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A Escola Moderna de Francisco Ferrer y Guardia como uma experiência de Educação Libertária Andressa Lopes de Oliveira Universidade Federal do Paraná Resumo: A Escola Moderna de Barcelona, idealizada pelo educador catalão Francisco Ferrer y Guardia, consiste em uma das principais experiências educacionais do início do século XX e é uma das grandes referências de educação libertária. Em contraposição ao ensino religioso e estatal, a Escola Moderna foi fundada em 1901 com uma proposta pautada no racionalismo científico e em ideais anarquistas. O enfrentamento ao status quo representado tanto pela escola quanto pela figura do próprio Ferrer resultou em perseguições políticas, culminando no fechamento da instituição, em 1906, e no assassinato de seu idealizador, em 1909, pelo Estado espanhol. O presente artigo tem como objetivo demonstrar de que maneira os pensamentos acerca de uma Instrução Integral teorizados, sobretudo, por Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin, foram colocados em prática na educação das crianças atendidas pela Escola Moderna. Aqui, se coloca também a importância de resgatar a memória desta experiência, tendo em vista o apagamento sofrido por esta e outras práticas libertárias nos currículos universitários, na produção científica e nos debates em torno da educação. Por fim, é igualmente válido promover uma discussão em torno das contribuições de Ferrer, e do círculo de pensadores e educadores anarquistas do qual ele participava, bem como refletir sobre os ensinamentos das experiências libertárias para a educação na atualidade. Palavras-chave: Francisco Ferrer y Guardia; Escola Moderna; Educação Libertária. A Escola Moderna foi idealizada e fundada por Francisco Ferrer y Guardia em 1901, estando ativa até 1906 1 e localizada em Barcelona. Seu programa pedagógico encontrou embasamento no racionalismo científico e numa instrução integral voltada à construção da liberdade. Desde muito jovem, Ferrer esteve em contato com a política e acabou se aproximando de pensadores e militantes anarquistas ao buscar exílio na França. Sua atuação como educador está diretamente relacionada à sua trajetória política e ao círculo de intelectuais- militantes que mobilizou a fim de colocar em funcionamento seu projeto escolar. Neste artigo será apresentada a base teórica para o desenvolvimento da educação dita libertária, tendo Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin como principais referenciais, bem como as primeiras sistematizações metodológicas, empreendidas por Paul Robin e que orientaram Ferrer em seu trabalho frente à Escola Moderna. Serão discutidos os conceitos de liberdade, a partir de uma perspectiva anarquista, e de instrução integral, que são fundamentais para o entendimento da orientação de Guardia e da importância da educação dentro do 1 Com exceção de 1904.

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A Escola Moderna de Francisco Ferrer y Guardia como uma experiência de Educação Libertária

Andressa Lopes de Oliveira Universidade Federal do Paraná

Resumo: A Escola Moderna de Barcelona, idealizada pelo educador catalão Francisco Ferrer y Guardia, consiste em uma das principais experiências educacionais do início do século XX e é uma das grandes referências de educação libertária. Em contraposição ao ensino religioso e estatal, a Escola Moderna foi fundada em 1901 com uma proposta pautada no racionalismo científico e em ideais anarquistas. O enfrentamento ao status quo representado tanto pela escola quanto pela figura do próprio Ferrer resultou em perseguições políticas, culminando no fechamento da instituição, em 1906, e no assassinato de seu idealizador, em 1909, pelo Estado espanhol. O presente artigo tem como objetivo demonstrar de que maneira os pensamentos acerca de uma Instrução Integral teorizados, sobretudo, por Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin, foram colocados em prática na educação das crianças atendidas pela Escola Moderna. Aqui, se coloca também a importância de resgatar a memória desta experiência, tendo em vista o apagamento sofrido por esta e outras práticas libertárias nos currículos universitários, na produção científica e nos debates em torno da educação. Por fim, é igualmente válido promover uma discussão em torno das contribuições de Ferrer, e do círculo de pensadores e educadores anarquistas do qual ele participava, bem como refletir sobre os ensinamentos das experiências libertárias para a educação na atualidade. Palavras-chave: Francisco Ferrer y Guardia; Escola Moderna; Educação Libertária.

