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FABIANO ALVES ONÇA A ERA DOS GAMES NA SOCIEDADE DA ESCOLHA Tese apresentada à Área de Concentração Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do Título de Doutor em Ciências da Comunicação, sob a orientação do Prof. Dr. Mauro Wilton de Sousa. São Paulo, agosto de 2014

A ERA DOS GAMES NA SOCIEDADE DA ESCOLHA

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  • FABIANO ALVES ONA

    A ERA DOS GAMES NA SOCIEDADE DA ESCOLHA

    Tese apresentada rea de

    Concentrao Meios e Processos

    Audiovisuais da Escola de

    Comunicaes e Artes da

    Universidade de So Paulo, como

    exigncia parcial para a obteno

    do Ttulo de Doutor em Cincias da

    Comunicao, sob a orientao do

    Prof. Dr. Mauro Wilton de Sousa.

    So Paulo, agosto de 2014

  • BANCA EXAMINADORA

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    ________________________________

  • DEDICATRIA

    Para Tati,

    com amor!

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu querido professor, Mauro Wilton de Sousa, que com pacincia, carinho

    e amizade sempre me orientou em meus caminhos.

    Aos meus pais Jos Antonio e Anete, pelo incentivo constante de uma vida

    inteira. E aos pais de meus pais, Jos, Hlia, Hermgenes e Antonieta.

    Vocs vivem em mim.

    minha amada esposa Tatiana, incrvel companheira de aventuras.

    boa e velha ECA, na figura de seus muitos funcionrios, alunos e professores.

    Com suas qualidades e idiossincrasias, no deixar nunca, por vrios motivos,

    de ser muito significativa em minha vida.

    E a todo o meu povo, parentes e amigos: os daqui e os de l! Muito obrigado!

  • Somos os pees deste jogo do xadrez

    que Deus trama. Ele nos move, lana-nos

    uns contra os outros, nos desloca, e depois

    nos recolhe, um a um, Caixa do Nada.

    Omar Khayyam

  • RESUMO:

    Os jogos eletrnicos, ampliados em suas possibilidades pela tecnologia e

    alinhados com o modo de ser contemporneo, experimentam um crescimento

    vertiginoso nas trs ltimas dcadas. Este trabalho sustenta que a atual sntese

    entre jogos, tecnologia e sociedade estabeleceu as condies para a

    deflagrao de uma Era dos Games.

    Esse cenrio se caracteriza no apenas pelo papel preponderante dos jogos

    eletrnicos como uma das principais formas de entretenimento, mas, tambm,

    pela internalizao da lgica de jogo em diversas outras instncias da dinmica

    contempornea. Em seu patamar mais alto, a Era dos Games a constatao

    de que o uso massivo dos jogos eletrnicos promove, em seu enraizamento no

    corpo social, um rebalanceamento na luta travada entre diversas retricas, que

    lutam pela hegemonia explicativa do que seja o jogo e o jogar na

    contemporaneidade.

    Palavras-Chave: games; comunicao; tecnologia; filosofia; jogo

  • ABSTRACT:

    The electronic games, expanded in its own possibilities thanks to its

    alliance with technology and aligned with the contemporary way of being,

    experienced an outstanding growth over the past three decades. This work

    argues that the current synthesis between games, technology and society

    established the conditions for the outbreak of an "Age of Games".

    This scenario is characterized not only by the dominant role of electronic

    games as a major form of entertainment but also for the internalization of

    game logic in several other instances of contemporary dynamics. The "Age of

    Games", in its last phase, is the assumption that the massive use of electronic

    games, in its rooting in the social body, is rebalancing the struggle waged

    nowadays between different rhetorics, each fighting for explanatory hegemony

    of what is play in contemporaneity.

    Keywords: games; communication; technology; philosophy; play

  • SUMRIO

    Introduo

    Introduo - pg. 11

    Captulo I: Jogos Eletrnicos no Cenrio Contemporneo

    1.1. A Visibilidade Social dos Jogos Eletrnicos a partir da Mdia - pg. 16

    1.2. Nmero de Jogadores ao Redor do Mundo - pg. 23

    1.3. Perfil dos Jogadores nos EUA e na Gr-Bretanha - pg. 24

    1.4. A Indstria de Games no Mundo - pg. 27

    1.5. Brasil: os Gamers e o Mercado - pg. 29

    Captulo II: As Mltiplas Faces do Jogo

    2.1. As Mltiplas Faces do Jogo - pg. 31

    2.2. Em Busca de Uma Definio de Jogo - pg. 45

    2.3. Jogo como Linguagem - pg. 47

    2.4. Jogo como Meio de Comunicao de Massa pg. 50

    2.5. O Modus Operandi do Jogo - pg. 53

    2.6. O que o Jogo Significa para os Jogadores - pg. 60

    2.7. Jogo e Diverso (Fun) - pg. 62

    2.8. Jogo e Fantasia - pg. 67

    2.9. Jogo e Onipotncia - pg. 73

    2.10. Jogos Eletrnicos no Contexto Maior dos Jogos - pg. 77

    Captulo III: As Tecnologias da Escolha

    3.1. As TICs (Tecnologias de Informao e Comunicao) e o Jogo - pg. 79

    3.2. Caracterstica Procedimental e Escolha - pg. 82

  • SUMRIO

    3.3. Caracterstica Participativa e Diverso (Fun) - pg. 84

    3.4. Caracterstica Espacial e o Jogo - pg. 90

    3.5. Caracterstica Enciclopdica e o Jogo - pg. 96

    Captulo IV: A Sociedade da Escolha

    4.1. A Sociedade da Escolha - pg. 103

    4.2. Consumismo e Escolha - pg. 105

    4.3. Consumismo e Diverso - pg. 109

    4.4. Consumismo e Fantasia - pg. 111

    4.5. Consumismo e Onipotncia - pg. 113

    4.6. Identidade e Escolha - pg. 115

    4.7. Identidade e Diverso - pg. 125

    4.8. Identidade e Fantasia - pg. 129

    4.9. Identidade e Onipotncia pg. 134

    Captulo V: Concluso

    5.1. Concluso - pg. 139

    Bonus Phase

    6.1. Games: Comunicao Ldica de Massa pg. 145

    6.2. Games: Ideal Contemporneo do Ldico pg. 149

    6.3. Retricas do Jogo em Reordenao pg. 153

    Referncias

    Referncias pg. 156

  • INTRODUO

    11

    INTRODUO

    Nas ltimas trs dcadas, os jogos eletrnicos, popularmente conhecidos

    como games1, ampliam gradativamente seu espao como uma das expresses

    culturais mais efervescentes da contemporaneidade.

    Envolvidos diretamente com a revoluo digital, os jogos reinventaram-

    se em sua modalidade eletrnica, ampliando suas capacidades de maneira

    considervel (TURKLE, 1995).

    Como produto, os jogos eletrnicos constituem hoje uma das mais

    pujantes indstrias culturais do planeta (PRICEWATERHOUSECOOPERS, 2011).

    Como entretenimento, preenchem cada vez mais o tempo livre dos

    indivduos, muitas vezes suplantando outros hbitos de diverso de massa j

    estabelecidos (BBC, 2005) (PEW INTERNET & AMERICAN LIFE PROJECT, 2008)

    (ESA, 2012).

    1 Nota do Autor: neste trabalho, os termos jogos eletrnicos e games sero utilizados como sinnimos.

  • INTRODUO

    12

    Graas sua nova expresso digital, tornaram-se ubquos na mesma

    proporo em que a informatizao espraiou-se pelas mais diferentes situaes

    do cotidiano (MIGE, 2009, p. 140). Para alm dos computadores e consoles,

    os jogos tornaram-se presentes tambm em celulares, relgios, tablets e os

    mais variados aparelhos eletrnicos, o que os coloca, em ltima instncia,

    como possibilidades para todas as horas.

    Nas cidades esvaziadas de espaos pblicos e com espaos privados

    reduzidos, os jovens encontraram nos jogos eletrnicos um espao amplo de

    brincadeira solitria e tambm de interao com seus amigos e colegas. Nas

    relaes familiares, os jogos assumiram o papel de ponte atravs da qual

    diferentes geraes dialogam e se entretm. Nas relaes amorosas, so um

    dos sinais de intimidade. Nas relaes interpessoais, posicionam-se como um

    parmetro de modernidade e incluso tanto quanto de excluso.

    Em diferentes momentos da vida cotidiana a solido nos

    deslocamentos pelas extensas metrpoles, nos diferentes eventos sociais nos

    quais os indivduos se sentem deslocados, dos filhos diante de pais sem

    pacincia para os interesses da infncia, dos adolescentes em busca de desafios

    e liberdade, dos despossudos e desempregados em busca de escape, dos

    idosos em busca de vida os jogos eletrnicos tornaram-se um calmante, um

    elixir, um blsamo, um osis de diverso e alegria para as incompletudes e

    angstias da vida.

    Na poltica, na imprensa, na educao, na publicidade, na Academia, na

    esfera das relaes familiares, na expresso da identidade grupal, na prpria

    seara da identidade pessoal a cultura dos jogos eletrnicos exerce influncia

    sobre os mais diversos eixos nos quais transita a cultura contempornea.

    Dada a amplitude de uso dos jogos eletrnicos e dada a relevncia com

    que isso se apresenta no corpo social, sem limitar-se a classes sociais, geraes

    e campos de interesse especficos, generalizando-se no uso cotidiano, operando

    como termmetro de insero cultural, emprestando sua lgica de

    funcionamento para outras esferas da vida, seria razovel afirmar que os jogos

  • INTRODUO

    13

    eletrnicos tornaram-se um elemento decisivo na construo da socialidade

    contempornea.

    Enfim, por que os jogos eletrnicos adquiriram tanta importncia no

    cenrio contemporneo? Quais seriam os valores, cultivados dentro desse

    cenrio social, que explicariam essa ascenso dos games? Em que medida a

    dinmica da sociedade atual responde pelo uso intensivo dos jogos eletrnicos?

    A hiptese deste trabalho que a ascenso dos jogos eletrnicos fruto

    de uma profunda e indita sntese entre trs elementos: caractersticas da

    dinmica social atual que se associam a especificidades dos jogos e ao modus

    operandi das TICs (Tecnologias de Informao e Comunicao) (MIGE, 2009,

    p. 10). A afinidade entre esses trs elementos constituiria o fator central

    explicativo para a importncia adquirida pelos jogos eletrnicos na

    contemporaneidade.

    Como consequncia, os jogos caminhariam, pois, para tornar-se no

    apenas uma forma cultural de entretenimento hegemnica dos tempos atuais,

    mas tambm meio de comunicao atravs do qual, pelo ldico, a sociedade se

    enxergaria, se comunicaria e se legitimaria.

    Essa proeminncia seria responsvel, em ltima instncia, por uma

    alterao da prpria concepo de jogo sustentada pelo corpo social. O impacto

    geral provocado por essas mudanas o que caracterizaria a chamada Era dos

    Games.

