometria euclidiana” (1993, p. 83).

Bem, se as geometrias não-euclidianas são logicamente consistentes temos, a partir de

então, que outros conjuntos de axiomas, propostos por outras geometrias, podem se opor

diretamente aos postulados e axiomas de Euclides. Poincaré coloca a questão da seguinte

forma:

Já que várias geometrias são possíveis, é certo que a nossa é verdadeira? Sem dúvida, a experiência nos ensina que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos; mas isso se dá por que operamos com triângulos muito pequenos; a diferença, segundo Lobatchevsky, é proporcional à superfície do triângulo: será que ela não se tornará sensível quando operarmos com triângulos maiores ou quando nossas medidas se tornarem mais precisas? Assim, a geometria euclidiana seria apenas uma geometria provisória. (1902, p. 53).

67

Poincaré se refere à aferição de medidas espaciais para verificar se a geometria

euclidiana permanece verdadeira ou se outra geometria a pode substituir, conforme a proposta

por Lobatchevsky. O empirismo geométrico irá explorar exatamente essa questão, defendendo

que os fundamentos da geometria são derivados da experiência. Giedymin enfatiza que “até a

descoberta das geometrias não-euclidianas, o empirismo geométrico não foi considerado

seriamente”. E, que:

Foi no âmbito das suas especulações inéditas sobre geometrias alternativas à de Euclides que Gauss propôs resolver a questão da geometria do espaço físico por meio de medições terrestres, enquanto Lobatchevsky achou mais promissores os métodos astronômicos para decidir entre Euclides e sua própria geometria. (1991, p. 3).

Esse é o resumo do quadro histórico encontrado por Poincaré logo após a descoberta,

ou construção, das geometrias não-euclidianas. A posição assumida por ele coloca em dúvida,

por um lado, a epistemologia do apriorismo kantiano – que concebe a geometria euclidiana

como uma verdade independente da experiência – por outro lado, a pretensão do empirismo

geométrico em fundar o conhecimento da geometria unicamente sobre base experimental.

2.2.1.2 As críticas ao apriorismo geométrico kantiano

Veremos nesta seção como Poincaré trabalha suas críticas ao apriorismo kantiano em

relação ao advento das geometrias não-euclidianas.

Segundo Giedymin:

É plausível argumentar que de acordo com a filosofia de Kant, o princípio da indução matemática em aritmética é uma verdade sintética a priori; sem isso a aritmética é impossível e não é nem analiticamente verdadeira, nem uma condição de verdade sintética a posteriori. (GIEDYMIN, 1991, p. 3)

Giedymin chama de “princípio da indução matemática” ao princípio de recorrência a

que nos referimos ao longo do capítulo 1 dessa pesquisa. Como já vimos na seção 1.2,

Poincaré concorda com essa posição, derivada de uma interpretação específica dos escritos de

Kant. Mas se essa posição é válida para a aritmética, então, o que muda com relação à

geometria? E já que a questão gira em torno dos axiomas da geometria euclidiana, Poincaré

indaga sobre a natureza desses axiomas:

São juízos sintéticos a priori como dizia Kant? Eles se imporiam, então, a nós com uma tal força que não poderíamos conceber a posição contrária, nem construir sobre ela um edifício teórico. Não haveria Geometria não-euclidiana. (POINCARÉ, 1902, p.53)

68

Poincaré argumenta que, se os axiomas da geometria euclidiana fossem verdades para

o espírito anteriores a qualquer experiência, então, não poderíamos conceber uma construção

racional contrária a eles. Porém, não foi isso o que ocorreu.

Por meio da construção das geometrias não-euclidianas e sua comprovada consistência

lógica, estabeleceram-se novas concepções geométricas, novos teoremas e proposições que,

como vimos, “não tem mais nenhuma relação com as de Euclides” (POINCARÉ, 1902, p. 46)

e contrariam o conjunto dos axiomas da geometria euclidiana, impedindo que ela mantenha o

estatuto de uma verdade sintética a priori. Portanto, os axiomas da geometria euclidiana,

segundo Poincaré, não são juízos sintéticos a priori.

Devido a esse questionamento sobre o apriorismo geométrico kantiano, Gillies (1993,

p.86) entende que “Poincaré considerou a geometria não-euclidiana como uma refutação à

posição kantiana” (grifo meu).

Giedymin, entretanto, argumenta sobre as influências históricas percebidas por

Poincaré e afirma que:

Algumas ideias de como ampliar ou modificar a filosofia da geometria de Kant, Poincaré derivou da teoria da evolução de Darwin; de fato seu ponto de vista epistemológico da geometria tornou-se uma variante da epistemologia evolucionária21. Esta foi uma tendência popular no último quarto do século XIX entre os filósofos – tanto de tendências racionalistas quanto empiristas – que viram o principal objetivo da filosofia na análise epistemológica da ciência e não na busca da metafísica. (1991, p. 4).

Segundo essa abordagem epistemológica evolucionária, a geometria euclidiana não

tem de ser necessariamente negada ou assumida como uma verdade do espaço físico, pois, a

construção do conhecimento científico não deve procurar verdades metafísicas intocáveis,

mas por alternativas que permitam “o sucesso da orientação no espaço”.

Se compararmos a afirmação de Giedymin com a epistemologia poincareana que

vimos no capítulo 1, teremos que, segundo Poincaré, o princípio de recorrência é um juízo

sintético a priori, mas, diferente de sua aplicação na aritmética, no caso da geometria o

raciocínio por recorrência depende das analogias com os deslocamentos de “sólidos ideias,

absolutamente invariáveis” da física; portanto, os axiomas da geometria não podem ser

totalmente a priori, uma vez que o “conceito desses corpos ideais é puro fruto de nosso

21 De acordo com Giedymin “A abordagem evolucionária era contrária à concepção de epistemologia preocupada com a natureza e as leis de uma mente humana imutável. Foi, portanto, contrária à doutrina de uma imutável e universal intuição a priori do espaço e do tempo como a fonte do nosso conhecimento da geometria ou da análise. Se existem elementos a priori em nosso conhecimento, então eles têm de ser explicados em termos de variações, genéticas e de seleção natural. A epistemologia evolucionária, portanto, implica uma certa visão sobre a gênese da geometria em termos do valor para a sobrevivência e o sucesso da orientação no espaço” (1991, p. 4).

69

espírito e a experiência funciona como uma mola que nos impele a elaborá-lo” (POINCARÉ,

1902, p. 67). Além disso, como vimos na seção 1.2, Castro (2001) destaca que, segundo a

lógica intuicionista de Poincaré, o princípio do terceiro excluído não tem necessariamente que

se impor. Nesse caso, a geometria euclidiana não deve ser totalmente refutada, mas sim,

adaptada, ampliada ou modificada, dando continuidade àquilo que Giedymin aqui entende por

uma evolução epistemológica. Giedymin, assim, interpreta que Poincaré não refutou

integralmente a geometria kantiana como sugeriu Gillies.

Ainda sobre o que vimos no primeiro capítulo, se considerarmos que a convenção

geométrica poincareana nasce do raciocínio por recorrência, embora tenha surgido da

necessidade de respaldar o espaço criado pelo contínuo físico, o que Poincaré faz é tornar

objetiva e prática uma ferramenta formal, abrindo mão do conceito de juízo sintético a priori

para a geometria.

Na prática, Poincaré deslocou a criação da geometria do campo puramente formal para

um campo formal e prático, intermediário entre a matemática – esta sim puramente formal – e

a física experimental, unindo, por analogia, o contínuo matemático ao continuo físico. Diante

disso, a geometria euclidiana passou a ocupar, juntamente com as demais geometrias, o

estatuto de convenções, como grupos matemáticos e elos úteis e convenientes à analogia entre

o campo formal e o campo material do conhecimento científico. Poincaré, nesse caso,

rejeitando o uso do princípio do terceiro excluído, defendeu todas as geometrias como

verdadeiras no âmbito matemático e tornou prática a escolha dentre elas em nome da

conveniência empírica.

Se, como vimos, as geometrias são formais e matematizáveis, não é de admirar que se

possam criar, por meio do raciocínio por recorrência, tantas verdades geométricas quantas o

espírito assim o desejar, afinal, a criação matemática se deve à indução completa e depende

exclusivamente do espírito. Ora, se queremos estabelecer um vínculo por analogia entre

resultados empíricos definidos e uma infinidade de geometrias formais, isso somente se dará

por escolha e, é claro que a escolha mais prática e objetiva será a mais conveniente, uma vez

que a exatidão geométrica é inquestionável no âmbito matemático.

O que vimos ao longo do nosso primeiro capítulo corrobora, ainda, com a posição de

Giedymin se considerarmos seu seguinte argumento:

Sob a influência da epistemologia evolucionária os conceitos de útil e utilidade ganharam importância na epistemologia de Poincaré [...] A partir de considerações evolucionárias, bem como da importância de analogias formais em matemática e em ciência, ele concluiu que a verdade [...] não é o único ideal ou critério para a seleção científica: o conhecimento consiste não de quaisquer afirmações verdadeiras, mas sim daquelas que são verdadeiras e úteis (no sentido mais amplo de utilidade prática e teórica). (1991, p. 5, grifos meus)

70

Esse argumento de Giedymin acrescenta uma justificativa através de influências

históricas para a adoção, por parte de Poincaré, de critérios práticos e não somente lógicos,

uma vez que, segundo o que vimos na epistemologia poincareana da ciência, a criação se dá

sobre bases intuitivas; a lógica apenas verifica se os resultados da criação são consistentes.

Assim, Poincaré prefere valorizar a ampliação e a adaptação do que já conhecemos, para

novas formas de conhecer, ao invés de, simplesmente, substituir uma verdade provisória por

outra. Sob essa perspectiva, já nos é possível afirmar que sempre deve haver um elemento de

continuidade entre as formas de conhecer ou entre teorias que se sucedem.

Esse aspecto do conhecimento útil e prático no âmbito do pensamento poincareano

será importante para entendermos, mais adiante, nas seções 2.2.2.1 – ‘O convencionalismo

físico como epistemologia evolucionária’ e 2.2.2.2 – ‘A teoria física e a utilidade’, a

amplitude que se pode dar à filosofia convencionalista de Poincaré, visando uma teoria do

conhecimento voltada à “utilidade prática e teórica” na física.

Para consolidar sua posição convencionalista Poincaré, em seguida, argumentará sobre

a possibilidade de derivar da experiência os axiomas e postulados da geometria. Em outras

palavras, se o empirismo geométrico pode manter uma posição consistente segundo Poincaré.

2.2.1.3 As críticas de Poincaré ao empirismo geométrico

Vejamos uma passagem na obra de Poincaré que se mostra significativa para a análise

do empirismo geométrico

Se a geometria de Lobachevsky é verdadeira, a paralaxe de uma estrela muito distante será finita; se é a geometria de Riemann a verdadeira, ela será negativa. Esses são resultados que parecem estar ao alcance da experiência [...] Mas o que é chamado linha reta em astronomia é, simplesmente, a trajetória do raio luminoso. Portanto, se numa possibilidade extremamente remota se chegasse a descobrir paralaxes negativas ou a demonstrar que todas as paralaxes são superiores a um certo limite, poderíamos escolher entre duas conclusões: poderíamos renunciar a geometria euclidiana ou, então, modificar as leis da ótica e admitir que a luz não se propaga rigorosamente em linha reta. (1902, p. 69).

