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A epopeia da sociedade do Futmasaji

A Epopeia da sociedade do Futmasaji

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Page 1: A Epopeia da sociedade do Futmasaji

A epopeia da sociedade do Futmasaji

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Luis Fernando Ramos

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ÍndiceLOST... AND THEN I’M FOUND ....................................................................................... 2 O SENHOR DOS ANÉIS: A SOCIEDADE DO FUTMASAJI ............................................. 4 O SENHOR DOS ANÉIS: OS DOIS TERMINAIS ............................................................ 10 O SENHOR DOS ANÉIS: O RETORNO DO KRÁL ......................................................... 13

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LOST... AND THEN I’M FOUND sábado, 17 de abril de 2010

Um dia eu ainda vou dar muitas risadas quando me lembrar desse final de semana na China. E será interessante quando este dia chegar, porque até o momento tudo aqui tinha tudo para ser um grande pesadelo. Além das questões relativas ao uso da Internet, muito restritivo aqui, eu e todo o paddock vivemos à sombra de uma enorme nuvem de vulcão. A possibilidade de ficarmos “presos” aqui por mais uns dias parece cada vez mais real. Uma idéia muito boa foi a de adiantar para agora as etapas de Cingapura e Japão, jogando Espanha e Mônaco para o final do calendário. Brincadeiras à parte, a verdade é que a organização do GP já agiliza os procedimentos para a extensão do visto de todo mundo.

É uma situação um tanto estranha, meio que um desamparo por estar envolvido num problema do qual ninguém tem o menor controle. E é curioso ver como essa tribo de nômades que habita o paddock tentando se concentrar nas tarefas cotidianas mas sempre com esse pensamento no fundo da mente: “quando eu vou conseguir voltar para casa?”

Apesar de tudo, é sempre bom que a vida sempre nos reserva surpresas e nos lembra que o tamanho dos nossos problemas sempre é relativo e que o importante é colecionar bons momentos ao longo dela. Hoje, cansado e desanimado, fui jantar no restaurante do hotel com alguns colegas. Enquanto ainda escolhia o prato, a tranqüilidade do lugar foi quebrada pela vibração de um inglês que viu o seu Manchester United fazer o gol da vitória no clássico local contra o City nos descontos do segundo tempo.

Era o fotógrafo Keith Sutton, com mais de 400 GPs da Fórmula 1, que num arroubo de paixão pelo seu clube resolveu pagar uma rodada de cerveja para todos os presentes (uns trinta jornalistas, pelo menos). Achei curioso, nunca tinha conversado com ele antes e o via como mais um dos muitos ingleses frios da categoria. Recebemos a nossa da garçonete e resolvi ir até sua mesa para agradecer. Até brinquei: “Keith, por umas dez pints, eu até torço pela Inglaterra na Copa do Mundo”.

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Ele riu e resolveu se juntar a nós. Seguiram-se três horas de relatos deliciosos de um homem que começou no automobilismo tirando fotos de Ayton Senna na Fórmula Ford, era um grande amigo pessoal e nutre uma enorme admiração até hoje por Roland Ratzenberger e que adora o Brasil. O tempo voou, tempo em que a nuvem vulcânica que pregou uma enorme interrogação em nossas cabeças se dissipou num passe de mágica. No final, ele disse está terminando o seu livro de memórias com a ajuda de um colega. Pela privilegiada amostra que tivemos hoje, recomendo a compra desde já!

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O SENHOR DOS ANÉIS: A SOCIEDADE DO FUTMASAJI quinta-feira, 22 de abril de 2010

Estou em casa, mais de três dias depois de ter deixado o hotel em que me hospedei para a cobertura do GP da China. Mesmo sabendo que é uma história com final feliz para o personagem central, vale ler o longo relato da aventura que foi chegar até aqui. Que está dividida em três partes – uma para cada dia de jornada. A analogia com o Senhor dos Anéis foi automática e já surgiu vendo as imagens do vulcão em erupção e as notícias dos problemas que ele trouxe. Lembrei-me da hora em que Frodo e Sam avistam Mordor pela primeira vez e o hobbit-jardineiro filosofa: “O lugar que ninguém quer estar é o lugar para onde temos que ir”.

Escrevi os trechos ao final de cada dia. Confira abaixo o primeiro e... não perca os próximos capítulos!