    Em relao estrutura do trabalho, a primeira varivel, concernente aos

    jogos, ser dividida em dois captulos. O primeiro captulo tratar da

    dimenso ocupada pelos jogos eletrnicos no cenrio contemporneo. Embora

    no seja um captulo de anlise, ele importante porque oferece uma

    dimenso aproximada da extenso com que os jogos se infiltram no corpo

    social. Para orientar essa primeira aproximao, sero selecionadas:

    a) Reportagens e artigos na imprensa, com diversas posies a respeito

    das prticas relacionadas aos jogos eletrnicos.

  • INTRODUO

    14

    b) Dados quantitativos a respeito do nmero de jogadores no mundo e

    no Brasil.

    c) Pesquisas que apontem o perfil dos jogadores e hbitos de uso (faixa

    etria, gnero, nvel scio-econmico).

    d) Dados sobre o desenvolvimento da indstria de jogos eletrnicos no

    mundo.

    O segundo captulo procura dar conta das muitas explicaes que

    cercam o enigmtico fenmeno do jogo. Alm disso, ser examinado com mais

    detalhe o modus operandi particular encontrado no jogo, diferente de outras

    tecnologias e expresses desenvolvidas pelo Homem. Afinal, se os jogos,

    operando dentro de um suporte eletrnico, so ferramentas que de alguma

    forma seduzem as pessoas, a explicao para esse engajamento est, antes de

    tudo, na prpria maneira pela qual os jogos, mesmo antes do advento de suas

    verses eletrnicas, capturam a imaginao humana desde a aurora dos

    tempos. Por isso, uma anlise sobre as propriedades do jogar compe o

    segundo captulo da tese.

    O terceiro captulo voltado para a anlise da razo estruturante

    oferecida pelas TICs (Tecnologias de Informao e Comunicao) (MIGE,

    2009, p. 10). Essas tecnologias possuem tambm certas propriedades de uso

    que influenciam as outras duas variveis. No caso dos jogos, h uma

    consonncia, uma ampliao e um enriquecimento das suas qualidades

    impulsionadas pela conjuntura digital. Um exame mais detalhado sobre a

    influncia das condies tecnolgicas dentro desse cenrio o objetivo deste

    captulo.

    O quarto captulo diz respeito ao ltimo eixo desse trip: os valores

    presentes no corpo social, que de algum modo encontram afinidade com as

    caractersticas do jogo eletrnico. Pois, se esse gnero cultural hbrido de

    jogo e tecnologia - vem alcanando magnitude e importncia, porque ele

    tambm satisfaz e reflexo da sociedade que o alimenta, que o molda.

  • INTRODUO

    15

    O quinto captulo abriga a concluso do trabalho. Aqui, pretende-se

    defender a ideia de que o impacto promovido pelo uso intensivo dos jogos

    eletrnicos reverbera em diversos nveis dentro do extrato social. O peso total

    dessa ancoragem dos games no tecido social inauguraria a chamada Era dos

    Games.

  • 16

    CAPTULO I:

    JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    1.1. A VISIBILIDADE SOCIAL DOS JOGOS ELETRNICOS A PARTIR DA MDIA

    As notcias ligadas ao universo dos jogos particularmente os jogos

    eletrnicos - tm merecido um espao cada vez maior e mais frequente dentro

    de diversos veculos de comunicao. Jornais, revistas, noticirios televisivos,

    programas de rdio e diversos sites veiculam regularmente matrias que

    expem os humores de diferentes grupos em relao aos games. Nesta

    introduo, sero indicados alguns ttulos de matrias veiculadas na mdia,

    divididas em cinco grupos distintos.

    O primeiro grupo contm matrias que ainda expressam, de uma forma

    negativa, o estranhamento do corpo social diante das prticas relacionadas aos

    jogos eletrnicos. Ora so reportagens sobre a relao entre jogos e violncia

    (Jogador esfaqueia homem que matou seu personagem em game) (FOLHA

    DE SO PAULO, 2010), ora matrias sobre jogos e comportamento social

    (Grupo cristo promove boicote a jogos com personagens gays) (FOLHA DE

    SO PAULO, 2012), ora pautas que expem a conduta esdrxula de certos

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    17

    tipos de jogadores (Japons se casa com personagem de videogame) (G1,

    2009), ou ainda alertas sobre o efeito nocivo dos jogos (Jogos violentos

    podem alterar funes cerebrais) (ESTADO, 2011).

    Em comum, um tratamento jocoso ou sensacionalista, buscando o

    inusitado, o bizarro, o estranho. As prticas relacionadas aos jogos aparecem

    aqui como objeto de riso, de escrnio, de indignao moral ou ainda como um

    sintoma a ser medicado. Nesse grupo de matrias, os jogadores so vistos

    como pessoas praticamente doentes.

    Esse tipo de atitude hostil em relao aos jogos, embora expresse uma

    recusa, no deixa de traduzir tambm uma aproximao e uma delimitao

    desse campo simblico, na medida em que, ainda que pelo vis negativo,

    reconhecem os jogos eletrnicos como um vetor social.

    No segundo grupo, no outro lado do espectro, o estranhamento para

    com os jogos toma a forma de um certo fascnio, de uma rendio aos games.

    Na medida em que aumentam sua popularidade, os jogos so vistos como

    ferramentas capazes de levar seus praticantes a um melhor patamar em outros

    aspectos da vida.

    Nesse tipo de matrias, a caracterstica mais marcante a atribuio de

    pretensas qualidades aos jogos eletrnicos, qualidades essas que operam como

    um aval para seu uso no mundo cotidiano. Um exemplo dessa nova panacia

    universal encontra-se na revista Veja Games para os Avs (VEJA, 2012), da

    qual se reproduz aqui o lead: Foi-se o tempo em que a diverso do vov era

    jogar biriba com os amigos. Cada vez mais familiarizados com a tecnologia, os

    idosos que trocam o baralho pelo videogame s tm a ganhar.

    Talvez os idosos tenham realmente a ganhar, no por jogarem video

    game em vez de biriba, uma vez que, em ambos os casos, as faculdades

    cognitivas so igualmente estimuladas. Mas sim pelo fato de que, ao aderirem

    ao uso dos jogos eletrnicos, os idosos so guindados da desconfortvel

    posio de velho ultrapassado para a muito mais integrada e confortvel

    postura de jovem de esprito.

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    18

    Isso para no falar da integrao proporcionada pelo consumo. Ao

    aspirar por um determinado console, ao escolher determinados ttulos, ao

    participar do ritual de comparaes entre produtos, o idoso participa de uma

    lgica contempornea.

    Figura 1: Games para os Avs. Revista VEJA.

    Os jogos, dentro desta segunda perspectiva, ajudam a melhorar os

    sentidos (Pesquisa: jogos em primeira pessoa melhoram ateno e viso dos

    usurios) (OLHAR DIGITAL, 2012), o desempenho mental (Jogos de ao

    melhoram o desempenho do crebro) (GAMES UNIVERSE BLOG, 2012), a

    coordenao motora e at mesmo as boas maneiras (Games melhoram

    coordenao motora e boas maneiras das crianas) (FOLHA DE SO PAULO,

    2004).

    No terceiro grupo, h as matrias que, tambm dentro da linha do

    fascnio, vislumbram a importncia dos games a partir daquilo que parece ser

    um dos maiores pontos de legitimao para esta sociedade: jogos como

    negcio, como oportunidade de ganhar dinheiro. Dentro dessa lgica, os games

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    19

    so levados em considerao principalmente porque so a expresso de uma

    nova e pujante indstria cultural.

    A matria publicada pela revista poca, A Maior Diverso da Terra

    (POCA, 2012), por exemplo, prope em seu lead uma relao causal entre o

    desenvolvimento da indstria de games e a disseminao de prticas sociais

    relacionadas ao jogar: Depois de se transformar na forma mais lucrativa de

    entretenimento, os games esto prestes a mudar a maneira como nos

    relacionamos com a realidade.

    Figura 2: "A Maior Diverso da Terra". Revista POCA

    De fato, o amadurecimento cada vez maior da indstria dos games a

    coloca, hoje, em p de igualdade com outras formas de expresso cultural

    mercantilizadas, como a msica, os seriados de TV e os filmes. Jogar no deixa

    de ser uma expresso de um determinado tipo de consumo. Porm, existem

    outros elementos explicativos para a popularizao dos games que ultrapassam

    a lgica de mercado. A popularizao dos jogos beneficiada pela indstria,

    mas no tributria apenas dela.

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    20

    De qualquer modo, o que vale ressaltar que o fato dos games serem

    tratados como negcio, j , em si, tambm, uma maneira de propor uma

    legitimao dos jogos dentro do campo de valores vigentes.

    Exemplos desse tipo de aproximao podem ser encontrados em

    matrias veiculadas no Terra (Mercado Brasileiro de Games vira oportunidade

    de negcios) (G1, 2012), na revista Exame (A Vez dos Advergames na

    Internet) (EXAME, 2012), na revista Pequenas Empresas & Grandes Negcios

    (Mercado de Games tem potencial para faturar R$ 3 bilhes) (PEGN, 2011),

    etc..

    No quarto grupo, alinham-se reportagens que apontam para a

    disseminao do uso dos jogos eletrnicos em diversas funes e atividades

    humanas que no o jogar. Nesse grupo de matrias, a racional est na

    valorizao dos jogos no pela diverso que se obtm jogando o jogo em si,

    mas sim como uma maneira nova, divertida, interativa, enfim, ldica de lidar

    com assuntos ou tarefas do cotidiano considerados ridos, complexos ou

    tediosos. O jogo torna-se instrumento para outra coisa que no o jogo em si.

    Assim, os jogos so apresentados como soluo para treinamentos

    corporativos (Empresas em Jogo) (PEGN, no informado), para

    procedimentos mdicos (Os Games da Sade) (ISTO, 2012), para o ensino

    de matrias na escola (Game Conflitos Globais tenta quebrar paradigma e

    colocar jogos na escola) (G1, 2010), para ajudar a escolher profisses (Jogo

    Empresarial ajuda a escolher profisses) (ESTADO, 2012), etc..

    Essas matrias descrevem um gnero de jogos apelidado, em ingls,

    como serious games, cuja principal funo ajudar os participantes a absorver

    contedos e conceitos diversos. Como o prprio nome j diz, este gnero traz

    embutida a percepo dos jogos como algo originalmente no-srio, que

    tornado srio (produtivo) ao ser usado para a resoluo de uma tarefa prtica.

    uma viso ainda bastante angulada pelo entendimento do jogo como algo

    oposto ao trabalho.

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    21

    Mesmo na publicidade, a nsia de utilizar a dinmica dos jogos em

    benefcio de outra coisa que no o jogo pode ser mensurada pelas diversas

    matrias que tratam dos advergames e os processos de Gamification. Os

    advergames como uma nova maneira de se trabalhar questes como branding

    (Saiba como os Advergames podem promover uma marca) (INFO EXAME,

    2012), ou ainda como meio ideal para o lanamento de produtos (O Jogo

    Rentvel dos Games) (ISTO DINHEIRO, 2008); e a Gamification como uma

    maneira de trabalhar estmulos-recompensas, princpio vital para a indstria da

    publicidade (O que Gamification) (EXAME, 2011).