Grosso modo, podemos explicar a paralaxe de uma estrela como a posição em que a

vemos no céu quando a Terra está num dado ponto de sua órbita em torno do Sol e

compararmos com a posição que a enxergamos quando a Terra está num ponto da sua órbita

em torno do Sol, oposto ao ponto anterior. Se olharmos para a mesma estrela a partir desses

pontos opostos, veremos uma alteração em sua posição; isso é conhecido como desvio de

paralaxe estelar (figura 1).

71

Figura 1

O problema posto por Poincaré diz respeito às conclusões a que podemos chegar a

partir de medições sobre a posição que a estrela ocupa no céu nessas duas posições opostas

que a Terra ocupa em órbita do Sol, ou seja, sobre o desvio de paralaxe. De posse dos

resultados empíricos poderíamos compará-los com as proposições das geometrias de Euclides,

Lobatchevsky e de Riemann e, então, seria possível identificar qual delas é a verdadeira

geometria do espaço físico.

Poincaré argumenta que se tomarmos como referência para uma reta ‘verdadeira’ a

trajetória de um raio de luz, estaremos assumindo como verdadeiras as leis da ótica, que

também foram obtidas de modo empírico, ou seja, são leis físicas e, portanto, demandam uma

eterna verificação empírica, já que a indução física é incerta. Se mesmo assim assumirmos as

leis da ótica como verdadeiras e, “se numa possibilidade extremamente remota se chegasse a

descobrir paralaxes negativas ou a demonstrar que todas as paralaxes são superiores a um

certo limite”, então, certamente teremos de substituir a geometria euclidiana por outra.

Por outro lado, ainda no caso acima, se tomarmos a geometria euclidiana como

verdadeira, assumindo a verdade de seus axiomas e postulados, teremos de assumir também

que a luz não se propaga segundo uma reta euclidiana e, portanto, teremos de modificar as leis

da ótica. Logo, o que fazemos de fato, é escolher dentre as possibilidades a que nos parecer

melhor ou mais conveniente e não a verdadeira, pois não se trata de prova empírica, mas de

escolha. Giedymin destaca uma interpretação similar: “o que Poincaré nega nessa passagem

não é a relevância de qualquer experiência para o problema da geometria do espaço, mas a

72

unicidade da solução do problema com base somente em resultados experimentais” (1991,

p.6, grifo meu). De fato, são duas as varáveis em jogo: as leis físicas – sempre sujeitas a

revisão – e as versões da geometria – tanto a euclidiana quanto as não-euclidianas. Desse

modo, sempre haveria duas escolhas possíveis.

A opção de Poincaré não é escolher entre uma única verdade expressa pela lei física e

uma única verdade geométrica, mas sim, entender todas as geometrias como verdadeiras, uma

vez que seu critério de verdade é matemático, e as geometrias não passam de estruturas

matemáticas criadas por meio do uso da indução completa, ou seja, são sempre verdadeiras

para o espírito que as criou. A lei física sempre dependerá da verificação empírica contínua,

então, na visão de Poincaré, é melhor trabalhar o estudo dos resultados empíricos por meio de

várias ferramentas geométricas verdadeiras e cambiáveis.

Em outras palavras, não faz sentido para Poincaré falar em uma única geometria

verdadeira, pois as geometrias não passam de convenções inspiradas na experiência, mas que

dela não dependem. De fato, para Poincaré esse dilema é resolvido pela escolha; não a escolha

de uma verdade física, mas a escolha dentre as geometrias a que melhor se acomode ao nosso

objetivo prático. As geometrias para Poincaré não passam de ferramentas formais que podem

ser análogas, tanto a leis matemáticas – essas sim verdadeiras – quanto a leis físicas

aproximativas. As geometrias representam o elo convencional entre os contínuos físico e

matemático.

Entretanto, ainda podemos indagar: Seria possível, de fato, por à prova empírica os

axiomas e postulados da geometria euclidiana? E Poincaré assim argumenta:

Construamos um círculo material, meçamos seu raio e sua circunferência e procuremos verificar se a razão entre esses dois comprimentos é igual a π. O que fizemos nesse caso? Fizemos uma experiência, não sobre as propriedades do espaço [geométrico], mas sobre as propriedades da matéria com a qual construímos o círculo e sobre as daquela de que é feito o metro que usamos. (POINCARÉ, 1902, p. 69).

Poincaré chama a atenção para o fato de que não é possível que realizemos

experimentos geométricos ideais: sempre estaremos testando o elemento material, qualquer

que seja nossa pretensão de testar uma condição geométrica ideal. Aliás, essa é a

característica da geometria que a torna confiável como analogia entre a matemática e a física:

ela é formal, não possui materialidade. Portanto, segundo Poincaré, não é possível testar

empiricamente a verdade dos axiomas da geometria.

Mas Poincaré ressalva: “o que a geometria tomaria emprestado à experiência seria,

então, as propriedades desses corpos” (1902, p. 53) e não os próprios corpos físicos e, como

vimos na seção 1.5.2, isso se deve à lei da homogeneidade. Ele mantém, assim, a relação que

73

a geometria guarda com as formas do mundo material, sem que ocorram contradições entre

resultados empíricos e formas geométricas ideais. Em outras palavras, a forma geométrica

deverá sempre corresponder, por analogia, aos corpos físicos materiais.

É desse modo, portanto, que Poincaré justifica o estatuto epistemológico dos axiomas

geométricos; a sua filosofia convencionalista da geometria:

Os axiomas geométricos não são, pois, nem juízos sintéticos a priori, nem fatos experimentais. São convenções. Nossa escolha, entre todas as convenções possíveis, é guiada por fatos experimentais; mas ela permanece livre e só é limitada pela necessidade de evitar qualquer contradição. É assim que os postulados podem permanecer rigorosamente verdadeiros mesmo quando as leis experimentais que determinaram sua adoção são somente aproximativas. Em outras palavras, os axiomas da Geometria (não falo dos da Aritmética)22 não passam de definições disfarçadas. Então o que devemos pensar da pergunta: A Geometria euclidiana é verdadeira? Ela não tem nenhum sentido. É o mesmo que perguntar se o sistema métrico é verdadeiro e as medidas antigas, falsas; se as coordenadas cartesianas são verdadeiras e as polares falsas. Nenhuma Geometria pode ser mais verdadeira do que outra; o que ela pode é ser mais conveniente. (POINCARÉ, 1902, p.54, grifos do autor).

Portanto, reiterando, não faz sentido tentar atribuir às geometrias o estatuto de

verdades, nem a priori, nem empíricas, pois elas são verdades formais do espírito; por esse

aspecto não faz sentido procurar uma geometria que seja mais verdadeira que as demais. As

convenções geométricas poincareanas, a meu ver, evidenciam, principalmente, a importância

com que a utilidade é contemplada na epistemologia da ciência de Poincaré, privilegiando o

equilíbrio entre exatidão e objetividade. Seguindo esse raciocínio, desde que uma convenção

se mostre mais útil e evite contradições, tanto com leis matemáticas quanto com leis físicas,

dando conta satisfatoriamente das relações empíricas e resultados empíricos observados, não

há porque evitar sua adoção ou uma possível troca de convenções geométricas. Poincaré se

manteve fiel a esse critério prático e assim o defendeu quando uma nova mecânica estava

emergindo:

Qual será a nossa posição diante desses novos projetos? Será que vamos ser forçados a mudar as nossas conclusões? Certamente não: adotamos uma convenção porque nos parecia cômodo, e disse que nada poderia nos forçar a abandoná-la. Hoje alguns físicos querem adotar uma nova convenção. Não que eles sejam obrigados a isso, eles julgam esta nova convenção mais cômoda, e isso é tudo; e aqueles que não são deste parecer, poderão legitimamente manter a velha ordem para não perturbar os seus velhos hábitos. Eu acho que, entre nós, isso é o que eles farão por um longo tempo. (1913, p. 54).

Mesmo ainda confiante na manutenção da geometria euclidiana como a mais

conveniente aos propósitos da física, Poincaré manifesta claramente que a adoção de uma

convenção geométrica é uma simples questão de escolha por parte do pesquisador.

22 Como vimos na seção 1.2, Poincaré não nega que os axiomas da aritmética sejam verdades sintéticas a priori, mesmo porque, as propriedades básicas da aritmética nascem da aplicação original do princípio de recorrência, ou seja, da afirmação direta de uma propriedade do espírito.

74

2.2.2 O Convencionalismo físico

A argumentação que Poincaré usou para defender sua perspectiva convencionalista da

física mecânica se mantém muito parecida com a que usou na defesa de seu convencionalismo

geométrico. Ou seja, Poincaré exemplifica que os princípios da mecânica são convenções por

dois motivos básicos: (1) não são verdades que se impõem a priori ao espírito e (2) os

resultados empíricos não podem negá-los. Ou seja, as leis da mecânica de Newton não podem

ser, segundo Poincaré, nem anteriores a qualquer resultado empírico e nem derivadas desses

resultados.

Sobre o princípio da inércia, Poincaré se questiona:

Um corpo que não está submetido a nenhuma força só pode ter um movimento retilíneo e uniforme. Será que essa é uma verdade que se impõe a priori ao espírito? Se fosse assim, como a teriam ignorado os gregos? Como teriam eles podido acreditar que o movimento pare com a cessação da causa que lhe dera origem, ou ainda, que todo corpo, se não há nada que o impeça, se movimentará em círculo, o mais nobre de todos os movimentos?(1902, p. 82)

De modo semelhante ao argumento que usou para a geometria, Poincaré nega assim a

possibilidade de que esse princípio físico pudesse ser um conhecimento totalmente

independente da experiência e, portanto, nega seu estatuto a priori.

Novamente, a exemplo dos argumentos usados na geometria, Poincaré irá se voltar aos

experimentos ideais que pressupõem “corpos que não estivessem sob a ação de nenhuma

força” e sobre a impossibilidade empírica da verificação da ausência de forças, além, é claro,

da gravidade que não pode ‘desaparecer’ em momento algum e sempre estará presente

empiricamente, seja qual for o experimento. A conclusão a que se chega é análoga à

conclusão que o autor chegou sobre as tentativas de realização de experiências materiais com

a geometria: não é possível realizar um experimento que coloque à prova um princípio ideal,

uma vez que o único subsídio para esse experimento é material. Logo, os princípios da

mecânica são convenções desprovidas totalmente de conteúdo material e restritas ao seu

formalismo, embora a experiência as tenha inspirado. Assim como no caso dos axiomas da

geometria, as leis da mecânica são construídas sob “termos bem escolhidos” que permitiram

destacar somente os conceitos e propriedades de corpos sólidos ideais, inacessíveis ao

experimento empírico, mas acessíveis ao experimento puro racional; assim, a lei da

homogeneidade, como vimos na seção 1.5.2, torna possível a correlação entre as leis

matemáticas e as leis da mecânica.

75

Segundo o que vimos quando analisamos a epistemologia de Poincaré, a conclusão

não poderia ser diferente. A condição formal é a única razão pela qual o princípio físico pode

nos ser útil.

Segundo Poincaré, “os princípios da dinâmica nos pareciam, de início, verdades

experimentais, mas fomos obrigados a usá-los como definições. É por definição que a força é

igual ao produto da massa pela aceleração” (1902, p. 90); o experimento não pode alcançar

essa idealização conceitual, pois, novamente, estaremos testando a materialidade e não o

princípio. Assim ocorre também com a “definição que a ação é igual a reação” (1902, p. 90).