A Escola Moderna foi idealizada e fundada por Francisco Ferrer y Guardia

em 1901, estando ativa até 19061 e localizada em Barcelona. Seu programa

pedagógico encontrou embasamento no racionalismo científico e numa instrução

integral voltada à construção da liberdade. Desde muito jovem, Ferrer esteve em

contato com a política e acabou se aproximando de pensadores e militantes

anarquistas ao buscar exílio na França. Sua atuação como educador está

diretamente relacionada à sua trajetória política e ao círculo de intelectuais-

militantes que mobilizou a fim de colocar em funcionamento seu projeto escolar.

Neste artigo será apresentada a base teórica para o desenvolvimento da

educação dita libertária, tendo Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin como

principais referenciais, bem como as primeiras sistematizações metodológicas,

empreendidas por Paul Robin e que orientaram Ferrer em seu trabalho frente à

Escola Moderna. Serão discutidos os conceitos de liberdade, a partir de uma

perspectiva anarquista, e de instrução integral, que são fundamentais para o

entendimento da orientação de Guardia e da importância da educação dentro do

1 Com exceção de 1904.

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pensamento libertário. Ao apresentar as principais propostas da Escola

Moderna, pretende-se demonstrar como estas estavam em consonância com a

teoria e com os primeiros desdobramentos práticos dos ideais anarquistas em

torno da educação.

Nos anos finais do século XIX e nas primeiras décadas do XX houve uma

intensa produção escrita e de práticas atreladas ao pensamento libertário na

educação, em que estão inseridas as experiências em torno da Escola Moderna.

Embora as contribuições anarquistas sejam valorosas e permaneçam atuais,

continuam relativamente desconhecidas, ocultas e pouco exploradas. De acordo

com Rodrigo Silva, existe uma espécie de “esquecimento voluntário”, um

apagamento intencional de certos nomes tanto nas obras que tratam da história

da educação quanto nos currículos universitários, sobretudo nos cursos de

Pedagogia. O autor considera Francisco Ferrer y Guardia uma “vítima do

desprezo da academia por questões notadamente políticas” (SILVA, 2017, p. 9;

11).

Como mostra Silvio Gallo, o debate em torno do caráter ideológico da

educação segue sendo de grande importância, pois mesmo que novas propostas

tenham surgido ao longo do século XX, em que se destaca o movimento da

Escola Nova, a estrutura de reprodução de desigualdades continua fortalecida.

Segundo o autor, escolanovismo trabalhou a liberdade em um contexto

individualista, de modo que não representasse um risco à manutenção da

sociedade capitalista. Acrescenta ainda que o viés ideológico se apresenta de

forma mais velada hoje, envolto pelo laicicismo e uma suposta liberdade

individual que dificultam a consciência da dominação (GALLO, 1992, p. 22).

Partindo de uma educação para a liberdade, que para os anarquistas é

construída coletivamente, também é realizada a desconstrução paulatina da

autoridade. Em outras palavras, assim como no meio social, no âmbito escolar

o ponto de partida também é a autoridade, que vai sendo diluída conforme a

emancipação dos indivíduos acontece. Portanto, no processo de instrução, nos

moldes de uma pedagogia libertária de orientação anarquista, a liberdade

também deve ser vista como um fim e não como meio (GALLO, 2007, p. 26; 49).

Uma educação para a liberdade pressupõe a formação de indivíduos que sejam

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capazes de romper com as estruturas que impedem a construção de uma nova

sociedade, desse modo, as contribuições de Francisco Ferrer podem ser de

grande relevância para pensar o cenário educacional atual.