    Finalmente, o quinto grupo composto pelas matrias que trabalham os

    jogos dentro de uma tica positiva, alavancadas por essa nova indstria

    cultural. So anlises de jogos, reportagens sobre os novos lanamentos da

    temporada, avaliao de gadgets e at mesmo matrias de vis

    comportamental voltadas para os insiders, para os praticantes, para as pessoas

    que jogam regularmente.

    O tratamento dado aos jogos o mesmo que um veculo especializado

    em filmes d aos lanamentos da temporada, ou que um site sobre futebol

    oferece em relao aos jogos da rodada. Traduz uma postura de assimilao

    em relao aos games, enquadrando este gnero cultural na longa e variada

    cadeia de interesses das pessoas. Geralmente, essas notcias ainda esto

    restritas aos cadernos de informtica e aos sites especializados (Novos games

    tornam Playstation 4 e Xbox One mais atraentes) (FOLHA DE SO PAULO,

    2014).

    Ao analisar esses grupos de notcias, percebe-se em primeiro lugar que

    esse assunto tornou-se significativo para uma parcela maior da sociedade.

    Jogar e isso que essas matrias demonstram - tornou-se, em variados

    graus e por diversas razes, uma atividade merecedora de crescente

    curiosidade. Os jogos eletrnicos deixaram de ser uma atividade de interesse

    restrito e tornaram-se um assunto de interesse geral.

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    22

    Em segundo lugar, chama a ateno a variedade de aproximaes

    encontradas nas notcias. Se os games so percebidos pela mdia como um

    novo objeto dentro do cenrio social, sua apreciao est longe de ser

    consensual. Pelo contrrio, assiste-se a uma relao ainda ambgua e paradoxal

    entre a mdia e os games. Como se essa cacofonia de posicionamentos diante

    dos games expressasse um vaivm, uma hesitao, um revoluteio, no apenas

    da mdia, mas sim da sociedade.

    A julgar pelos discursos das matrias, os games so desejados porque

    simbolizam uma nova fonte de prazer e entretenimento, porque trazem o ldico

    vida das pessoas, porque integram, porque trazem refgio ao stress, porque

    suavizam processos que de outro modo seriam ridos, porque podem ser uma

    fonte de lucro.

    Mas, ao mesmo tempo, recusam-se os games porque eles desviam as

    pessoas perigosamente da realidade, porque parecem despertar

    comportamentos doentios, porque so alienantes, porque incitam violncia,

    porque so improdutivos e porque parecem ser perigosamente epidmicos. Os

    pais exemplificam bem essa dualidade: no querem que as crianas sejam

    escravizadas pelos games. Porm, no Natal, lhes oferecem novos consoles.

    Essa dubiedade com que a sociedade lida com os jogos eletrnicos vaza

    pelos canais miditicos e epitomiza o embate de uma sociedade que oscila

    entre diferentes aproximaes e julgamentos. Uma sociedade que, por um lado,

    usufrui do jogo, mas que ao mesmo tempo o rejeita, o estranha, ainda o toma

    como frvolo.

    Isso ainda mais verdade quando se considera o jogo como a grande

    nmesis de uma sociedade ainda fundada no trabalho e em certos valores

    morais-religiosos. Neste sentido, a emergncia dos jogos eletrnicos a ponta-

    de-lana que reacende uma luta intestina entre diversas concepes a respeito

    do jogo, cujas origens se perdem no tempo.

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    23

    1.2. NMERO DE JOGADORES AO REDOR DO MUNDO

    McGonigal (MCGONICAL, 2011) tenta estimar a comunidade gamer ao

    redor do mundo. Note-se que, por gamers, entende-se desde aqueles que

    possuem um console at aqueles que utilizam jogos sociais via internet,

    passando por usurios dos clssicos jogos de computador at os que se

    divertem em dispositivos mveis, como celulares e tablets.

    Apenas nos Estados Unidos existem 183 milhes de jogadores ativos [...].

    Globalmente, a comunidade gamer online incluindo console, PC e jogos

    para celular contabiliza mais de 4 milhes de jogadores no Oriente Mdio,

    10 milhes na Rssia, 105 milhes na ndia, 10 milhes no Vietn, 10

    milhes no Mxico, 13 milhes nas Amricas Central e do Sul, 15 milhes na

    Austrlia, 17 milhes na Coria do Sul, 100 milhes na Europa e 200 milhes

    na China (MCGONICAL, 2011, p. 3).

    Aceitando os nmeros propostos por McGonical, chega-se a uma

    populao de quase 670 milhes de jogadores ao redor do planeta, um nmero

    nada desprezvel.

    Nos Estados Unidos, pesquisa realizada em 2011 pelo NPD Group estimou

    em 211,5 milhes o nmero de gamers norte-americanos (NPD GROUP, 2012),

    um nmero ainda maior do que o oferecido por McGonigal (183 milhes).

    Pesquisa da holandesa Newzoo, especializada na aferio do mercado de

    games ao redor do mundo, reportou um total de 157 milhes de jogadores

    ativos nos EUA em 2012 (NEWZOO, 2012), um nmero mais conservador. Ou

    seja, a julgar por estas trs fontes, o nmero de gamers norte-americanos

    oscila de 150 milhes a 200 milhes, num universo de 319 milhes de

    habitantes (UNITED STATES CENSUS BUREAU, 2013).

    Do mesmo modo, as estimativas se estendem para outros territrios do

    mundo, com nmeros muitas vezes conflitantes. Enquanto McGonical estima

    em 4 milhes os gamers no Oriente Mdio, a Newzoo coloca, apenas na

    Turquia, um nmero prximo de 30 milhes de jogadores. Na Rssia,

    McGonical projeta 10 milhes de jogadores, enquanto pesquisa realizada pela

    Viximo (VIXIMO, 2012), plataforma especializada em social games, contabiliza

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    24

    35 milhes de jogadores e levantamento conduzido pela Newzoo aponta 38

    milhes de gamers russos.

    De qualquer modo, quer estime-se 700 milhes de jogadores, numa

    estimativa conservadora, ou quer projete-se 1 bilho de jogadores no planeta,

    numa estimativa mais ousada, fica evidente que este um fenmeno massivo

    que, quer pela populao de praticantes, quer pela distribuio ao redor do

    mundo, no pode deixar de ser examinado em mais detalhe.

    1.3 PERFIL DOS JOGADORES NOS EUA E GR-BRETANHA

    Os Estados Unidos e a Gr-Bretanha so os pases onde os jogos

    eletrnicos alcanam hoje sua expresso mais vigorosa. So mercados

    maduros, lugares onde diversas prticas associadas aos jogos j esto

    enraizadas. Devido a isso, as pesquisas sobre esse tema neles desenvolvidas

    no apenas so mais fidedignas, como tambm servem como parmetro para

    estudos sobre o assunto.

    Tomou-se como base para a anlise as seguintes pesquisas: Adults and

    Video Games (PEW INTERNET & AMERICAN LIFE PROJECT, 2008) e Teens,

    Video Games and Civics (PEW INTERNET & AMERICAN LIFE PROJECT, 2008);

    BBC UK Games Research (BBC, 2005), Essential Facts About the Computer

    and Video Game Industry Sales, Demographic and Usage Data da ESA

    (Entertainment Software Association) (ESA, 2012).

    A primeira constatao importante diz respeito ao nmero total de

    jogadores dentro da populao total. O Pew Institute afirma que 53% dos

    americanos com mais de 18 anos jogam videogames, dos quais 21% jogam

    todos os dias ou quase todos os dias. De modo similar, pesquisa da BBC,

    reportando sobre o pblico do Reino Unido, afirma que 59% da populao

    pratica algum tipo de jogo eletrnico, seja ele num console, num PC, na TV

    interativa, num porttil ou no celular.

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    25

    Um segundo corte demonstra que, em todas as pesquisas, h um

    componente geracional. A ESA aponta 30 anos como a idade mdia do gamer,

    enquanto a BBC calcula em 28 anos a idade mdia (lembrando que entre as

    duas pesquisas existe uma diferena de sete anos. Certamente, a idade mdia

    sugerida pela BBC, a pesquisa mais antiga, j se elevou).

    E em todas as pesquisas, quanto mais jovem, maior a taxa de uso dos

    games. No Reino Unido, virtualmente 100% da populao de 6-10 anos

    praticante. A taxa cai para 97% na faixa de 11-15 anos, 82% na de 16-24

    anos; 65% na de 25-35 anos; 51% na de 36-50 anos e 18% na de 51-65 anos.

    Os dados do Pew Institute no so diferentes: confirmam os mesmos 97% de

    uso para a faixa de 11 a 15 anos. Na introduo do relatrio, pesquisadores do

    Pew afirmam:

    Jogar games algo universal, virtualmente todos os adolescentes jogam

    games e ao menos metade jogam todos os dias. Experincias com games

    so diversas, com as categorias mais populares recaindo nos gneros de

    corrida, puzzle, esportes, ao e aventura. Jogar tambm social, com

    muitos adolescentes jogando games uns com os outros ao menos parte do

    tempo e incorporando vrios aspectos de civilidade e vida poltica. (PEW

    INTERNET & AMERICAN LIFE PROJECT, 2008)

    Entretanto, ainda que eventualmente geracional, h alguns dados que

    chamam a ateno e que desmontam a ideia de que jogos eletrnicos so um

    privilgio exclusivo dos jovens.

    De acordo com o Pew Institute, o grupo dos americanos com mais de 65

    anos que jogam games , proporcionalmente, mais compromissado com o jogo

    que os extratos mais jovens: quase um tero dessa populao joga todos os

    dias, contra apenas 20% dos jovens que jogam diariamente.

    Uma terceira angulao a que diz respeito ao gnero dos participantes.

    Contrariando a percepo de que o jogo uma atividade eminentemente

    masculina, a pesquisa da ESA, de 2012, reporta uma proporo de 53% de

    homens e 47% de mulheres gamers. Estes dados so confirmados pela

    pesquisa da BBC, de 2005, que classifica os gamers entre 55% homens e 45%

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    26

    mulheres. Mais ainda, de acordo com a ESA, mulheres de 18 ou mais

    representam uma parte significativamente maior da populao gamer (30%) do

    que garotos de 17 ou menos (18%).

    Em relao educao, a pesquisa Pew indica que, quanto maior o grau

    de instruo, maior a porcentagem de praticantes. Dos jogadores com 18 anos

    ou mais, cerca de 57% das pessoas com grau universitrio jogam games,

    contra 51% com apenas o colegial, e contra 40% das pessoas com apenas o

    fundamental ou menos. Ainda de acordo com a pesquisa, estudantes podem

    ser classificados como jogadores vidos, com uma taxa de 76% de usurios

    que jogam diariamente, comparados com 49% dos no-estudantes.

    Em termos de classe social, essa diferena tambm encontrada, ainda

    que de maneira mais moderada: 56% das pessoas com renda superior a US$

    75.000 anuais jogam games, contra 52% das pessoas com menos de US$

    30.000 anuais. Nisto, a pesquisa da BBC aponta resultados prximos: 52% dos

    membros das classes A, B, C1 jogam, contra 48% dos membros da classe C2,

    D, E.