A conclusão de Poincaré é enfática: “Fica, agora, assim explicado como a experiência pôde

servir de base aos princípios da Mecânica que, contudo, nunca poderá contradizer”

(POINCARÉ, 1902, p.90, grifos do autor).

Se por um lado os princípios da mecânica são construções ideais (formais), por outro

lado, foram edificados segundo uma rigorosa analogia entre as relações empíricas e a análise

pura, por meio da lógica matemática, garantindo a não-contradição no princípio formal.

Pode parecer contraditório dizer que “a experiência pôde servir de base” para as

convenções, tendo em vista essa crítica ao empirismo, ou seja, a impossibilidade de

verificação empírica de tais convenções. Entretanto, de acordo com o exposto por Poincaré, as

convenções tiveram apenas a inspiração intuitiva inicial com base na descoberta de

propriedades comuns a uma grande variedade de experiências singulares; a partir de então,

por meio da lei da homogeneidade essas relações empíricas particulares deram lugar a

propriedades formais que já não mais podem ser colocadas à prova empiricamente. O

princípio formal perde o vínculo com o experimento material.

O experimento fornece apenas um indício particular da relação empírica; vários

experimentos singulares fornecem propriedades, por meio do uso da intuição, que o princípio

generaliza sob bases formais. A homogeneidade e a consistência formal das convenções,

mediante uma generalização não-contraditória com os eventos empíricos singulares, promove

sua independência da condição empírica. Como? Por meio das relações dadas por analogia

com convenções geométricas e com leis matemáticas.

Entretanto, adverte Poincaré, se a inexistência da materialidade no princípio físico

impede que a experiência venha a negá-lo, o mesmo não ocorre com as hipóteses e teorias

físicas. Estas carregam consigo equações matemáticas e expressam relações formais, mas

também se valem de descrições ontológicas. Recordando o que já vimos na seção 1.6, as

descrições ontológicas que participam da teoria física não passam de imagens do mundo que

podem, até mesmo, ajudar o pesquisador a organizar ou ilustrar suas ideias, entretanto, no

76

campo prático das relações entre as coisas, não passam de hipóteses indiferentes e, portanto,

hipóteses inverificáveis que não trazem consigo qualquer utilidade prática, pois não podem

ser comprovadas empiricamente.

Constatamos, portanto, que Poincaré manteve com relação ao seu convencionalismo

físico, um movimento argumentativo análogo ao adotado na construção de seu

convencionalismo geométrico.

Assim como as geometrias, os princípios físicos são tentativas formais bem sucedidas

de vincular, por meio da analogia e de “termos bem escolhidos” da linguagem descritiva, as

leis matemáticas e as leis físicas, como vimos no capítulo 1. Direi que, nessas circunstâncias,

somente por convenção se pode estabelecer o vínculo entre o formal e o material. O “termo

bem escolhido” a que se referiu Poincaré é um termo de linguagem conveniente e usado tanto

para delimitar o alcance de leis matemáticas, quanto de leis físicas, separadamente.

Entretanto, quando usamos termos bem escolhidos para estabelecer um vínculo direto, formal

e matematizável entre leis físicas e leis matemáticas, que é o caso das geometrias e também

dos princípios físicos, esse vínculo sempre se dará por convenção, pois o próprio “termo bem

escolhido” representa um vínculo convencional entre propriedades empíricas que o espírito

tornou homogêneas e formais, e propriedades matemáticas convenientes a esses princípios e

geometrias. O vínculo decisivo na analogia entre leis matemáticas e leis físicas sempre será

uma convenção, é por isso que teorias físicas não podem prescindir das convenções. As

teorias físicas partem de pressupostos para que possam ser edificadas. Segundo Poincaré:

Toda conclusão supõe premissas; essas premissas ou são evidentes por si mesmas e não precisam de demonstração, ou, então, só podem ser estabelecidas apoiando-se em outras suposições, e como não poderíamos continuar assim indefinidamente, toda ciência dedutiva, e particularmente a geometria, deve se basear num certo número de axiomas indemonstráveis. (1902, p. 45).

Poincaré se refere, nesse excerto, especificamente à geometria, porém, o mesmo

argumento se aplica aos princípios físicos, pois as teorias físicas também partem de princípios

indemonstráveis e necessários e, somente então, se torna possível deduzir consequências dos

resultados obtidos por meio das relações empíricas.

Entretanto, na prática, ocorre uma diferença marcante entre as convenções geométricas

e as convenções físicas: podemos escolher dentre as convenções geométricas as que nos serão

mais convenientes, porém, segundo Poincaré, os princípios físicos não podem ser trocados por

outros princípios físicos; os princípios físicos serão sempre únicos, como vimos na seção

1.6.1.5, e não estão sujeitos à negação empírica, pois se referem às relações expressas pelas

propriedades dos objetos da mecânica e deles não podem se desligar. Veremos na próxima

77

seção um detalhamento dos motivos que, segundo Poincaré, levam os princípios da mecânica

a serem insubstituíveis.

2.2.2.1 O convencionalismo físico como epistemologia evolucionária

Como vimos na seção 2.2.1.2, Giedymin (1991) considera o convencionalismo

poincareano uma epistemologia evolucionária e em sua defesa usa elementos adicionais

externos aos escritos de Poincaré.

Para Giedymin, Poincaré segue o caminho das considerações evolucionárias

associadas às analogias formais entre a matemática e a física. Sob essa ótica “a verdade [...]

não é o único ideal ou critério para a seleção científica: as afirmações têm de ser “verdadeiras

e úteis” (no sentido mais amplo de utilidade prática e teórica)”, como já foi citado.

Mas, até que ponto Poincaré valoriza a “utilidade prática”?

Destaco dois pontos: (1) sua rejeição intuicionista ao princípio do terceiro excluído,

como vimos nas seções 1.2 e 2.2.1.2; e (2) a vida útil dos princípios da mecânica.

Vejamos a seguinte passagem

Quando um físico constata uma contradição entre duas teorias que lhe são igualmente caras, diz, por vezes: Não nos preocupemos com isso, mas seguremos com firmeza as duas pontas da corrente, mesmo que os elos intermediários nos pareçam ocultos. Essa argumentação de teólogo embaraçado seria ridícula, se tivéssemos que atribuir às teorias físicas o sentido que lhes dão as pessoas leigas. Em caso de contradição pelo menos uma delas deveria ser considerada falsa. Mas a situação já não será a mesma se procurarmos apenas aquilo que deve ser procurado. É possível que uma e outra exprimam relações verdadeiras e que só haja contradição nas imagens de que revestimos a realidade. (POINCARÉ, 2008, p. 240, grifos meus).

Não há como supor que a íntegra de uma teoria científica seja verdadeira, uma vez que

sua verificação empírica nunca cessa. O cientista dispõe, quando muito, de equações

matemáticas e de dados empíricos retirados de experimentos isolados entre si e reunidos sob

uma aparência consistente e, justamente por isso, está sujeita continuamente à revisão. A

matemática se mostra exata, mas é abstrata. Assim, a continuidade do exercício da pesquisa

necessita, não raramente, da construção de imagens que ajudem a manter coesa essa

construção teórica. Tais imagens derivam unicamente das metáforas possíveis entre algo que é

conhecido pelo cientista e aquilo que aparentemente se comporta como esse algo que ele

conhece.

Em função do exposto, não faz sentido, para Poincaré, escolher uma dentre duas

teorias que se mostram aparentemente contraditórias, já que, retiradas tais imagens ilustrativas

e metafóricas, podem estar ocultas relações verdadeiras em ambas. Aplicar nesse caso o

princípio do terceiro excluído poderia significar a rejeição de relações verdadeiras.

78

Já nos é possível deduzir que Poincaré está se referindo às hipóteses indiferentes:

As hipóteses desse gênero, portanto, têm apenas um sentido metafórico. O cientista deve privar-se tão pouco delas quanto o poeta se proíbe as metáforas, mas deve saber que valor elas têm. Tais hipóteses podem ser úteis para dar satisfação ao espírito e não serão nocivas, desde que sejam apenas hipóteses indiferentes. (POINCARÉ, 2008, p. 241).

Poincaré se vê obrigado a admitir um recurso metafórico em nome da criação

científica e, em contrapartida, precisa admitir também a possibilidade da coexistência de

possíveis relações verdadeiras com esses recursos metafóricos. Lembrando que essas relações

verdadeiras só podem derivar das relações matemáticas e das geometrias, portanto relações

formais; enquanto que os recursos metafóricos se referem às descrições ontológicas ou

simples imagens ilustrativas. Esse é um dos principais motivos pelo qual Poincaré rejeita,

nessas circunstâncias, o uso do princípio do terceiro excluído. Entretanto, sob a ótica que ele

examina esses motivos, de fato, não se trata literalmente da rejeição do princípio do terceiro

excluído, mas de evitar que ele seja erroneamente aplicado e acabe por descartar totalmente

uma teoria que pode conter partes verdadeiras e úteis.

Em outras palavras, Poincaré não quer abrir mão das relações verdadeiras que podem

estar ocultas na parte de cada uma das teorias que está empiricamente inacessível, assim, a

única atitude prática possível é manter em uso essas teorias, mantendo em segundo plano suas

aparentes contradições, até que novos resultados empíricos nos permitam visualizar “os elos

intermediários [que] nos pareçam ocultos”.

Ainda quanto à “utilidade prática” em Poincaré, o segundo ponto a que me referi diz

respeito à vida útil dos princípios físicos.

Segundo a exposição de Poincaré, os princípios da mecânica são convenções, como

vimos na seção 2.2.2, e, consequentemente, não sofrem a ação da negação empírica, mas,

além disso, não são substituíveis, uma vez que foi por analogia com as propriedades dos

objetos empíricos da mecânica que esses princípios foram idealizados. Eles não podem perder

o vínculo que mantém com as propriedades formais inspiradas nos objetos empíricos, uma

vez que tais propriedades não mudam empiricamente. Isso pode nos levar a acreditar que o

uso dos princípios da mecânica nas teorias físicas nunca cessará. Entretanto, o uso dos

princípios da física está vinculado, segundo Poincaré, a um aspecto prático de utilidade.

No excerto que segue Poincaré trata sobre o uso prático dos princípios nas teorias

físicas e, nesse caso, já nos é possível perceber que tais princípios recebem o mesmo

tratamento das leis da mecânica newtoniana, ou seja, são convenções. Eles não estão sujeitos

à verificação empírica nem, tampouco, à substituição por outra convenção. Sobre “o papel de

79

alguns princípios gerais, como o princípio da mínima ação ou o da conservação de energia”,

Poincaré afirma:

Esses princípios são de altíssimo valor: foram obtidos ao se investigar o que havia de comum no enunciado de numerosas leis físicas; assim, representam como que a quintessência de inúmeras observações. [...] Todavia, [...] Como não podemos fornecer uma definição geral da energia, o princípio da conservação da energia significa, simplesmente, que há alguma coisa que se mantém constante. [...] ele significa que as diferentes coisas a que damos o nome de energia estão ligadas por um parentesco verdadeiro; afirma entre elas uma relação real. [...] como saberemos reconhecer o momento em que ele [o princípio da conservação da energia] houver atingido toda a extensão que podemos legitimamente atribuir-lhe? Muito simplesmente, quando ele deixar de nos ser útil, isto é, de nos levar a prever novos fenômenos sem errar. Nesse caso, teremos certeza de que a relação afirmada já não será real, pois, caso contrário, ele seria fecundo; a experiência, sem contradizer diretamente uma nova extensão do princípio, tê-lo-á condenado, no entanto. (POINCARÉ, 2008, p. 242-243, grifos do autor).