O pensamento anarquista é fundamentado em torno do conceito de

liberdade. Inclusive, é por este motivo que nasceu a denominação “Socialismo

Libertário”, estando ligada à ideia de que “a faceta fundamental do homem é a

liberdade, que deve ser construída socialmente” (GALLO, 1990, p. 22). Cabe

ressaltar que não se trata da interpretação burguesa, com origem no Iluminismo,

na qual a liberdade é vista como um fato natural da essência humana, atrelada

à necessidade de criação de leis que permitam a coexistência das liberdades

individuais numa dada sociedade. Na perspectiva dos anarquistas, a liberdade é

vista como um fato social, não sendo intrínseca ao ser humano, mas construída

por meio da experiência comunitária. Neste sentido, a liberdade não é tomada

como um ponto de partida, mas um ponto de chegada, uma vez que sua

conquista se dá pelo contato com a cultura acumulada pela humanidade e pela

experiência coletiva, uma conquista de todos e para todos. A liberdade de um

não termina onde começa a do outro, como no imaginário burguês, ambas

começam juntas e uma legitima a existência da outra (GALLO,1992, p. 15; 17).

Apesar de o filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau ter uma produção

marcada pela defesa de uma perspectiva pautada pelos interesses burgueses,

que encontraram solo fértil nos desdobramentos da Revolução Francesa, é um

referencial importante na elaboração do pensamento pedagógico libertário. O

ponto de convergência entre eles está calcado na necessidade de criação de um

novo homem, para que fosse possível construção uma nova sociedade (GALLO,

1992, p. 15). Para compreender de que maneira este novo homem deve ser

gestado, é preciso tratar do conceito de instrução integral.

Entre os anarquistas, a educação sempre esteve presente nos debates e

projetos para uma nova sociedade, pois consiste em uma das bases de

construção da emancipação moral2 do indivíduo e da própria revolução social.

Estes enxergam a instrução integral como meio de superação da alienação das

2 Termo empregado no sentido da construção de “uma nova moral humana”, que ultrapassa a mera “conscientização” do indivíduo (BAKUNIN, 1979, p. 46).

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classes populares, que é o que dá sustentação à desigualdade, à exploração e

à escravidão de muitos em detrimento do enriquecimento de poucos. Fica claro

que a crítica não se limita ao campo ensino tradicional, imposto pela Igreja e pelo

poder estatal, mas à sociedade capitalista como um todo, que faz da educação

um instrumento de controle e dominação das camadas populares (BAKUNIN,

1979, p. 32; 52).

Em meados do século XIX, Pierre-Joseph Proudhon iniciou a discussão

em torno de uma proposta de educação capaz de agregar atividades manuais e

intelectuais a fim de extinguir a dicotomia colocada entre os que pensam e os

que labutam (MORAES, 2015, p. 198). O trabalho artesanal, aquele em que

existe o domínio de todo o processo, não apenas de uma ou outra parte, é

defendido como instrumento para uma educação mais completa, que articule o

exercício racional e físico. Aquele que fosse capaz de dominar os conhecimentos

teóricos e práticos, de um dado processo de produção, seria uma pessoa

completa (GALLO, 2007, p. 37). Complementando o seu corpo de ideias,

Proudhon propôs uma aprendizagem politécnica que contemplasse o ensino de

técnicas manuais e uma formação cultural pautada no desenvolvimento das

faculdades físicas, intelectuais e morais (GALLO, 2007, p. 37). No seu ponto de

vista, a politecnia na produção agrícola e industrial permitiria a união entre

trabalho e estudo, enquanto as fábricas-escolas seriam o espaço destinado às

ações teórico-práticas (MORAES, 2015, p. 197).

Sem abandonar a defesa da união entre trabalho manual e intelectual

como uma solução para a alienação dos trabalhadores, Mikhail Bakunin avança

na proposta de uma instrução integral. Crendo que os indivíduos são moldados

pela sociedade, de acordo com as suas necessidades e por meio da educação,

na segunda metade do século XIX apresentou uma concepção de homem como

produto social. Entendia que uma sociedade desigual, só poderia gerar

desigualdade e injustiça entre seus integrantes e o problema estaria na falta de

oportunidade. Ainda que algumas características humanas fossem naturais,

acreditava que elas poderiam ser dominadas, através do conhecimento

científico, enquanto as demais seriam transformadas socialmente (GALO, 2007,

p. 39; 40).