    De modo geral, o que essas e outras pesquisas indicam que a populao

    gamer em pases que convivem de modo mais intenso com essa prtica est,

    hoje, longe de coincidir com o perfil que ainda resiste no imaginrio popular, do

    gamer como homem, jovem, de classe alta.

    Jogar um hbito que se espalhou pelos gneros e por diferentes classes

    sociais. Tornou-se uma atividade corrente para uma parcela razovel da

    populao mais idosa, uma prtica comum para a gerao dos trinta, um

    componente imprescindvel de socializao quando se trata de adolescentes e

    um elemento praticamente natural quando falamos de crianas.

    Tambm impressiona o grau de penetrao nas diferentes classes sociais.

    A maior diferena no est tanto no poder aquisitivo, mas sim no grau de

    formao cultural e educacional (57% contra 40%). Jogar, neste sentido,

    torna-se uma prtica cada vez mais universalizada, tal qual o uso que se faz de

    outros meios, como ver TV, ouvir msica ou ir ao cinema. Jogar pode ser visto

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    27

    como um componente cada vez mais presente dentro do estilo de vida

    contemporneo.

    Ao projetar estes dados em escala mundial, percebe-se um fenmeno

    massivo, global, geracional e ainda em curso de consolidao, que estende sua

    influncia no apenas queles que jogam, mas tambm, cada vez mais, queles

    que no jogam - mas que convivem com os gamers e a cultura gamer em casa,

    no trabalho, na escola e em outros momentos da vida social.

    1.4. A INDSTRIA DE GAMES NO MUNDO

    A ascenso dos jogos eletrnicos ao longo das ltimas trs dcadas

    tambm est atrelada ao surgimento e desenvolvimento do jogo como produto

    cultural. O tamanho da indstria de games j superou outras do setor, como a

    de msica ou de revistas.

    Matria publicada na revista The Economist, intitulada All the worlds a

    game, oferece uma viso objetiva a esse respeito.

    Nas duas ltimas dcadas o negcio de video games evoluiu de uma

    indstria artesanal, que vendia para pequenos nichos de consumidores, para

    um dos ramos mais pujantes da indstria de entretenimento. De acordo com

    a consultoria PricewaterhouseCooopers (PwC), o mercado global de video

    games rendeu cerca de US$ 56 bilhes em 2010. Isso mais que o dobro

    do tamanho da indstria fonogrfica, quase um quarto a mais do que o

    negcio de revistas e cerca de trs quintos do tamanho da indstria de

    filmes, incluindo vendas de DVDs. PwC prediz que os video games sero a

    mdia de crescimento mais rpido ao longo dos prximos anos, com vendas

    subindo para US$ 82 bilhes em 2015. (THE ECONOMIST, 2011).

    De acordo com a consultoria norte-americana DFC Intelligence (DFC

    INTELLIGENCE, 2011), o mercado mundial de games movimentou US$ 65

    bilhes de dlares em 2011 (em 2010, foi estimada uma movimentao de 62,5

    bilhes). Deste valor, US$ 29 bilhes foram obtidos com a venda de consoles e

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    28

    ttulos. J outros US$ 18 bilhes, com a venda de itens em jogos online, como

    Farmville e congneres.

    J para o analista da indstria de games Colin Sebastian, o setor faturou

    USS 60 bilhes em 2011, motivado principalmente pelo crescimento nos jogos

    online e mobile (IBM, 2011). Para a PricewaterhouseCooopers

    (PRICEWATERHOUSECOOPERS, 2011), o setor de games alcanou a marca de

    US$ 68,3 bilhes em vendas no ano de 2012.

    Figura 3: Faturamento anual por mdia at 2015 (Pricewaterhouse Coopers)

    Em relao ao crescimento futuro, Sebastian prev que a indstria alcance

    vendas de US$ 80 bilhes em 2014. A DFC Intelligence aponta US$ 82 bilhes

    em 2017, e PricewaterCoopers aposta que os US$ 82 bilhes sero batidos pela

    indstria em 2015.

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    29

    Enfim, o que se depreende dessas estimativas que a indstria de

    games, daqui a menos de uma dcada, ser majoritria dentro da indstria

    cultural.

    1.5 BRASIL: OS GAMERS E O MERCADO

    Segundo matria publicada na Folha de So Paulo (FOLHA DE SO

    PAULO, 2012), de acordo com a pesquisa Game Pop, conduzida pelo IBOPE

    nas treze maiores capitais do pas, cerca de 23% dos brasileiros entrevistados

    jogam videogame ou algum tipo de jogo eletrnico, ao menos de vez em

    quando, perfazendo uma populao de jogadores de 45,2 milhes de pessoas.

    A diviso por gnero, de acordo com os dados da pesquisa IBOPE, seria

    relativamente equilibrada. Cerca de 53% dos jogadores so homens, contra

    47% mulheres, acompanhando a tendncia internacional, como j observado.

    Em termos de faixa etria, a mais significativa a de at 19 anos,

    respondendo por 40% dos usurios algo natural, uma vez que o universo dos

    jogos eletrnicos no Brasil ainda est menos amadurecido do que pases como

    EUA ou Gr-Bretanha.

    A classe social tambm seria fator influente. De acordo com a pesquisa,

    41% so membros da classe B, o que refora a ideia de que, no Brasil, as

    prticas relativas ao jogo eletrnico ainda estejam razoavelmente atreladas

    classe social qual o indivduo pertence.

    Em relao ao volume de dinheiro movimentado, segundo matria da

    Folha de So Paulo (FOLHA DE SO PAULO, 2012), a consultoria

    PricewaterhouseCoopers (PwC) estima que o mercado nacional movimentou R$

    840 milhes em 2011, o que o colocaria como o quarto maior mercado do

    mundo. A previso mdia de crescimento, segundo a consultoria, giraria em

  • CAPTULO I: JOGOS ELETRNICOS NO CENRIO CONTEMPORNEO

    30

    torno de 7,1% ao ano, at 2016 quando o mercado brasileiro atingiria o valor

    de R$ 4 bilhes.

    Pensado como negcio, os jogos no Brasil esto ainda dentro de um

    processo de maturao. Porm, os dados sugerem que esse quadro se altera

    paulatinamente, ano a ano, impulsionado pela disseminao massiva da

    internet e de aparelhos como celulares, tablets e computadores.

  • 31

    CAPTULO II:

    AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    2.1. AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    O campo de estudos sobre os jogos conhecido por duas caractersticas:

    a primeira que um campo vasto, escrutinado por especialistas de reas to

    distintas como a Etologia, Psicologia, Antropologia, Sociologia, Filosofia e

    Comunicao.

    E a segunda que, a despeito das inmeras tentativas de defini-lo, ele

    permanece ainda um campo em boa parte no desvendado, cercado por

    ambiguidades, elusivo quanto s classificaes e generalizaes com que a

    Cincia tenta elucidar seus objetos de estudo.

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    32

    primeira vista, parece relativamente fcil identificar quando uma pessoa

    est envolvida num jogo. Por exemplo, tome-se duas crianas brincando num

    jardim, empreendendo uma disputa para ver se uma consegue pegar a outra.

    Quer o observador seja um participante da cultura global contempornea, ou

    quer seja membro de outra tradio cultural, quase instintivo para um ser

    humano identificar o comportamento delas como um jogo.

    Por outro lado, embora identificar um jogo parea muitas vezes uma

    atividade banal, facilmente reconhecvel, alcanar uma definio precisa a

    respeito das fronteiras daquilo que jogo (e do que no ) tarefa que se

    demonstra praticamente impossvel.

    A razo disso, de maneira muito resumida, est no fato de que, sob a

    gide da palavra jogo, abrigam-se um grande nmero de percepes,

    fenmenos, agentes e motivaes, que impossibilitam uma totalidade

    explicativa mesmo para os mais bem elaborados esquemas tericos.

    Nas palavras do pesquisador-chefe do Laboratrio de Pesquisa sobre o

    Jogo e o Jogar da Universidade Paris-Nord, Jacques Henriot (HENRIOT, 1989),

    citado por Brougre (BROUGRE, 1998, p. 17), O jogo uma coisa de que

    todos falam, que todos consideram como evidente e que ningum consegue

    definir.

    De antemo, o vocbulo jogo, por si s, j traz consigo uma formidvel

    polissemia, como ser visto adiante, indicativa ela mesma da amplitude e da

    variabilidade com que esse tipo de fenmeno se manifesta dentro de inmeros

    contextos. E que se adensa ainda mais, caso jogo seja utilizado no sentido

    mais amplo que o sentido original dado ao verbo play na lngua inglesa e

    spielen na lngua alem que considera como jogo atividades estruturadas

    em torno de regras informais, como as brincadeiras infantis, ou ainda

    considerando como jogo um tipo particular de fruio que a participao

    vicria (assistir a uma pea de teatro, assistir a uma partida de futebol, etc..).

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    33

    Um bom exemplo de como opera essa polissemia imaginar uma pessoa

    dialogando com outra. Mostre um jogo s crianas. E a pessoa imediatamente

    ensina-as a jogar dados a dinheiro. No tive em mente um jogo como esse

    dir o primeiro (WITTGENSTEIN, 1999, p. 54).

    Na tentativa de organizar melhor os nveis de entendimento atrelados ao

    termo jogo, Gilles Brougre, por exemplo, em seu livro Jogo e Educao,

    distingue trs contextos de uso diferentes para essa palavra. Em sua viso,

    jogo pode ser entendido primeiramente como uma atividade, uma situao

    que se caracteriza pelo fato de que seres jogam, tm uma atividade que diz

    respeito ao jogo, qualquer que seja sua definio (BROUGRE, 1998, p. 14).

    Para ele, isso abrange desde atividades reconhecidas diretamente como

    jogo (uma partida de futebol) at aes que sejam nomeadas como jogo dentro

    de um plano metafrico (jogo poltico, jogo do amor, jogo da vida, etc.).

    Mas, para Brougre, jogo tambm pode ser entendido como uma

    estrutura, um sistema de regras (game, em ingls), que existe e subsiste de

    modo abstrato independentemente dos jogadores, fora de sua realizao

    concreta em um jogo entendido no primeiro sentido (BROUGRE, 1998, p. 14).

    Claro, nesta acepo, o jogo tambm transborda para o mundo real, na medida

    em que pode ser traduzido como um software, ou ainda como um espetculo

    (um jogo de tnis televisionado, uma partida de futebol).

    Finalmente, para Brougre, o jogo tambm um objeto, numa associao

    que o aproxima de um brinquedo, embora, para ele, exista uma diferena

    fundamental, que o uso dos objetos de jogo dentro de um sistema de regras

    que os dotem de sentido. Um tabuleiro de xadrez, nesta acepo, um

    material ldico que ganha expresso na medida em que a representao

    concreta de um sistema de regras que o sustenta.