(P.S.: O “Credencial” deve ser gravado e postado ainda hoje, mas só depois de uma soneca reconfortante... gollum, gollum!)

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As nuvens negras emanadas pela Montanha da Perdição tomam conta da Terra-Média. E, como na famosa trilogia de Tolkien, o caminho até Mordor (ou pelo menos para perto dali) é cheio de percalços, surpresas e reviravoltas. Até aqui, tem sido bastante divertido tomar o rumo de casa. E ainda estou muito longe.

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O brasileiro já viveu seu caos aéreo e talvez por isso nem queira muito saber a extensão do problema que está acontecendo na Europa e seu efeito cascata no resto do planeta. Dá para resumir numa frase: a coisa está preta.

A história da minha volta começou às sete da manhã de segunda-feira, quando o despertador tocou depois de duas parcas horas de sono – antevendo o dia caótico que teria, passei a noite praticamente em claro adiantando o máximo possível do material de segunda-feira, o rescaldo do GP da China. Peguei um táxi do hotel perto do circuito para o aeroporto de Pudong com um fotógrafo tcheco.

Foi uma hora e meia de sustos e respirações prendidas. Quem acha o trânsito paulistano caótico, é porque nunca esteve em Xangai. Não é à toa que o visitante é proibido por lei de dirigir ali, senão morreria na primeira esquina. Caminhões se jogam no caminho de carros menores sem cerimônia. Estes não temem em tirar as maiores finas para ocupar qualquer espaço livre que se abre.

E não só eles: motonetas, bicicletas e pedestres não esperam abrir o sinal vermelho para atravessar uma grande avenida. Basicamente eles cruzam um terço, esperam um pouco, cruzam outro terço, outra espera e completam a operação. Tudo enquanto o tráfego que vem no sentido transversal tira as mais incríveis “finas” deles em altíssima velocidade, como se não estivessem lá. É basicamente uma anarquia total, na qual a arma de cada veículo é a buzina, usada sem medida e/ou cerimônia.

Quando cheguei a Pudong, já tinha conversado bastante com Jiri Kranek, o fotógrafo. Como um sinal da sorte que vem me acompanhando o tempo inteiro nessa roubada, vi de cara que tinha tirado a maior delas: meu parceiro na epopéia é um dos caras mais tranqüilos e gente boa que eu já conheci. Conversa sobre qualquer assunto, está sempre dando risadas e com o astral para cima. Uma energia ideal em meio a um ambiente cheio de gente perdendo as estribeiras, dando escândalo, tentando achar um culpado numa situação em que ninguém tem culpa – Sauron, talvez, mas há controvérsias quanto a sua existência.

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O check-in no balcão da Aeroflot foi rápido. Até porque ele não aconteceu. Embora o avião até Moscou tenha decolado normalmente, eles não deixaram embarcar ninguém cujo vôo até o destino final estivesse cancelado. Era o nosso caso e o de boa parte dos passageiros. “Em Moscou os hotéis já estão todos cheios, vocês terão de ficar aqui e remarcar suas passagens no nosso escritório”, explicou o russo responsável por manter a turba calma e a casa em ordem. Algo que fez com notável competência, aliás.

Formou-se então uma fila gigantesca para o processo. Formou-se então a “Sociedade do Anel”. É impressionante como as pessoas mais diferentes se unem e tornam cúmplices quando todos estão na mesma barca furada. Tchecos, chineses, italianos, alemães, holandeses, franceses, austríacos, todos passaram aquelas horas de espera trocando informações, mensagens de apoios, piadas. Eu até saquei um baralho da mala e fiquei entretendo diferentes grupos por alguns minutos. Quando chegou nossa vez de remarcar nossa passagem, as duas horas e meia de espera haviam passado num estalo.

Todos caminhos levam à Roma. Como um dos únicos aeroportos operantes, Fiumicino foi a variante que me foi oferecida para terça-feira. Ou que o trecho todo até Viena fosse remarcado para a próxima semana. Com meu visto de estada na China prestes a expirar e cansado de burocracia, não titubeei em assinar um papel no qual aceitava a mudança de rota, assumia os custos do meu deslocamento de Roma até minha casa e declarava que não processaria a Aeroflot por isso. Acho que tomei a decisão certa. Tenho assento garantido até Roma, mas fiquei um pouco com a pulga atrás da orelha por ficar na lista de espera do vôo de hoje de Xangai até Moscou. “Eu não posso confirmar, mas fica tranqüilo que você embarca. Vai acontecer amanhã o mesmo que hoje, indo para Roma, você terá um lugar no vôo”, explicou o competente.