O fato de terem sido obtidos por meio da lei da homogeneidade, como vimos na seção

1.5.2, destacou nesses princípios somente os aspectos formais das propriedades que

participam de numerosas leis físicas. Tais propriedades podem nos levar a prever uma ampla

gama de resultados empíricos com base no cruzamento das propriedades específicas presentes

em cada uma daquelas numerosas leis físicas e os aspectos formais das propriedades que os

princípios conservam comuns a todas elas.

O princípio somente deixará de ser útil quando não mais se puder prever resultados

empíricos com base no cruzamento entre suas propriedades e as propriedades específicas de

uma teoria qualquer que com ele queiramos relacionar.

Segundo o excerto, nós “não podemos fornecer uma definição geral de energia”, pois

o termo “energia” é um “termo bem escolhido” que delimita uma propriedade imaterial, como

vimos na seção 1.4.1, e esse termo é útil em uma grande quantidade de teorias físicas. O

princípio da conservação da energia foi elaborado por meio da comparação das propriedades

intrínsecas a essas leis. Entretanto, como por meio da sua negação empírica não podemos

testar a propriedade imaterial inerente ao princípio, temos de tentar afirmá-la até o limite de

seu uso prático.

É por meio da “utilidade prática e teórica” dos princípios físicos que podemos

determinar, por exemplo, até onde chegam as consequências empíricas da “relação real” e do

“parentesco verdadeiro” entre “as diferentes coisas a que damos o nome de energia”.

Quando a afirmação empírica do princípio não surtir efeito prático em uma nova

aplicação, naturalmente ele perderá sua utilidade nesse ramo de aplicação.

Portanto, a verificação dos princípios da física não se dá pela negação empírica, como

ocorre com as hipóteses verificáveis, mas pela afirmação experimental do princípio físico até

que ele atinja os limites de sua utilidade.

80

Esse é o modo prático que Poincaré encontra para justificar positivamente como o

princípio físico pode render a plenitude de sua produtividade científica sem nunca poder ser

negado empiricamente.

2.2.2.2 A teoria física e a “utilidade prática”

O primeiro ponto da “utilidade prática e teórica” que acabo de expor permite uma

constatação simples no mundo científico: é possível a elaboração de diversas teorias diante

dos resultados empíricos expostos pelos experimentos.

Segundo Giedymin, os “resultados experimentais nunca nos impõem uma única

solução teórica”, a “característica do convencionalismo de Poincaré é justamente a rejeição da

unicidade e uma nova concepção de hipóteses científicas como convenções” (1991, p.7).

Desse modo, de acordo com a perspectiva de Poincaré, podemos afirmar que as muitas

hipóteses verificáveis da física, como vimos na seção 1.6.1.4, podem coexistir enquanto

convenções, e dividir espaço teórico com hipóteses indiferentes, como vimos na seção 1.6.1.2,

sempre procurando a maior consistência teórica possível, com base nas escolhas intuitivas de

cada pesquisador, ao interpretar o conjunto de resultados obtidos dos experimentos.

Com base nas ideias de Poincaré, as geometrias participam desse critério de escolhas

convenientes e, assim, o uso de uma ou de outra geometria será regido, também, pelo critério

de utilidade, ou seja, com base na correlação mais conveniente a dar conta dos resultados

empíricos na teoria física em estudo.

Temos então, segundo uma perspectiva que obtivemos a partir da classificação inicial

de Heinzmann (2009) e abordamos na seção 1.6.1, sobre as hipóteses em Poincaré que estão

presentes nas teorias físicas: hipóteses verificáveis (equações matemáticas), hipóteses

indiferentes (elementos ontológicos e metáforas), convenções físicas (princípios físicos

insubstituíveis) e convenções geométricas (geometrias escolhidas por conveniência).

Giedymin apresenta uma leitura peculiar de utilidade em Poincaré e afirma que “a

geometria física é uma família de sistemas observacionalmente equivalentes de geometria-

mais-física, que diferem entre si no que diz respeito a ontologias experimentalmente

indistinguíveis” (1991, p. 8, grifos meus).

Certamente, quando Giedymin fala de “ontologias experimentalmente indistinguíveis”

no interior das teorias científicas de uma mesma família, se refere às hipóteses indiferentes

que carregam a característica de inverificabilidade e, por isso, são indistinguíveis.

Segundo Giedymin (1991, p. 8), os “membros de uma família de teorias

observacionalmente equivalentes compartilham uma estrutura matemática ou [...] uma

81

correspondência pode ser estabelecida entre suas estruturas [matemáticas]”. Ou seja, de

acordo com a análise empreendida sobre o papel das hipóteses na seção 1.6.1, podemos

afirmar que Giedymin está identificando as características semelhantes entre teorias que

partilham hipóteses verificáveis (equações matemáticas) e convenções geométricas, mas, no

tocante às suas hipóteses indiferentes essas teorias são contraditórias.

É justamente por isso que Giedymin pode chamá-los de membros de uma mesma

família de teorias, pois, de acordo com a epistemologia poincareana, os elementos úteis a

essas teorias são os mesmos, ou são análogos, em cada uma delas; com a vantagem de

partilharem diferentes aspectos de resultados empíricos que podem ter sido obtidos de modos

diferentes, sob diferentes interpretações ou em diferentes ramos da física. A “utilidade

prática” está presente na conciliação das teorias de uma mesma família destacando a “relação

real” e o “parentesco verdadeiro” que mantêm, e ignorando o aspecto ontológico ou

metafórico de suas hipóteses indiferentes, inúteis sob esse ponto de vista prático.

Se eliminarmos as diferenças ontológicas e puramente descritivas presentes nessas

teorias e destacarmos somente seus aspectos úteis, ou seja, aqueles que por analogia permitem

a correspondência entre as leis matemáticas e as leis físicas, estaremos destacando uma única

teoria que, entretanto, reúne uma ampla gama de aspectos favoráveis e úteis à física. É isso o

que Giedymin propõe:

Uma teoria física é uma família de teorias observacionalmente equivalentes que partilham a mesma estrutura matemática (ou: que suas estruturas matemáticas são equivalentes) e que diferem em relação a ontologias experimentalmente indistinguíveis. (1991, p. 15).

Giedymin preserva, assim, dentro de uma mesma teoria física, as características úteis e

comuns a todos os membros da família de teorias físicas, mantendo a estrutura matemática

(ou estruturas matemáticas equivalentes) que conserva(m) a parte verdadeira (a indução

completa), exata e rigorosa (a lógica matemática), cuja analogia com as propriedades físicas

obtidas das relações empíricas confere confiabilidade à teoria física conciliadora.

• • •

Essa proposta de Giedymin me parece consistente com os fundamentos

epistemológicos poincareanos que desenvolvemos ao longo do primeiro capítulo dessa

dissertação.

Caso nada soubéssemos sobre a epistemologia de Poincaré, nos pareceria uma

contradição colocar teorias incompatíveis dentro de uma mesma família de teorias físicas.

82

Entretanto, de posse do que vimos anteriormente, se considerarmos a atitude prática que

Poincaré sugere, preservando os elementos que podem representar uma verdade científica –

ou seja, a estrutura geométrica e a estrutura matemática – e desconsiderando as hipóteses

indiferentes inverificáveis que mantém em seu interior elementos ontológicos ou metafóricos,

essa tese de Giedymin é consistente com a epistemologia de Poincaré, pois é consequência

dela. Em outras palavras, por meio do fundamento epistemológico poincareano é possível

concluir em favor da tese de Giedymin, porém, o caminho inverso não se sustenta, pois

faltariam elementos de fundamentação como o princípio de recorrência, por exemplo.

Do mesmo modo, as convenções ocupam uma função importante e específica da

epistemologia poincareana, mas tentar derivar do convencionalismo toda epistemologia

poincareana seria inútil e impraticável, pois precisaríamos de fundamentos poincareanos

anteriores às convenções e que, portanto, não são derivados delas.

Assim, conclui-se que o convencionalismo poincareano é uma classificação restrita da

filosofia da ciência de Poincaré, embora de suma importância.

Veremos no capítulo 3 – ‘O realismo estrutural epistemológico’, que a proposta de

Worrall, também com base em Poincaré, é justamente de interpretar essa mesma estrutura

formal que permanece no interior das teorias – ou dos membros de uma mesma família de

teorias, como diria Giedymin – como a única realidade que persiste, ou seja, a realidade

estrutural matemática presente nas teorias físicas, e que se transfere às próximas teorias.

Capítulo 3

O realismo estrutural epistemológico

84

3.1 Introdução

De acordo com o caminho percorrido até aqui, no capítulo 1 vimos como se dá o

processo de criação e verificação do conhecimento científico segundo a epistemologia da

ciência de Poincaré. No capítulo 2, analisamos como pode ser entendido o convencionalismo

poincareano a partir dos fundamentos epistemológicos desenvolvidos ao longo do capítulo 1,

e como se torna restrita a denominação de convencionalismo para dar conta de sua

epistemologia. No presente capítulo seguirei um percurso semelhante ao que usei no segundo

capítulo, analisando como Poincaré pode ser entendido como realista estrutural, a partir de sua

epistemologia da ciência.

O debate entre realistas científicos e antirrealistas pode ser analisado, grosso modo,

por meio da questão: As teorias científicas mantêm algum vínculo com a realidade?

No artigo publicado por Worrall em 1989 – Structural Realism: The Best of Both

Worlds? – o autor propõe resolver essa questão respondendo, segundo ele, de “maneira

razoável” aos dois argumentos mais relevantes nesse debate: o argumento do milagre e o

argumento da meta-indução pessimista.

Poincaré está inserido nesse debate de dois modos: (1) Worrall se apóia nos escritos

poincareanos para propor seu realismo estrutural e afirma que, tanto a solução quanto os dois

principais argumentos desse debate estão presentes na obra de Poincaré publicada em 1902;

(2) Worrall classifica Poincaré como realista estrutural com base nas posições filosóficas

sustentadas por ele em suas obras filosófico-científicas.

Entretanto, a argumentação que Worrall usou da obra de Poincaré para apoiar sua

proposta de realismo estrutural está reduzida a uns poucos excertos que, embora sejam

adequados ao seu objetivo, não contemplam os fundamentos epistemológicos poincareanos.

Em outras palavras, Worrall usou uma parte muito restrita da obra de Poincaré, mas que foi

suficiente para dar conta da formalização de seu realismo estrutural.

Para desenvolver o problema que Worrall se propôs resolver, inicialmente, tratarei de

expor, na seção 3.2, o que defende o realismo científico, já que a posição contrária – o

antirrealismo – nega o que vou expor. Em seguida tratarei dos dois principais argumentos que

Worrall tomou como referências em seu artigo: o “argumento sem milagres” favorável ao

realismo científico; e o “argumento da meta-indução pessimista” em favor do antirrealismo e,

é claro, contrário ao realismo científico.