    J Wittgenstein, em sua obra Investigaes Filosficas, segue outro

    caminho. Ele tenta dar conta dessa grande diversidade que se abriga sob o

    signo do jogo assumindo a ambiguidade que se embute nesse fenmeno e

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    34

    nessa palavra. Em seu aforismo 66, ele demonstra seu entendimento da

    questo:

    Considere, por exemplo, os processos que chamamos de jogos. Refiro-me

    a jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios esportivos, etc. O que

    comum a todos eles? [...] Considere, por exemplo, os jogos de tabuleiro,

    com seus mltiplos parentescos.

    Agora passe para os jogos de cartas: aqui voc encontra muitas

    correspondncias com aqueles da primeira classe, mas muitos traos

    comuns desaparecem e outros surgem. Se passarmos agora aos jogos de

    bola, muita coisa comum se conserva, mas muitas se perdem. So todos

    recreativos?

    Compare o xadrez com o jogo da amarelinha. Ou h em todos um ganhar e

    um perder, ou uma concorrncia entre os jogadores? Pense nas pacincias.

    Nos jogos de bola h um ganhar e um perder; mas se uma criana atira a

    bola na parede e a apanha outra vez, esse trao desapareceu. Veja que

    papis desempenham a habilidade e a sorte. E como diferente a habilidade

    no xadrez e no tnis.

    Pense agora nos brinquedos de roda: o elemento divertimento est

    presente, mas quantos dos outros traos caractersticos desapareceram! E

    assim podemos percorrer muitos, mas muitos outros grupos de jogos e ver

    semelhanas surgirem e desaparecerem. E tal o resultado desta

    considerao: vemos uma rede complicada de semelhanas, que se

    envolvem e se cruzam mutuamente. Semelhanas de conjunto e pormenor.

    (WITTGENSTEIN, 1999, p. 52)

    Wittgenstein nomeia essa teia de semelhanas como semelhanas de

    famlia, do mesmo modo que, dentro de uma grande famlia, encontramos

    tanto uma vaga semelhana entre os indivduos que dela fazem parte, quanto

    algumas diferenas, quer seja a cor dos olhos, o temperamento, a estatura ou

    os traos fisionmicos. Ou seja, Wittgenstein entende os jogos como uma

    famlia, impossvel de ser definida nitidamente, mas semelhante o suficiente

    para que seus membros possam celebrar algo em comum.

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    35

    Porm, a polissemia dos jogos tambm se traduz atravs de outro prisma

    que no o da linguagem: pelas diferentes atividades atravs das quais o jogo se

    expressa dentro da experincia humana. Sutton-Smith (SUTTON-SMITH, 2001,

    p. 5) lista algumas nas quais o jogo pode surgir.

    a) Jogos Mentais ou Subjetivos: sonhos, sonhar acordado, fantasia,

    imaginao, ruminaes, divagaes, Dungeons & Dragons (RPG),

    metforas de jogo, jogar com metforas.

    b) Jogos Solitrios: hobbies, colees, modelismo (trens, avies, barcos),

    escrever para amigos postais, construir maquetes, ouvir msica,

    construes, projetos de arte, jardinagem, arranjos florais, utilizao de

    computadores, assistir vdeos, leitura e escrita, novelas, brinquedos, viagem,

    simulaes de batalhas, msica, bichos de estimao, trabalhos em madeira,

    ioga, antiguidades, voar, corrida de carro, colecionar e reconstruir carros,

    velejar, mergulhar, astrologia, andar de bicicleta, trabalhos manuais,

    fotografia, fazer compras, viagem de mochila, pescar, bordar, observar

    pssaros, palavras-cruzadas, cozinhar.

    c) Comportamentos de Jogo: pregar peas, brincar por a, jogar contra o

    tempo, animar algum atravs de brincadeiras, fazer troa de outros, fazer

    trocadilhos com as palavras, fuar em equipamentos, colocar algum na

    brincadeira, manter as coisas em jogo, jogar limpo, jogar contra as regras.

    d) Jogos Sociais Informais: piadas, festas, cruzeiros, viagem, lazer, dana,

    skate, perder peso, jantares, jogos de conquista, jantares coletivos, passear

    no shopping, receber convidados, cuidar de crianas, baladas, puxar e

    agarrar, parques de diverso, anacronismo criativo, parques de diverso,

    intimidades, jogos de fala (histrias, fofocas, nonsense), bares de solteiros,

    bares, mgica, radio-amador, restaurantes, internet.

    e) Jogos de Audincia Vicria: televiso, filmes, quadrinhos, concertos,

    terras da fantasia, espectador de jogos, teatro, shows de msica, desfiles

    (Carnaval, procisses, datas cvicas), concursos de beleza, corridas de

    automveis, parques nacionais, festivais de folclore, museus, realidade

    virtual.

    f) Jogos de Performance: tocar piano, tocar msica, ser um ator, jogar o

    jogo pela graa do jogo, curtir um determinado lugar (Nova York),

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    36

    pescaria, cavalgada, imitar e fazer vozes diferentes, fazer mmica, brincar

    por brincar.

    g) Celebraes e Festivais: aniversrios, Natal, Pscoa, Dia das Mes, troca

    de presentes, banquetes, churrascos, casamentos, festivais, iniciaes.

    h) Disputas (jogos e esportes): atletismo, jogos de azar, cassinos, cavalos,

    loterias, boles, futebol, luta de pipas, golfe, gincanas, beber entre amigos,

    Olimpadas, touradas, briga de galo, crquete, pquer, truques sujos,

    estratgia, habilidades fsicas, sorte, disputas entre animais, arqueria, queda

    de brao, jogo de tabuleiro, jogos de cartas, artes marciais, ginstica.

    i) Jogos de Risco: explorao em cavernas, asa delta, caiaque, rafting,

    esquiar na neve, bunguee jumping, windsurf, escalada, mountain bike,

    ultramaratona, pular de paraquedas.

    E da mesma maneira com que o jogar se espraia pelas mais diferentes

    atividades humanas, tambm possvel perceber sua presena atravs do seu

    vasto nmero de agentes (de crianas a atletas); ou ainda atravs dos

    equipamentos utilizados para o jogar, que vo desde os mais formais (bolas,

    tacos, dados, cartas, peas, softwares) at os mais informais, j que

    praticamente qualquer coisa pode se tornar um objeto de jogo.

    Outra maneira de se dar conta da amplitude do jogo (e de suas

    definies) atravs do fato de que ele largamente ultrapassa a fronteira da

    humanidade, podendo ser encontrado no s em praticamente todos os grupos

    de mamferos, mas tambm em aves. O eminente etologista Robert Fagen, em

    seu clssico trabalho Animal Play (1981), oferece exemplos de

    comportamento de jogo em mais de quinhentas espcies diferentes de

    mamferos e aves, e aponta ainda dois estudos sobre comportamento de jogo

    at mesmo em rpteis, como os crocodilos, que gozam de certo parentesco

    com as aves (corao com quatro cmaras, cuidados ps-natais). De certa

    maneira, o jogo parece atrelar-se ao prprio desenvolvimento da inteligncia.

    Ademais, a confirmao de que outras espcies tambm jogam obriga os

    estudiosos do jogo a enquadrar esse fenmeno, dentro da esfera humana, no

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    37

    apenas eminentemente como uma manifestao cultural, mas sim como um

    algo anterior cultura, como uma fora primeva.

    Talvez por conta disso, vrios tericos tenham insistido em buscar a raiz

    do jogar dentro do comportamento animal, j que nesse campo estariam

    menos suscetveis s complexas variaes culturais, psicolgicas e sociais

    encontradas na espcie humana.

    Ao realizar um balano dos estudos sobre o jogo animal, autores como

    Salen e Zimmerman (SALEN e ZIMMERMMAN, 2004, p. 309) indexam algumas

    das supostas motivaes ou funes que, desde o sculo XVIII, eram

    tipicamente associadas com o jogar em diversos campos de estudo, tendo

    como pano de fundo uma explicao biolgica.

    Via de regra, essas teorias procuravam divisar uma funo ou vantagem

    evolutiva associada ao jogo. Dentre outras possibilidades, o fenmeno do jogo

    era comumente associado a:

    a) Gasto de um surplus de energia.

    b) Expresso de exuberncia geral, joie-de-vivre.

    c) Expresso de impulsos relacionados ao sexo, agresso ou ainda

    ansiedade.

    d)Treino, prtica juvenil de habilidades relacionadas vida adulta.

    e) Contexto para explorao e experimentao.

    f) Um meio de socializao.

    g) Ferramenta para auto-expresso e diverso.

    Entretanto, esse tipo de explicao, que procurava oferecer uma funo

    de ordem biolgica para justificar a existncia do jogo, no se provou suficiente

    para dar conta da totalidade desse fenmeno. Como diria Huizinga,

    O mais simples raciocnio nos indica que a natureza poderia igualmente ter

    oferecido s suas criaturas todas essas teis funes de descarga de energia

    excessiva, de distenso aps um esforo, de preparao para as exigncias

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    38

    da vida, de compensao de desejos insatisfeitos, etc., sob a forma de

    exerccios e reaes puramente mecnicos. Mas no, ela nos deu a tenso,

    a alegria e o divertimento do jogo. (HUIZINGA, 2001, p. 5)

    Um exemplo prtico que demonstra os limites desse tipo de interpretao

    o fornecido pela etologista Lynda Sharpe, em depoimento Scientific

    American. Durante catorze anos ela estudou em campo o comportamento de

    pequenos mamferos habitantes do deserto de Kalahari, chamados de suricatas.

    Seu objetivo, ao acompanhar o crescimento de quarenta e cinco suricatas, era

    comprovar se comportamentos de jogo efetivamente se traduziam em

    vantagens para seus participantes.

    O resultado de suas observaes foi que indivduos que brincavam mais

    de caador no se transformavam em melhores caadores do que aqueles

    que jogavam menos. Do mesmo modo, suricatas que brincavam juntos e eram

    mais sociveis no desenvolveram laos de amizade superiores aos que no

    brincavam tanto. E nem aqueles que brincavam mais de luta desenvolveram-

    se preponderantemente como machos dominantes. Vrios outros estudos com

    coiotes, gatos e outros mamferos chegaram mesma concluso (SHARPE,

    2011).

    o que exemplifica Sutton-Smith, rebatendo a idia de que o jogo, por

    exemplo, uma preparao para a vida: Em termos humanos, quantos de ns

    vamos assistir a uma pea, ou a um filme, ou assistir desenhos primariamente

    para ganhar informao a respeito de habilidades teis para a vida real?

    (SUTTON-SMITH, 2001, p. 27).

    essa ambiguidade que leva Fagen (FAGEN, 1981), citado por Sutton-

    Smith (SUTTON-SMITH, 2001, p. 2) a afirmar que

    A mais irritante caracterstica do jogo no sua incoerncia perceptual,

    como tal, mas sim, que o jogo nos provoca com sua inacessibilidade. Ns

    sentimos que algo est por trs de tudo, mas ns no sabemos, ou

    esquecemos como enxergar isso.