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O entendimento acerca de uma educação integral, entre os anarquismos

do século XIX e início do XX, perpassa pela formação do indivíduo em três

aspectos: moral, físico e manual. A moralidade é sustentada pela solidariedade

e pela construção social da liberdade. O aspecto físico estaria ligado ao

aprimoramento das percepções sensório-motoras, corroborando para o

desenvolvimento coletivo sem alimentar a competitividade. A questão manual,

por fim, teria como base a educação profissional, a formação para o trabalho

livre de divisões.

Robin foi o primeiro pedagogo a sistematizar metodologicamente a

proposta anarquista em ambiente escolar. Assim como Proudhon e Bakunin,

aponta a necessidade de uma revolução social e de uma instrução integral, justa

e igualitária, que permitisse tirar a exclusividade do acesso à ciência das mãos

do Estado e da burguesia:

La distinción de clases, que es hoy fundamento de la organización social, se sostiene sobre todo por la desigualdad frente a los medios educativos. Para la burguesia, que tiene el capital, la ciencia; para el pueblo, que no posee más que la miseria, el trabajo. La ciencia y el trabajo unidos liberarían el mundo. Su separación prolonga nuestra esclavitud moral y material (ROBIN, 2016, p. 33).

Contudo, é preciso ressaltar que o educador francês não condenava a

divisão do trabalho, pois via na especialização um elemento positivo para do

desempenho individual, desde que houvesse o desenvolvimento equilibrado

entre todos os membros da sociedade. Primeiramente, seria necessário que o

aluno adquirisse uma base cultural, para depois seguir em uma especialização

funcional. A dita educação racional ou científica estaria orientada pelos princípios

da ciência, tendo caráter universal, ou seja, comum a todos, e integral, por ser

completa e preparar para o ensino profissional (ROBIN, 2016, p. 42; 44).

Mikhail Bakunin já havia sinalizado a relevância de uma “filosofia positiva”,

baseada nos conhecimentos da natureza e da sociologia, na destruição das

“fábulas religiosas” e dos “sonhos metafísicos” disseminados pelos métodos

tradicionais. Considerando a impossibilidade de dominar todos os campos da

ciência simultaneamente, apresenta a divisão do ensino em duas partes: geral e

especial. A primeira proporcionaria a aprendizagem aprofundada dos principais

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elementos do conhecimento científico, por conseguinte, o indivíduo estaria apto

a escolher uma especialidade entre os vários grupos ou faculdades que se

complementam e formam as ciências. Sem deixar de lado o papel do trabalho

no processo educativo, traz a noção de ensino industrial ou prático, que

aconteceria paralelamente ao científico ou teórico e também seria dividido em

dois momentos: de exploração de generalidades sobre as questões industriais e

dos aspectos materiais da civilização e, por outro lado, a parte de especialização,

contemplando os grupos de indústrias ligados entre si (BAKUNIN, 1979, 43; 44).

Em 1893, Robin escreveu o Manifesto aos Partidários da Educação

Integral, onde tratou de definir e sistematizar a aplicação prática da proposta de

integralidade para o ensino infantil. Foi sua experiência como diretor do Orfanato

Prévost, entre 1800 e 1914, que lhe permitiu colocar à prova toda a teoria. O

manifesto é direcionado a todos aqueles que estivessem preocupados com o

grande problema da regeneração social e compartilhassem de seus desejos e

esperanças (ROBIN, 2016, p. 53; 54). Como se sabe, Ferrer y Guardia foi um

partidário da educação integral, que conheceu o orfanato quando esteve na

França, tornando-lhe uma das principais referenciais para a configuração do seu

projeto.

Ferrer também criticava o monopólio do conhecimento, vendo na

educação um caminho para a renovação da sociedade. A ciência, a liberdade e

a solidariedade eram os pilares de seu ideário pedagógico, enquanto tinha como

meta o combate à rotina e ao atavismo. Substituindo os estudos dogmáticos pela

orientação racional, pautada nas ciências naturais, pretendia formar pessoas

instruídas, justas e livres de todo preconceito. A base de seu projeto estava na

abordagem racionalista3, que deveria permitir ao aluno uma análise crítica dos

juízos e a valorização do pensamento científico, educando integralmente com

afetividade e racionalidade (TRAGTENBERG,1978, p. 26; 27).