85

Definido o problema passaremos, então, à solução proposta por Worrall apoiada nos

escritos de Poincaré, principalmente na seção 3.3.1. Em seguida, tratarei de alguns temas que

se relacionam com a solução de Worrall e problematizam a conexão entre a realidade e as

estruturas matemáticas.

Como já havia dito na introdução dessa dissertação, não entrarei no mérito da

discussão que o realismo estrutural gerou em torno de si, apenas me limitarei às questões que

são relevantes à epistemologia poincareana. Assim, discutirei brevemente sobre a opção de

Poincaré, ou seja, se ele se mostra realista ou antirrealista; e usarei a proposta formal do

“argumento do milagre” de Putnam, em seu viés voltado ao realismo para examinar como

essa perspectiva se aplica à epistemologia de Poincaré.

Finalmente, tratarei dos rumos do conhecimento científico, de acordo com uma visão

histórica empreendida por Poincaré, destacando duas perspectivas que emergem da busca pela

“ordem geral do universo”, e que nos remetem à questão: “A ciência caminha em direção à

unidade e à simplicidade” ou “para a variedade e a complicação”? (POINCARÉ, 1902, p.

134).

86

3.2 O problema de Worrall: realismo X antirrealismo

Percebemos ao longo do capítulo 1 que Poincaré parte das verdades do espírito para

chegar à realidade objetiva, ou seja, ele inicia seu percurso que vai da matemática para a

física, por meio das verdades matemáticas criadas pelo próprio espírito e, por fim, a verdade

matemática se projeta, por analogia, nas possíveis verdades da física, o que interpretei como

um equilíbrio necessário entre exatidão e objetividade. A realidade objetiva seria, justamente,

o resultado da projeção das verdades matemáticas nas relações empíricas.

Por esse motivo, darei preferência a uma definição de realismo proposta por van

Fraassen, em que o movimento argumentativo vai da verdade rumo à realidade, como em

Poincaré. Assim, segundo van Fraassen, “o enunciado correto do realismo científico” é: “A

ciência visa dar-nos em suas teorias um relato literalmente verdadeiro de como o mundo é, e a

aceitação de uma teoria científica envolve a crença de que ela é verdadeira” (1980, p. 27).

No enunciado de van Fraassen encontramos a presença de um elemento ontológico –

“como o mundo é” – pois as descrições ontológicas dividem espaço teórico com as relações

matemáticas no interior das teorias científicas; crer na verdade da teoria pode significar a

crença também nessas descrições ontológicas, ou como exemplifica Chibeni, “entidades e

processos não-observáveis (elétrons, campos magnéticos, ligações moleculares, etc.)

postulados pela ciência para predizer e explicar os fenômenos” (1996, p. 2), embora a posição

de Poincaré seja favorável somente à verdade das relações matemáticas transpostas, por

analogia, às relações empíricas.

Esse é um ponto que divide as opiniões a respeito da posição de Poincaré: ele é um

realista ou um antirrealista?

Segundo French, por exemplo, “Poincaré, é claro, não era realista”, pois, “insistiu que

através da mudança de teoria o que são preservadas são as equações, e a ‘natureza’ das coisas

está escondida do nosso olhar epistêmico” (2006, p.171); a perspectiva de French leva em

conta que Poincaré nega as “imagens do mundo” que participam das teorias e que não passam

de hipóteses indiferentes, como vimos na seção 1.6.1.2.

Entretanto, segundo Worrall, é a permanência de um elemento de continuidade no

interior das teorias que permite a passagem da verdade contida numa teoria obsoleta para uma

nova teoria, ou ainda, como diria Giedymin, a mesma estrutura matemática (ou estruturas

matemáticas equivalentes) que participa(m) de todos os membros de uma mesma família de

teorias, é a própria estrutura matemática da realidade; para Poincaré, essa seria a verdade

87

matemática projetada na realidade objetiva das relações empíricas. Como sabemos, segundo

Poincaré, “a única realidade objetiva são as relações entre as coisas” (1904, p. 170), mas ainda

permanece presente uma relação de verdade impressa nessa realidade objetiva das estruturas

matemáticas e, por isso, na visão de Worrall, Poincaré é um realista estrutural, ou seja, um

realista quanto à projeção de nossa verdade matemática objetiva, na própria objetividade das

relações experimentais da física.

Estamos, assim, caminhando sobre um limite muito estreito, entre o que é ser realista

ou não, diante dos motivos pelos quais as opiniões se dividem.

De todo modo, antes de nos aprofundarmos nesses pormenores precisamos tratar do

que está em jogo na argumentação, tanto favorável quanto contrária, a respeito do realismo

científico, por ocasião da proposta de Worrall. Nesse sentido, veremos inicialmente o

principal argumento em favor do realismo científico – o “argumento sem milagres”.

3.2.1 O argumento sem milagres

O “argumento sem milagres”, conhecido também como “argumento do milagre” ou

“argumento do não milagre”, recebeu sua formalização mais aceita23 por meio das palavras de

Putnam:

O argumento positivo para o realismo é que ele é a única filosofia que não faz do sucesso da ciência um milagre. Que os termos em teorias científicas maduras são tipicamente referenciais (essa formulação é devida a Richard Boyd), que as teorias aceitas numa ciência madura são tipicamente aproximadamente verdadeiras; que o mesmo termo pode referir-se à mesma coisa mesmo quando ela ocorre em diferentes teorias - estas declarações são vistas pelo realista científico, não como verdades necessárias, mas como parte da única explicação científica do sucesso da ciência e, portanto, como parte de qualquer descrição científica adequada da ciência e suas relações com seus objetos. (1975, p. 73).

Grosso modo, quando Putnam se refere a “teorias científicas maduras” faz menção às

teorias recorrentemente usadas para dar conta da explicação e da previsão de resultados

empíricos e que, portanto, tem sido amplamente testadas empiricamente com relativo sucesso,

tornando-as boas referências de possíveis verdades. Essas “teorias maduras” fazem uso de

termos que se referem “à mesma coisa”, mesmo quando presentes em outras teorias e, por

isso, justificam sua utilidade e relativa confiabilidade. Uma “ciência madura”,

resumidamente, é uma ciência consolidada sobre o uso de “teorias maduras”; tais teorias

23 Tendo em vista que Worrall defende que Poincaré já o havia sugerido em sua obra de 1902 – “A ciência e a hipótese”.

88

carregam consigo exceções que não participam do seu relativo sucesso, razão pela qual essa

“ciência madura” é aproximadamente verdadeira.

Entretanto, se estas “teorias maduras” não são totalmente verdadeiras, também não nos

é possível saber que partes delas devem ser descartadas como falsas. Por outro lado, sua

relativa eficiência científica justifica empiricamente sua utilidade e a continuidade de seu uso.

Logo, os objetos e relações que participam do conjunto dessas “teorias maduras”, ou seja, da

“ciência madura”, demonstraram empiricamente sua ligação efetiva com a realidade objetiva

do mundo. Por isso, segundo Putnam, a visão realista entende o conjunto de relações e objetos

da “ciência madura não como verdades necessárias, mas como parte da única explicação

científica do sucesso da ciência”, já que há um conjunto de resultados científicos empíricos

que permanecem úteis e atestam que, de algum modo, se pode estabelecer uma conexão entre

as teorias da ciência e a realidade objetiva. Ora, se negarmos que essa conexão existe, não

teremos como explicar o sucesso da ciência, a menos que estejamos dispostos a acreditar que

a previsão correta de resultados empíricos mediante o uso dessas “teorias maduras” não passa

de um milagre espontâneo e recorrente.

De um modo similar à interpretação do “argumento sem milagres” que expus acima,

Psillos destaca a “conexão explicativa” e o “sucesso preditivo” da “teoria científica madura”:

[...] deve haver algum tipo de conexão explicativa entre o singular [novel] sucesso preditivo e a teoria estar aproximadamente correta sobre o mundo, especificamente uma conexão explicativa que envolve a afirmação de que o que a teoria diz sobre aspectos não observáveis do mundo é aproximadamente correto. (1996, p. 306, grifos do autor).

Worrall aponta nos escritos de Poincaré um argumento similar ao “argumento sem

milagres”:

Por exemplo, temos o direito de enunciar a lei de Newton? Não há dúvida de que numerosas observações a confirmam, mas não será um simples efeito do acaso? Aliás, como sabemos se essa lei, verdadeira para tantas gerações, não vai ser falsa na próxima? A essa objeção a única resposta que posso dar é: “Isso é muito pouco provável”. (POINCARÉ, 1902, p. 143).

Poincaré enfatiza, justamente, os dois pontos centrais do “argumento sem milagres”,

ou seja, a “conexão explicativa” e “sucesso preditivo” da lei de Newton24, destacando que

teríamos de crer num “simples efeito do acaso” se duvidássemos de sua conexão com as

relações empíricas.

24 A lei de Newton a que Poincaré se refere unificou um grande número de fenômenos naturais em um conjunto de princípios sob a forma de leis, com o qual se pôde explicar e prever, por meio da “ação a distância” e de equações matemáticas bem definidas, o movimento dos corpos em queda livre, o movimento pendular, o fenômeno das marés, as órbitas dos corpos celestes, dentre outros; embora à época de Poincaré, o conjunto teórico da obra de Newton já estivesse sofrendo severas críticas desde a primeira metade do século XIX, em razão, principalmente, da descoberta dos fenômenos eletromagnéticos.

89

Passaremos, a seguir, ao argumento antirrealista que nega a existência de uma conexão

verdadeira entre as teorias e as relações empíricas ou, em outros termos, uma conexão entre o

conhecimento científico e a realidade.

3.2.2 O argumento da meta-indução pessimista

O “argumento da indução pessimista25” ou “argumento da meta-indução pessimista”,

tem sua formalização creditada a Laudan e leva em conta o resultado, no curso histórico, das

teorias que participaram da ciência em algum momento de sua construção, mesmo que por um

breve período de tempo. Segundo Laudan:

[...] a história da ciência nos oferece uma infinidade de teorias que foram bem-sucedidas e (até onde podemos julgar) não-referenciais com relação a muitos de seus conceitos explicativos centrais. [...] alguns exemplos [...]: as esferas cristalinas da astronomia antiga e medieval; a teoria humoral da medicina; a teoria dos eflúvios para a eletricidade estática; a geologia “catastrofista”, com o compromisso com um dilúvio universal noeliano; a teoria do flogisto na química; a teoria do calórico do calor; a teoria vibratória do calor; as teorias de força vital da fisiologia; o éter eletromagnético; o éter óptico; a teoria da inércia circular; teorias de geração espontânea. (1981, p. 33).

De fato, diversas teorias que à sua época foram consideradas teorias “bem-sucedidas”,

posteriormente, acabaram sendo rejeitadas ou abandonadas por não mais conseguirem

explicar resultados empíricos incompatíveis com seu escopo teórico ou, simplesmente, porque

novas teorias se mostraram mais eficientes que as anteriores. Segundo Laudan, os “conceitos

explicativos centrais” dessas teorias deixaram de ser referências para a ciência posterior a

elas.

Chibeni assim conclui, com base nessas circunstâncias históricas, a respeito da

“chamada ‘indução pessimista’: se tantas teorias consideradas, à sua época, bem sucedidas

foram depois dadas como falsas, somos indutivamente levados a crer que o mesmo destino

terão as nossas presentes teorias científicas” 26 (2006, p. 20). Pois, segundo o raciocínio

indutivo, se ao longo da história as teorias científicas se mostraram constantemente efêmeras

e seu vínculo com as relações empíricas foi apenas aparente, então, nossas atuais teorias

também não possuem tal vínculo com a realidade objetiva.