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    39

    Essa sensao de areia escapando das mos se deve, em boa parte,

    maneira sutil como esse fenmeno se infiltra na vida cotidiana. Pois como

    definir algo que se insinua, sem aviso, nas mais variadas necessidades e

    motivaes?

    Ainda assim, especialmente nos ltimos dois sculos, propagaram-se as

    mais diferentes definies sobre jogo, a partir de suas mltiplas expresses e

    cruzamentos dentro da experincia humana.

    Burghardt, em seu livro The Genesis of Animal Play: Testing the Limits

    lista alguma delas (BURGHARDT, 2006, p. 7), produzidas por pesquisadores de

    diversos campos de estudo, o que apenas refora a sensao de perplexidade

    diante de to diferentes maneiras de se perceber o jogo:

    a) Jogo liberdade.

    b) Jogo um respiro essencial das seriedades da vida.

    c) Jogo um comportamento srio nos quais as artes da guerra so

    aprendidas.

    d) Jogar simplesmente vagabundear: o comeo de um caminho que leva

    delinquncia, apostas e at mesmo crime.

    e) Jogo encorajado pelos poderosos da sociedade para distrair as massas

    de suas opresses, ou mais benignamente, para amenizar a falta de controle

    sobre as decises que os afetam.

    f) Jogo carrega em si toda a criatividade e inovao, incluindo arte e cincia

    produzida pelos adultos.

    g) Jogo o manancial dos rituais e mitos pelos quais ns estruturamos

    nossas vidas. Toda vida um jogo ou um palco no qual ns atuamos

    durante o nosso tempo dado.

    h) Jogo um produto burgus da industrializao e ganhou tal denominao

    apenas aps o trabalho tornar-se apartado da vida cotidiana.

    i) Jogo a feliz e entusistica participao na vida.

    j) Jogo um esporte cruel, tenso e competitivo.

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    40

    A partir desse quadro de extensa diferena, Sutton-Smith sugere a

    seguinte sada terica. Para ele, em torno das diferentes vivncias e

    aproximaes em relao ao jogo, foram sendo forjadas diferentes retricas,

    que buscam, implcita ou explicitamente, convencer e persuadir os outros a

    respeito da veracidade de suas crenas. E cada uma dessas retricas acaba por

    descrever o jogo a partir de um contexto mais amplo de entendimento.

    Sutton-Smith enumera sete grandes tradies, cada qual com sua prpria

    retrica e associadas a diferentes tradies histricas, significados, formas,

    disciplinas e tericos. Embora todas sejam vlidas, em suas diferenas elas

    demonstram o que talvez seja uma das poucas concordncias em relao ao

    jogo: sua grande variabilidade contextual. Em resumo, essas sete retricas

    buscam aproximaes com os jogos da seguinte maneira (SUTTON-SMITH,

    2001, p. 9):

    a) Jogo como Progresso por esta retrica, o jogo visto como uma

    adaptao, como um mecanismo de progresso, como uma forma de

    desenvolvimento do crebro, como uma maneira de indivduos jovens

    adquirirem habilidades, socializarem, amadurecerem as emoes. Surgida a

    partir do Iluminismo, usualmente aplicada no estudo de animais e em estudos

    sobre o jogo infantil. Para Sutton-Smith, uma viso que agrada bastante aos

    pais e ao pblico ocidental, embora sua eficcia tenha sido mais assumida do

    que demonstrada (SUTTON-SMITH, 2001, p. 9). Nela, o jogo visto, muitas

    vezes, muito mais como uma forma de desenvolvimento do que de

    divertimento.

    b) Jogo como Destino provavelmente a retrica mais antiga e remonta

    ao prprio conceito do homem como um joguete dos deuses. Aqui, o jogo

    associado pura aleatoriedade, ao caos, sorte, ao destino e s tentativas de

    manipulao a partir de orculos e prticas animistas. Embora esteja em

    desprestgio junto elite intelectual, ainda se manifesta com vigor na cultura

    popular. Ela contrasta com teorias mais modernas que definem o jogo, por

    exemplo, como uma questo de livre escolha.

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    41

    c) Jogo como Poder esta retrica diz respeito ao uso do jogo como

    mecanismo de hegemonia. Aqui, jogo estratgia, habilidade, com um fim

    claro de vitria e dominao. O jogo pensado como representao de um

    conflito e uma maneira de fortalecer o status quo. Huizinga, de certo modo, ao

    apontar o jogo civilizatrio como uma competio entre naes, participa dessa

    viso. uma retrica to antiga quanto a guerra e o patriarcado. Encontra eco

    na contemporaneidade principalmente nos esportes, embora seja desprezada

    por estudiosos que enxergam o jogo como lazer e divertimento.

    d) Jogo como Identidade aqui, o jogo visto como meio de interao

    simblica, criao de laos, vida comunal, (festividades, performances teatrais e

    at mesmo como rituais religiosos, como enterros e casamentos). Neste caso, o

    jogo visto como um meio de confirmao e manuteno de um vnculo social.

    uma abordagem popular entre antroplogos e folcloristas.

    e) Jogo como Imaginrio usualmente aplicada a toda sorte de

    improviso na literatura e em outros lugares. Ela idealiza a imaginao, a

    flexibilidade e a criatividade que permeiam o jogar. Associada ao movimento

    romntico, acadmicos da rea literria e das artes ainda hoje enxergam o jogo

    a partir dessa perspectiva, tornando essa retrica uma das mais populares nos

    dias de hoje.

    f) Jogo como Self uma retrica muito presente quando se descrevem

    atividades solitrias como hobbies ou esportes radicais que produzem

    atividades de pico, como bungee jumping. Suas bases cientficas examinam a

    diverso, o relaxamento, o escape proporcionado pelo jogo. Aqui existe uma

    conexo com o consumismo e o individualismo presentes na vida moderna.

    g) Jogo como Frivolidade esta retrica abriga tanto as descries de

    jogos que se manifestam a partir da inverso da ordem social (Carnaval)

    reino dos bufes, dos mascarados, dos bobos da corte quanto, tambm, a do

    jogo como atividade negativa, oposta ao trabalho e virtude.

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    42

    Naturalmente, essas retricas no operam com o mesmo peso dentro da

    dinmica contempornea. Discursos pertencentes a certas retricas (como a

    antiqussima retrica que pensa o jogo como Destino) encontram dificuldade

    em impor-se numa sociedade que, ao menos nos ltimos duzentos anos, se

    imagina calcada no mrito, no progresso e na cincia.

    Viver, dados os avanos da medicina e os nveis cada vez maiores de

    controle da violncia, tornou-se uma tarefa muito menos arriscada do que

    anteriormente.

    Ademais, a sorte, o destino, o acaso, que se agigantam em tempos de

    guerra, de peste e de tragdias naturais, tornam-se elementos menos evocados

    em tempos de calmaria.

    Ainda assim, uma retrica que no perdeu de todo o seu poder. O

    grande apelo das loterias, a despeito da enormidade das chances em contrrio,

    uma demonstrao de como a Fortuna ainda arrebata magicamente coraes

    e mentes treinados para o racionalismo. E os jogos de azar, embora no gozem

    do mesmo prestgio dos games, ainda respondem por um faturamento dez

    vezes maior.

    Do mesmo modo, outras retricas antigas como as que enxergam o

    Jogo como Poder ou Jogo como Identidade ainda que acossadas pela

    ampliao dos Direitos Humanos, pela alta regulao do comportamento social,

    enfim, pela noo de civilizao, com todo o mal-estar que isso provoca, so

    capazes de volta e meia se impor no cenrio social. Elas se expressam nos

    cnticos enlouquecidos das torcidas nos estdios, nas exaltaes ao Carnaval e

    nos games de tiro com seus enredos supremacistas.

    Por outro lado, retricas que surgiram na esteira do Iluminismo, como a

    do Jogo como Progresso, ou que sofreram influncia do Romantismo, como o

    Jogo como Imaginrio, ou ainda de fontes mais modernas, como o Jogo

    como Self, gozam de mais trnsito dentro da conjuntura contempornea.

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    43

    mais fcil para os ouvidos modernos conceber o jogo como uma

    ferramenta para o aprendizado, ou um treino para a vida. mais palatvel

    imaginar o jogo como uma disposio pessoal, uma intencionalidade

    intrinsecamente motivada, divertida e livre, do que como um fenmeno

    extrnseco, governado pela vida comunal, um dever nem sempre prazeroso,

    como o so diversos rituais de tribos e comunidades rurais.

    Finalmente, impossvel no mencionar a influncia at poucas dcadas

    inconteste, e ainda hoje bastante influente, que a retrica do Jogo como

    Frivolidade exerce dentro do corpo social, fruto de sculos do martelar de

    valores puritanos em relao ao jogar, bem como da presso exercida pela

    ideologia capitalista nos ltimos quatrocentos anos, que viu durante muito

    tempo no jogo um inimigo a ser combatido (tempo dinheiro, e o jogo , sob

    esse ponto de vista, uma perda de tempo).

    Ainda hoje, ecos desses discursos assombram aqueles que jogam.

    Jogadores so viciados em games. Jogar, muitas vezes, associado a

    vagabundear. Jogos so vistos como perda de tempo, ou uma atividade

    restrita ao universo infantil. Ou ainda, s so bem vistos se forem direcionados

    para alguma atividade produtiva, como treinamento corporativo ou como

    ferramenta de educao.

    Talvez por conta da fora desta ltima retrica, como diria Lhte, autor da

    maior enciclopdia sobre jogos em lngua francesa: O jogo permanece um

    universo obscuro, frequentemente suspeito, raramente observado com ateno

    e ainda mais raramente visto com simpatia (LHTE, 1994, p. 7)

    Mas, afinal, o que essas diferentes concepes de jogo demonstram? Essa

    impressionante variedade e tambm sua aparente disparidade parecem lanar

    sobre o jogo muito mais um vu de ocultamento do que efetivamente aclarar

    alguma coisa, pois algo que se desdobra em muitas possibilidades, em verdade,

    no se compromete inteiramente com nenhuma delas.

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    44

    essa caracterstica que faz com que Spariosu qualifique o jogo com a

    palavra grega anfibolo, que significa um objeto que corre simultaneamente

    para direes opostas, em flagrante ambiguidade (SPARIOSU, 1989).

    Para ele, a despeito do crescente interesse no conceito de jogo e nas

    centenas de definies a respeito de sua natureza e funo, ainda assim esse

    um fenmeno que permanece nos dias de hoje to elusivo quanto h dois mil

    anos atrs, podendo ser enquadrado naquilo que os germnicos classificam

    como das stumme Wissen (conhecimento tcito), ou seja, um conhecimento

    muito mais fcil de ser intudo do que racionalizado.

    Ao fim, no entremear de todas essas diferentes retricas e tradies, que

    competem pela primazia explicativa a respeito dos jogos, o que resta, na viso

    de Sutton-Smith, so apenas as ideologias, preconceitos e disciplinas das

    pessoas que tentam desvendar esse enigma.