Ambos os educadores libertários contavam com materiais auxiliares como

lupa, microscópio, aparelhos de medida e laboratórios que colocava os alunos

em contato com a experimentação e as várias fases do método científico,

podendo desvendar os mistérios do mundo partindo da prática, para depois

3 A Escola Moderna também ficou conhecida como “Escola Racionalista”.

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chegar à teoria. O método dedutivo, comum no ensino tradicional, daria lugar ao

método indutivo (GALLO, 1990, p. 200; 203).

Outro fator comum entre os dois projetos pedagógicos é a coeducação

dos sexos e das classes, ou seja, meninos e meninas de das mais diversas

camadas sociais estudando juntos. De acordo com Ferrer, toda vez que alguém

solicitava a matrícula de um aluno, ele perguntava se havia meninas na família,

para que pudessem estudar também e, ao que indica, este trabalho foi frutífero.

Do seu ponto de vista, as mulheres não deveriam permanecer recolhidas ao lar,

mas receber os mesmos conhecimentos que os homens, para que pudessem

exercer ação em meio à sociedade (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 12; 15).

No que se refere ao ensino misto de classes, o idealizador da Escola

Moderna expõe que se tivesse fundado uma escola para crianças pobres, esta

não poderia ser racional, pois se não reproduzisse a credulidade e submissão

como nas demais escolas, automaticamente estaria inclinando-lhes à rebeldia e

ao ódio.

[...] os oprimidos, os espoliados, os explorados devem ser rebeldes, porque devem reclamar seus direitos até conseguir sua completa e perfeita participação no patrimônio universal. Mas a Escola Moderna opera sobre as crianças a quem pela educação e pela instrução prepara para serem homens, e não antecipa amores nem ódios, adesões nem rebeldias, que são deveres e sentimentos próprios dos adultos; em outros termos, não quer colher o fruto antes de tê-lo cultivado, nem quer atribuir uma responsabilidade sem ter dotado a consciência das condições que devem constituir seu fundamento: que as crianças aprendam a ser homens, e quando o forem declarem-se em rebeldia em boa hora (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 16).

Do mesmo modo, uma escola para crianças ricas também não seria

racional, pois não precisaria de muito esforço para demonstrar-lhes seus

privilégios. Sendo assim, a coeducação de pobres e ricos promove o contado na

inocente igualdade da infância, sendo capaz de consolidar uma educação

reparadora (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 16).

Em seu manifesto, Robin levanta a necessidade de se pensar em um

“regime geral higiênico”, que tratava, basicamente, dos cuidados empreendidos

para manter a saúde dos alunos equilibrada. Entre outras coisas, se destacam a

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organização proporcional do tempo destinado para cada tipo de atividade, física

e intelectual, além do período destinado ao sono. Os cuidados com a

alimentação, além de banhos e limpeza adequada do uniforme se somam aos

exercícios ao ar livre, viagens, passeios e esportes na gama de proposições

(ROBIN, 2016, p. 45; 46).

Na Escola Moderna também há uma preocupação com a higiene, mas

está mais ligada à possibilidade de disseminação de doenças entre os alunos

durante o convívio escolar. Males como difteria, sarampo, escarlatina e

tuberculose eram comuns, dada a aglomeração, o uso de um único banheiro e

a troca de materiais e lanches de boca em boca, a que estavam sujeitas as

crianças, podendo levar as enfermidades para o ambiente familiar. A proteção e

a instrução higiênica, combinadas a salas amplas, luz abundante e ar puro são

colocadas como medidas suficientes para amenizar o risco. Além da

reformulação do espaço e da estrutura do edifício, os alunos passavam por

inspeções médicas, eram medidos e pesados com frequência e anotavam suas

moléstias em um caderno biológico (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 19; 21).