25 Em Psillos (1996) encontra-se um estudo detalhado desse argumento. 26 Em Chibeni (2006) encontra-se uma crítica detalhada a esse argumento de Laudan.

90

Há uma passagem na obra de Poincaré que, segundo Worrall (1989, p. 117), está

“claramente antecipando o que atualmente chamamos de ‘indução pessimista’ assim

formalizada”:

Existem muitas pessoas que se espantam ao ver quão efêmeras são as teorias científicas. Essas pessoas vêem teorias serem sucessivamente abandonadas depois de alguns anos de prosperidade; vêem ruínas se acumularem sobre ruínas; prevêem que teorias hoje na moda sucumbirão, por sua vez, dentro em pouco, e concluem que elas são inteiramente vãs. É o que chamam de falência da ciência. (POINCARÉ, 1902, p. 127).

De fato, o argumento usado por Poincaré se parece muito com o argumento

formalizado por Laudan, entretanto, como veremos a seguir, esse é apenas o início da

argumentação usada por Poincaré para destacar um elemento de continuidade entre as teorias

científicas que, mesmo depois de serem substituídas, mantém um vínculo definitivo com as

novas teorias que as sucederam, elemento esse que também estará vinculado, definitivamente,

com a realidade empírica objetiva.

Vejamos, então, como, segundo Worrall e com base nos escrito de Poincaré, é possível

a solução do impasse entre os dois principais argumentos usados no debate entre realistas

científicos e antirrealistas.

91

3.3 A solução de Worral em Poincaré

Nas seções anteriores, 3.2.1 e 3.2.2, apresentei os argumentos “sem milagres” e da

“meta-indução pessimista”, evitando interpretá-los segundo a epistemologia da ciência de

Poincaré.

Entretanto, doravante usarei do mesmo expediente que usei no capítulo 2, e pretendo

inserir no contexto da solução que Worrall propõe a interpretação epistemológica

poincareana, uma vez que Worrall se apóia nos escritos de Poincaré para construir sua tese do

realismo estrutural.

3.3.1 A conciliação dos opostos aparentes

Segundo o “argumento sem milagres” deve haver algum vínculo entre as teorias

científicas e nossa realidade objetiva, uma vez que “teorias maduras” permitem a previsão de

resultados empíricos até então indisponíveis, além de fornecerem explicações adequadas aos

resultados empíricos anteriores a ela. Porém, segundo o “argumento da meta-indução

pessimista” esse vínculo deve ser apenas aparente, uma vez que historicamente as teorias se

mostram efêmeras e sucumbem a uma interminável sucessão de substituições que,

aparentemente, não deixam referências entre as teorias. Esse é problema a ser vencido por

Worrall.

Logo após ter apresentado um argumento muito semelhante ao argumento da meta-

indução pessimista, como vimos na seção 3.2.2, Poincaré o retoma do seguinte modo:

[O] ceticismo [de muitas pessoas que vêem as teorias científicas como efêmeras e vãs] não é fundamentado. Essas pessoas não percebem, de maneira alguma, o objetivo e o papel das teorias científicas. Se assim não fosse, compreenderíamos que as ruínas [das teorias científicas] ainda podem ser úteis para alguma coisa. Nenhuma teoria parecia mais sólida do que a de Fresnel, que atribuía a luz aos movimentos do éter. Contudo, a preferida, atualmente [em 1902], é a de Maxwell. Isso significa que a obra de Fresnel foi inútil? Não, pois o objetivo de Fresnel não era o de saber se existe, realmente, um éter, se ele é ou não formado por átomos, se estes átomos se movem realmente nesse ou naquele sentido, e sim prever os fenômenos óticos. Ora, isso, a teoria de Fresnel continua a fazer hoje tão bem quanto o fazia antes de Maxwell. As equações diferenciais continuam a ser verdadeiras; podem ser integradas pelos mesmos procedimentos e os resultados dessa integração conservam, ainda, todo o seu valor. (1902, p. 127).

Poincaré afirma que “o objetivo de Fresnel não era o de saber se existe, realmente, um

éter, se ele é ou não formado por átomos, se estes átomos se movem realmente nesse ou

naquele sentido”, justamente porque, como vimos na seção 1.6.1.2, estas seriam apenas

92

“hipóteses indiferentes e inverificáveis”, inúteis, portanto, ao aspecto prático da teoria. Para

atingir seu intuito de “prever os fenômenos óticos”, Fresnel precisou encontrar equações

diferenciais que continuam a ser verdadeiras mesmo quando os elementos ontológicos de sua

teoria foram rejeitados.

Worrall argumenta, ainda, que a rejeição aos elementos ontológicos das teorias

corrobora com a visão antirrealista, entretanto, “Poincaré prossegue deixando bem explícito

que essa não é sua posição” (1989, p. 118):

E que não se diga que reduzimos, assim, as teorias físicas ao papel de simples receitas práticas. Essas equações exprimem relações, e, se as equações permanecem verdadeiras, é porque suas relações conservam sua realidade. Elas nos mostram, agora, como faziam antes, que há uma dada relação entre duas coisas; unicamente, o que antes chamávamos movimento, hoje chamamos corrente elétrica. Mas essas relações não passam de imagens que substituíam os objetos reais que a natureza nos ocultará para todo o sempre. As verdadeiras relações entre esses objetos reais são a única realidade que podemos atingir [...] (POINCARÉ, 1902, p. 127-128, grifos do autor).

Worrall destaca que, segundo Poincaré, Fresnel “descreveu com precisão não somente

os efeitos observáveis da luz, mas a sua estrutura”, embora sua teoria estivesse errada “do

ponto de vista da teoria de Maxwell” (1989, p. 118, grifo do autor).

Portanto, há um elemento matemático que se projeta objetivamente nas relações

empíricas, promovendo uma continuidade entre as teorias de Fresnel e de Maxwell;

estendendo, ainda, as relações objetivas e exatas que na teoria de Fresnel diziam respeito

apenas aos fenômenos óticos, para os fenômenos eletromagnéticos da teoria de Maxwell, ou

seja, segundo Worrall, “se nos restringirmos ao nível das equações matemáticas – e não

observarmos o nível do fenômeno – há, de fato, completa continuidade entre as teorias de

Fresnel e de Maxwell” (1989, p. 119).

Há uma passagem em Poincaré que Worrall não cita em seu artigo, mas que

caracteriza, a meu ver, a própria síntese do que foi exposto acima:

Podemos nos perguntar se as associações que a ciência de hoje faz serão confirmadas pela ciência de amanhã. Para afirmar que isso ocorrerá, não podemos invocar nenhuma razão a priori; mas é uma questão de fato, e a ciência já viveu o bastante para que, interrogando sua história, possamos saber se os edifícios que ela ergue resistem à prova do tempo, ou se são apenas construções efêmeras. Ora, o que vemos? À primeira vista, parece-nos que as teorias só duram um dia, e que se acumulam ruínas sobre ruínas. Um dia nascem, no dia seguinte estão na moda, no outro dia se tornam clássicas, no terceiro dia estão obsoletas e no quarto são esquecidas. Mas se prestarmos mais atenção, veremos que o que assim sucumbe são as teorias propriamente ditas, aquelas que pretendem nos ensinar o que são as coisas. Mas há nelas algo que quase sempre sobrevive. Se uma delas nos faz conhecer uma relação verdadeira, essa relação é definitivamente adquirida, e a encontraremos sob um novo disfarce nas outras teorias que virão reinar em seu lugar. (POINCARÉ, 1904, p. 168, grifos meus).

Poincaré afirma que “nenhuma razão a priori” pode confirmar “se as associações que

a ciência de hoje faz serão confirmadas pela ciência de amanhã” e isso se deve a três fatores

93

que não dependem somente da nossa convicta certeza sobre as leis matemáticas construídas

com base no nosso princípio de recorrência a priori:

1º) podem ser associações de imagens e descrições ontológicas, e, desse modo, serão

apenas hipóteses indiferentes e inverificáveis;

2º) podem ser associações matemáticas obtidas casualmente e que, de fato, não

mantém vínculo com a realidade objetiva, portanto, tais associações não seriam confirmadas

nos resultados de experimentos futuros;

3º) podem ser associações matemáticas vinculadas à realidade objetiva, mas que, no

futuro, se mostrarão restritas às condições impostas pela atual teoria física que exigiu uma lei

matemática também restrita, como vimos na seção 1.4.1. Desse modo, a lei matemática

ampliada manterá dentro de si as relações restritas da lei matemática anterior, como um caso

particular da nova lei. Mesmo as relações matemáticas que estão vinculadas à realidade

objetiva dos resultados empíricos atuais estão sujeitas à verificação de futuros resultados

empíricos; tais resultados empíricos futuros podem ultrapassar os limites impostos pelos

“termos bem escolhidos” das leis usadas nas atuais associações matemáticas.

Vencidos esses fatores imprevisíveis, pois dependem dos resultados empíricos dos

futuros experimentos, Poincaré enuncia o que hoje conhecemos por “argumento sem

milagres” para, em seguida, constatar que as ruínas das antigas teorias esquecidas detêm

apenas as partes daquelas teorias “que pretendem nos ensinar o que são as coisas”, ou seja, as

ruínas inúteis das hipóteses indiferentes. A parte útil de cada teoria científica “que quase

sempre sobrevive”, a que “nos faz conhecer uma relação verdadeira, essa relação é

definitivamente adquirida”, é a relação matemática objetiva que se projeta, por analogia, na

relação empírica, e que se tornará parte de todas as demais teorias que a sucederem.

Nesse sentido, Post defendeu posição semelhante para a continuidade entre teorias

científicas, embora não tenha se referido explicitamente aos elementos matemáticos: “Minha

alegação não é apenas que há um elemento de continuidade na mudança, [...] mas que parte da

ciência presente no conteúdo da teoria antiga é preservada, tanto quanto se sabe, para

sempre; não apenas na próxima teoria, mas em todas as teorias futuras” (1971, p. 238).

Por sua vez, Worrall é explícito na descrição do modo como as leis matemáticas ou as

equações matemáticas anteriores permanecem intrínsecas às equações matemáticas das novas

teorias: “O padrão mais comum é que as equações anteriores reapareçam como casos-limite

da nova teoria - ou seja, as equações antigas e novas são estritamente inconsistentes, mas a

nova tende para a antiga como uma grandeza tende a um limite” (1989, p. 120, grifos do

autor). Em outros termos, a equação matemática antiga é inconsistente com a nova equação

94

porque representa apenas parte desta e, por isso, a equação antiga se torna um caso limitado

ou particular da equação matemática da nova teoria.

Worrall deixa claro, ainda, que essa condição de assimilação de parte de uma teoria

antiga por uma nova teoria “aplica-se puramente ao nível matemático e, portanto, é bastante

compatível com os pressupostos teóricos básicos da nova teoria (a qual interpreta os termos

nas equações), estando totalmente em desacordo com as da antiga” (1989, p. 120-121, grifos

do autor). Por se tratarem de equações matemáticas, é indiferente o modo como os termos

ontológicos ou metafóricos da nova teoria venham a fazer uso da equação, uma vez que a

equação matemática independe do conteúdo material da teoria; a teoria física, por outro lado,

usará a exatidão matemática para, por meio da analogia entre as propriedades matemáticas e

suas propriedades físicas, explicar os resultados empíricos obtidos anteriormente e prever

novos resultados. Em relação aos “pressupostos teóricos básicos da nova teoria”, que incluem

os seus elementos ontológicos, estes certamente serão incompatíveis com os pressupostos

teóricos básicos da antiga teoria, pois, geralmente, esse costuma ser o motivo da substituição

de uma pela outra.