    Spariosu coaduna com a viso de Sutton-Smith. Para ele, por exemplo,

    essas diferentes vises a respeito do jogo traduzem uma:

    [...] Incomensurvel, descontnua srie de interpretaes engajadas numa

    disputa pela supremacia. A histria daquilo que ns chamamos de jogo no

    mundo Ocidental , portanto, uma histria de conflito, de competio entre

    conceitos de jogo que ora tornam-se dominantes, ora cedem terreno, para

    ento reemergirem, de acordo com as necessidades dos vrios grupos e

    indivduos que pelejam por autoridade cultural num dado perodo histrico

    (SPARIOSU, 1989, p. xi).

    Em outros termos, uma definio de jogo, dadas as diferentes razes

    explicativas pelas quais pode ser construda, mostra-se sempre como uma meta

    instvel, fugidia, ambgua. Ela ser sempre a expresso da hegemonia de

    alguma retrica.

    O jogo, ao cabo de tudo, permanece um mistrio, ao mesmo tempo em

    que opera como um espelho: ele apenas reflete os prprios termos nos quais

    foi inquirido. E, ao tentar desconstruir essa ambiguidade e alcanar uma

    definio precisa, ns camos em tolices (SUTTON-SMITH, 2001, p. 1).

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    45

    2.2. EM BUSCA DE UMA DEFINIO DE JOGO

    Prope-se como norte desta anlise uma frase muito simples e direta,

    encontrada no Homo Ludens de Huizinga. Antes de mencion-la, porm, vale

    comentar que alguns autores modernos possuem uma postura dual em relao

    a esse pioneiro.

    Por um lado, o aplaudem, j que o atrevimento desse autor foi o de

    provocativamente clamar pelo jogo como uma das mais fundamentais funes

    humanas, permeando todas as culturas desde o incio, desvencilhando-o de

    puritanismos e vises utilitaristas reinantes na poca.

    Por outro lado, Huizinga acusado, s vezes, de realizar anlises carentes

    de um aprofundamento metodolgico mais claro (ECO, 1989, p. 274), ou ainda

    de se abrigar numa mentalidade romntica, na qual o jogo aparece idealizado e

    sacralizado (SUTTON-SMITH, 2001, p. 203).

    De fato, Huizinga ardoroso, romntico e mesmo aristocrtico em sua

    argumentao. Entretanto, seu livro permanece como fonte primordial para

    qualquer estudo na rea de jogos no apenas por seu valor histrico, mas

    principalmente porque ao menos no entendimento contemporneo que se

    tem do jogo Huizinga foi extremamente lcido ao propor que o jogo fosse

    estudado em seus prprios termos, e no como algo menor, coadjuvante de

    outras cincias.

    Isso fica claro logo no incio de seu livro, quando o autor, procurando

    desatrelar o estudo dos jogos das teorias que buscavam justificar esse

    fenmeno a partir de causas puramente biolgicas, incisivo ao afirmar qual

    deveria ser o foco das pesquisas. Para ele, o jogo deveria ser considerado

    em si mesmo e naquilo que ele significa para os jogadores (HUIZINGA,

    2001, p. 5).

    Por que o beb grita de prazer? Por que motivo o jogador se deixa absorver

    inteiramente por sua paixo? Por que uma multido imensa pode ser levada

    ao delrio por um jogo de futebol? [...] nessa intensidade, nessa

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    46

    fascinao, nessa capacidade de excitar que reside a prpria essncia e a

    caracterstica primordial do jogo (HUIZINGA, 2001, p. 5).

    Como jogo em si mesmo, numa leitura literal, j se assumiu a

    impossibilidade de uma objetividade. Por outro lado, a frase de Huizinga pode

    ser encarada como uma disposio para tentar explorar o jogo em suas

    particularidades, em seus mecanismos internos (mesmo operando

    inevitavelmente dentro de certas retricas).

    Opta-se, assim, por definir o jogo (dentre as muitas e legtimas definies

    possveis) a partir de um prisma comunicacional, pela constatao de que, em

    sua expresso contempornea a partir dos games eletrnicos, o jogar reflete,

    em si suas temticas, suas mecnicas, sua esttica, suas possibilidades de

    interao , uma cadeia de valores dentre os quais, como valor-base, se inclui a

    vocao comunicacional desta sociedade.

    Por isso, a discusso se encaminhar primeiro para demonstrar que o jogo

    uma linguagem. Segundo, que pode ser pensado como um meio de

    comunicao de massa. E terceiro, que seu modus operandi contm certas

    particularidades, fundamentais para posteriormente se entender a conexo

    entre o jogo e a dinmica contempornea.

    Quanto segunda afirmao, o que o jogo significa para os jogadores,

    no inteno esquadrinhar todas as possveis motivaes internas que fazem

    com que as pessoas joguem. As razes ntimas para se jogar so as mais

    variadas, assim como so variados os motivos pelos quais as pessoas, por

    exemplo, se dispem a ir ao cinema, ou ler um livro.

    Joga-se por prazer, joga-se por alegria, joga-se por tdio, joga-se para

    espantar a tristeza, joga-se para alvio da solido, joga-se para se enturmar,

    joga-se para se exibir, joga-se por escapismo, joga-se por curiosidade. Jogar

    pode ser veculo para muitas coisas, inclusive para o sentimento de jogar por

    jogar. E isso, em si, algo a ser considerado como um indcio da qualidade do

    jogo como uma forma especial de comunicao. Afinal, visto como uma

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    47

    linguagem, o jogo exerce naturalmente essa funo de expresso dos mais

    diferentes sentimentos e atitudes.

    Ao examinar porque o jogo significativo para os jogadores, o que se

    pretende aqui evidenciar a conexo entre o jogo e determinadas sensaes

    que so produzidas pelo mecanismo de funcionamento do jogar jogo como

    fonte de diverso, jogo como fonte para o exerccio da fantasia e jogo como

    fonte de onipotncia.

    2.3. JOGO COMO LINGUAGEM

    Em 1952, na tentativa de desvendar a origem da fascinao pelo jogo,

    Bateson prope uma perspectiva inovadora a partir da biologia. Para ele, o jogo

    se revelaria na intencionalidade dos que dele participam.

    Afinal, quer esteja formalizado atravs de regras, quer seja apenas uma

    brincadeira, o fato que jogar envolve, acima de tudo, uma disposio mental,

    uma inteno, uma vontade e conscincia peculiares, que tornam aquele ato

    particular diferente de outros atos, mesmo que ele seja exteriormente similar.

    Na viso de Bateson, ao se especular sobre a origem da comunicao em

    termos biolgicos, uma fronteira fundamental se estabelece no momento em

    que um organismo gradualmente deixa de responder automaticamente aos

    signos emitidos por outro organismo e comea a tomar conscincia de que

    esses signos emitidos pelo outro so, em verdade, sinais.

    Sinais que podem ser acreditados, iniciando-se um rudimento de

    linguagem. Mas sinais que, dentro de uma sofisticao do quadro evolutivo,

    tambm podem ser desacreditados, falsificados, negados, ampliados, corrigidos

    e da por diante (BATESON, 2000, p. 178), naquilo que seria a base de uma

    meta-comunicao, essa sim capaz de gerar complexidades como empatia,

    identificao, projeo (BATESON, 2000, p. 179).

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    48

    Nesse momento hipottico estaria a origem do jogo, pois este fenmeno

    s poderia ocorrer se os organismos participantes fossem capazes de sustentar

    algum grau de meta-comunicao, no qual aquilo que se denota no aquilo

    que se intenciona.

    Em seu exemplo clssico, Bateson menciona dois ces, brincando de se

    morderem. A mordida de brincadeira, de fato, significa uma mordida dentro

    do contexto do jogo, mas paradoxalmente no conota aquilo que uma mordida

    em situao de real combate significaria (BATESON, 2000, p. 180). Para ele,

    estaria a resumida a situao intrinsecamente paradoxal do jogo.

    o que leva o prprio Bateson a pensar no jogo como uma inescrutvel

    forma de meta-comunicao que sorrateiramente se espraia por praticamente

    todos os ramos da experincia humana.

    Posteriormente, operando a partir desse conceito-chave de Bateson,

    Sutton-Smith formula, em seu livro Toys as Culture, uma definio de jogo

    que evidencia com mais clareza seus contornos como linguagem.

    Para Sutton-Smith, jogar seria, em primeiro lugar, (a) uma forma

    primitiva de comunicao. Primitiva no no sentido de pouco apurada, mas

    sim porque ela ocorre no apenas entre humanos, mas tambm entre animais.

    Sendo uma linguagem, algo que necessita de tempo para ser aprendido

    e, mais importante ainda, algo que precisa ser aprendido com os outros

    membros do grupo.

    Seus sinais, no plano fsico, so especficos. Cachorros abanam o rabo,

    primatas sorriem e batem na garganta, humanos exageram e distorcem suas

    aes usuais. Fazem barulhos engraados, mmicas absurdas, riem, galopam,

    pulam.

    Em segundo lugar, jogar seria tambm (b) uma forma primitiva de

    expresso. Mais do que uma forma de comunicao, jogar seria uma maneira

    de se expressar, regida por regras especficas, a mais importante das quais a

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    49

    representao altamente esquematizada do ser, lanando mo de pantomima,

    caricatura, sons, aes exageradas e representaes esquemticas.

    O sentido disso no apenas o de comunicar ao outro isto um jogo.

    Essas so caractersticas-chaves que fazem parte da prpria estrutura do jogar.

    Crianas brincando de casinha conseguem, em poucos minutos, simular o que

    seria um dia inteiro numa casa real. Jogadores de futebol representam

    esquematicamente, em uma hora e meia, o conflito entre dois grupos, com

    seus guerreiros especializados e tticas de dominao.

    O jogo, em sua expresso, esquematiza a vida. Ele alude vida, mas no

    a imita num sentido estrito, como advogam muitos tericos. Ele fagocita o

    sentido original, distorce, reaproveita as partes e constri autonomamente

    outro sentido.

    Ademais, em terceiro lugar, jogar tambm pode ser visto como (c) uma

    forma paradoxal de comunicao. Paradoxal na medida em que a atividade

    sugestionada no significa, de fato, a atividade real. Uma criana brincando de

    arrumar a casa no est, de fato, arrumando a casa, embora esteja

    arrumando a casa. Os dois ces de Bateson, ao brincarem de mordida, no

    esto de fato se mordendo, embora em seu ato fsico estejam se mordendo.

    Esse relacionamento ambivalente entre jogo e vida, na viso de Sutton-

    Smith, evidencia uma quarta qualidade do jogo, que a sua (d) constante

    bipolaridade entre as fronteiras da vida cotidiana e o jogo,

    recorrentemente reequilibradas.

    Essa guerra de fronteiras entre esses dois limites pode ser bem entendido

    pelas primeiras brincadeiras infantis, como a brincadeira de esconder. A criana

    se esconde atrs de um pano qualquer e depois coloca a cabea para fora do

    pano, revelando-se novamente (Achoooou!), ou ainda qualquer brincadeira

    que mostre a sucessiva repetio entre estados alternados, como atacar e

    defender.