O próximo passo foi achar algum terminal de Internet para reservar um quarto de hotel na cidade, o que consegui com uma máquina mais lenta que os carros da Hispânia no balcão de informações do terminal de chegada. Depois de meia hora esperando páginas carregarem, consegui dois quartos num quatro estrelas por apenas quinze euros cada. Sorte grande.

Jiri (pronuncia-se algo entre Írji e Írxi) teve a feliz idéia de abrir mão de um táxi e pegar um ônibus até o endereço. A grandeza de Xangai e a aparência hostil da China sempre abafaram qualquer ímpeto de sair da bolha de segurança (hotel-táxi-circuito-táxi-centro de compras-táxi-restaurante) que sempre me coloquei. Deu para perceber que o bicho-de-sete-cabeças tinha, na verdade, uma como qualquer bicho.

O hotel de quatro estrelas era astrologicamente inflacionado: com exceção do elevador mais inteligente que eu já vi, tudo era muito simples. Mesmo o prometido acesso à Internet era um buraco na parede do tamanho de uma caixa de fósforos, sem nenhuma “fêmea” para acondicionar a ponta macho do cabo. “Soly, it is bloken”, justificou a recepcionista. Jura?

Mas eu só precisava de uma cama para uma ligeira soneca, então tudo estava ótimo. Às oito encontrei Jiri na recepção para irmos à cidade comer alguma coisa. “Vamos de metrô”, sugeriu ele. Depois do passeio da tarde, topei rapidinho. Chegamos à estação e ficamos tentando decifrar o mapa das linhas escrito todo em mandarim. “Tem uns prédios bonitos

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de uma parte velha perto do rio. Acho... que é... hmmmm... talvez seja... aqui!”, falou ele, e apontou sem qualquer convicção para uma estação situada perto de uma curva da risca azul (o rio) que cortava o mapa. “É para lá que nós vamos”, bradei decidido.

O metrô de Xangai é um dos mais modernos e limpos que eu já vi na minha vida, incluindo aí os banheiros. Vagões interligados, televisões por toda a parte e muito espaço, certamente por já estarmos além do horário do rush. Descemos na estação pré-definida e deu para perceber logo de cara que não estávamos em nenhuma área turística. Pelo contrário, pessoas invadiam a rua e corriam para pegar um ônibus que tentava abrir passagem entre elas. O comércio simples e variado anunciava que quem convivia ali eram locais e apenas locais.

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O instinto nos fez virar na primeira à esquerda e o deslumbramento foi total. Tudo o que eu sempre imaginava que era a Ásia estava ali. Uma rua mal-iluminada, tomada por pedestres, motonetas e ambulantes. O ar era lúgubre pelas frituras que vinham de algumas casas. Comer ali nem foi cogitado, pois não queria correr o risco de mastigar um cachorro por desinformação. Mas o movimento era fascinante e, o que me surpreendeu, os locais olhavam para nós com naturalidade. Não havia diálogos, mas as negociações eram feitas com uma caneta e renderam um cinto de couro legítimo para mim e uma lata de chá verde para meu colega. O clima com os vendedores era amistoso e viver aquilo ali era bom demais.

Já estávamos perto do final da rua quando Jiri apontou para uma casa como todas as outras e decretou. “Vem, vamos fazer massagem no pé ali”. Eu nunca tinha visto nada mais fascinante. Era uma sala na qual estava espalhadas umas seis poltronas cobertas por toalhas. Caixas também com toalhas serviam para o apoio dos pés e tinas com água quente eram o local de descanso daquele que não estava sendo massageado. Em frente ao cliente, as massagistas trabalhava com total dedicação. O lugar era de uma simplicidade incrível, com paredes sujas e uma velha tevê de tubo que passava uma espécie de novela militar local. Um outro cliente dava o toque final: um chinês completamente bêbado, mas engraçado, que nos bradava repetidas vezes “Welcome to Shanghai” e “How do you do”.