Worrall usa um exemplo posterior a Poincaré, mas que ilustra muito bem esse “padrão

mais comum” em que “as equações anteriores reapareçam como casos-limite da nova teoria”:

Não vejo qualquer sentido claro em que uma força de ação a distância de gravidade é um "caso-limite", ou "se aproxima" de uma curvatura do espaço-tempo. Ou em que os "mecanismos teóricos" da ação a distância da teoria gravitacional são "transpostos" para a teoria da relatividade geral. No entanto, as equações de Einstein inegavelmente seguem além das de Newton, em certos casos-limite especiais. Nesse sentido, há uma “continuidade aproximada” da estrutura neste caso. (1989, p. 121, grifo do autor).

Considero esse exemplo perfeito para demarcar o que está em discussão no realismo

estrutural. De fato, não faz sentido algum ‘aproximar’ os termos ontológicos da teoria

gravitacional newtoniana com os termos ontológicos da teoria da relatividade geral de

Einstein; elas são, simplesmente, incompatíveis. Entretanto, “em certos casos-limite

especiais” da formulação gravitacional contemporânea, expressada matematicamente pelo

cálculo tensional, as equações de Newton ressurgem. Isso representa uma forte evidência

matemática que corrobora uma “continuidade aproximada” ao nível das estruturas

matemáticas das teorias de Newton e de Einstein.

De certo modo, as equações de Newton são muito mais úteis nos cálculos de nossa

física do cotidiano, como por exemplo, os da engenharia mecânica, ou da arquitetura, do que

os complexos cálculos que poderiam nos levar a outro sistema solar, por exemplo. Não é de

admirar que, para condições empíricas tão mais abrangentes que as nossas relações físicas do

95

cotidiano, tenhamos de usar ferramentas teóricas bem mais precisas e também ferramentas

matemáticas mais amplas e abrangentes que nossas ferramentas newtonianas usuais. A

mecânica de Newton exigiu uma analogia com leis matemáticas restritas às condições

empíricas disponíveis em sua época; ampliadas as condições empíricas também houve a

exigência da ampliação das leis matemáticas que, como sabemos, devem, por analogia, ser

compatíveis com essas novas condições empíricas. Entretanto, as leis matemáticas mais

amplas devem conter dentro de si as leis matemáticas que se tornaram restritas a casos-limite.

A continuidade matemática é necessária para garantir o vínculo com a realidade objetiva.

Krause sintetiza muito bem o que vimos ao longo dessa seção:

O realismo científico [...] sustenta que a ciência nos conta a verdade sobre o mundo, pelo menos parcialmente. [...] O argumento do não milagre diz que não pode ser um milagre que a ciência funcione [deve haver uma verdade inerente à ciência]. [...] A meta-inducão pessimista, por outro lado, chama a atenção para o fato de que [...] todas as teorias científicas, mesmo as mais bem sucedidas, [...] foram suplantadas. [...] Na visão de Worrall [1989], mesmo durante o cambio de teorias, a estrutura matemática é preservada. Para Worrall, o [seu] Realismo Estrutural não nos compele à crença na descrição teórica correta da realidade [1], e nem compromete-nos com a afirmação de que é a estrutura matemática de uma teoria que descreve o mundo [2]. Assim, pelo primeiro motivo, somos liberados da meta-inducão pessimista e, pelo segundo, da suposição de que o sucesso da ciência é um milagre. (2010, p. 2)

Não somos obrigados a crer na “descrição teórica correta da realidade”, pois, segundo

Poincaré, o que pode haver de “realidade objetiva” nas teorias físicas são somente suas

propriedades matemáticas e não faz sentido, para Poincaré, descartar integralmente uma teoria

em função de suas hipóteses indiferentes e inverificáveis; logo, se há continuidade

matemática, a meta-indução pessimista se justifica apenas no nível ontológico que, segundo

Poincaré, é a parte efêmera das teorias científicas. Por outro lado, os objetos inobserváveis das

teorias físicas nos são inacessíveis, entretanto, podemos conhecer as relações matemáticas

que, por analogia, nos permitem compreender a realidade objetiva inerente às relações entre

objetos inobserváveis; logo, não há milagre algum no conhecimento matemático objetivo

análogo às relações empíricas, mesmo que não conheçamos como ‘são’ os objetos

inobserváveis da física.

3.3.2 As estruturas matemáticas e a realidade

Na seção 3.2.1 reproduzi a citação formal do “argumento sem milagres” de Putnam.

Se continuarmos a leitura do texto a partir de onde paramos, ou seja, imediatamente depois da

citação do “argumento sem milagres”, lemos:

96

Creio que o argumento positivo para o realismo tem um análogo, no caso de realismo matemático. Aqui também, creio eu, o realismo é a única filosofia que não faz o sucesso da ciência um milagre. Em minha opinião, existem dois suportes para o realismo na filosofia da matemática: experiência matemática e experiência física. A construção de um corpo altamente articulado do conhecimento matemático com uma longa tradição de resolução de problemas bem-sucedida é uma realização social verdadeiramente notável. (PUTNAM, 1975, p. 73, grifos do autor).

Segundo Putnam, o realismo matemático é a única filosofia que não faz do sucesso da

ciência um milagre. Não entrarei no mérito do que seja o realismo matemático para Putnam

mas, entretanto, se considerarmos o estatuto da verdade matemática em Poincaré, ou seja, se

considerarmos que:

1º) Essa verdade deriva de uma propriedade do espírito, o qual se reconhece capaz de

recorrer infinitamente a uma propriedade matemática (ou física) por meio de sua faculdade da

intuição;

2º) A verificação dessa criação do espírito confere a ela exatidão e precisão por meio

da análise lógica;

3º) A verdade matemática é a única capaz de, por meio de analogias com as

propriedades empíricas, conferir credibilidade às teorias científicas incertas;

4º) No final desse percurso, a própria verdade matemática participa da realidade

objetiva.

Então, direi que, segundo Poincaré, não se trata de milagre, desde que entendamos o

realismo matemático do modo como foi descrito acima.

Segundo Poincaré, como vimos:

A única realidade objetiva são as relações entre as coisas, de onde resulta a harmonia universal. Sem dúvida essas relações e essa harmonia não poderiam ser concebidas fora de um espírito que as concebe ou as sente. Porém, são objetivas porque são, irão tornar-se ou permanecerão comuns a todos os seres humanos. (1904, p. 170)

O realismo matemático, sem dúvida, está presente na epistemologia de Poincaré e,

com base no que vimos na seção 1.3 – ‘A gênese da criação científica’ (página 25), entendo

que seja um realismo matemático epistemológico.

O que salta aos olhos é que Putnam cita exatamente os elementos que compõem essa

realidade objetiva poincareana obtida das analogias entre relações matemáticas e relações

empíricas: “experiência matemática e experiência física”.

Certamente, com base no que vimos acima, Putnam esteve muito próximo da solução

proposta por Worrall para o realismo científico, pois identificou esses elementos que mantém

a conexão objetiva entre o conhecimento científico e a realidade, embora não tenha definido

como essa conexão ocorre.

97

Por outro lado, Worrall se apoiou nos escritos de Poincaré e explicitou o elemento

matemático de continuidade entre as teorias, embora não tenha se preocupado com a origem

da verdade presente nesse elemento matemático estrutural; afinal, esse nem era seu objetivo.

A epistemologia da ciência de Poincaré desenvolve a origem da verdade matemática,

as conexões internas à “experiência matemática”, as conexões internas à “experiência física”,

as conexões entre ambas e a verdade matemática inerente ao elemento de continuidade que

permanece presente nos resultados empíricos.

Portanto, o realismo estrutural de Worrall representa apenas uma fração da detalhada

epistemologia da ciência poincareana e as estruturas matemáticas são apenas uma

consequência dessa epistemologia.

Para finalizar essa seção recorrerei a uma questão colocada por Poincaré que parece

recair sobre a interpretação das consequências que surgem do realismo estrutural

epistemológico de Worrall. Segundo Poincaré:

Na história do desenvolvimento da física, duas tendências contrárias podem ser distinguidas. Por um lado, a cada momento, são descobertas novas relações entre objetos que pareciam destinados a permanecer isolados para todo o sempre; os fatos esparsos deixam de ser estranhos uns aos outros, tendem a se organizar numa grandiosa síntese. [1] A ciência caminha em direção à unidade e à simplicidade. Por outro lado, novos fenômenos nos são revelados, a cada dia, pela observação e eles têm de esperar muito tempo até que encontremos seu lugar nessa síntese e, por vezes, [...] vamos percebendo detalhes a cada dia mais variados; o que acreditávamos simples, volta a ser complexo e [2] a ciência parece caminhar para a variedade e a complicação. Dessas duas tendências contrárias que parecem triunfar alternativamente uma sobre a outra, qual delas vencerá? [...] Para isso não temos resposta. O que podemos fazer é observar a ciência de hoje e compará-la com a de ontem. (1902, p. 134, grifos meus).

Poincaré remete a uma constatação que parece encontrar origem nos fundamentos de

sua epistemologia. Se, por um lado, a indução completa nos garante a unicidade em torno da

certeza matemática, por outro lado, nossa “crença de uma ordem geral do universo” se reflete

em nossa aspiração por verdades das ciências físicas a serem obtidas por meio da indução

física; historicamente sabemos que essa possível verdade se mostrou, até aqui, múltipla e

incerta. Daí se origina o conselho de Poincaré: “O que podemos fazer é observar a ciência de

hoje e compará-la com a de ontem” – e eu complemento – continuando nossa busca pela

verdade externa que possa refletir nossa verdade interna.

Segundo Steinle (2006, p. 56), “uma questão que surge naturalmente dessa visão de

Worrall”, referente ao realismo estrutural epistemológico, foi proposta por Votsis: “é aquela

de saber se a continuidade matemática [entre teorias científicas] é um fenômeno comum

dentro da história da ciência ou apenas um caso isolado”. Bem, certamente não é um caso

98

isolado, mas a dúvida parece ser exatamente a mesma colocada por Poincaré: “A ciência

caminha em direção à unidade e à simplicidade” ou “para a variedade e a complicação”?

Tomando emprestada a tese de Giedymin (1991, p. 15), sobre as estruturas

matemáticas das teorias científicas, a pergunta poderia ser reformulada nos seguintes termos:

1) A ciência caminha rumo a uma única teoria física composta por múltiplas “teorias

observacionalmente equivalentes que partilham a mesma estrutura matemática (ou: que

tenham estruturas matemáticas equivalentes) e que diferem em relação a ontologias

experimentalmente indistinguíveis”?

2) Ou, por outro lado: Haveriam múltiplas teorias físicas que reuniriam em seu interior

outras tantas teorias físicas “que partilham a mesma estrutura matemática (ou: que tenham

estruturas matemáticas equivalentes) e que diferem em relação a ontologias

experimentalmente indistinguíveis”?