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    50

    Jogar , dentro de um estado real, entregar-se a uma realidade paralela

    que, paradoxalmente, por sua vez, no possui condies de firmar-se

    definitivamente como tal. Como numa alucinao, o crebro obrigado a

    conviver com duas percepes distintas e realizar um rebalanceamento

    constante entre elas.

    Por fim, como quinta caracterstica, o jogo considerado (e) uma forma

    primitiva de simbolizao de motivaes subjacentes. O jogo um

    veculo que, certamente precedendo a arte e a linguagem, capaz de

    compartilhar estados emocionais com aqueles que partilham da mesma ao.

    O resultado disso pode ser facilmente observado ao se analisar quantos

    estados de esprito, emoes e motivaes ganham forma atravs do jogo.

    Jogar pode ser a forma de velhos amigos se confraternizarem, de Estados

    adversrios demonstrarem a superioridade um sobre outro, de uma me e um

    filho passarem bons momentos juntos, de casais apaixonados demonstrarem

    interesse mtuo, de jovens disputarem a supremacia num grupo.

    Ademais, essa capacidade de trnsito de motivaes subjacentes

    frequentemente forma uma conexo que deixa parte todos os que no esto

    jogando. Isso facilmente comprovvel ao ver que a excitao que percorre

    aqueles que esto jogando muitas vezes no compartilhada por aqueles que

    esto alheios ao jogo. O jogo, de certa forma, possui a qualidade de formar um

    grupo secreto a partir dessas emoes subjacentes.

    2.4. JOGO COMO MEIO DE COMUNICAO DE MASSA

    Pensar o jogo como uma meta-comunicao, ou como uma forma de

    comunicao primitiva algo que j foi divisado, principalmente por autores

    dedicados ao jogo dentro no universo infantil. Vrios tericos j apontaram

    essa proximidade entre jogo e linguagem, como Piaget, ao descrever o jogo

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    51

    simblico (PIAGET, 1988) como mecanismo-chave pelo qual a criana aprende,

    ou ainda Winnicott, quando prope o jogar como um estado transicional, uma

    ponte, um veculo entre a realidade psquica e a realidade externa

    (WINNICOTT, 1975).

    Porm, na rea de Comunicao, essa conexo entre jogos e linguagem

    s foi percebida de maneira direta por McLuhan, em 1964, ao publicar sua obra

    clssica Os Meios de Comunicao como Extenses do Homem. Ele claro ao

    apontar:

    Como nossos idiomas vernculos, todos os jogos so meios de comunicao

    interpessoal e no possuem existncia nem significado a no ser como

    extenses de nossas vidas interiores imediatas. (MCLUHAN, 2011, p.

    266)

    McLuhan no tinha, quela altura, condies de antever a prolfica relao

    que o jogo teria com as novas tecnologias computacionais, nem prever a

    importncia que os jogos tomariam dentro da dinmica cultural moderna. Por

    isso mesmo, sua anteviso de que os jogos podem ser considerados meios de

    comunicao de massa ainda mais surpreendente:

    Se se perguntar, finalmente: os jogos so meios de comunicao de

    massa? a resposta tem de ser: Sim. Os jogos so situaes arbitradas

    que permitem a participao simultnea de muita gente em determinada

    estrutura de sua prpria vida corporativa ou social. (MCLUHAN, 2011, p.

    275)

    A se concordar com McLuhan, para alm da fascinao que exercem

    enquanto entretenimento, os jogos eletrnicos tambm podem e devem ser

    considerados como meios de comunicao de massa, um conceito que ser

    explorado na concluso do trabalho.

    Porm, mais que isso, McLuhan atenta para algo fundamental relativo ao

    jogo. A de que esse fenmeno possui, alm de uma linguagem particular, uma

    dinmica particular.

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    52

    A forma de qualquer jogo de primordial importncia. A teoria do jogo,

    como a teoria da informao, ignorou esse aspecto do jogo e do movimento

    informacional. Ambas as teorias tm tratado do contedo informativo dos

    sistemas, limitando-se a observar os fatores de rudo ou de fraude que

    distorcem os dados. como abordar um quadro ou uma composio musical

    do ponto de vista do contedo. Em outras palavras, este o caminho mais

    seguro para ignorar o cerne estrutural da experincia. Pois assim como o

    padro de um jogo que lhe confere relevncia para a nossa vida interior e

    no quem joga ou o resultado do jogo assim tambm se d com o

    movimento da informao (MCLUHAN, 2011, p. 272).

    Em primeiro lugar, a crtica realizada s teorias Funcionalistas, implcita na

    fala de McLuhan, poderia tambm, em igual medida, ser destinada escola de

    Frankfurt. Pois ambas as teorias fundadoras, embora diametralmente opostas

    entre si, expressavam uma viso comum sobre os receptores da

    comunicao: seres apassivados e manipulveis, numa postura que, na melhor

    das hipteses, subestimava o jogo de negociao de sentidos dentro do

    processo comunicacional, viso esta que s ganharia proeminncia na rea da

    Comunicao tardiamente, a partir da dcada de oitenta, com os estudos

    culturais ingleses e posteriormente com sua contraparte latino-americana.

    De fato, a relao de predomnio do emissor sobre o receptor a idia que

    primeiro desponta, sugerindo uma relao bsica de poder, em que a

    associao entre a passividade e receptor evidente. Como se houvesse

    uma relao sempre direta, linear, unvoca e necessria de um plo, o

    emissor, sobre outro, o receptor [...] e no eixos de um processo mais

    amplo e complexo, por isso mesmo, permeado por contradies (SOUSA,

    1995, p. 14).

    Porm, de todas as suas observaes, a que mais impressiona aquela na

    qual exerce seu mantra de que o meio a mensagem. McLuhan busca

    compreender os jogos a partir de seu padro, de sua estrutura, de sua forma

    especfica, daquilo que, em suma, o diferencia de outras linguagens. McLuhan

    iguala a experincia de jogo da fruio de uma obra de arte.

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    53

    Para ele, tanto a Arte, como os jogos, como os meios de comunicao

    tm o poder de impor seus prprios pressupostos, reordenando a comunidade

    humana por meio de novas relaes e atitudes. Em sua viso, tanto a Arte

    quanto os jogos so ambos tradutores de experincia e sua existncia no

    tem sentido ou funo fora dos efeitos que produz sobre os observadores

    (MCLUHAN, 2011, p. 272).

    2.5. O MODUS OPERANDI DO JOGO

    Nesse sentido, a viso de McLuhan se aproxima da de Hans-Georg

    Gadamer, filsofo alemo que quatro anos antes, em 1960, publicara Verdade

    e Mtodo. Neste livro, Gadamer no est diretamente interessado em

    desvendar o conceito de jogo. Ele o utiliza para demonstrar a falibilidade da

    metafsica da subjetividade na apreciao esttica da obra de arte, este sim

    seu verdadeiro alvo.

    Na trilha de Heidegger, Gadamer buscava, pensando no jogo como uma

    experincia para alm da subjetividade do jogador, desmantelar a tese que v

    o Sujeito como o ser que subjaz a tudo, criador e legitimador dos objetos,

    medida de todas as coisas, herana do Cartesianismo.

    Para ele, o jogo um exemplo que demonstra os limites dessa

    subjetividade do indivduo, j que [...] o jogo no surge na conscincia do

    jogador, e enquanto tal mais do que um comportamento subjetivo

    (GADAMER, 2008, p. 23).

    Para Gadamer, tanto o jogo quanto a arte, quanto a festa, so

    experincias que s podem ser verdadeiramente compreendidas se encaradas

    de forma aberta, para alm da conscincia do indivduo, no prprio ato de sua

    vivncia. A festa s existe na medida em que celebrada (GADAMER, 2008,

    p. 181).

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    54

    Do mesmo modo, a arte, mecanismo simblico por excelncia, s pode ser

    compreendida como verdade na medida em que o espectador se proponha a

    vivenci-la, saia de si, de sua subjetividade, indague-se sobre o que ela tem a

    lhe dizer e a confronte com suas expectativas.

    A experincia da obra de arte sempre ultrapassa, de modo fundamental,

    todo horizonte subjetivo de interpretao, tanto o horizonte do artista

    quanto de quem recebe a obra. A mens auctoris no nenhum padro de

    medida plausvel para o significado da obra de arte (GADAMER, 2008,

    p. 17).

    Nesse sentido, o jogo tambm uma experincia que, para alm da

    subjetividade do jogador, s pode ser verdadeiramente compreendida a partir

    do jogar, a partir do momento em que o jogador decide mergulhar nessa

    experincia e submeter sua subjetividade natureza do jogo, tal qual ocorre

    com a experincia da obra de arte.

    [...] O sujeito da experincia da arte, o que fica e permanece, no a

    subjetividade de quem a experimenta, mas a prpria obra de arte.

    justamente esse o ponto em que o modo de ser do jogo se torna

    significativo, pois o jogo tem uma natureza prpria, independente da

    conscincia daqueles que jogam (GADAMER, 2008, p. 255).

    por isso que Gadamer afirma que o jogar s cumpre a finalidade que

    lhe prpria quando aquele que joga entra no jogo (GADAMER, 2008, p. 155).

    Sem lanar-se para dentro dele, sem abrir mo de uma subjetividade

    pretensamente onisciente, sem aceitar a realidade do jogo como algo parte,

    impossvel usufruir de fato dessa experincia.

    O jogo se revela apenas no momento de sua vivncia. E vivenci-lo

    significa aceitar que o sujeito do jogo no so os jogadores. (O jogo)

    simplesmente ganha representao atravs dos que jogam o jogo (GADAMER,

    2008, p. 155).

  • CAPTULO II: AS MLTIPLAS FACES DO JOGO

    55

    Ora, se o jogador no o sujeito do jogo, e o jogo no apenas uma

    projeo da sua subjetividade, ento a relao estabelecida entre o jogador e

    jogo a inversa do que uma leitura calcada na primazia do Sujeito faria. No

    o jogador que joga o jogo. Pelo contrrio, todo jogar um ser-jogado. O

    atrativo do jogo, a fascinao que exerce, reside justamente no fato de que o

    jogo se assenhora do jogador (GADAMER, 2008, p. 160).

    Quer seja uma criana brincando com uma bola; quer sejam jogadores de

    final de semana disputando uma pelada; quer seja uma pessoa caminhando

    solitria pela praia em busca apenas das conchinhas rosas; quer sejam

    profissionais do xadrez disputando um campeonato, o jogo possui a

    propriedade de tragar os jogadores para dentro de sua lgica.

    Assim, quanto mais joga, mais a criana parece endoidecer com a bola;

    pacatos pais de famlia transformam uma improvisada pelada dominical numa

    luta de vida ou morte; o caminhante solitrio chega a refazer o caminho para

    ver se no deixou passar uma conchinha rosa e vrios jogadores de xadrez de

    alto nvel utilizam toda sorte de golpes baixos em busca da vitria, como os

    grandes-mestres Petrossian e Korchnoi, em 1977, em plena competio pelo

    ttulo mundial, que no hesitaram em aplicar chutes um no outro por debaixo

    da mesa.

    Ao se deixar arra