Uma coisa que volta e meia gosto de fazer nessas minhas viagens cobrindo Fórmula 1 é uma massagem no pé. Normalmente em spas ou centro de belezas que existam nos hotéis que eu porventura me hospedo. Mas o que estava vivendo ali era completamente diferente. A chinesinha que foi me tratar parecia ter pós-doutorado nos músculos abaixo do meu joelho. Uma jovem cuja feiura e dentes amarelinhos sublinhavam a austeridade do lugar. Mas que identificava ao menor toque um nó nos músculos da sola do pé ou na base da batata da perna. Era a senha para ela levantar os olhos com um ar de reprovação para um bípede estrangeiro e estressado. Apertava com gosto, depois ia buscar a solução em outro grupo de músculos: alisava, apertava, dava palmadas, socos. Passado um tempo, voltava

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aonde estava o nó e ele tinha sumido. Nunca tinha visto nada parecido. A melhor massagem da minha vida demorou mais que uma hora e custou, acreditem, menos de oito reais. Algo que só o ambiente pitoresco já valia.

Pisando em nuvens, Jiri e eu voltamos àquele cenário dantesco. Numa minúscula loja algumas casas à frente, dois velhos chineses jogavam cartas. “Vai lá e faz uma mágica para eles”, sugeriu meu colega tcheco. Um desafio e tanto, afinal a oratória sempre tem grande influência no efeito de um truque e eles, obviamente, não entendiam uma vírgula do que não fosse mandarim. Terminada uma mão do jogo que faziam, pedi o baralho, misturei as cartas e solicitei que o mais simples deles tirasse uma carta. Fiz a mágica só usando sinais e ele se surpreendeu no final, como esperado. Escancarou então um sorriso com três dentes que ainda restavam e nunca tinham visto uma escova, cheios de abcessos e com um odor muito desagradável. Higiene à parte, foi um momento de um lirismo puro, o encontro de dois mundos completamente distintos no elemento lúdico do ilusionismo.

Era hora de ir atrás de um lugar para jantar. Chegamos a uma avenida grande, mas já passavam das dez da noite e o único restaurante à vista já estava até com as luzes apagadas. Um grupo de locais surgiu na calçada e, falando inglês e fazendo mímica ao mesmo tempo, perguntei se eles nos podiam indicar onde encontrar algo para comer. Um deles respondeu no inglês mais perfeito que eu já ouvi para seguirmos a pé na avenida por uns cinco minutos, chegaríamos e um prédio com letreiros neon com vários restaurantes. Foi uma baita dica. Era uma área pública muito interessante, um quarteirão moderno amontoado de bons restaurantes em torno de um grande espelho d’água com diversas fontes. A Xangai dos ocidentais na fronteira do bairro dos locais. Foi um dia que mudou completamente meu (pré-?) conceito da cidade e deu gostinho de querer “se-perder-mais-por-aí” da próxima que eu visitá-la.

A jornada começou, a Sociedade do Futmasaji foi formada e o ânimo para o caminho até Mordor é grande. Vou dormir e sonhar com pão de Lembas, as minas de Moria e a minha Galadriel.

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O SENHOR DOS ANÉIS: OS DOIS TERMINAIS sexta-feira, 23 de abril de 2010

O segundo dia da aventura começou também cedo, nas primeiras horas chinesas da terça-feira. Pelo menos o café da manhã do hotel de “quatro” estrelas (faz-me rir) era razoável e ainda deu tempo de experimentar uma especialidade local, um folhado cozido recheado com carne, muito bom. Depois, foi encarar mais um taxista maluco e muita confusão no aeroporto. O clima hoje estava bem mais tenso que na segunda e sobraram pessoas explodindo em desespero.

Minha sorte é que a “Sociedade do Futmasaji” ganhou uma família tcheca muito louca. Vó, mãe e genro embarcariam no mesmo vôo que nós e, no dia anterior, haviam trocado informações com Jiri, um compatriota na mesma roubada. A senhora mais velha era um verdadeiro dínamo: baixinha, redonda, barulhenta e valente. O tipo de pesadelo para qualquer funcionário de companhia aérea. Justamente o que precisávamos.