Sem deixar de lado a estruturação física, moral e intelectual, Paul Robin

pensa a educação infantil em duas etapas. A primeira diz respeito à fase em que

a criança começa a interpretar o mundo, que deve acontecer espontaneamente

e de maneira aleatória. Na segunda, ela começa a produzir e entrar em contato

com os ofícios. A curiosidade e a criatividade devem ser valorizadas em ambas,

bem como o desenvolvimento dos sentidos e das habilidades individuais. A

possibilidade de trabalhar com jogos e atividades práticas, além de acabar com

a imobilidade traria uma série de benefícios tanto do ponto de vista sensório-

motor, como no aprendizado da leitura e escrita (GALLO, 1990, 199; 207).

Ferrer também considerava os jogos e as brincadeiras elementos

indispensáveis para o desenvolvimento dos alunos, tratando, sobretudo,

daqueles que trabalhavam as capacidades físicas. Ressalta que, além de

permitir que a criança manifeste seus desejos e compartilhe-os com os colegas,

tornam o ambiente de aprendizado menos monótono. As brincadeiras consistem,

muitas vezes, em momentos de imitação da vida adulta e contribuem na

construção do caráter, do altruísmo e da vida em grupo. Ao citar o trabalho do

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pedagogo alemão Friedrich Froebel como referencial, conclui que “toda

brincadeira bem dirigida é convertida em trabalho, assim como trabalho em

brincadeira” (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 22; 24).

Tratando mais especificamente da Escola Moderna, cabe destacar a

dificuldade que Francisco Ferrer relata ter tido para encontrar professores que

estivessem de alinhados com o ensino racional e científico. Foi necessária a

preparação e a adaptação dos mesmos dentro da própria instituição, conforme

o trabalho era desenvolvido, além da fundação de uma Escola Normal

racionalista voltada à formação de professores de ambos os sexos, que acabou

sendo fechada por pressões externas. As primeiras versões do Boletim da

Escola Moderna traziam alguns anúncios de engajamento:

AO PROFESSORADO LIVRE Os professores e jovens de ambos os sexos que desejarem se dedicar ao ensino racional e científico e se encontram despojados de preocupações, superstições e crenças tradicionais absurdas, podem se comunicar com o Diretor da Escola Moderna para a provisão de vagas em várias escolas (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 28).

Além do ensino misto dos sexos e das classes, outra medida que visava

extinguir as desigualdades e também a competitividade foi a abolição de provas,

de prêmios e castigos. Não caberia à escola decretar a aptidão de uns e nem a

incapacidade de outros, até porque seu objetivo era desenvolver amplamente as

faculdades da infância sem sujeição a nenhum padrão dogmático. Sendo assim,

não haveria nada de positivo nestes procedimentos que, inclusive, poderiam

levar a doenças de ordem mental devido à pressão imposta sobre as crianças.

Alguns pais e mães contestaram a ausência de tais métodos, que para Ferrer,

não passava de uma necessidade absurda para a satisfação deles mesmos e

não dos filhos. Apesar das reclamações, os exames, recompensas e punições

nunca foram aderidos ao plano, que tinha como prioridade promover o benefício

do estudante (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 33; 35).

Ainda que o foco da Escola Moderna estivesse na ação pedagógica,

também esteve dedicada à instrução popular, organizando conferências

dominicais públicas em que participavam alunos, seus familiares e todos os

trabalhadores que tivessem o desejo de aprender. Com o sucesso da abertura

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ao público, Ferrer estabeleceu um convênio com os doutores D. Andrés Martínez

Vargas e D. Odón de Buen, catedrático da Universidade de Barcelona, para

fundar uma universidade popular. No entanto, após alguns encontros, o projeto

foi sufocado por aqueles que se viam afrontados pela proposta inovadora

(FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 49; 50).