Entretanto, novamente, não nos resta alternativa mais prática do quer seguir o

conselho de Poincaré: “O que podemos fazer é observar a ciência de hoje e compará-la com a

de ontem”; embora nossa esperança nos leve a continuar buscando a unidade da

multiplicidade teórica, sem garantias empíricas de que essa multiplicidade possa ser, de fato,

unificada. Afinal, “a ordem geral do universo” não tem de, necessariamente, realizar as

pretensões do espírito humano.

• • •

O realismo estrutural proposto por Worrall faz uso de poucos argumentos

poincareanos, mas as poucas passagens apontadas por Worrall na obra de Poincaré são

adequadas e suficientes para dar conta de seu objetivo principal. Nesse sentido, Poincaré

ocupa apenas uma parte da argumentação que desenvolve a proposta de realismo estrutural,

mas, por outro lado, oferece fortes evidências textuais a Worrall.

A principal dessas evidências textuais se refere ao exemplo histórico da continuidade

da estrutura matemática entre as teorias de Fresnel e de Maxwell; ela confirma que há uma

conexão real entre a parte matemática dessas teorias e os resultados empíricos obtidos em

ramos distintos da física. Worrall explorou muito bem essa evidência poincareana.

Entretanto, poderíamos perguntar: Como é possível que uma estrutura matemática

mantenha conexão com a realidade? E, não bastaria dizer que encontramos uma propriedade

matemática verdadeira, pois, então, a próxima pergunta seria: Como a verdade matemática é

possível? E, junte-se também a essas questões: Por que a física necessita da linguagem

matemática?

99

As respostas a essas perguntas não podem ser obtidas somente dos poucos excertos

poincareanos que apoiaram a tese de Worrall, mas, certamente as encontraremos no conjunto

da obra filosófico-científica de Poincaré e na sua epistemologia da ciência.

Assim, o realismo estrutural epistemológico de Worrall explora apenas uma pequena

parte da epistemologia poincareana da ciência e, é claro, não pode dar conta de sua totalidade.

Por outro lado, concordo que Poincaré pode ser entendido como um realista estrutural

epistemológico nos moldes que Worrall defendeu e, além disso, também entendo que a

filosofia de Poincaré pode ser considerada como um realismo matemático epistemológico,

como descrevi na seção anterior (3.3.2).

Por fim, enfatizo que Worrall não se propôs a responder as questões colocadas acima,

pois seu objetivo não era esse. Aliás, podemos reconhecer um bom trabalho, tanto nas

respostas que propõe, quanto nas dúvidas que gera, e, nesse sentido, o artigo de Worrall já

demonstrou seu valor ao longo das últimas décadas.

100

Conclusões

Desenvolvi ao longo dessa dissertação uma análise da filosofia da ciência poincareana

com ênfase em sua epistemologia da ciência. Essa análise me permitiu concluir que, quando

classificamos a filosofia da ciência de Poincaré como um tipo de convencionalismo ou um

tipo de realismo estrutural, corremos o risco de tomar a parte pelo todo, já que a

epistemologia poincareana é bem mais abrangente que suas classificações.

Começando pelo desenvolvimento da epistemologia de Poincaré, sem dúvida, a

principal conclusão dessa dissertação é que, segundo o autor, o princípio de recorrência é o

instrumento usado na criação de todas as certezas matemáticas, as únicas certezas do espírito.

A intuição é a faculdade do espírito ativa e inventiva, responsável pela aplicação dessa

propriedade. Por meio do princípio de recorrência o espírito se sabe capaz de recorrer

infinitamente à aplicação de uma propriedade criada por ele. A própria noção de infinitude

advém da aplicação desse princípio.

Se o princípio de recorrência é o instrumento de criação do espírito, a indução

completa é o instrumento de verificação, pois, assim como a propriedade pode ser

infinitamente aplicada, a sua rigorosa verificação é necessária em cada evento sucessivo em

que a propriedade foi aplicada. Assim que é obtida a certeza indutiva matemática, por meio de

uma amostragem finita de eventos, a verdadeira demonstração matemática se completa. A

lógica, por meio do princípio de contradição, é a responsável por essa verificação analítica e,

portanto, pela confirmação da certeza e da exatidão matemáticas.

O raciocínio por recorrência será usado em todas as etapas da criação matemática.

Entretanto, a partir da criação das relações algébricas, o raciocínio por recorrência pode ser

aplicado de dois modos distintos: (1) recorrendo à sucessividade da propriedade que a

intuição criou, ou (2) recorrendo a uma propriedade encontrada pela intuição, por meio do uso

de analogias, comparando relações matemáticas aleatórias.

A indução física, assim como a indução matemática, vai do evento particular para a

generalização de uma propriedade, entretanto, se na indução matemática o raciocínio por

recorrência é anterior ao raciocínio indutivo, por outro lado, na indução física essa ordem se

inverte; por esse motivo a indução física é incerta.

O único recurso capaz de conferir alguma certeza à indução física será encontrado, por

analogia, numa correspondência entre a indução matemática e a indução física, ou seja, numa

possível semelhança entre leis físicas e leis matemáticas. Portanto, indução física incerta

101

tentará tomar emprestada da matemática sua certeza indutiva formal. Esse é o motivo pelo

qual a física, segundo Poincaré, tem de se expressar, necessariamente, por meio de relações

matemáticas.

A construção do contínuo matemático se deve à necessidade inerente à física, de

estabelecer uma analogia consistente entre a noção de contínuo físico e relações matemáticas

que a ele se assemelhem. Novamente, a possível certeza das relações físicas depende de uma

analogia com as relações matemáticas rigorosas e exatas.

A criação das geometrias é o passo análogo decisivo entre as propriedades de

deslocamento dos corpos físicos, tornadas homogêneas, por meio da lei da homogeneidade, e,

por analogia, transpostas aos grupos matemáticos que tornam possível o estudo dos

deslocamentos dos corpos geométricos formais. A matemática, assim, pode criar infinitas

geometrias. Logo, todas as geometrias são verdades matemáticas formais. O físico irá

escolher dentre as geometrias a que lhe for mais conveniente, podendo trocar de geometria

caso lhe pareça cômodo. A criação de qualquer geometria se dá por convenção entre as

relações da matemática e as relações da física. Os axiomas e postulados das geometrias são

convenções não-aleatórias que visam a matematização dos deslocamentos de objetos

geométricos inspirados nos objetos físicos, embora as geometrias não mantenham qualquer

vínculo com a experiência empírica.

O mesmo ocorre com os princípios físicos que, por meio da lei da homogeneidade,

perdem seu conteúdo material em nome das propriedades formais encontradas nas relações

empíricas, permitindo, assim, que sejam matematizáveis e úteis à analogia entre propriedades

físicas e matemáticas. Segundo Poincaré os princípios físicos, a exemplo das geometrias,

também são convenções.

A aproximação definitiva entre leis matemáticas e leis físicas se dá por meio dessas

convenções não-aleatórias, o cerne do convencionalismo poincareano; embora essa

aproximação nunca possa se tornar uma relação de igualdade.

Se a verdade matemática é a única certeza do espírito, então, a matemática tem de se

voltar a uma objetividade prática que permita seu uso na construção do conhecimento

científico das ciências físicas. O equilíbrio entre exatidão e objetividade mantém essa relação

possível.

A construção do conhecimento científico depende do raciocínio por recorrência.

Inicialmente esse raciocínio é aplicado à criação matemática e, mediante o uso de analogias, o

raciocínio por recorrência participa, necessariamente, de todas as etapas de criação e

102

construção das ciências formais e empíricas. O objetivo último é a projeção das relações

matemáticas exatas e rigorosas nas relações empíricas incertas.

A classificação das hipóteses poincareanas permite enfatizar o sentido prático que o

autor coloca no contexto das teorias físicas. Enquanto as hipóteses somente são verificáveis

por meio de sua matematização, previsão e verificação empírica, as hipóteses indiferentes não

passam de elementos ontológicos ou metafóricos inverificáveis e, sob o ponto de vista

matemático prático, são desnecessárias. As hipóteses aparentes (ou convenções) estabelecem

os princípios, axiomas e postulados necessários para o embasamento das teorias científicas;

são as geometrias e os princípios físicos citados anteriormente.

Analisando a epistemologia de Poincaré, a partir de seus fundamentos, é possível

afirmar que o convencionalismo poincareano, derivado unicamente do estatuto das

convenções, é um subconjunto de sua epistemologia. Em outras palavras, as convenções

poincareanas quando são submetidas à analise do conjunto de sua epistemologia, perdem o

estatuto de bases do convencionalismo e passam a ser vistas como consequências da

epistemologia de Poincaré, pois tais convenções se fundamentam no princípio de recorrência.

Quanto às estruturas matemáticas que caracterizam o realismo estrutural

epistemológico de Worrall, quando as analisamos sob a perspectiva dos fundamentos da

epistemologia de Poincaré, tornam-se o próprio elemento matemático de continuidade que

perpassa toda a construção do conhecimento científico e estabelece um vínculo prático e

objetivo com as teorias físicas. As teorias físicas que conseguem estabelecer um vínculo

matemático objetivo com as relações empíricas, em geral, transmitem esse vínculo para as

teorias que a sucedem, criando uma conexão definitiva entre as relações matemáticas e as

relações físicas; é isso o que Poincaré chama de realidade objetiva.

A construção do conhecimento científico obedece a um sentido único que tenta

transpor a certeza e a exatidão da lei matemática para a lei física. Defendo que há uma

estrutura de lei única, que é usada tanto para as leis físicas quanto para as leis matemáticas, o

que facilita a construção das analogias necessárias que devem haver entre elas.

Por fim, entendo que Poincaré, além de convencionalista, pode ser interpretado como

realista estrutural – como defende Worrall – e, também, como realista matemático, no seu

sentido epistemológico, considerando que, segundo Poincaré:

Essa harmonia que a inteligência humana crê descobrir na natureza existirá fora dessa inteligência? Não, sem dúvida é uma impossibilidade uma realidade completamente independente do espírito que a concebe, vê ou sente. Um mundo assim tão exterior, se caso existisse, ser-nos-ia para sempre inacessível. Mas o que chamamos de realidade objetiva é, em última análise, o que é comum a muitos seres pensantes, e poderia ser comum a todos; essa parte comum [...] só pode ser a harmonia expressa por leis matemáticas.

103

É portanto essa harmonia a única realidade objetiva, a única verdade que podemos atingir [...] (1904, p. 9)

A “harmonia expressa por leis matemáticas” é a “única realidade objetiva” que

podemos atingir, ma medida em que encontramos a verdade das relações matemáticas

presentes no modo como a natureza age.

A realidade depende do espírito que a concebe, vê e sente, pois a verdade presente nas

leis matemáticas, concebida e reconhecida pelo ele, pode ser vista e sentida no mundo que lhe

é exterior. É desse modo que o espírito encontra sua verdade interna e objetiva nas relações

objetivas da realidade externa.

A partir dessa perspectiva, a verdade matemática pode ser entendida como real, e o

conhecimento matemático torna-se, então, o veículo dessa verdade e da realidade objetiva.

Diante desses argumentos posso afirmar que a filosofia da ciência de Poincaré pode ser

interpretada, também, como um realismo matemático epistemológico.

Onofre Crossi Filho

São Paulo, 12 de novembro de 2012.

104

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