Na cola deles, conseguimos superar a incerteza do overbooking e confirmar nosso embarque no A330-200 com destino a Moscou. O competente russo da Aeroflot conseguiu depois lotar a aeronave, mas a decolagem atrasou em mais de duas horas para que isso acontecesse. Não importava, o caminho era o destino e eu não via a hora de seguí-lo.

O serviço de entretenimento incluía entre os filmes o terceiro da trilogia tolkiana, o que foi uma escolha natural para o clima em que eu estava. Depois de três horas e meia de película, um almoço e mais um bom tempo escrevendo coisas no computador, guardei tudo e fui mergulhar na leitura do livro de Pete Fornatale sobre o festival de Woodstock (que eu recomendo a todos).

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Foi quando reparei que o monitor da passageira ao lado não estava funcionando. Ele ficava carregando e entrava em “reboot” sempre perto do final, despejando na tela uma porção de linhas de programação (Lynux, para quem se interessar) antes do próximo ciclo, cada um durando cerca de meia hora. Volta e meia, o carregamento completava, mas bastava ela tentar ver um filme ou carregar uma música que o “reboot” voltava.

Sou daqueles que detesta papo de avião. Sempre que entro em um, coloco meu iPod no ouvido para já deixar claro ao meu vizinho de assento que não estou afim de papo furado. Mas deu pena daquela mulher de uns 40 anos, não muito bonita mas muito bem vestida no estilo russo. Até porque suas duas amigas, na outra ponta da fileira de quatro, não se sensibilizaram em nada com o drama do monitor da colega e estavam mergulhadas em seus respectivos filmes.

Puxei conversa com a pergunta óbvia, para ouvir a resposta mais inesperada. “Vocês são da Rússia?” “Não. Da Abrásia”. De onde??? Abrásia? Que diabo é isso? Nas quatro horas seguintes, a mulher me contou sobre um pequeno país de 300 mil habitantes que fica no sul da Rússia, na fronteira com a Geórgia e que fica entre as montanhas e o Mar Negro. (Nota do Editor: conferindo agora no Google, o nome dado em português ao território é “Abcásia”, uma tradução sobre o nome em cirílico Abkhaziya. Mas este “kh” aparentemente tem o mesmo som do “ch” no alemão, que para nós soa como um “rr” – como em “xumárrer”. Optei por seguir a pronúncia da mulher).

Era um balneário muito querido por soviéticos e alemães orientais na época da cortina de ferro. Mas com o fim da URSS, os geórgios chegaram com tudo - exército e armas - para clamar para si uma região com grande potencial turístico. Mas os abrasianos não se identificam com eles – e nem com os russos. “Somos caucasianos”, explica a mulher, com uma tez de pele um pouco moura e de cabelos pretos como suas colegas.

Perguntei sobre o conflito. “Durou um pouco mais de um ano. E foi uma guerra de contato”. O olhar dela fixa um ponto no vazio. “É uma coisa selvagem e completamente maluca. Você olha no olho da pessoa à sua frente e sabe que, se não atirar primeiro, ela vai atirar”. Deu um frio na espinha imaginar a elegante senhora à minha frente com uma metralhadora na mão, lutando pela independência do seu país.

Descobri que na Abrásia o aeroporto local está fechado há vinte anos, que estão reconstruindo hotéis para receber os turistas e que a culinária local é baseada em polenta. A capital é conhecida como Surrumi (Sukhumi). Mas se chama “Aqva” no idioma deles, cujo significado é mesmo água. A Rússia já reconhece o país, mas a comunidade internacional ainda não. Segundo ela, é porque a Geórgia é muito alinhada com os Estados Unidos e questiona a independência deles. Descendo em Moscou, a mulher me desejou boa sorte na minha aventura rumo à Terra-Média. “Meu problema é fácil de resolver. Boa sorte à Abrásia”.

Toda a conversa tornou o vôo agradável demais e o tempo voou junto, algo bom especialmente nesses trajetos longos e diurnos, sempre uma chatice sem fim. Fiquei pensando em quantas oportunidades de conhecer gente interessante eu perdi sempre que fiquei preso ao meu iPod. Lição aprendida, aqui.