As experiências pedagógicas libertárias, pautadas por um viés anarquista,

trazem o conceito de autogestão em seu funcionamento, uma vez que além de

romper com o ensino religioso, não estabelecem nenhum tipo de ligação com o

Estado. Trata-se de organizações escolares autônomas, regidas e sustentadas

por aqueles que participam da comunidade escolar. As críticas tecidas por Ferrer

sinalizam que os governantes, ao reconhecerem que os progressos científicos

revolucionaram as condições de trabalho e produção, compreenderam a

inviabilidade de manter o povo na ignorância, pois a instrução se fazia

fundamental para o desenvolvimento econômico. Assim sendo, seria necessário

pensar em outras formas de dominação, sobretudo que pudessem sufocar

qualquer sinal de conscientização e emancipação. É neste momento que os

líderes políticos, que até então deixavam a educação nas mãos dos clérigos,

tomaram a direção da organização do aparato escolar. Ainda que empregassem

conhecimentos científicos, a instrução estatal nada mais era que um poderoso

meio de manter a servidão e a desigualdade (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 28;

30).

O pedagogo catalão define o ensino administrado pelos governos como

violento, visto que dirigia o desenvolvimento das faculdades da criança de acordo

com seus interesses, privando-a de do contato com a natureza e não levando

em conta suas vontades e suas particularidades. Este modelo significava o

fracasso das esperanças daqueles que lutavam por liberdade. Cabe ressaltar

que, para Ferrer, o ideal seria educar o aluno de modo a favorecer seu

aprimoramento pela satisfação de suas necessidades à medida que estas forem

manifestadas e de maneira espontânea (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 30; 31).

Tomando como base as propostas analisadas, trabalhar com uma postura

libertária não significaria abandonar as crianças a uma liberdade abstrata. É

necessário estabelecer metas e objetivos, aplicados de acordo com as

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circunstâncias e as especificidades, de modo que a educação seja voltada para

a conquista da liberdade. Em outras palavras, exige um direcionamento do

educador (GALLO, 1990, p. 195). Neste ponto, recuperamos Bakunin para

enfatizar a liberdade como uma construção social, entendendo que os alunos

precisam ser orientados neste processo.

[...] não quer dizer que abandonaremos a criança, em seus princípios educativos, a formar seus conceitos por conta própria. O procedimento socrático é errôneo se for tomado ao pé da letra. A mesma constituição da mente, ao começar seu desenvolvimento, pede que a educação nessa primeira idade da vida seja receptiva. O professor semeia as sementes das ideias, e estas, quando com a idade o cérebro se vigora, então geram a flor e o fruto correspondentes, em consonância com o grau de iniciativa e com a fisionomia característica da inteligência do educando (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p.10).

Ao passo que a liberdade é construída coletivamente, também é realizada

a desconstrução paulatina da autoridade. Em outras palavras, assim como no

meio social, no âmbito escolar o ponto de partida também é a autoridade, que

vai sendo diluída conforme a emancipação dos indivíduos acontece. Portanto,

no processo de instrução, nos moldes de uma pedagogia libertária de orientação

anarquista, a liberdade também deve ser vista como um fim e não como meio

(GALLO, 2007, p. 26; 49).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Recuperando parte da experiência de Francisco Ferrer y Guardia em

torno da Escola Moderna de Barcelona, muitas vezes mantida em um suposto

esquecimento, buscou-se demonstrar de que maneira o arcabouço teórico de

dois dos principais pensadores anarquistas, Proudhon e Bakunin, serviu como

base para o desenvolvimento do projeto educacional concebido pelo professor

catalão. Do mesmo modo, o trabalho de sistematização prática dos princípios

anarquistas de instrução integral, englobando a educação moral, física e

intelectual, empreendido por Robin, pôde ser apresentado como uma das

principais referências de Ferrer. Assim sendo, foi possível demonstrar de que

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maneira a Escola Moderna se configura como uma experiência de educação

libertária.

Ainda que o tema em questão remonte à segunda metade do século XIX

e a primeira década do século XX, muitas das questões levantadas e dos

pensamentos voltados à construção de uma nova sociedade permanecem atuais

e podem servir como um convite para refletirmos sobre a educação na conjuntura

atual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes:

BOLETÍN DE LA ESCUELA MODERNA. Año 1-2, n.1-9. Barcelona: La Editorial,

1901-1903.

Bibliografia:

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