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O atraso na saída de Xangai determinou que a transferência no aeroporto de Moscou teria de ser muito rápida. Num final de tarde chuvoso, um ônibus nos deixou no terminal F onde foi indicado que subíssemos uma escada para passar pelo controle dos passageiros em trânsito. Chegando aos guichês, ficou claro que isso seria impossível: havia apenas uma mulher para receber uma centena de passageiros desesperados para pegar vôos para diferentes destino. A fila inicial virou uma anarquia descontrolada em poucos minutos, até que a coitada gritou um “vôo para Roma pela Aeroflot sai do Terminal D”. Só não sabia dizer como fazer para chegar lá.

Descemos a escada e fomos na imigração normal para entrar em Moscou. Com a quixotesca família tcheca liderando a turba (a avó durona falava russo e foi de um valor inestimável), tentamos furar a fila e o caos fez com que os enrolados funcionários do aeroporto de Sheremetyevo agissem. Nos conduziram até uma porta lateral, onde um grupo de boxeadores norte-coreanos (!?!) já esperava. Enquanto eu conversava sobre Copa do Mundo com um deles, a porta se abriu e subimos em um ônibus para nos levar ao Terminal D.

O pesadelo parecia ter acabado. Passamos por um controle das passagens de mão, mas o desânimo foi total ao dar de cara com um grande saguão com uns vinte jovens espalhados pelo chão, enconstados em suas mochilas e com uma cara de desânimo total. “Esqueçam. Não há ninguém para nos atender no balcão e não estão deixando entrar no terminal quem não tem cartão de embarque”.

Opa! Nós tínhamos o tal do cartão. Fui na frente do grupo para o único guichê com uma policial para fazer o controle dos passaportes. Mostrei o meu junto do cartão que assegurava meu assento no avião para Roma, mas a policial com cara de pesadelo não quis nem saber. “Niet! Sem carimbo, não passa”.

Não adiantou argumentar que o vôo estava para sair e que as trinta pessoas ali precisavam estar dentro dele. A mãe Rússia tem mesmo o sobrenome Burocracia. Depois de uns cinco minutos, como num milagre, apareceu um funcionário da Aeroflot que deu a ordem: “deixem os passar, vai sem carimbo mesmo”.

Entramos no avião dez minutos depois do horário previsto para a decolagem, mas ela ainda demoraria mais de uma hora para acontecer. Mesmo assim, a aeronave não lotou e encontrei um assento com espaço à frente para esticar as pernas e relaxar um pouco. Por volta da meia-noite, pousamos em Roma.

A família tcheca disse ter reservado um ônibus de Roma até Praga pela Internet, que sairia as duas da tarde do dia seguinte. Jiri e eu decidimos que o melhor a fazer seria arrumar um hotel perto da estação de trem de Roma Termini para embarcar em um na manhã seguinte. Pegamos um ônibus do aeroporto até lá e encontramos quartos em um hotel logo em frente. Uma “Nastro Azzurro” serviu para brindar o fim de mais uma etapa. Agora é desmaiar, que o despertador vai tocar muito cedo: se a viagem de trem até Viena/Praga não der certo, a nossa alternativa vai exigir um deslocamento para o norte o mais rápido possível, seja qual for o meio que arrumarmos para isso...

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O SENHOR DOS ANÉIS: O RETORNO DO KRÁL sábado, 24 de abril de 2010

Foram apenas três horas de um sono agitado como só os sonhos de jet lag sabem ser. O alarme tocou pouco depois das cinco da manhã, mas foi fácil sair da cama, fechar a mala e deixar o hotel: o objetivo estava cada vez mais próximo. A estação de Roma Termini estava quase deserta nas primeiras horas do dia, assim como o guichê de informações e compras de bilhete. Seria necessário esperar para saber se havia um trem para Viena, mas Jiri tinha um trunfo na manga e era a hora de utilizá-lo.

“Tenho um amigo que está em Monza testando um Fórmula 1. Mandei uma mensagem para ele, que falou não ter problema nenhum para nos levar até Praga, desde que nos encontremos em Milão”, foi o briefing do tcheco. Fiquei imaginando que amigo seria esse que dribla sem cerimônia a proibição de testes da FIA, ainda por cima em Monza. Mas, àquela altura do campeonato, pegaria carona até com Flavio Briatore ou mesmo com Luca Badoer.

Compramos a passagem até Milão numa máquina automática e seguimos a jornada, desta vez em um novo meio de transporte. Tinha até me esquecido como é bom viajar de trem. Enquanto o dia amanhecia iluminando os campos enevoados da Toscana, espetei meu laptop numa tomada e adiantei a coluna da semana para o Diário Lance. Onde eu conseguiria conexão para enviá-la, porém, era algo tão incerto quanto o desenrolar da minha viagem.

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Chegamos em Milão pouco antes das dez manhã. Enquanto Jiri recebia uma mensagem do amigo pedindo que pegássemos um trem até Monza para que ele evitasse o insuportável trânsito que liga as duas cidades, nós fomos ao guichê para ver se haveria trem até nossas cidades. Uma extensa fila denunciava os reflexos do caos aéreo nas vias férreas. “Para Viena ou Praga? Só hoje à noite... ou... esperem... não, também está lotado. Só amanhã de manhã”, informou o vendedor. “Sem problemas, vamos querer duas passagens no próximo trem para Monza.” A cara que ele fez foi ótima, tentando entender se éramos apenas dois viajantes perdidos que resolveram passar o tempo saciando um possível fanatismo pela Fórmula 1.

Embarcamos no trem regional em meio a um monte de gente engravatada, partindo para mais um dia cotidiano numa região densamente industrializada. “Vocês são heróis”, falou um deles ao saber da nossa trajetória desde Xangai e rumo à Europa Central. Menos, éramos apenas mais um dos milhares afetados pelo vulcão impronunciável e estávamos apenas curtindo cada segundo do deslocamento.

Chegamos em Monza e fomos a um posto de gasolina em frente à estação de trem para esperar pelo amigo de Jiri. Fiquei imaginando a enrascada que estaríamos se o piloto de F-1 misterioso aparecesse com uma Ferrari – seria necessário tirar o motor para que nossas malas coubessem. A minha maior, aliás, estava com aquele “puxador” quebrado desde a China, fazendo com eu a empurrasse mundo afora no muque. “My Precious” é mesmo um fardo pesado para carregar, não é?

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As incertezas se dissiparam com a chegada triunfal do tal amigo. O carro era uma Mercedes GL 450, uma baita de uma SUV. Feita as apresentações de Marek e de sua esposa eslovaca Lenka, a história do teste ficou mais clara. Ele é o editor da versão tcheca da “F1 Racing” e foi a Monza convidado a reportar sobre uma dessas empresas que oferecem a chance de andar com um F-1 antigo por um punhado de grana. Marek deu cinco voltas na Arrows de 1997 de Damon Hill, mas não ficou muito satisfeito. “É pouco. Quando você começa a pegar a mão do carro, as voltas já terminam”, explicou.

Além do teste, ele pôde emprestar o carrão de um representante da Mercedes em Praga, para fazer um box sobre o carro na revista. Para isso, determinou que não tomássemos o caminho comum de volta, que seria uma enorme e movimentada estrada que liga Milão a Veneza e me lembra muito a Dutra. “Vamos para alguns lugares bonitos, para tirar umas boas fotos do carro”, explicou, enquanto o majestoso carro preto passava pelo lava-rápido como uma modelo que se prepara para ser capa de revista. Claro, vamos nessa!

Passamos em um supermercado para fazer um reforço do café-da-manhã e comprar algumas coisas para levar para casa, basicamente queijo e vinho. Quando me dei conta, estávamos no lago de Como, um lugar de beleza ímpar. A volta para casa já não importava tanto. Fizemos umas fotos e partimos logo para um ótimo almoço na beira da água. Depois seguimos lago acima, cruzamos uma parte dele numa balsa e seguimos Itália adentro em direção aos Alpes. Depois da improvável passagem por Monza, custei a acreditar para que lugar rumávamos.

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O GL 450 tinha um navegador de série e Marek vivia recalculando rotas em busca de um caminho mais curto até a autoestrada 22 (meu número da sorte), que nos levaria adiante. Naquela altura,eu já tinha ligado para a empresa férrea austríaca e me certificado que haveria um lugar no trem noturno que sairia de Innsbruck até Viena. Minha viagem no majestoso “Král” (“Rei”, em tcheco) terminaria na capital do Tirol.

Numa dessas mudanças de waypoint, o colega apontou para cidade de Cles. Eu avisei: “já dirigi ali, é bem alto e sinuoso. Melhor tomarmos o outro caminho até Bolzano”. Mas Marek insistiu no trajeto mais curto – pelo menos na metragem indicada no mapa. Não demorou para começarmos a subir em serpentinas intermináveis, muitas vezes tendo de arrastar-nos atrás de caminhões. Vacinados contra qualquer contratempo, Jiri e eu curtíamos a paisagem, mas o casal tcheco-eslovaco volta e meia iniciava uma discussão. Pela velocidade impressionante com que falavam aquele amontoado de consoantes, parecia que eu estava testemunhando um bate-boca entre o José Silvério e o Nílson César. Era engraçado.

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Os ânimos se acalmaram quando paramos para tomar um café no alto da montanha. O ar fresco da primavera, com o sol do final da tarde iluminando o topo das dolomitas, nos clamava a atenção por um lugar especialmente bonito, ainda branco da neve que restava de um dos invernos mais rigorosos de todos os tempos na Europa. Foi Jiri quem primeiro identificou o contraste: “Há dois dias estávamos em Xangai, onde a poluição deixa o ar sempre enevoado no meio daquele monstro urbano. Quem imaginaria que a viagem nos levasse até aqui!” Olhei a placa na esquina, no início de uma outra estrada que indicava faltarem apenas 18 quilômetros até Madonna di Campiglio, onde estivera em janeiro no evento da Ferrari. “Pois é: primeiro Monza, agora aqui. Eram os últimos lugares pelos quais eu imaginaria passar”.

De certa forma, as incertezas da viagem terminaram ali para mim. O caminho até Innsbruck seguiu tranqüilo, com muita conversa e boa música. Por volta de dez e meia da noite, o “Král” estacionou em frente a Bahnhof austríaca e me despedi com uma saudável tristeza dos meus colegas tchecos, com a promessa de visitá-los em Praga em breve e de receber Jiri e sua esposa em Viena também num curto espaço de tempo. Mais do que experiências divertidas, a roubada do vulcão me rendeu um amigo. E o valor disso é inestimável.

Corri para um Internet Café para passar a coluna do Lance – não, eu não tinha esquecido. Depois de comer um lanche rápido no Burger King, fui para um dos únicos locais ainda abertos naquele horário. Era um típico “Beisl” austríaco, um bar enevoado pelas fumaças de cigarro e cheio de tipos estranhos. Entrei naquele e dei de cara com um sujeito que só tinha um olho. Pedi uma cerveja e fiquei observando os outros tipos: os bêbados que deviam ir lá todos os dias, o sérvio que estava enchendo a cara ao mesmo tempo que tentava cantar a senhora que servia a todos, os imigrantes que, como eu, estavam ali para fazer hora e esperar chegar o horário de seus trens.

A cada gole, o cansaço apertava. No meio do copo, já me sentia como um Frodo cada vez mais no limite de suas forças, quase sucumbindo na base da Montanha da Perdição. Resisti só até embarcar no trem, que partiu às quinze para as duas da manhã de quinta-feira. Numa

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cabine vazia, me esparramei em três assentos e desmaiei madrugada adentro. Só abria os olhos quando aquele delicioso chachoalhar cessava para olhar onde estávamos: Salzburg, Wels, Linz, Amstetten e St. Pölten, que foi quando o trem lotou com o povo que trabalha na capital, o dia já amanhecendo.

Cheguei em Viena às 7h40 da quinta-feira, mais de três dias depois de ter deixado o hotel que fiquei originalmente hospedado em Xangai. Cheguei em casa, abri a porta e fui recebido com a alegria contagiante da minha pequena Pipoca. Uma festinha de cachorro com a mesma intensidade de sempre, aliás. Para ela, o dono voltava de uma viagem como todas as outras. Para mim, era o final de uma das aventuras mais bacanas da minha vida.

Massagistas chinesas, ex-guerrilheiras abrasianas, boxeadores norte-coreanos, aeromoças russas, executivos italianos, piloto de Fórmula 1 tcheco: a Terra-Média é cheia de personagens diferentes e cheios de estória. Que eu pude conhecer só porque Mordor resolveu jogar uma nuvem negra sobre parte dela. Há males que vêm para o bem e Sauron não contava com isso.

The End

(Fotos Jiri Kranek e Luis Fernando Ramos; Cartaz Rica Ramos)

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